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Livro IV

HERMENÊUTICA:
DA INTERPRETAÇÃO /INTEGRAÇÃO
À PERSPETIVAÇÃO HOLÍSTICA

Sumário:
Parte I.Aplicação do Direito e Hermenêutica
Parte II.Para uma Hermenêutica: entre o passado
e o futuro
Parte III.Hierarquias hermenêuticas
Parte IV.Conceitos Basilares

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Parte I
Aplicação do Direito e
Hermenêutica

Sumário:

1 .Aplicação do Direito
2 .HermenêuticaJurídica

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1 .Aplicação do Direito
O Direito é uma ciência prática. Serve antes de
mais para julgar litígios, e, mesmo antes disso, para
regular a vida normal em sociedade, evitando-os com
regras razoáveis.
De qualquer forma, a perspetiva do litígio
sobressai, porque é a mais extrema. A imagem clássica
do Direito como deusa com uma balança revela-nos o
mesmo que algumas simbologias modernas, que
representam o Direito sob a forma de triângulos. Como
é o caso da simbologia de Le Corbusier no palácio da
Justiça de Chandigarh, na Índia. Têm razão. A deusa
pesa o que está em dois pratos. O juiz também é uma
espécie de vértice do triângulo. Os atores da Justiça
são, desde sempre, os litigantes (as partes) e o juiz.
São três, como os ângulos e os lados do triângulo.
Não se pense, porém, que esta imagem remete
para a velha dualidade que separa a razão teórica da
razão prática. Retomando Gadamer, Dworkin e Lenio
Streck, sabemos que o Direito tem profunda dimensão
interpretativa e que, a partir do constitucionalismo
contemporâneo, “resgata o mundo prático com a ajuda
dos princípios”, como diria este último. Embora,
evidentemente, a principiologia haja sido usada para
muito subjetivismo e falta de técnica nos últimos anos, a
culpa não é sua, mas dos seus maus utilizadores...
Os direitos só existem efetivamente se se puderem
pedir em tribunal. De nada me adianta ter direito ao
ensino se não tenho vaga na Universidade nem meios
de fazer valer o meu direito. Não posso ter direito à
habitação se não posso comprar uma casa, nem sequer
arrendar uma, por falta de dinheiro. Contudo, isso não
quer dizer que esses direitos, aliás constitucionais, não
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existam: o que muitas vezes pode acontecer é não


terem os governos e os parlamentos tido a diligência de
fazer tais direitos reais, práticos, efetivos. Isso poderá
configurar uma inconstitucionalidade por omissão (art.º
283.º da CRP).
É por isso que, no direito, o mais imediatamente
visível é o papel dos tribunais. Claro que nos nossos
dias a legislação abundantíssima e uma administração
pública enorme criam inumeráveis pressupostos — leis,
atos administrativos... — à atuação do juiz. Mas ainda
há alguns anos ninguém duvidaria um segundo em
apresentar este como o símbolo vivo do Direito, e não
os deputados, os ministros ou os funcionários públicos,
que representam a política e a administração. Hoje
haverá, pelo menos em alguns países, dúvidas sobre a
independência de alguns juízes frente à política. Os
juízes não são justiceiros, heróis de capa negra
(espécie de Zorro). O seu trabalho é silencioso e não
deve ser mediático. Devem estar livres dos holofotes e
das famas, para poderem com rigor, calma, e no
anonimato, fazer o seu papel. Quando a justiça se
mediatiza, é quase certo que as coisas ficam mal. Muito
menos deve haver justiça televisionada, como se fosse
um espetáculo ou futebol. Evidentemente que sempre
há e haverá grandes juízes, muito bem preparados,
probos, isentos, etc.. Mas basta haver um ou dois a
posar para as câmaras ou a querer vir a ser Presidente
para tudo se confundir, e a Justiça se politizar e
partidarizar. Felizmente, em Portugal, os juízes são
recatados e competentes.
Na medida, pois, em que, em alguns países, a
Justiça se possa subjetivizar e, pior ainda (ou
igualmente mal) politizar, o poder judicial, último reduto
de credibilidade e último apelo, acaba por desacreditar-
se. E dos tribunais nacionais começa-se a colocar todas
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

as complacências em juízes mais independentes, de


tribunais internacionais. No limite, numa futura Corte
Constitucional Internacional... E já há muitas Cortes
internacionais, a começar pela Penal ou Criminal...
Em Roma, sobretudo no período clássico, os
pretores constituíam um exemplar corpo de
magistrados, verdadeiros sacerdotes da Justiça, que
(adjuvados pelos jurisconsultos) criaram um Direito
adaptado às realidades e tão capaz de servir o justo.
Boa parte desse Direito ainda está em uso.
Uma magistratura judicial, um corpo de juízes
íntegros e bem formados, experientes e competentes é
a melhor garantia de um sistema jurídico são. A sua
devoção deve ir para o estudo, a sua meta deve ser a
Justiça, o seu lema deve ser a verdade. Libertos das
pressões do poder, das tentações da riqueza, das
seduções das ideologias, assim eram os pretores,
esses magistrados romanos cujas sentenças estão
gravadas a oiro na memória da História do Direito.
Evidentemente que sempre há páginas mais sombrias.
Mas em geral parece que o balanço será muito positivo,
sobretudo para a época. Também não caiamos na
ingenuidade ou no antiquarismo de querer que muito
peculiares soluções no contexto romano possam valer
para os nossos dias. E, contudo, há muito de vivo ainda
no Direito Romano.
O trabalho jurídico nos tribunais é a situação típica,
e extrema, dos conflitos jurídicos. Pode dizer-se que é a
patologia das relações jurídicas. O cumprimento
normal, espontâneo, das obrigações jurídicas — que a
Sociologia do Direito e a própria experiência de cada
um revelam ser o caso de longe mais frequente — será
então fisiologia jurídica, o normal funcionamento do
organismo vivo que é o Direito e as suas instituições;
mas se pensarmos que o Direito só o é, para alguns,
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quando há litígio, então parece ser precisa- mente o


contrário que sucede.
A aplicação do Direito – que não é simples
mecânica, mas um contínuo descobrir e fazer a Justiça
como suum cuique tribuere –, na prática, redunda na
hermenêutica jurídica, a qual consiste sobretudo na
interpretação e criação do Direito.
Porém, a interpretação e criação jurisprudenciais
têm limites. O juiz não pode realmente inventar contra
legem. Nem usurpar os poderes legislativos ou
executivos, que estão sob reserva. Há reserva de lei e
de governo (administração), assim como há reserva do
juiz. O juiz não está desvinculado121, pelo contrário.
Hoje, trata-se especialmente de averiguar o
sentido de textos, ou de suprir a sua falta, sempre à luz
da constante e perpétua vontade de fazer Justiça.

2 .Hermenêutica Jurídica
Em termos muito gerais, hermenêutica é a
ciência (ou arte, ou técnica, ou todas elas) da
interpretação, seja ela a interpretação literária, das
artes plásticas, ou de Direito. A hermenêutica jurídica
tem, assim, muito de comum com a hermenêutica em
geral.
Engloba, classicamente, na banda do Direito,
além da interpretação propriamente dita, a integração
(resolução do problema das lacunas) e a aplicação das
normas jurídicas no tempo e no espaço. A expressão
deriva de Hermes, o mensageiro dos deuses na
mitologia grega. Mas é mais que isto, muito mais.
Desde pelo menos Gadamer que podemos dizer que a
121 STRECK, Lenio Luiz – O que é isto – decido conforme minha
consciência?, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2012.
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Hermenêutica filosófica nos ajuda a ler não apenas


textos, nem obras de arte, mas o mundo em geral. É
chave ou pelo menos interrogação (interrogação-chave:
a forma é disso sugestiva) do mundo.
Uma coisa é, realmente, a simples interpretação
de textos, que pode até ser uma mera exegese,
pedestre, literalista, etc. (como supostamente seria o
paradigma dos glosadores medievais), e outra a ciência
do sentido (uma das ciências do sentido). A
Hermenêutica, hoje, é um outro olhar para o mundo, em
geral122. Infelizmente, ao Direito ainda não chegaram
imensas aportações desta nova perspetiva, e muitas
vezes a expressão é apenas usada de forma pobre,
paupérrima, apenas como uma flor na botoeira.
Seria preciso fazer-se um esforço real de receção da
Hermenêutica em meio jurídico.

122 Cf., especialmente, STRECK, Lenio Luiz — Hermenêutica e(m)


Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, Porto
Alegre, Livraria do Advogado, 2014.
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Parte II
Para uma Hermenêutica:
entre o passado e o futuro

Sumário:
1 .Dos Elementos de Savigny a uma Hermenêutica
holística
2 .OTexto – Interpretação literal/gramatical
3 .Os Contexto e os Intertextos. O Tempo. Elemento
histórico
4 .Os Contexto e os Intertextos. O Espaço. Elemento
sistemático
5 .O tópico axiológico-normativo. O elemento racional
6 .O resultado da interpretação
7 .Teleologia hermenêutica
8 . Interpretações extensiva, interpretação e corretiva
9 . Interpretação enunciativa: visão geral e argumentos
10 .Hermenêutica no Código Civil

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1 .Dos Elementos de Savigny a uma
Hermenêutica holística
Tradicionalmente, ensinava-se a hermenêutica jurídica
estritamente como interpretação (e muitas vezes até
apenas sob essa designação), e mesmo hoje em dia
continua a insistir-se nos elementos interpretativos de
Savigny, que morreu em 1861. Porém, muita água
correu sob as pontes da Hermenêutica desde então...
A Hermenêutica não é uma secção separada,
dentro do Direito, bem distante das preocupações
quotidianas, mais prosaicas. Pelo contrário. Com esse
nome ou com outro (ou com nenhum: porque se faz
hermenêutica mesmo sem se saber), ela é um vetor
fundamental atravessando quotidianamente todo o
Direito. Assim, na juridicidade em geral encaramos
sobretudo uma razão hermenêutica123, tópica,
problemática, e, naturalmente, judicialista (embora com
o maior cuidado para se não cair no subjetivismo de um
direito livre, sob capa de simples ativismo judicial – ou
nem isso) e pluralista. A nossa interpretação não é uma
tabela interpretativa com sinais de uso, mas uma
problematização ágil, que põe em causa velhos mitos
todos os dias.
Como escreveu Lenio Streck, desfazendo mitos,
“(...) o pensamento jurídico dominante continua
acreditando que o jurista primeiro conhece (subtilitas
inteligendi), depois interpreta (subtilitas explicandi), para
só então aplicar (subtilitas applicandi); ou, de forma
mais simplista, os juristas – inseridos nesse imaginário

123 Para mais desenvolvimentos, Desvendar o Direito, p. 129 et sq..


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engendrado pela dogmática jurídica de cariz positivista-


formalista – ainda acreditam que interpretar é desvendar
o sentido unívoco da norma (sic), ou, que interpretar é
descobrir o sentido e o alcance da norma, sendo tarefa
precípua do intérprete procurar a significação correcta
dos conceitos jurídicos (sic), ou que interpretar é buscar
‘o verdadeiro sentido da norma’, ou ainda, que
interpretar é retirar da norma tudo que nela (se) contém
(sic) tudo baseado na firme crença de que os métodos
de interpretação são ‘um caminho seguro para alcançar
correctos sentidos”, e que os critérios usuais de
interpretação constitucional equivalem aos métodos e
processos clássicos, destacando-se, dentre eles, o
gramatical, o lógico, o teleológico objetivo, o sistemático
e o histórico (sic); finalmente, para total desespero dos
que, como eu, são adeptos da hermenêutica filosófica,
acredita-se ainda que é possível descobrir a vontade da
norma (o que isto significa ninguém sabe explicar) e
que o legislador possui um espírito (sic)!”124
Só uma nova hermenêutica, um pensamento
problemático, uma maior formação dos juristas e maior
confiança no discernimento de juristas como decisores
(judicialismo – mas judicialismo temperado e
controlado), entre outros aspetos (como o cultivo de
novas áreas e novas metodologias), poderá fazer
florescer uma nova época para o Direito. Essa nova
época, que tem aspetos hermenéuticos mas lhe junta
outros, pode chamar-se Direito Fraterno Humanista.
Evidentemente, não é uma questão independente do
clima social e políticos envolvente.

124 STRECK, Lenio Luiz — A Hermenêutica Filosófica e as posibilidades


de superação do positivismo pelo (Neo) Constitucionalismo, “Estudos
Jurídicos”, São Leopoldo, RS, vol. 38, n.º 1 , p. 22-36, jan./abr. 2005.
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Mas voltemos ao nosso tema. A verdade é que as


imensas e complexas teorias para melhorar, superar, ou
mesmo radicalmente substituir essa grelha simples e
prática de Savigny não lograram ainda alcançar uma
tabela didática, capaz de ser entendida e aplicada
facilmente. Não é muito agradável para os mais
imbuídos de modernismo reconhecer que uma
Hermenêutica holística, bebendo do melhor da
hermenêutica filosófica e entendendo claramente a
complexa realidade jurídica, não poderá ainda
totalmente prescindir do arsenal do passado. Mas tem
que encarar- se a realidade. Seguidamente, procuramos
um diálogo entre passado e presente, mas,
didaticamente, não deixaremos de seguir, em pano de
fundo ao menos, as grandes linhas do velho jurista
germânico, no que ele ainda tem de vivo.

2 .O Texto – Interpretação literal/gramatical

Não pode haver hermenêutica jurídica, nunca


captaremos o sentido dos comandos jurídicos, sem
textos. Orais ou escritos, mas hoje em dia quase
exclusivamente escritos.
Tem-se, assim, de se ter conhecimento das palavras,
nas suas ligações nas frases, nas expressões,
idiomatismos, no vocabulário técnico, afinal na
semântica e na sintaxe, numa interpretação gramatical
com o contributo do léxico jurídico. É o mínimo, sem o
que tudo o mais redunda em fantasia e imprecisão, e
não poderá dar frutos.
Interpretado o texto desta forma corrente, mas

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correta no plano da Língua, da Gramática, etc., ou


melhor, obtida que seja uma primeira abordagem pré-
compreensiva do texto com estes elementos básicos,
estará o intérprete já apto a passar a tópicos ainda
tradicionais, mas já mais elaborados. Sem, porém, ser
capaz de ler, ler tout court (ou seja, entender
corretamente o escrito) não há hermenêutica que lhe
valha.
Infelizmente há, nos nossos dias, muitas pessoas
que evidenciam uma grande incapacidade de leitura e
interpretação simples, e nem sequer falamos já de
textos jurídicos: mesmo de textos correntes e simples. É
uma verdadeira desgraça que a universalização do
ensino não tenha sido acompanhada pela
universalização da aquisição de competências
elementares havendo muito mais analfabetos funcionais
do que se pensa. E também pessoas que consegue
singrar em carreiras que aparentemente exigiriam essas
competências mais acabam por demonstrar, no
quotidiano, que as não possuem, ou não possuem
cabalmente. Por isso é que há tantos mal-entendidos
entre as pessoas...
O conjunto de tópicos que, ultrapassando o
imediatamente semântico, se dirige para uma
compreensão mais profunda da ratio legis, chama-se
interpretação lógica ou racional, não porque a
gramatical não o seja, mas porque se avança mais
na interrogação do texto enquanto suporte de uma
dada mensagem, e até já se esboça um pouco uma
pergunta normativa e operativa (sobre o valor e a
facticidade ou utilidade) sobre o conteúdo do
comando jurídico.
Assim, os tópicos racionais ou lógicos, olhando o

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texto da norma, procurarão aproximar-se-lhe pelas


seguintes três vias: a histórica, a do sistema, e a da
razão propriamente dita. Os dois primeiros
privilegiam o intertextual e o contextual, e o último
regressa à norma e aos seus valores.
No fundo, trata-se do tópico temporal, do tópico
espacial e do axiológico-normativo.

3 .Os Contexto e os Intertextos. O


Tempo.
Elemento histórico
Considera-se com o elemento histórico, ou
temporal, que uma norma não pode deixar de possuir
raízes no passado. Que veio substituir outras normas
sobre o mesmo assunto, ou então surgiu ex novo,
para tutelar uma situação até aí desprovida de
normativo específico, ou até para acorrer a uma
situação nova, etc. Em qualquer dos casos, a
situação e a norma (legal ou outra) precedentes são
da maior importância para a compreensão, não
apenas da génese, como do próprio sentido da
norma em apreço. Pela História se capta muito da
razão de ser do novo normativo em análise, por
comparação, por alargamento das vistas pela
introdução de fatores determinantes, por ação ou
reação, de índole ideológica, política, social,
económica, etc. A norma foi cunhada num tempo por
determinantes desse tempo, que ajudam a esclarecê-
la.
Porém, há que ter cuidado em não confundir nem os
métodos nem os propósitos deste tópico temporal com
as perspetivas das visões historicista e subjetivista. Esta
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visão histórica de que ora curamos, não podendo


prescindir de elementos que podem ser argumento
comum a uma interpretação com aquelas finalidades —
dado que os factos serão em boa parte semelhantes, e
não trazem, em estado puro, o rótulo das teorias que os
coloram e deles assim se apropriam pro domo sua —,
navega por outras águas.
Ali, o fim da investigação histórica era conhecer um
tempo ou um pensamento subjetivo, para os fazer
aplicar agora, como interpretação devida; aqui, muito
diversamente, trata-se não só de ver a história da
própria norma, mas da história de todas as normas à
temática em causa concernentes, já vigentes ou
apenas propostas, com o fito de, por uma perspetiva
abrangente, compreender as prevenções, as
restrições, as cautelas, os receios, as conciliações, as
aberturas, em suma, as opções próprias da norma,
que, razoavelmente, deveria ter à vista o leque de
possibilidades fornecido pela história.
A História é uma espécie de mostruário de
soluções, e a norma, nela, a eleição de algumas de
entre as possíveis. Compreender o catálogo ajuda
muito a entender a compra efetuada, ou a recusa de
compra, optando por um produto novo (mas só
parcialmente, dado que não há novidades absolutas).
Estudar os trabalhos preparatórios de uma lei, numa
comissão de reforma legislativa, ou na própria
Assembleia legislativa (entre nós a Assembleia da
República), traz uma outra luz sobre o que se desejou
ou não desejou, efetivamente, escolher, e legislar.

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4 .Os Contexto e os Intertextos.


O Espaço. Elemento sistemático
O direito possui uma espécie de geografia (diferente
da mais exterior do chamado “Direito Comparado”). As
divisões do direito, as ciências jurídicas materiais, são
autênticas regiões (quando não, como o Direito Civil,
que abrange vários ramos, verdadeiros continentes – ou
arquipélagos...), e daí podermos também falar em
metáforas como ramos, fontes, margens, etc.
O mesmo sucede com as normas, que se poderiam
sem dificuldade planificar idealmente numa grande carta
“geográfica”. Há normas, como os códigos, que
constituem grandes rios, com seus afluentes de
legislação extravagante, há depressões que são prima
facie as lacunas, e do cume de normas mais
abrangentes, como as que apelam para conceitos
indeterminados e cláusulas gerais, abarca-se um sem
número de lugares. Satélites como as ficções jurídicas
conquistam espaço ao universo exterior, sem ponto
terreno de apoio, mas com muito engenho e
potenciados efeitos práticos.
Pois bem. Há, neste mapa, normas vizinhas e
longínquas, climas normativos com semelhanças e
diferenças, como entre os países, regiões, e localidades
da geografia a sério. Vai daí o espaço das normas ser,
evidentemente, um espaço mental de afinidade,
contiguidade, analogia, etc.
Assim como, para a compreensão cabal de um país,
o temos de entender nas suas proximidades e de o
inserir nos círculos concêntricos sucessivamente mais
alargados que o compreendem, também para um
correto entendimento de uma norma haverá que a ler no
seu lugar, no seu contexto. E esse contexto é-nos dado
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por esse espaço mental-jurídico que é a maranha do


sistema jurídico, da ordem jurídica. Uma norma insere-
se, por exemplo, num diploma legal que é um
regulamento, o qual se subordina a uma lei, que
eventualmente decorre já de uma lei de bases ou de
uma lei orgânica, que tem de se conformar à
Constituição, e esta (embora haja quem não o aceite)
aos princípios da ordem de valores, do direito natural,
ou da Justiça, como se quiser. E que são o que,
adaptado ao país, constitui, afinal, a sua “constituição
material”.
Aqui, trata-se de um problema espacial no plano
vertical: é como a altitude geográfica. Mas não se
deverá descurar que as normas possuem vizinhanças
horizontais, lugares paralelos, ou seja, disposições de
outros complexos normativos que, assemelhando-se
nas suas razões às da norma em causa, incluem
comandos semelhantes, ou diversos. E há que
compreender esses climas tão evidentemente parecidos
ou tão radicalmente diversos (neste último caso, se tudo
faria indicar, pelas condições gerais ou, no caso jurídico,
pelo objetivo comum a ter em vista, que a solução fosse
idêntica). Soluções diferentes para casos parecidos, e
parecidas para casos idênticos, corpos normativos
aparentados, próximos, etc., tudo isso tem de ser
estudado para poder lançar luz sobre a solução
adotada.
Este estudo espacial implica, numa primeira fase, a
dos lugares mais próximos, dentro da ordem jurídica
nacional considerada, e, depois, sucessivamente em
maiores espaços, sendo um lugar privilegiado de
aplicação prática dos estudos comparação de direitos,
do chamado Direito Comparado.

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A ideia de unidade do sistema jurídico, com direito a


honras de acolhimento legal, parece-nos pressupor,
não uma omnisciência fictícia do legislador, mas uma
razoabilidade, ilustração e competência bastantes para
nos permitir presumir o conhecimento de soluções
paralelas para casos idênticos.

5 .O tópico axiológico-normativo.
O elemento racional
A análise interna da norma centra-se
essencialmente na captação da razão de ser da norma.
Esta ratio legis, como temos vindo a fazer pressentir, é
mais que a vontade do legislador ao emiti-la, mais que a
finalidade que com ela se propôs. Parece que há, aqui,
que acolher a teoria objetivista, reconhecendo que a
regra tem (ou pode ter) vida própria, um princípio ativo e
evolutivo capaz de afeiçoar um sentido útil da norma a
novos desafios, mesmo jamais sonhados pelo seu
legislador concreto. Este lançaria a semente à terra da
ordem jurídica, sendo certo que, por um mecanismo
cibernético, a planta-norma daí decorrente seria capaz
de encontrar (pelo menos em muitos casos — e as
exceções serão as de normas em desuso, caducas,
inefetivas, etc.) as metamorfoses da sua seiva, e, logo,
da sua própria compleição, adequadas às
transformações do solo, do clima, etc..
É pelos fins últimos que se deve aferir o conteúdo da
norma. Em suma: há fins mais imediatos, que acabam
por ser meios de fins mais profundos. Ora a descoberta
de uma ratio legis não pode quedar-se pela deteção de
simples prescrições concretas, fins, sem dúvida, mas

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fins-meios. Muitas vezes isso seria abusar da


simplicidade e lhaneza do simples elemento gramatical.
Que a lei quer isto ou aquilo, aqui e agora, parece não
ser, muitas vezes, difícil de compreender. O que é mais
complexo — e sujeito a argumentação e dialética — é
averiguar porque é que a lei quer isto ou aquilo, com
que fins, e se quererá concretamente sempre isto ou
aquilo para atingir esses mesmos fins.

E óbvio que esta posição de considerar a ratio legis


como um princípio dinâmico nos recorda o carácter
simultaneamente fixo e evolutivo do direito natural,
assim se podendo dizer que o estático, na ratio legis,
seria a natura rerum, a natureza das coisas, evoluindo e
mudando com os acidentes da História e das
circunstâncias particulares. E uma posição deste tipo
reclama muito do intérprete, que é chamado a recriar a
norma em cada momento, através de uma constante e
sempre renovada tomada do pulso da mesma. Mas
importa reconhecer que, nesta metamorfose da ratio
legis participa, pelo menos na prática e em termos muito
objetivos, o intérprete.
Só questionando-nos se a teleologia encontrada num
dado hic et nunc tem sentido à luz de outras,
eventuais, anteriormente encontradas, como natural
continuidade (sem rutura) e se caminham todas para
um valor de direito fundamental, mediatizado numa
teleologia de longo alcance, só assim se poderá evitar
o conflito de interpretações antagónicas, e o risco do
sem sentido de uma eventualmente díspar
jurisprudência (ou prática administrativa) em torno de
uma mesma norma.

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6 .O resultado da interpretação
A razão de ser da norma é, pois, teleologia de
diversos níveis, mas encontra-se também em diálogo
com o concreto. E assim se fecha o círculo
hermenêutico-valorativo.
A partir de uma vontade de Justiça a aplicar a um
conjunto de situações se elabora a norma, e assim se
impõe o comando, com a mesma vontade se aborda a
norma, para a compreender nos meios que ela
disponibiliza nessa senda, e descoberta em cada caso
a ratio legis, há que aplicar os meios normativos dessa
justiça assim feita ato. Ora, nesta descoberta-criação,
não há apenas momentos analíticos e cognitivos.

A própria consideração do elemento racional como


um elemento teleológico evolutivo e multiforme (e não
racional lógico, abstrato, ou racionalista) apela para
outro tipo de preocupações. Isto significa que, em
todos os momentos e influindo em todos os tópicos
interpretativos, mas ganhando um relevo autónomo
em sede racional, uma dimensão valorativa,
axiológico-normativa, faz sentir a sua presença
irrecusável e inconfundível. Trata-se de sempre referir
a valores, a princípios, a paradigmas ético-jurídicos
os resultados de cada demanda. Pouco importa um
lugar paralelo se ele manifestamente revela um erro
de avaliação, ou comete uma injustiça; de nada serve
uma instituição historicamente consagrada, e
eventual fonte da agora considerada, se estiver em
oposição aos valores hoje vigentes na consciência
axiológico-jurídica. E esta ideia de valores situados,
não sendo, de modo algum, capitulação sociologista,
vem lembrar-nos que se não trata somente de
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normatividade abstrata, de uma juridicidade


pretensamente eterna. Mas, pelo contrário, de uma
autêntica valoração com tempo e lugar, sem
prescindir do universal, mas atenta ao particular.
Uma prudência feita de uma atenção especial aos
valores de sempre e aos valores situados, uma
dimensão normativo- praxeológica (ou axiológico-
prática) tem de constituir pano de fundo de toda a
retórica e de toda a dialética interpretativa no domínio
do Direito.

7 .Teleologia hermenêutica
A interpretação-criação pode funcionar, grosso
modo, como sintonia, complemento, restrição,
aperfeiçoamento ou extrapolação face à norma. Desde
a conformação quase literalista até uma hermenêutica
interventiva.
Afirmou o grande civilista Manuel de Andrade, no
seu clássico Sentido e Valor da Jurisprudência: “Nem
está escrito que ao mundo haja de vir grande mal [...] só
por haver certa e comedida possibilidade de, pelo
trâmite da interpretação, se emendarem os erros de
quem legisla e se resistir aos desmandos e abusos do
Poder.”125
O caso limite é o da Lei injusta. E Lex injusta non
est lex. Porém, é complicado determinar quando esta
o é. E, sendo, há ainda que ultrapassar a teoria do
mal menor...
Para além a resistência interpretativa, da recusa

125 ANDRADE, Manuel Domigues de – Sentido e Valor da


Jurisprudência, “Boletim da Faculdade de Direito”, Universidade de
Coimbra, n.º 48, pp. 255294, 1972.
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em cumprir a lei, etc., que entram até, no limite, no


âmbito do Direito de resistência (art. 21.º da CRP) e
na desobediência civil, há um conjunto de
conformações hermenêuticas da norma, que veremos
de seguida.

8 . Interpretações extensiva, interpretação


e corretiva
A interpretação extensiva alarga o sentido da
norma: a ideia que preside a este procedimento é a
de que a lei disse menos do que queria, e que, se
confrontada com a situação em apreço, que nela
objetivamente não cabe, sem dúvida a incluiria numa
previsão mais abrangente.
O caso mais corrente refere-se a realidades novas
que o progresso técnico sempre cria, e que a lei, se
for muito casuística, não pode abranger. Ou então, e
sempre na mesma ótica casuística, quando o
legislador preferiu expressamente designar a
espécie, talvez mais impressiva, frequente, ou
conhecida, querendo embora abranger na sua
previsão todo o género. Imagine-se uma lei de
proteção de certas espécies animais em que se refira
apenas a mais comum, mas que, na verdade, queira
abrangera todo o genus.
Este mesmo exemplo nos dá a imagem da
dificuldade e melindre deste tipo de intervenção.
Porque, se nada for dito, e se o jurista, cego às
razões da vida e da cultura, nada mais souber,
poderá crer que apenas uma espécie de foca está
em perigo, que apenas o lince da Malcata deve ter
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Paulo Ferreira da Cunha

proteção, e permitir o abate de todos os outros. É


preciso, portanto, para saber Direito, saber mais que
Direito.
Só que pode do mesmo modo suceder que, de
várias espécies animais ou vegetais — ou outras —,
apenas uma ou umas quantas devam ser protegidas
até porque, por exemplo, as outras sejam nocivas,
se tenham tornado predatórias para além do
equilíbrio ecológico recomendável, etc. Se se quiser
fomentar a plantação de cogumelos para
alimentação, decerto não vai o legislador aplicar a
norma a cogumelos venenosos. É, pois, preciso
além de saber Direito e saber mais que Direito,
ponderar os interesses em causa, os fins visados.
E fazer intervir em cada momento vários tipos e
argumentos de interpretação.
Na interpretação restritiva, o problema põe-se de
forma simétrica ao precedente. A manta do direito
está agora larga de mais, e é preciso adequá-la a um
conjunto mais restrito de situações. É preciso
“encolher” a norma. Para isso, como é costume fazer-
se para os tecidos, há que “lavá-la”. No fundo, trata-se
de a libertar de corpos que são estranhos à sua
essência, numa primeira abordagem, e depois, de a
reduzir mesmo à sua expressão mais simples, a que
melhor condiga com a sua razão de ser.
Muitas vezes o legislador recorre a fórmulas mais
vagas e abrangentes para se precaver precisamente
das agruras de não ter previsto tudo. E, querendo
abarcar o Mundo com a sua hipótese, estatui para
casos que não têm a ver com o que desejava. Fala
do género e não da ou das espécies que realmente
visa, não distingue onde devia distinguir, etc.. É

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

então que se deve recorrer à interpretação restritiva,


que procura captar até que ponto vai a teleologia da
lei, e fazer terminar aí a sua aplicação: cessante
ratione legis cessat eius dispositio.
Além deste tópico, delimitador, um outro (além do
de paridade de razão e do de maioria de razão que
aqui também, mutatis mutandis, têm relevância) há a
considerar, embora sob caução: o da interpretação
restritiva das exceções: Exceptio est strictissimae
interpretationis. O problema põe-se, evidentemente,
em sede interpretativa, de novo: onde está o princípio
e onde está a exceção? Mais ainda: o nosso Código
Civil, no seu art.º 11.º, apenas proíbe a aplicação
analógica das normas excecionais, expressamente
permitindo a interpretação extensiva, o que debilita, a
nosso ver, a força do brocardo.
Interpretação corretiva é mais complicada, ou
melhor: levanta mais complexos e delicados problemas.
O aperfeiçoamento da norma por via interpretativa é
natural e normal, e mesmo a adequação desta à prática
uma exigência de Justiça. Mas aperfeiçoamento
normativo surge de todo o género de interpretação, e,
na mais interventiva, sem dúvida decorre ele da
restrição e da extensão. Por isso é que há quem
considere que a interpretação corretiva abrange estas
duas categorias.
Não disputemos sobre palavras. Para dar um sentido
específico à designação cumpre levá-la, pensamos,
para um outro terreno: de uma intervenção ainda mais
profunda na norma. Não está em causa apenas alargar
ou diminuir a previsão legal — mas de corrigir a norma.
É evidente que essa correção pode surgir de uma
restrição ou de uma extensão na hipótese, no âmbito de

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Paulo Ferreira da Cunha

aplicação, ou na estatuição, no domínio das


consequências jurídicas desencadeadas em função da
norma. Porém, ela será muito mais propriamente
corretiva se alterar, ou pelo menos infletir, o que a
norma diz. Como, por exemplo, afirma Mota Pinto, trata-
se de “[...] para salvar a ideia essencial da lei (para
assegurar a valoração de interesses visada pelo
legislador), se tem de desobedecer ao conteúdo
imediato da lei”126.
E aqui está o nó do problema. Se fazer uma ligeira
inflexão parece ainda consentâneo com o papel criador
da jurisprudência, já subverter o sentido da norma, nela
fazendo caber aquilo que nela não tenha a mínima
correspondência verbal, ainda que insuficiente ou
imperfeita (cf. art.º 9.º, 2 C.C.), nos parece fraude à lei. E
das duas, uma: ou se entende que ela é apenas um
parâmetro geral, posto à disposição do juiz, para que
ele livre, mas inspiradamente (inspirado na norma)
decida, ou a norma é o critério primeiro (como decorre
da nossa lei) e a atividade interpretativa, criadora que é,
não pode ignorar a norma.
Em conclusão: a interpretação corretiva não é
sempre fraude à lei; mas para que ela se atenha nos
limites do razoável, é mister que a correção da lei seja
consentânea com a teleologia desta. Não se pode
instaurar, a pretexto de correção, ou até qualquer fim
alto (que corre o risco de demagogia), uma qualquer
nova forma de direito livre, ou seja, subjetividade de
quem manda.

126 MOTA PINTO, Carlos Alberto da — Teoria Geral do Direito Civil, 3.a
ed. actualizada, 1.ª reimp. Coimbra, Coimbra Editora, 1986, p. 163, a
propósito do art.º 2162 C.C. (cálculo da legítima).
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

9 . Interpretação enunciativa: visão geral e


argumentos
A interpretação enunciativa é a que extrapola do
texto da lei para conclusões, por vezes ousadas,
através de princípios da razão ou de operadores
lógicos. Eis-nos chegados, pois, a um dos terrenos
metodológicos em que a arte jurídica, de timbre
dialético, mais pode brilhar, não tanto pela verve,
como pela lógica.
Seria muito importante que todos os aplicadores do
Direito, dos mais altos magistrados aos burocratas de
guichet, soubessem bem estes argumentos e os
aplicassem. Frequentemente se cometem erros e
injustiças pela sua ignorância.
Eis alguns argumentos, a usar com cuidado e arte:

A pari — identidade de razão: É um pouco o sentido


da frase anch’io son pittore. Por exemplo: se F pode,
porque não poderei eu, que estou em iguais
circunstâncias?
A fortiori — maioria de razão: se F pode, e tem menor
títu- lo que eu, porque não hei de eu também poder (já
que tenho maior/ melhor título)?
A maiori ad minus — Quem (a lei, a ordem jurídica, o
Direito) permite o mais (o mais gravoso, o mais nocivo,
o mais importante, o mais complexo, etc.) também
permite o menos. O que implica o seu contrário: a
proibição do mais não implica a proibição do menos
(pela utilização do argumento a contrario). Isto significa
que quem pode vender um imóvel também pode
hipotecá-lo, ou arrendá-lo. Mas que a proibição de
vender, só por si, pode não significar necessariamente a

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proibição de hipoteca ou arrendamento.


A minori ad maius — Quem proíbe o menos também
proíbe o mais. O que tem igualmente, a contrario, como
consequência que quem permite o menos não permite o
mais. Há dois grandes canteiros de relva que se
espraiam no Jardim do Luxemburgo, em frente ao
Senado francês. Eles podem servir para explicitar à
maravilha este caso. Um (o A) tem um letreiro que diz: é
proibido pisar a relva. O outro (o B) diz que tal é
permitido. Se é proibido pisar a relva (no A) também é
proibido lançar-lhe fogo. Mas se é permitido pisá-la (no
B), isso
não quer dizer que a piromania aí seja tolerada.
A contrario [sensu] — Em princípio, usa-se para
extrapolar de um caso excepcional (ius singulare) a
norma geral, que deve ser contrária. Mas
correntemente designa todo o raciocínio de in- versão
de soluções (qui dicit de uno negai de altero),
designadamente quando, a partir de uma enumeração
fechada, taxativa, de numerus clausus, se podem
retirar, por nela não caberem, os casos que, ali não
estando presentes, hão de ter diversa tutela ou
qualificação. Assim, logo quando no art.º 1.º, 1 C.C. se
afirma que “São fontes imediatas de direito as leis e as
normas corporativas”, ficamos a saber, a contrario
sensu, que as restantes fontes, designadamente as
constantes dos art.ºs 2.º a 4.º C.C. (integradas
também no capítulo I “Fontes de Direito” — e
invocamos assim o elemento sistemático), têm de ser
consideradas fontes mediatas.
A silentio — Cf. argumentos ubi lex non distinguet... e
ubi lex voluit, dixit..., a que o princípio praticamente se
reconduz.

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Ab eodem — Estamos perante um argumento de


validação dos atos que, não respeitando a forma legal,
seriam feridos de nulidade, mas que, pela sua
conclusividade, não deixam dúvidas sobre os elementos
em falta. Um documento (normalmente doações ou
testamentos) que necessite da data completa, datado
apenas de “Dia de Páscoa de 2019”, ou um documento
que exija assinatura e tenha apenas rubrica, seguida do
selo de armas do seu nobre portador, ou do título
honorífico e da data, etc.. Enfim, sempre que não deixe
dúvidas o contexto, prescindir-se-ia do texto, mesmo
que taxativamente exigido pela lei.
As máximas têm não apenas uma função lógico-
dedutiva e criadora fulcral, como ainda constituem
argumentos de vulto no debate dialético, enriquecendo
e elevando o discurso, porquanto introduzem uma
generalização, não formal e

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tempo,
Lex posterior derogat priori — A lei ulterior derroga a
anterior.
Exceptio est strictissimae interpretationis — As
exceções devem interpretar-se restritivamente. Ou,
pelo menos, não extensivamente. Já vimos supra
alguns problemas desta máxima, designadamente à
luz do art. 11.º CC.
Quod abundat non viciat /nocet — O que é supérfluo
(e até erróneo, para além do essencial) não
prejudica o essencial, que se mantém. Por isso
existe o princípio da redução dos negócios jurídicos.
E, embora seja um conhecidíssimo princípio de
Direito Penal, tem pleno cabimento em qualquer ramo
de direito o princípio do In dubio pro reo — na dúvida,
julga-se a favor do demandado, daquele a quem a
Justiça (ou o vizinho) demanda em Justiça. Do mesmo
modo,
In dubio favores sunt amplianãi et odiosa
restringenda: na dúvida, devem-se preferir as
interpretações beneficiadoras e restrin- gir as
prejudiciais.
In dubio melior est condido possidentis — Porque o
Direito não é o primeiro repartidor das coisas, mas
aceita (em princípio) a distribuição social, presume-se
que o possuidor é proprietário, e procura-se que tudo
fique como está, salvo melhor prova. É o que em sede
de Administração se designa pelo princípio Quietta non
movere. E na mesma senda de não subverter o mundo,
se presume que o que foi feito (contrato, testamento,
etc. — até a lei) o foi bem. Há presunções que, no geral,

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

operam de forma “conservadora”, que visam a paz e a


segurança, ainda que tal não seja justo – mas isso se
verá depois, com outros instrumentos:
In dubio standum estpro eo, pro qua statpraesumptio
— Na dúvida, decide-se a favor do beneficiário da
presunção já estabelecida. Quod non est in actis/ textis
non est in mundo — O que não consta das peças
processuais (ou nos textos — nas leis) não existe no
Mundo. Sabemos como a verdade formal a que este
brocardo pode conduzir é nefasta. Ele é, afinal, muito
semelhante ao “Não sei o que é o Direito Civil, só
ensino o Código Napoleão” legalista). Porém, há regras
de restrição do dito e do dizível, do alegado e do
alegável que funcionam a favor da segurança, da
certeza, e até da Justiça.
Estas máximas contêm todas uma enorme
sabedoria, que é feita essencialmente de comedimento,
de prudência. Podem agrupar-se segundo vários pontos
de vista. Todavia, parece-nos que todas deixam
transparecer um princípio de garantia dos sujeitos
implicados (v.g. in dubio...) e de respeito pelos textos
(ambos os casos de Ubi lex...), uma lógica
essencialmente restritiva, minimalista (In obscuris...).
Quer dizer: uma conceção do Direito não conquistadora
e conformadora, entendendo-o embora como plenitude
(dentro do seu campo). Um campo porém a definir pelos
textos, que também são garantia (Quod non est... ou o
conhecido nullum crimen...).

10.Hermenêutica no Código Civil


Ao longo desta síntese, fomos já deparando com
diversas normas expressamente votadas à regulação
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da hermenêutica das normas. O círculo vicioso do


império da lei assim o quer: é o Código que diz como
se interpreta o Código. E mais: é o Código Civil,
hierarquicamente subordinado à Constituição, que
contém, pelo menos por razões históricas e talvez de
segurança jurídica, as normas interpretativas
aplicáveis à própria Constituição.
Não fazendo fincapé na desadequação sistemática
da localização deste corpo normativo, até porque
concedendo à razão pragmática, e à tradição, sempre
diremos, porém, que todas as normas do Código Civil,
mesmo as materialmente constitucionais sobre
interpretação (e fontes, por exemplo) se subordinam,
obviamente, ao texto constitucional. E de acordo com
os princípios de interpretação holística constitucional é
óbvio que estas normas do Código Civil têm que se
adequar à “mensagem global” ou ao “sistema interno
unitário” da Constituição. Também se lhe pode chamar
“programa constitucional”.
Localizada a questão, cumpre apenas recapitular,
sistematizando. As normas (ou seus sucedâneos ou
supletivos) são as que são consideradas no capítulo
das fontes (art.ºs 1.º a 4.º), essencialmente a lei (art.º
1”, 1), cujo critério de definição é essencialmente
orgânico (proceder de quem de Direito — ou, na
verdade, “de poder” — art.º 1.º, 2; entrada em vigor
após publicação no jornal oficial, e vacatio legis,
cessação da vigência com base em critérios apenas
formais-legais — art.º 5.º e 7.º). Todas as demais
fontes (assentos, art.º 2.a, usos, art.º 3.º e equidade,
art.º 4.º) têm aplicação muito limitada (bem como a
subespécie da lei em sentido latíssimo, as normas
corporativas — art.º 1.º, 3), e são consideradas

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mediatas (art.º 1.º, 1, a contrario). Os assentos foram


mesmo parcialmente considerados inconstitucionais.
Estas normas sobre fontes são pano de fundo das
propriamente interpretativas, as quais são
compagináveis em alguns princípios, aparentemente
muito duros e positivistas:

Ignorantia legis non excusat — a ignorância da lei


não justifica o seu não cumprimento nem exime de
sanções (art.º 6.º);
Dura lex, sed lex — O dever de obediência à lei não
pode ser afastado sob pretexto de injustiça ou
imoralidade do conteúdo da mesma (art.º 8.º, 2 C.C.).
Proibição do non liquet — O juiz tem de julgar, não
podendo alegar a obscuridade da lei ou dos factos
(art.º 8.º, 1 C.C.).
O art.º 9.º, consagrando uma visão matizada da
interpretação (n.º 1) e permitindo alguma interpretação
interventiva, embora sem fraude aos textos (n.º 2 e 3)
atenua consideravelmente a rigidez do conjunto. As
normas de integração (especialmente o art.º 10.º, 3 in
fine) remetendo, como veremos, para o espírito do
sistema, e o conjunto da ordem jurídica, (de uma forma
geral, a começar pelo próprio C.C.), acolhendo na
prática bom número dos princípios de Justiça
universalmente aceites, temperam o conjunto, no qual o
art.º 8.º, 2 C.C. acaba por constituir um tanto uma
relíquia legalista, embora compreendamos que não
poderia ser simples uma solução alternativa no quadro
de um comando legal.
O Código Civil também trata de outras dimensões da
que Hermenêutica, nomeadamente da aplicação das
leis no tempo (art.º 12.º et sq.) e no espaço (art.º 14.º et
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sq.), que não trataremos aqui brevitatis causa.

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