Você está na página 1de 6

22. A doutrina. sua significação e seu papel.

Além da lei e do costume, são ainda fontes do direito a doutrina e a


jurisprudência.
Hierarquicamente, porém, a jurisprudência e sobretudo a doutrina
desempenham papel de satélites em relação às fontes de direito, como diz DU
PASQUIER A doutrina não pode deixar de ser considerada fonte do direito, pois, de
fato, contribui para aplicá-lo e para preparar-lhe a evolução.
Por doutrina, estende-se o acervo de soluções trazidas pelos trabalhos dos
juristas. Por doutrina, entende-se a com munis opinio doctorum. Para alguns autores
como o grande FERRARA, a doutrina não constitui fonte de direito, pois não se pode
identificar com a sua criação. Na doutrina, dizem eles, encontra-se o que já se
contém no direito.
A obra, porém, dos jurisconsultos, comentadores e estudiosos do direito
trouxe sempre grande contribuição à sistematização jurídica.
O florescimento das escolas de direito como as de Bolonha e Pádua, na
Itália; Tolosa, em França; Oxford, na Inglaterra, e Coimbra, em Portugal, trouxe
sempre, especialmente para as cátedras, o predomínio das elucubrações e
pesquisas de ordem doutrinária, que dali saíram como material prestante, a iluminar
a criação e a aplicação do direito.
159

Dentro de seu caráter especulativo e teórico, a doutrina fol sempre mais


desinteressada e idealista que a própria jurisprudência, sujeita a toda série de
pressões. Se por acaso suprimirmos o pensamento dos jurisconsultos romanos
destruiremos no direito de Roma o que lhe constitui o precípuo valor. O monumento
jurídico por excelência da civilização romana, o Digesto, é compilação extralda dos
escritos de seus principais juristas. Aliás, em Roma, a doutrina era fonte formal do
direito, gozando, daí, os jurisconsultos mais famosos, do ius publice respondendi. Na
época de maior esplendor do direito romano, a opinião dos juristas foi a fonte mais
importante do direito. Valia sobretudo a opinião de cinco juristas: GAIO, PAPINIANO,
PAULO, ULPIANO e MODESTINO. Em caso de critérios diferentes, prevalecia a
opinião da maioria, mas se nem todos se haviam pronunciado sobre o caso e havia
empate, prevalecia o parecer de PAPINIANO, na ausência do qual podia o juiz
seguir a dou trina que lhe parecesse mais justa.
No Direito espanhol antigo, é conhecida a Pragmática de Madrid, de 1499,
que atribuiu força obrigatória às opiniões de alguns jurisconsultos dos séculos XIV e
XV.
Em nossa época, porém, em que os jurisconsultos já não declaram o direito,
a doutrina, isoladamente, sem o beneplácito dos tribunais ou sem a sedimentação
do costume, não cria, de jeito algum, direito positivo. Apenas o Código Civil suíço
admite, hoje, na falta de lei ou de costume, a opinião dos tratadistas como fonte do
Direito. Mas, até hoje, a doutrina continua a ter larga repercussão no direito,
inclusive na jurisprudência e, portanto, nos próprios processos forenses, onde, não
raro, aparecem, para instruí-los, pareceres de juristas eminentes.
Sabe-se como, no século XVIII, se inspiraram os redatores do Código de
NAPOLEÃO nos escritos do grande POTHIER.
160

Os redatores dos Códigos são geralmente juristas que neles deixam


impressa sua orientação doutrinária. O Prof. HUBER, autor da conhecida síntese
dos direitos civis cantonals, Histoire et sistème du droit privé suisse, foi o autor do
anteprojeto do código civil suiço. Entre nós, Clóvis BEVILAQUA, autor de inúmeras
obras de direito, foi o autor de nosso Código Civil. E, modernamente, quase todos os
projetos de códigos, já revistos, são obra de mestres da ciência juridica.
Freqüentemente, a doutrina e a tradição jurídica apa recem sintetizadas em
fórmulas concisas, através de adágios brocardos e máximas, verdadeiros provérbios
jurídicos. Entre os romanos eram muito comuns: Bis de eadem re ne sit actio (a
mesma ação não pode ser proposta duas vezes para a mesma coisa); Nemo ad
alium plus juris transferre potest quam ipse possideat (ninguém pode transferir a
outrem mais direito do que possui) etc.
Como nota ROUBIER, numerosos princípios jurídicos são de formação
doutrinal. Pela orientação doutrinária de SAL LEILES e JOSSERAND é que a
jurisprudência, na França e no resto do mundo, passou a acolher, respectivamente,
a teoria do abuso do direito e da responsabilidade sem culpa, pelos riscos criados.
No domínio da hermenêutica jurídica são especialmente numerosos os
princípios que a doutrina cataloga, para orientação do intérprete.
Dentro de nossa legislação positiva in fieri, o novo anteprojeto da lei geral de
aplicação das normas jurídicas, da lavra do eminente Prof. HAROLDO VALADÃO,
considera, pela segunda parte de seu art. 6.0, "a doutrina aceita, comum e
constante, dos jurisconsultos", como fonte positiva do direito.
A lei, ao costume e à jurisprudência, junta-se agora a doutrina, em nosso
sistema jurídico futuro, como quarta fonte do direito.
161

23. Jurisprudência, conceito e influência. A unificação da jurisprudência. O


valor do precedente no direito anglo saxão. A jurisprudência e as lacunas do direito.
A jurisprudência constitui o direito estabelecido pelas decisões do poder
judiciário.
Enquanto o legislador legisla em tese, in abstracto, o juiz legisla em
hipótese, in concreto, sendo o legislador dos casos particulares.
Para muitos autores, também, com FERRARA à frente, a jurisprudência não
é fonte de direito, já que a função judiciária é aplicar e não criar direito. E, ao aplicar
o direito, o juiz declara apenas o que é direito em face da lei.
Sabemos, entretanto, que nem sempre é assim, pois o juiz, muitas vezes,
tem que criar o direito diante das lacunas da lei, e outras, mesmo sem fazê-lo, não
se pode cingir ao aspecto formal da lei.
E quando a jurisprudência supre as lacunas da lei, torna-se realmente uma
fonte de direito.
De qualquer modo, porém, diante da diversidade dos juízes e tribunais a
aplicar e interpretar a lei, a jurisprudência não pode ser uniforme, mas, ao contrário,
apresenta-se profundamente diversificada e até mesmo antagônica. Para unificar tal
jurisprudência, recorre-se frequentemente ao recurso de revista.
Entre nós, na monarquia, tínhamos critérios unitários através dos assentos,
que não decisões de casos indivi

163
duais. Atualmente, dentro de nosso regime republicans, instrumento
unificador, por excelência, é o recurso extraced nário, previsto ainda pelo inciso III
do art. 119 da vigente Constituição do Brasil.
Dentro de nosso direito e de nossa jurisprudência, porém, o caso julgado
tem valor relativo e restrito. Aliás, entre nós, não é um único julgado que pode tornar
-se fonte de direito, como pode acontecer no sistema jurídico anglo-saxão.
No direito anglo-saxão, onde, na falta de outro, o julgado único se transforma
em precedente, este adquire importância impar, pois passa a ter força obrigatória. O
standard ou diretiva daí decorrente, entretanto, muito mais uma orientação, um
principio de solução, um método, que propriamente uma regra geral, precisa e
rígida.
O direito inglês, como diz LÉVY-ULLMANN, é essencial mente um direito
judiciário. Dentro de sua mentalidade, o precedente é mais do que um costume: é
um costume inte grado no direito comum. Precedentes de séculos são muitas vezes
invocados. Para o inglês, o precedente implica em um alto grau de certeza na
aplicação do direito.
Nos Estados Unidos da América, a atitude dos tribunais é mais liberal com
relação à doutrina do precedente, do stare decisis. Esta já não é absoluta e o valor
do precedente subordina-se, sem dúvida, ao direito de tornar inválidas decisões
anteriores.
Lá, contudo, a jurisprudência também tem larga apli cação no processo de
revelação do direito. Por isso, membros da Corte Suprema, como HOLMES,
CARDOZO e outros, referem -se ao judge-made-law e, por inferência, à construção
juris prudencial. Alguns magistrados, como GRAY e BROWN, chegam ao extremo
de entender não ser rigorosamente direito senão o emanado dos tribunais.

164

Tal concepção, na grande nação americana, foi respon sável, em certa


época, pela chamada supremacia judicial e pelo denominado governo dos juízes, a
que se referem HAINES e LAMBERT e que mereceu a contradita de ROGER PINTO
em três livros famosos aparecidos entre a década de 30 e a de 50. Há em tal
concepção, certamente, evidente exagero, apesar do papel construtivo que se não
pode negar à jurisprudência.
Já DANTON dizia que "o juiz é o servo da lei". Por sua vez, LE CHAPELIER
qualificava a jurisprudência dos tribunais como a mais detestável das instituições.
Para ROBESPIERRE também a jurisprudência dos tribunais era expressão vazia,
porque não podia exprimir mais que a própria lei. Final mente, para NAPOLEÃO, a
tentativa de interpretação de seu Código era considerada "suspeita de ideologia
subversiva e princípio de anarquia". Entendemos que a jurisprudência pode
preencher as lacunas do direito, chegando mesmo, em certos casos, a atualizar o
sentido da lei.
Na França, por exemplo, a Corte de Cassação adapta aos tempos atuais
uma legislação cuja essência atinge o início do século passado. De outro lado, na
falta de um código, o Conselho de Estado francês construiu por sua jurisprudência
uma boa parte do direito administrativo ali vigente.
Mas é preciso não esquecer que o legislador, a quem cabe primacialmente a
função específica de legislar, pode intervir no processo jurisprudencial para corrigir a
legislação ou im pedir a interpretação judiciária.
Entre nós, em um ou outro caso, já firmou o Supremo Tribunal Federal
jurisprudência contra legem, afirmando, pela voz de um de seus membros, que lhe
cabia "a prerrogativa de construir o próprio direito, em dadas circunstâncias de
premência e necessidade, em ordem a suprir as deficiências

165

ou imperfeições da legislação". Para EDGAR COSTA, então membro do


Pretório Supremo, este, a exemplo da Suprema Corte americana, desempenha o
papel de uma verdadeira Constituinte permanente.
Apesar do respeito que nos merecem tais pronunciamentos, nem por isso
perfilhamos tal entendimento, que nos leva, sem dúvida, ao amesquinhamento do
Poder Legislativo e à própria ditadura do Judiciário, que, como qualquer outra
ditadura, devemos sempre combater.
Na Inglaterra e em muitos outros países publicam-se oficialmente os
acórdãos ou decisões dos tribunais, através dos repertórios de jurisprudência. Em
França, não há propriamente publicações oficiais de acórdãos. Dois repertórios
periódicos particulares, porém, Dalloz e Sirey, com os nomes de seus fundadores,
publicam sistematicamente a jurisprudência francesa.
Atualmente, entre nós, o Supremo Tribunal Federal está editando Súmulas
de sua jurisprudência, à guisa de interpretação oficial do direito aplicado por aquela
alta Corte. Embora publicadas sem sistematização, tais Súmulas, numeradas, ofe
recem ao juiz vasto repositório jurisprudencial, que dispensa, na simples
enumeração, qualquer reprodução exaustiva.

166

Você também pode gostar