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Vitor Ferreira
University of Coimbra
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Ferreira, V. (2011). Olhares sobre o património cultural. Idearte - Revista de Teorias e Ciências
da Arte 7, 7: 61 - 72. ISSN 1647-998X
Resumo
O conceito de Património Cultural tem ao longo das últimas décadas sofrido uma
evolução constante, facto que lhe confere uma centralidade constante no domínio das
ciências sociais. Se num dado momento a centralidade da discussão se situava no
domínio da preservação e conservação do Património, hoje a discussão, fruto do que
alguns autores denominam de tripla extensão do conceito, ou seja, tipológica, cronológica
e geográfica, alargou-se a âmbito até então inexistentes. Esta extensão é acompanhada
por um alargamento das funções que a sociedade contemporânea reserva para o conceito.
Nesse sentido pretende-se com o presente artigo explorar esta evolução e traçar as
acostagens que as diferentes áreas científicas têm efectuado com o conceito.
Preliminarmente é possível chegar à conclusão que o Património Cultural, esta mais
dependente das diferentes políticas e posicionamentos que existem perante ele, e a sua
capacidade para identificar e activar os valores e as funções proporcionados por este são
desiguais, conforme os lugares, as sociedades e as estratégias.
1
Vítor Ferreira nasceu em Heidelberg na Alemanha, em 1975. É Licenciado em Línguas Modernas Alemão
pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mestre em Política Cultural Autárquica,
especializou-se igualmente em Gestão e Programação do Património Cultural na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra.
Presentemente é Investigador Auxiliar Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território
(CEGOT) das Universidades de Coimbra, Porto e Minho, realizando investigação no domínio do
Património Cultural, nomeadamente das Políticas, Intervenções e Representações deste em contexto urbano
europeu. É doutorando em Turismo Lazer e Cultura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Palavras-chave - Património Cultural; Políticas; Identidade; Funções; Desenvolvimento;
Introdução
A centralidade que o tema Património adquiriu nas últimas décadas é o reflexo das
novas funções que lhe têm sido atribuídas pela sociedade contemporânea. De um mero
registo ou vestígio do passado de um determinado território ou espaço geográfico, de uma
valorização essencialmente local, singrou uma valorização universal que lhe consagra
importantes funções. O Património passa a ser considerado não como uma essência, ou
um valor atemporal, sendo considerado uma invenção da sociedade contemporânea
(Jorge, 2005). O antropólogo Maurice Godelier (citado por Heinich, 2010) refere que
todas as sociedades distinguem entre três tipos de bens: “those to be sold, those to be
given, and those to be kept”. Aponta-nos, assim, o caminho que as diferentes escolhas,
culturais, económicas e sociopolíticas fazem em relação ao Património. Os bens
patrimoniais constituíram-se, na sua génese, como substitutos da religião e dos tesouros
religiosos, naquilo que é designado como processo de desencantamento, mas assumem
hoje outras funções.
O Património Cultural é entendido actualmente como possuindo três tipos de
funções, a referir: as de índole cultural, de índole económica e por último de índole
sociopolítica. (Graham, B., Ashworth, G. J. & Tunbridge, J.E., 2000). O património,
enquanto selecção do passado para uso na contemporaneidade, tem esses traços
claramente vincados.
Como crítica a estas funções e à emergência da indústria do património, surge Greg
Richards e Julie Wilson (2006) quando referem que a commodification of history
[mercantilização da história] se deve mais às necessidade políticas e económicas do que
às necessidades culturais.
No entanto, é preciso ter presente, como defendeu Pierre Bordieu, que o consumo
cultural, em geral, já era considerado um factor de distinção e de diferenciação social, e
que o mesmo fenómeno é visível no que concerne ao Património. A sua mercantilização,
na forma de Turismo Cultural, corresponde à satisfação de motivações diferentes dos
visitantes (Richards, 1996), por um lado, a busca de novas experiências, mas igualmente
a distinção pelo assumir de um estilo de vida. Os lugares anseiam hoje conseguir a sua
afirmação pelo fortalecimento dos factores de diferenciação, pelo inimitável (Gonçalves,
2008).
Se no final do século XIX, o Património foi instrumentalizado em função da
implementação do Estado-Nação, hoje esta instrumentalização processa-se em função de
um vasto conjunto de objectivos. Por exemplo, nos processos de formação identitária, a
consciência patrimonial das comunidades não é tida como o factor mais relevante
(Peixoto, 2003) sendo que o factor mais significativo hoje é a assimilação colectiva da
mudança e que a consciência patrimonial ajuda a promover.
As políticas que têm centrado a sua atenção na preservação, conservação e
promoção do Património Cultural são observáveis nos mais diferentes contextos, sejam
no domínio da sua materialidade, sejam no domínio do intangível. Esta preservação do
Património Cultural permite a valorização da identidade, em que o lugar não só
estabelece uma conexão com a dinâmica global através da actividade turística, mas, ao
mesmo tempo, fortalece os seus laços locais pelo fortalecimento da sua idiossincrasia,
como atitude contrária e complementar à ordem padronizadora da globalização (Rocha &
Monastirsky, 2008).
As questões de identidade são indissociáveis do Património Cultural, na medida em
que a memória e a identidade dos lugares dependem das escolhas patrimoniais
efectuadas. Para além da formação de uma identidade cultural, o património é hoje
essencial à construção das imagens dos territórios, em especial das cidades. Da mesma
opinião partilha Paulo Peixoto (2000) quando afirma que este é importante na formação
de novas economias urbanas, nomeadamente através do papel que ele assume no contexto
da indústria turística e na promoção das imagens das cidades.
As três funções desempenhadas pelo Património Cultural são de tal forma
indissociáveis que as mesmas se entrecruzam de forma recorrente. Tendo-se uma noção
de património alargado (Vecco, 2010), para além do tradicionalmente considerado como
edificado, existe hoje um conjunto de patrimónios como os socioculturais, artísticos, os
linguísticos e humanos, com diversas expressões nos lugares (Fortuna, 2006). São estes
patrimónios e a sua variedade, dos tangíveis aos intangíveis, que conferem aos lugares
um espírito próprio (Fortuna, 2006), uma atmosfera do lugar (Richards & Wilson, 2007).
A identidade dos lugares e das suas comunidades são assim um elemento cada vez mais
central nas políticas patrimoniais devido à sua índole económica. Assim, percebemos que
para além destas atenderem aos interesses ideológicos, logo sociopolíticos, relacionados
com a conservação da memória e identidade local (Rocha & Monastirsky, 2008) o
património tem igualmente de atender aos interesses económicos por via da sua
instrumentalização em favor da actividade turística.
A utilização do Património Cultural, com o predomínio da sua função económica,
tem, como verificamos, e em parte devido à evolução legislativa e normativa, o propósito
último de contribuir para a conservação, requalificação e valorização do mesmo. O
desenvolvimento de estratégias criativas de regeneração dos tecidos económicos e
sociais, tendo por base a Cultura e o Turismo, é um indicador desta tendência
(Gonçalves,2008). O contexto em que os estados têm uma diminuta capacidade de
intervenção, facto aliado ao predomínio das políticas liberais, tem contribuído para que a
cultura e os bens patrimoniais, aliados à economia, se transformem em factores de
diferenciação e afirmação. Da mesma opinião partilha Paulo Peixoto (2000) quando
afirma que o património é extremamente importante na formação, entre outras, das novas
economias urbanas, nomeadamente pelo papel que ele assume no contexto da indústria
turística e da promoção das imagens das cidades. É consensualmente aceite que existe
hoje um fenómeno desenfreado de patrimonialização, seja ela de cariz local, regional,
nacional e até mundial. Esta corrida só pode ser explicada à luz de estratégias
sociopolíticas e económicas que têm em vista o reforço da competitividade e
atractividade dos territórios.
A revalorização da Cultura como recurso turístico levou ao desenvolvimento do
Turismo Cultural, mas igualmente de Turismos de Nicho (Cavaco & Simões, 2009)
Buscam-se lugares, acontecimentos e experiências culturais (Ferradás Carrasco, 2011)
onde se descobrem identidades, integridades ou diferenças, onde a procura se recentra,
passando-se das componentes étnicas ou de tipo folclórico, para os estilos de vida, a
gastronomia, a linguagem, a literatura, a música e a arte, conjunto de patrimónios
alavancados pelos discursos políticos, sendo que, cada vez mais, impera a procura de
experiência, uma participação activa, por oposição a uma cultura passiva (Richards &
Wilson, 2006; Richards & Wilson 2007; Florida, 2008).
O Turismo e a Cultura são assim elementos essenciais à construção da imagem de
cidade. A esteticização das paisagens, e a adequação do ambiente, é um fenómeno que
grassa na época que vivemos. Só uma cultura viva confere aos locais uma atmosfera
especial e apelativa em termos de turismo. A efervescência patrimonial (Peixoto, 2003)
que se manifesta no contexto actual é, em si, uma reacção cultural à atomização social e
ao desenraizamento causado pela aceleração da vida moderna, quando foi precisamente
esta vida moderna que induziu mudanças na forma de ver os diferentes patrimónios. Nos
bens em que se alicerçava a identidade cultural, impõe-se hoje uma visão economicista,
traduzida na promoção da oferta turística e na busca de mais do que um olhar passivo, na
procura pela experimentação dos cheiros, dos sabores, dos sons, do toque de uma cultura
(Gonçalves,2008).
O Património poderá ser visualizado como uma dualidade, como recurso
económico mas igualmente cultural. Um recurso que é na contemporaneidade vendido de
formas múltiplas, nos diferentes mercados segmentados. Predominando nas estratégias
culturais e políticas, a ideia de que as relíquias e eventos do passado são a matéria-prima
(Graham, B., Aschworth, G. J. & Tunbridge, J.E., 2000) nas mãos da procura
contemporânea que asseguraram o desenvolvimento futuro.
A promoção do inimitável, do diferenciador, proporcionado pelos bens patrimoniais
está assente numa lógica de empresarialização patrimonial que não é apenas o reflexo da
actuação dos agentes políticos. Tem igualmente a participação activa dos agentes
privados nomeadamente das grandes empresas de lazer e entretenimento. São eles que
exploram o valor emblemático das cidades para as estratégias dos produtos e serviços que
prestam (Peixoto, 2003) reinventando-os, construindo novas narrativas, na frenética
medida com que se modificam as procuras.
Dadas a novas procuras e motivações, não podemos concordar com Elísio Estanque
(2005), quando afirma, que a acção de regulação dirigida ao campo do lazer se inscreve
no fenómeno mais geral de reestruturação e massificação da cultura. Se bem que o
carácter de fruição universal dos bens culturais, esteja presente nas políticas de lazer,
cremos, no entanto, que estas, devido às alterações na sociedade contemporânea, estão a
entrar num ciclo onde o cerne das mesmas é desenhado pelas diferentes motivações da
procura turística.
Os olhares que se podem lançar sobre os diferentes patrimónios são
necessariamente entrelaçados, pois tendo-se afirmado estes como um recurso económico,
na medida em que são explorados pelas estratégias de desenvolvimento económico e
turísticas, é preciso ter presente que são esses mesmos patrimónios que nos auxiliam na
construção dos significados de cultura e de poder, na medida em que são igualmente um
recurso político (Graham, B., Aschworth, G. J. & Tunbridge, J.E., 2000).
As diferentes funções que o Património abarca hoje levantam, no entanto, um
conjunto de questões no que concerne à sua preservação, à capacidade de carga dos
territórios e às comunidades locais que pretendemos explorar de forma sumária.
3- Questões
A Cultura e o Património Cultural, por via da sua utilização como recurso turístico
são hoje vítimas de uma valorização redobrada, quase fetichista das especificidades locais
e dos elementos da memória e da tradição (Henriques, 1996). A esta valorização
redobrada acresce a abertura do conceito de património que de circunscrito aos
monumentos foi entretanto alargado a todos os tipos de cultura e património (Richards,
2004).
No entanto, esta abertura coloca, desde logo, algumas questões como a procura
desenfreada por elementos distintivos que podem levar a fenómenos de “mineração” do
património (Richards & Wilson, 2006), ou seja, a busca desenfreada por qualquer factor
de afirmação do território, sem olhar à sua autenticidade, singularidade ou até mesmo
exemplaridade. Mais, as estratégias de afirmação do território, no que concerne à
promoção da Cultura, por terem sido efectuadas com base em estruturas icónicas, em
mega eventos e na tematização (Richards & Wilson, 2006), não têm os resultados
desejados.
A concorrência entre territórios fez com que esta estratégia de mesmificação
(Mateus, 2010) não singre ou não produza os resultados desejados. Os lugares têm optado
mais por uma lógica de importação das estratégias exógenas do que pelo esboçar de
políticas de promoção cultural e patrimonial assentes nos recursos endógenos. As
mesmas soluções são recorrentemente utilizadas na valorização do património em
qualquer ponto do globo. Aponte-se, a título de exemplo, o caso da valorização do
património pelo recurso à indústria hoteleira geradora, logo à partida, de reais privações
de fruição generalizada do mesmo.
A mercantilização do Património constitui-se igualmente como um problema, na
medida em que o património, transformado em produto de consumo, só será acessível por
via dos novos usos ou das novas funções, e privilegiará o acesso e desfrute dos sectores
da população com maior disponibilidade de recursos. Desta forma poderemos estar a
assistir a um fenómeno de subtracção dos bens culturais ao seu contexto sociocultural
(Carvalho, 2003). Esta subtracção pode constituir-se como um fenómeno de
desterritorialização, pois quebram-se os elementos de identificação na medida em que a
comunidade perde poder, controle e acesso ao respectivo território (Fernandes, 2007).
Em relação a esta ausência de políticas públicas Paulo Peixoto (2003) refere que a
histeria patrimonial representa igualmente um trunfo retórico que acaba por funcionar
como um perfeito álibi para autarcas que, mostrando estar noutro lugar, provam não estar
nos locais onde o caos urbanístico se expande e a responsabilidade política não tem
paternidade. A acção política tende igualmente, e não necessariamente como forma de
desviar a atenção das políticas urbanísticas, a descurar a boa gestão da ideia de
autenticidade que permite a capitalização de identidades, distinguindo-as das
desvalorizantes encenações turísticas (Silva, 2004) e atingindo com isto a promoção dos
territórios, embora pareça paradoxal, a autênticos lugares de valor turístico.
Um fenómeno actual é a inversão da procura turística cultural (Richards & Wilson,
2006; Gonçalves, 2008; Florida, 2008) e, essencialmente, a aposta na promoção do
território pela criatividade que tem ganho a aposta com o aumento dos fluxos turísticos.
Não querendo entrar em profundidade nos pressupostos em que assenta este novo
Turismo Criativo, está na sua génese a partilha de experiências entre visitados e
visitantes, não sendo de descurar que esta partilha de experiência e o enriquecimento dos
visitantes e visitados só é possível com as particularidades do local. As experiências
deixariam de ser experiências autênticas quando realizadas em territórios exógenos à
realidade que lhes deu origem, quando não assentes nessa Cultura e Património.
A criatividade e o turismo criativo podem, estimulando as diferentes culturas e
patrimónios que proliferam no território, promovendo inclusive uma luta contra aquilo
que Gilles Lipovestky (2010) denomina de “neofestas”, locais onde se cruzam o cultural
e o lúdico, o histórico e o turístico, o tradicional e o comercial, permitir o regresso às
origens onde estes eventos se organizavam em torno dos princípios tradicionais,
religiosos ou políticos e não em função da ordem comercial e o marketing da imagem
urbana que vigora hoje em dia.
Outra questão que se levanta é o facto de o Património, um dos paradoxos da
modernidade (Jorge, 2005) onde se quebrou com a ordem antiga mas se recuperou esta
mesma para usufruto de todos, pode ser olhado como forma de opressão ou de libertação.
Sendo que em cada momento deve ser realizada a ponderação dos discursos que vamos
construir, com base na conservação, que documentos vamos deixar para que o futuro
possa ajuizar da maior ou menor justeza, do maior ou menor rigor, desses discursos
(Jorge, 2005).
Os processos referidos denunciam uma transformação dos lugares e dos bens
patrimoniais onde os mesmos adquirem o estatuto de mercadoria e se colocam ao serviço
do marketing turístico, onde, como refere Maria Caldeira da Silva (2004), os bens
patrimoniais são suportados por uma parafernália de difusão simbólica, transformados
numa retórica privilegiada para a exibição identitária, às vezes de cristalização de
discursos regionalistas, e para a produção de paisagens.
Por último, referir que todo o objecto submetido à museografia (Guillaume, 2003)
e, atrevemo-nos a dizer, submetido a um processo de patrimonialização, muda de estatuto
pois é desinserido de uma estrutura simbólica onde desempenhava um papel activo, sendo
que perde o essencial das suas significações anteriores para passar a integrar um aparelho
onde se limita a cumprir determinadas funções. Mais, onde é colocado ao serviço de
apenas algumas das suas funções.
4- Conclusões
Cavaco, C., Simões, J. M. (2009) Turismos de nicho: uma introdução. Em Simões, J. M.,
Ferreira, C. C. (eds.) Turismos de nicho: motivações, produtos, territórios (pp. 15-39).
Lisboa: Centro de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa.
Evans, G. (2009). Creative cities, creative spaces and urban policy. Urban Studies,
46(5&6), 1003-1040.
Jorge, S. O. (2005) Conservar para quê? Em Jorge, V. O. (coord.), Conservar para quê?
(pp. 59-65). Porto: Faculdade de Letra da Universidade do Porto.