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O suicídio do Ocidente.

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O suicídio do Ocidente: um ensaio sobre o significado e o destino do esquerdismo
James Burnham
1ª edição — outubro de 2020 — CEDET
Título original: Suicide of the West: An Essay on the Meaning and Destiny of Liberalism.
New York: Encounter Books, 2014.
Copyright © 2019 by James B. Burnham.

Os direitos desta edição pertencem ao


CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
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CEP: 13087-605 — Campinas, SP
Telefone: (19) 3249-0580
E-mail: livros@cedet.com.br

Editor:
Thomaz Perroni

Editor assistente:
Ulisses Trevisan Palhavan

Tradução:
Bruno Alexander

Revisão:
Ronald Robson
Jefferson Bombachim

Preparação de texto:
João Mallet

Capa:
Vicente Pessôa

Diagramação:
Thatyane Furtado

Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

ficha catalográfica
Burnham, James.
O suicídio do Ocidente: um ensaio sobre o significado e o destino do esquerdismo /
James Burnham; tradução de Bruno Alexander — Campinas, sp: Vide Editorial, 2020.
isbn: 978-65-87138-12-1

Título original: Suicide of the West: An Essay on the Meaning and Destiny of Liberalism.

1. Ideologias políticas. 2. Liberalismo. 3. Estados Unidos — Política e governo.


i. Título ii. Autor

cdd —320.5 / 320.51 / 379.73

índice para catálogo sistemático


1. Ideologias políticas — 320.5
2. Liberalismo — 320.51
3. Estados Unidos — Política e governo — 379.73

VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br


Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer
meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução,
sem permissão expressa do editor.

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Sumário

Prefácio ................................................................................... 9

Introdução............................................................................... 13

Prólogo.................................................................................... 31

CAPÍTULO I
A contração do Ocidente.......................................................... 33

CAPÍTULO II
Quem são os esquerdistas?....................................................... 47

CAPÍTULO III
A natureza humana e a sociedade justa.................................... 65

CAPÍTULO IV
O diálogo universal.................................................................. 83

CAPÍTULO V
Igualdade e bem-estar............................................................... 95

CAPÍTULO VI
Pensamento ideológico............................................................. 117

CAPÍTULO VII
Uma observação fundamental, feita de passagem..................... 143

CAPÍTULO VIII
Os esquerdistas realmente acreditam no esquerdismo?............. 163

CAPÍTULO IX
A ordem de valores do esquerdista........................................... 179

CAPÍTULO X
A culpa do esquerdista............................................................. 209

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CAPÍTULO XI
Pas d’ennemi à gauche.............................................................. 227

CAPÍTULO XII
A dialética do esquerdismo....................................................... 243

CAPÍTULO XIII
Novamente: quem são os esquerdistas?.................................... 261

CAPÍTULO XIV
A deriva da política externa dos eua........................................ 275

CAPÍTULO XV
Esquerdismo vs. realidade........................................................ 303

CAPÍTULO XVI
A função do esquerdismo......................................................... 323

Índice....................................................................................... 333

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CAPÍTULO III

A natureza humana e a sociedade justa

E
ntre os elementos de uma síndrome ideológica, existem senti-
mentos, atitudes, hábitos e valores, além de idéias e teorias. Meu
foco neste e nos dois capítulos seguintes serão as idéias e teorias
da síndrome progressista: os sentidos “cognitivos” do progressismo que
podem ser declarados na forma de proposições aceitas pela ideologia
esquerdista como verdadeiras. A distinção sugerida aqui entre sentidos
cognitivos e sentidos afetivos ou emocionais é muito menos clara no
conteúdo do que na forma, e será necessário voltar ao assunto poste-
riormente, mas fornece uma estrutura conveniente para a exposição.
Meu objetivo aqui, então, é apresentar o progressismo moderno
como um conjunto mais ou menos sistemático de idéias, teorias e cren-
ças sobre a sociedade.1 Antes de prosseguir, gostaria de fazer um co-
mentário preambular sobre a ascendência intelectual do progressismo.
O progressismo moderno, como é sabido, é uma doutrina sin-
tética ou eclética, com uma árvore genealógica bastante complexa.
1 No capítulo viii, verificaremos se o sistema de idéias que então já terei explicitado “é realmente”
o esquerdismo, se os esquerdistas acreditam no esquerdismo. Enquanto isso, observo que meu
objetivo nestes três capítulos não é de forma alguma distorcer, alterar, difamar, caricaturar ou
refutar o esquerdismo como um sistema de idéias, mas apenas entendê-lo e descrevê-lo.

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JAMES BURNHAM O SUICÍDIO DO OCIDENTE

Sem tentar remetê-lo ao início do processo de pensamento, podemos


localizar um indiscutível antepassado no racionalismo do século xvii.
O Professor Michael Oakeshott, sucessor de Harold Laski na cátedra
de ciência política da Universidade de Londres, usa o termo “raciona-
lismo” como o gênero do qual o esquerdismo e o comunismo são as
espécies contemporâneas mais importantes. Em Rationalism in Poli-
tics, ele chama Francis Bacon e René Descartes de “figuras dominan-
tes” em sua história inicial.2
As linhas que remontam ao século xviii são mais completas e dire-
tas, conduzindo ao Iluminismo em geral, a Voltaire, a Condorcet3 e os
co-autores do conceito de progresso, ao jacobinismo. Do utilitarismo
e da doutrina mais antiga chamada de “progressismo” no século xix,
como ainda é em partes da Europa, o progressismo moderno adotou
parte de sua teoria da democracia, sua ênfase crítica na liberdade de
expressão e opinião e algumas idéias sobre a autodeterminação de
nações e povos. Genes da tradição utópica (tanto do tipo iluminista
de utopia quanto do pré-socialismo utópico, como o de Saint-Simon,
Fourier e Robert Owen) são parte manifesta da herança.
Uma linhagem um pouco diferente entrou na família mais recente-
mente; alguns descendentes espirituais de Karl Marx, particularmente
primos da vertente revisionista paralela, como Eduard Bernstein, Karl
Kautsky, Jean Jaurès e os fabianos britânicos; William James, John
Dewey e outros da vertente pragmatista e utilitária americana; e o
economista mais influente do século xx, John Maynard Keynes.
Embora seja um grupo grande e aparentemente misto, o vínculo
entre os elementos dessa linhagem não é tão arbitrário como poderia
parecer à primeira vista. Esses antepassados têm certas características
em comum na postura histórica, assim como em relação à sua doutri-
na teórica, fato que, conforme veremos mais adiante, ajuda a resolver
um paradoxo no modo de funcionamento do progressismo moderno
na prática.

2 Michael Oakeshott, Rationalism in Politics. Nova York: Basic Books, 1962, p. 14.
3 O Professor Charles Frankel, em The Case for Modern Man, Nova York: Harper & Bros.,
1956, p. 7, cita Voltaire, Condorcet e John Stuart Mill como “os grandes nomes” ligados à
filosofia da história por trás das idéias progressistas.

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A natureza humana e a sociedade justa

Tendo nomeado essas múltiplas raízes, pode parecer que estou di-
zendo que a fonte intelectual do progressismo é todo o corpo do pensa-
mento pós-renascentista. É bastante natural que seja essa a impressão.
Nosso progressismo moderno é, na verdade, o representante contem-
porâneo, o principal herdeiro da principal linha (ou linhas) de pen-
samento pós-renascentista, a linha que tem o direito de se considerar
mais “moderna” e mais influente, moldando o mundo pós-renascentis-
ta e sendo moldada por ele.
Ainda assim, essa linhagem principal não é a única, mesmo que as
demais sejam menos significativas. De seus indubitáveis e reconheci-
dos antepassados, o progressismo herdou apenas uma parte dos bens;
uma parte, e em alguns casos uma parte importante da totalidade,
passivos e ativos, teve outra destinação. Se o progressista moderno
pode respaldar sua reivindicação da herança de Descartes, Diderot,
Rousseau, Adam Smith, Locke, Bentham, Ricardo, John Stuart Mill,
William James e Kautsky, fazendo-o por meio da apresentação de
muitos escritos à corte, um discordante será capaz de apresentar um
arquivo contrário substancial o suficiente para lançar sombra sobre
pelo menos parte do espólio. Pode-se até argumentar, como se tem
argumentado, que os progressistas de hoje mantêm seu domínio sobre
alguns dos bens (aqueles que remontam, num exemplo óbvio, a John
Stuart Mill ou John Locke) apenas pelo que os advogados chamariam
de “usucapião”, com o respaldo de seu controle atual do cartório
intelectual.
E, ainda com todas essas figuras proeminentes entre os ancestrais,
diretos, indiretos e adotados, do progressismo moderno, nem todos
os nomes foram mencionados, mesmo os da época pós-renascentista
(sem mencionar dos séculos sombrios anteriores ao advento da ciên-
cia e da democracia, cuja presença nos registros familiares do pro-
gressismo são, de qualquer forma, borrados e pouco nítidos).
Toda a tradição da filosofia católica, especialmente sua vertente
aristotélica principal, que afinal sobreviveu ao Renascimento, à Re-
forma e até a Isaac Newton, tem pouca ou nenhuma parte na linha-
gem do progressismo. Também não encontramos entre seus ancestrais
Thomas Hobbes ou Thomas Hooker, Blaise Pascal, David Hume,

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JAMES BURNHAM O SUICÍDIO DO OCIDENTE

Edmund Burke, John Adams, Alexis de Tocqueville, Henry Maine,


Jacob Burckhardt, Fustel de Coulanges ou Lord Acton. Nicolau Ma-
quiavel e Michel de Montaigne tiveram apenas pequenos flertes, sem
maiores conseqüências. E na maioria das vezes, embora ela exerça
uma atração emocional sobre alguns intelectuais progressistas con-
temporâneos, o progressismo tem no sangue pouco da infusão som-
bria que flui das fontes irracionais do século xix: de Soren Kierke-
gaard (de volta a Pascal, na verdade, com suas razões do coração, das
quais a Razão nada sabe) ao homem subterrâneo de Dostoiévski e
Friedrich Nietzsche.
Como uma maneira de pensar para os modernos, o progressismo
está na frente, mas não está sozinho no campo.

ii

Fechando esse parêntese, descreverei agora as idéias e crenças básicas


que compõem a estrutura formal da síndrome ideológica do progres-
sismo moderno.

1. O ponto de partida lógico para o esquerdismo, assim como para


a maioria das outras ideologias, é uma crença sobre a natureza do
homem. Nesse ponto, como em muitos outros, não é prudente tentar
ser muito preciso na formulação. O esquerdismo não é uma doutrina
exata e rígida, nem em sua função psicológica e social, nem em sua
estrutura lógica. Suas crenças não são como teoremas na geometria
ou em Spinoza, questões da filosofia escolástica ou teses de Hegel. De-
vemos entendê-las num sentido mais vago e flexível, com muitos mo-
dificadores, como “de modo geral” e “em algum nível”. Algumas das
crenças do esquerdismo devem ser vistas como expressão de tendên-
cias ou premissas, em vez de tentativas de estabelecer leis ou hipóteses
precisas. No entanto, mesmo vaga e imprecisa, uma crença pode ser
significativa, diferente de outras crenças e extremamente importante
do ponto de vista prático.

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A natureza humana e a sociedade justa

Feita essa ressalva, podemos afirmar que o esquerdismo acredita


que a natureza do homem não é fixa, mas mutável, com um potencial
ilimitado, ou pelo menos indefinidamente grande, para um desenvol-
vimento positivo (bom, favorável, progressivo). Isso pode ser contras-
tado com a crença tradicional, expressa nas doutrinas teológicas do
Pecado Original e na existência real do demônio, de que a natureza
humana tinha uma essência permanente e imutável e de que o homem
é parcialmente corrupto e limitado em seu potencial. “O homem, de
acordo com o progressismo, nasce ignorante, não perverso”, declara
o Professor J. Salwyn Schapiro,4 escrevendo como um progressista
sobre o progressismo.
A visão tradicional da natureza humana foi atacada indiretamente
por Bacon, Descartes e até pelos pensadores renascentistas anterio-
res. No século xviii, Rousseau, Condorcet, Diderot e outros filósofos
franceses do Iluminismo fizeram um ataque frontal. Eles rejeitaram
abertamente o dogma do Pecado Original e a teoria filosófica cor-
respondente. Em seu entusiasmo retórico, ensinaram que o homem
é naturalmente bom, não ruim ou corrupto, e sustentaram que as
potencialidades do homem são ilimitadas: que o homem, em outras
palavras, é perfeito no sentido de ser capaz de alcançar a perfeição.
Nisso e em muitas questões, o progressismo moderno coloca as
questões de maneira mais cautelosa e vaga. Em essência, a natureza
humana não é pura nem corrupta, nem boa nem má; e não é tão
“perfeita” quanto “plástica”. Pode haver um limite, sem perfeição,
ao que os homens são capazes de alcançar, em termos pessoais ou so-
ciais, mas não podemos ver e definir esse limite com antecedência. Se
existe um limite, ele é tão distante e tão além de qualquer coisa que o
homem já tenha realizado que não tem relevância prática para nossos
planos e programas.
A distinção decisiva é provavelmente a seguinte: o progressismo
moderno, ao contrário da doutrina tradicional, sustenta que não há
nada intrínseco à natureza do homem que torne impossível à socieda-
de humana alcançar os objetivos de paz, liberdade, justiça e bem-estar
4 J. Salwyn Schapiro, Liberalism: Its Meaning and History. Princeton: D. Van Nostrand, 1958,
p. 12. Este pequeno livro é, até onde eu sei, a única tentativa de apresentar o progressismo
moderno num compêndio mais ou menos sistemático.

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que o esquerdismo assume ser desejável e define como “a socieda-


de justa”. O esquerdismo rejeita a visão essencialmente trágica do
destino do homem encontrada em quase todo pensamento e literatura
pré-renascentistas, cristãos e não-cristãos.
Existem indivíduos a quem ninguém hesitaria em chamar de “es-
querdistas”, mas que parecem não acreditar nessa doutrina sobre a
natureza humana que aqui atribuo ao esquerdismo. Especificamente,
existem católicos romanos que se consideram esquerdistas e são consi-
derados esquerdistas, mas que, como católicos, estão comprometidos
com o dogma teológico do Pecado Original. E existem outros que, co-
nhecidos como esquerdistas, sustentam visões freudianas ou similares
na psicologia (Max Lerner parece ser um bom exemplo americano),
mas é difícil conciliar o relato psicanalítico da natureza humana com
a doutrina da plasticidade indefinidamente benigna do homem.
Essas aparentes anomalias serão tratadas mais detalhadamente no
capítulo viii. Aqui, apresento um breve comentário sobre elas.

(a) Embora seja verdade que alguns católicos e freudianos (ou pós-
-freudianos) devem ser considerados esquerdistas, geralmente há um
pouco de desconforto, de ambos os lados, com essa questão. Em gran-
de escala, os católicos são recrutas relativamente recentes do esquer-
dismo. A geração mais velha de esquerdistas, metida a intelectual, fica
contente em receber contingentes tão impressionantes no campo da
virtude, mas não sem alguma desconfiança; e isso se deve em parte
ao sentimento de que há algo errado, do ponto de vista esquerdista,
com a teoria católica sobre a natureza humana e o destino do homem.
Esse sentimento é forte o suficiente para levar alguns progressistas,
como Paul Blanshard e seu Comitê para a Separação da Igreja e do
Estado, a se afastar completamente dos católicos. Quase todo esquer-
dista mantém seus dedos ideológicos cruzados ao observar um grupo
como os jesuítas começando a parecer esquerdista, como os jesuítas
americanos têm feito ultimamente nas páginas de sua principal revis-
ta, a America. Os esquerdistas mais sensatos não ficam surpresos, e
seguros em sua própria fé, quando, depois de fazer comentários apro-
priados sobre reformas sociais e extremistas de direita, a America,

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A natureza humana e a sociedade justa

subitamente, passa para o outro lado, como em 1962, apresentan-


do preconceitos reacionários ao falar sobre uma decisão da Suprema
Corte que proíbe orações nas escolas públicas.
É digno de nota que a Americanos em Defesa da Ação Democráti-
ca, uma das principais congregações do fundamentalismo esquerdis-
ta, a princípio ficou bem insatisfeita com a perspectiva de nomeação
do católico John F. Kennedy para a presidência, embora muitos mem-
bros da ada logo fossem ocupar altos cargos no seu governo. Joseph
L. Rauh Jr., fundador e líder da ada, estimou que menos de 10% dos
membros da ada eram pró-Kennedy no início de 1960. Em setembro
de 1959, um memorando de Allen Taylor, diretor regional da ada em
Nova York, registrou: “A religião é o elemento principal na dúvida
dos esquerdistas sobre Kennedy”.5
Um freudiano também pode perturbar as águas esquerdistas. Max
Lerner é, na prática, um dissidente na formação esquerdista, muito me-
nos confiável do que, digamos, seu colega de equipe James Wechsler.
De vez em quando, o Sr. Lerner se desvia do consenso esquerdista.
(b) Muitos indivíduos que professam acreditar na doutrina religio-
sa do Pecado Original, ou em teorias da natureza humana, como a de
Freud, dão a seus pontos de vista uma interpretação modificada ou
metafórica, de modo a atender aos requisitos da teoria e prática es-
querdistas, assim como aqueles que acreditam na Bíblia foram capazes
de reinterpretar sua compreensão do Gênesis para reconciliá-lo, pelo
menos do ponto de vista psicológico, com a teoria da evolução. Esse
processo é facilitado pelo fato de que as crenças gerais sobre a nature-
za humana não são exatas. Seu sentido pode ser mais o de expressar
atitudes em relação à vida do que apresentar afirmações verificáveis.
(c) Não obstante, há muitos casos em que um determinado indi-
víduo está comprometido, em razão de sua religião ou de uma teoria
psicológica ou biológica, com certa visão da natureza humana, e está
comprometido, em razão de seu esquerdismo, com uma visão incom-
patível à anterior. Nesses casos, resta-nos observar que os seres huma-
nos são assim mesmo, incoerentes em suas crenças e comprometidos

5 Clifton Brock, Americans for Democratic Action, Washington: Public Affairs Press, 1962,
pp. 177, 185.

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com muitas contradições. Para a maioria das pessoas, isso não é um


problema. Elas geralmente nem percebem as contradições e, de qual-
quer forma, não levam muito a sério a exatidão lógica.
(d) Por mais variada que possa ser a combinação de crenças psi-
cologicamente possível para um esquerdista, o esquerdismo está
logicamente comprometido com uma doutrina dentro das linhas que
tracei: vê a natureza humana como algo não-fixo, mas plástico e di-
nâmico, sem limite pré-definido para o desenvolvimento de seu po-
tencial, sem obstáculos inatos à realização de uma sociedade de paz,
liberdade, justiça e bem-estar. Se a natureza humana não for assim, a
doutrina esquerdista e o programa de governo, educação, reforma etc.
são absurdos. Essa necessidade lógica será abordada no capítulo viii.

2. A ideologia esquerdista é racionalista. O Professor Oakeshott,


como já mencionei, classifica o esquerdismo simplesmente como um
caso especial do que pode ser chamado em geral de “racionalismo”. A
razão, de acordo com o racionalismo, não é apenas o que distingue o
homem, na definição lógica, de outras espécies, como afirmou Aristó-
teles (embora com outro sentido para “razão”). A razão é a essência
do homem e, em sentido prático, sua principal ferramenta de contro-
le. O esquerdismo está confiante de que a razão e a ciência racional,
sem apelo à revelação, à fé, ao costume ou à intuição, são capazes de
compreender o mundo e resolver seus problemas.
O esquerdista, enquanto racionalista, é assim descrito pelo Profes-
sor Oakeshott:

Ele defende […] a independência da mente em todas as ocasiões, a liber-


dade de pensamento frente à obrigação de qualquer autoridade, exceto a
autoridade da “razão”. Suas circunstâncias no mundo moderno o tornaram
controverso: ele é o inimigo da autoridade, do preconceito, do meramente
tradicional, costumeiro, habitual. Sua mentalidade é ao mesmo tempo cética e
otimista: cética, porque não há opinião, hábito, crença, nada tão firmemente
enraizado ou tão amplamente aceito que ele não questione e julgue pelo que
chama de“razão”; otimista, porque o racionalista nunca duvida do poder
de sua “razão” (quando aplicada corretamente) para determinar o valor
de uma coisa, a verdade de uma opinião ou a propriedade de uma ação.6

6 Oakeshott, op. cit., pp. 1-2.

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A natureza humana e a sociedade justa

O racionalismo entra na definição da natureza humana, como ex-


plica o Professor Schapiro:

Em geral, os esquerdistas têm sido racionalistas [mantendo] a convicção


de que o homem é essencialmente uma criatura racional. […] O que é
conhecido como racionalismo procura, usando a razão, sujeitar todos os
assuntos, religiosos e não-religiosos, à investigação crítica. O racionalista
busca seu esclarecimento na ciência. A razão […] é sua bússola. Portanto,
o que não passar no teste da razão não deve ser aceito.7

O Professor Sidney Hook resumiu todo o esquerdismo em três


palavras, involuntariamente irônicas: “Fé na inteligência”.

3. Como não há nada de intrínseco à natureza humana que impeça


a realização da sociedade justa, os obstáculos a ela devem ser, e são,
extrínsecos ou externos. Os principais obstáculos são especificamente
dois, como o esquerdismo os vê: a ignorância — um estado acidental
e remediável, não intrínseco e essencial, do homem; e as más institui-
ções sociais.

4. Dessas doutrinas da plasticidade e racionalidade humanas e do


caráter externo e remediável dos obstáculos à sociedade justa, segue-se
a crença no progresso: o que pode ser chamado de otimismo histórico.
A idéia de progresso teve sua expressão mais pura durante o Ilu-
minismo do século xviii, mas está presente de uma forma ou de ou-
tra, junto com um ou outro grau de otimismo histórico, ao longo da
linhagem do progressismo, de Francis Bacon e René Descartes até o
Senador Hubert Humphrey. Se a humanidade empregasse seu méto-
do, prometeu Bacon, seria capaz de “estender o poder e o domínio da
própria raça humana sobre o universo”; desdenhando “a circunscri-
ção injusta do poder humano e […] um desespero deliberado e arti-
ficial”, a vida humana “será dotada de novas descobertas e poder”.8
Com o seu método, explicou Descartes, qualquer homem, usando
somente a razão que lhe é natural como ser humano, pode descobrir

7 Schapiro, op. cit., p. 12.


8 Novum Organum, l. i, aforismos 129, 88, 81.

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JAMES BURNHAM O SUICÍDIO DO OCIDENTE

todas as verdades.9 O Marquês de Condorcet explica seu propósito


com franqueza aristocrática:

O objetivo do livro que me comprometi a escrever é provar que o homem,


com base na razão e nos fatos, alcançará a perfeição. […] A natureza não
estabeleceu limites para a perfeição das faculdades humanas. A perfectibi-
lidade da humanidade é, na verdade, indefinida; e o progresso dessa per-
fectibilidade, doravante livre de todos os obstáculos, durará tanto quanto
o mundo em que a natureza nos colocou.10

Ao assumir o comando da Revolução Francesa, o Clube dos Jaco-


binos anunciou “o reinado da Virtude e da Razão”, que não se limi-
taria à França, mas se espalharia pelo mundo inteiro; e Robespierre
realmente coroou a Deusa da Razão na Catedral de Notre-Dame. (A
jovem que atuou como o avatar da Deusa na ocasião acabou decep-
cionando seus adoradores ao se casar com um indivíduo bastante
comum e tendo vários filhos). Robert Owen propôs uma convenção
mundial capaz de “livrar a raça humana da ignorância, pobreza, desi-
gualdade, pecado e miséria”. A British Fabian Society foi fundada em
1883 “para a reconstrução da sociedade de acordo com os mais altos
princípios morais”.
Em nossos dias, a Americanos em Defesa da Ação Democrática
mantém a tocha acesa. O Programa de 1962 apresenta a autodefini-
ção da ada:

Uma organização de progressistas, unida para trabalhar pela liberdade,


justiça e paz. O progressismo, a nosso ver, é uma fé exigente [e] seus
objetivos são claros: [não apenas] a realização do indivíduo livre numa
sociedade justa e responsável [em casa, mas] num mundo em que todas as
pessoas possam compartilhar a liberdade, a abundância e as oportunidades
que estão ao alcance da humanidade, um mundo marcado pelo respeito
mútuo e pela paz.

Há um duplo aspecto nesse otimismo histórico. A sociedade pa-


cífica, justa, livre, virtuosa, próspera e assim por diante é, por um
lado, a meta desejável para a humanidade. Mas, além disso, a socie-
dade justa deve ser o resultado real do desenvolvimento histórico:

9 Discurso do método, passim.


10 Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain (“Panorama do progresso
da mente humana”).

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A natureza humana e a sociedade justa

inevitavelmente, como Condorcet e muitos outros pré-progressistas


e progressistas acreditavam, e até tentaram provar, que ocorreria, ou
de modo planejado, com a condição de que os seres humanos se com-
portassem racionalmente, isto é, aceitassem a ideologia, o programa e
a liderança progressistas.
É o segundo aspecto preditivo que é o atributo mais destacado
do progressismo. Há outros que concordam com os progressistas so-
bre as especificações da sociedade justa, embora nem todos; alguns
defenderam, ou defendem ainda, estruturas sociais bem diferentes; e
outros não têm nenhum objetivo para a sociedade secular, seja porque
seu objetivo não é deste mundo, ou porque achem besteira ter um
objetivo social geral. Mas, mesmo entre os não-progressistas com um
mesmo objetivo progressista, muitos o considerariam não um objeti-
vo atingível, mas apenas um ideal obscuro, que às vezes pode servir de
orientação, ainda que limitada, para a conduta social ou inspiração
para o movimento social.
Ou seja: é característico dos progressistas, e talvez de todos os
ideólogos, acreditar que existem soluções para os problemas sociais.
A maioria dos progressistas e quase todos os seus antepassados in-
telectuais acreditam que existe uma solução geral para o problema
social: que “a sociedade justa” ou uma réplica razoável dela pode, de
fato, ser realizada neste mundo. “O progressista do século xx, como
seus antepassados do século xviii […] acredita que homens livres têm
capacidade intelectual e recursos morais para superar as forças da
injustiça e da tirania”, como Hubert Humphrey reafirmou a tradição
em 1959.11
Intelectuais esquerdistas mais sofisticados de nossos dias (Arthur
Schlesinger Jr., por exemplo, Sidney Hook ou Charles Frankel) geral-
mente ocultam o otimismo antiquado na presença dos outros, aban-
donando a maior parte da metafísica do século xviii e admitindo
que o progresso pode não ser “automático” ou “inevitável”. Mas, no
final, pela porta dos fundos, se não pela da frente, eles retornam à sua
herança. “Manter a visão esquerdista da história”, escreve Frankel,
11 “Six Liberals Define Liberalism”, em New York Times Magazine, 19 de abril de 1959, p.
13. Devemos lembrar que o Senador Humphrey foi professor de ciência política antes de
se tornar político.

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como se julgasse impessoalmente as crenças ingênuas do passado,


“significava acreditar no ‘progresso’ e acreditar que o homem po-
deria melhorar sua condição indefinidamente, aplicando sua inteli-
gência naquilo que ele faz”. Cinco páginas depois, contudo, reitera:
“Podemos, em meio ao colapso de nossas esperanças, ainda manter
os elementos essenciais da perspectiva esquerdista da história? Acho
que podemos”.12
Se, por um lado, eles reduzem as probabilidades (“a chance de
triunfar, com muito esforço”, como diz o Prof. Frankel) de que a hu-
manidade realize a sociedade justa em geral, por outro continuam
acreditando que existe realmente uma solução para cada questão so-
cial em particular, mesmo as questões mais difíceis: as questões (os
esquerdistas costumam falar em termos de “questões”)13 da guerra,
do desemprego, da pobreza, da fome, do preconceito, da discrimina-
ção, do crime, da doença, do conflito racial, da automação, da explo-
são demográfica, da revitalização urbana, da recreação, das nações
subdesenvolvidas, das mães solteiras, dos cuidados com os idosos,
da América Latina, do comunismo mundial etc. “A visão por trás do
esquerdismo”, resume o Professor Frankel, nessa perspectiva (mas
sem esclarecer por que usa as palavras “por trás”), “é a visão de um
mundo que, através do poder humano, é progressivamente redimido
de seus males clássicos: a pobreza, a doença e a ignorância”.
“O princípio fundamental da ada”, proclamava uma declaração
de 1962, emitida pela Americanos em Defesa da Ação Democrática,
refletindo o pensamento de seus filósofos, muitos dos quais também
são seus membros, “é a fé no processo democrático, a fé em sua capa-
cidade de encontrar soluções para os problemas que desafiam a socie-
dade do século xx. Temos fé de que [itálico deles], com muito empe-
nho, podemos encontrar soluções para as questões antigas, mas ainda
presentes, do […]”, e em seguida vem uma lista das questões mais
comuns. A ada é apresentada aqui da mesma forma que um livro
médico, ao tentar definir esquizofrenia, procuraria se referir a casos
clínicos já avançados, e não ao comportamento esquizóide incipiente
12 Frankel, op. cit., pp. 36, 41.
13 O Professor Frankel comenta: “Sendo incisivo, mas preciso, posso dizer que o esquerdismo
inventou a idéia de que existem coisas como ‘problemas sociais’” (ibid., p. 33).

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A natureza humana e a sociedade justa

ou parcial comum a muitos de nós. Como um grupo fundamentalis-


ta de esquerda, a ada freqüentemente coloca essas questões em ter-
mos conscientes, explícitos e inequívocos. Mas essa fé na existência
de soluções para problemas sociais está presente em todo o espectro
progressista, alcançando, inclusive, um grande segmento da faixa que
se autodenomina “conservadora”, mas que, na verdade, compartilha
muitos dos axiomas esquerdistas subjacentes. Poucos são os edito-
rialistas, colunistas, professores, palestrantes, funcionários eleitos ou
nomeados nos Estados Unidos14 que declaram categoricamente que
um dado problema político, econômico ou social pendente não será
resolvido, não tem solução. O Professor Oakeshott comenta essa ca-
racterística do esquerdismo (“racionalismo”, em sua terminologia).
“O esquerdista”, diz ele,

não é desprovido de humildade; ele é capaz de imaginar um problema imune


à investida de sua própria razão. Mas o que ele não consegue imaginar é uma
política que não consista em solucionar problemas, ou um problema político
para o qual não há solução “racional”. Esse problema deve ser inventado.
E a solução “racional” de qualquer problema é, por definição, a solução
perfeita. […] Certamente, o racionalista nem sempre é um perfeccionista em
linhas gerais, pois sua mente é governada, em cada caso, por uma utopia
abrangente, mas será, invariavelmente, um perfeccionista nos detalhes.15

5. A ignorância e as más condições sociais que causam os males do


mundo e bloqueiam o progresso são o legado do passado; “o resulta-
do”, diz o Professor Schapiro, “dos erros e injustiças do passado”.16
Portanto, não há razão para defender idéias, instituições ou condutas
simplesmente porque elas foram estabelecidas há muito tempo e nos-
sos ancestrais as aceitaram. Sua ancestralidade, na verdade, é motivo
de suspeita. Antes, devemos estar prontos para assegurar inovações

14 Essa fé na solubilidade dos problemas sociais foi tão proeminente e difundida nos Estados
Unidos que, no contexto americano, provavelmente deveria ser considerada mais uma carac-
terística nacional do que ideológica. Nos discursos, relatórios ou artigos americanos sobre
problemas políticos, econômicos ou sociais, um final “positivo” é praxe em quase todos os
círculos. Nesse sentido, o Professor Louis Hartz e outros historiadores intelectuais estão quase
corretos ao afirmar que “a tradição esquerdista” é a única tradição americana. Na Europa,
os conservadores e muitas tendências religiosas nunca tiveram esse otimismo social.
15 Oakeshott, op. cit., p. 5.
16 Schapiro, op. cit., p. 12.

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JAMES BURNHAM O SUICÍDIO DO OCIDENTE

rápidas, e até drásticas e abrangentes, se elas tiverem sido recomen-


dadas do ponto de vista racional e utilitário. Nesse sentido, o esquer-
dismo é antitradicional.
Na verdade, parece-me que a atitude em relação à tradição consti-
tui a maneira mais precisa de distinguir progressistas de conservadores
e, de forma mais geral, a esquerda da direita, uma vez que, em termos
de mudança, o revolucionário e o reacionário estão somente levando
as respectivas atitudes de progressistas e conservadores a seus limites.
No artigo da New York Times Magazine sobre a definição de “pro-
gressismo”, ao qual já me referi, o Senador Humphrey insiste particu-
larmente na “mudança” como o ponto fundamental:

É essa ênfase nas mudanças de fins e meios que mais distingue o progressista
de um conservador em uma comunidade democrática. O dicionário define
progressista como aquele “favorável à mudança e à reforma, tendendo
na direção da democracia”. No léxico político de 1959, os progressistas
reconhecem a mudança como a lei inevitável da sociedade e a ação em
resposta à mudança como o dever primordial da política.

Podemos colocar a questão da seguinte maneira: o fato de uma


idéia, instituição ou conduta específica ter sido estabelecida há algum
tempo cria um precedente para sua continuidade? A essa pergunta,
um conservador responderá sim, com convicção, e um progressista,
não ou “muito pouco”. Isso não significa que um conservador nun-
ca desejará mudar nada e um progressista sempre desejará mudar
tudo. É o niilista revolucionário, não o progressista, que pensa que
está tudo errado; e é o reacionário, não o conservador, que não quer
alterar nada (a menos, talvez, que seja para voltar ao passado). Em
alguns casos, os conservadores podem se convencer da necessidade
de mudança do status quo, embora o defendam, assim como um pro-
gressista, a depender da situação, talvez se contente com deixar as
coisas como estão. Mas a diferença de premissas, idéias e tendências
entre eles permanece.
Um progressista costuma chamar as inovações que defende de “re-
formas”, de modo que os progressistas podem ser descritos, em geral,
como “reformistas”. “A crença no progresso”, diz o Professor Scha-
piro, “inspirou os progressistas a se tornarem fervorosos defensores

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A natureza humana e a sociedade justa

de reformas de todos os tipos para criar a sociedade justa do futuro.


A reforma é a paixão do progressismo”.17 Nos casos em que conser-
vadores e progressistas concordam com a necessidade de reforma, o
conservador desejará que a reforma seja menos extensa e mais gradual
do que aquilo que o progressista acredita ser necessário, desejável e
possível. Essa diferença é claramente ilustrada pelo atual “problema
racial” nos Estados Unidos. Quase todos os conservadores concordam
com os progressistas quanto à necessidade de reformas nas relações
raciais existentes. Mas os conservadores, em comparação com os pro-
gressistas, desejam que o programa de reforma seja mais fragmentado,
de modo que, a cada estágio, a ruptura com as condições existentes
seja menos acentuada. Na “velocidade calculada” que a Suprema Cor-
te estabeleceu como o ritmo adequado para as mudanças, os conser-
vadores sublinhariam “calculada”, enquanto os progressistas, “velo-
cidade”.
Consideremos outro exemplo mais detalhadamente. No Congres-
so americano, os presidentes das comissões permanentes são nomea-
dos pelo partido majoritário com base na antigüidade. Embora al-
guns argumentos racionais possam ser apresentados em favor dessa
prática, eles são, de maneira geral, menos convincentes (se julgados
estritamente de um ponto de vista abstrato e puramente racional) do
que os diversos argumentos que podem ser trazidos contra ela, como
já aconteceu muitas vezes. Trata-se, porém, de uma prática ances-
tral, que, sem ser formalmente debatida ou ponderada, se fixou muito
cedo na história do Congresso e também, embora isso raramente seja
observado, em todos os outros órgãos legislativos (estaduais e muni-
cipais) dos Estados Unidos, fixada como regra, aliás, na maioria dos
órgãos legislativos do mundo, em qualquer época, tão logo estejam
estabelecidos há alguns anos.
Para a mente conservadora, esse venerável hábito ou costume, que
aparece e reaparece em tantos momentos e condições, parece exercer
alguma autoridade legítima. Não a deliberação, mas uma longa ex-
periência prática parece ter levado os homens a adotar essas regras
de antigüidade e outros procedimentos do mesmo tipo, o que sugere

17 Schapiro, op. cit., p. 13.

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que, a partir da própria experiência prática, os homens gradualmente


aprendem certas coisas sobre a realização de assembléias e a cria-
ção de leis que não podem ser derivadas somente de princípios, da
razão ou de livros. Tanto quanto a experiência prática, o hábito, a
aprendizagem e o conhecimento direto parecem ser necessários para a
proficiência, assim como para o entendimento genuíno da pintura, da
carpintaria, da música e de todas as artes e ofícios (talvez, inclusive,
para um entendimento adequado da própria filosofia e das ciências).
No entanto, a maioria dos esquerdistas dentro e fora do Congres-
so não sente, no que diz respeito à presidência de comitês (que é um
ponto fundamental no sistema governamental americano), que tais
considerações de experiência, hábito, costume e tradição tenham um
peso significativo frente aos argumentos indiscutíveis derivados da
teoria democrática e dos objetivos reformistas. E os esquerdistas, sem
dúvida, estão corretos ao afirmar que a antigüidade e regras seme-
lhantes nas assembléias legislativas são logicamente contrárias à teo-
ria democrática, constituindo, na prática, freios à rápida realização
das principais reformas sociais.
Além disso, os esquerdistas, quando arrebatados pela “paixão”
por reformas, como diz o Professor Schapiro, não refletem devida-
mente a respeito do fato de que nenhuma inovação social ocorre no
vácuo. Quando alteramos o item a, especialmente se ele for alterado
de maneira deliberada e abrupta, em vez de pela lenta moldagem do
tempo, verificamos que os itens b e c também se alteram e, até certo
ponto, todo o cenário social, às vezes de maneiras inesperadas. Pode-
mos ser bem-sucedidos em nossa reforma, mas haverá, também, mu-
danças imprevistas e talvez indesejadas, e inevitavelmente se perderá
algo (no mínimo, aquilo que a reforma veio substituir, de modo que
a perda líquida pode mais do que contrabalançar o ganho na escala
do progresso).
No caso que estamos considerando, e mesmo em geral, essa pos-
sibilidade não preocupa muito o esquerdista, porque ele terá tomado
sua decisão sobre a conveniência da reforma com base em sua ideo-
logia (que compreende um conjunto predefinido de objetivos desejá-
veis) e não na observação demorada, meticulosa e bastante prosaica

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A natureza humana e a sociedade justa

do verdadeiro modo de funcionamento de assembléias ou do que quer


que seja. Assim, em todas as sessões do Congresso nessas décadas
recentes, desde que o esquerdismo se tornou uma influência generali-
zada, há propostas para abolir a antigüidade e regras não-democrá-
ticas relacionadas. A esse respeito, é revelador notar que, apesar do
clima de opinião progressista predominante nos Estados Unidos, as
inovações esquerdistas avançaram lentamente no Congresso: um fato
que confirma o julgamento progressista e a condenação do Congresso
como a mais conservadora de nossas instituições políticas nacionais.
A atitude progressista em relação à tradição e à mudança pode ser
ilustrada em todas as esferas da vida social e em milhares de questões,
que vão do divórcio ao Peace Corps, do patriotismo ao currículo es-
colar. Bertrand Russell, um dos profetas do progressismo do século
xx, embora um tanto excêntrico, expressa isso de maneira abrangente
em seu livro Why Men Fight. A tarefa da educação, diz ele, não deve
ser sustentar, mas destruir o “contentamento com o status quo. […]
Deveria inspirar-se, não em um pesaroso anseio pelas belezas extintas
da Grécia e do Renascimento, mas em uma visão brilhante da socie-
dade que está por vir, dos triunfos que o pensamento [ou a razão,
no sentido que demos ao termo] alcançará nos tempos vindouros”.18
John Stuart Mill não foi menos categórico em seu ensaio mais influen-
te, Sobre a liberdade:

O despotismo do costume é, em todo lugar, o obstáculo permanente ao


progresso humano, sendo o grande antagonista à disposição de visar algo
melhor do que o habitual, chamado, de acordo com as circunstâncias, de
espírito da liberdade, progresso ou melhoria. […] No entanto, qualquer
forma de princípio progressista, seja o amor à liberdade ou o amor à me-
lhoria, é antagônica ao domínio do costume, envolvendo, pelo menos, a
libertação desse jugo, e a disputa entre os dois constitui o principal interesse
da história da humanidade.19

18 Citação de Selected Papers of Bertrand Russell, Nova York: The Modern Library, 1927, pp. 99, 110.
19 John Stuart Mill, Sobre a liberdade. Citação da edição de Essential Works of John Stuart
Mill, da Bantam Books, editado e prefaciado por Max Lerner, Nova York, 1961, p. 318.

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