Você está na página 1de 25

O Património na encruzilhada da identidade e da

responsabilidade.
Da Estatuária à Arte Pública

José Guilherme Abreu

Le patrimoine, au sens où on l’entend aujourd’hui


dans le langage oficiel et dans l’usage commun, est
une notion toute récente, qui couvre de façon
nécessairement vague tous les biens, tous les
« trésors » du passé. En fait, cette notion comporte
un certain nombre de couches superposées qu’il
peut être utile de distinguer.

André Chastel, La Notion de Patrimoine, 1980.

Enfoque teórico e deontológico

Tem cerca de 60 anos, a utilização da noção de “património” para


designar o conjunto de bens que integram o legado ou herança cultural de
um povo, de uma cultura ou de uma civilização.
Deve-se ao historiador de arte francês André Chastel a introdução do
uso sistemático do termo “património” no sentido de legado cultural, tendo
sido o mesmo adotado por André Malraux, ministro da cultura do governo
francês, entre 1959-1969, aquando da criação, em 1964, do Serviço do Inven-
tário, com a designação de “Inventaire général des monuments et richesses
artistiques de la France”, dito também “Inventaire du patrimoine”. (ig. 1)
Até à criação deste Inventário, a utilização do vocábulo servia para
designar o conjunto dos bens móveis e imóveis detidos por determinado
proprietário particular ou entidade pública, pois como observa André Chastel,
252 José Guilherme Abreu

originalmente “o termo latino patrimonium designa uma legitimidade familiar


que mantém a herança”1, explicitando “uma relação particular entre o grupo
juridicamente deinido e certos bens materiais bastante concretos”2.

Fig. 1
IGMRAF, dito Inventaire du Patrimoine, 1964

Constitui, portanto, uma extensão do sentido semântico originário do


termo latino, a aplicação deste à esfera cultural e artística, visando a incor-
poração na herança de outros valores que se entendem para lá do sentido
eminentemente material.
Porque a nova extensão do vocábulo se estabelece em oposição ao
valor material, podemos aduzir que os valores que doravante passam a
ser incluídos no termo património são valores eminentemente espirituais,
conotação essa que, na herança, era antes estabelecida pela expressão
“valor estimativo” a qual se constituía como medida do “a(-)preço”, isto é,
daquilo que justamente está para lá do preço, ou que não tem sequer preço.
Pioneiro do entendimento da esfera cultural como expressão dos valores
espirituais de uma dada civilização, cultura ou coletividade, foi Paul Valéry
que justamente criou a expressão “Política do Espírito”, expressão essa que
António Ferro viria a adotar para slogan do Secretariado da Propaganda
Nacional (SPN), retirando-a do discurso pronunciado por Paul Valéry, na

1
CHASTEL, André, La Notion de Patrimoine, in, NORA, Pierre (org.), Les Lieux de Mémoire.
La Nation (vol. II), Paris, Gallimard, 1986, p. 405.
2
Idem, ibidem

Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 253

Université des Annales, em Paris, no dia 13 de Julho de 1932 – um ano


antes, portanto, da criação do SPN.
É certo que, modernamente, o conceito de património alargou-se consid-
eravelmente, passando
a compreender não só bens materiais concretos (obras de arte, edifícios),
mas também bens imateriais (língua, mitos), ou mesmo aspetos da natu-
reza (paisagens, fauna, lora), e mais recentemente o próprio património
genético (genoma humano).
Apesar deste alargamento, importa manter presente que a ideia de
Património se conigura a partir da noção de pertença e de legado. Daí
que, património é tudo aquilo que nós herdamos, e que nos responsabiliza
R
a zelar pela sua retransmissão, enriquecida esta pela adição do noss pró-
prio contributo, residindo aqui a ideia fundadora da presente comunicação.
Em síntese, o Património enquanto conjunto de bens culturais e de valores
espirituais constitui uma espécie sui generis de ADN. Um ADN, por assim
dizer, transcendental, que mais não é do que o principium identitatis de um
dado grupo: uma singularidade partilhada que constitui a herança comum
que reúne e agrega os indivíduos, transformando-os em Comunidade, o
que os torna, por sua vez únicos, diferenciando-os dos restantes indivíduos,
supostamente integrados, por sua vez, nas suas respetivas Comunidades.
Entender o Património como um principium identitatis, ou seja, como um
agregado coerente e eloquente de objetos materiais e de valores espirituais
implica que numa primeira fase o mesmo seja conhecido e estudado, para
que numa segunda fase depois do estudo teórico empreendido, os seus
ensinamentos se orientem num sentido pragmático, que logre deinir uma
linha de atuação adequada que traduza a responsabilidade coletiva que nos
assiste de o manter e renovar no presente, bem como de o projetar no futuro.
Perspetivada desta forma, o modelo teorético deste entendimento poder
se-á formalizar de acordo com o método analítico de Raymond Abellio3,
por este designado como estruturação senária-septenária, deinindo assim
os aspetos que necessariamente estruturam uma política cientíica para o
Património Cultural.

3
Sobre a obra de Raymond Abellio, ver o artigo da wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Raymond_abellio. Para maior aprofundamento, veja-se a bibliograia sobre o autor que
transcrevemos no inal.

Revista
pp. 251-275
254 José Guilherme Abreu

Tal como se esquematiza aqui, uma ciência integral do Património


Cultural resulta do cruzamento e articulação de uma linha de estudo com
uma linha de atuação, sendo essa articulação estabelecida sobre a égide
da responsabilidade que emana do lugar central, logo, como refere Abellio,
de motor imóvel, que é ocupado pela consciência que os agentes da ciên-
cia do Património Cultural não podem deixar de deter, na medida em que
se assumem como guardiões, simultaneamente, da dimensão material e
espiritual de uma herança comum.
A consciência responsável constitui, pois, no entendimento que defen-
demos, a centralidade da ciência patrimonial, e é a ela (e nela) que compete
cruzar e articular os quatro tempos da ciência patrimonial. Numa primeira
fase, deinindo uma linha de estudo da coisa património que conduza ao
conhecimento da sua identidade. Numa segunda fase, deinindo uma linha
de atuação que mediante a compreensão da sua identidade conduza a
uma intervenção correta sobre o património, de forma a garantir a sua mais
adequada restituição. (ig. 2)

Fig. 2
Estruturação senária-septenária da
Ciência do Património, a partir de
Raymond Abellio

A perceção deste cometimento duplo, não é obviamente um predicado


exclusivo do tempo presente. Desde épocas remotas, se empreenderam
ações e se tomaram medidas destinadas a salvaguardar e preservar os
traços das civilizações e culturas anteriores, designadamente em Portugal,
como sucede, logo em 1553, com a obra de André de Resende, História da
Antiguidade da Cidade de Évora, onde a referência aos vestígios romanos –
spolia – é merecedora de especial atenção e valorização, prática essa que
era de resto já observada pelos próprios romanos, como se evidencia no
Arco de Triunfo de Constantino, em Roma.
Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 255

Simpliicando, pode airmar-se que o presente ciclo de preservação


do Património surgiu, e deiniu-se, no contexto da vaga de pilhagens e
de vandalizações levadas a cabo pela fúria dos sans-culottes contra os
símbolos da sociedade de Antigo Regime, tendo a sua denúncia pelo
Abade Henri Gregoire, bispo constitucional de Blois, estado na origem do
estabelecimento do conceito de monumento-histórico, como concreção e
documento do passado.
Graças a essa fórmula que absolvia (e neutralizava) os vestígios dessa
espécie de heráldica da servidão, era encontrada uma justiicação, política
e ideologicamente sustentável, capaz de fornecer argumentos válidos para
travar a vaga de pilhagens e vandalizações patrimoniais que varriam a França.
Claro que não deixa de ser tentador avançar, que esta mutação de sentido
corresponde, ainal, a uma acentuação do caráter cultural do monumento,
acentuação correlativa do enfraquecimento do seu caráter heráldico, uma
vez que o monumento ao transformar-se em monumento histórico, em parte,
perde a sua aura que inesperadamente se transigura, ou antes, se traveste,
de iconograia do sobreano ou senhor, em mero documento histórico, ou
seja em mero “testemunho da identidade nacional”
Em 1790, a Assembleia Nacional criou a “Commission des Monuments”,
que viria a ser responsável pela elaboração das primeiras medidas relaciona-
das com a inventariação e conservação das obras de arte, convertidas em
“bens nacionais”, icando ao mesmo tempo entregues à vindita popular, indo
parar, a maior parte das vezes, à posse de particulares, ou desaparecendo
pura e simplesmente, principalmente depois de a Assembleia ter votado em
setembro de 1792, um decreto que autorizava a destruição dos símbolos do
Antigo Regime, decreto esse que viria a ser substituído um mês mais tarde,
por outro que assegurava, ao contrário, a conservação das “obras-primas”
ameaçadas pela fúria revolucionária.
Fez-se então ouvir a voz do abade Grégoire que denunciou as vandali-
zações como ameaça à “Identidade Nacional”, resultando daí a promulga-
ção, em 24 de outubro de 1793, de um novo decreto na Convenção, que
interditava as d molições, e que previa que as obras com interesse artístico
e histórico fossem transferidas para o museu mais próximo, a im de “servir
à educação dos cidadãos”, desafetando-as da função original, atribuindo-
lhes uma nova função e conferindo-lhes um novo estatuto.

Revista
pp. 251-275
256 José Guilherme Abreu

Nessa desafetação e mudança de estatuto, teve particular relevância o


papel desempenhado pelo Musée des Monuments Français, que viria a ser
criado no convento dos Petits Augustins, a 25 de Outubro de 1795, pelo
Comité de Instrução Pública, investindo-o oicialmente como “museu histórico
e cronológico onde se encontrará as idades da escultura francesa em salas
particulares, dando a cada uma o carácter, a isionomia exata do século que
ela representa”4, exatidão essa que correspondia ainal a uma verdadeira
encenação, como se depreende da descrição do percurso montado pelo
seu dedicado diretor, Alexandre Lenoir.
Em 1814, os pátios do Museu exibem os elementos da fachada oriental
do castelo de Écouen e os pórticos do castelo de Gaillon. Acede-se em
seguida, por uma galeria do claustro à ‘sala de introdução’ onde estão reu-
nidas as obras de todas as épocas, desde os tempos galo-romanos até ao
século clássico. O coração do museu é uma sucessão de salas, cada qual
consagrada a um século, do século XIII ao XVII. A luz do dia, quase com-
pletamente ausente no século XIII, entra pouco a pouco nas salas seguintes,
para inundar de claridade o século XVII, das virtudes triunfantes. [...] Enim
os jardins do antigo convento, transformados desde 1799 em Eliseu, são um
amável Panteão de invenções, cujo ‘Túmulo de Heloïse e de Abeilard’ é a
mais ilustre. À saída pode-se comprar um catálogo descritivo do museu que,
além de notícias sobre as estátuas e os materiais expostos, fornece toda
a série de informações, histórias, compilações, dignas dum Quid artístico:
pintura sobre vidro, porte da barba, trajes de diferentes épocas... Em 1815
sai a 12ª edição; e existe igualmente uma tradução inglesa.5

Por esta descrição, pode perceber-se como esse constructo, que numa
primeira leitura poderá parecer ingénuo, por outro lado, é absolutamente
intencional e o seu efeito premeditado, já que ao visitante, primeiro confron-
tado com o amontoado irracional das peças de diferentes épocas patente
na ‘sala de introdução’, é em seguida oferecida uma ordenação cronológica,
que ainal é muito mais do que isso, na medida em que a mesma se concebe
como veículo de uma valoração, patente nos efeitos cénicos da iluminação

4
POULOT, Dominique, Alexandre Lenoir et les Monuments Français, in, NORA, Pierre (dir.),
Les Lieux de Mémoire, La Nation (vol. II), Paris, Gallimard, 1986, p. 504.
5
Ibidem.

Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 257

das salas, em luminosa progressão do século XIII ao XVIII, como metáfora


óbvia da apologia das «luzes». É que, o museu opera uma transiguração das
personagens, ao apresentá-las como sujeitos e testemunhas das etapas da
evolução histórica (o advento da luz), integrando-as por um lado num devir
cronológico que as suplanta, e por outro exprimindo não tanto a sua própria
grandeza individual (como os príncipes e cortesãos da renascença), mas
como vultos do grande homem universal, como encarnações da permanência
da virtude francesa, bem patente na frase de Lenoir, onde este refere que
se trata de lembrar “personagens que ilustraram o seu século pelos seus
talentos e honraram a nação francesa pela moralidade”6.
Não cabe aqui estudar em detalhe o papel que o Museu dos Monumentos
Franceses teve na deinição e consolidação de uma narrativa histórica, feita
a partir de monumentos, de túmulos e de estátuas. Mas ele foi bem impor-
tante, contribuindo nomeadamente para uma notória valorização da Idade
Média, até então conotada com a barbárie, estabelecendo a continuidade
e relatividade cronológicas, ao mesmo tempo que encenava e enfatizava a
noção de evolução histórica, alimentando o imaginário romântico e abrindo
o caminho ao primado positivista do progresso co tínuo da humanidade.
Como conseguia Lenoir obter esse efeito? O principal recurso foi a des-
contextualização das peças. Ao serem retirados do seu lugar, os monumentos
tornavam-se agora subitamente dóceis, quase oníricos, passíveis de serem
tratados como coisas, e de serem convertidos em adereços cenográicos,
evocadores e legitimadores de uma composição narrativa.
O Monumento-histórico converte-se portanto num monumento-narrativo,
já que não é tanto a sua vinculação ao passado que o deine, como se de
um mero vestígio arqueológico se tratasse, (valor de antiguidade mas sim a
circunstância deste funcionar como suporte de uma narrativa mus ológica
que é o produto do seu próprio tempo, e que capitaliza e interpreta, a seu
bel-prazer, os valores artísticos e os valores de antiguidade, como explicará,
em 1903, Aloïs Riegl, em “Der moderne Denkmalkultus”, obra que constitui
ainda hoje uma das mais eloquentes e lúcidas teorias da monumentalidade.
Importa observar que o propósito de Riegl era estabelecer uma distinção
dentro da vasta categoria dos monumentos histórico-artísticos, devendo ter-se
presente que o seu livro começou por ser um estudo para a reorganização

6
Idem, p. 513

Revista
pp. 251-275
258 José Guilherme Abreu

da conservação de monumentos públicos na Áustria, e que portanto no im


das clariicações conceptuais estava na sua mira a deinição de critérios de
atuação que são, ainal, de pendor eminentemente patrimonial.
E o aspeto mais marcante da discriminação que introduz, é que a mesma
não é nem de caráter histórico, deinindo formas de atuação em função do
respetivo valor documental dos monumentos, nem tampouco de caráter
artístico, deinindo formas de atuação em função do valor artístico dos mes-
mos monumentos. Para Riegl, a discriminação é essencialmente semântica.
Os valores monumentais são três: o valor comemorativo intencionado, que
segundo ele teria vigorado durante a Antiguidade e a Idade Média, o valor
histórico que nasceu no Renascimento e atingiu o seu apogeu no Século XIX
e o valor de antiguidade, que ele antevia que viria a prevalecer no século XX,
pois como visionariamente prevê “se o século XIX foi o do valor histórico,
parece que o século XX há-de converter-se no do valor de antiguidade”7.
Riegl propõe como novo valor monumental, o valor de antiguidade: um
valor que “em princípio prescinde totalmente da manifestação individual
localizada como tal, sendo valorizada unicamente a impressão subjetiva que
causa todo o monumento sem exceção, quer dizer, sem ter em conta as suas
características objetivas especíicas, ou mais exatamente, tendo em conta
unicamente aquelas características que indicam a assimilação do monumento
em geral (as marcas de vetustez), em vez das que revelam a sua individua-
lidade originária, objetivamente fechada”8. Um valor, portanto, de carácter
eminentemente não-narrativo, adequado para substituir a excessiva carga
mental que sobrecarregava o monumento histórico oitocentista, substituindo-
a pela leitura sensorial e pelo efeito psicológico, provocados pela perceção
e contemplação silenciosas da obra, cuja primeira manifestação teria sido
o culto das ruínas, em que se deleitavam os românticos.
A teoria da monumentalidade em Riegl pode visualizar-se, facilmente,
através do traçado de três círculos de âmbito progressivamente mais restrito,
de tal forma que o círculo exterior compreende os outros dois, e o médio
compreende também o interior, icando na periferia o valor de antiguidade,
no meio o valor histórico e no centro o valor rememorativo intencionado.
A estes devem ainda acrescentar-se os valores de contemporaneidade, a

7
Idem, p. 39
8
Idem, pp.39-40.

Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 259

saber, o valor de uso e o valor artístico, dividindo-se este último em valor


de novidade e em valor artístico relativo. (ig. 3)

Fig. 3 – Alois Riegl, Valores Monumentais em “O Culto Moderno dos Monumentos”, 1903, segundo Frantisek Svoboda

A classiicação de Riegl baseia-se numa teoria de valores monumentais,


e contrariamente às formulações anteriores, teve o mérito de se desembara-
çar da rigidez das conceções meramente ilológicas ou das nomenclaturas
meramente tipológicas, em voga até então. Contudo, é importante observar
que a teoria de Riegl, é particularmente adequada para aconselhar estratégias
e metodologias de preservação, restauro, reutilização e gestão patrimonial,
mas não elucida nem resolve a questão de saber a partir de que premissas
e de que fundamentos é possível, na modernidade, sem reiterar fórmulas
do passado, criar monumentos que mais do que rememorações, possam
constituir advertências da razão e/ou eloquências do espírito.

Implicações da Teoria

Das formulações até agora apresentadas, importa retirar as devidas


ilações, por forma a perspetivar um entendimento correto da problemática
patrimonial, e a partir daí ponderar formas de atuação que possam ser posi-
tivas e adequadas. Em primeiro lugar, parece-nos que uma compreensão
adequada da problemática patrimonial, culmina no entendimento do conjunto
dos bens patrimoniais como um repositório idedigno da identidade sociocul-
tural de uma dada Comunidade, repositório esse cujo estudo se debruçará

Revista
pp. 251-275
260 José Guilherme Abreu

sobre o conhecimento das características especíicas que particularizam


cada um dos segmentos que integram o conjunto do legado patrimonial9.
Sucede, no entanto, que raramente vigora um entendimento e uma
valoração universais e equitativas do conjunto do legado patrimonial, e se
é verdade que as vandalizações do património e a falta de preservação do
mesmo constituem crimes graves que muitas vezes levam a perdas e danos
irreparáveis, também não é menos verdade que outra forma menos óbvia de
liquidar o património, é pura e simplesmente ignorá-lo enquanto tal, como
sucedeu, em Portugal com o estudo da estatuária e da monumentalidade
públicas.
Desprestigiada, por um lado, pelo uso e abuso a que, no passado, o
Estado Novo a sujeitou como meio de monumentalização do seu programa
político veiculado por uma estética retrógrada e, mais recentemente pre-
judicada, por outro lado, pela banalidade e pelo gosto folclórico que tem
dominado a maior parte da encomenda municipal, a Estatuária tornou-se num
parente mal-amado do património cultural e artístico, e o opróbrio que pende
sobre esta disciplina artística, designadamente nos círculos especializados
da história e da crítica de arte, tem impedido que não poucas obras de valor,
que apesar de tudo existem, sejam reconhecidas e apresentadas como tal.
De resto, se em vez de zombarmos da falta de valor artístico da estatu-
ária, não seria mais útil e mais correto que nos interrogássemos sobre essa
questão, e que indagássemos as causas que a determinam? E já agora não
será que entre elas igura também, e não como a menor, o abandono e o
desprezo a que, durante longo tempo, os historiadores e os críticos de arte
votaram este segmento do legado patrimonial?

9
Seguindo a terminologia classiicatória do ICOMOS, os bens patrimoniais dividem-se em
duas classes antitéticas de bens: Património Material vs Património Intangível, sendo for-
mado o Património Material pelo conjunto de Objetos, Monumentos e Sítios de interesse
patrimonial, com os primeiros, por sua vez a subdividirem-se em bens móveis (ex: pintura
e escultura avulsa) e bens imóveis (ex: pintura mural e escultura a quitetónica), enquanto o
Património Intangível é formado pelas tradições orais, danças, crenças ou ritos imateriais
que integram a vivência cultural de um determinado grupo ou conjunto de grupos

Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 261

Da Estatuária

Como exemplo eloquente do olvido a que tem sido votada a Estatuária,


importa referir que O Dicionário de Escultura Portuguesa10, publicado em
2005, não contém nenhuma entrada dedicada a Estatuária, nem mesmo a
Escultura Pública, mas apresenta (apressando-se a colocarse em sintonia
com a novidade) uma entrada consagrada a Arte Pública, a qual começa por
abordar a temática do “Monumento Público”, para a seguir desenvolver o
assunto no que se refere apenas à disciplina escultórica, não se compreen-
dendo, portanto, que a designação daquela entrada não seja a de “Escultura
Pública”, uma vez que o universo da “Arte Pública” compreende obras e
intervenções oriundos de outras disciplinas artísticas distintas da escultura,
como sejam a pintura mural, os painéis cerâmicos e o desenho de pavi-
mento, sem esquecer o universo multifacetado da “New Genre Public Art”
assim designada pela artista norte-americana Suzanne Lacy, que engloba
um alargado leque de modalidades artísticas, desde a arte comunitária ao
ativismo e às intervenções de caráter performativo, acontecendo, inclusive,
que algumas das suas melhores criações sejam de natureza multidisciplinar11.
Publicado também em 2005, o Dicionário de Termos de Arte e Arqu
tectura12, embora mais generalista, apresenta entradas para Escultura,
Estátua e Estatuária, mas não apresenta para Arte Pública, possuindo, no
entanto, entradas para Monumento e Monumentalidade. Recuando vinte
anos, o Dicionário Ilustrado de Belas Artes, (retirado da circulação) não
possui entrada para Escultura Pública, e relativamente a Estatuária dá uma
deinição meramente técnica e instrumental13, fazendo jus à sua conceção
de dicionário de termos artísticos.

10
PEREIRA, José Fernandes (dir.), Dicionário de Escultura Portuguesa, Editorial Caminho,
2005, Lisboa.
11
Vide, NUNES, Paulo Simões, Arte Pública, In, PEREIRA, José Fernandes, (dir.) Dicionário
de Escultura Portuguesa… pp. 58-64.
12
CALADO, Margarida e SILVA, Jorge Henrique Pais da, Dicionário de Termos de Arte e de
Arquitetura, Editorial Presença, 2005, Lisboa.
13
“Estatuária: 1 Arte de fazer estátuas, nas várias técnicas escultóricas. 2 P. ext. *escultura”,
In, TEIXEIRA, Luís Manuel, Dicionário Ilustrado de Belas-Artes, Editorial Presença, 1985,
Lisboa, p. 105.

Revista
pp. 251-275
262 José Guilherme Abreu

Os restantes dicionários portugueses de escultura são duas obras


do século XIX, sendo mais recente o Dicionário de Escultura de Joaquim
Machado de Castro (1732-1822), publicado postumamente, em 1937, e mais
antigo o Dicionário Técnico e Histórico de Pintura, Escultura, Arquitectura e
Gravura, publicado em 1875, com autoria de Francisco de Assis Rodrigues
(1801-1877) que era ilho do escultor Faustino José Rodrigues, tendo sido
também escultor, e chegado a professor e diretor da Real Academia de
Belas Artes de Lisboa.
Por aqui se percebe, com objetividade, o papel supletivo, que a Esta-
tuária e a Escultura Pública detêm no panorama do estudo e preservação
do património cultural em Portugal, inclusive na contemporaneidade, apesar
do surto de investigação que a partir da década de 90 se vem Presença,
desenvolvendo, muitas vezes partindo praticamente do zero, surto esse que
tem vindo a desvendar, no âmbito da História da Arte, o mundo da escul-
tura pública moderna e contemporânea, fenómeno esse que de resto não
é exclusivo de Portugal, veriicando-se o mesmo, ao longo do século XX,
sintomaticamente, em todo o mundo ocidental, em virtude dessa ser uma
consequência direta do caráter, por assim dizer, iconoclasta, da plástica
moderna, nas artes plásticas.
Descartando a iguração mimética, a ornamentação decorativa, o registo
alegórico e a narratividade, a estética modernista praticou e promoveu uma
plástica essencialmente anicónica que baniu a estatuária, e que não lhe deu
outra possibilidade de sobrevivência senão a de se manter coninada a um
obsoleto e tedioso academismo.
Importa no entanto lembrar, que as mais antigas obras de arte foram
peças de estatuária móvel: as estatuetas do paleolítico superior, relacionadas
com cultos e ritos de fecundidade, tendo sido descoberta, em 2008, uma
dessas vénus que é a obra de arte igurativa mais antiga até hoje encontrada.
Além disso, é errado airmar que a estatuária se reduz à modelação
mimética das formas e de iguras da natureza, importando lembrar que
algumas das obras mais relevantes da História da Arte Universal são obras
de estatuária, como sucede por exemplo com a Esinge de Gizé, no Egito,
como sucede com o exército de terracota enterrado de Xi’an, os ídolos de
pedra da Ilha da Páscoa, as estátuas de Artemis, em Éfeso, para não falar
nas desaparecidas, como o Mausoléu de Halicarnasso ou o Colosso de
Rodes, importando aqui mencionar um conjunto de ensaios analíticos e
Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 263

críticos escritos por autores de referência têm sido publicados, como por
exemplo Statues, de Michel Serres, Dieu, le Corps, le Volume, de Luc Richir
e, inalmente, Estatuária, de Alain Kirili, onde este escultor contemporâneo,
pósminimalista, refere:
El deseo de esculpir en bulto redondo, de elaborar un monolito vertical, una
estatua, plantea la pregunta de qué es lo que ha podido prohibir este deseo.
Cuáles son los orígenes y la naturaleza de la censura de la imagen? Para
una mejor comprensión de la iconoclasia moderna habría que examinar la
cuestión de la estatuaria en la Biblia, así como el problema fundamental
de la idolatría. Existe en este punto una relación a analizar en cuanto al
origen puritano que censura la estatuaria y reduce la escultura a su propia
problemática formal.14

O equívoco maior não está em generalizar a desvalorização da plástica


estatuária, mas antes em reduzir a estatuária, como observa Kirili, a uma
problemática meramente formal, quando a mesma se rege igualmente por
valores não formais, como a memória, o imaginário, o simbólico e o dvino,
questões essas que convocam leituras e questionamentos de grande rele-
vância e alcance para a ilosoia da arte, não sendo legítimo descartá-las
frivolamente.
A par da rejeição da Estatuária, o modernismo descartou também a
escala, a simbólica e a metafísica do Monumento, confundindo monumen-
talidade com monumentalismo, e reduzindo o último a formas de apologia
do poder instituído.
Por outras palavras, o discurso teórico sobre a monumentalidade não
tem demonstrado capacidade de distinguir com clareza os conceitos de
Monumento e de Estátua, estabelecendo assim um fosso entre a teoria e a
realidade, desde logo porque mau grado o ostracismo a que a Estatuária tem
sido votada, tal não impediu que estátuas, designadamente monumentais,
senão mesmo colossais, deixassem de ser erguidas, não apenas no séc.
XIX, mas inclusive recentemente.
Sucede, no entanto, que Monumento e Estátua não são a mesma coisa,
sendo que a discrepância que mais agudamente os distingue não é formal
ou tipológica, mas sobretudo semântica.

14
KIRILI, Alain, Estatuaria, 2003, IVAM Documentos, Valencia, p. 33.

Revista
pp. 251-275
264 José Guilherme Abreu

Sobre este ponto importa considerar a distinção que se estabelece na


narrativa mais antiga da Humanidade: a Epopeia de Gilgamesh, escrita no
século XXV a.C..
No poema épico, os termos são assim apresentados, começando pela
referência a monumento:
Foi então que Gilgamesh, o senhor, [...] Disse ao servo Enkidu: “Não inscrevi
o meu nome em tijolos, como o meu destino decretou; portanto irei ao país
onde o cedro é abatido.
Estabelecerei o meu nome no lugar onde estão inscritos os nomes de homens
famosos; e onde não estiver escrito ainda o nome de qualquer homem, aí
eu erguerei um monumento aos deuses. Por causa do mal que há na Terra,
iremos à loresta e destruiremos o mal; pois na loresta vive Humbaba, cujo
nome é Grandeza, um feroz gigante.”15

Relativamente a estátua, a referência é a seguinte:


Também no dia seguinte, ao romper do dia, Gilgamesh lamentou-se; sete
dias e sete noites ele chorou por Enkidu, até que o verme se agarrou a ele.
Só então o abandonou à terra, porque os Anunnaki, os juízes, se apode-
raram dele. Então Gilgamesh publicou uma proclamação através do país,
convocou-os a todos, caldeireiros, ourives e pedreiros e ordenou-lhes:
“Fazei uma estátua do meu amigo”.16

A partir deste exemplo17, parece-nos que é possível aduzir que na sua


natureza essencial, ou eidética, uma estátua, antes de mais, é um dispositivo
que reitera e celebra os acontecimentos e/ou as iguras de um determinando

15
Gilgamesh, 2005, Lisboa, Vega, p. 24, tradução de Pedro Támen a partir do inglês, por N.
K. Sandars, The Epic of Gilgamesh, 1973, Penguin Classics, London.
16
Gilgamesh, 2005, Lisboa, Vega, p. 50, tradução de Pedro Támen a partir do inglês, por N.
K. Sandars, The Epic of Gilgamesh, 1973, Penguin Classics, London.
17
Embora não possa escamotear-se a questão da problemática da tradução de um texto
grafado em caracteres cuneiformes, importa referir que a presente tradução, segue de perto
a tradução de Nancy K Sandars, cuja primeira edição data de 1960, foi revista em 1973,
em cuja edição se baseia a presente tradução, datando a 36ª edição, a mais recente, de
2006. Aluna do eminente arqueólogo Gordon Childe (1892-1957), Nancy Sandars (1914-)
é também uma notável arqueóloga britânica, presentemente com 99 anos de idade, e
destacada especialista na matéria, como se documenta no seu site pessoal (http://www.

Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 265

tempo, visando a sua perpetuação e proclamação, entre os elementos de


um dado grupo. A sua intencionalidade é predominantemente comunitária,
hoje dir-se-ia, cívica, servindo por isso de mediação e de suporte à ixação
da memória e à promoção da homenagem, como se refere no texto.
Paralelamente, um monumento, reduzido à sua natureza essencial, ou
eidética, é um dispositivo que minimiza a proclamação de acontecimentos
concretos ou a evocação de iguras humanas, constituindo-se antes como
invocação à divindade ou como promoção de valores metafísicos. A sua
intencionalidade é predominantemente ética, servindo por isso à promoção
de causas ou à exaltação de ideais, sendo por isso aqui erigido aos deuses
e destinado a combater a Grandeza, o terrível monstro do mal.
Podemos pois aduzir que Estátua e Monumento são dois dispositivos
de índole oposta.
Contudo, apesar de opostos, ambos os dispositivos coabitam histori-
camente, constituindo exemplo eloquente e particularmente lagrante dessa
coabitação, o par formado pela estátua do navegador português do séc.
XV, João Gonçalves Zarco, esculpido por Francisco Franco, em 1928, e
instalado no Funchal em 1934, e o monumento Espalhando a Fé, o Império,
projetado pelos irmãos arquitetos Carlos e Guilherme Rebello de Andrade,
em colaboração com o escultor Ruy Gameiro, que venceu, também em
1934, o concurso para erguer um monumento à gesta dos descobrimentos
portugueses, no promontório de Sagres.
A dicotomia entre a estatuária e a monumentalidade não é portanto,
fundamentalmente, uma dicotomia formal ou tipológica. No seu conjunto a
monumentalidade oitocentista e estadonovence concebem-se a partir do
dispositivo estatuário, podendo por isso falar-se de uma Monumentalidade
Estatuária, na medida em que ambas visam, fundamentalmente, a exaltação
do génio ou da heroicidade de seres humanos concretos, e não deixa por
isso a esse título de ser signiicativo e que o padrão de Sagres não viesse
a ser construído.
De resto, a diferença fundamental entre a estatuária oitocentista e a
estadonovence, é que a última preferia comemorar iguras e façanhas do
passado remoto, ao passo que a estatuária

nancysandars.org.uk/). Estas referências dão-nos garantias sobre a iabilidade da tradução


que serviu de base àquela que aqui se apresenta.

Revista
pp. 251-275
266 José Guilherme Abreu

oitocentista preferia comemorar iguras e façanhas do passado recente


senão mesmo do presente.
Modernamente, porém, a exaltação de iguras e de valores caiu em
desuso, pois deixou de fazer sentido a crença no progresso contínuo da
humanidade que impulsionou a febre (ou o pesadelo) da monumentalidade
estatuária, visto ironicamente a estátua ter perdido o seu estatuto, sucedendo
que a esmagadora maioria das estátuas e dos monumentos estatuários que
se têm erguido nos espaços públicos, não conseguem livrar-se do caráter
algo arqueológico que irremediavelmente, sobre eles paira.
Deixou de falar-se, pois, em Estatuária, e essa é a razão por que no
Dicionário de Escultura essa entrada é omissa.
Assim sendo, desgastado o seu valor estético e diminuído o seu estatuto
artístico, a Estatuária converteu-se numa temática eminentemente patrimonial,
que a circunstância de a maior parte, senão a totalidade, dos artistas mais
signiicativos terem deixado de esculpir ou de modelar estátuas, conirma.
Temática eminentemente patrimonial, a Estatuária coloca aos estudiosos
e aos gestores do património problemas, por isso mesmo, ingratos, come-
çando desde logo pelo furto de peças de bronze que cada vez mais começa
a registar-se, ou pelo mal-estar que a presença de iguras, entrtanto julga-
das, pela História, funestas, provoca, compreensivelmente, nas populações.
Perante estas circunstâncias, importa clariicar as ideias e deinir uma
perspetiva de compreensão do problema. Pessoalmente, a minha proposta
tem sido a seguinte:
• Encarar a Estatuária Monumental como Escultura Pública
• Encarar a Escultura Pública como um ramo da Arte Pública
• Estabelecer uma classiicação para a Escultura Pública/Arte Pública
Entendida, a par da escultura contemporânea, como escultura pública,
uma estrutura de classiicação comum a ambas as disciplinas, tem neces-
sariamente de se deinir à margem dos períodos históricos, das tipologias
formais e das tendências estéticas das produções.
Assim sendo, a forma que propomos estabelece como critério de dis-
criminação a análise das relações espaciais e semânticas que cada obra
estabelece com o seu espaço de implantação, deinindo dois eixos funda-
mentais: o eixo da narração e o eixo da ornamentação.
A Arte Pública, por sua vez, entendida como um conglomerado ou uma
conjugação de diferentes disciplinas artísticas, enquanto ramo especíico
Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 267

das artes, estabelece igualmente, por sua vez, dois eixos fundamentais: O
eixo semântico e o eixo imagético.

Fig. 4
Estrutura de classiicação da
Escultura Pública

A génese da Arte Pública moderna

Falamos portanto da Arte Pública contemporânea, mas antes de nos


pronunciarmos sobre a sua condição atual, importa ter presente que a Arte
Pública possui, na Europa e nos Estados Unidos, uma origem bem mais
antiga do que a que lhe é normalmente imputada pela literatura, cuja origem
localiza na década e 60, e em casos mais esporádicos a faz recuar aos
programas artísticos promovidos pelo governo norte-americano, durante o
New Deal18.
Contudo, como pudemos estudar na nossa tese de doutoramento,
sucede que o movimento em prol da Arte Pública remonta, quer na Europa,
quer nos Estados Unidos, a inais do século XIX.
O núcleo norte-americano surgiu nos Estados Unidos, depois da Expo-
sição Universal de Chicago (1893), inluenciado pelo revivalismo neoclássico
e pelo ecletismo arquitetónico da École, e teve como principais mentores
o arquiteto norte-americano Daniel Burnham e o escultor, também norte-
americano, Augustus Saint-Gaudens, mediante uma conceção sobretudo
monumental, sob a designação de City Beautiful Movement.

18
Casos do Federal Art Project (FAP) e do Works Progress Administration (WPA) ambos
criados em 1935.

Revista
pp. 251-275
268 José Guilherme Abreu

Fig. 5
Edward Clark Potter, The Heroic Statue of the
Republic and
Quadriga, World’s Columbian Exposition, 1893,
Chicago, EUA

O núcleo europeu, cronologicamente anterior, constitui-se na Bélgica


a partir da herança e adaptação do movimento Arts and Crafs, que irrom-
peu, na segunda metade do século XIX, na Grã-Bretanha, à volta de John
Ruskin e de William Morris, tendo o livro “News from Nowhere”, da autoria
do último, sido traduzido para holandês, em 1874, comprovando-se assim
a receção do movimento Arts and Crafts nos Países Baixos, o qual, a partir
da década seguinte, será difundido na Bélgica e na Alemanha, por Henry
van de Velde, deinindo uma estética de caráter ornamental e utilitário sob
a égide das Artes Aplicadas.
O pintor e arquiteto belga Henry van de Velde foi um recetor atento
da literatura (e do ideário) do movimento Arts and Crafts e, logo em 1894,
publicava um artigo na revista La Société Nouvelle com o título “Déblaiement
d’Art”19 (Depuração da Arte), onde anunciava o im da “pintura de cavalete”,
pois esta havia-se tornado decadente e de mau gosto, ao colocar-se ao
serviço da “corrompida e caduca” sociedade burguesa, dizendo:
O que não beneicia a mais do que a um só está bem perto de ser inútil e
na sociedade vindoura, não será considerado senão o que é útil e lucrativo
para todos. E quando os artistas sonharem produzir uma obra útil, o que
não os desconsiderará em nada, isso será o im da tela e da estátua, que
são expressões esgotadas e pustulosas.20

19
Titulo de una conferência pronunciada, em 1894, por Henry van de Velde, durante a expo-
sição anual dogrupo artístico de Bruxelas “La Libre Esthétique”.
20
VAN DE VELDE, Déblaiement d’art, Bruxelles, Archives d’Architecture Moderne, 1979 (1895),
p. 20.

Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 269

Henry van de Velde não estava sozinho neste ideário a favor de uma
nova arte ornamental e aplicada e dedicou-se a projetar obras públicas,
incluindo monumentos escultóricos.

Fig. 6 – Henry van de Velde e Harry Graf Kessler, Memorial a Friedrich Nietzsche, 1910-1914, Weimar, (não construído)

Além de Van de Velde, e mesmo anterior a este, importa referir a igura


do arquiteto belga Charles Buls (1837-1914), o notável burgomestre de Bru-
xelas, que foi juntamente com Ildefonso Cerda (1815-1876) e Camillo Sitte
(1843-1903) um dos pioneiros do urbanismo moderno e um ativo promotor
da Arte Urbana, com destaque para o restauro da Grand Place de Bruxelas,
onde se encontra um memorial à sua pessoa e obra.
Sob a sua inspiração, em 1893 foi criada em Bruxelas uma sociedade
de artes decorativas com a designação de “L'OEuvre de l'art appliqué à
la rue et aux objets d'utilité publique”, que teve como promotor inicial o
pintor Eugène Broerman e que logrou obter a colaboração dos arquitetos
Victor Horta e Edmond de Vigne, do pintor Alfred Cuysenaar, do escultor Jef
Lambeaux, entre outros nomes bem conhecidos. A partir de abril de 1894,
essa sociedade seria presidida pelo próprio Charles Buls.
No artigo L’Art Régénérateur é utilizada, provavelmente pela primeira
vez, a expressão Arte Pública para designar uma arte destinada a todos os
cidadãos, expressão essa que, segundo Marcel Smets, surgia como abre-
viatura do nome da referida Sociedade, demasiado longo para ser usado
comodamente como designação.

Revista
pp. 251-275
270 José Guilherme Abreu

Esta sociedade de Artes Aplicadas teve relevância não pela sua prática,
uma vez que centrou a sua ação mais na esfera da propaganda do seu ide-
ário do que na promoção de programas de intervenção – ainda que, na sua
origem, tivesse organizado alguns concursos para desenho de “fachadas,
reclames, candelabros, fontes, quiosques e mesmo selos postais”.
O seu mérito foi lograr desencadear um movimento internacional a favor
da Arte Pública, que teve a sua primeira apresentação pública na Exposição
Universal de Bruxelas, em 1897, onde ocupou um espaço de exposição das
suas iniciativas, embora as suas iniciativas não fossem exclusivas, registando-
se outros contributos gizados independentemente do seu movimento.
A sua ação viria a culminar na organização de quatro congressos inter-
nacionais, entre os anos de 1898 e 1910, que se realizaram em Bruxelas,
em 1898, em Paris, em 1900, em Liège, em 1905, e de novo em Bruxelas,
em 1910. Esses Congressos reuniram um grande número de representa-
ções oiciais, as quais compreenderam destacadas iguras dos governos
de países da Europa, da América do Norte o do Sul, e Ásia, entre os quais
se encontrava uma representação oicial do Município de Madrid21, assim
como de dezenas de Câmaras Municipais, entre as quais as de Lisboa e
de Coimbra.
Além disso, três destes congressos produziram importantes catálo-
gos , a partir dos quais é possível traçar as linhas mestras daquele que foi
22

o primeiro programa internacional de desenvolvimento de uma Arte para


Todos, sendo uma das resoluções do Congresso de Liège de 1905 fundar
um Órgão Internacional permanente a favor da Arte Pública, que teve a
designação de “Institut Internacional d’Art Public”, o qual, a partir de 1907,
teve como portavoz a revista L’Art Public, que se editou até 1914, num total
de doze números.
Os termos então utilizados para deinir a arte pública, nomeadamente
no que se refere à promoção dos objetivos sociais da arte, a denúncia da
mediocridade da arte oicial, a defesa da utilidade pública da arte, mantêm

21
Presidida por Enrique Fort, professor na Escuela Superior de Arquitectura de Madrid.
22
AA.VV., Premier Congrès International de l’Art Public tenu a Bruxelles du 24 au 29 septembre
1898. [S.l., Académie Royale des Beaux-Arts., s.d.] ; AA.VV., IIIe Congrès International de
l’Art Public tenu à Liège 12-21 Septembre 1905. [S.l., Académie Royale des Beaux-Arts.,
s.d.]; AA.VV., IVe Congrès International de l’Art Public tenu à Bruxelles, 17- 22 Septembre
1910. [S.l., Académie Royale des Beaux-Arts., s.d.].

Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 271

hoje a sua pertinência e atualidade, podendo por isso considerar-se o movi-


mento que então se formava como precursor das muitas das conceções
atuais de arte pública.
Importa referir e analisar então a deinição de Arte Pública, tal como a
mesma era concebida e enunciada por aquele movimento:
A Arte Pública, quer dizer, o sublime do útil na via pública, era antiga-
mente uma regra de civilização à qual ninguém se furtava sob pena de
cometer uma falha moral, enquanto hoje é uma exceção, e a vulgaridade
do útil na via pública tornou-se geral23.
Além disso, três de estes congressos produziram importantes catálo-
gos , a partir dos quais é possível traçar as linhas mestras daquele que foi
24

o primeiro programa internacional de desenvolvimento de uma Arte para


Todos, sendo uma das resoluções do Congresso de Liège, de 1905, de fun-
dar um Órgão Internacional permanente a favor da Arte Pública, que teve a
designação de “Institut Internacional d’Art Public”, o qual, a partir de 1907,
teve como órgão de expressão a revista L’Art Public, que se publicou até
1912, tendo sido editados doze números da referida revista.

Fig. 7
Société L’OEuvre de l’Art Appliqué à la
Rue et aux Objets de d’Utilité Publique,
Sala na Exposição Internacional de
Bruxelas, 1897

23
AA.VV., Premier Congrès International de l’Art Public tenu a Bruxelles du 24 au 29 septembre
1898. [S.l., Académie Royale des Beaux-Arts., s.d.], s/d, p. 17.
24
AA.VV., Premier Congrès International de l’Art Public tenu a Bruxelles du 24 au 29 sep-
tembre 1898, s/l, s/d ; AA.VV., IIIe Congrès International de l’Art Public tenu à Liège 12-21
Septembre 1905, s/l., s/d ; AA.VV., IVe Congrès International de l’Art Public tenu à Bruxelles,
17-22 Septembre 1910, s/l., s/d ;

Revista
pp. 251-275
272 José Guilherme Abreu

Não cabe aqui esmiuçar os êxitos e os malogros deste movimento pioneiro


a favor da disseminação do ideário da Arte Pública, mas tentando captar o
conceito de Arte Público ali enunciado e praticado, Marcel Smets observa:
O que impressiona sobretudo é a extrema diversidade de assuntos que ali
se abordam. A Arte Pública aplica-se tanto à educação como ao teatro,
à legislação, ao restauro, sendo as qualidades e a proissão do artista, a
conservação, dos sítios, o traçado urbano e o aspeto do domínio público. Ao
longo dos doze anos que separam o primeiro congresso do último, nenhum
desses domínios se impuseram, mesmo se o número de co tribuições
relacionadas com o planeamento urbano tenha aumentado gradualmente.25

Reletindo sobre estas palavras, importa veriicar que o grande enfoque


do movimento a favor da Arte Pública incidia mais sobre a valorização do
Património, no seu conjunto, que propriamente sobre a criação artística,
devendo-se a ambiguidade deste movimento a essa circunstância, pois o
mesmo, ainal, era simultaneamente progressista e conservador.
Progressista, por um lado, naquilo que se relacionava com a abran-
gência da noção de arte pública que defendia. Conservador, por outro, no
que se referia aos modelos estéticos eivados de naturalismo que reiterava,
restringindo-se o seu contributo estético mais relevante, por um lado, à
ornamentação Art-Nouveau, e por outro ao ideário socializante veiculado
pelo realismo social da estatuária de Constantin Meunier (1831-1905).

A Arte Pública contemporânea

Relativamente à situação atual da Arte Pública, consideramos que a


presente condição é inversa, comparativamente à original. Hoje, a noção
de arte pública é claramente mais limitada. Apesar de se manifestarem

25
«Ce qui frappe surtout c’est l’extrême diversité des sujets qu’on y aborde. L’Art Publique
s’applique aussi bien à l’éducation qu’au théâtre, à la législation, la restauration, les quali-
tés et la profession de l’artiste, la conservation, des sites, le tracé urbain et le l’aspect du
domaine public. Au cours des douze années qui séparent le premier congrès du dernier,
aucun de ces domaines ne s’imposent, même si le nombre de contributions se rapportant
à l’aménagement urbain s’accroit graduellment. » In, SMETS, Marcel, Charles Buls. Les
principes de l’art urbain, 1995, Liège, Pierre Mardaga, p. 146.

Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 273

muitas formas e linguagens distintas na arte pública contemporânea, toda


essa diversidade se concentra quase exclusivamente no território das artes
plásticas, o que não sucedia com o movimento belga.
Em contrapartida, presentemente veriica-se um maior experimenta-
lismo e uma mais livre pluralidade de temas, de linguagens plásticas e de
tendências estéticas, aparecendo a produção atual menos condicionada.
Se se excetuarem estas discrepâncias, a arte pública bruxelense de inais
do século XIX e dos começos do século XX, apresenta uma continuidade
estrutural que permite, na teoria e na prática, reconhecer ali o germe de um
conceito contemporâneo de arte pública, e nós pensamos que a presença
dessa continuidade genealógica se torna hoje clara, evidenciandose no
Manifesto Public Sculpture in the Context of American Democracy, de Siah
Armajani, que abriga um ideário muito similar26.
Mas para lá da problemática da sua formação histórica, importa não
esquecer o problema patrimonial que daí decorre. É que, para lá da esta-
tuária de enquadramento social e da ornamentação art nouveau, subsiste
dessa época um outro segmento de produção ainda mais negligenciado
que a própria estatuária, e que representa, por sinal, o seu mais progressivo
contributo: o mobiliário urbano decorativo e funcional.
Referimo-nos a candeeiros de iluminação pública, bancos, chafarizes,
quiosques e coretos.

Fig. 8
Coreto, s/d, Praça 8 de Maio, Figueira
da Foz, fotografado em 25-06-2003,
(desmantelado)

26
ARMAJANI, Siah, Maniiesto La Escultura Pública en el Contexto de la Democracia Nor-
teamericana, In, AA.VV, Espacios de Lectura, Barcelona, Museu d’Art Contemporani de
Barcelona, 1995, pp. 35-37.

Revista
pp. 251-275
274 José Guilherme Abreu

Relativamente aos dois últimos, quase tudo está por estudar no País, não
constituindo exceção a nossa própria cidade. Por estudar e pior do que
isso, por preservar, como sucede com o caso do coreto da Figueira da Foz.
De resto, será que poderemos airmar inequívoca e unanimemente que
estes equipamentos públicos são de facto, e de jure, obras de arte?

Bibliograia

AA.VV., Premier Congrès International de l’Art Public tenu à Bruxellesdu 24 au 29 septembre


1898, (s/d), Bruxelles, Académie Royale des Beaux-Arts.
AA.VV., IIIe Congrès International de l’Art Public tenu à Liège 12-21 Septembre 1905.
(s/d.), Académie Royale des Beaux-Arts.
AA.VV., IVe Congrès International de l’Art Public tenu à Bruxelles, 17-22 Septembre 1910.
(s/d), Académie Royale des Beaux-Arts.
ABREU, José Guilherme, Escultura Pública e Monumentalidade em Portugal (1948-1998).
Tese de Doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2007, Lisboa.
Acessível em URL: http://dspace.universia.net/handle/2024/931
ARMAJANI, Siah, Maniiesto La Escultura Pública en el Contexto de la Democracia Nor-
teamericana, In, AA.VV, Espacios de Lectura, Barcelona, Museu d’Art Contemporani
de Barcelona, 1995, pp. 35-37.
BROERMAN, Eugène, «L’Art Régénérateur», in: La Fédération artistique, n°2-n°5, 6-20
novembre 1892.
BROERMAN, Eugène, (Dir.), L’Art Public. Revue de L’Institut International de L’Art Public,
nº I a XII, (1907-1912) Bruxelles, Institut International de l’Art Public.
CALADO, Margarida e SILVA, Jorge Henrique Pais da, Dicionário de Termos de Arte e
de Arquitetura, 2005, Lisboa, Editorial Presença.
CHASTEL, André, La Notion de Patrimoine, in, NORA, Pierre (org.), Les Lieux de Mémoire.
La Nation (vol. II), 1986, Paris, Gallimard.
CHERON, Céline, L'OEuvre de l'art appliqué à la rue et aux objets d'utilité publique
(1894-c.1905) : étude d'une société bruxelloise d'art décoratif, In, VIIIème Congrès
de l’Association des Cercles francophones d’Histoire et d’Archéologie de Belgique,
(2008), Namur, pp.28-31. Gilgamesh, 2005, Lisboa, Vega, 3ª edição, tradução de
Pedro Tamen
HYMANS, Henry, L’Art au XVII et XIX Siècle dans les Pays Bas, 1921, Bruxelles, Académie
Royale de Belgique, Vol. IV.
KIRILI, Alain, Estatuaria, 2003, Valencia, IVAM Documentos.
PEREIRA, José Fernandes (dir.), Dicionário de Escultura Portuguesa, 2005, Lisboa, Edi-
torial Caminho.
POULOT, Dominique, Alexandre Lenoir et les Monuments Français, in, NORA, Pierre (dir.),
Les Lieux de Mémoire, La Nation (vol. II), 1986, Paris, Gallimard.

Revista
IV série • N.º 20 • 2012/2013
O Património na encruzilhada da identidade e da responsabilidade 275

RIEGL, Aloïs, O Culto Moderno dos Monumentos, 1987 (1903), Visor, Madrid.
SERRES, Michel, Statues. Le second livre des fondations, 1993, Paris, Flammarion.
SMETS, Marcel, Charles Buls. Les principes de l’art urbain, 1995, Liège, Pierre Mardaga.
THIBERT, Marguerite, Le Rôle Social de l’Art d’Après les Saint-Simonians, s/d, (1920),
Librairie des Sciences Economiques et Sociales, Paris.
TIBBE, Lieske, ‘Art and the Beauty of the Earth’: The reception of News from Nowhere
in the Low Countries – English version of: ‘Nieuws uit Nergensoord. Natuursymbo-
liek en de receptie van William Morris in Nederland en België’, In, De Negentiende
Eeuw, 25 (2001), pp. 233-251.
VAN DE VELDE, Henry, Déblaiement d’Art, 1979 (1895), Bruxelles, Archives d’Architecture
Moderne.

José Guilherme Abreu


Porto, 3 de setembro de 2012

Revista
pp. 251-275

Você também pode gostar