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Livro IV

HERMENÊUTICA:
DA INTERPRETAÇÃO /INTEGRAÇÃO
À PERSPETIVAÇÃO HOLÍSTICA

Sumário:
Parte I.Aplicação do Direito e Hermenêutica
Parte II.Para uma Hermenêutica: entre o passado e o futuro
Parte III.Hierarquias hermenêuticas
Parte IV.Conceitos Basilares

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Parte I
Aplicação do Direito e Hermenêutica

Sumário:

1.Aplicação do Direito
2.Hermenêutica Jurídica

347
1.Aplicação do Direito
O Direito é uma ciência prática. Serve antes de mais para
julgar litígios, e, mesmo antes disso, para regular a vida normal em
sociedade, evitando-os com regras razoáveis.
De qualquer forma, a perspetiva do litígio sobressai, porque é
a mais extrema. A imagem clássica do Direito como deusa com
uma balança revela-nos o mesmo que algumas simbologias
modernas, que representam o Direito sob a forma de triângulos.
Como é o caso da simbologia de Le Corbusier no palácio da
Justiça de Chandigarh, na Índia. Têm razão. A deusa pesa o que
está em dois pratos. O juiz também é uma espécie de vértice do
triângulo. Os atores da Justiça são, desde sempre, os litigantes (as
partes) e o juiz. São três, como os ângulos e os lados do triângulo.
Não se pense, porém, que esta imagem remete para a velha
dualidade que separa a razão teórica da razão prática. Retomando
Gadamer, Dworkin e Lenio Streck, sabemos que o Direito tem
profunda dimensão interpretativa e que, a partir do
constitucionalismo contemporâneo, “resgata o mundo prático com
a ajuda dos princípios”, como diria este último. Embora,
evidentemente, a principiologia haja sido usada para muito
subjetivismo e falta de técnica nos últimos anos, a culpa não é sua,
mas dos seus maus utilizadores...
Os direitos só existem efetivamente se se puderem pedir em
tribunal. De nada me adianta ter direito ao ensino se não tenho
vaga na Universidade nem meios de fazer valer o meu direito. Não
posso ter direito à habitação se não posso comprar uma casa, nem
sequer arrendar uma, por falta de dinheiro. Contudo, isso não quer
dizer que esses direitos, aliás constitucionais, não existam: o que
muitas vezes pode acontecer é não terem os governos e os
parlamentos tido a diligência de fazer tais direitos reais, práticos,
efetivos. Isso poderá configurar uma inconstitucionalidade por
omissão (art.º 283.º da CRP).

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Paulo Ferreira da Cunha

É por isso que, no direito, o mais imediatamente visível é o


papel dos tribunais. Claro que nos nossos dias a legislação
abundantíssima e uma administração pública enorme criam
inumeráveis pressupostos — leis, atos administrativos... — à
atuação do juiz. Mas ainda há alguns anos ninguém duvidaria um
segundo em apresentar este como o símbolo vivo do Direito, e não
os deputados, os ministros ou os funcionários públicos, que
representam a política e a administração. Hoje haverá, pelo menos
em alguns países, dúvidas sobre a independência de alguns juízes
frente à política. Os juízes não são justiceiros, heróis de capa negra
(espécie de Zorro). O seu trabalho é silencioso e não deve ser
mediático. Devem estar livres dos holofotes e das famas, para
poderem com rigor, calma, e no anonimato, fazer o seu papel.
Quando a justiça se mediatiza, é quase certo que as coisas ficam
mal. Muito menos deve haver justiça televisionada, como se fosse
um espetáculo ou futebol. Evidentemente que sempre há e haverá
grandes juízes, muito bem preparados, probos, isentos, etc.. Mas
basta haver um ou dois a posar para as câmaras ou a querer vir a
ser Presidente para tudo se confundir, e a Justiça se politizar e
partidarizar. Felizmente, em Portugal, os juízes são recatados e
competentes.
Na medida, pois, em que, em alguns países, a Justiça se possa
subjetivizar e, pior ainda (ou igualmente mal) politizar, o poder
judicial, último reduto de credibilidade e último apelo, acaba por
desacreditar-se. E dos tribunais nacionais começa-se a colocar todas
as complacências em juízes mais independentes, de tribunais
internacionais. No limite, numa futura Corte Constitucional
Internacional... E já há muitas Cortes internacionais, a começar
pela Penal ou Criminal...
Em Roma, sobretudo no período clássico, os pretores
constituíam um exemplar corpo de magistrados, verdadeiros
sacerdotes da Justiça, que (adjuvados pelos jurisconsultos) criaram
um Direito adaptado às realidades e tão capaz de servir o justo.
Boa parte desse Direito ainda está em uso.

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Uma magistratura judicial, um corpo de juízes íntegros e bem


formados, experientes e competentes é a melhor garantia de um
sistema jurídico são. A sua devoção deve ir para o estudo, a sua
meta deve ser a Justiça, o seu lema deve ser a verdade. Libertos das
pressões do poder, das tentações da riqueza, das seduções das
ideologias, assim eram os pretores, esses magistrados romanos
cujas sentenças estão gravadas a oiro na memória da História do
Direito. Evidentemente que sempre há páginas mais sombrias. Mas
em geral parece que o balanço será muito positivo, sobretudo para
a época. Também não caiamos na ingenuidade ou no antiquarismo
de querer que muito peculiares soluções no contexto romano
possam valer para os nossos dias. E, contudo, há muito de vivo
ainda no Direito Romano.
O trabalho jurídico nos tribunais é a situação típica, e extrema,
dos conflitos jurídicos. Pode dizer-se que é a patologia das relações
jurídicas. O cumprimento normal, espontâneo, das obrigações
jurídicas — que a Sociologia do Direito e a própria experiência de
cada um revelam ser o caso de longe mais frequente — será então
fisiologia jurídica, o normal funcionamento do organismo vivo que
é o Direito e as suas instituições; mas se pensarmos que o Direito
só o é, para alguns, quando há litígio, então parece ser precisa-
mente o contrário que sucede.
A aplicação do Direito – que não é simples mecânica, mas um
contínuo descobrir e fazer a Justiça como suum cuique tribuere –,
na prática, redunda na hermenêutica jurídica, a qual consiste
sobretudo na interpretação e criação do Direito.
Porém, a interpretação e criação jurisprudenciais têm limites.
O juiz não pode realmente inventar contra legem. Nem usurpar os
poderes legislativos ou executivos, que estão sob reserva. Há
reserva de lei e de governo (administração), assim como há reserva
do juiz. O juiz não está desvinculado121, pelo contrário.

STRECK, Lenio Luiz – O que é isto – decido conforme minha consciência?,


121

Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2012.


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Paulo Ferreira da Cunha

Hoje, trata-se especialmente de averiguar o sentido de


textos, ou de suprir a sua falta, sempre à luz da constante e
perpétua vontade de fazer Justiça.

2.Hermenêutica Jurídica
Em termos muito gerais, hermenêutica é a ciência (ou arte,
ou técnica, ou todas elas) da interpretação, seja ela a interpretação
literária, das artes plásticas, ou de Direito. A hermenêutica jurídica
tem, assim, muito de comum com a hermenêutica em geral.
Engloba, classicamente, na banda do Direito, além da
interpretação propriamente dita, a integração (resolução do
problema das lacunas) e a aplicação das normas jurídicas no tempo
e no espaço. A expressão deriva de Hermes, o mensageiro dos
deuses na mitologia grega. Mas é mais que isto, muito mais. Desde
pelo menos Gadamer que podemos dizer que a Hermenêutica
filosófica nos ajuda a ler não apenas textos, nem obras de arte, mas
o mundo em geral. É chave ou pelo menos interrogação
(interrogação-chave: a forma é disso sugestiva) do mundo.
Uma coisa é, realmente, a simples interpretação de textos,
que pode até ser uma mera exegese, pedestre, literalista, etc. (como
supostamente seria o paradigma dos glosadores medievais), e outra
a ciência do sentido (uma das ciências do sentido). A
Hermenêutica, hoje, é um outro olhar para o mundo, em geral122.
Infelizmente, ao Direito ainda não chegaram imensas aportações
desta nova perspetiva, e muitas vezes a expressão é apenas usada de
forma pobre, paupérrima, apenas como uma flor na botoeira.
Seria preciso fazer-se um esforço real de receção da
Hermenêutica em meio jurídico.

Cf., especialmente, STRECK, Lenio Luiz — Hermenêutica e(m) Crise: uma


122

exploração hermenêutica da construção do direito, Porto Alegre, Livraria do


Advogado, 2014.
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Parte II
Para uma Hermenêutica:
entre o passado e o futuro

Sumário:
1.Dos Elementos de Savigny a uma Hermenêutica holística
2.O Texto – Interpretação literal/gramatical
3.Os Contexto e os Intertextos. O Tempo. Elemento
histórico
4.Os Contexto e os Intertextos. O Espaço. Elemento sistemático
5.O tópico axiológico-normativo. O elemento racional
6.O resultado da interpretação
7.Teleologia hermenêutica
8. Interpretações extensiva, interpretação e corretiva
9. Interpretação enunciativa: visão geral e argumentos
10.Hermenêutica no Código Civil

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1.Dos Elementos de Savigny a uma Hermenêutica
holística
Tradicionalmente, ensinava-se a hermenêutica jurídica estritamente
como interpretação (e muitas vezes até apenas sob essa
designação), e mesmo hoje em dia continua a insistir-se nos
elementos interpretativos de Savigny, que morreu em 1861.
Porém, muita água correu sob as pontes da Hermenêutica desde
então...
A Hermenêutica não é uma secção separada, dentro do
Direito, bem distante das preocupações quotidianas, mais
prosaicas. Pelo contrário. Com esse nome ou com outro (ou com
nenhum: porque se faz hermenêutica mesmo sem se saber), ela é
um vetor fundamental atravessando quotidianamente todo o
Direito. Assim, na juridicidade em geral encaramos sobretudo uma
razão hermenêutica123, tópica, problemática, e, naturalmente,
judicialista (embora com o maior cuidado para se não cair no
subjetivismo de um direito livre, sob capa de simples ativismo
judicial – ou nem isso) e pluralista. A nossa interpretação não é
uma tabela interpretativa com sinais de uso, mas uma
problematização ágil, que põe em causa velhos mitos todos os dias.
Como escreveu Lenio Streck, desfazendo mitos, “(...) o
pensamento jurídico dominante continua acreditando que o jurista
primeiro conhece (subtilitas inteligendi), depois interpreta
(subtilitas explicandi), para só então aplicar (subtilitas applicandi);
ou, de forma mais simplista, os juristas – inseridos nesse imaginário
engendrado pela dogmática jurídica de cariz positivista-formalista –
ainda acreditam que interpretar é desvendar o sentido unívoco da
norma (sic), ou, que interpretar é descobrir o sentido e o alcance

123
Para mais desenvolvimentos, Desvendar o Direito, p. 129 et sq..
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Paulo Ferreira da Cunha

da norma, sendo tarefa precípua do intérprete procurar a


significação correcta dos conceitos jurídicos (sic), ou que interpretar
é buscar ‘o verdadeiro sentido da norma’, ou ainda, que interpretar
é retirar da norma tudo que nela (se) contém (sic) tudo baseado na
firme crença de que os métodos de interpretação são ‘um caminho
seguro para alcançar correctos sentidos”, e que os critérios usuais
de interpretação constitucional equivalem aos métodos e processos
clássicos, destacando-se, dentre eles, o gramatical, o lógico, o
teleológico objetivo, o sistemático e o histórico (sic); finalmente,
para total desespero dos que, como eu, são adeptos da
hermenêutica filosófica, acredita-se ainda que é possível descobrir a
vontade da norma (o que isto significa ninguém sabe explicar) e
que o legislador possui um espírito (sic)!” 124

Só uma nova hermenêutica, um pensamento problemático,


uma maior formação dos juristas e maior confiança no
discernimento de juristas como decisores (judicialismo – mas
judicialismo temperado e controlado), entre outros aspetos (como
o cultivo de novas áreas e novas metodologias), poderá fazer
florescer uma nova época para o Direito. Essa nova época, que tem
aspetos hermenéuticos mas lhe junta outros, pode chamar-se
Direito Fraterno Humanista. Evidentemente, não é uma questão
independente do clima social e políticos envolvente.
Mas voltemos ao nosso tema. A verdade é que as imensas e
complexas teorias para melhorar, superar, ou mesmo radicalmente
substituir essa grelha simples e prática de Savigny não lograram
ainda alcançar uma tabela didática, capaz de ser entendida e
aplicada facilmente. Não é muito agradável para os mais imbuídos
de modernismo reconhecer que uma Hermenêutica holística,

STRECK, Lenio Luiz — A Hermenêutica Filosófica e as posibilidades de


124

superação do positivismo pelo (Neo) Constitucionalismo, “Estudos Jurídicos”,


São Leopoldo, RS, vol. 38, n.º 1 , p. 22-36, jan./abr. 2005.

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

bebendo do melhor da hermenêutica filosófica e entendendo


claramente a complexa realidade jurídica, não poderá ainda
totalmente prescindir do arsenal do passado. Mas tem que encarar-
se a realidade. Seguidamente, procuramos um diálogo entre
passado e presente, mas, didaticamente, não deixaremos de seguir,
em pano de fundo ao menos, as grandes linhas do velho jurista
germânico, no que ele ainda tem de vivo.

2.O Texto – Interpretação literal/gramatical

Não pode haver hermenêutica jurídica, nunca captaremos o


sentido dos comandos jurídicos, sem textos. Orais ou escritos, mas
hoje em dia quase exclusivamente escritos.
Tem-se, assim, de se ter conhecimento das palavras, nas suas
ligações nas frases, nas expressões, idiomatismos, no vocabulário
técnico, afinal na semântica e na sintaxe, numa interpretação
gramatical com o contributo do léxico jurídico. É o mínimo, sem o
que tudo o mais redunda em fantasia e imprecisão, e não poderá
dar frutos.
Interpretado o texto desta forma corrente, mas correta no
plano da Língua, da Gramática, etc., ou melhor, obtida que seja
uma primeira abordagem pré-compreensiva do texto com estes
elementos básicos, estará o intérprete já apto a passar a tópicos
ainda tradicionais, mas já mais elaborados. Sem, porém, ser
capaz de ler, ler tout court (ou seja, entender corretamente o
escrito) não há hermenêutica que lhe valha.
Infelizmente há, nos nossos dias, muitas pessoas que
evidenciam uma grande incapacidade de leitura e interpretação
simples, e nem sequer falamos já de textos jurídicos: mesmo de
textos correntes e simples. É uma verdadeira desgraça que a
universalização do ensino não tenha sido acompanhada pela

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Paulo Ferreira da Cunha

universalização da aquisição de competências elementares


havendo muito mais analfabetos funcionais do que se pensa. E
também pessoas que consegue singrar em carreiras que
aparentemente exigiriam essas competências mais acabam por
demonstrar, no quotidiano, que as não possuem, ou não
possuem cabalmente. Por isso é que há tantos mal-entendidos
entre as pessoas...
O conjunto de tópicos que, ultrapassando o imediatamente
semântico, se dirige para uma compreensão mais profunda da
ratio legis, chama-se interpretação lógica ou racional, não porque
a gramatical não o seja, mas porque se avança mais na
interrogação do texto enquanto suporte de uma dada mensagem,
e até já se esboça um pouco uma pergunta normativa e operativa
(sobre o valor e a facticidade ou utilidade) sobre o conteúdo do
comando jurídico.
Assim, os tópicos racionais ou lógicos, olhando o texto da
norma, procurarão aproximar-se-lhe pelas seguintes três vias: a
histórica, a do sistema, e a da razão propriamente dita. Os dois
primeiros privilegiam o intertextual e o contextual, e o último
regressa à norma e aos seus valores.
No fundo, trata-se do tópico temporal, do tópico espacial e
do axiológico-normativo.

3.Os Contexto e os Intertextos. O Tempo.


Elemento histórico
Considera-se com o elemento histórico, ou temporal, que
uma norma não pode deixar de possuir raízes no passado. Que
veio substituir outras normas sobre o mesmo assunto, ou então
surgiu ex novo, para tutelar uma situação até aí desprovida de
normativo específico, ou até para acorrer a uma situação nova,
etc. Em qualquer dos casos, a situação e a norma (legal ou

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

outra) precedentes são da maior importância para a


compreensão, não apenas da génese, como do próprio sentido
da norma em apreço. Pela História se capta muito da razão de
ser do novo normativo em análise, por comparação, por
alargamento das vistas pela introdução de fatores
determinantes, por ação ou reação, de índole ideológica,
política, social, económica, etc. A norma foi cunhada num
tempo por determinantes desse tempo, que ajudam a esclarecê-
la.
Porém, há que ter cuidado em não confundir nem os
métodos nem os propósitos deste tópico temporal com as
perspetivas das visões historicista e subjetivista. Esta visão
histórica de que ora curamos, não podendo prescindir de
elementos que podem ser argumento comum a uma
interpretação com aquelas finalidades — dado que os factos
serão em boa parte semelhantes, e não trazem, em estado puro,
o rótulo das teorias que os coloram e deles assim se apropriam
pro domo sua —, navega por outras águas.
Ali, o fim da investigação histórica era conhecer um tempo
ou um pensamento subjetivo, para os fazer aplicar agora, como
interpretação devida; aqui, muito diversamente, trata-se não só de
ver a história da própria norma, mas da história de todas as
normas à temática em causa concernentes, já vigentes ou apenas
propostas, com o fito de, por uma perspetiva abrangente,
compreender as prevenções, as restrições, as cautelas, os receios,
as conciliações, as aberturas, em suma, as opções próprias da
norma, que, razoavelmente, deveria ter à vista o leque de
possibilidades fornecido pela história.
A História é uma espécie de mostruário de soluções, e a
norma, nela, a eleição de algumas de entre as possíveis.
Compreender o catálogo ajuda muito a entender a compra
efetuada, ou a recusa de compra, optando por um produto novo
(mas só parcialmente, dado que não há novidades absolutas).

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Paulo Ferreira da Cunha

Estudar os trabalhos preparatórios de uma lei, numa comissão de


reforma legislativa, ou na própria Assembleia legislativa (entre
nós a Assembleia da República), traz uma outra luz sobre o que
se desejou ou não desejou, efetivamente, escolher, e legislar.

4.Os Contexto e os Intertextos.


O Espaço. Elemento sistemático
O direito possui uma espécie de geografia (diferente da mais
exterior do chamado “Direito Comparado”). As divisões do
direito, as ciências jurídicas materiais, são autênticas regiões
(quando não, como o Direito Civil, que abrange vários ramos,
verdadeiros continentes – ou arquipélagos...), e daí podermos
também falar em metáforas como ramos, fontes, margens, etc.
O mesmo sucede com as normas, que se poderiam sem
dificuldade planificar idealmente numa grande carta
“geográfica”. Há normas, como os códigos, que constituem
grandes rios, com seus afluentes de legislação extravagante, há
depressões que são prima facie as lacunas, e do cume de
normas mais abrangentes, como as que apelam para conceitos
indeterminados e cláusulas gerais, abarca-se um sem número de
lugares. Satélites como as ficções jurídicas conquistam espaço
ao universo exterior, sem ponto terreno de apoio, mas com
muito engenho e potenciados efeitos práticos.
Pois bem. Há, neste mapa, normas vizinhas e longínquas,
climas normativos com semelhanças e diferenças, como entre
os países, regiões, e localidades da geografia a sério. Vai daí o
espaço das normas ser, evidentemente, um espaço mental de
afinidade, contiguidade, analogia, etc.
Assim como, para a compreensão cabal de um país, o temos
de entender nas suas proximidades e de o inserir nos círculos
concêntricos sucessivamente mais alargados que o

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

compreendem, também para um correto entendimento de


uma norma haverá que a ler no seu lugar, no seu contexto. E
esse contexto é-nos dado por esse espaço mental-jurídico que é
a maranha do sistema jurídico, da ordem jurídica. Uma norma
insere-se, por exemplo, num diploma legal que é um
regulamento, o qual se subordina a uma lei, que eventualmente
decorre já de uma lei de bases ou de uma lei orgânica, que tem
de se conformar à Constituição, e esta (embora haja quem não
o aceite) aos princípios da ordem de valores, do direito natural,
ou da Justiça, como se quiser. E que são o que, adaptado ao
país, constitui, afinal, a sua “constituição material”.
Aqui, trata-se de um problema espacial no plano vertical: é
como a altitude geográfica. Mas não se deverá descurar que
as normas possuem vizinhanças horizontais, lugares paralelos,
ou seja, disposições de outros complexos normativos que,
assemelhando-se nas suas razões às da norma em causa,
incluem comandos semelhantes, ou diversos. E há que
compreender esses climas tão evidentemente parecidos ou tão
radicalmente diversos (neste último caso, se tudo faria indicar,
pelas condições gerais ou, no caso jurídico, pelo objetivo
comum a ter em vista, que a solução fosse idêntica). Soluções
diferentes para casos parecidos, e parecidas para casos
idênticos, corpos normativos aparentados, próximos, etc., tudo
isso tem de ser estudado para poder lançar luz sobre a solução
adotada.
Este estudo espacial implica, numa primeira fase, a dos
lugares mais próximos, dentro da ordem jurídica nacional
considerada, e, depois, sucessivamente em maiores espaços,
sendo um lugar privilegiado de aplicação prática dos estudos
comparação de direitos, do chamado Direito Comparado.
A ideia de unidade do sistema jurídico, com direito a honras
de acolhimento legal, parece-nos pressupor, não uma
omnisciência fictícia do legislador, mas uma razoabilidade,

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Paulo Ferreira da Cunha

ilustração e competência bastantes para nos permitir presumir o


conhecimento de soluções paralelas para casos idênticos.

5.O tópico axiológico-normativo.


O elemento racional
A análise interna da norma centra-se essencialmente na
captação da razão de ser da norma. Esta ratio legis, como
temos vindo a fazer pressentir, é mais que a vontade do
legislador ao emiti-la, mais que a finalidade que com ela se
propôs. Parece que há, aqui, que acolher a teoria objetivista,
reconhecendo que a regra tem (ou pode ter) vida própria, um
princípio ativo e evolutivo capaz de afeiçoar um sentido útil da
norma a novos desafios, mesmo jamais sonhados pelo seu
legislador concreto. Este lançaria a semente à terra da ordem
jurídica, sendo certo que, por um mecanismo cibernético, a
planta-norma daí decorrente seria capaz de encontrar (pelo
menos em muitos casos — e as exceções serão as de normas em
desuso, caducas, inefetivas, etc.) as metamorfoses da sua seiva,
e, logo, da sua própria compleição, adequadas às
transformações do solo, do clima, etc..

É pelos fins últimos que se deve aferir o conteúdo da norma.


Em suma: há fins mais imediatos, que acabam por ser meios de
fins mais profundos. Ora a descoberta de uma ratio legis não
pode quedar-se pela deteção de simples prescrições concretas,
fins, sem dúvida, mas fins-meios. Muitas vezes isso seria abusar da
simplicidade e lhaneza do simples elemento gramatical. Que a lei
quer isto ou aquilo, aqui e agora, parece não ser, muitas vezes,
difícil de compreender. O que é mais complexo — e sujeito a
argumentação e dialética — é averiguar porque é que a lei quer isto
ou aquilo, com que fins, e se quererá concretamente sempre isto
ou aquilo para atingir esses mesmos fins.
362
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

E óbvio que esta posição de considerar a ratio legis como


um princípio dinâmico nos recorda o carácter simultaneamente
fixo e evolutivo do direito natural, assim se podendo dizer que
o estático, na ratio legis, seria a natura rerum, a natureza das
coisas, evoluindo e mudando com os acidentes da História e das
circunstâncias particulares. E uma posição deste tipo reclama
muito do intérprete, que é chamado a recriar a norma em cada
momento, através de uma constante e sempre renovada
tomada do pulso da mesma. Mas importa reconhecer que,
nesta metamorfose da ratio legis participa, pelo menos na
prática e em termos muito objetivos, o intérprete.

Só questionando-nos se a teleologia encontrada num dado hic


et nunc tem sentido à luz de outras, eventuais, anteriormente
encontradas, como natural continuidade (sem rutura) e se
caminham todas para um valor de direito fundamental,
mediatizado numa teleologia de longo alcance, só assim se
poderá evitar o conflito de interpretações antagónicas, e o risco
do sem sentido de uma eventualmente díspar jurisprudência
(ou prática administrativa) em torno de uma mesma norma.

6.O resultado da interpretação


A razão de ser da norma é, pois, teleologia de diversos
níveis, mas encontra-se também em diálogo com o concreto. E
assim se fecha o círculo hermenêutico-valorativo.
A partir de uma vontade de Justiça a aplicar a um conjunto
de situações se elabora a norma, e assim se impõe o comando,
com a mesma vontade se aborda a norma, para a compreender
nos meios que ela disponibiliza nessa senda, e descoberta em
cada caso a ratio legis, há que aplicar os meios normativos
dessa justiça assim feita ato. Ora, nesta descoberta-criação, não
há apenas momentos analíticos e cognitivos.
363
Paulo Ferreira da Cunha

A própria consideração do elemento racional como um


elemento teleológico evolutivo e multiforme (e não racional
lógico, abstrato, ou racionalista) apela para outro tipo de
preocupações. Isto significa que, em todos os momentos e
influindo em todos os tópicos interpretativos, mas ganhando um
relevo autónomo em sede racional, uma dimensão valorativa,
axiológico-normativa, faz sentir a sua presença irrecusável e
inconfundível. Trata-se de sempre referir a valores, a princípios, a
paradigmas ético-jurídicos os resultados de cada demanda. Pouco
importa um lugar paralelo se ele manifestamente revela um erro
de avaliação, ou comete uma injustiça; de nada serve uma
instituição historicamente consagrada, e eventual fonte da agora
considerada, se estiver em oposição aos valores hoje vigentes na
consciência axiológico-jurídica. E esta ideia de valores situados,
não sendo, de modo algum, capitulação sociologista, vem
lembrar-nos que se não trata somente de normatividade abstrata,
de uma juridicidade pretensamente eterna. Mas, pelo contrário,
de uma autêntica valoração com tempo e lugar, sem prescindir
do universal, mas atenta ao particular.
Uma prudência feita de uma atenção especial aos valores de
sempre e aos valores situados, uma dimensão normativo-
praxeológica (ou axiológico-prática) tem de constituir pano de
fundo de toda a retórica e de toda a dialética interpretativa no
domínio do Direito.

7.Teleologia hermenêutica
A interpretação-criação pode funcionar, grosso modo, como
sintonia, complemento, restrição, aperfeiçoamento ou extrapolação
face à norma. Desde a conformação quase literalista até uma
hermenêutica interventiva.
Afirmou o grande civilista Manuel de Andrade, no seu

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

clássico Sentido e Valor da Jurisprudência: “Nem está escrito


que ao mundo haja de vir grande mal [...] só por haver certa e
comedida possibilidade de, pelo trâmite da interpretação, se
emendarem os erros de quem legisla e se resistir aos
desmandos e abusos do Poder.”125
O caso limite é o da Lei injusta. E Lex injusta non est lex.
Porém, é complicado determinar quando esta o é. E, sendo, há
ainda que ultrapassar a teoria do mal menor...
Para além a resistência interpretativa, da recusa em cumprir a
lei, etc., que entram até, no limite, no âmbito do Direito de
resistência (art. 21.º da CRP) e na desobediência civil, há um
conjunto de conformações hermenêuticas da norma, que veremos
de seguida.

8. Interpretações extensiva, interpretação e corretiva


A interpretação extensiva alarga o sentido da norma: a ideia
que preside a este procedimento é a de que a lei disse menos
do que queria, e que, se confrontada com a situação em
apreço, que nela objetivamente não cabe, sem dúvida a
incluiria numa previsão mais abrangente.
O caso mais corrente refere-se a realidades novas que o
progresso técnico sempre cria, e que a lei, se for muito
casuística, não pode abranger. Ou então, e sempre na mesma
ótica casuística, quando o legislador preferiu expressamente
designar a espécie, talvez mais impressiva, frequente, ou
conhecida, querendo embora abranger na sua previsão todo o
género. Imagine-se uma lei de proteção de certas espécies

ANDRADE, Manuel Domigues de – Sentido e Valor da Jurisprudência,


125

“Boletim da Faculdade de Direito”, Universidade de Coimbra, n.º 48, pp. 255-


294, 1972.
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Paulo Ferreira da Cunha

animais em que se refira apenas a mais comum, mas que, na


verdade, queira abrangera todo o genus.
Este mesmo exemplo nos dá a imagem da dificuldade e
melindre deste tipo de intervenção. Porque, se nada for dito, e
se o jurista, cego às razões da vida e da cultura, nada mais
souber, poderá crer que apenas uma espécie de foca está em
perigo, que apenas o lince da Malcata deve ter proteção, e
permitir o abate de todos os outros. É preciso, portanto, para
saber Direito, saber mais que Direito.
Só que pode do mesmo modo suceder que, de várias
espécies animais ou vegetais — ou outras —, apenas uma ou
umas quantas devam ser protegidas até porque, por exemplo,
as outras sejam nocivas, se tenham tornado predatórias para
além do equilíbrio ecológico recomendável, etc. Se se quiser
fomentar a plantação de cogumelos para alimentação, decerto
não vai o legislador aplicar a norma a cogumelos venenosos. É,
pois, preciso além de saber Direito e saber mais que Direito,
ponderar os interesses em causa, os fins visados.
E fazer intervir em cada momento vários tipos e argumentos
de interpretação.
Na interpretação restritiva, o problema põe-se de forma
simétrica ao precedente. A manta do direito está agora larga de
mais, e é preciso adequá-la a um conjunto mais restrito de
situações. É preciso “encolher” a norma. Para isso, como é
costume fazer-se para os tecidos, há que “lavá-la”. No fundo,
trata-se de a libertar de corpos que são estranhos à sua
essência, numa primeira abordagem, e depois, de a reduzir
mesmo à sua expressão mais simples, a que melhor condiga
com a sua razão de ser.
Muitas vezes o legislador recorre a fórmulas mais vagas e
abrangentes para se precaver precisamente das agruras de não
ter previsto tudo. E, querendo abarcar o Mundo com a sua
hipótese, estatui para casos que não têm a ver com o que

366
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

desejava. Fala do género e não da ou das espécies que


realmente visa, não distingue onde devia distinguir, etc.. É então
que se deve recorrer à interpretação restritiva, que procura
captar até que ponto vai a teleologia da lei, e fazer terminar aí a
sua aplicação: cessante ratione legis cessat eius dispositio.
Além deste tópico, delimitador, um outro (além do de
paridade de razão e do de maioria de razão que aqui também,
mutatis mutandis, têm relevância) há a considerar, embora sob
caução: o da interpretação restritiva das exceções: Exceptio est
strictissimae interpretationis. O problema põe-se,
evidentemente, em sede interpretativa, de novo: onde está o
princípio e onde está a exceção? Mais ainda: o nosso Código
Civil, no seu art.º 11.º, apenas proíbe a aplicação analógica das
normas excecionais, expressamente permitindo a interpretação
extensiva, o que debilita, a nosso ver, a força do brocardo.
Interpretação corretiva é mais complicada, ou melhor:
levanta mais complexos e delicados problemas. O
aperfeiçoamento da norma por via interpretativa é natural e
normal, e mesmo a adequação desta à prática uma exigência de
Justiça. Mas aperfeiçoamento normativo surge de todo o género
de interpretação, e, na mais interventiva, sem dúvida decorre ele
da restrição e da extensão. Por isso é que há quem considere
que a interpretação corretiva abrange estas duas categorias.
Não disputemos sobre palavras. Para dar um sentido
específico à designação cumpre levá-la, pensamos, para um
outro terreno: de uma intervenção ainda mais profunda na
norma. Não está em causa apenas alargar ou diminuir a
previsão legal — mas de corrigir a norma. É evidente que essa
correção pode surgir de uma restrição ou de uma extensão na
hipótese, no âmbito de aplicação, ou na estatuição, no domínio
das consequências jurídicas desencadeadas em função da
norma. Porém, ela será muito mais propriamente corretiva se
alterar, ou pelo menos infletir, o que a norma diz. Como, por

367
Paulo Ferreira da Cunha

exemplo, afirma Mota Pinto, trata-se de “[...] para salvar a ideia


essencial da lei (para assegurar a valoração de interesses visada
pelo legislador), se tem de desobedecer ao conteúdo imediato
da lei”126.
E aqui está o nó do problema. Se fazer uma ligeira inflexão
parece ainda consentâneo com o papel criador da
jurisprudência, já subverter o sentido da norma, nela fazendo
caber aquilo que nela não tenha a mínima correspondência
verbal, ainda que insuficiente ou imperfeita (cf. art.º 9.º, 2
C.C.), nos parece fraude à lei. E das duas, uma: ou se entende
que ela é apenas um parâmetro geral, posto à disposição do
juiz, para que ele livre, mas inspiradamente (inspirado na
norma) decida, ou a norma é o critério primeiro (como
decorre da nossa lei) e a atividade interpretativa, criadora que é,
não pode ignorar a norma.
Em conclusão: a interpretação corretiva não é sempre
fraude à lei; mas para que ela se atenha nos limites do razoável,
é mister que a correção da lei seja consentânea com a
teleologia desta. Não se pode instaurar, a pretexto de correção,
ou até qualquer fim alto (que corre o risco de demagogia), uma
qualquer nova forma de direito livre, ou seja, subjetividade de
quem manda.

9. Interpretação enunciativa: visão geral e argumentos


A interpretação enunciativa é a que extrapola do texto da lei
para conclusões, por vezes ousadas, através de princípios da
razão ou de operadores lógicos. Eis-nos chegados, pois, a um
dos terrenos metodológicos em que a arte jurídica, de timbre

126
MOTA PINTO, Carlos Alberto da — Teoria Geral do Direito Civil, 3.a
ed. actualizada, 1.ª reimp. Coimbra, Coimbra Editora, 1986, p. 163, a
propósito do art.º 2162 C.C. (cálculo da legítima).

368
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

dialético, mais pode brilhar, não tanto pela verve, como pela
lógica.
Seria muito importante que todos os aplicadores do Direito,
dos mais altos magistrados aos burocratas de guichet,
soubessem bem estes argumentos e os aplicassem.
Frequentemente se cometem erros e injustiças pela sua
ignorância.
Eis alguns argumentos, a usar com cuidado e arte:

A pari — identidade de razão: É um pouco o sentido da


frase anch’io son pittore. Por exemplo: se F pode, porque não
poderei eu, que estou em iguais circunstâncias?
A fortiori — maioria de razão: se F pode, e tem menor títu-
lo que eu, porque não hei de eu também poder (já que tenho
maior/ melhor título)?
A maiori ad minus — Quem (a lei, a ordem jurídica, o Direi-
to) permite o mais (o mais gravoso, o mais nocivo, o mais
importante, o mais complexo, etc.) também permite o menos.
O que implica o seu contrário: a proibição do mais não implica
a proibição do menos (pela utilização do argumento a
contrario). Isto significa que quem pode vender um imóvel
também pode hipotecá-lo, ou arrendá-lo. Mas que a proibição
de vender, só por si, pode não significar necessariamente a
proibição de hipoteca ou arrendamento.
A minori ad maius — Quem proíbe o menos também
proíbe o mais. O que tem igualmente, a contrario, como
consequência que quem permite o menos não permite o mais.
Há dois grandes canteiros de relva que se espraiam no Jardim
do Luxemburgo, em frente ao Senado francês. Eles podem
servir para explicitar à maravilha este caso. Um (o A) tem um
letreiro que diz: é proibido pisar a relva. O outro (o B) diz que
tal é permitido. Se é proibido pisar a relva (no A) também é
proibido lançar-lhe fogo. Mas se é permitido pisá-la (no B), isso
369
Paulo Ferreira da Cunha

não quer dizer que a piromania aí seja tolerada.


A contrario [sensu] — Em princípio, usa-se para extrapolar
de um caso excepcional (ius singulare) a norma geral, que deve
ser contrária. Mas correntemente designa todo o raciocínio de
in- versão de soluções (qui dicit de uno negai de altero),
designadamente quando, a partir de uma enumeração fechada,
taxativa, de numerus clausus, se podem retirar, por nela não
caberem, os casos que, ali não estando presentes, hão de ter
diversa tutela ou qualificação. Assim, logo quando no art.º 1.º,
1 C.C. se afirma que “São fontes imediatas de direito as leis e
as normas corporativas”, ficamos a saber, a contrario sensu,
que as restantes fontes, designadamente as constantes dos art.ºs
2.º a 4.º C.C. (integradas também no capítulo I “Fontes de
Direito” — e invocamos assim o elemento sistemático), têm de
ser consideradas fontes mediatas.
A silentio — Cf. argumentos ubi lex non distinguet... e ubi
lex voluit, dixit..., a que o princípio praticamente se reconduz.
Ab eodem — Estamos perante um argumento de validação
dos atos que, não respeitando a forma legal, seriam feridos de
nulidade, mas que, pela sua conclusividade, não deixam
dúvidas sobre os elementos em falta. Um documento
(normalmente doações ou testamentos) que necessite da data
completa, datado apenas de “Dia de Páscoa de 2019”, ou um
documento que exija assinatura e tenha apenas rubrica, seguida
do selo de armas do seu nobre portador, ou do título
honorífico e da data, etc.. Enfim, sempre que não deixe dúvidas
o contexto, prescindir-se-ia do texto, mesmo que taxativamente
exigido pela lei.
As máximas têm não apenas uma função lógico-dedutiva e
criadora fulcral, como ainda constituem argumentos de vulto
no debate dialético, enriquecendo e elevando o discurso,
porquanto introduzem uma generalização, não formal e

370
Paulo Ferreira da Cunha

tempo,
Lex posterior derogat priori — A lei ulterior derroga a
anterior.
Exceptio est strictissimae interpretationis — As exceções
devem interpretar-se restritivamente. Ou, pelo menos, não
extensivamente. Já vimos supra alguns problemas desta
máxima, designadamente à luz do art. 11.º CC.
Quod abundat non viciat /nocet — O que é supérfluo (e até
erróneo, para além do essencial) não prejudica o essencial,
que se mantém. Por isso existe o princípio da redução dos
negócios jurídicos.
E, embora seja um conhecidíssimo princípio de Direito
Penal, tem pleno cabimento em qualquer ramo de direito o
princípio do In dubio pro reo — na dúvida, julga-se a favor do
demandado, daquele a quem a Justiça (ou o vizinho) demanda
em Justiça. Do mesmo modo,
In dubio favores sunt amplianãi et odiosa restringenda: na
dúvida, devem-se preferir as interpretações beneficiadoras e
restrin- gir as prejudiciais.
In dubio melior est condido possidentis — Porque o Direito
não é o primeiro repartidor das coisas, mas aceita (em
princípio) a distribuição social, presume-se que o possuidor é
proprietário, e procura-se que tudo fique como está, salvo
melhor prova. É o que em sede de Administração se designa
pelo princípio Quietta non movere. E na mesma senda de não
subverter o mundo, se presume que o que foi feito (contrato,
testamento, etc. — até a lei) o foi bem. Há presunções que, no
geral, operam de forma “conservadora”, que visam a paz e a
segurança, ainda que tal não seja justo – mas isso se verá
depois, com outros instrumentos:
In dubio standum est pro eo, pro qua stat praesumptio — Na
372
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

dúvida, decide-se a favor do beneficiário da presunção já


estabelecida. Quod non est in actis/ textis non est in mundo
— O que não consta das peças processuais (ou nos textos — nas
leis) não existe no Mundo. Sabemos como a verdade formal a
que este brocardo pode conduzir é nefasta. Ele é, afinal,
muito semelhante ao “Não sei o que é o Direito Civil, só ensino
o Código Napoleão” legalista). Porém, há regras de restrição
do dito e do dizível, do alegado e do alegável que funcionam
a favor da segurança, da certeza, e até da Justiça.
Estas máximas contêm todas uma enorme sabedoria, que é
feita essencialmente de comedimento, de prudência. Podem
agrupar-se segundo vários pontos de vista. Todavia, parece-nos
que todas deixam transparecer um princípio de garantia dos
sujeitos implicados (v.g. in dubio...) e de respeito pelos textos
(ambos os casos de Ubi lex...), uma lógica essencialmente
restritiva, minimalista (In obscuris...). Quer dizer: uma conceção
do Direito não conquistadora e conformadora, entendendo-o
embora como plenitude (dentro do seu campo). Um campo
porém a definir pelos textos, que também são garantia (Quod non
est... ou o conhecido nullum crimen...).

10.Hermenêutica no Código Civil


Ao longo desta síntese, fomos já deparando com diversas
normas expressamente votadas à regulação da hermenêutica das
normas. O círculo vicioso do império da lei assim o quer: é o
Código que diz como se interpreta o Código. E mais: é o Código
Civil, hierarquicamente subordinado à Constituição, que contém,
pelo menos por razões históricas e talvez de segurança jurídica,
as normas interpretativas aplicáveis à própria Constituição.
Não fazendo fincapé na desadequação sistemática da
localização deste corpo normativo, até porque concedendo à
razão pragmática, e à tradição, sempre diremos, porém, que
373
Paulo Ferreira da Cunha

todas as normas do Código Civil, mesmo as materialmente


constitucionais sobre interpretação (e fontes, por exemplo) se
subordinam, obviamente, ao texto constitucional. E de acordo
com os princípios de interpretação holística constitucional é
óbvio que estas normas do Código Civil têm que se adequar à
“mensagem global” ou ao “sistema interno unitário” da
Constituição. Também se lhe pode chamar “programa
constitucional”.
Localizada a questão, cumpre apenas recapitular, sistematizando.
As normas (ou seus sucedâneos ou supletivos) são as que são
consideradas no capítulo das fontes (art.ºs 1.º a 4.º),
essencialmente a lei (art.º 1”, 1), cujo critério de definição é
essencialmente orgânico (proceder de quem de Direito — ou,
na verdade, “de poder” — art.º 1.º, 2; entrada em vigor após
publicação no jornal oficial, e vacatio legis, cessação da vigência
com base em critérios apenas formais-legais — art.º 5.º e 7.º).
Todas as demais fontes (assentos, art.º 2.a, usos, art.º 3.º e
equidade, art.º 4.º) têm aplicação muito limitada (bem como a
subespécie da lei em sentido latíssimo, as normas corporativas
— art.º 1.º, 3), e são consideradas mediatas (art.º 1.º, 1, a
contrario). Os assentos foram mesmo parcialmente
considerados inconstitucionais.
Estas normas sobre fontes são pano de fundo das
propriamente interpretativas, as quais são compagináveis em
alguns princípios, aparentemente muito duros e positivistas:

Ignorantia legis non excusat — a ignorância da lei não justifica o


seu não cumprimento nem exime de sanções (art.º 6.º);
Dura lex, sed lex — O dever de obediência à lei não pode ser
afastado sob pretexto de injustiça ou imoralidade do conteúdo da
mesma (art.º 8.º, 2 C.C.).
Proibição do non liquet — O juiz tem de julgar, não podendo
alegar a obscuridade da lei ou dos factos (art.º 8.º, 1 C.C.).
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

O art.º 9.º, consagrando uma visão matizada da


interpretação (n.º 1) e permitindo alguma interpretação
interventiva, embora sem fraude aos textos (n.º 2 e 3) atenua
consideravelmente a rigidez do conjunto. As normas de
integração (especialmente o art.º 10.º, 3 in fine) remetendo,
como veremos, para o espírito do sistema, e o conjunto da
ordem jurídica, (de uma forma geral, a começar pelo próprio
C.C.), acolhendo na prática bom número dos princípios de
Justiça universalmente aceites, temperam o conjunto, no qual o
art.º 8.º, 2 C.C. acaba por constituir um tanto uma relíquia
legalista, embora compreendamos que não poderia ser simples
uma solução alternativa no quadro de um comando legal.
O Código Civil também trata de outras dimensões da que
Hermenêutica, nomeadamente da aplicação das leis no tempo
(art.º 12.º et sq.) e no espaço (art.º 14.º et sq.), que não
trataremos aqui brevitatis causa.

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