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Patrimônio mundial: do ideal


humanista à utopia de uma nova
civilização
Simone Scifoni

Revista Geousp

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FERNANDA NOIA DA COSTA LINO


Giovane Chaparro

Pat rimônio cult ural e ambient al: quest ões legais e conceit uais
Pedro Paulo A. Funari, Glaydson J Silva, Sandra Pelegrini

EST RAT ÉGIAS DE PROT EÇÃO E VALORIZAÇÃO DAS PAISAGENS CULT URAIS NO BRASIL.
Kelly Crist ina Melo
GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 14, pp. XX, 2003

Patrimônio mundial: do ideal humanista à utopia de uma nova


civilização

Simone Scifoni*

Resumo:

Este artigo procura analisar a trajetória de criação e consolidação do


conceito de patrimônio mundial pela Unesco, com destaque para as
questões relativas ao patrimônio natural. Discute os critérios de
identificação do valor universal dos bens, apresentando um diagnóstico
da distribuição dos bens tombados pelo mundo e analisa o patrimônio
mundial como um dos instrumentos que definem o quadro das relações
internacionais na esfera ambiental.

PALAVRAS-CHAVE:

Patrimônio mundial, patrimônio natural, gestão ambiental, Unesco,


preservação ambiental.

ABSTRACT:

This article seeks for analysing the trajectory of the creation and
concept consolidation of world heritage by Unesco, highlighting the
relative questions to the natural heritage. It discusses the criteria of
universal value properties showing a registered properties distribuition
diagnosis all through the world and it analyses the world heritage with
one of the instruments that defines the international relationship table in
the environmental sphere.

KEY WORDS:

World heritage, natural heritage, environmental management, Unesco,


enviroment preservation.
1 - Introdução De outro lado, verifica-se hoje,
que os processos de revitalização
A proteção do patrimônio cultural de áreas centrais degradadas
constitui hoje um dos temas envolvem restauração do
importantes na discussão do patrimônio e incorporação à
espaço urbano. dinâmica urbana com novos usos
voltados preferencialmente às
De um lado, a dificuldade do atividades culturais.
poder público de gerir os Testemunhamos, nos últimos anos
problemas das cidades tem da década de 1990, no centro
levado, entre outras velho de São Paulo, as reformas
conseqüências, à pressão sobre o na Estação Júlio Prestes, no
patrimônio. Assim, assistimos prédio do antigo Dops e
com preocupação a possibilidade atualmente na Estação da Luz.
de Ouro Preto, nosso primeiro
patrimônio mundial tombado pela Segundo CHOAY (2001:212),
Unesco, perder o título em função esta valorização do patrimônio se
de processos contínuos de dá no mundo sob um combate
deterioração de seu espaço desigual onde uma forte tendência
urbano. se confirma: a de transformar o
patrimônio num

* Doutoranda em Geografia Humana pelo Depto de Geografia da


FFLCH/USP.

E-mail: scifoni@uol.com.br

- GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 14, 2003 SCIFONI, S.


produto econômico, consumível Para CHOAY (2001, p.51) o
por platéias cada vez maiores. As nascimento do monumento
conseqüências destas práticas histórico deu-se em Roma, por
resumem-se, muitas vezes, em volta de 1420, período que se
exclusão da população local, uma convencionou deno-minar de
vez que é necessário fornecer ao Renascimento e que foi marcado
produto, tanto uma embalagem, pela generalização de ideais
como um conteúdo apropriado humanistas. Entre eles, o da
para a venda. Esta exclusão valorização do homem e da
também se relaciona à valorização natureza em contraposição ao
do espaço geográfico que tende a divino e ao sobrenatural e o
criar uma pressão do mercado grande interesse, um verdadeiro
imobiliário sobre esta população. fascínio, pelas obras da
Antiguidade Clássica,
Assim, o debate sobre o futuro do consideradas como uma "lição de
patrimônio não se desvincula da construção".
discussão sobre a produção do
espaço geográfico. Entendendo a Foram principalmente os
importância deste tema para a escritores e artistas humanistas
Geografia pretendemos examinar que ressaltaram a importância dos
a trajetória da idéia de patrimônio monumentos da civilização greco-
mundial, da sua gênese a sua romana como representativos de
consolidação internacional e, no um passado antigo e, portanto,
interior desta trajetória, as portadores de informações
particularidades relativas ao históricas e de qualidade artística.
patrimônio natural, objeto de
nosso interesse específico. No entanto, segundo a autora, foi
somente no século XIX, na
Abordaremos, também, a proteção França, que nasceu a proteção
do patrimônio mundial, de um institucional do patrimônio
lado como um dos instrumentos cultural nacional através da
que concorrem para configurar criação de um órgão responsável
uma ordem ambiental pelo classement (1837),
internacional (RIBEIRO, 2002) e, equivalente ao que se conhece no
de outro, como uma possibilidade Brasil como tombamento, e edição
de contribuir para a gestão de um da primeira lei de proteção de
novo projeto de civilização. monumentos históricos (1887).

2 - A invenção do patrimônio Foram as condições criadas pela


mundial Revolução Francesa que
estimularam a necessidade desta
A Unesco1, criada em 1946 como proteção legal. Segundo
o orga-nismo da ONU MAYUME (1999:25), como
encarregado de gerir as questões conseqüência da revolução, os
relativas à educação e cultura no bens confiscados da igreja, da
mundo, patrocinou em 1972 a coroa e da aristocracia passaram
realização de uma conferência em ao domínio do Estado. A
Paris da qual nasceu a idéia de conservação destes bens tornou-se
patrimônio mundial. A Convenção um problema nacional,
necessitando da colaboração de
do Patrimônio Mundial, nome toda a sociedade, o que foi feito
com o qual o documento resultado criando-se a idéia de um valor de
desta conferência ficou conhecido, nacionalidade, o patrimônio
estabeleceu os princípios para coletivo, interesse de todos e
atuação nesta área. expressão de uma história
coletiva.
Mas a preocupação com a
temática não surge na década de Nas décadas que sucederam ao
1970. Em 1956 a Unesco já havia nascimento institucional desta
criado o Iccrom (Centro idéia, os debates concentraram-se
Internacional de Estudos para a nas concepções de restauro e
Conservação e Restauração dos conservação deste patrimônio. Isto
Bens Culturais), uma organização porque as grandes transformações
inter-governamental para a no espaço geográfico, resultantes
pesquisa sobre o assunto. da Revolução Industrial, ajudaram
a constituir uma visão nostálgica
Que motivos levaram, então, a do passado.
realização em 1972 desta
conferência e a emergência deste Ao término da Primeira Guerra
tema no cenário das relações Mundial esta preocupação
internacionais? estendeu suas fronteiras para os
demais países europeus, num
Para responder essa questão é primeiro esforço internacional,
preciso investigar as raízes da ainda que restrito a este
discussão do patrimônio cultural, continente. Os países europeus,
que surge pontualmente em alguns arrasados fisicamente pelo
países da Europa, sob o conceito confronto e preocupados em como
de monumento histórico. restaurar seu patrimônio,
organizaram em 1931 uma
conferência que resultou na Carta
de Atenas. Esta foi o primeiro

Patrimônio mundial: do ideal humanista à utopia de uma nova


civilização, pp. 77- 88.
documento internacional relativo a relação com grupos humanos
políticas de preservação do como no caso de cidades
patrimônio tornando-se, por vários lacustres, grutas trabalhadas,
anos, uma referência para a aldeamentos.
restauração de bens.
No entanto, segundo MAYUME
A Carta de Atenas de 1931 (op. cit. p. 95), o anteprojeto de
também acenava, ainda que de Mario de Andrade foi
forma incipiente, para a inclusão considerado inviável e
de um patrimônio natural. inadequado à situação, sendo
Estabelecia que para a valorização pouco aproveitado para a redação
dos monumentos era necessário o final do decreto, feita por Rodrigo
estudo das "plantações e Melo Franco. Como a redação do
ornamentações vegetais artigo não estabelece esse caráter
convenientes a determinados complementar do quadro natural,
conjuntos de monumentos" pode-se pensar que deve ter
(IPHAN, 1995:16). havido, por parte do autor, um
desejo de ampliar essa visão
Dentro deste contexto é preciso original de Mário de Andrade,
investigar como teria surgido a dotando-se o patrimônio natural
concepção de elementos da de uma maior importância,
natureza como componentes do incorporando, assim, experiências
patrimônio cultural. de outros países europeus.

2.1 _ A invenção do patrimônio Ainda que no Brasil, na década de


natural 1930, tenha sido tímida a incursão
nesta área do patrimônio natural,
Encontramos referências desta esta idéia resultou no
questão na legislação de alguns tombamento, em 1938, de alguns
países europeus na década de morros na cidade do Rio de
1930, nas quais percebe-se a Janeiro, em função da ameaça de
preocupação, de um lado com a construção, no topo do Pão de
história natural e, de outro, com o Açúcar, de um restaurante e uma
aspecto paisagístico, a beleza nova estação de bondes
cênica. Segundo MACHADO (FONSECA, 1996:59).
(1986: 53), a lei francesa de 02 de
maio de 1930, estabelecia como Na França, berço do conceito de
de interesse público a proteção de patrimônio cultural, desde o final
monumentos naturais e sítios de do século XIX, pouco a pouco, a
caráter científico (habitat de fauna noção de patrimônio foi
rara, uma jazida mineral, uma evoluindo, passando da idéia de
estrutura geológica relevante, monumento, para a preocupação
uma fisionomia particular da com o tecido urbano, o centro
terra). No mesmo sentido histórico da cidade, surgindo,
encontra-se a legislação italiana assim, o conceito de patrimônio
(Lei 1.497 de 29/06/1939), urbano.
apontando como de interesse
público os sítios de beleza natural No início esta preocupação
ou de singularidade geológica e, prendia-se à idéia de cidade-
até mesmo, uma vista panorâmica, museu, objeto ameaçado de
bem como o lugar de onde se desaparecimento e que deveria ser
possa avista-la, como um congelado. Os modernistas
belveder. opuseram-se a isso enfatizando
que não se podia, em nome do
O Brasil também é pioneiro neste documento histórico, ignorar
campo. O decreto-lei 25 de 1937, mudanças, sobretudo as
que institui a proteção ao relacionadas à melhoria de
patrimônio nacional através do condições de salubridade, que
instrumento do tombamento, eram necessárias à cidade.
estabelece que os monumentos
naturais, sítios ou paisagens de Mas é a partir da década de 1960,
feição notável, por força da já no século XX, que, segundo
natureza ou da técnica humana, CHOAY(op.cit.), ocorre uma
também devem ser considerados grande transformação na prática e
como passíveis de preservação. nos conceitos patrimoniais. De
acordo com a autora, o
Há autores que criticam este refinamento das discussões no
entendimento. ANDRADE âmbito das ciências humanas
(1984:41), por exemplo, lembra possibilitou uma ampliação de
que na proposta original do bens de domínio patrimonial.
decreto, elaborada por Mário de
Andrade2, o quadro natural foi De um lado, o reconhecimento de
destacado apenas como suporte de obras de um passado recente,
atividades humanas, portanto sua possibilitou o que ela chamou de
importância relacionava-se apenas ampliação cronológica do
aos casos em que paisagens patrimônio,
naturais estivessem em íntima

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incluindo-se, assim, os bens área de cultura e patrimônio da
representativos da modernidade. Unesco no Brasil, arquiteta
De outro, o alargamento de visões Jurema Machado3, a constatação
possibilitou o reconhecimento de dos rumos desta modernização e
novas categorias de bens de que os governos locais eram
considerados como de valor incapazes de conservar este
cultural: habitações operárias, patrimônio foi um dos grandes
instalações industriais, o que motivadores da criação da
implicou numa ampliação convenção em 1972. Um caso
tipológica deste patrimônio. Faz particular incentivou a discussão:
parte desta ampliação tipológica o a construção da represa de Assuã,
reconhecimento, em definitivo, da no Egito, que iria inundar os
importância do patrimônio monumentos de Abu Simbel4.
natural.
Para CHOAY (op.cit, p. 240) o
O primeiro documento ritmo acelerado da sociedade
internacional que trata deste industrial impôs mudanças
assunto foi a Recomendação profundas de valores e produziu
relativa à salvaguarda da beleza um sentimento de incertezas, uma
e do caráter das paisagens e crise de identidade, pois as
sítios, fruto da conferência da constantes modernizações não
Unesco realizada em dezembro de permitem mais que o sujeito se
1962 em Paris (IPHAN, op.cit., reconheça no lugar onde vive.
p.97). Para a autora, a perturbação
cultural que emergiu nos anos 60
Este documento preconizou como teve, na idéia de patrimônio, a
medidas para a proteção das busca pelo resgate da identidade
paisagens naturais e das humana, um espelho no qual a
transformadas pelo homem, sua sociedade poderia contemplar a
inclusão no planejamento urbano sua imagem.
e regional e a criação de parques
e reservas naturais. Além disso, Mas é evidente, também, que o
sugeriu outras alternativas como a nascimento da idéia de
proteção legal por zonas e patrimônio universal teve relação
proteção de sítios isolados, com o processo de mundialização
medidas essas que muito se de valores ocidentais,
aproximavam do instrumento caracterizado no período pós-
legal do tombamento e de outras segunda guerra. A Convenção do
unidades de conservação surgidas Patrimônio foi um dos principais
a posteriori (caso das Áreas de veículos que generalizou as
Proteção Ambiental- APAs), uma práticas preservacionistas.
vez que estas não implicavam na
desapropriação de terras. 3. A consolidação da idéia de
patrimônio mundial
Nos argumentos iniciais do
documento, os quais justificavam A convenção de 1972 estabeleceu
a realização da conferência, havia como definição de patrimônio
a constatação de que a mundial - tanto no caso do
modernização da sociedade patrimônio cultural como do
estaria produzindo grandes natural - objetos e lugares de
transfor-mações, quer nas valor excepcional ou
paisagens, quer no próprio monumental. Apesar de
patrimônio cultural das cidades. fundamentado em práticas,
Havia a preocu-pação com principalmente européias, nas
possíveis perdas: de vida quais a monu-mentalidade já era
selvagem, em função de sua uma característica essencial para
importância científica; de áreas o tombamento, os critérios
necessárias à vida do homem presentes no documento eram
(como elemento regenerador ainda bastante vagos. A grande
físico e espiritual); de potencial questão era como definir a
econômico (recursos); e condição de excepcionalidade e
preocupações com salubridade. monumentalidade.

Esta perda estava relacionada à Somente em 1977 é que a Unesco


expansão da industrialização e da elabora um documento, intitulado
urbanização, à moderni-zação da Diretrizes operacionais para a
agricultura, à ampliação de implementação do patrimônio
fronteiras agrícolas e à necessária mundial, contendo definições e
implantação das infra-estruturas critérios mais precisos para a
como rede de estradas e represas identificação do valor universal
que implicavam em pressão sobre dos bens e, portanto, para sua
o patrimônio. Foi esta conjuntura inclusão na Lista do Patrimônio
que estimulou mais tarde a
realização da Convenção do
Patrimônio Mundial, em 1972 em
Paris.

Patrimônio mundial: do ideal humanista à utopia de uma nova


civilização, pp. 77- 88.
Mundial. planeta, que é diferenciado, e que
pode tornar uma área
Para o caso do patrimônio remanescente num verdadeiro
natural5 , objeto mais específico fragmento de exceção, mesmo
de nossa investigação, a área a ser que este não inclua toda a
reconhecida como de valor variedade de elementos e
universal deve corresponder a processos solicitados nas
pelo menos um dos seguintes diretrizes.
critérios:
Além disso, o grau de integridade
§ Estético: paisagens notáveis e exigido pede que se pense em
de excepcional beleza e condição escalas territoriais de grande
de paisagem de exceção. amplitude. Não deveria haver uma
Exemplo: Jardim Botânico de associação necessária entre valor
Pádua, na Itália. universal e áreas de grande
extensão, uma vez que se deixa de
§ Ecológico: sítios atentar para a importância de
correspondendo a habitat de pequenas áreas, tais como mini-
espécies em risco ou que enclaves ecológicos, testemunhos
detenham processos ecológicos e de processos naturais antigos ou
biológicos importantes. Exemplo: de paleoclimas ou até mesmo
remanescentes da Mata Atlântica. representativos de determinados
endemismos, como destaca
§ Científico: áreas que contenham AB'SABER (1977:6).
formações ou fenômenos naturais
relevantes para o conhecimento Na verdade todo o processo de
científico da história natural do reconhecimento de um bem e sua
planeta. Exemplo: um vulcão, conseqüente inclusão na Lista do
geleiras. Patrimônio Mundial é um
processo complexo e rigoroso.
Outra condição essencial para o
seu reconhecimento é o estado de Em primeiro lugar, é o país parte
integridade dos bens. da convenção que deve pedir a
inclusão na lista e, para tal, deve
Pelo critério estético uma área encaminhar toda a documentação
guarda condições de integridade de apoio à análise. Além de
se a preservação for pensada em comprovar o valor universal e as
termos de processo, conservando condições de integridade, o
a sua existência e não só a do proponente deve apresentar um
atributo. Por exemplo, no caso de plano de gestão para a área e os
quedas d'água a integridade do sítios devem contar, previamente,
bem pede a preservação da bacia com uma proteção jurídica
que a alimenta. adequada.

Pelo critério ecológico, a área Tal pedido passa por várias


apresenta condições de instâncias até a deliberação final:
integridade se incluir toda a gama o Centro do Patrimônio Mundial
de processos essenciais ao verifica se a proposição está
ecossistema. Assim, um completa, o Icomos (Conselho
fragmento de Mata Atlântica deve Internacional de Monumento e
conter certa quantidade de Sítios) e a UICN (União
variação topográfica, pedológica, Internacional para a Conservação
hidrográfica e de estágios da Natureza e de seus Recursos)
sucessionais. avaliam tecnicamente o valor
universal do bem, o escritório do
A garantia de integridade, para o patrimônio mundial, estuda as
critério científico, pede que a área opiniões dos pareceristas e,
contenha a totalidade ou maior finalmente, o Comitê do
parte de elementos Patrimônio Mundial, composto
interdependentes em suas relações por 21 representantes dos países-
naturais. Sítios vulcânicos devem parte, tem a atribuição de
conter toda a série de tipos de deliberar pela inclusão ou não na
erupção e de rochas associadas. Lista.
Para o caso das geleiras, devem
incluir desde o campo de neve, o Talvez o grau de exigência deste
glaciar, as formas de erosão processo explique, em parte, o
glacial e as áreas de depósito e fato de que a maior parte dos bens
colonização vegetal. tombados pela Unesco na década
de 1970 estava concentrada num
Dois aspectos destas exigências só país: os EUA (13% do total). É
merecem ser destacados: de um interessante notar, também, que,
lado as condições rígidas para o levando-se em conta a
reconhecimento deste patrimônio distribuição destes bens tombados
natural não levam em conta o pelos continentes, a Europa
grau de degradação do aparece em primeiro lugar com
40% do total.

A corrida para a inscrição na Lista


do

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Patrimônio Mundial tem uma 8 bens), Turquia em nono lugar
explicação: estar na lista significa com 7 bens e China, décimo país
contar com status internacional, (com 6 bens tombados).
prestígio e reconhecimento que é
fundamental para o marketing do Apesar da novidade, ainda
turismo. permaneceu grande a vantagem
dos países europeus: dentre
Assim, segundo CHOAY (op. cit, aqueles (do primeiro ao décimo
p. 211), o patrimônio adquiriu a lugar) que mais bens tombados
partir da década de 1960, na era da tiveram no período, a Europa
indústria cultural e da expansão da correspondia a um total de 59
sociedade do lazer, um duplo bens, equivalentes a 20% do total.
sentido: de um lado obras e
lugares que propiciam saber e, de Quanto ao Brasil, somente em
outro, produtos culturais, 1977 torna-se signatário da
fabricados e empacotados para convenção e em 1980 começa a
serem consumidos por cada vez ter seus patrimônios reconhecidos
mais e mais levas de turistas. com o tombamento da cidade de
Quanto mais bens um determinado Ouro Preto. Em 1986 tem seu
país tiver inscritos na Lista do primeiro patrimônio natural
Patrimônio, maior é o potencial inscrito na Lista: o Parque
turístico posto à venda no mundo. Nacional de Iguaçu.

MOREL lembra que há uma Nesta década, do ponto de vista do


relação grande do turismo com o patrimônio natural, áreas
patrimônio. Mas não acredita que conhecidas internacionalmente
a exploração turística estava entre foram tombadas, tais como: Los
as razões que levaram a Unesco à Glaciares (Argentina), Rochosas
concepção de patrimônio mundial, (Canadá) Parque Yosemite (EUA)
conforme percebemos nesta vulcões no Havai (EUA) e Parque
citação: Nacional do Kilimandjaro
(Tanzânia).
"En los planteamientos de la
Convención de 1972 no se platea Os anos de 1990 o crescimento do
de ninguna manera el que un bien número de bens inscritos na lista
de la humanidad pueda ser objeto estabilizou-se. A novidade no
fundamental de atracción turística, cenário é a Itália, país que fica em
no se platea de ninguna manera primeiro lugar no número de bens
que un bien de la humanidad se tombados (25), seguida da China
convierta, sea per se un recurso em segundo lugar (17), da
turístico". (MOREL, 1996:83) Alemanha (14), em terceiro, e a
Rússia, em quarto (13). A
No entanto, ele admite que o Austrália aponta como o país que
interesse dos países pela inclusão possui maior número de bens
na Lista estava relacionado ao naturais tombados (13),
aproveitamento deste título para o representando a totalidade de seu
marketing turístico, como abaixo patrimônio da Lista.
transcrevemos:
Algumas áreas naturais
"... es indudable y más o menos importantes no mundo são
evidente de todo lo anterior, que reconhecidas neste período entre
en casi todos os casos, elas: Parque Nacional do Rapa
practicamente en todos, los Nui (Chile), Lago Baikal,
grupos interesados que Montanhas do Cáucaso e Altai
promovieron la declaración han (Rússia) os Montes Pirineus
sido movidos, al menos en parte, (França/Espanha) e o delta do Rio
precisamente por esos intereses Danúbio (Romênia). No Brasil há
turísticos". (MOREL, op.cit., reconhecimento de três
p.84) patrimônios naturais: Serra da
Capivara, Costa do
Teria sido a expansão do turismo Descobrimento e as Reservas da
ou o reconhecimento da Mata Atlântica do Sudeste.
importância do patrimônio no
mundo que levaram a ampliação Em 1999, do total de 630 bens
significativa dos tombamentos da inscritos na lista, constata-se uma
Unesco nos anos 1980? O certo é forte predominância de bens
que o número de bens tombados culturais, com 76% do total, em
quintuplica, passando de 61, para relação aos bens naturais, com
282 no final da década. 20%, sendo estes últimos em sua
grande parte relativos à Parques
Apesar dos EUA continuar Nacionais. Os 4% restantes
inscrevendo seus bens com êxito constituem os chamados bens
(mais 11 áreas tombadas), a mistos, de caráter natural e
surpresa fica por conta da atuação cultural.
de países que, apesar de pobres,
constituíram berços de
civilizações antigas, como são os
casos da Índia, primeiro país em
número de bens tombados neste
período (19 no total), México,
sétimo em número (com

Patrimônio mundial: do ideal humanista à utopia de uma nova


civilização, pp. 77- 88.
3. O patrimônio mundial na Num segundo momento analisado
Ordem Ambiental pelo autor, relativo à Guerra Fria,
Internacional os tratados e acordos refletiam as
condições de domínio político-
RIBEIRO (2001), analisando a militar das duas superpotências,
trajetória dos vários acordos e sendo o Tratado Antártico o
negociações internacionais na melhor exemplo. No entanto,
esfera ambiental conclui que RIBEIRO (op.cit, p. 56) nos
estamos diante de tentativas de mostra que o tratado, assinado em
estabelecimento de formas de 1959 estipulando condições para a
gestão planetária dos recursos e instalação de bases científicas no
da natureza, o que ele chamou de continente, foi motivado pela
"ordem ambiental internacional". disputa geopolítica em torno da
Trata-se, nas palavras do autor, de posse do território, o que ficou
um sub-sistema da ordem dissimulado na forma de
internacional e que, portanto, preocupação com medidas
guarda as características preserva-cionistas.
particulares desta.
Podemos afirmar que o primeiro
Optando por uma análise política documento internacional que
do sistema internacional, o autor efetivamente refletiu a
identifica a Guerra Fria como o preocupação com a preservação
principal recorte histórico para ambiental é aquele editado pela
elaborar a sua periodização da Unesco, em 1962, intitulado
Ordem Ambiental Internacional. Recomendação relativa à
Deste modo, em sua leitura, as salvaguarda da beleza e do
condições políticas de cada caráter das paisagens e sítios.
período definem a forma como se
dão alianças e confrontos, sob Pela primeira vez, o estímulo à
efeito dos quais constituem-se os criação de áreas protegidas e a
mecanismos internos da ordem inclusão desta preocupação nos
ambiental. sistemas de planejamento
territorial é o princípio norteador
Antes da Guerra Fria, o autor de políticas públicas. Neste
analisa que as poucas relações sentido este é um documento
internacionais nesta esfera importantíssimo para a análise da
ambiental refletiam a supremacia ordem ambiental internacional.
política, no mundo, dos países
imperialistas europeus. Assim foi Apesar disso, ele teve caráter
com a Convenção para a apenas normativo, refletindo a
preservação de animais, pássaros conjuntura da ordem ambiental,
e peixes da África, estabelecida ou seja, expressando dificuldades
em 1900 com o objetivo de de se estabelecer regras e
reduzir a caça e pesca exigências internacionais. Isso
desenfreada, visando manter os também se verificou antes, na
estoques para atividades futuras. realização da Conferência das
Nações Unidas para a
Levando em conta que o objetivo Conservação e Utilização dos
desta convenção era, na verdade, Recursos, em 1949. De acordo
com RIBEIRO (op. cit. p. 63) essa
o de preservar a caça e pesca conferência constitui-se na
como atividades, sendo os primeira ação de destaque para o
animais vistos apenas como temário ambiental na Unesco, mas
condições essenciais a estas, resultou apenas em diagnósticos e
poderíamos relativizar o papel não em recomendações e
deste documento como um dos exigências para os estados-
precursores da ordem ambiental membros.
internacional.
Como aponta o autor, a Unesco
No que diz respeito ao teve um papel fundamental na
patrimônio, poderíamos incluir a emergência e condução das
Carta de Atenas de 1931como discussões ambientais no âmbito
instrumento da ordem ambiental das relações internacionais. Pode-
internacional? A Carta inclui, se dizer que o debate ambiental,
timidamente, a preocupação com principalmente aquele que diz
os ambientes naturais, já que respeito às áreas protegidas,
eram entendidos como surgiu naquela organização
complementos para o patrimônio articulado com a noção de
cultural. Mas constituiu-se num patrimônio, como se expressa no
documento internacional, o documento Recomendações, de
primeiro sobre a questão 1962.
patrimonial, e que, assim como a
Convenção de 1900, teve uma Em 1972, a realização daquele
amplitude exclusivamente que é considerado o grande marco
européia inscrevendo-se, do nascimento da preocupação
portanto, na mesma lógica deste ambiental _ a Conferência de
período inicial da ordem Estocolmo
ambiental.

- GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 14, 2003 SCIFONI, S.


- reafirma os princípios contidos do poderio político-militar dos
neste documento pioneiro de EUA, possibilita novas
1962, como se observa nos articulações entre países. De
seguintes trechos retirados da acordo com seus interesses
Declaração de Estocolmo: internos os países se alinham em
diversas composições, ora
"...Os recursos naturais da atuando em grupos, ora
Terra... e especialmente, parcelas individualmente, ora compondo
representativas dos ecossistemas com novos parceiros, de certa
naturais, devem ser preservados forma rompendo com a
em benefício das gerações atuais hegemonia norte-americana na
e futuras... elaboração dos documentos, como
ocorreu com a Convenção da
...O homem tem a Diversidade Biológica e o
responsabilidade especial de Protocolo de Kyoto.
preservar e administrar
judiciosamente o patrimônio A composição da Lista do
representado pela flora e pela Patrimônio nos anos de 1990
fauna silvestres, bem como o seu mostra isso. A dissolução da
habitat..." (IPHAN, op.cit, p.219) antiga URSS fato que levou a
novas definições territoriais é
A Convenção do Patrimônio acompanhada pela adesão da
Mundial de 1972 e seu principal Rússia à Convenção do
desdobramento _ as Diretrizes Patrimônio e, conseqüentemente,
operacionais para a a inscrição de seus bens à lista.
implementação do patrimônio Nesta década o país ocupou o 4º
mundial de 1977 _ constituem lugar em número de bens
outros documentos relevantes para tombados.
o entendimento desta fase da
ordem ambiental internacional. Outra expressão destas mudanças
Como já demonstramos pós-guerra fria estão relacionadas
anteriormente, através de dados ao papel representado pelo Japão
relativos aos bens inscritos na na condução do processo de
Lista do Patrimônio Mundial, é tombamento do patrimônio pela
flagrante a supremacia dos EUA Unesco. Erigido à condição de
na escolha dos patrimônios potência econômica na década de
mundiais, principalmente na 1980, o Japão somente aderiu à
década de 1970. convenção em 1992, passando a
ser o maior contribuinte para a
Mas isso até 1984, quando os Unesco, na ausência dos EUA.
EUA decidem retirar-se da Mas, em contrapartida, enfrentou
Unesco, em função de críticas à a partir de então problemas com
condução dos trabalhos por parte relação ao reconhecimento
de seu diretor geral, o qual o país mundial de seus patrimônios.
acusava de conduzir a organização
com parcialidade, defendendo e Isso porque, segundo MAYUME
apoiando iniciativas culturais anti- (op. cit.,155), a forma específica
americanas, como as ligadas à como são construídos e
OLP (Organização para a conservados os monumentos
japoneses contrastava com a visão
Libertação da Palestina). ocidentalizada de patrimônio e
com os critérios de autenticidade
A saída dos EUA da Unesco dos bens. Como são feitos de
representou um corte nos recursos madeira, estes monumentos são
da organização, já que o país vulneráveis ao ataque de fungos e
contribuía com 25% de seu insetos, à grande variação de
orçamento. temperatura e alto índice de
umidade das Ilhas, além de
E mostrou uma outra condução no ocorrência de terremotos. Todos
processo de reconhecimento dos estes fatores deterioram os
patrimônios mundiais, permitindo monumentos e obrigam os
que outros países participassem japoneses a constantemente
como é o caso da Índia, que trocarem partes das construções
representou na década o primeiro refazendo-as em parte ou no todo.
lugar em número de bens Para conservá-los, eles são
tombados. O período conta obrigados a desmontar os
também com a adesão à monumentos para a restauração e
Convenção do Patrimônio de substituição das bases dos pilares,
países até então fora da discussão, inclusive as fundações de pedra a
como é o caso da China, por cada 300 anos.
exemplo, que a partir de 1987
conseguiu incluir diversos bens na Estas particularidades culturais
Lista. levavam os técnicos da Unesco a
rejeitar, como autênticos, os
Para RIBEIRO (op. cit., p.130), monumentos do Japão, alegando
no pós guerra fria, a ordem que sofreram mudanças
ambiental internacional afirma-se constantes.
como um quadro muito mais
complexo. A configuração de um
mundo multipolar do ponto de
vista econômico, mesmo com a
reafirmação

Patrimônio mundial: do ideal humanista à utopia de uma nova


civilização, pp. 77- 88.
O peso político e econômico do que hay que salvar". MOREL
país, no entanto, foi decisivo no (1996:81)
processo de revisão dos critérios
de autenticidade dos bens, que O autor admite que o processo de
teve início na Unesco, a partir de inclusão na Lista nem sempre
década de 1990. De acordo com satisfaz todas as necessidades de
MAYUME (op. cit. p.176) em preservação e que certos
1994 a Unesco realizou uma interesses acabam orientando esta
conferência, especialmente ação, o que colabora por gerar
organizada pelo governo japonês, conflitos internos. Isto porque o
para divulgar o seu sistema de reconhecimento de valores dos
preservação aos especialistas da bens não poderia ser apenas um
área, visando reorientar os processo técnico, conforme nos
critérios para seleção de bens à alerta MENESES:
Lista do Patrimônio. O resultado
foi a Carta de Nara, que nas "Não se trata, pois, de uma
palavras da autora: atividade meramente
especulativa, cognitiva, mas
"... pode ser considerado um concreta, prática _ política. É
marco na história do processo de por isso que o núcleo de
ampliação do conceito de qualquer preocupação relativa
patrimônio ...reconhece a ao patrimônio cultural
necessidade de ampliar o (identificação, proteção,
espectro do patrimônio para valorização) é político por
atender às novas necessidades da natureza".MENESES (1992:189)
civilização contemporânea:
reconhecendo a importância da Mas a respeito deste papel
manutenção da diversidade político, MOREL (op. cit, p.81),
cultural num mundo que tende à que é professor da Universidade
globalização, apoia-se no de Madri, é pouco crítico
conceito de autenticidade afirmando a "extraordinária
cultural para defender a representatividade" da Lista do
heterogeneidade". MAYUME Patrimônio. Em contrapartida,
(op.cit.p.71) reconhece que os bens tombados
estão concentrados na Europa, e
Assim, os anos 1990 marcam particularmente na Espanha.
uma mudança significativa nos Mas, para o autor, isso tem sua
conceitos e práticas patrimoniais lógica, já que o país apresenta
da Unesco. Segundo a arquiteta uma história mais complexa.
Jurema Machado, em uma
avaliação feita pelo organismo A mesma argumentação
em 1992, constatou-se o que os poderíamos estender à partes do
dados anteriormente tentaram continente asiático ou africano,
mostrar: a pouca berços de civilizações milenares.
representatividade mundial da No entanto, a Ásia apresenta a
Lista. Havia uma grande metade do número de bens
concentração de bens tombados tombados da Europa, utilizando
na Europa, especialmente os dados do próprio autor (76
representativos da história contra 156 da Europa).
clássica, constituindo mais de
50% do total, com mais de 30% Há, sem dúvida, muitos
somente na Espanha e Itália. interesses envolvidos na inclusão
de bens na lista, o que levou a
A atuação nesta esfera Unesco, nos anos de 1990, a
patrimonial internacional não limitar em trinta o número
poderia deixar de ser, assim como máximo de bens tombados
dos outros instrumento da ordem anualmente, com a exigência,
ambiental internacional produto ainda, de priorizar países com
de um jogo de interesses e poucos patrimônios
pressões. reconhecidos.

A respeito disso MOREL Por fim é preciso destacar que, se


destaca: os diversos instrumentos da
ordem ambiental internacional
"Naturalmente, que uno de los são construídos de forma a
problemas fundamentales está preservar os interesses nacionais
aquí en la elección, en la e a salvaguarda da soberania,
decisión porque la riqueza, la conforme analisa RIBEIRO (op.
variabilidad, la excepcionalidad, cit.p.37), a institucionalização do
en último término, de la mayor patrimônio mundial pela Unesco
parte dos bienes que han sido não poderia ser diferente.
objeto de declaración oficial es
impresionante y entonces los O artigo 6º da Convenção do
criterios generales no siempre Patrimônio Mundial assim
son posibles y, en ocasiones, se declara:
manifestan incapaces de resolver
los problemas, lo que exige "Com observância plena da
decisiones un tanto particulares soberania dos Estados em cujo
que no siempre son bien acogidas território esteja situado o
por aquellos que se consideran patrimônio cultural e natural ... e
parte de los bienes sem prejuízo dos direitos reais
previstos pela legislação nacional

- GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 14, 2003 SCIFONI, S.


sobre eles, os Estados partes na É assim que o patrimônio cultural
presente convenção reconhecem e o ambiente tornaram-se parte do
que se trata de um patrimônio interesse público, constituindo-se
universal para cuja proteção a nos chamados "direitos sociais
comunidade internacional inteira amplos", num processo que vem
tem o dever de cooperar". ocorrendo e se fortalecendo desde
os anos 1980, a partir da inserção
Já o artigo 11º, item 3, estabelece destas preocupações na ordem do
que: "A inclusão de um bem na dia.
Lista do Patrimônio Mundial não
poderá ser feita sem o No Brasil, o esforço conjunto de
consentimento do Estado vários segmentos (ONGs,
interessado". (IPHAN, op.cit, políticos, cientistas, meios de
p.182). Foi assim que o mundo comunicação) conseguiu inserir
testemunhou no ano de 2001, a na Constituição Federal de 1988
destruição pelo governo taleban esta idéia, definindo o meio
de monumentos budistas situados ambiente ecologicamente
no Afeganistão, sem a intervenção equilibrado como direito de todos
da Unesco, a não ser e submetendo o direito individual
manifestações pedindo o de acesso à terra ao cumprimento
cancelamento do ato. de sua função social. O mesmo
ocorreu com o patrimônio cultural
Para concluir, se o conceito de que, diante destas novas lógicas
patrimônio mundial pode nos legislativas, não pode ser agredido
fazer pensar em solidariedade com a justificativa de que
planetária ou pertença comum, prevalece o direito à propriedade
como destaca CHOAY(op. cit privada como superior aos
p.208), na medida em que "cabe a interesses coletivos.
toda coletividade internacional
colaborar com a proteção do Mundialmente, retrata LEFF
patrimônio", no entanto, a sua (2000:224), o direito ao ambiente
institucionalização mundial somou-se aos princípios da Carta
relativiza esta solidariedade, na de Direitos Humanos, colocando
medida em que elege a um novo conjunto de direitos
salvaguarda da soberania nacional sociais, entre os quais o da
como fator primordial. conservação do patrimônio
comum da humanidade.
4. Considerações finais:
patrimônio, conflitos e a Esta nova visão é fruto do peso
produção de um novo projeto político que a questão ambiental
de civilização. adquiriu no curso dos anos. De
acordo com a análise que LE
Vimos que, mundialmente, a idéia PRESTRE faz das políticas
de patrimônio é gestada e públicas (op.cit. p. 71), muitas são
institucionalizada para não ferir a as demandas, mas a busca de
soberania nacional. O conflito que soluções requer, antes, a sua
envolve esta idéia é, portanto, de inserção na agenda política
outra ordem e se dá no plano dos reconhecendo-as como problema.
interesses públicos versus os
Mas, no que diz respeito ao
privados. patrimônio, muito antes disso, em
1931, a Carta de Atenas já
Para entender a raiz deste conflito apontava para esta idéia,
é necessário retomar o conceito de conforme se observa no seguinte
patrimônio como o de bens trecho: "... a conferência aprovou
representativos da memória unanimemente a tendência geral
social, que não é única mas plural, que consagrou nessa matéria um
pois é sempre uma memória de certo direito da coletividade em
diversos grupos sociais. Sua relação à propriedade privada.
preservação se faz, assim, em (IPHAN, op.cit. p.15)
nome da coletividade como um
legado que se deixa para futuras O conflito, então, vem do fato de
gerações. Se faz, portanto, em que os avanços deste novo direito
nome de um interesse público. deram-se no interior de uma
racionalidade social que tem seus
Segundo LE PRESTRE (2002:64) fundamentos na formação da
interesse público é, antes de tudo, sociedade burguesa, alicerçada,
um conceito relativo, uma portanto, na valorização do
"construção política e ideológica privado. Neste sentido, este novo
temporária". Ele se define, em direito apresenta princípios
cada contexto, não como o que o outros, mas que se contrastam
governo estabelece, mas no com a racionalidade dominante, o
debate político, como fruto do que dificulta sua completa
amadurecimento e da consciência assimilação e aceitação. A
política. superação do

Patrimônio mundial: do ideal humanista à utopia de uma nova civilização,


pp. 77- 88.

conflito pede, desta forma, a perspectiva global. De outro lado, a


consolidação de uma outra necessidade de construção de um novo
racionalidade. saber, de novas bases teóricas para
fundamentar este novo projeto, o que
Como aponta LEFF ele denomina de racionalidade teórica.
(2001:127), o conflito é E por fim a racionalidade instrumental,
positivo, pois é através de que diz respeito aos novos instrumentos
uma série de processos legais e técnicos que permitirão
políticos, de confronto de revolucionar esta sociedade.
interesses, que é possível
acontecerem as mudanças A construção deste novo projeto,
necessárias em direção a um segundo o autor, se dá na articulação
novo projeto de civilização, dialética entre práticas sociais e saber: a
assentado numa outra criação de novas práticas estimula a
racionalidade dominante: a revolução do saber constituído e a
racionalidade ambiental. Esta produção de um novo saber, enquanto
racionalidade tem princípios estes se tornam capazes de promover
outros não funda-mentados no mudanças nas práticas sociais.
cálculo econômico,
pressupondo, portanto, um Entendemos que este novo projeto é
outro olhar sobre o patrimônio construído num movimento histórico,
e sobre a natureza que não é o contínuo e cotidiano de mudanças e
da valoração econômica. conflitos, os quais certamente estamos
testemunhando na forma de momentos
A racionalidade ambiental, de transição. Acreditamos que os novos
segundo o autor, é produzida direitos sociais apontam para isso e a
na mudança de uma série de idéia de patrimônio cultural e natural
instâncias: de um lado na também.
produção de novos valores, o
que ele chamou de
racionalidade substantiva,
tais como a pluralidade, a
gestão participativa, a
distribuição da riqueza, a
conservação de recursos, a
qualidade de vida e a

Notas
1 3
United Nations Educational, Palestra realizada no Seminário
Scientific and Cultural Internacional de Preservação e
Organization (Organização Recuperação do Patrimônio Cultural,
das Nações Unidas para a promovido pela Secretaria de Estado da
Educação, a Ciência e a Cultura e Arquivo do Estado em
Cultura) maio/2002.
2 4
Mario de Andrade, E que foram salvos da inundação das
intelectual modernista, águas da represa por uma operação
participou da formação do internacional que os deslocou para
então Serviço do Patrimônio setores mais elevados.
Histórico e Artístico Nacional,
5
SPHAN, em 1937. No ano Ver: Critéres relatifs à l'inscription de
anterior, à pedido do ministro biens naturel sur la Liste du Patrimoine
Gustavo Capanema, elaborou Mondiel, art. 43, 44 e 45. Fonte:
o anteprojeto do decreto Lei www.unesco.org/nwhc.fr/pages/doc/mai
25, o qual instituiu o sistema n.html , acessada em setembro de 2002.
de proteção ao patrimônio
histórico e artístico nacional, o
qual permanece ainda em
vigor.
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CHOAY, Françoise A
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- GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 14, 2003 SCIFONI, S.

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FONSECA, Maria Cecília MENESES , Ulpiano T. Bezerra


Londres Da modernização à de O patrimônio cultural entre o
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UNESCO/WORLD HERITAGE
CONVENTIONS. La Lista del
Patrimonio Mundial. Dez, 1999.

Trabalho entregue em março de


2003.

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