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Andréa Slemian / Revista de História 137 (1997), 155-157 155

REVISTA DE FFLCH-USP
HISTÓRIA 1997

LANNA, Ana Lúcia Duarte - Uma cidade na transição. Santos: 1870-1913. São Paulo/
Santos, Hucitec, 1996. (Col. Estudos Históricos)

Resultado da pesquisa de doutoramento apresen- referenciais burgueses, vinculados aos valores ur-
tada em 1994 junto ao Departamento de História da banos europeus e revestidos de uma fachada de “mo-
USP, o livro de Lanna é um estudo de caso inserido dernidade”, que promoveram novos hábitos e gostos
na problemática das mudanças urbanas que ocor- entre os habitantes das cidades brasileiras em cresci-
reram no Brasil no final do século XIX e início do mento, em contraposição ao passado colonial.
XX. Essas transformações se encontram estrutural- A periodização adotada marca o início das preo-
mente vinculadas à derrocada do regime imperial e cupações higiênicas na cidade, articuladas a um novo
da escravidão, à ascensão do capitalismo e cresci- conceito de urbanismo nascente no contexto brasi-
mento dos mercados nacionais, além de outros as- leiro, presentes em 1890 com as reformas do porto,
pectos multifacetados já demarcados e revisitados que aceleraram o processo de consolidação de uma
pela historiografia. No desvendamento das relações cidade “moderna”. Já em 1913 essas transformações
entre este quadro geral brasileiro e as especificidades apareciam de forma clara, com o controle das epide-
presentes no desenvolvimento urbano de Santos se mias, separação das classes mais abastadas dos bair-
situa seu objeto de estudo, que apresenta como um ros habitados por trabalhadores, e com o espaço da
dos seus principais méritos a articulação desses dois cidade reformado. O estudo da grande reforma sani-
níveis, o particular e o geral, ao contemplar a cidade. tarista promovida por Saturnino de Brito (a qual in-
A análise aponta a relevância das transformações cluía demolições, controle das áreas tidas como “in-
urbanas no período para a compreensão do processo, fectadas”, reformas dos cortiços, etc) permite perce-
entre outros, de surgimento de uma nova mentalidade ber esse novo modo de pensar a cidade, que elegera
política, com uma variável estética associada a um a engenharia como portadora de soluções que trans-
discurso de “progresso” das novas elites que se formariam a aparência urbana em algo belo e higiê-
formavam. Assim, com o crescimento vertiginoso de nico. Desta forma, os executores dessas reformas ur-
algumas cidades ligado aos incentivos do mercado banas pouco preocupados com os problemas sociais
externo, e no caso de Santos devido sua característica iminentes - crescimento dos cortiços, das condições
portuária, cresciam também sua produção e seus pro- insalubres de vida e trabalho da população mais
blemas em relação às condições de vida dos que nela pobre - mais se esforçaram na marginalização às for-
trabalhavam e habitavam. Percorrendo todo esse pro- mas de sobrevivência dos trabalhadores, tanto imi-
cesso o livro destaca o surgimento ostensivo de novos grantes como nacionais e ex-escravos.
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O principal propósito do livro, porém, é destacar Assim se promoviam formas de marginalização deste
a articulação da formação da vida urbana santista e poder local, como no caso das disputas na área do
sua dinâmica na relação de transição do trabalho porto, ponto de convergência de interesses diversos.
escravo para o trabalho livre, destacando nesse con- Porém o centro da análise não está em esmiuçar as
junto as vinculações entre o desenvolvimento do co- relações entre poder local e poder estadual, mas sim
mércio, a expansão do porto e da ferrovia. Assim, para em analisar como tensões sociais se articulam na
Lanna, o crescimento e a diversificação das relações constituição e transformação dos espaços urbanos.
na cidade se deram concomitantemente às mudanças Um dos eixos da análise se coloca na percepção
nas relações de trabalho, criando tensões sociais ex- da politização da questão sanitária, onde a dimensão
pressas na definição dos novos espaços de convívio. estética subordinava a imperiosidade da técnica e da
Logo na introdução a autora discute o contexto sanitarização dos espaços em prol de um discurso da
geral das transformações das cidades brasileiras, fa- elite dominante. Assim os agentes destas reformas
zendo um breve histórico, e salientando a impor- promoveram a destruição e o afastamento dos bairros
tância de se pensar o século XIX vinculado ao esta- mais pobres, frente ao crescimento de acomodações
belecimento de uma “nova ordem social”, consolida- para as classes mais abastadas, que descobriam o pra-
da pelo mundo capitalista que elegia a cidade como zer à beira-mar. Para os novos valores burgueses que
um espaço privilegiado e ideal da vida burguesa. A emergiam nesta sociedade, a aparência das coisas ga-
seguir a análise está dividida em três partes ou capí- nhava uma importância nova, e traduzia-se na pre-
tulos: primeiramente, o estudo da formação da cida- ocupação com as edificações, bem como com os cos-
de de Santos desde a colônia até o período proposto; tumes (vestuário e hábitos), ou seja, a crença na di-
em segundo lugar, a análise dos movimentos de mensão estética como tradutora da essência de todas
transformação dos espaços da cidade, através das re- as coisas.
formas e demolições, bem como das mudanças nos Mas o processo de formação da cidade santista
hábitos dos seus moradores; e por último, o estudo não é analisado apenas na problemática das reformas
da relação dos trabalhadores com as mudanças urba- urbanas, mas também na mudança fundamental e
nas e suas formas cotidianas de sobrevivência. paulatina da concepção de público e de privado, e
Ao estudar as transformações ocorridas na cidade na incorporação de valores europeizantes aos costu-
de Santos no final do século XIX, objeto do 1º capí- mes nacionais, que passaram a ser negados pela nova
tulo, são discutidos os impactos causados pelo seu elite burguesa em crescimento, tanto no discurso co-
rápido desenvolvimento, que dera origem a uma série mo na sua prática social. Os espaços privados ganha-
de incrementos tecnológicos e ao mesmo tempo à vam uma dimensão diferente, pois se tornavam privi-
propagação de epidemias e cortiços. É salientado que legiados para os acontecimentos sociais, configuran-
o crescimento da cidade sempre estivera articulado, do-se no espaço de formação do indivíduo em opo-
economicamente - principalmente pelas atividades sição ao mundo público. Diferente da cidade colo-
do porto - e politicamente, ao desenvolvimento do nial, onde os grandes acontecimentos se davam nas
planalto paulista, fato que gerava constantes tensões praças e nas ruas à luz do dia, a “nova” cidade apre-
nas relações entre a elite local santista e o governo sentava um outro papel para os espaços públicos, que
estadual. Daí advinham conflitos onde a municipa- cada vez mais se reduziam a locais de passagem..
lidade era reiteradamente acusada pelos órgãos es- Seguindo este raciocínio a autora analisa as mudanças
taduais de ineficiente na solução de seus problemas. nos modos de vida, focalizados no 2º capítulo, e de
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que forma elas expressaram-se na ocupação dos imigrantes um fator de coesão e identidade no mo-
espaços da rua, nas habitações, nos lazeres. mento em que estes conflitos se desencadeavam
As condições de trabalho na cidade são analisa- entre os próprios trabalhadores, devido às condições
das em seguida, destacando-se as estratégias de precárias em que viviam.
sobrevivência possíveis dos trabalhadores (imigran- Assim, a autora adota o conceito de desclas-
tes, nacionais e, dentre estes, os ex-escravos) e sua sificação desenvolvido por Laura de Mello e Souza,
adaptação aos novos valores burgueses, estabelecendo em Os desclassificados do ouro (como ela mesma
os nexos entre a transição para o trabalho livre, sempre cita), para a camada mais desvalida da população que
tendo em vista a constituição dos espaços urbanos em vivia em condições de perene mobilidade, precarie-
sua dinâmica social. Lanna se vale do estudo do coti- dade e instabilidade no trabalho, muitas vezes ex-
diano para mostrar como as condições de existência cluída da participação de muitos dos bens da cidade.
desta camada baseavam-se em outras formas de socia- Salienta que os trabalhadores, da forma como vivi-
bilidade que apareceram nos cortiços, estabeleci- am, se constituíram na negação do projeto moderni-
mentos comerciais e morros, áreas tidas pelas classes zador e, como tal, deveriam ser transformados ou dis-
mais abastadas como “infectadas”, vigiadas pela persos para outras áreas urbanas menos aparentes.
polícia e pelos órgãos ligados à saúde. Não só os Essa camada mais pobre também mudaria seus hábi-
espaços eram discriminados, mas também os trabalha- tos e costumes, porém esse processo se daria com outro
dores, principalmente os ex-cativos, os quais partilha- caráter, revestido pela roupagem da higienização.
vam de uma liberdade que dificilmente lhes possibi- Todos os pontos discutidos no livro conduzem a
litaria uma ascensão social através do trabalho. uma maior compreensão das graves conseqüências
Destacava-se a relação estabelecida entre o sociais que teve este processo na constituição da ci-
trabalho livre e a significação do ideário de negação dade de Santos, visíveis até os nossos dias, além de
à escravidão neste contexto específico, pois era salientar a formação das características de cidade
Santos um pólo aglutinador de escravos em fuga na “moderna” no processo santista ao longo de sua his-
procura de liberdade e da integração no mundo tória. Traz, em anexo, indicações das fontes manus-
assalariado. Nesse ponto Lanna recompõe o quadro critas utilizadas no Arquivo Geral da Comarca de
geral da formação das idéias abolicionistas vincula- Santos e no Arquivo do Estado de São Paulo, bem
das principalmente à estratégia republicana, e não como de fontes impressas e do Inventário dos bens
com as condições de vida e de sobrevivência dos es- de Quintino de Lacerda. Apresenta, ao longo do tex-
cravos, preocupações que inexistiram neste processo. to, a reprodução de dois mapas: um da cidade de
As tensas condições de vida destes trabalhadores, Santos em 1878, e outro dos cortiços; tabelas de
processo e fruto também das reformas urbanas e so- população e edificações, fotos da cidade e de algu-
ciais, desdobram-se ainda nos conflitos pela proprie- mas personalidades, além de um índice remissivo su-
dade e pela exploração das terras. Neste ponto ressal- mário no final do volume.
ta-se como as nacionalidades representaram para os Andréa Slemian

Pós-graduanda do Depto. de História FFLCH/USP

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