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FERNANDA FRIZZO BRAGATO

(Editora)

O CONTEÚDO
JURÍDICO DOS
DIREITOS
HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS
INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS
© 2022 Defensoria Pública da União.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C761
O conteúdo jurídico dos direitos humanos: direitos civis e políticos nos instrumentos
internacionais [recurso eletrônico] / Fernanda Frizzo Bragato (Editora) – Brasília: ENADPU, 2022.
736 p., il.
Publicação em PDF (106 MB)
e- ISBN 978-85-671332-07-5
DOI: https://doi.org/10.46901/DIDH.01

1. Direitos humanos (direito internacional público) 2. Tratados internacio-


nais 3. Proteção dos direitos humanos 4. Direito civil 5. Direito político 6. Direito das minorias I.
Bragato, Fernanda Frizzo (Ed.)

CDU 341.231.14
CDDir 341.1119

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o ponto de vista da Defensoria Pública da União (DPU)
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CADH - Convenção Americana de Direitos Humanos


CDC - Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças
CDH - Comitê de Direitos Humanos da ONU
CDPD - Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
CEDAW - Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
CEJIL - Centro de Justiça de Direito Internacional
CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CIM - Comissão Interamericana de Mulheres
CLADEM - Comissão Latino Americana de defesa dos Direitos das Mulheres
CNU - Carta das Nações Unidas
Convenção de Belém do Pará - Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher
Corte IDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos
CRFB - Constituição da República Federativa do Brasil
CSW - Comissão sobre o Estatuto Jurídico e Social da Mulheres
DADDH - Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem
DIDH - Direito Internacional dos Direitos Humanos
DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos
ECOSOC - Comitê Econômico e Social
EDH - Educação em Direitos Humanos
ETN - Empresa Transnacional
ODS5 - Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5
OEA - Organização dos Estados Americanos
OIT - Organização Internacional do Trabalho
ONU - Organização das Nações Unidas
PIDCP - Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
PIDESC - Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

SUMÁRIO
Fernanda Frizzo Bragato (ed.)

APRESENTAÇÃO
César de Oliveira Gomes......................................................................................................................................................................... 09
PREFÁCIO
Flávia Piovesan................................................................................................................................................................................................ 10
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Fernanda Frizzo Bragato............................................................................................................................................................................ 12
1. POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS
Fernanda Frizzo Bragato............................................................................................................................................................................ 14
2. SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: ASPECTOS GERAIS
Gabriel Pedro Moreira Damasceno.................................................................................................................................................... 39
2.1. SISTEMAS GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Gabriel Pedro Moreira Damasceno .......................................................................................................................................... 49
2.2. SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Raysa Antônia Alves Alves............................................................................................................................................................... 55
3. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE: REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA
Gilberto Schäfer e Jesus Tupã Silveira Gomes............................................................................................................................. 79
4. DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS
Alex Sandro da Silveira Filho.................................................................................................................................................................. 98
5. DIREITO AO RECURSO EFETIVO
Aline Andrighetto....................................................................................................................................................................................... 120
6. DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS
Lara Santos Zangerolame Taroco...................................................................................................................................................... 140
7. DIREITO À VIDA
Natália Caye Batalha Boeira................................................................................................................................................................. 166
8. DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL
Francine Oliveira Tassoni, Lais Nardon Martins e Diovanna Vitória Fritsch.............................................................. 197
9. DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS DIREITOS HUMANOS INTERNACIO-
NAIS: ASPECTOS GERAIS
Roger Raupp Rios...................................................................................................................................................................................... 227
10. DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Larissa de Oliveira Elsner....................................................................................................................................................................... 247
11. DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES
Luciane Toss................................................................................................................................................................................................. 269
12. DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES
Natalia Martinuzzi Castilho................................................................................................................................................................. 300
13. DIREITOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES
Vitória Volcato da Costa......................................................................................................................................................................... 321
14. PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL
César de Oliveira Gomes....................................................................................................................................................................... 338
15. PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+
Alice Hertzog Resadori........................................................................................................................................................................... 368
16. DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO
Fernanda Frizzo Bragato, Roger Raupp Rios e Pedro Lucas Faller................................................................................. 385
17. DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Bruna Marques da Silva.......................................................................................................................................................................... 405
18. DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO
Marcelo Andrade de Azambuja......................................................................................................................................................... 440
19. DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL
Guilherme Carneiro de Rezende...................................................................................................................................................... 468
20. PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO
Rafael Selicani Teixeira........................................................................................................................................................................... 493
21. DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO
Marina de Almeida Rosa......................................................................................................................................................................... 515
22. DIREITOS POLÍTICOS
Breno de Azevedo Barros e Breno Baía Magalhães ............................................................................................................... 565
23. DIREITO AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Luana Marina dos Santos e Gabriela Milani Pinheiro............................................................................................................ 588
24. DIREITO À PROPRIEDADE
Karina Macedo Gomes Fernandes e Giovana Lima Michelon......................................................................................... 604
25. DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS
Lais Nardon Martins, Dailor Sartori Junior e Gabriela da Cunha Thewes................................................................... 629
26. DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
Jaqueline Deuner.......................................................................................................................................................................................... 691
27. O GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL E INTERNO BRASILEIRO
Jocelyn Getgen Kestenbaum................................................................................................................................................................. 712

NOTAS BIOGRÁFICAS DOS (AS) AUTORES (AS)...................................................................................................................... 729


APRESENTAÇÃO

O constitucionalismo que emerge a partir da segunda metade do Século XX tem na dignidade da pessoa
humana o seu principal fundamento. Os princípios da igualdade e da não-discriminação tornam-se os
pilares de uma construção que direciona o Direito Internacional dos Direitos Humanos para um hori-
zonte emancipatório. A ideia de diversidade e igual dignidade entre todos os seres humanos estruturam
os marcos normativos internacionais consolidados ao longo dos últimos setenta anos.
Nessa perspectiva, as instituições jurídicas adquirem notável protagonismo. No Estado Democrático
de Direito, as funções essenciais à justiça exercem o papel de guardiãs da democracia e dos direitos
humanos. Não por acaso, Antoine Garapon nos recorda de que é por meio do Direito que o cidadão das
democracias modernas exerce a sua ação política. O teórico francês também enfatiza que estabelecer
uma complementariedade entre justiça e democracia passa a ser o grande desafio1. Herrera Flores,
por outro lado, nos ensina que os direitos humanos decorrem sempre de uma busca pela dignidade
humana, por meio de um sentido político forte de liberdade. 2
Esse é o momento no qual convidamos a comunidade jurídica, acadêmica, bem como a sociedade civil,
a refletir sobre o papel da Defensoria Pública brasileira na promoção dos direitos humanos, função
atribuída à Instituição por meio da Emenda Constitucional nº 80/2014. O cumprimento dessa missão
demanda a produção de estranhamentos que sinalizem criticamente o papel do Direito na manu-
tenção de assimetrias de poder. Nesse mesmo enfoque, o movimento de aproximação do Direito com
a justiça espelha um caminho maduro para a efetivação dos direitos humanos por parte das instituições
públicas brasileiras.
Esses são os impulsos teóricos que têm intensificado os movimentos de aproximação entre Escola
Nacional da Defensoria Pública da União e comunidade acadêmica. A promoção dos direitos humanos
deve estar amparada pela legitimidade que emerge do diálogo permanente entre instituições jurídicas
e sociedade civil.
É em razão disso que, com imensa alegria e satisfação, apresentamos, em parceria com o Núcleo de
Direitos Humanos da Unisinos, a obra coletiva “O Conteúdo Jurídico dos Direitos Humanos: Direitos
Civis e Políticos nos Tratados Internacionais”. O livro reflete esse estado de coisas que nos mobiliza a
pensar os direitos humanos a partir de uma construção coletiva.
Nesse sentido, registramos, na pessoa da Profª Fernanda Frizzo Bragato, o nosso agradecimento a todas
as pesquisadoras e pesquisadores integrantes do NDH-Unisinos pela oportunidade do sonho compar-
tilhado. Afinal, como diria o inesquecível Fernando Pessoa, “mudem-me os deuses os sonhos, mas não
o dom de sonhar”.
César de Oliveira Gomes
Diretor-Geral da Escola Nacional da Defensoria Pública da União

1
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad.: Maria Luíza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 45-46
2
FLORES, Joaquim Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Trad.: Carlos Roberto Diogo Garcia; Antônio Henrique Graciano Su-
xberger; Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 214.

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O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

PREFÁCIO

É com profunda alegria, entusiasmo e, sobretudo, esperança que aceitei o honroso convite para prefa-
ciar esta obra coletiva.
Fruto da frutífera cooperação entre a Escola Nacional da Defensoria Pública da União (ENADPU), sob a
visionária liderança de César de Oliveira Gomes, e do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos (NDH),
coordenado pela competente professora Fernanda Frizzo Bragato, o livro ainda contou com a querida
amiga Isabel Penido na primorosa coordenação dos trabalhos de revisão do texto.
O resultado desta inspiradora cooperação, aliança e sinergia em prol da promoção dos direitos humanos
está nesta qualificada obra coletiva que oferece refinada contribuição ao conteúdo jurídico dos direitos
humanos, com especial destaque aos direitos civis e políticos nos tratados internacionais.
Ao adotar como ponto de partida um detido mergulho analítico na ressignificação histórica dos direitos
humanos, a obra prossegue iluminando os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos,
com ênfase no sistema universal e interamericano, em seus aspectos gerais.
Sob a perspectiva multinível, enfoca o controle de convencionalidade lançando reflexões para uma
práxis brasileira pautada nos diálogos jurisdicionais e no princípio “pro persona”.
À luz deste paradigma jurídico emancipatório, a obra avança no estudo de direitos civis e políticos,
compreendendo a cuidadosa análise jurídica dos direitos à vida, à integridade pessoal, à proteção
contra a escravidão, o trabalho forçado e servidão, ao reconhecimento da personalidade jurídica, às
garantias judiciais, ao recurso efetivo, à liberdade de pensamento, consciência e religião, à liberdade de
expressão, à liberdade de reunião e de associação, à liberdade e à segurança pessoal, à nacionalidade,
circulação e residência, asilo e refúgio, à propriedade, aos direitos políticos,
direitos humanos e empresas, bem como do direito à educação e à educação em direitos humanos. Além
de examinar o conteúdo jurídico dos destacados direitos civis e políticos, a obra confere especial rele-
vância à análise do direito à igualdade e não discriminação, como princípio geral dos direitos humanos,
bem como condição e pressuposto ao pleno exercício dos direitos, desenvolvendo o estudo dos direitos
das mulheres, das pessoas com deficiência, das crianças e adolescentes, das pessoas LGBTIQIA+, dos
trabalhadores migrantes, da proteção contra a discriminação racial e do combate ao genocídio.
O pleno exercício dos direitos humanos está condicionado à emergência de um novo paradigma
jurídico que tenha por centralidade a absoluta prevalência da dignidade humana, no marco de um
pluriverso normativo a abarcar as arenas global, regional e local, suas interações, diálogos, impactos e
empréstimos, por meio de uma permeabilidade jurídica fomentada por uma hermenêutica cosmopo-
lita radicada no princípio pro persona.
Os processos de internacionalização dos direitos humanos, humanização do Direito Internacional,
internacionalização do Direito Constitucional e constitucionalização do Direito Internacional, em sua
dinâmica, passam a pavimentar este novo paradigma jurídico, a fomentar a presente obra, em todas
as suas dimensões.
Além de novos marcos normativos e renovadas políticas públicas, a efetividade dos direitos humanos
requer profunda transformação cultural, por meio de novos conceitos, doutrinas, visões e interpre-
tações jurídicas.

10
PREFÁCIO

Esta é a maior contribuição desta qualificada obra coletiva, a nutrir e a fortalecer a emergência da racio-
nalidade emancipatória dos direitos humanos na doutrina jurídica, a partir do enfoque dos direitos civis
e políticos e de seu conteúdo jurídico, à luz do princípio da igualdade e não discriminação.
Ao enriquecer a doutrina jurídica e o debate público, esta obra contribui para a mudança cultural,
impulsionada pelo poder transformador das idéias e pela absoluta prevalência da dignidade humana ao
celebrar o valor infinito de cada pessoa, livre e igual, em dignidade, direitos e respeito.

Flávia Piovesan
Procuradora do Estado de São Paulo. Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC-SP;
Professora do Programas de Pós Graduação da PUC-SP; visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law
School (1995 e 2000); visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005); visiting fellow do
Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007; 2008; 2015; 2016; 2017;
2018; 2019; 2021; e 2022); Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Institute (Heidel-
berg – 2009-2014); e Lemman visiting scholar do David Rockefeller Center for Latin America Studies da Harvard
University (2018). Foi membro da UN High Level Task force for the implementatiton of the right to development e
do OAS Working Group para o monitoramento do Protocolo de San Salvador em matéria de direitos econômicos,
sociais e culturais. Foi membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2018 a 2021) e ex Vice Presidente
da Comissão Interamericana (2020-2021). Atualmente é Coordenadora Científica da Unidade de Monitoramento e
Fiscalização das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Conselho Nacional de Justiça (UMF/CNJ)

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O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

NOTAS INTRODUTÓRIAS

Ora ensinados de forma abstrata, ora combatidos de forma ferrenha, ora defendidos com empenho,
o sentido dos direitos humanos transita de forma tão disputada quanto são as posições de valor a
seu respeito. O que sobra é uma generalizada incompreensão que impede o sistema de justiça de
desempenhar de forma adequada o seu papel de tutelar esses direitos. É no sentido de aprimorar a
aplicação desses direitos pelos profissionais incumbidos de sua proteção e garantia que este livro foi
pensado, elaborado e disponibilizado de forma gratuita à comunidade científica e profissional brasileira.
A intenção desse livro é contribuir para o amadurecimento da discussão e da aplicação dos direitos
humanos no Brasil, especialmente no área do litígio estratégico, que só se faz possível com profissio-
nais do Direito (advogados, juízes, promotores, procuradores, etc) conhecedores e aptos a aplicar uma
legislação em direitos humanos.
Especificamente, o objetivo deste livro é oferecer à comunidade científica e profissional não só do
Direito, mas de qualquer área que tenha os direitos humanos como foco e preocupação, acesso aos
“estândares internacionais” de direitos humanos civis e políticos aplicáveis ao Estado Brasileiro, compi-
lados em uma única obra. Tais estândares, ou seja, o conjunto de informes, relatórios, recomendações,
Declarações, Tratados Internacionais, opiniões consultivas e sentenças judiciais produzidos pelo sistema
internacional global (Organização das Nações Unidas) e o regional interamericano (Organização dos
Estados Americanos), compõem o corpus a partir do qual os capítulos foram elaborados, analisados a
partir de minuciosa revisão bibliográfica sobre o tema.
Como esta obra dedica-se às obrigações assumidas e que podem vincular o Estado Brasileiro, foram
analisados apenas os estândares originados nos sistemas global e regional interamericano. Porém,
quando pertinente, o livro também analisa e discute a legislação e as decisões judiciais domésticas à luz
do DIDH, e a título comparativo, aborda alguns estândares europeus e africanos.
Embora o livro trate da estrutura e do funcionamento dos sistemas internacionais de proteção dos
direitos humanos, trazendo em seus capítulos iniciais um panorama sobre o sistema global (Organi-
zação das Nações Unidas) e regional interamericano (Organização dos Estados Americanos), este não
é o seu foco principal. Porém, não há como tratar dos estândares internacionais de direitos humanos
sem que a audiência conheça e entenda as estruturas onde os mesmos são produzidos. Nesse sentido,
além do panorama presente neste livro, recomendamos que o tema seja aprofundado em livros dedi-
cados especificamente à estrutura e ao funcionamentos dos sistemas internacionais. Em nosso país,
há diversas obras importantes e de qualidade tratando especificamente dos sistemas internacionais de
proteção de direitos humanos, com destaque para Antonio Cançado Trindade, Flavia Piovesan, Melina
Fachin, o Manual de Direitos Humanos Internacionais da Escola do Ministério Público da União, André
de Carvalho Ramos e outros.
Os capítulos dedicados aos direitos civis e políticos em espécie seguem, via de regra, a mesma estru-
tura. Cada capítulo: a) inicia-se analisando as razões pelas quais o direito tutelado constitui um direito
humano e, em alguns casos, o percurso histórico desse direito; b) segue com a citação direta dos
dispositivos dos instrumentos internacionais e, quando for o caso, dos dispositivos normativos internos
brasileiros pertinentes; c) continua com a análise da regulação do direito material em questão no DIDH
(pelos diversos organismos internacionais responsáveis por sua aplicação e interpretação), o que pode
incluir abrangência da proteção, existência ou não de limites legais ao exercício do direito, conceitos
pertinentes, obrigações do Estado e demais especificidades.
Os direitos humanos atravessam todas as áreas do Direito e os casos internacionais bem demonstram
isso. Violações de direitos humanos podem surgir em casos que são tipicamente enquadrados no direito

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NOTAS INTRADOTÓRIAS

brasileiro como direito de família, direito administrativo, direito do trabalho, direito penal, responsabili-
dade civil do Estado, dentre outros. Por isso, os profissionais do Direito de todas carreiras poderão fazer
uso deste material de modo a qualificar sua atuação judicial e extrajudicial em qualquer área do Direito.
Este livro é o resultado de um projeto iniciado há vários anos. Desde 2009, a editora do livro é a profes-
sora responsável pela cadeira obrigatória “Direitos Humanos e América Latina” no curso de Direito da
UNISINOS. Ao longo dessa trajetória de preparação e lecionamento de aulas, foi coletado e analisado
material no campo do DIDH, que se tornou a principal referência de estudo para os(as) alunos(as).
As aulas produzidas a partir dessa pesquisa inspiraram este livro e foram a base utilizada em muitos
capítulos que o compõem.
Paralelamente às aulas de graduação, a editora desenvolve pesquisas no Programa de Pós-graduação
em Direito da UNISINOS, onde também responde pela disciplina de Direitos Humanos e coordena
o Núcleo de Direitos Humanos desde 2010, com grande envolvimento dos(as) orientandos(as) de
iniciação científica, mestrado e doutorado. Trata-se, em grande parte, de pesquisa aplicada em que
os(as) orientandos(as) engajam-se na produção de relatórios e petições para organismos internacionais
em defesa dos direitos de comunidades marginalizadas às quais prestam assistência por meio de orga-
nizações parceiras. Com isso, os(as) orientandos(as) têm adquirido conhecimentos sobre e aprendido
a acionar os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. As pesquisas realizadas têm
tido apoio de agências de fomento como CAPES, CNPq, Fapergs e Comissão Fulbright. Esse processo
de realização de pesquisa aplicada também foi decisivo para que este livro tenha se tornado possível.
A pesquisa teórica sobre história e fundamentação dos direitos humanos em perspectiva descolonial,
que é desenvolvida pela editora e seus(as) orientandos(as), foi decisiva para orientar a organização
deste livro e a forma como o grupo encara o DIDH. A introdução do livro resume a orientação filosófica
deste livro e mostra a forma como o DIDH pretende ser apresentado à audiência brasileira.
Essa caminhada que constitui os antecedentes do livro foi feita ao lado de muitos colaboradores cuja
participação materializou-se na escrita de cada um dos capítulos. Os autores são, em sua maioria, orien-
tados(as) e ex-orientados(as) de iniciação científica, mestrado e doutorado, mas também professores
pesquisadores parceiros que se somaram a essa iniciativa dada à grande expertise nos temas para os
quais foram convidados a escrever. Ao fim dessa caminhada, agregou-se a Escola Nacional da Defen-
soria Pública da União, na pessoa de seu Diretor, Dr. Cesar Oliveira Gomes, que viabilizou a publicação
da obra, e da Dra. Isabel Penido de Campos Machado e sua equipe, que gentil e atentamente revisaram
os capítulos que a compõem.

Fernanda Frizzo Bragato (ed.)

Pesquisadora Produtividade em Pesquisa do CNPq; Doutora em Direito pela Unisinos; Estágio de pós-doutoral no
Birkbeck College da Universidade de Londres; Professora do Programa de Pós-graduação em Direito e Coordenadora
do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.

13
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO


HISTÓRICO-FILOSÓFICA
DOS DIREITOS HUMANOS

Fernanda Frizzo Bragato

Direitos humanos são direitos cujo titular é todo e qualquer ser humano e que não exigem, para seu
gozo e exercício, nada além da pertença à espécie humana (e, em alguns casos, alguma capacidade
cognitiva ou cívica para exercê-los). Sobre isso, parece haver pouca divergência doutrinária. Para que
alguém invoque o seu direito à vida ou à liberdade de expressão, por exemplo, não é necessário ter assi-
nado um contrato, recebido uma herança ou pago um imposto. Não é necessário que se professe uma
determinada religião, que se tenha uma determinada orientação sexual ou que tenha a pele de uma
determinada cor. No entanto, quando os transportamos do texto para a realidade, vemos, com clareza,
que a forma como esses direitos são violados não respeita a regra da sua titularidade universal. Embora
sejam igualmente de todos, os direitos humanos são, na prática, respeitados e garantidos a poucos. Há
determinados seres humanos, vulnerabilizados em razão de sua condição social, econômica ou cultural,
ligada às diferenças que nos caracterizam como grupos sociais distintos, que sofrem com muito mais
constância e impunidade a violação de seus direitos. De modo que a proteção de grupos vulnerabili-
zados tem-se tornado não somente um desafio para o Direito, mas um espaço onde a temática dos
direitos humanos revela-se com mais força. É justamente onde os direitos humanos estão ausentes – na
realidade cotidiana dos grupos vulnerabilizados -, que mais se fala (ou se necessita) falar deles.
O presente livro compila e analisa um conjunto extenso de legislação e decisões judiciais e quasi-
-judiciais produzido por diferentes organismos internacionais de abrangência global (Organização
das Nações Unidas - ONU) e regional (Organização dos Estados Americanos - OEA), chamados de
estândares internacionais sobre direitos humanos, onde essa realidade de violação seletiva dos direitos
humanos se destaca. As raízes desse conjunto de normas remontam à segunda metade do século XX,
quando o Direito Internacional Público (DIP) deixou de regular apenas as relações e os conflitos entre
Estados, para estabelecer direitos básicos da pessoa humana - domínio até então reservado ao âmbito
doméstico -, e obrigações estatais de respeitar, garantir e proteger esses direitos.
Para os direitos humanos, o fim da II Guerra Mundial consubstancia o momento de uma nova fase que
se inicia com a criação da ONU, em 1945, e com a consequente promulgação da Declaração Universal
dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948. Nesse documento, os direitos humanos foram proclamados
universais em razão do reconhecimento da igual dignidade humana e dos valores que lhes dão
sentido. O artigo I da DUDH prescreve: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade
e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito
de fraternidade.”
A DUDH representou um marco para a concepção universalista dos direitos humanos e, com isso,
provocou profundas mudanças na conformação política dos Estados, impondo uma reformulação dos
tradicionais conceitos de soberania e de sujeito de direito. Como assinala Flávia Piovesan,1 o conceito
de soberania foi relativizado pela possibilidade de intervenções no plano nacional em prol da proteção
dos seres humanos, em consequência da aquisição de direitos e da condição de sujeitos de direito

1
PIOVESAN, Flávia. “A universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos: desafios e perspectivas”. In: BALDI, César Augusto (org.).
Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

14
internacional. A novidade da DUDH e da legislação internacional que a sucedeu residiu na afirmação
de que todo ser humano, pelo simples fato de o ser, possui direitos inalienáveis a serem respeitados por
todos e garantidos e protegidos pelos Estados.
Os estudiosos do tema concordam que o direito internacional dos direitos humanos (DIDH) nasce com
a criação da ONU, em 1945, e com a promulgação da DUDH em 1948, inaugurando a fase contempo-
rânea dos direitos humanos. Essa fase sucede fases anteriores que costumam ser identificadas nos
processos de formação histórica desses direitos na Europa e nos Estados Unidos: a fase das Declarações
liberais de direitos civis e políticos (Séc. XVII e XVIII) e a fase da constitucionalização e socialização
dos direitos (Séc. XIX e primeira metade do Séc. XX). 2 Como diz Rabosi, 3 “os direitos humanos são um
tema muito velho, mas desde 1948 constituem um grande tema.” Há um consenso, também, de que
esse processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos resulta de uma reação
da comunidade internacional às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, especial-
mente o Holocausto.4
Concordamos que este movimento tornou-se possível a partir de uma conjunção de condições propí-
cias geradas num momento de grande comoção da comunidade internacional diante de brutais atroci-
dades cometidas pelo regime nazista.
Porém, o fato de o DIDH ter se constituído no pós-guerra e em consequência direta dos seus escom-
bros não significa, a nosso ver, que as violações atrozes dos direitos humanos tenham sido as primeiras
ou as mais graves da história: o colonialismo é um longo fenômeno da modernidade europeia onde
se produziram atrocidades semelhantes, incluindo os seus motivos. Também não significa que a
história da afirmação dos direitos humanos na lei tenha se iniciado na Segunda Guerra, pois se trata
de um fenômeno que deita suas raízes nos primórdios da Modernidade. A história da afirmação dos
direitos humanos é um campo em disputa, embora amplamente dominado pela narrativa eurocêntrica,
consagrada na teoria das gerações de direitos humanos. São esses dois pontos que queremos discutir
nessa introdução.

1. OS ANTECEDENTES HISTÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS


CONTEMPORÂNEOS E A NARRATIVA EUROCÊNTRICA

É comum a literatura sobre o tema considerar uma verdade autoevidente que o DIDH (que se identifica
com a fase contemporânea dos direitos humanos) insere-se numa linha do tempo que tem como seus
antecedentes imediatos os movimentos políticos e filosóficos euroamericanos dos séculos XVII e XVIII
de feição caracteristicamente liberal-burguesa. Chandra Muzaffar explica que o significado conven-
cional dos direitos humanos implica uma ligação com os direitos individuais civis e políticos e que essa
equação é um produto do Iluminismo Europeu e da secularização do pensamento e da sociedade nos
últimos cento e cinquenta anos. 5

2
A literatura costuma classificar as fases históricas dos direitos humanos como “gerações” a partir do conteúdo dos direitos assegurados.
Norberto Bobbio popularizou essa versão em seu importante livro “A Era dos Direitos”.
3
RABOSSI, Eduardo. El fenómeno de los derechos humanos y la posibilidad de un nuevo paradigma teórico. Revista del Centro de Estu-
dios Constitucionales, Madrid, no. 3, pp. 323-344, 1989.
4
Idem.
5
MUZAFFAR, Chandra. From human rights to human dignity. In: VAN NESS, Peter. Debating Human Rights: critical essays from the
United States and Ásia. London: Routledge, 1999. p. 25

15
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Norberto Bobbio defende que os direitos humanos “nascem no início da era moderna, juntamente
com a concepção individualista de sociedade.”6 Da identificação dos “direitos do homem” com o jusna-
turalismo (moderno) e seu viés individualista, que caracterizam o liberalismo clássico, Bobbio procede
à constatação de que

“o caminho contínuo, ainda que várias vezes interrompido, da concepção individualista da socie-
dade procede lentamente, indo do reconhecimento dos direitos do cidadão de cada Estado até
o reconhecimento dos direitos do cidadão do mundo, cujo primeiro anúncio foi a Declaração
Universal dos Direitos do Homem.” 7

Heiner Bielefeldt segue a mesma linha de raciocínio e corrobora explicitamente a ligação dos direitos
humanos com pressupostos individualistas forjados na modernidade europeia e, baseado nesta
premissa, defende que é possível superar os impasses culturalistas no debate sobre os direitos humanos
apesar do “fato incontestável de seu surgimento na Europa e na América Norte e de sua ligação com
pressupostos individualistas e antropocêntricos”.8
Micheline Ishay defende a mesma ideia, mas sob outro ponto de vista, ao afirmar que uma sucessão
de circunstâncias favoráveis estimulou o crescimento do Ocidente e de sua capacidade para desen-
volver e difundir o moderno discurso dos direitos humanos. A autora refere-se explicitamente ao papel
privilegiado da Reforma, do nascimento da ciência, do crescimento do mercantilismo, da consolidação
do Estado-nação, das expedições marítimas e da emergência da revolucionária classe média no que
se refere ao desenvolvimento das demandas de direitos humanos nas revoluções inglesa, ameri-
cana e francesa.9
A mesma perspectiva do surgimento dos direitos humanos como produto eminentemente moderno
e ocidental é defendida por Jack Donnelly, ao afirmar que a modernidade está associada a uma dupla
circunstância sem a qual eles não teriam surgido: a emergência da economia de mercado e dos Esta-
dos-nação, aliada ao crescimento de reivindicações políticas por igualdade e tolerância.10
James Griffin fecha nossa lista de influentes autores com a seguinte afirmação: “a noção de direitos
humanos que emergiu no fim do Iluminismo – o que pode ser razoavelmente chamado de noção ilumi-
nista – é a noção que temos hoje. Não houve desenvolvimento teórico da ideia desde então”.11
A consolidação filosófica da concepção racional-individualista de “homem” e de sociedade coincide
justamente com os eventos inaugurais da positivação dos direitos humanos no Ocidente: a Declaração
de Direitos da Virgínia de 1776,12 mas principalmente, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do

6
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 2.
7
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997. P. 16
8
BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2000, p. 141.
9
ISHAY, Micheline R. The history of human rights: from ancient times to the globalization era. Berkeley: University of California Press,
2008. p. 69.
10
DONNELLY, Jack. Universal Human Rights in theory and practice. 2nd ed. Ithaca: Cornell University Press, 2003. p. 58.
11
GRIFFIN, James. On human rights. Oxford: Oxford University Press, 2008. P. 13.
12
A Declaração de Direitos da Virgínia inicia-se com o reconhecimento expresso de que “todos os seres humanos são, pela sua natureza,
igualmente livres e independentes, possuem direitos inatos, dos quais, ao entrarem em estado de sociedade, não podem, por meio de
nenhum tipo de pacto, privar nem despojar sua posteridade: nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e
possuir propriedade de bens, de procurar e obter a felicidade e a segurança”.

16
Cidadão de 1789.13 Essas Declarações são a expressão legal do projeto iluminista fundado na promessa
de emancipação do indivíduo frente à opressão política do Estado, então fortemente concentrado na
figura de um monarca.
Interessante notar que os direitos declarados inatos e invioláveis em ambas as Declarações – vida,
liberdade e propriedade, assegurados pelo igual tratamento da lei – resultaram das necessidades,
interesses e aspirações do indivíduo racional e da viabilização do projeto liberal-burguês de sociedade.
Mesmo que o contexto político das treze colônias britânicas da América do Norte, em 1776, diferisse do
contexto da França revolucionária, em 1789, as declarações coincidiam em sua nítida inspiração indi-
vidualista e propósitos burgueses e, com isso, foram fundamentais para a expansão capitalista, sacra-
lizando a propriedade e instituindo a livre iniciativa, por meio do reconhecimento de uma liberdade
quase ilimitada.14 Hannah Arendt15 observa que as declarações americanas e francesas representaram
movimentos de recuperação e defesa dos direitos de propriedade, porque liderados por proprietários
ainda desprovidos de poder político e basicamente porque lutavam por isso. Ellacuría compartilha da
mesma visão. Para o autor, estas Declarações

são fruto da luta de certos grupos, que se consideravam privados de algo que lhes pertencia,
porque já tinham a base material e a concomitante consciência para recuperar o que conside-
ravam que lhes era devido. Embora idealmente apresentados como direitos humanos, são direitos
limitados a um certo modo de ser homem (homens livres ingleses, homens brancos da boa cidade
da Virgínia, burgueses franceses, etc.). Tanto que nem mesmo atribuem esses direitos a quem vive
com eles (camponeses ingleses ou franceses, negros e escravos norte-americanos etc.), mesmo
que não lhes seja negado seu caráter humano.16

A tradição liberal moderna incorporada nas ditas Declarações parte dos direitos naturais do homem
formulados na teoria do contrato social. Esses direitos foram justificados no discurso político moderno
como uma exigência para a autonomia dos indivíduos contra o Estado e como uma reação ao contexto
histórico dos governos absolutistas europeus em tempos de expansão colonial-capitalista. Quando se
equiparam as noções de direitos humanos e direitos naturais do homem, tais como formulados pelos
jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII, justificam-se os direitos humanos como direitos naturais decor-
rentes de uma suposta natureza humana, que é a racionalidade.17 Como os direitos naturais derivam da
hipótese de um estado pré-social ou de natureza, a sua concepção antropológica fundante pressupõe
indivíduos autossuficientes que se bastam sozinhos e que precisam negociar suas vidas em sociedade
em nome de segurança para o exercício de suas liberdades. Os outros indivíduos são obstáculos que
limitam ou ameaçam o exercício da liberdade, direito natural por excelência, tal como expresso no art.
4º da Declaração Francesa.18

13
Com algumas diferenças textuais, a Declaração Francesa reproduz o texto norte-americano, afirmando que “os homens nascem e per-
manecem livres e iguais em direitos e as distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum” e, ainda, que “a finalidade de toda
associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Tais direitos são a liberdade, a propriedade, a segu-
rança e a resistência à opressão.”
14
Esses argumentos já foram trabalhados em texto anterior: BRAGATO, Fernanda F. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos huma-
nos: contribuições da descolonialidade.
15
ARENDT, H. Da revolução. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988. p. 145.
16
ELLACURÍA, Ignacio. “Historización de los derechos humanos desde los pueblos oprimidos y las mayorías populares”. in SENENT, Juan
Antonio. La lucha por la justicia Ellacuria. Universidad de Deusto, Bilbao, 2012.
17
RORTY, Richard. Human Rights, Rationality and Sentimentality. In: HEYDEN, Patrick. The Politics of Human Rights. Paragon House: 2001.
18
Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem
não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas
podem ser determinados pela lei.

17
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Sendo assim, o objetivo das Declarações liberais modernas não foi garantir direitos e uma vida digna
para todos os seres humanos, senão garantir o exercício de liberdades civis e políticas para grupos
sociais tolhidos pelas monarquias de então e interessados e capazes de expandir seu poder econômico.
As teorias mais influentes sobre a fundamentação dos direitos humanos, não importa se defendam
que estes direitos são naturais (jusnaturalismo), resultados de lutas históricas (historicismo), produtos
da vontade do legislador (positivismo) ou exigências morais,19 combinam fatos históricos e concep-
ções antropológico-filosóficas próprias do contexto europeu moderno, afirmando, de forma explícita
ou implícita, que os direitos humanos são um projeto moral, jurídico e político criado e realizado na
Modernidade Ocidental. Depois de o projeto ter sido suficientemente desenvolvido e amadurecido,
foi exportado ou transplantado para o resto do mundo. Como consequência, as origens dos direitos
humanos têm pouco ou nada a ver com a história e a racionalidade dos povos não-ocidentais ou
ocidentais periféricos. 20

2. O(S) OUTRO(S) LADO(S) DA QUESTÃO

Não se pode negar que a positivação de parte dos direitos humanos teve início e destaque nos contextos
inglês, norte-americano e francês, precisamente como decorrência das bem sucedidas reivindicações
e lutas liberais-burguesas. Porém, ao mesmo tempo em que a história moderna dos direitos humanos
convive com o florescimento intraeuropeu do reconhecimento legal dos direitos do homem (não da
mulher, dos negros, dos indígenas) por demandas de liberdade econômica e política, encobre as atro-
cidades do lado de fora, justificadas pela limitada concepção de humanidade que se projetou desde o
ideário racional-individualista. Observa Muzafar:

Enquanto a Europa construía o edifício dos direitos individuais dentro de suas próprias fronteiras,
destruía a pessoa humana em outras terras. Enquanto os direitos humanos expandiam-se entre
os povos brancos, o império europeu infligiu horríveis sofrimentos sobre os habitantes de cor do
planeta. A eliminação das populações nativas das Américas e da Australásia e a escravização de
milhões de africanos durante o comércio escravo europeu foram duas das maiores tragédias da
época colonial. De fato, a supressão de milhões de asiáticos em quase todas as partes do continente
durante os longos séculos de dominação colonial foi também outra colossal calamidade para os
direitos humanos. O colonialismo ocidental na Ásia, na Australásia, na África e na América Latina
representa a mais massiva e sistemática violação dos direitos humanos jamais vista na história21.

No contexto colonial, inúmeras foram as violações, os discursos coloniais usados para legitimá-las, os
debates em torno da defesa da humanidade dos colonizados e a luta por reconhecimento do direito
básico de existir, o que geralmente não conta na narrativa oficial dos direitos humanos contemporâ-

19
Para um panorama sobre quatro escolas de pensamento sobre os direitos humanos, ver: DEMBOUR, Marie-Bénédicte. What Are Human
Rights? Four Schools of Thought. Human Rights Quarterly, Volume 32, Number 1, February 2010, pp. 1-20
20
BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos: contribuições da descolonialidade. Revista Novos
Estudos Jurídicos, Itajai, v. 19, n. 1, p.201-230, jan-abr 2014.


21
But what is said is that while Europe built the edifice of the individual within its own borders, it destroyed the human person on other sho-
res. As human rights expanded among white people, European empires inflicted horrendous human wrongs upon the coloured inhabi-
tants of the planet. The elimination of the native populations of the Americas and Australasia and the enslavement of millions of Africans
during the European slave trade were two of the greatest human rights tragedies of the colonial epoch. Of course, the suppression of
millions of Asians in almost every part of the continent during the long centuries of colonial domination was also another colossal human
rights calamity. Western colonialism in Asia, Australasia, Africa and Latin America represents the most massive, systematic violation of
human rights ever known in history. MUZAFFAR, Chandra. From human rights to human dignity. In: VAN NESS, Peter. Debating human
rights: critical essays from the United States and Ásia. London: Routledge, 1999. p. 26.

18
neos É o caso da Revolução Haitiana, de 1804, que resultou no primeiro país independente do Caribe, a
primeira república negra e também o primeiro a abolir a escravidão. 22
Além desses encobrimentos, a história liberal-individualista dos contraditórios direitos naturais do
homem viu-se logo cedo confrontada com a crítica “socialista”. Nos primórdios do século XIX, teóricos
e revolucionários começaram a identificar que o âmbito de proteção das declarações liberais limita-
va-se aos sujeitos proprietários, enquanto os sujeitos trabalhadores seguiam privados de qualquer
direito, experimentando condições de vida cada vez mais precárias. Karl Marx historicizou os direitos
humanos, na acepção de Ignácio de Ellacuría, pois “desvelou a forma de adquirir direitos e discutiu
como o direito de todos se torna privilégio de poucos, pois apenas alguns contam com condições reais
para efetivar esses direitos.” 23 Ou seja, Marx mostrou que a origem desses direitos não era, de fato, a
condição humana, mas a condição de proprietário. Em sua obra da juventude, “A Questão Judaica”, o
autor chama a atenção de que

“os direitos humanos distinguem-se e são superiores aos direitos dos cidadãos (droits du citoyen),
em primeiro porque não se considera, como verdadeiro e autêntico, o homem enquanto cidadão,
senão enquanto burguês. Em segundo lugar, porque os direitos cidadãos são, em última análise,
meios, cujo fim é a vida da sociedade burguesa (garantia dos direitos do homem individual)”24.

O século XIX torna-se palco de novas lutas, agora de trabalhadores, agrupados na categoria de classe
social. Porém, até sua consolidação, no século XX, os direitos sociais (a condições dignas de trabalho,
saúde, educação e outros) não tinham qualquer expressão em face do sistema liberal das forças de
mercado dominantes. Havia, no máximo, políticas estatais destinadas a minimizar o ônus da pobreza
e a eximir o capitalismo da responsabilidade com os excluídos do mercado de trabalho. Essa postura
ligava-se (e ainda se liga) à concepção liberal de que medidas protetivas eram (são) coercitivas, ou
seja, afronta(va)m as liberdades e a condição cidadãs, transformando seus destinatários em membros
indigentes da sociedade e dependentes do Estado. 25 Contrariamente a essa visão, os direitos socioeco-
nômicos foram paulatinamente se consolidando como obrigações do Estado, sob o entendimento de
que não há liberdade possível onde faltam condições materiais ou garantias para exercê-la.
No fim do século XIX, embora a cidadania, nos termos propostos por Marshall, 26 tenha feito pouco para
reduzir as desigualdades, propiciou as condições para as políticas igualitárias do século XX. Os direitos
sociais assumiram, em relação ao Estado, um aspecto de ação que impactou na desigualdade social,
não apenas no sentido de eliminar o ônus da pobreza nos níveis mais baixos da população, ao menos

22
BUCK-MORSS, S. Hegel. Haiti, and universal history. USA: University of Pitssburgh Press, 2009; MOREL, M. A Revolução Haitiana e o
Brasil escravista: o que não deve ser dito. Jundiaí, SP: Paco, 2017.
23
Por historização, Ellacuría entendia: La historizacion consiste (a) en la verificacion praxica de la verdad-falsedad, justicia-injusticia, ajuste-
desajuste que se da del derecho proclamado; (b) en la constatacion de si el derecho proclamado sirve para la seguridad de unos pocos y
deja de ser efectivo para los mas; (c) en el examen de las condiciones reales, sin las cuales no tienen posibilidad de realidad los propositos
intencionales; (d) en la desideologizacion de los planteamientos idealistas, que en vez de anirpar a los cambios sustanciales, exigibles para
el cumplimiento ;.efectivo del derecho y no solo para la afirmacion de su posibilidad 0 desiderabilidad, convierten en obstaculo de los
mismos; (e) en la introduccion de la dimension tiempo para poder cuantificar y verificar cuando las proclamaciones ideales se pueden
convertir en realidades alcanzar, al menos, cierto grado aceptable de realizacion. ELLACURÍA, Ignacio. “Historización de los derechos
humanos desde los pueblos oprimidos y las mayorías populares”. in SENENT, Juan Antonio. La lucha por la justicia Ellacuria. Universidad
de Deusto, Bilbao, 2012. P. 79.
24
MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Editora Moraes, 1970. p. 41-46.
25
MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 71.
26
Marshall identificou a cidadania como um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade e os direitos sociais
como um elemento de cidadania que impactou as classes sociais, que são um sistema de referência de desigualdades. Os direitos sociais,
na visão do autor, objetivariam permitir a um maior número de sujeitos o acesso a direitos até então garantidos restritivamente, como é o
caso da propriedade. p. 75.

19
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

nos países europeus. 27 Os direitos sociais assumiram o aspecto de direitos dos indivíduos em relação à
coletividade e encontraram, no Estado, o seu sujeito devedor. São direitos que surgiram, como reivin-
dicações ao amplo acesso aos meios de vida e de trabalho, 28 mas que, desde a ascensão de governos
neoliberais, se encontram ameaçados. 29
As principais legislações dessa fase de socialização dos direitos humanos são a Constituição Mexicana
de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. A DUDH incorporou os direitos sociais, embora, como
destacam Glendon30 e Carozza, 31 a lembrança dos direitos sociais e econômicos fique sempre relegada
a um segundo plano.
São muitos e variados os movimentos de violação e de luta por direitos que desafiam a visão euro-
cêntrica unilinear entre a DUDH, em 1948, e as Declarações setecentistas inglesas e oitocentistas
norte-americana e francesa. Tanto a DUDH, quanto o DIDH que se estrutura a partir dela, vão muito
além dos direitos de liberdade e da concepção formal de igualdade inspirados pelo ideário liberal-in-
dividualista destas declarações, precisamente porque os fatos e demandas históricos que a motivaram
são muito diferentes.

3. UNIVERSALIDADE E INTERNACIONALIZAÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS NA DUDH

O princípio da mesma dignidade dos seres humanos afirmado na DUDH não significa que o DIDH tenha
abraçado uma concepção de igualdade formal, mas uma concepção material de igualdade que, junto
à não-discriminação, tornaram-se seus elementos fundamentais. 32 O princípio da dignidade de todos
os seres humanos não significa pressupor um conjunto de criaturas homogêneas e idênticas entre si,
como propõe a ideologia liberal. O conceito de igualdade do Direito moderno ocidental, equivalente
a idêntico tratamento de todos pela lei, é uma concepção essencial para refutar discriminações injus-
tificadas perante a lei, que se estabelecem a partir de privilégios, como o nascimento. Mas é também
insuficiente porque ignora a desigualdade entre pessoas e grupos e acaba por reforçá-la ainda mais.
Mas mais do que isso, o DIDH incorpora uma concepção de diversidade, partindo da existência concreta
de seres humanos diferentes entre si, e reconhece que essas diferenças são usadas como pretexto para
graduar e hierarquizar os seres humanos. É nesse sentido que a DUDH complementa o artigo I com a
seguinte prescrição em seu art. II.1:

“Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Decla-
ração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política
ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.

27
MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status, p. 79.
28
LAFER, Celso. A Reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988, p. 127.
29
NUNES, António José Avelãs. Neoliberalismo e direitos humanos. Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, 98, 423-
462. 2003. P. 424-427. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67596. Acesso em: 13 jun. 2022.
30
Idem, p. 27
31
Idem, p. 282
32
De acordo com o Comentário Geral 118, do Comitê de Direitos Humanos da ONU, em seu parágrafo 1, “Non-discrimination, together
with equality before the law and equal protection of the law without any discrimination, constitute a basic and general principle relating to
the protection of human rights.” (A não-discriminação, juntamente com a igualdade perante a lei e a igual proteção da lei, sem qualquer
tipo de discriminação, constitui um princípio básico e geral relativo à proteção dos direitos humanos). UNITED NATIONS. CCPR General
Comment No. 18: Non-discrimination. 11/10/1989.

20
Como trataremos com mais profundidade no último tópico, a vulnerabilização e o estigma que marcam
a existência da imensa maioria dos seres humanos decorrem justamente da sua pertença àqueles
grupos cujas identidades não formam parte do padrão dominante ditado pelo discurso racional-indivi-
dualista. Como aponta, com precisão Buchanan, a respeito do DIDH:

O compromisso de afirmar e proteger o igual status moral básico é talvez mais explícito na
inclusão de fortes direitos contra a discriminação em razão do sexo ou raça. Historicamente, a
discriminação contra as mulheres e pessoas de cor geralmente tem sido justificada com apelos
a crenças sobre supostas diferenças naturais, mas como marcas de inferioridade. Em particular,
a discriminação foi justificada com o argumento de que as mulheres ou pessoas de cor são natu-
ralmente menos racionais do que os homens ou brancos, contra a suposição de fundo de que a
racionalidade é um traço especialmente valioso que distingue os humanos dos chamados animais
inferiores. Em tal contexto, caracterizando determinadas classes de seres humanos como menos
racionais do que outros, por natureza, transmite-se uma mensagem de inferioridade, sugerindo
que eles são, em certo sentido, menos do que totalmente humanos. 33

Na fase contemporânea dos direitos humanos, os direitos humanos são reconhecidos a todos os seres
humanos, não porque todos sejam concretamente iguais, mas porque, nas suas diferenças, devem ser
tratados com a mesma consideração e respeito no acesso a bens básicos para uma vida digna. É isso
que confere aos direitos humanos a sua condição de universalidade e que representa seu maior desafio,
como veremos adiante.
À universalidade agrega-se outra característica da fase contemporânea, que é a internacionalização.
O processo de internacionalização dos direitos humanos vem ocorrendo de forma progressiva, não
sem percalços e obstáculos, desde a DUDH, com a promulgação de uma série de documentos interna-
cionais, como, dentre outros, Declarações, Convenções, decisões judiciais, recomendações, relatórios,
observações internacionais (o que, a propósito, será a base dos estudos deste livro).
Nesse corpus, é perceptível a forte relação entre violações sistemáticas de direitos humanos e o
estigma, a marginalização e a condição de subordinação em que se encontram as vítimas. De modo
que a igualdade, no DIDH, é um ponto de chegada e não um ponto de partida. 34 Isso é, a nosso ver, uma
novidade em relação à trajetória histórica dos direitos humanos anterior à Segunda Guerra, novidade
que foi catalisada por demandas que o Holocausto escancarou. A concepção de igualdade e não-discri-
minação do atual DIDH não existe nas declarações liberais modernas, a despeito do emprego de uma
linguagem aparentemente universalista e porque as condições e as demandas históricas eram outras.
Portanto, se há tantas descontinuidades entre os direitos humanos contemporâneos e a experiência
liberal-burguesa euroamericana dos séculos XVII e XVIII, torna-se plausível pensar que essas lacunas
encobrem histórias não contadas que nos faltam acessar e que podem abalar as verdades autoevi-
dentes sobre a gênese eurocentrada e o fundamento da proteção dos direitos humanos em uma
suposta racionalidade humana comum.

4. CRÍTICA À COMPREENSÃO EUROCÊNTRICA DOS


DIREITOS HUMANOS À LUZ DO COLONIALISMO

A nova fase e concepção teórica dos direitos humanos contemporâneos é uma reação da comunidade
internacional às atrocidades do regime nazista antes e durante a Segunda Guerra Mundial que, em
um processo de coisificação e animalização de determinados grupos humanos, foi responsável por

33
BUCHANAN, Allen. The heart of human rights. Oxford: Oxford University Press, 2013. P. 91.
34
FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

21
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

um genocídio planejado e executado em escala sem precedentes na história da humanidade. Porém,


durante os regimes coloniais, os impérios europeus praticaram incontáveis porém bem menos docu-
mentadas atrocidades contra as populações colonizadas, como massacres, extermínio, escravização,
remoção forçada, torturas, entre outras abomináveis práticas que lhes renderam um acúmulo de
capital nunca antes visto. Essa história de violações remonta aos primeiros eventos da colonização da
América, quando, a partir de 1515, o frei dominicano Bartolomé de Las Casas começou a questionar
oficialmente os métodos e as razões da conquista hispânica e defendeu a plena humanidade dos indí-
genas americanos.
Como observa Aimé Césaire, em seu Discurso sobre o colonialismo, de 1950, o que diferencia a Segunda
Guerra Mundial e o nazismo dos horrores coloniais é o local onde ocorreram e as vítimas que produziram:

Valeria a pena estudar, clinicamente, com detalhe, as formas de atuar de Hitler e do hitlerismo,
e revelar ao muito distinto, muito humanista, muito cristão burguês do século XX, que carrega
consigo um Hitler e que o ignora, que Hitler o habita, que Hitler é seu demônio, que, se o vitupera,
é por falta de lógica, e que no fundo o que não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra
o homem, não é a humilhação do homem em si, senão o crime contra o homem branco, é a humi-
lhação do homem branco, e haver aplicado na Europa procedimentos colonialistas que até então
concerniam apenas aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos negros da África. 35

Césaire propõe olhar o holocausto como a consagração de discursos e práticas de superioridade racial
que foram recorrentemente utilizadas pelas potências europeias em suas colônias para legitimar suas
práticas atrozes contra seres humanos reputados inferiores. Por exemplo, os próprios alemães na
Namíbia no início do século XX mantiveram campos de extermínio dos hererós36 e os estadunidenses
criaram leis no período de segregação racial institucionalizada que inspiraram os nazistas na elaboração
das leis raciais de Nuremberg. 37 Ocorre que, em função do lugar e das vítimas, essas atrocidades nunca
foram capazes de provocar reações emocionais favoráveis a uma resposta tal qual a criação do DIDH
a partir da DUDH em 1948. Foi o Holocausto praticado em solo europeu contra europeus que deu as
condições para a indignação contra a perversidade humana e alertou sobre os perigos do Estado como
agente ativo de extermínio de parte da sua população a partir do emprego de discursos discriminatórios
que, há muito, já sustentavam as práticas coloniais.
Defendemos, portanto, que a fase contemporânea - universalista e internacional - dos direitos humanos
surge como resposta aos eventos brutais da Segunda Guerra não porque estes tenham sido inéditos
mas porque produziram condições emocionais e racionais para mobilizar uma resposta da comuni-
dade internacional naquele momento. Além disso, a afirmação dos direitos humanos contemporâneos
remonta a uma trajetória histórica mais distante, dominada por uma narrativa eurocêntrica, e que por
isso mesmo tem pontos cegos a serem revelados, a fim de entendermos como chegamos até aqui.
Como adverte Pannikar, 38 a narrativa eurocêntrica dos direitos humanos pode limitar os direitos
humanos a artigo de exportação da cultura ocidental ao manter o entendimento de que esses direitos

35
CESAIRE, Aimé. Discurso sobre el colonialismo. Trad. Mara Viveros Vigoya, Juan Mari Madariaga e Beñat Baltza Álvarez. Madrid: Edicio-
nes Akal, 2006. P. 15.
36
THE GUARDIAN. Germany agrees to pay Namibia €1.1bn over historical Herero-Nama genocide. 28 maio 2021. Disponível em: https://
www.theguardian.com/world/2021/may/28/germany-agrees-to-pay-namibia-11bn-over-historical-herero-nama-genocide. Acesso em: 14
jun. 2022.
37
WHITMAN, James Q. Hitler’s American model. the United States and the making of Nazi race law. Princeton University Press, 2017.
38
PANIKKAR, Raimundo. Seria a noção de direitos humanos uma concepção universal? In: BALDI, César Augusto (org.). Direitos Humanos
na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. P. 224

22
só são factíveis sob condições como as vividas no Ocidente. Ignacio Ellacuría39 defendia a necessidade
de submeter o conceito de direitos humanos a uma historicização que atenda ao que define mais
negativamente à situação da maioria da humanidade, excluída de fato do gozo dos direitos humanos.
Isso porque, segundo o autor, em sua normatividade abstrata, os direitos humanos correm o perigo de
defender veladamente o adquirido ou o adquirível pelos mais fortes.
Um processo de historicização, nos termos de Ellacuria, 40 pode trazer à tona, de forma mais abrangente,
o processo real de surgimento dos direitos humanos. Um primeiro passo para essa historicização é
assumir o fato tão bem notado pelos autores descoloniais de que o colonialismo é a face obscura e
constitutiva da modernidade europeia.41 Como observa Barreto, a modernidade não pode ser identifi-
cada exclusivamente com a emancipação, pois a pilhagem e o genocídio foram realidades anteriores
à sua formação. Visto sob essa perspectiva, a crise da modernidade não surgiu com o Holocausto,
mas esteve presente desde seus primórdios, na Conquista da América. 42 Isso nos permite investigar
se teriam os sujeitos e grupos inferiorizados, violentados e expropriados contribuído de alguma forma
para a afirmação dos direitos humanos ao longo da história. E, nesse sentido, perguntar: é possível dizer
que a história dos direitos humanos é também a história das atrocidades e das lutas de resistência que
o contexto colonial produziu?
Woessner43 propõe que se faça um mapa diferente das fontes das noções de direitos humanos capaz de
demonstrar que o seu discurso também foi desenvolvido fora das fronteiras da Europa, entre os povos
colonizados ou no Terceiro Mundo. Rosillo Martinez defende que “é necessário realizar uma funda-
mentação que responda de maneira mais clara e direta à realidade da América Latina e, em geral, à do
Terceiro Mundo”.44 Isso porque uma teoria dominante que, segundo José-Manuel Barreto45, é o resul-
tado de uma particular perspectiva fundamentada no contexto histórico e geográfico do Ocidente,
apresenta-se como universal e objetiva, reclamando para si autoridade e legitimidade para falar sobre
o que significam os direitos humanos e relegando à invisibilidade a história das relações entre os
modernos impérios e as colônias do Terceiro Mundo.
Para Barreto, a tradição dos direitos humanos surgida no contexto do colonialismo incorpora eventos
como a Conquista da América e o processo mais amplo de colonização do mundo, bem como os movi-
mentos de resistência à violência e dominação imperialista; os movimentos antiescravistas; as lutas pela
independência travadas do Norte ao Sul da América no final do século XVIII e início do XIX e a expe-
riência singular da revolução de independência haitiana; a revolução mexicana e sua reforma agrária;
o processo de descolonização da África, Ásia, Caribe e Oriente Médio principalmente na segunda
metade do século XX; os Direitos Civis e os Movimentos Antiapartheid; a luta pelos direitos humanos

39
ELLACURÍA, Ignacio. Historización de los Derechos Humanos desde los Pueblos Oprimidos Y las Mayorias Populares. ECA: Estudios
Centroamericanos, El Salvador, n. 502, p. 589-596, 1990.
40
Idem.
41
MIGNOLO, Walter. The idea of Latin America. Oxford: Blackwell Publishing, 2008.
42
José-Manuel Barreto Decolonial Strategies and Dialogue in the Human Rights Field: A Manifesto (2012) 3(1) Transnational Legal Theory
1–29
43
WOESNER, Martin. Provincializing Human Rights? The Heideggerian Legacy from Charles Malik to Dipesh Chakrabarty. In: BARRETO,
José-Manuel. Introduction: Decolonial Strategies and Dialogue in the Human Rights Field. In: BARRETO, José-Manuel (ed.). Human rights
from a Third World Perspective. Critique, History and International Law. Cambridge Scholars Publishing, 2013. P. 65-101.
44
ROSILLO MARTINEZ, Alejandro. Fundamentación de derechos humanos desde América Latina. Itaca: Colonia del Mar, 2013. P. 18.
45
BARRETO, José-Manuel. Introduction: Decolonial Strategies and Dialogue in the Human Rights Field. In: BARRETO, José-Manuel (ed.).
Human rights from a Third World Perspective. Critique, History and International Law. Cambridge Scholars Publishing, 2013. P. 6.

23
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ao lado do Terceiro Mundo como reação aos regimes autoritários; e os movimentos contemporâneos
pró-indígenas, antiglobalização, antiguerra, ambientalistas e anticorporações. 46
O autor observa que admitir essa narrativa alternativa de luta por direitos implica dar visibilidade a
tantas personalidades significativas cujos nomes foram apagados da história dos direitos humanos,
como Vitória, Las Casas, Sepúlveda, Suárez, Antonio Vieira e Guamán Poma de Ayala; Elahuda Equiano
e Ottobah Qugoano; Jefferson, Toussaint L’Ouverture e Bolívar; Frederick Douglas, Soujurne Truth,
WEB du Bois, Martin Luther King, Malcolm X e Nelson Mandela; Gandhi, Fanon, Dalai Lama e Baxi;
Ariel Dorfman e Rigoberta Menchu.47 Propomos agregar a essa lista Mary Wollstonecraft e Olympe de
Gouges, sem corrermos o risco de sermos eurocêntricos.48
Todos estes eventos e personalidades são tão modernos quanto a Revolução Francesa, a Independência
Americana, John Locke ou Immanuel Kant. Todos eles têm em comum a resistência contra o abuso
de poder que produziu violências contra grupos reputados inferiores. Quando se diz que o discurso
colonial inferioriza grupos e sujeitos ao mesmo tempo em que afirma a supremacia do padrão cultural
ocidental, isso não significa que os grupos inferiorizados não tenham resistido e produzido lutas que
confluíram para o processo de afirmação histórica dos direitos humanos.
É possível olhar para a DUDH e o DIDH e propor uma compreensão diferente de sua gênese a partir
do resgate do legado das lutas contra a opressão de natureza colonial (sejam elas produzidas no colo-
nialismo ou pela lógica dos discursos desumanizantes de feição colonial). Para isso, é preciso ir mais
fundo no que se refere ao reconhecimento do papel da resistência ao colonialismo e aos seus discursos
desumanizantes para a afirmação dos direitos humanos no segundo pós-guerra. Barreto ensina que:

É fundamental estar mais atento às vozes que testemunharam as lutas contra a escravidão, a
dominação racial e o empreendimento colonial. Embora tenham sido articulados em termos de
humanidade e direitos naturais, geralmente são negligenciados como fontes válidas de inspiração
para os movimentos contemporâneos de direitos humanos e para a construção de uma teoria polí-
tica e jurídica abrangente, por causa, entre outras coisas, do míope eurocentrismo dos estudiosos
dos direitos humanos.49

5. VOZES PARA ALÉM DO OCIDENTE NO


PROCESSO DE ELABORAÇÃO DA DUDH

No sentido da advertência de Barreto e ao contrário do que se costuma apregoar, a DUDH foi construída
por várias mãos e o conhecimento aportado por delegações não-ocidentais na ONU, sejam orientais ou
periféricos à concepção ocidental (latino-americanos), não pode ser desconsiderado. Para Gómez Isa:

El contenido final de la Declaración constituye un delicado y sano equilibrio entre las diferentes
ideologías y concepciones de los derechos humanos y de la sociedad que existían en la época de

46
BARRETO, José-Manuel. Decolonial Strategies and Dialogue in the Human Rights Field: A Manifesto. Transnational Legal Theory 3(1),
2012, p. 1–29.

Idem.
47

48
No livro “Das tradições ortodoxas e heterodoxas dos Direitos Humanos: Uma Antologia”, editado por Vicente de Paulo Barretto, Fernanda
Frizzo Bragato e Walter Lemos (Ed. Lumen Juris, 2018), os organizadores resgataram e compilaram textos que explicam, legitimam ou
lançam luzes sobre os ideais, projetos e as lutas de sucessivas gerações de homens e mulheres para a construção de um sistema legal ga-
rantidor da liberdade, da igualdade e da justiça, provenientes tanto do Sul quanto do Norte Globais, do centro e das periferias, de homens
e mulheres, de brancos, negros, asiáticos e indígenas.
49
BARRETO, José-Manuel. Decolonial Strategies and Dialogue in the Human Rights Field: A Manifesto. Transnational Legal Theory 3(1),
2012, p. 1–29.

24
POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS

su redacción. Aunque es de justicia reconocer que en determinados pasajes de la Declaración se


observa indudablemente un influjo predominante de las tesis occidentales, el resultado final no
podemos decir que fuese una imposición de una ideología sobre la outra. 50

Compulsando os registros históricos, especialmente as colaborações para a construção do texto final da


Declaração Universal de 1948, alguns autores têm apontado a intensa, porém pouco conhecida, parti-
cipação de países fora do eixo europeu, como é o caso dos países latino-americanos. Neste sentido,
Gómez Isa refere que, apesar do vasto império colonial que ainda predominava e dos conflitos entre o
bloco socialista e o bloco capitalista, a Declaração contou com “aportaciones asimismo significativas de
países provinientes del ámbito latinoamericano”. 51
Esta tradição legal foi decisiva para determinar o protagonismo latino-americano na construção do
DIDH. Os principais episódios dessa atuação foram a mobilização da diplomacia dos países da região
latino-americana para a inclusão da proteção dos direitos humanos na Carta da ONU52 , em 1945, a
adoção, em 1948, da inédita Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (DADDH) no
âmbito da OEA e o apoio unânime, alguns meses após, à adoção da DUDH, pela Assembleia Geral
da ONU. Seu papel foi sentido, também, na influência direta sobre a decisão de incluir na Carta da
ONU, em 1945, a proteção dos direitos humanos e na própria redação do conteúdo da Declaração. A
intenção inicial, sobretudo do Panamá e do México, era incluir uma declaração de direitos já no corpo da
Carta da ONU, todavia foram as proposições menos audaciosas defendidas por Cuba e Uruguai as que
restaram exitosas. Vendo a impossibilidade de positivar os direitos humanos no texto da Carta, estes
países propuseram que, uma vez formada a ONU, a Assembleia Geral aprovasse, o mais rápido possível,
uma Declaração Universal de Direitos Humanos. 53
Glendon54 observa que, se dependesse dos três principais líderes mundiais da época em que a ONU
fora criada - Churchill, Roosevelt e Stalin -, a preocupação com os direitos humanos no momento da
elaboração da Carta não teria sido mais do que secundário. Felipe Gómez Isa55 pontua que a rejeição
das grandes potências à inclusão de um bill of rights no corpo da Carta da ONU deveu-se à limitação
de direitos humanos dos habitantes de seus próprios territórios. Enquanto os Estados Unidos conviviam
com uma severa política de segregação racial contra os negros, a União Soviética mantinham seus
Gulag e a França e Inglaterra desfrutavam de seus impérios coloniais na África e na Ásia. Graças à
delegação latino-americana que, numa época em que mundo ainda vivia sob o jugo do colonialismo,
formava a maior delegação atuando em bloco (vinte e um de cinquenta e um Estados), a preocupação
com os direitos humanos foi incluída na Carta da ONU. 56

50
ISA, Felipe Gómez. La Declaración Universal de Derechos Humanos: algunas reflexiones en torno a su génesis y a su contenido. In: LA
DECLARACIÓN UNIVERSAL DE DERECHOS HUMANOS EM SU CINCUENTA ANIVERSARIO. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999. p.
41.
51
ISA, Felipe Gómez. La Declaración Universal de Derechos Humanos: algunas reflexiones en torno a su génesis y a su contenido. In: LA
DECLARACIÓN UNIVERSAL DE DERECHOS HUMANOS EM SU CINCUENTA ANIVERSARIO. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999.
52
Artigo 1. Os propósitos das Nações Unidas são: 3. conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de
caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades funda-
mentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
53
ISA, Felipe Gómez. La Declaración Universal de Derechos Humanos: algunas reflexiones en torno a su génesis y a su contenido. In: LA
DECLARACIÓN UNIVERSAL DE DERECHOS HUMANOS EN SU CINCUENTA ANIVERSARIO. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999. p. 27.
54
GLENDON, Mary Ann. The Forgotten Crucible: The Latin American influence on the universal human rights idea. Harvard Human Rights
Journal, v. 16, p. 30, Spring, 2003.
55
ISA, Felipe Gómez. La Declaración Universal de Derechos Humanos: algunas reflexiones en torno a su génesis y a su contenido. In: La
Declaración Universal de Derechos Humanos em su cincuenta aniversario. Bilbao: Universidad de Deusto, 1999. p. 28.
56
CAROZZA, Paolo. From conquest to Constitutions: retrieving a Latin American tradition of the idea of human rights. Human Rights
Quarterly, Baltimore/USA, v. 25, n. 2, p. 286, 2003. Disponível em: https://scholarship.law.nd.edu/law_faculty_scholarship/581/. Acesso em
14Jun2022.

25
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A atuação latino-americana não ocorreu por acaso, na medida em que a proteção dos direitos humanos
em nível supranacional já vinha sendo uma prática entre as nações latino-americanas desde 1938,
quando a Conferência Interamericana (que precedeu a OEA) adotou a “Declaração em defesa dos
direitos humanos”, em seu oitavo encontro em Lima, no Peru. Além disso, antes da reunião em São Fran-
cisco, que redundou na criação da ONU, em 1945, a Conferência Interamericana, reunida no México,
decidiu postular a inclusão de uma declaração de direitos na Carta da ONU. Apesar dessa proposição ter
sido recebida com frieza pelas maiores potências mundiais da época, ela recebeu adesões da opinião
pública e, finalmente, foi adotada, não sob a forma de uma carta de direitos, mas através da previsão do
compromisso da ONU com a proteção dos direitos humanos em variados momentos da Carta, além da
previsão da criação de uma Comissão de Direitos Humanos. 57
Foi através dessa Comissão que se iniciaram os trabalhos de elaboração do que viria ser a DUDH da
ONU, de 1948. Liderada pelo canadense John Humphrey, a Comissão formada por representantes de
diversos países ao redor do mundo teve o trabalho de elaborar o seu texto, cuja versão final recebeu,
como principal aporte, o rascunho de Declaração proposto pelo Panamá, muito embora o Chile também
tivesse enviado sua proposta que acabou redundando no esboço da anterior Declaração Americana
de Direitos e Deveres do Homem. Tratava-se do mesmo esboço que fora inexitosamente elaborado
para figurar na Carta da ONU em 1945. Segundo a avaliação de Glendon, as propostas de redação
vindas da representação latino-americana consubstanciaram fontes primordiais para a Declaração em
razão da sua compatibilidade com o amplo espectro de culturas e filosofias representadas nas Nações
Unidas. Isso porque muitos elementos da tradição legal latino-americana contemplavam aspectos de
tradições não-ocidentais. 58 Em primeiro lugar, por enfatizar a importância da família e a ideia de que os
direitos são sujeitos a obrigações e a limitações. De fato, na consulta organizada por Jacques Maritain a
uma série de pensadores e escritores de nações membros da UNESCO, que formaram a Comissão da
UNESCO para as Bases Filosóficas dos Direitos do Homem, em 1947, é possível observar que Mahatma
Gandhi destacou justamente a dimensão do dever para a preservação do direito de todos:

Os direitos que se possa merecer e conservar procedem do dever bem cumprido. De tal modo que
só somos credores do direito à vida quando cumprimos o dever de cidadãos do mundo. Com essa
declaração fundamental, talvez seja fácil definir os deveres do homem e da mulher e relacionar
todos os direitos com algum dever correspondente que deve ser cumprido. Todo outro direito só
será uma usurpação pela qual não valerá a pena lutar. 59

Em segundo lugar, essa aceitação se deu porque tanto o esboço chileno quando o panamenho basea-
ram-se numa extensa pesquisa transnacional com o objetivo de encontrar aceitação de um amplo
grupo de países que nada tinham de homogêneo. E, por fim, porque foram os primeiros documentos a
demonstrar a tendência de combinar os direitos políticos e civis com os direitos sociais, econômicos e
culturais.60 Carozza sublinha que, sob a voz do chileno Hernan Santa Cruz, a América Latina tornou-se a
maior defensora da inclusão dos direitos econômicos e sociais nos esboços da DUDH.61 Por essa razão,
Glendon conclui que as contribuições latino-americanas, e não o modelo soviético ou norte-ame-

57
GLENDON, Mary Ann. The Forgotten Crucible: The Latin American influence on the universal human rights idea. Harvard Human Rights
Journal, v. 16, p. 31, Spring, 2003.
58
GLENDON, Mary Ann. The Forgotten Crucible: The Latin American influence on the universal human rights idea. Harvard Human Rights
Journal, v. 16, p. 32, Spring, 2003.
59
MARITAIN, Jacques. Acerca de la filosofía de los derechos del hombre. In: Los derechos del Hombre. Barcelona: Laia, 1976. p. 33.
60
GLENDON, Mary Ann. The Forgotten Crucible: The Latin American influence on the universal human rights idea. Harvard Human Rights
Journal, v. 16, p. 34, Spring, 2003.
61
CAROZZA, Paolo. From conquest to Constitutions: retrieving a Latin American tradition of the idea of human rights. Human Rights
Quarterly, Baltimore/USA, v. 25, n. 2, p. 286, 2003. Disponível em: https://scholarship.law.nd.edu/law_faculty_scholarship/581/. Acesso em:
14 jun. 2022.

26
POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS

ricano, foram auxílios cruciais para que os extremos do individualismo e do coletivismo não tenham
acarretado o fracasso da Declaração, propiciando a elaboração do principal documento internacional
de direitos humanos até hoje.62
Dentro desse marco político e filosófico, a Nona Conferência dos Estados Americanos que se reuniu
em Bogotá, na Colômbia, em 1948, não só proclamou a Carta da Organização dos Estados Americanos,
que contém uma série de provisões gerais acerca dos direitos humanos, mas também proclamou a
DADDH. O mais importante dos artigos da Carta da OEA a respeito do tema é o artigo 5(j) que declara
que a “Os Estados Americanos proclamam os direitos fundamentais dos indivíduos sem distinção de
raça, nacionalidade, credo ou sexo”. Mas a Carta não definiu os direitos mencionados no referido artigo
nem estabeleceu mecanismos para assegurar a sua implementação. A Declaração o fez em parte,
elencando os direitos e estatuindo que “a proteção internacional dos direitos do homem deve ser o
principal guia para a evolução do direito americano”, mas se absteve de instituir os mecanismos de
garantia. Isso porque, a exemplo da DUDH, entendeu-se que a Declaração não tinha força legal para
instituir obrigações contratuais para os Estados. Como observa Buerghental, os esforços para instituir
um quadro institucional de promoção dos direitos humanos dentro do sistema interamericano foram
inexistosos por muitos anos, mas, finalmente no ano de 1959, o quinto encontro de Ministros do Exterior
adotou resolução criando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que a partir de então tem
sido o principal órgão do sistema interamericano para a proteção e a promoção dos direitos humanos.63
De qualquer sorte, a DADDH precedeu em meses a DUDH, tendo, inclusive, lhe servido de modelo.
No momento da votação da DUDH, a delegação latino-americana fez várias emendas ao texto inicial,
largamente baseada na já promulgada Declaração Americana, tendo sido significativa a proposta de
inclusão, por parte da delegação dominicana, de menção especial à igualdade de direitos entre homens
e mulheres no preâmbulo do documento. Porém, outros importantes direitos constam hoje no texto da
Declaração Universal graças à atuação latino-americana. Este é o caso da proposta cubana de referência
às necessidades da família no artigo XXIII, quando se menciona o direito a um padrão de vida adequado,
da proposição mexicana para a previsão de recursos judiciais internos para os Tribunais nacionais no
caso de violação de direitos (para eles, chamado de recurso de amparo) constante do artigo VIII e,
ainda, para incluir a expressão “sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião” no artigo XVI,
relativo ao direito de casar e de constituir família.64 Carozza dimensiona a importância da delegação
latino-americana na elaboração da Declaração Universal ao referir que:

Houve, de fato, um fortíssimo e distinto compromisso latino-americano com a ideia de direitos


humanos em 1948. Primeiro, a região mostrou uma dedicação aos direitos humanos internacionais
num tempo em que, geralmente, a ideia ainda era vista com relutância ou mesmo com hostilidade
pela maioria dos Estados. As vozes latino-americanas ressoaram com a firme crença na universa-
lidade dos direitos e, especialmente, na igualdade de direitos entre raças e ambos os sexos. Seus
entendimento acerca dos direitos enfatizavam a dimensão social da pessoa humana, desde a
família às estruturas sociais e econômicas nas quais ela realiza a sua dignidade. E mesmo enquanto
defendiam os direitos, eles também procuraram equilibrá-los com a linguagem dos deveres65.

62
GLENDON, Mary Ann. The Forgotten Crucible: The Latin American influence on the universal human rights idea. Harvard Human Rights
Journal, v. 16, p. 39, Spring, 2003.
63
BUERGENTHAL, Thomas. The revised OAS charter and the protection of human rights. American Journal of International Law, v. 69, n.
04, p. 828, Oct. 1975. Disponível em: <http://www.jstor.org/ stable/2200626>. Acesso em: 11 fev. 2009.
64
CAROZZA, Paolo. From conquest to Constitutions: retrieving a Latin American tradition of the idea of human rights. Human Rights
Quarterly, Baltimore/USA, v. 25, n. 2, p. 286, 2003. Disponível em: https://scholarship.law.nd.edu/law_faculty_scholarship/581/. Acesso em
14Jun2022.
65
Idem, p. 288.

27
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Muitos dispositivos da DADDH repetem-se na DUDH, mas, diferentemente desta, aquela consagra
todo o Capítulo Segundo para a prescrição dos deveres, que se relacionam à necessidade de que cada
um contribua para o bem-estar coletivo e, em última análise, para o bem-estar do outro. Esses deveres
são, por exemplo, o de conviver com os demais, de maneira que todos e cada um possam formar e
desenvolver integralmente a sua personalidade, o de auxiliar, alimentar, educar e amparar os filhos
menores de idade, assim como o destes de honrar seus pais e de auxiliá-los nas situações de necessi-
dade. Além desses, estabelece-se o dever de trabalhar, de adquirir instrução básica, de obedecer às leis
e de cooperar com o Estado e com a coletividade na assistência e previdência sociais. Muitos outros,
necessários à realização dos direitos humanos, são atribuídos a cada indivíduo, superando, assim, a visão
eminentemente individualista do ocidente sobre esses direitos.
Apesar disso, o fato mais marcante é o pioneirismo da Declaração Americana em relação à existência
de um documento jurídico de cunho internacional com previsões gerais sobre direitos humanos. Isso
consolida a forte tradição que se criou na América Latina a respeito do tema e que remonta, como
vimos acima, ao período em que se estabeleceram os primeiros contatos com os europeus e basica-
mente por isso.66 Não por acaso, a primeira experiência histórica de aplicação do discurso dos direitos
humanos tomou lugar justamente nessas terras, com as denúncias da escravidão e do massacre dos
indígenas levadas a cabo por Bartolomé de Las Casas e com as sucessivas reivindicações baseadas no
direito natural de liberdade fundada na pertença de todos a uma humanidade comum.
Uma historicização mais abrangente do DIDH que permita relativizar a hegemonia euroamericana no
discurso dos direitos humanos é um projeto inacabado. Ela não se esgota com o resgate do papel deci-
sivo dos países latino-americanos para a promulgação da DUDH. É necessário prestar atenção também

66
Em seu estudo, Paolo Carozza não apenas reconhece o papel de destaque da tradição latino-americana dos direitos humanos, como
procura entender as razões para o não reconhecimento e o obscurecimento do seu papel na historiografia dos direitos humanos. Para
começar, as discussões de Bartolomé De Las Casas sobre a “dignidade” dos indígenas americanos durante o período da conquista hispâ-
nica da América constituiu, nas palavras do autor, o primeiro anúncio claro da moderna linguagem dos direitos humanos, que prenunciou
a dinâmica de como estes direitos se desenvolveriam no século XX. Com o advento da guerra fria, o debate dos direitos humanos con-
verteu-se no conflito ideológico entre a prevalência dos direitos civis e políticos de cunho liberal (capitalista), de um lado, e dos direitos
econômicos, sociais e culturais, de cunho socialista, de outro. De modo que até a comunidade internacional obter um consenso sobre a
indivisibilidade, a interdependência e a interrelação desses direitos, na Conferência de Viena, em 1993, o discurso sobre a natureza dos
direitos humanos esteve cindida entre esses dois polos de tensão. Ocorre que muito antes deste debate se estabelecer, a Constituição
Mexicana de 1917 já havia harmonizado, dentro da concepção da indivisibilidade, os direitos de cunho liberal com os de natureza social,
em uma demonstração de que a compreensão sobre os mesmos superava a dicotomia que marcou a era da guerra fria. Assim, como a
cultura latino-americana não representava a defesa de nenhum dos polos, sua posição ficou, durante esse período, esquecida. Além disso,
as lutas pela descolonização e contra o apartheid transferiram o foco das discussões para a África, onde questões urgentes a respeito da
discriminação racial foram levantadas. Paralelamente a isso, assistiu-se, na segunda metade do século XX, à ascensão de governos auto-
ritários por quase todos os países da América Latina, o que determinou não apenas o agravamento das violações aos direitos humanos,
mas restringiu sensivelmente as possibilidades de amadurecimento do debate no continente, em razão das restrições da liberdade de
expressão. Outro aspecto levantado por Carozza foi o crescimento do aparato financeiro e organizacional das organizações não-gover-
namentais na Europa e nos Estados Unidos da América, o que ajudou a consolidar a imagem dessas sociedades como as responsáveis
pela criação e pelo desenvolvimento do discurso dos direitos internacionalmente. Além disso, são vastíssimas as pesquisas nessa área,
nas Universidades europeias e norte-americanas, o que determina um domínio sobre o conteúdo da informação e do objeto de pesquisa.
Ademais, há uma concentração do debate sobre direitos humanos no problema do multiculturalismo, reforçando o seu tratamento como
produto ocidental e, por via de consequência, a contestação de seu significado e relevância para as culturas asiáticas e africanas. Ou seja,
o problema do multiculturalismo tensionado pelo suposto imperialismo ético configura uma pauta dominante para essa temática. Muito
provavelmente, isso se deva à reivindicação ocidental da paternidade desses direitos, como se esse discurso fosse o produto exclusivo da
racionalidade europeia. Em consequência desses fatores, a tradição política e filosófica dos povos periféricos tende a ser incorporada à
categoria de “outras sociedades ocidentais”, em razão da história colonial que a vincula à Europa, ou simplesmente ser ignorada.

28
POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS

no papel dos demais países no processo diplomático do pós-guerra, como fizeram Waltz,67 Arat68 e
Mitoma.69 Mais do que isso, estar disposto a entender os processos de violações, reivindicações e lutas
por direitos nos espaços periféricos do mundo moderno-colonial que precedeu a Segunda Guerra
Mundial, o que envolve olhar as ações e os discursos dos líderes e dos pensadores que puderam ser
registrados e que sobreviveram aos nossos dias.

6. CRÍTICA ÀS DINÂMICAS DE SUBJUGAÇÃO: OS


PROBLEMAS DO FUNDAMENTO RACIONALISTA DOS
DIREITOS HUMANOS PARA SUA APLICAÇÃO

Até aqui problematizamos a história eurocêntrica dos direitos humanos e apontamos caminhos para a
construção de uma outra história onde lutas e valores invisibilizados surgem para nos mostrar que os
direitos humanos contemporâneos são um rio caudaloso formado por muitos e variados afluentes. Um
projeto de historicização dos direitos humanos contemporâneos não tem como pretensão uma disputa
sobre a paternidade desses direitos a fim de provar que os latino-americanos, os africanos ou os asiá-
ticos foram mais importantes que os europeus na construção do que Rabossi chama de “de fonômeno
dos direitos humanos”. 70 Isso não seria de grande valia para avançarmos no que realmente importa.
Esse projeto deve incluir aquilo a que apelava Herrera Flores: “a luta pelos direitos humanos no mundo
contemporâneo passa necessariamente por sua redefinição teórica.” 71 Ou seja, é necessária uma
discussão mais ampla que analise o fundamento filosófico dos direitos humanos geralmente aceito
também como fruto de uma narrativa eurocêntrica. Defendemos a necessidade de desvincular a
cultura dos direitos humanos do “fundamento racionalista” ao qual está visceralmente ligado, pois ele
compromete seriamente as possibilidades de realização do objetivo destes direitos que é o de garantir
a todos, sem discriminações, direitos básicos a uma vida digna.
O exame dos variados e incontáveis casos de violação de direitos humanos que este livro nos aponta
comprovam o que muitos autores críticos vêm destacando: a forma profundamente seletiva com a
qual estes direitos são protegidos ou violados, a depender da característica do indivíduo ou grupo em
questão, não importando que a lei declare todos igualmente titulares dos mesmos direitos humanos.
Discriminações constituem tratamentos desvantajosos, desigual proteção da lei e têm sua origem na
construção social e política das diferenças entre os grupos humanos. Esses marcadores sociais de dife-

67
WALTZ, Susan. Universalizing Human Rights: The Role of Small States in the Construction of the Universal Declaration of Human Rights.
In: BARRETO, José-Manuel (ed.). Human rights from a Third World Perspective. Critique, History and International Law. Cambridge
Scholars Publishing, 2013. P. 353-387.
68
ARAT, Zehra F. Kabasakal. Forging a Global Culture of Human Rights: Origins and Prospects of the International Bill of Rights. In: BARRE-
TO, José-Manuel (ed.). Human rights from a Third World Perspective. Critique, History and International Law. Cambridge Scholars
Publishing, 2013. P. 388 -418
69
MITOMA, Glenn. Mode d’assujetissement: Charles Malik, Carlos Romulo. and the Emergence of the United Nations Human Rights Re-
gime. In: BARRETO, José-Manuel (ed.). Human rights from a Third World Perspective. Critique, History and International Law.
Cambridge Scholars Publishing, 2013. P. 419-439
70
RABOSSI, Eduardo. El fenómeno de los derechos humanos y la posibilidad de un nuevo paradigma teórico. Revista del Centro de Estudios
Constitucionales, no. 3, 1989, pp. 323‐344.


71
FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.p. 21.

29
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

renças estão, dentre outros, na cor, na nacionalidade, na “raça”, 72 na etnia, na religião, na orientação
sexual, na identidade de gênero, na orientação política e na condição social. Essas diferenças não são
tratadas como expressões da diversidade humana, como algo positivo ou, ao menos, indiferente no que
se refere ao tratamento e à estima social. Ao contrário, elas têm sido historicamente situadas em escalas
hierárquicas e convertidas em critérios de aferição do valor moral de cada pessoa. Assim, nos pata-
mares mais baixos da hierarquia social estão as mulheres negras e pobres que sofrem a sobreposição
de opressões derivadas de cor, gênero e classe social. No topo, estão os homens brancos, proprietários
e heterossexuais, cujos gênero masculino, patrimônio, cor e orientação sexual garantem-lhes o máximo
da estima social em sociedades que, como a nossa, enxerga na intersecção dessas características o
ser humano ideal.
Pessoas negras, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência, pessoas LGBTQIA+, refugiados, trabalha-
dores migrantes são parte da humanidade, mas não usufruem sua existência como sujeitos plenamente
humanos. Em diferentes graus e nuances, suas características consideradas negativas as inferiorizam
no meio social, privando-as de acesso igualitário a direitos humanos. Isso significa, por exemplo, maior
probabilidade de sofrerem violência (doméstica, policial, de grupos paramilitares), de não conseguirem
trabalho ou se submeterem aos piores trabalhos e a baixas remunerações, de estarem expostas aos
piores efeitos da contaminação ambiental, de serem processadas ou detidas de forma arbitrária, ou de
não poderem expressar ideias ou comportamentos livremente sem sofrerem algum tipo de constran-
gimento ou violência. São todos exemplos recorrentes de violação de direitos humanos que vemos ao
longo desse livro e que tem, sempre, os grupos inferiorizados como suas vítimas preferenciais.
Como observa Ellacuría, o “homem” sujeito dos direitos humanos não é uma “generalidade inequívoca
e abstrata, que se repete multiplicadamente nos homens concretos”, mas alude a uma realidade cindida
entre quem usufrui e quem padece, numa realidade dialética entre o forte e o fraco, entre o senhor e o
escravo, entre o opressor e o oprimido. 73
Partimos do pressuposto de que as principais razões que subjazem a esse processo de depreciação
de sujeitos e grupos estão nos discursos desumanizantes que resultam das deficiências de natureza
humana atribuídas a determinados grupos humanos e que têm raízes históricas bastante profundas,
mas que se consolidaram com as práticas do colonialismo moderno.Nesse sentido, o Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas, por meio de seus Relatores Especiais, tem impulsionado um
amplo debate para identificar os legados do colonialismo e como eles impactam negativamente no
gozo dos direitos humanos. 74
Que discursos são esses? Em que ideias se sustentam? O que têm a ver com o colonialismo? Por que
persistem até hoje? Estas são algumas perguntas que pretendemos responder nessa introdução e que
se revelam essenciais para a compreensão da dinâmica da positivação e da (in)efetividade dos direitos
humanos nas sociedades contemporâneas, temas que animaram a elaboração desse livro e que tem a
ver com a história eurocêntrica dos direitos humanos.
O discurso constitui-se de uma prática, não apenas de representação do mundo, mas, sobretudo, de
significação do mundo, contribuindo para a construção de identidades e posições de sujeito. 75 Dito de

72
O conceito de raça aqui utilizado remete ao do voto do Min. Ricardo Lewandowski na APF 186: “Cumpre afastar, para os fins dessa dis-
cussão, o conceito biológico de raça para enfrentar a discriminação social baseada nesse critério, porquanto se trata de um conceito
histórico-cultural, artificialmente construído, para justificar a discriminação ou, até mesmo, a dominação exercida por alguns indivíduos
sobre certos grupos sociais, maliciosamente reputados inferiores.”
73
ELLACURÍA, Ignacio. Historizaci6n de los Derechos Humanos desde los Pueblos Oprimidos Y las Mayorias Populares. ECA: Estudios
Centroamericanos, El Salvador, n.502, p. 589-596, 1990.


74
HUMAN RIGHTS COUNCIL. A/HRC/RES/48/7, 2021.
75
FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. 2nd Edition. Harlow: Pearson Education, 2001.

30
POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS

outro modo, o discurso é capaz de reproduzir ideários, valores e representações sociais que persistem
no tempo e no núcleo de significados. 76 Justamente por isso, Fairclough77 entende que o discurso é
uma forma de ação. Tomado o discurso nessa acepção, é que se estabelece a relação entre discursos
desumanizantes, posições de desvantagem e violação seletiva dos direitos humanos de grupos
vulnerabilizados.
No cotidiano brasileiro, não é incomum ouvir-se frases como “só podia ser coisa de preto”; “programa
de índio”; “em briga de marido e mulher não se mete a colher”; “não é mais índio, já usa celular e
anda de carro”; “prefiro um filho morto a um filho gay”; “é mulher, mas trabalha bem.” Sobre o racismo
praticado no Brasil, Djik (2004) observa ser comum ouvir-se, em lojas, no trabalho ou entre vizinhos,
os brancos referirem-se aos negros em termos racistas com crueldade, associando-os, nas expressões
usadas, com animais, e representando-os como deliquentes, seres amorais e sem inteligência. 78
Esses exemplos revelam traços de preconceito e estigma social entranhados na cultura e que se
expressam e se reforçam por meio do discurso, mesmo que de forma não intencional. Porém, os
estigmas sociais não se limitam aos discursos cotidianos ou informais entabulados por pessoas
comuns, mas se expressam também nos discursos oficiais, inclusive no sistema de justiça, responsável
legalmente por proteger as pessoas contra discriminação. 79 80 81
Tais ideias e percepções depreciativas são constituídas e permanentemente transmitidas por discursos
que naturalizam a inferioridade de determinados grupos sociais e ajudam a manter a hierarquia social
com base na classificação das diferenças.82 Djik83 corrobora essa interpretação, ao dizer que grupos

76
DJIK, Teun A. Van. Discurso e Poder. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2015.
77
FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. 2nd Edition. Harlow: Pearson Education, 2001.
78
No original: “En las tendas, em el trabajo, em el autobús o entre vecinos, los blancos suelen tratar a los negros em términos racistas com
crudeza, como por ejemplo “macaco”, “besta”, “vagabundo”, “filho da puta”, “safado”, “ladrão”. [...] En otras palavras, se tende a associar a
los negros con animales, se refieren a ellos o se os representa como delincuentes, seres amorales, faltos de inteligência.” (DJIK, 2004, p.
161).
79
Uma sentença da 5ª Vara Criminal de Campinas/SP absolveu o réu da acusação de um crime, adotando o seguinte argumento: “Vale
anotar que o réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente
confundido.” Dito de outro modo, o fenótipo branco não corresponde à imagem do criminoso, que, portanto, tem uma imagem. Que
imagem será essa? A sentença corresponde à Ação Penal nº 0009887-06.2013.8.26.0114. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/
juiza-reu-nao-parece-bandido-branco.pdf. Acesso em: 09 mar. 2019. (SÃO PAULO, 2019).
80
Em outra sentença, o réu, um homem adulto, foi absolvido da acusação de estupro presumido de uma menina de 13 anos de idade, tendo
como um dos argumentos, o seguinte: “Quem não quer reage, grita, esperneia, foge, arranha o agressor; enfim, demonstra resistência,
por mais frágil que seja. Jamais encaminha-se a um quarto de motel, deixa-se despir e, ao final da relação repousa tranqüilamente por
horas a fio! É impossível acreditar que uma jovem, numa praça movimentada, no final da madrugada, numa roda de amigos, com roupas
típicas de mulher e com , “(...) pêlos axilares raspados, mamas desenvolvidas, genitália externa parcialmente coberta de pêlos espessados
escuros raspados ( leia-se depilados em forma triangular)”( ver fl. 51 Laudo Médico legal-grifei), que ingressa livremente no carro de um
homem, direcionando-se, ainda que com fraca resistência, a um motel e, lá chegando sobe para o quarto, adere a relação sexual que lhe é
prontamente ofertada, possa ser equiparada a inocente “criança” que o legislador de 40 quis proteger.” Segundo a mensagem transmitida
pela sentença, é totalmente escusável e compreensível que um homem adulto tenha relações sexuais com uma adolescente de tenra
idade, desde que se sinta atraído por sua aparência e comportamento de mulher adulta. Entendimento esse que se coaduna com a cultura
de um país com altos índices de abuso sexual feminino e prostituição infantil. In: Canuto, S. & Colares, V. - A representação da mulher no
sistema jurídico penal Language and Law / Linguagem e Direito, Vol. 4(2), 2017, p. 72-88


81
Povos indígenas também são alvos frequentes de expressões depreciativas. Os Relatórios de Violência contra os Povos Indígenas do Con-
selho Indigenista Missionário – CIMI, de 2015, 2016 e 2017, referem a utilização de expressões como “bichos”, “pragas”, “atraso da nação”,
“mentalidade selvagem”. (CIMI, 2016 e 2017).
82
BRAGATO, F. F.; MARQUES DA SILVA, B. Discursos de ódio: uma análise à luz da colonialidade: Hate speech: an analysis in the light
of coloniality. Revista da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 45, n. 1, 2021. DOI: 10.5216/rfd.v45i1.63262. Disponível em: https://www.
revistas.ufg.br/revfd/article/view/63262. Acesso em: 15 jun. 2022.
83
DJIK, Teun A. Van. Discurso e Poder. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2015.

31
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

majoritários operam uma dominação discursiva contra grupos minoritários, em especial, indígenas e
negros. Além disso, entende que contextos históricos de dominação, como a conquista colonial, podem
ser considerados a origem de algumas formas contemporâneas de preconceito e discriminação.84
Aprofundemos, então, a relação entre discursos desumanizantes, que sustentam a discriminação e a
exclusão, e a história colonial.
Dussel observou que, nos primórdios da conquista da América, a pergunta que instigou os coloniza-
dores foi: “os índios são homens?, ou seja, são europeus e, portanto, animais racionais? [...] são apenas
a mão-de-obra, se não irracionais, ao menos bestiais, incultos – porque não tem a cultura do centro
–, selvagens, subdesenvolvidos?”85 A questão sobre a humanidade dos indígenas, em um contexto de
brutal violência denunciada por alguns religiosos como Bartolomé de las Casas e Frei Montesinos, foi
tão central nos primórdios da colonização da América que o rei da Espanha, Carlos V, convocou uma
Junta de teólogos reunidos na cidade de Valladoli para solvê-la. Nessa ocasião, Ginés de Sepulveda,
teórico oficial da coroa espanhola, expressou a seguinte tese sobre condição humana dos povos indí-
genas da América:

A esta lei estão submetidos os homens e os animais. Por isso, as feras se amansam e sujeitam-se
ao império do homem. Por isso, o varão impera sobre a mulher, o homem adulto sobre a criança,
o pai sobre os filhos, quer dizer, os mais poderosos e mais perfeitos sobre os mais débeis e imper-
feitos. Isso mesmo se verifica entre os homens; alguns, por natureza, são senhores, outros, por
natureza, são servos. Os que excedem em prudência e em gênio aos demais, ainda que não em
força corporal, são por natureza senhores; pelo contrário, os tardios e preguiçosos de entendi-
mento, mesmo que tenham forças corporais para cumprir todas as obrigações necessárias, são por
natureza servos e é justo que o sejam, pois está sancionado pela lei divina. Porque está escrito no
livro dos Provérbios: aquele que é néscio servirá ao sábio. Tais são as gentes bárbaras e inumanas,
alheias à vida civil e aos costumes pacíficos. E será sempre justo e conforme ao direito natural
que tais gentes se submetam ao império dos príncipes e nações mais cultas e humanas, para
que, sob suas leis e suas virtudes, deponham a barbárie e se reduzam à vida mais humana e ao
culto da virtude.86

Ao entrarem em contato com grupos humanos radicalmente diferentes de si, os conquistadores espa-
nhóis lançaram dúvida sobre a natureza humana dos indígenas, ao mesmo tempo em que se conven-
ceram de sua própria humanidade-racionalidade, ao considerarem superiores os padrões epistemoló-
gicos, antropológicos e éticos de sua própria cultura. Disso resultaram discursos de inferiorização do
“outro” que foram fundamentais para justificar a assimetria de poder nas relações a partir de então
estabelecidas, resultando em dois polos opostos: os dominadores europeus e os dominados ameríndios.
Mesmo depois dos primeiros encontros, o processo de dominação dos povos, das terras e dos recursos
naturais continuou baseando-se na mesma lógica. O colonialismo foi justificado como o “fardo do
homem branco” ou como “missão civilizatória” incumbida de retirar os colonizados de sua condição
primitiva e bárbara rumo ao progresso e à civilização capitaneados pela cultura patriarcal, cristã e
burguesa europeia, o ponto de justificar também as atrocidades coloniais. É como analisa Krenak:

84
DJIK, Teun A. Van. Dominación étnica y racismo discursivo em España y América Latina: prejuicios e ideologias racistas en Iberoame-
rica hoy en día. Barcelona: Editora Gedisa, SA. 2004.


85
No original: “¿Son hombres los indios?, es decir, ¿son europeos y por ello animales racionales? [...] son sólo la mano de obra, si no irracio-
nales, al menos “bestiales”, incultos - porque no tienen la cultura del centro-, salvajes... subdesarrollados”. DUSSEL, Enrique. Filosofía de la
Liberación. 4ª ed. Bogotá: Editorial Nueva America, 1996. p. 9.
86
SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los indios. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1941.
p. 85.

32
POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS

A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada
na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humani-
dade obscurecida, trazendo-a para essa incrível luz. Esse chamado para o seio da civilização sempre
foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma
concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história. 87

Para Todorov, o desejo de enriquecer e a pulsão de domínio foram as duas razões principais do compor-
tamento destrutivo dos espanhóis em relação aos povos nativos das Américas. Porém, o autor explica
que a aspiração ao poder só se extremou por conta da visão de inferioridade sobre os indígenas e de sua
condição de existência situada entre a dos homens e a dos animais.88 Sem a premissa da inferioridade
ou da imperfeição humana dos habitantes originários, não há, para Todorov, como explicar o massacre
que marcou a conquista da América.
A análise de Quijano ajuda a compreender como se forjou tal premissa. O autor sustenta que diferenças
raciais e de gênero funcionaram como marcadores de inferioridade natural dos grupos dominados,
tanto interna quanto externamente à Europa, de modo que diferenças físicas e culturais foram perce-
bidas não como fatores de diferenciação simplesmente, mas de hierarquia e desigualdade.89
Quanto à ideia de raça, ela possibilitou não apenas pensar em diferenças “naturais” entre grupos
humanos, mas, muito mais grave, que essas diferenças refletem escalas de valor, de modo que há raças
puras, superiores, e raças inferiores, degeneradas e impuras. As características raciais distintas entre
colonizadores e colonizados foram situadas em pólos de valores opostos.90
Quanto ao gênero, no modelo patriarcal da ordem social ibérica-liberal, o homem detinha superio-
ridade plena sobre a mulher. Nesse contexto, delega-se à mulher branca e burguesa um papel voca-
cionado à passividade sexual, pautado na função de reprodução da família de classe dominante, zelo
à propriedade, e, principalmente, restrição ao ambiente privado. De outro lado, sobre a mulher negra
recai uma dupla inferiorização, diante da articulação dos fatores gênero e raça. Essas condições a
reduzem a características de agressividade e coisificação, forjadas no contexto da escravidão.91 Quando
Lugones92 afirma que a colonialidade é constitutiva do sistema de gênero, não há como descartar os/
as homossexuais, travestis, transexuais e transgêneros dos indivíduos atingidos de forma negativa
pela colonialidade.
Tanto a presença de uma “raça” diferente da europeia, quanto da “feminilidade” passaram a equivaler
à ausência de racionalidade, o que é fundamental para entender o processo de desumanização, na
medida em que, desde os primórdios do pensamento moderno, a racionalidade constituiu o critério de
verificação da condição humana.93

87
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p. 11.
88
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. 3. ed. Sao Paulo: Martins Fontes,
2003. p. 211.
89
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eu-
rocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Colección Sur Sur, CLACSO, setembro 2005. pp.227-278;
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.;
GROSFOGUEL, R. (ed.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Iesco-Pen-
sar-Siglo del Hombre Editores, 2007. pp.127-167.
90
Idem.


91
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: euro-
centrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Colección Sur Sur, CLACSO, setembro 2005. pp.227-278
92
LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, 2008, pp. 73-101.
93
RORTY, Richard. Human Rights, Rationality and Sentimentality. In: HEYDEN, Patrick. The Politics of Human Rights. Paragon House:
2001. P. 224

33
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Como observa Maldonado-Torres,94 um dos principais argumentos a sustentar a atribuição de status


inferior derivou da suposta ausência de racionalidade no colonizado, que permitiu ao colonizador
situá-lo na zona de não-existência fanoniana.95 A crítica dusseliana96 ao “cogito ergo sum” (penso, logo
existo) de René Descartes, como “cogito ergo conquiro” (penso, logo conquisto), ilustra o argumento
de Maldonado-Torres:

Se o ego cogito foi formulado e adquiriu relevância prática sobre as bases do ego conquiro, isso
quer dizer que ‘penso, logo existo’ tem ao menos duas dimensões não suspeitas. Abaixo do ‘eu
penso’ poderíamos ler ‘outros não pensam’, e no interior do ‘existo’ podemos localizar a justifi-
cação filosófica para a ideia de que ‘outros não são’ ou estão desprovidos de ser. [...] ‘Eu penso
(outros não pensam ou não pensam adequadamente), logo existo (outros não existem, estão
desprovidos de ser, não devem existir ou são dispensáveis)’.97

Na crítica de Dussel, a capacidade de pensar e racionar do sujeito cartesiano é precedida pela capaci-
dade de conquistar, em termos coloniais. Porém, a possibilidade de conquistar deriva da auto-atribuição
da exclusividade na produção de conhecimento verdadeiro e legítimo, excluindo-se e deslegitimando
os demais. Conhecimentos e visões de mundo, como os expressos pelo Cacique Seatle em resposta à
proposta de compra de suas terras pelo governo dos Estados Unidos da América, são, segundo a lógica
da ciência e da racionalidade modernas, exemplos de disparates, tolices e crendices de povos atrasados:

Quando o grande chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito
de nós. O Grande chefe diz que nos reservará um lugar onde possamos viver satisfeitos. Ele será
nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, nós vamos considerar a sua oferta de comprar a
nossa terra. Mas isso não será fácil. Essa terra é sagrada para nós. Essa água brilhante que escorre
nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhe vendermos
a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar as suas crianças que ela
é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças
da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais. Os rios são nossos
irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhe
vendermos a terra, vocês devem lembrar e ensinar seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus
também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.98

Já a capacidade de raciocinar, calcular, medir, aferir, em tudo contraposta às emoções e ao sentir, não
apenas se transformou na única forma de “razão” admitida, mas assumiu a condição de possibilidade
para engendrar formas de produzir, de incidir sobre a natureza, de dominá-la e domesticá-la em prol

94
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.;
GROSFOGUEL, R. (ed.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá:
Iesco-Pensar-Siglo del Hombre Editores, 2007. pp.127-167.
95
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
96
DUSSEL, Enrique. Eurocentrism and modernity: introduction to the Frankfurt lectures. In: BEVERLEY, John; OVIEDO, José (Org.). The
postmodernism debate in Latin America. Boundary 2, Durham, v. 20, n. 3, p. 65-76, fall, 1993.


97
No original: “Si el ego cogito fue formulado y adquirió relevancia práctica sobre las bases del ego conquiro, esto quiere decir que “pienso,
luego soy” tiene al menos dos dimensiones insospechadas. Debajo del “yo pienso” podríamos leer “otros no piensan”, y en el interior de
“soy” podemos ubicar la justificación filosófica para la idea de que “otros no son” o están desprovistos de ser. [...] “Yo pienso (otros no
piensan o no piensan adecuadamente), luego soy (otros no son, están desprovistos de ser, no deben existir o son dispensables)”. MALDO-
NADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFO-
GUEL, R. (ed.). El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Iesco-Pensar-Siglo
del Hombre Editores, 2007. p. 144.
98
SEATLE, Cacique. Carta do Cacique Seatle. In: BRAGATO, Fernanda Frizzo; BARRETO, Vicente; LEMOS, Walter. Antologia dos direitos
humanos. Tradições ortodoxas e heterodoxas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2018.

34
POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS

da acumulação de riqueza.99 Como diz Krenak, citando Davi Kopenawa, “o mundo acredita que tudo
é mercadoria.”100
Os homens europeus foram hábeis na imposição de sua própria superioridade e em retratar os grupos
dominados como natural ou intrinsecamente inferiores. Aos não-europeus impingiu-se um processo
de racialização que lhes atribuiu a incapacidade de pensar, de produzir conhecimento e, portanto, de
dominar e acumular. O “outro” não-europeu converteu-se, no máximo, em objeto de conhecimento,
jamais seu sujeito, e também em objeto de exploração, tal qual a natureza. A racionalidade tornou-se
fator determinante para estipular não apenas o que pode ser considerado conhecimento, mas quem
possui a capacidade para pensar, produzir esse saber, fazer uso econômico dele e, consequentemente,
existir como ser humano. A supremacia das formas de conhecimento ocidentais, e tudo o que elas
engendram em termos de comportamentos, deu sustentação para negar as faculdades cognitivas dos
sujeitos colonizados e classificá-los como irracionais. Por consequência, não ser racional significa basi-
camente não ser, tal como o indígena das Américas, o negro africano e as mulheres em qualquer lugar.101
No que se refere ao gênero, a ligação entre racionalidade e humanidade gerou efeitos semelhantes
em relação à condição de sujeitos de direito das mulheres. Mary Wollstonecraft,102 uma das primeiras
feministas modernas, constatou, no final do século XVIII, que a atribuição de inferioridade às mulheres
decorria da ausência de reconhecimento da razão. No auge do Iluminismo, a presença da razão era o
fator incontestável da “preeminência do homem sobre a criação bruta”, mas as mulheres eram carentes
desse atributo, segundo o olhar da sociedade. Características comumente atribuídas (e ensinadas) ao
sexo feminino, como caprichos, paixões ardentes, vícios servis, graça e atratividade transformaram-nas,
segundo a autora, em seres infantis, instáveis e, portanto, incapazes de ter racionalidade e autonomia.
Na medida em que Wollstonecraft não falava da “mulher universal”, mas da mulher branca europeia,
foi Sojourner Truth, mulher negra norteamericana que, quase um século mais tarde, problematizou a
condição da mulher negra cujo processo de escravização a privou de racionalidade e humanidade por
motivos diferentes: a mulher negra sofreu com o estigma da agressividade e da hiper-sexualização.103
Isso converge com a constatação de Rorty104 a respeito das três formas pelas quais se costuma distinguir
o humano do não-humano: humano-animal, adulto-criança, macho-não macho. Todas têm em comum
a deficiência de racionalidade como critério de exclusão do humano. No caso dos animais, a diferença
que os separa parece ser a mais nítida e inspira as demais. No caso das crianças, são seres em processo

99
Racionalidade aparece exemplificada pela ciência moderna e pela engenharia ténica ou social cientificamente baseada. A racionalidade
distingue a ciência de outras formas de conhecer, e a moderna das pré-modernas e não-ocidentais sociedade e cultura. Uma sociedade
ou cultura é “racional” na medida em que ela foi projetada de acordo com princípios científicos e tecnológicos. Assim, as sociedades
e culturas racionais podem ser redesenhadas se a ciência melhorar o conhecimento existente. É racional para aprender com os erros
e conhecimentos superiores. Na tradição que liga Weber, Parsons e Habermas, a racionalidade é celebrada como a virtude original da
modernidade ocidental. FUCHS, Stephan. Against essentialism: a theory of culture and society. Cambridge, Massachusetts, and London:
Harvard University Press, 2001. P. 111.
100
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. P. 17.
101
Ver em: WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicações dos Direitos da Mulher. In: BRAGATO, Fernanda Frizzo; BARRETO, Vicente; LEMOS,
Walter. Antologia dos direitos humanos. Tradições ortodoxas e heterodoxas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2018; FANON, Frantz. Black
Skin, White Masks. Translated by Charles Lam Markmann. London: Pluto Press, 2008; DUSSEL, Enrique. Eurocentrism and modernity:
introduction to the Frankfurt lectures. In: BEVERLEY, John; OVIEDO, José (Org.). The postmodernism debate in Latin America. Boundary
2, Durham, v. 20, n. 3, p. 65-76, fall, 1993.
102
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicações dos Direitos da Mulher. In: BRAGATO, Fernanda Frizzo; BARRETO, Vicente; LEMOS, Walter.
Antologia dos direitos humanos. Tradições ortodoxas e heterodoxas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2018
103
TRUTH, Sojourner. E não sou uma mulher? In: BRAGATO, Fernanda Frizzo; BARRETO, Vicente; LEMOS, Walter. Antologia dos
direitos humanos. Tradições ortodoxas e heterodoxas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2018.
104
RORTY, Richard. Human Rights, Rationality and Sentimentality. In: HEYDEN, Patrick. The Politics of Human Rights. Paragon House:
2001.P. 221

35
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

de aquisição da razão por meio da educação; aqueles que não são capazes de adquiri-la, jamais deixam
de ser crianças, como é o caso das pessoas consideradas ignorantes e supersticiosas. É o que diziam
os brancos sul-africanos e norte-americanos sobre os negros, comumente tratados como “meninos”,
como denunciou Martin Luther King, em sua Carta de uma Prisão em Bimghanton.105 Quanto às
mulheres e todos aqueles que destoam da masculinidade hegemônica, que aludem à distinção macho-
-não macho, há várias formas de excluir-nos da humanidade: tratando-nos como crianças (incapazes de
nos educarmos como os homens), tratando o “homem” como sinônimo de “ser humano”, reforçando
a feminização como o pior temor do homem. Em parte por isso, o mesmo processo de desumanização
acaba afetando as pessoas LGBTQIA+. A ausência de racionalidade é, enfim, o que define quem conta
e quem não conta como ser humano.
A deficiência de humanidade se reflete, por consequência, na forma como se concebe o sujeito de
direitos: se o humano é o racional e o racional é uma forma específica de ser, pensar e fazer, nem todos
os seres humanos são racionais. Logo, há seres mais e menos humanos. De acordo com o filósofo
japonês Nishitani Osamu:

As pessoas são “humanas”, desde que se relacionem com o conhecimento subjetivamente,


enquanto aqueles que permanecem como objeto desse conhecimento são meros anthropos.
“Humanitas” produz conhecimento e se enriquece com esse conhecimento. Anthropos, portanto,
designa a posição do objeto que é absorvido no domínio do conhecimento produzido por quem
é humano (“humanitas”).106

Isso nos permite concluir que a capacidade de impor a própria superioridade e beneficiar-se econômica
e socialmente dela situa-se no nível epistemológico, ou seja, resulta do poder do discurso de determi-
nados grupos de dizerem o que é verdadeiro e falso, bom ou mau, belo ou feio. A retórica do progresso,
da evolução e da civilização encarnada na ideia de Ocidente é usada desde os tempos coloniais para
subordinar grupos não conformes ao padrão ontológico, ético e estético euroamericano, 107 dividindo
os seres da espécie humana entre “anthropos” e “humanitas”,108 “gente como nós” e “bípedes sem
penas que tem forma humanoide”.109 O sucesso do projeto colonial consistiu na sua capacidade de se
apropriar dos bens e superexplorar a força de trabalho dos colonizados e, para isso, foi fundamental a
construção de discursos que produziram verdades autoevidentes. Ao serem rotulados como selvagens,
primitivos, degenerados, irracionais, os colonizados foram mais facilmente situados em posições de

105
“[...] quando você é humilhado entra dia sai dia por sinais irritantes dizendo “branco” e “de cor”; quando seu prenome torna-se “neguinho”,
seu nome do meio torna-se “menino” (não importa sua idade) e seu sobrenome torna-se “John”, e sua mulher e mãe nunca são chamadas
pelo título respeitável de “Sras.”; quando você é perseguido de dia e assombrado à noite pelo fato de que você é um negro, vivendo cons-
tantemente na ponta dos pés, sem saber exatamente o que esperar em seguida, e é atormentado por medos interiores e ressentimentos
exteriores; quando você está sempre lutando contra uma impressão degradante de “não ser ninguém” – então você entenderá porque
achamos difícil esperar. Chega um momento em que a capacidade de suportar esgota-se, e os homens não estão mais dispostos a mer-
gulhar no abismo do desespero.”. KING Jr., Martin Luther. Carta de uma prisão de Birmingham. In: BRAGATO, Fernanda Frizzo; BARRETO,
Vicente; LEMOS, Walter. Antologia dos direitos humanos. Tradições ortodoxas e heterodoxas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2018.
106
OSAMU, Nishitani. Anthropos and Humanitas: Two Western Concepts of “Human Being” - Translation, Biopolitics, Colonial Difference.
ed. Naoki Sakai and Jon Solomon. Hong Kong University Press, Aberdeen, 2006, p. 266. Disponível em: https://alfredocesarmelo.files.
wordpress.com/2016/08/nishitani-2006-anthropos-and-humanitas-two-western-concepts-of-human-being.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.


107
BRAGATO, Fernanda F. Discursos desumanizantes e violação seletiva de direitos humanos sob a lógica da colonialidade. Quaestio Iuris,
Rio de Janeiro, v. 9, n. 4 (2016). Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/21291.
108
OSAMU, Nishitani. Anthropos and Humanitas: Two Western Concepts of “Human Being” - Translation, Biopolitics, Colonial Difference.
ed. Naoki Sakai and Jon Solomon. Hong Kong University Press, Aberdeen, 2006, p. 266. Disponível em: https://alfredocesarmelo.files.
wordpress.com/2016/08/nishitani-2006-anthropos-and-humanitas-two-western-concepts-of-human-being.pdf. Acesso em: 14 jun. 2022.
109
RORTY, Richard. Human Rights, Rationality and Sentimentality. In: HEYDEN, Patrick. The Politics of Human Rights. Paragon House:
2001.p. 220.

36
POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA DOS DIREITOS HUMANOS

subordinação.110 Essa lógica serviu também para subordinar outros grupos não-conformes, como as
mulheres, as pessoas LGBTQIA+, pessoas com deficiência e outros.
O fenômeno dos discursos depreciativos e discriminatórios, a partir da compreensão do colonialismo
não apenas como um fenômeno territorial e político, mas sobretudo discursivo, é bem explicado por
Hommi Bhabha,111 influenciado Edward Said,112 Frantz Fanon113 e Albert Memmi.114
Segundo Bhabha, o poder do colonizador de falar sobre o outro permitiu a construção de representa-
ções sobre o colonizado que foram utilizadas para legitimar a experiência colonial. O discurso colonial,
por meio das estratégias do estereótipo e da ambivalência, atribuía características fixas negativas, conce-
bidas aprioristicamente, às populações colonizadas. Negros e indígenas foram representados como
bestiais, sexuais, selvagens, místicos, primitivos. Essas e outras percepções estereotípicas, construídas
sobre povos colonizados, conferiam autoridade ao domínio político e territorial moderno-colonial
como única alternativa possível.115 O discurso colonial tinha como objetivo “[...] apresentar o colonizado
como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista
e estabelecer sistemas de administração e instrução,”116 empregando, no jogo de poder discursivo,
elementos como efeitos de classe, gênero, diferentes formações sociais, a fim de legitimar um sistema
fixo de representação. Conforme observa Bhabha, o discurso articulado com base no estereótipo:

[...] institucionaliza uma série de ideologias políticas e culturais que são preconceituosas, discri-
minatórias, vestigiais, arcaicas, “míticas”, e, o que é crucial, reconhecidas como tal. Ao “conhecer”
a população nativa nesses termos, formas discriminatórias e autoritárias de controle político são
consideradas apropriadas.117

As relações coloniais nos legaram, assim, uma classificação social construída por discursos que
convertem as características que diferem do padrão de sujeito ditado pelo discurso racional-individua-
lista em critério de inferioridade, para fins de hierarquização de sujeitos e grupos.118
Nesse sentido, a lógica colonial expressa-se no poder discursivo de descrever o outro, concebê-lo como
um ser inferior por meio de estratégias discursivas e classificar socialmente a população a partir de
dicotomias. Esse poder está nos discursos depreciativos cotidianos e oficiais acima citados. Por outro
lado, como aponta Mignolo, “o conceito de humano utilizado em conversas, nos meios de comuni-
cação, em seminários universitários e conferências, é um conceito que deixa fora da “humanidade”

110
BRAGATO, F. F.; MARQUES DA SILVA, B. Discursos de ódio: uma análise à luz da colonialidade: Hate speech: an analysis in the light of
coloniality. Revista da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 45, n. 1, 2021. DOI: 10.5216/rfd.v45i1.63262. Disponível em: https://www.
revistas.ufg.br/revfd/article/view/63262. Acesso em: 15 jun. 2022.


111
BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
112
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
113
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
114
MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador. Tradução Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007.
115
BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010; FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
116
Idem, p. 110.
117
Idem, p. 127.
118
BRAGATO, Fernanda F. Discursos desumanizantes e violação seletiva de direitos humanos sob a lógica da colonialidade. Quaestio Iuris,
Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, 2016. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/21291; BRAGATO, Fer-
nanda Frizzo; COLARES, Virgína Colares. Indícios de descolonialidade na Análise Crítica do Discurso na ADPF 186/DF. Revista Direito
FGV, São Paulo, v. 13, n. 03, set-dez, p. 949-980, 2017.

37
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

grande parcela da população mundial.”119 As pessoas cuja etnia, cor da pele, língua, rotinas e rituais
são “humanamente” deficientes compõem esta grande parcela. Isso porque, aponta Sánchez Rubio,
a idéia dos direitos humanos está embutida em um imaginário excessivamente eurocêntrico e linear
que acaba por estabelecer uma cultura entorpecida e limitada a uma forma hegemônica e única do ser
humano: aquela construída pela trajetória ocidental e pela versão da modernidade liberal burguesa.120

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O critério da racionalidade ocidental amplamente aceito para definição do humano é problemático


para a teoria dos direitos humanos, porque tudo começa pela definição de quem é humano. A primeira
pergunta a fazermos é: quem é o sujeito de direitos humanos, isto é, do direito à vida, à integridade física,
à igualdade, à liberdade de expressão, aos direitos políticos? O problema de assumir uma concepção de
humanidade restrita aos ditames da cultura euroamericana e da tradição legal exclusivista das Declara-
ções liberais é que, embora muitos seres se pareçam humanos, eles não são considerados totalmente
“racionais” e, portanto, não se credenciam como plenos sujeitos de direitos humanos. Assim, se tornam
alvos dos discursos depreciativos de que falamos acima, o que legitima as formas de exclusão e de
privação arbitrária dos seus direitos. Segundo o conceito de humanidade que tem sustentado a teoria
eurocêntrica dos direitos humanos, humanidade não passa um “clube” bastante seleto.
Nesse sentido, Rorty propõe que o recurso à ideia de uma natureza humana racional que fundamenta a
dignidade humana e os direitos humanos seja deixada de lado e que passemos a nos ocupar com o que
podemos fazer de nós mesmos, no sentido de fortalecer a cultura dos direitos humanos. Rorty sugere
que deixemos de lado a pergunta kantiana sobre o que é o homem e pensemos que tipo de mundo
queremos deixar aos nossos bisnetos.121
Na cultura contemporânea dos direitos humanos, deve ser perfeitamente possível que alguém veja o
outro como diferente e ainda assim respeite seus direitos básicos e não o viole por isso. A educação
sentimental, proposta por Rorty,122 é um caminho que vale a pena explorar, sobretudo se a concepção
de educação for orientada pelas lições de Paulo Freire,123 já que o primeiro pensa demasiado na mobi-
lização das emoções dos poderosos como opção possível,124 enquanto o último propõe a educação
libertadora dos oprimidos como forma de empoderamento e transformação das estruturas sociais.
São muitas as vias possíveis para que os direitos humanos se tornem uma utopia possível, mesmo diante
de poderosos desafios e obstáculos. Neste livro, vamos investigar como o DIDH vem contribuindo para
esse objetivo a partir da criação e interpretação de normas que parecem cada vez menos vinculadas ao
fundamento racionalista dos direitos humanos, pois são justamente os grupos excluídos da condição de
humanos os que encontram reconhecimento e maior proteção nesses sistemas.

119
MIGNOLO, Walter. Who speaks for the “Human” in Human Rights?. In: BARRETO, José-Manuel (ed.). Human rights from a Third World
Perspective. Critique, History and International Law. Cambridge Scholars Publishing, 2013. P. 44.
120
SÁNCHEZ RUBIO, David. Encantos e Desencantos dos Direitos Humanos: de emancipações, liberações e dominações. Porto Alegre:
Livraria do advogado, 2014. P. 49.


121
RORTY, Richard. Human Rights, Rationality and Sentimentality. In: HEYDEN, Patrick. The Politics of Human Rights. Paragon House:
2001,p. 230.
122
Idem.
123
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
124
RORTY, Richard. Human Rights, Rationality and Sentimentality. In: HEYDEN, Patrick. The Politics of Human Rights. Paragon House: 2001.
P. 237-238.

38
SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: ASPECTOS GERAIS

SISTEMAS INTERNACIONAIS DE
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS:
ASPECTOS GERAIS

Gabriel Pedro Moreira Damasceno

O Direito Internacional (DI) é entendido por Accioly, Casella e Silva1 como o conjunto de normas
jurídicas que rege a comunidade internacional, determinando direitos e obrigações dos seus sujeitos,
principalmente no que concerne às relações mútuas entre os Estados e destes com os demais sujeitos
de DI. Carreau e Bichara2 afirmam que o DI é o conjunto de regras escritas e não escritas que regem as
relações entre os membros da sociedade internacional, objetivando assegurar a justiça e a segurança
internacionais, a proteção dos direitos humanos e o desenvolvimento econômico.
Os direitos humanos constituem um conjunto indispensável de direitos que permite o gozo de uma
vida humana com liberdade, igualdade e dignidade. 3 Ou seja, esses direitos são indispensáveis à vida
digna de qualquer ser humano e, por isso, sua realização deveria ser o principal fim do Direito e da polí-
tica. Importa ressaltar o apontamento do professor André de Carvalho Ramos, para quem não há um
rol predeterminado e taxativo desse conjunto mínimo de direitos essenciais a uma vida digna, uma vez
que as necessidades humanas podem variar em razão do contexto histórico, surgindo novas demandas
sociais que serão traduzidas juridicamente e inseridas na lista dos direitos humanos. Nesse sentido,
Sidney Guerra4 afirma que o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) é entendido como o
conjunto de direitos que estão positivados em tratados internacionais e que representam as exigências
básicas relacionadas com a dignidade, liberdade e a igualdade.
Para além do apontado por Guerra, é importante ressaltar que as normativas produzidas pelo DIDH
podem ser oriundas de outras fontes do DI – além dos tratados internacionais – como das cartas das
Organizações Internacionais e de suas respectivas resoluções, 5 do costume internacional6 e do jus

1
ACCIOLY, Hildebrando; CASELLA, Paulo Borba; SILVA; Geraldo E. do Nascimento. Manual de Direito Internacional Público. 24. ed. São
Paulo: Saraiva, 2019.
2
CARREAU, Dominique; BICHARA, Jahyr-Philippe. Direito internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
3
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
4
GUERRA, Sidney. Direitos Humanos: curso elementar. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
5
As resoluções são instrumentos resultantes da atividade diplomática dos Estados e das Organizações Internacionais, mas aos quais estes
últimos optaram pela não atribuição de caráter vinculante. In: SILVA, Roberto Luiz. Curso de Direito Internacional. 2018. Edição do
Kindle.
6
O costume internacional é fonte prevista no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, podendo ser compreendido como uma
prática geral aceita como sendo o direito, evidenciando-se, essa forma, dois elementos: a) material – precedentes, elemento continuida-
de); e b) subjetivo - opinio iuris, a crença que a prática reiterada é obrigatória, elemento que prova a manifestação de vontade. O costume
é, de tal modo, norma jurídica obrigatória. In: SILVA, Roberto Luiz. Curso de Direito Internacional. 2018. Edição do Kindle.

39
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

cogens. 7 Essas normas podem, assim, instituir obrigações internacionais aos sujeitos de direito interna-
cionais no que concerne à proteção, garantia e respeito aos direitos humanos.
O DIDH é, então, compreendido enquanto um ramo do DI, que tem como propósito e objeto a proteção
da pessoa humana, possuindo esta como destinatária final de suas normas processuais e substantivas.
Assim, o DIDH amplia o rol de sujeitos do DI clássico, como se verá a seguir.

1. SUJEITOS DE DIREITOS NO DIDH


A consequência da titularidade de direitos e obrigações no plano internacional é o reconhecimento da
chamada subjetividade jurídica, ou seja, ao receber direitos e deveres provindos das normativas inter-
nacionais, um ente pode se transformar em um sujeito de DI. 8 Em razão de o DIDH ser um ramo do
DI, o DIDH possui os mesmos sujeitos, ou seja, os mesmos entes que possuem subjetividade jurídica.
Em 1949, no Parecer Consultivo sobre a Reparação dos Danos Sofridos a Serviço das Nações Unidas, a
Corte Internacional de Justiça9 considerou como sujeito de Direito Internacional a pessoa internacional
com aptidão para possuir direitos e deveres internacionais e que possua capacidade para mantê-los,
ou seja, é sujeito de DI aquele que possui personalidade e capacidade internacionais. Nesse sentido,
podem ser diferenciadas a personalidade e a capacidade jurídicas internacionais:

• Personalidade jurídica internacional: a aptidão para ser titular de direitos e deveres na Socie-
dade Internacional;
• Capacidade Jurídica Internacional: a aptidão para exercer esses direitos e
deveres por si mesmo. 10

Quem possui tal subjetividade, ou seja, quem possui personalidade e capacidade jurídicas internacio-
nais, sendo, portanto, sujeito de DI:

• Primeiro lugar os Estados, que, entre os sujeitos de Direito Internacional, é o único que
possui capacidade jurídica plena, ou seja, habilidade de munir-se de direitos, de poderes
e de obrigações;11
• Segundo lugar, as Organizações Internacionais – OIs – podendo serem criadas por
Estados, por outras OIs ou, até mesmo, por Estados e OIs, elas são constituídas por tratados
internacionais que lhes conferem direitos e obrigações internacionais;
• Os Estados também concederam, igualmente por meio de tratados internacionais (e do
costume internacional), direitos e obrigações a indivíduos e grupos. Isso justifica o enten-
dimento de que eles gozam também do status de sujeitos do Direito Internacional Público.12

7
O art. 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados afirma ser nulo o tratado que, no momento de sua conclusão, conflita com
uma norma imperativa de direito internacional geral. O estabelecimento dessa normatiza internacional consagrou a exigência do chama-
do jus cogens, que seria, assim, entendido como uma norma imperativa de direito internacional, onde se enquadram “a proibição do uso
ou ameaça de força e a agressão; a prevenção e repressão do genocídio, da pirataria, do tráfico de escravos, da discriminação racial, do
terrorismo ou da tomada de reféns”. A violação de tais normas imperativas eiva o ato internacional de nulidade absoluta. In: SILVA, Roberto
Luiz. Curso de Direito Internacional. 2018. Edição do Kindle.
8
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009.
9
CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Opinião Consultiva sobre Reparações de Danos Sofridos a Serviço das Nações Unidas, 1949,
174, International Law Report
10
CRETELLA NETO, José. Curso de Direito Internacional Econômico. São Paulo: Saraiva, 2012.
11
VARELLA, Marcelo D. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009.
12
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009.

40
SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: ASPECTOS GERAIS

Nessa perspectiva, os Estados seriam os chamados sujeitos originários, enquanto as OIs, os indiví-
duos e os grupos seriam sujeitos secundários ou supervenientes, pois sua personalidade é dedu-
zida dos Estados. 13
No Parecer Consultivo sobre a Reparação dos Danos Sofridos a Serviço das Nações Unidas, a Corte
Internacional de Justiça, ainda, afirmou que os sujeitos de direito não são necessariamente idênticos no
que se refere a sua natureza ou extensão de seus direitos, bem como que a natureza do sujeito depen-
derá das necessidades da Sociedade em que está inserido.14 Portanto, não é possível que os indivíduos
celebrem tratados ou contribuam para a construção do costume internacional, pois falta-lhe compe-
tência conferida por parte dos Estados: “Eles são sujeitos em parte do Direito Internacional Público, mas
não possuem uma personalidade jurídica internacional que lhes confira amplas capacidades.” 15
Por fim, torna-se importante destacar que o professor Antônio Augusto Cançado Trindade afirma que
elevação do indivíduo ao status de sujeito de direito internacional se trata de uma resposta às necessi-
dades da comunidade internacional, especialmente após o fim da Segunda Guerra Mundial, abrigando
uma ideia de humanização do direito internacional16.

2. OS DIREITOS PROTEGIDOS NO DIDH


Os direitos individuais englobam os chamados pela doutrina de direitos de primeira geração/dimensão,
representando direitos contra possíveis arbítrios governamentais, denominados de liberdades públi-
cas.17 Porém, são direitos titularizados por indivíduos que podem ser oponíveis a todos, não somente
aos Estados, ainda que estes mantenham a obrigação suprema de proteger os direitos humanos. Estes
direitos compreendem um bloco com os direitos civis e políticos, como a vida, a liberdade, propriedade,
cidadania, entre outros. Os direitos humanos individuais se referem às pessoas naturais, porém, no que
é cabível e possível, esses direitos se estendem também às pessoas jurídicas, enquanto construções
jurídicas artificiais.18
No sistema global de proteção dos direitos humanos (ONU), os Estados reconhecem os direitos civis
e políticos como direitos subjetivos internacionais, uma vez que o I Protocolo Facultativo ao PIDCP19
de 1966 prevê um procedimento perante o Comitê de Direitos Humanos (CDH), admitindo o enca-
minhamento das chamadas “comunicações” por indivíduos. 20 As principais convenções internacio-

13
SILVA, Roberto Luiz. Curso de Direito Internacional. 2018. Edição do Kindle.
14
CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Opinião Consultiva sobre Reparações de Danos Sofridos a Serviço das Nações Unidas, 1949,
174, International Law Reports
15
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009.
16
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os indivíduos como sujeitos do Direito Internacional. Revista do Instituto Brasileiro de Direi-
tos Humanos, v. 12, 2012


17
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
18
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009.
19
BRASIL. Decreto n. 591 de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Promulgação. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em: 20 set. 2021.
20
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009.

41
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

nais do sistema global autorizam seus comitês a considerar tais petições. 21 Mesmo que ausente uma
competência para receber comunicações individuais, os Comitês possuem a função de fiscalizar os
deveres jurídicos decorrentes dos respectivos instrumentos internacionais, por meio de uma avaliação
e discussão dos relatórios que são entregues pelo Estado fiscalizado. 22
No sistema regional interamericano de proteção dos direitos humanos (SIDH), a Corte Interamericana
de Direitos Humanos (Corte IDH) não permite que indivíduos e grupos peticionem diretamente a ela,
solicitando o exercício de sua jurisdição, ou seja, não possuem o chamado locus standi. De tal modo,
para que indivíduos e grupos que sofreram violação de seus direitos tenham acesso à jurisdição da
Corte IDH, é necessário que, inicialmente, dirijam-se à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH). A CIDH é ativamente legitimada para defender os casos de violação de direitos humanos no
SIDH, o que, por outro lado, permite, assim, falar sobre um locus standi indireto dos indivíduos perante
a Corte IDH. 23 Importante acrescentar que a Corte IDH reconhece os outros tratados regionais de
direitos humanos como vetores de interpretação dos direitos da Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH). 24
No que se refere aos direitos das pessoas jurídicas, verifica-se, inicialmente, que sua proteção pelo
DIDH se trata de mais de uma exceção do que a regra. Conforme leciona Peterke: 25

Indivíduos se organizam, por exemplo, para fins de formar e articular coletivamente opiniões ou
reivindicações, de exercer convicções religiosas ou simplesmente atividades econômicas como
o gozo de vários direitos humanos depende frequentemente da possibilidade de exercê-los por
meio de uma pessoa jurídica, eles são, às vezes, diretamente protegidos pelo DIDH.

O I Protocolo Facultativo ao PIDCP refere-se a “comunicações provenientes de indivíduos [...] que


aleguem ser vítimas de uma violação [...]”. 26 O CDH compreende “indivíduos” como sendo exclusiva-
mente pessoas naturais. Dentro do sistema global de proteção dos direitos humanos, apenas um direito
humano coletivo é incontestável: o direito dos povos à autodeterminação, garantido, por exemplo, pelos

21
- Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimina-
ção Racial (CIEDR);
- Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres (CEDCM);
- Comitê contra a Tortura da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (CCT);
- Comitê para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias10 da Convenção Internacional
para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (CITM);
- Comitê para os Direitos das Pessoas com Deficiência da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)11.
- Comitês que atualmente (ainda) carecem de tal competência são:
- Comitê para os Direitos da Criança, da Convenção sobre os Direitos da Criança;
- Comitê sobre Desaparecimento Forçado, da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra Desaparecimento
Forçado; e
- Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CeDesc), do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
22
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009.
23
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009.
24
OEA. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANO – CORIDH. Caso Fazenda Brasil Verde vs Brasil. 2016; OEA. CORTE INTE-
RAMERICANA DE DIREITOS HUMANO – CORIDH. Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. 2001; OEA. CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANO – CORIDH. Caso Rodríguez Vera e outros (Desaparecidos do Palácio de Justiça) Vs.
Colômbia. 2014.
25
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009. p. 134.
26
OHCHR. Complaints about human rights violations. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/TBPetitions/Pages/HRTBPe-
titions.aspx. Acesso em: 12 de abr. de 2021.

42
SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: ASPECTOS GERAIS

artigos 1° do PIDCP e do PIDESC, como também pelo costume internacional. 27 Na doutrina, prevalece a
opinião de que ele vale até mesmo como ius cogens. 28 Ocorre que, apesar de reconhecido, o I Protocolo
Facultativo ao PIDCP refere-se meramente a “comunicações provenientes de indivíduos”, ou seja, o
CDH não é competente para considerar petições submetidas em nome de povos. 29
Diversos direitos humanos individuais abarcam uma dimensão coletiva, todavia esta não os transforma
em direitos coletivos. Veja-se, de acordo com o art. 27 do PIDCP: “Nos Estados em que haja minorias
étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do
direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar
e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”. De tal modo, tais grupos não são competentes
para atuar como peticionários perante o CDH, apenas quando indivíduos desses grupos forem vítimas
de violação do direito assegurado no art. 27 é que que estes poderão peticionar. 30
No caso Lovelace v. Canadá, 31 Sandra Lovelace, cidadã canadense de origem indígena e residente no
Canadá, após seu nascimento, foi registrada como “indígena Maliseet”, todavia, após se casar com
um não indígena, em razão da legislação de sua comunidade, foi privada de seus direitos e status de
indígena – o que não aconteceria se ocorresse o casamento de um homem indígena e uma mulher
não indígena. Alegando, portanto, que a legislação canadense era discriminatória em razão do gênero
e contrária ao PIDCP, Sandra Lovelace comunicou as ofensas ao CDH de 29 de dezembro de 1977.
Apesar de realizar a comunicação em nome próprio, o caso acaba por repercutir ao seu grupo, porém,
os pedidos formulados necessariamente são vinculados à própria vítima e ao direito individual de
membros de minorias previsto no art. 27 do PIDCP.
Já no sistema interamericano, o art. 44 da CADH32 prevê que: “Qualquer pessoa ou grupo de pessoas,
ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da
Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de
violação desta Convenção por um Estado Parte”. O SIDH permite que coletividades sejam não apenas
peticionárias (apresentem petições em nome de outras vítimas), como aleguem ser as próprias
vítimas de violações dos direitos contidos nos documentos internacionais aplicáveis. Assim, são
inúmeros os casos em que a Corte IDH reconhece direitos humanos coletivos, como é o caso do
direito à propriedade comunal das terras assegurado às comunidades indígenas.

27
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília:
Escola Superior do Ministério Público da União, 2009. p. 134; OEA. COMISSÃO INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS – CIDH.
Derecho a la libre determinación de los Pueblos Indígenas y Tribales. 2021. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/
LibreDeterminacionES.pdf. Acesso em 30 mai. 2022.
28
Normas que dispõem de um status especial na ordem jurídica internacional, em virtude do seu significado fundamental para a comu-
nidade internacional que, por isso, não permitem Estados qualquer derrogação. Abrange um grupo pequeno de normas universais que
abrange também alguns DHI. Entre outras, encontra-se a proibição do genocídio, da tortura, da escravidão e da discriminação racial.
29
No caso Ángela Poma Poma vs Peru, o CDH ressaltou os artigos 1º e 2º do Protocolo Facultativo ao PIDCP, que reconhecem que o Comitê
tem competência para receber e examinar comunicações provenientes de indivíduos sujeitos que aleguem ser vítimas de uma violação
pelos Estados Partes do Protocolo, desde que tenham esgotado todos os recursos internos disponíveis podem apresentar uma comunica-
ção escrita ao Comitê para que este a examine. Ademais, a CHD aponta que o Protocolo exclui de sua jurisdição o direito à autodetermi-
nação dos povos, que possibilita que os povos determinem livremente seu estatuto político e assegurem livremente seu desenvolvimento
econômico, social e cultural. HRC. Ángela Poma Poma v. Peru, Communication No. 511/1992, UN Doc CCPR/C/95/D/1457/2006, 24 April
2009.
30
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009. p. 134.


31
Lovelace v. Canada, Comm. 24/1977, U.N. Doc. CCPR/C/OP/1, at 10(HRC 1979). Disponível em:http://www.worldcourts.com/hrc/eng/deci-
sions/1979.08.14_Lovelace_v_Canada.htm. Acesso em: 19 set. 2021.
32
BRASIL. Decreto n. 678 de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 20 set. 2021.

43
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3. OS ESTADOS E SUAS OBRIGAÇÕES NO DIDH


Em razão do predomínio de um modelo de responsabilidade vertical por violações de direitos humanos,
verifica-se que os Estados são os principais sujeitos dotados de obrigações por meio das normas de DIDH.
De acordo com o art. 1º da CADH: “Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar
os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que
esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nasci-
mento ou qualquer outra condição social.”
Ainda, art. 2º (1) do PIDCP prevê que “Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar
e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição
os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo.
língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica,
nascimento ou qualquer condição”.
No século XX, o desenvolvimento do DIDH repercutiu na criação de obrigações internacionais para os
Estados. Em âmbito interno, isso se deu também em níveis federal, estadual e municipal33, englobando
funções executivas, legislativas e judiciárias, que podem ser agrupadas da seguinte maneira:

• Obrigação de respeitar: Nenhum dos órgãos pertencentes ao Estado deve violar os direitos
humanos por meio de ações ou omissões; o estado deve abster-se de interferir, dificultar ou
restringir o exercício de tais direitos por indivíduos. 34
• Obrigação de proteger: Os órgãos pertencentes ao Estado devem evitar que particulares
(empresas, sindicatos, pessoas, grupos religiosos, associações ou qualquer outra instituição
não-estatal) violem os direitos humanos. Ou seja, o Estado deve proteger indivíduos e grupos
contra violações de seus direitos por terceiros, inclusive por atores privados. 35

Referida responsabilidade pode ser identificada no Caso Simone André Diniz vs Brasil, onde a CIDH,
por meio do Relatório Nº 66/06, 36 concluiu que o Estado brasileiro foi responsável pela violação do
direito à igualdade perante a lei, à proteção judicial, às garantias judiciais, entre outros, em razão de
não ter tomado as devidas diligências diante da violação dos direitos de Simone André Diniz por outra
pessoa física que havia sido acusada de praticar crime de racismo.
Dentro da obrigação de proteger, destaca-se o conceito da Responsabilidade de Proteger (R2P, na sigla,
do Inglês “Responsability to Protect”), originalmente cunhado pela Comissão Internacional sobre Inter-
venção e Soberania Estatal (ICISS, na sigla em inglês). 37 O relatório da ICISS, publicado em 2001, define
a R2P como: “a ideia de que os Estados soberanos têm a responsabilidade de proteger seus próprios
cidadãos de catástrofes evitáveis -​​ de assassinato em massa e estupro, de fome - mas que quando eles

33
VAN DER PLANCKE, Veronique et al. Corporate Accountability for Human Rights Abuses: A Guide for Victims and NGOs on Resource
Mechanisms. 3. ed. 2016
34
VAN DER PLANCKE, Veronique et al. Corporate Accountability for Human Rights Abuses: A Guide for Victims and NGOs on Resource
Mechanisms. 3. ed. 2016.
35
VÁZQUEZ, Daniel; DELAPLACE, Domitille. Políticas públicas na perspectiva de direitos humanos: um campo em construção. Revista Inter-
nacional de Direitos Humanos / SUR – Rede Universitária de Direitos Humanos, v.1, n.1, jan., São Paulo, 2004, p.42. Disponível em: https://
sbsa.com.br/wp-content/uploads/2020/08/Revista-Internacional-de-Direitos-Humanos-SUR-v.-14.pdf. Acesso em: 15 out. 2022.
36
CIDH. Relatório nº 66/06. 2006. Disponível em: http://www.cidh.org/annualrep/2006port/brasil.12001port.htm. Acesso em: 20 de set.
2021.


37
FOLEY, Conor. Avanços Normativos sobre a Proteção de Civis em Conflitos Armados. In: HAMANN, Eduarda P.; MUGGAH, Robert (orgs.).
A implementação da responsabilidade de proteger: Novos rumos para a paz e a segurança internacional. Brasília: Instituto Igarapé,
2013.

44
SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: ASPECTOS GERAIS

não querem ou são incapazes de fazê-lo, essa responsabilidade deve ser assumida pela comunidade
mais ampla de Estados.”38
O referido documento foi adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da Resolução
60/1, na Cúpula Mundial de 2005, 39 estabelecendo o capítulo específico para a “Responsabilidade de
proteger as populações do genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade”,
apontando em seu parágrafo 138 a responsabilidade de cada Estado: “138. Cada Estado é responsável
por proteger sua população do genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humani-
dade. Esta responsabilidade implica a prevenção de tais crimes, incluindo o incitamento à sua prática,
mediante a adoção das medidas cabíveis e necessárias. Aceitamos essa responsabilidade e concor-
damos em agir de acordo. A comunidade internacional deve, conforme apropriado, encorajar e ajudar
os Estados a exercer essa responsabilidade e ajudar as Nações Unidas a estabelecer uma capacidade
de alerta precoce.”40
A R2P se aplica a violações graves de direitos humanos com “perda de vidas em grande escala ou
limpeza étnica em grande escala”. deve ser motivada por situações caracterizadas pela presença dos
seguintes critérios41: 1) justa causa; 2) correta intenção; 3) autoridade competente; 4) último recurso; 5)
meios proporcionais; e 6) Probabilidades razoáveis de sucesso.

• Obrigação de garantir: Obriga os Estados a organizar todo o aparelho governamental de


tal forma que as pessoas possam exercer seus direitos. Pode ser subdividida em quatro
obrigações: a obrigação de prevenir violações de DH, a obrigação de investigar os casos de
violações de direitos humanos, a obrigação de punir os autores intelectuais e materiais das
violações de direitos humanos e a de reparar os direitos violados das vítimas.
• Obrigação de cumprir ou tomar medidas: Os órgãos de governo devem realizar ações
tendentes ao cumprimento das obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.

4. O CARÁTER SUBSIDIÁRIO DA JURISDIÇÃO INTERNACIONAL

Em razão do princípio da complementariedade, os organismos internacionais apenas atuam nos casos


de violação de direitos humanos de forma subsidiária. Isso ocorre em razão de os Estados deterem
primordialmente tanto a responsabilidade quanto a obrigação de exercer sua jurisdição sobre as viola-
ções de direitos humanos.

38
No original; “(...) the idea that sovereign states have a responsibility to protect their own citizens from avoidable catastrophe – from mass
murder and rape, from starvation – but that when they are unwilling or unable to do so, that responsibility must be borne by the broader
community of states (...)”. COMISSÃO INTERNACIONAL DE INTERVENÇÃO E SOBERANIA ESTATAL (ICISS) (2001), The Responsibility
to Protect: Report of the International Commission on Intervention and State Sovereignty. 2001. Disponível em: https://www.globalr2p.
org/resources/the-responsibility-to-protect-report-of-the-international-commission-on-intervention-and-state-sovereignty-2001/#:~:-
text=1%20December%202001,for%20the%20responsibility%20to%20protect. Acesso em: 30 mai. 2021
39
FOLEY, Conor. Avanços Normativos sobre a Proteção de Civis em Conflitos Armados. In: HAMANN, Eduarda P.; MUGGAH, Robert (orgs.).
A implementação da responsabilidade de proteger: Novos rumos para a paz e a segurança internacional. Brasília: Instituto Igarapé,
2013.
40
No original “138. Each individual State has the responsibility to protect its populations from genocide, war crimes, ethnic cleansing and
crimes againsthumanity. This responsibility entails the prevention of such crimes, including their incitement, throughappropriate and
necessary means. We accept thatresponsibility and will act in accordance with it. The international community should, as appropriate, en-
courage and help States to exercise thisresponsibility and support the United Nations in establishingan early warning capability”. ORGA-
NIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. 2005 World SummitOutcome document. 2005. Disponível em https://www.un.org/en/development/
desa/population/migration/generalassembly/docs/globalcompact/A_RES_60_1.pdf.Acesso em: 19 de out.


41
HILPOLD, Peter. From Humanitarian Intervention to the Responsibility to Protect. In: HILPOLD, Peter. Responsibility to protect: a new
paradigm of international law? Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2014.

45
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

No caso do SIDH, a regra do esgotamento dos recursos internos está prevista no artigo 46. 1. (a) e (b), da
CADH. Essa regra determina que uma petição ou comunicação apresentada à CIDH só será admitida se
os recursos da jurisdição interna tiverem sido interpostos e esgotados pela pretensa vítima, de acordo
com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos. De tal modo, a petição ou comu-
nicação deve ser apresentada no prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado
em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva.42
Ressalta-se, ainda, que no SIDH, tal regra pode ser mitigada nos casos previstos pela 46. 2. (a), (b) e
(c): quando não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para
a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados; não se houver permitido ao
presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele
impedido de esgotá-los; e houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.43
No sistema global, tal regra também existe. No Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos, por exemplo, está contida no art. 2º, ao afirmar que os indivíduos que se
considerem vítimas da violação de qualquer dos direitos enunciados no Pacto e que tenham esgotado
todos os recursos internos disponíveis podem apresentar uma comunicação escrita ao Comitê para
que este a examine.44

5. CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DA VIOLAÇÃO


DO DIDH PARA OS ESTADOS

O DIDH prevê diversas medidas que podem ser estabelecidas em caso de violação de direitos
humanos, por meio de recomendações (como na CIDH ou nos Comitês da ONU) ou por sentença
(como na Corte IDH45). Tais medidas precisam ser estabelecidas em tratados internacionais dos quais
o Estado faça parte.
As medidas adotadas podem variar: cessação da violação de direito; determinação de abstenção de
futuras violações de direito; restituição; indenização; medidas de satisfação, tais como desculpas
oficiais ou a criação de instituições destinadas a rememorar continuamente as respectivas violações
de direitos humanos, o desenvolvimento de programas de formação e capacitação de um determinado
pessoal, entre outras46.

6. O BRASIL E OS SISTEMAS INTERNACIONAIS


DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Em razão de o Brasil ser um Estado-membro tanto da ONU quanto da OEA, o Estado brasileiro possui
obrigações vinculantes com as normas de direitos humanos dessas organizações. Tais obrigações

42
OEA. Convenção americana sobre direitos humanos. 1969.
43
OEA. Convenção americana sobre direitos humanos. 1969.
44
ONU. Protocolo Facultativo referente ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. 1966.
45
O Sistema Global de Proteção de Direitos Humanos da ONU não conta com um Tribunal internacional com competência para conhecer
e examinar reclamações de indivíduos contra Estados que aleguem violação de direitos humanos garantidos pelo DIDH. O Tribunal Penal
Internacional, órgão da ONU criado pelo Estatuto de Roma, tem competência para processar e julgar os crimes previstos no Estatuto, a
saber, genocídio, crimes contra humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão (art. 5º.).
46
PETERKE, Syen. Doutrinas Gerais. In.: PETERKE, Syen (coordenador). Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Es-
cola Superior do Ministério Público da União, 2009.

46
SISTEMAS INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: ASPECTOS GERAIS

podem ser encontradas tanto nas Cartas das Organizações, mas também nos demais tratados ratifi-
cados em cada sistema.
De acordo com uma leitura combinada de vários dispositivos da Constituição Brasileira de 1988,
sobretudo o art. 102, inciso III, alínea b, os tratados internacionais têm status de lei ordinária federal. O
Supremo Tribunal Federal (STF) adotava o entendimento de que todo e qualquer tratado internacional,
independentemente de seu conteúdo, tinha o status de lei ordinária, seguindo o disposto na Cons-
tituição Federal:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Consti-


tuição, cabendo-lhe:
[...]
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância,
quando a decisão recorrida:
[...]
b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal47;

No entanto, no dia 03 de dezembro de 2008, por meio do voto do Ministro Gilmar Mendes, o STF
definiu que os tratados internacionais de Direitos Humanos têm status supralegal:
Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralega-
lidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os
tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial
em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de
supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a
supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equi-
pará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de
proteção dos direitos da pessoa humana.
[...]
Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infra-
constitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada.48

Os tratados internacionais que versarem sobre direitos humanos e que forem aprovados por maioria
simples pelo Congresso Nacional (procedimento ordinário – artigo 47 da CF), possuem status
supralegal, situando-se entre as leis ordinárias e a própria Constituição, enquanto os tratados interna-
cionais que não versarem sobre Direitos Humanos permanecem com o status legal de lei ordinária.49
Todavia, existe também a possibilidade de os tratados de direitos humanos equivalerem às emendas
constitucionais, conforme previsto no artigo 5ª, §3º da Constituição Federal:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em


cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional


47
CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA. 1988. Artigo 5º, inciso III, alínea b. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constitui-
cao/constituicao.htm. Acesso em: 27 out. 2019.
48
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 466.343-SP. Disponível em http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/re466343.pdf. Acesso em: 25 out.
2019.
49
Sobre a discussão do status supralegal dos direitos humanos, ver: MAUÉS, Antonio Moreira. Supralegalidade dos Tratados Internacionais
de Direitos Humanos e Diálogo Judicial. In: MAUÉS Antonio Moreira; MAGALHÃES, Breno Baía (organizadores). O cumprimento das
sentenças da Corte Intramericana de Direitos Humanos : Brasil, Argentina, Colômbia e México. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2017.p. 1-17.

47
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

nº 45, de 2004) (Atos aprovados na forma deste parágrafo: DLG nº 186, de 2008, DEC 6.949, de
2009, DLG 261, de 2015, DEC 9.522, de 2018)50

O Estado Brasileiro adota a tripla hierarquia dos tratados internacionais, eis que estes podem ter status
de lei ordinária (caso não versem sobre Direitos Humanos), de norma supralegal (tratado de direitos
humanos aprovado pelo Congresso por maioria simples) e de emenda constitucional (tratado de
direitos humanos aprovado em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
votos dos respectivos membros).
Sobre a incorporação dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, Flávia Piovesan51
entende que o Brasil opta por um sistema misto: os tratados internacionais de proteção de direitos
humanos, em razão do art. 5º § 1º, são incorporados automaticamente; enquanto os demais tratados
necessitam de incorporação legislativa, uma vez que se exige a intermediação de um ato normativo
para tornar o tratado obrigatório em âmbito interno. De tal modo, Piovesan entende que, diante do
princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, os
tratados de direitos humanos, assim que ratificados, devem produzir efeitos na ordem jurídica interna-
cional e interna, dispensando a edição de decreto de execução.
A interpretação de Piovesan é no sentido de que o acréscimo do § 3º do art. 5º da Constituição Federal
veio a fortalecer o entendimento em prol da incorporação automática dos tratados de direitos humanos.
Ou seja, não parece congruente que após finalizar-se o processo solene e especial de aprovação do
tratado de direitos humanos, fique a sua incorporação no âmbito interno condicionada a um decreto
do Presidente da República. Por outro lado, o entendimento jurisprudencial do STF tem sido no sentido
de se exigir a expedição de tal decreto. 52

50
CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA. 1988. Artigo 5º, §3º. Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Atos aprovados na for-
ma deste parágrafo: DLG nº 186, de 2008 , DEC 6.949, de 2009 , DLG 261, de 2015 , DEC 9.522, de 2018. Disponível em http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 de out. de 2019.


51
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
52
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. CR 8.279-AgR/República Argentina. 1998; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1.480-MC/DF.
2001; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na petição 7.848-Distrito Federal. 2018.

48
O SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

O SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO


DOS DIREITOS HUMANOS

Gabriel Pedro Moreira Damasceno

A definitiva afirmação dos direitos humanos no plano internacional é um fenômeno resultante do fim
da Segunda Guerra Mundial e que surge como reação aos horrores cometidos durante o maior conflito
bélico da história humana. Assim, o processo de internacionalização inicia-se com o surgimento da
Organização das Nações Unidas (ONU), cuja Carta foi assinada em 26 de junho de 1945 e tornada
lei da Organização em 24 de outubro do mesmo ano. Todavia, embora abrangesse em suas metas
fundamentais, a defesa e a difusão dos direitos humanos, foi somente com a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (DUDH), promulgada em 10 de dezembro de 1948, que estes direitos foram
realmente expressos e definidos. Na votação global da DUDH, obteve-se 48 votos a favor, nenhum
contra e 8 abstenções (União Soviética, Ucrânia, Rússia Branca, Polônia, Tchecoslováquia, Iugoslávia,
União Sul-Africana e Arábia Saudita).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada sob a forma de uma resolução e não como
um Tratado, carecendo, à primeira vista, de força legal segundo os tradicionais princípios do Direito
Internacional. No entanto, como observa Piovesan,1 ao citar Paul Sieghart, a Carta das Nações Unidas,
que inegavelmente tem caráter vinculante, e a Declaração são documentos inter-relacionados. Isso
porque a Carta estabelece, em seu art. 55, que as Nações Unidas devem promover o respeito e a obser-
vância universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, enquanto no art. 56
prevê a obrigação dos Estados-membros de promover ações para alcançar os propósitos contidos no
art. 55, porém não define esses o alcance e a definição desses direitos, o que foi feito pela Declaração
três anos depois. Essa conclusão é confirmada pelo próprio Preâmbulo da Declaração, onde se observa:

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos
fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens
e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em
uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com
as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a obser-
vância desses direitos e liberdades,

Defendendo a força jurídica vinculante da Declaração, há, segundo Piovesan, 2 os que a consideram
como parte integrante do direito costumeiro internacional ou dos princípios gerais de direito. De fato,
inúmeras são as decisões judiciais, seja no âmbito das jurisdições internas, seja das jurisdições interna-
cionais, em que a Declaração é invocada de modo a fundamentá-las. Outro fato que demonstra o seu
poder jurídico é a reprodução de suas disposições em inúmeras Constituições contemporâneas que
proclamam direitos fundamentais. Assim, por se tratar do primeiro documento a proclamar a univer-
salidade dos direitos humanos e ter contado com significativo número de aprovações, a Declaração
tem-se, efetivamente, constituído em documento jurídico vinculante para os Estados-partes da ONU,
em que pese desafiar os tradicionais conceitos do Direito Internacional.


1
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 208..
2
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 210.

49
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

De qualquer forma, como a Declaração não constitui um Tratado Internacional, o que pode ser even-
tualmente interpretado como instrumento de observação não obrigatória pelos Estados-Partes dentro
da perspectiva do Direito Internacional Público, iniciou-se em 1949 um processo de “juridicização”
da mesma. Esse processo foi concluído em 1966, com a elaboração de dois Tratados internacionais
distintos: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econô-
micos, Sociais e Culturais. Juntamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os dois
Pactos constituem o Sistema Geral de Proteção dos Direitos Humanos, formando a Carta Interna-
cional de Direitos Humanos ou a International Bill of Rights3.
O sistema universal é, no entanto, baseado em dois tipos de mecanismos: 1) Mecanismos vinculados
a órgãos criados para cumprimento dos tratados de direitos humanos das Nações Unidas (órgãos
e mecanismos baseados em tratados); 2) Mecanismos vinculados a órgãos baseados na Carta
das Nações Unidas.

1. MECANISMOS VINCULADOS A ÓRGÃOS CRIADOS PARA


CUMPRIMENTO DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS
DAS NAÇÕES UNIDAS

O sistema das Nações Unidas é baseado na DUDH e nos principais tratados internacionais que lhe
deram forma legal, dentre eles:
● Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), adotado em 16 de dezembro de
1966, entrou em vigor em 23 de março de 1976, ratificado pelo Brasil em 1992;
● Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), adotado em 16
de dezembro de 1966, entrou em vigor em 3 de janeiro de 1976, ratificado pelo Brasil em 1992;
● Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
(ICERD, em inglês), adotada em 21 de dezembro de 1965, entrou em vigor em 4 de janeiro de
1969, ratificado pelo Brasil em 1969;
● Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
(CEDAW, em inglês), adotada em 18 de dezembro de 1979, que entrou em vigor em 3 de
setembro de 1981, ratificado pelo Brasil em 2002;
● Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degra-
dantes, adotada em 10 de dezembro de 1984, que entrou em vigor em 26 de junho de 1987,
ratificado pelo Brasil em 1991;
● Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em 20 de novembro de 1989, que entrou em
vigor em 2 de setembro de 1990, ratificado pelo Brasil em 1990;
● Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes
e Membros das Suas Famílias, adotada em 18 de dezembro de 1990, que entrou em vigor em 1
de julho de 2003;
● Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em 12 de dezembro de
2006, que entrou em vigor em 3 de maio de 2008, ratificado pelo Brasil em 2009;

3
OFFICE OF THE HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Fact Sheet No.2 (Rev.1): The International Bill of Human Rights. 1996.
PDF. Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/Publications/FactSheet2Rev.1en.pdf.

50
O SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

● Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento


Forçado, aberta à assinatura em 6 de fevereiro de 2007, ainda não entrou em vigor, ratificado
pelo Brasil em 2016.
A alguns desses instrumentos foram adicionados Protocolos, concebidos com o objetivo de desen-
volver a proteção de certos direitos específicos ou para criar mecanismos que permitam aos indivíduos
apresentar queixas. A adesão aos protocolos permanece opcional para os Estados Partes nas conven-
ções correspondentes. Dentre os Protocolos podemos encontrar:
● Primeiro Protocolo Opcional ao PIDCP de 16 de dezembro de 1966;
● Segundo Protocolo Opcional ao PIDCP de 15 de dezembro de 1989, visando a abolição
da pena de morte;
● Protocolo Opcional à Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres, de
10 de dezembro de 1999, ratificado pelo Brasil em 2002;
● Protocolo Opcional à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre o envolvimento de crianças
em conflitos armados, de 25 de maio de 2000, ratificado pelo Brasil em 2004;
● Protocolo Opcional à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a venda de crianças, pros-
tituição infantil e pornografia infantil de 25 de maio de 2000;
● Protocolo Opcional à Convenção contra a Tortura de 18 de dezembro de 2002, ratificado
pelo Brasil em 2007;
● Protocolo Opcional à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 13 de
dezembro de 2006;
● Protocolo Opcional ao PIDESC de 10 de dezembro de 2008.
Os direitos estabelecidos por esses instrumentos são universais, indivisíveis, inalienáveis, irrenunciá-
veis, inexauríveis, imprescritíveis, interdependentes e inter-relacionados e pertencem a cada pessoa
individualmente.

1.1 Atividades de monitoramento dos tratados

Os principais tratados de direitos humanos das Nações Unidas possuem Comitês criados com o obje-
tivo de monitorar a adesão dos Estados-Membros e sua implementação, compostos por peritos inde-
pendentes eleitos, normalmente por um período de quatro anos, pelos Estados-Membros.
Os Comitês têm vários instrumentos e procedimentos para examinar a adesão dos Estados Membros
aos seus compromissos internacionais, dentre eles:
● Comentários ou Observações gerais - General comment: são o principal instrumento pelo qual
os Comitês publicam a interpretação das disposições de convenções internacionais de direitos
humanos e as obrigações correspondentes assumidas pelos Estados. São importantes, uma vez
que, geralmente, detalham o significado de um direito específico ou apresentam os aspectos
dos procedimentos de monitoramento;
● Relatórios estatais - State reports: os Comitês criados recebem e analisam os relatórios periodi-
camente submetidos pelos Estados-Membros que detalham os progressos internos realizados
na implementação do instrumento que se comprometeram a cumprir. Além dos avanços, esses

51
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

relatórios também detalham os obstáculos ou dificuldades que os Estados-Membros tenham


encontrado durante o período de relatório anterior;
● Reclamações interestatais - Inter-state complaints: trata-se da possibilidade que algumas
convenções e tratados possuem que permitem aos Estados Partes reclamarem ao Comitê
pertinente sobre alegadas violações ou a não implementação do tratado em questão por
outro Estado Parte;
● Reclamações individuais - Individual complaints: havendo previsão no tratado, como regra geral,
qualquer pessoa física pode apresentar reclamação a um dos Comitês contra um Estado que
ratificou o instrumento e aceitou a competência do Comitê para acolher denúncias individuais; 4
● Consultas ou visitas: quando previstas nas convenções, é possível a realização de investigações
ou visitas ao território de um Estado Parte caso recebam informações sobre violações graves
e sistemáticas dos direitos protegidos pelas convenções em país em questão. As investigações
e visitas só podem ser realizadas em relação aos Estados que reconheceram tal competência
e depois de terem recebido informação confiável sobre violações graves e sistemáticas dos
direitos em questão;
● Encaminhamento para a Assembleia Geral das Nações Unidas.
No geral, havendo uma cláusula no tratado – ou até mesmo um protocolo facultativo ao tratado –
reconhecendo a competência de um Comitê para receber e considerar comunicações de violações
de normas de DIDH, os indivíduos podem comunicar ao sistema universal a violação ocorrida. 5 Os
seguintes instrumentos normativos permitem o recebimento de reclamações individuais:
● Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos;6
● Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais;7
● Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial;8
● Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres;9
● Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes;10

4
Órgãos do Tratado das Nações Unidas que recebem e consideram queixas de indivíduos: o Comitê de Direitos Humanos (CCPR), o
Comitê contra a Tortura (CAT), o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra Mulheres (CEDAW), o Comitê para a Eliminação
da Discriminação Racial (CERD), o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD), o Comitê sobre Desaparecimentos
Forçados (CED), o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CESCR) e o Comitê sobre os Direitos da Criança (CRC).
5
OFFICE OF THE HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Fact Sheet No. 15 (Rev.1): Civil and Political Rights: The Human Rights
Committee. 2005. PDF. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Publications/FactSheet15rev.1en.pdf.
6
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo Facultativo referente ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
1966. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pacto3.htm. Acesso em: 16 out de 2022.


7
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Cul-
turais. 2008. Disponível em: http://acnudh.org/wp-content/uploads/2010/12/Carta-PIDESC-PORTUGUES-FINAL.pdf. Acesso em: 16 out.
2022.
8
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. 1965. Disponí-
vel em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000139390. Acesso em: 16 out. 2022.
9
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimina-
ção contra Mulheres. 1999. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf. Acesso
em: 16 out. 2022.
10
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degra-
dantes. 1984. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/tortura/lex221.htm. Acesso em: 16 out. 2022.

52
O SISTEMA GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

● Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes


e seus Familiares;11
● Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra Desaparecimento Forçado;12
● Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.13
Por fim, torna-se imperioso destacar que cada um dos presentes tratados apresenta requisitos de
admissibilidade, sobretudo a regra do princípio da complementariedade, ressaltando que o sistema de
proteção global de direitos humanos apenas atuará nos casos de forma subsidiária.

1.2 Mecanismos vinculados a órgãos baseados na Carta das Nações Unidas

Em conjunto aos mecanismos baseados em tratados realizados no âmbito da ONU, acima expostos, a
Carta das Nações Unidas apresenta mecanismos estabelecidos pelos órgãos criados pela própria Carta.
Esses mecanismos diferem dos mecanismos convencionais por seu caráter mais “político”. São exer-
cidos, no geral, pelo Conselho de Direitos Humanos, criado pela Assembleia Geral das Nações Unidas
em março de 2006 em razão das acusações de parcialidade e ineficiência feitas à antiga Comissão de
Direitos Humanos.
Atualmente, o Conselho de Direitos Humanos é o principal órgão das Nações Unidas que visa a
proteção dos direitos humanos, possuindo a função de estimular o respeito às obrigações assu-
midas pelos Estados e, para tanto, promover uma coordenação eficiente das atividades do sistema
das Nações Unidas14.
O Conselho é composto por representantes de 47 Estados, eleitos para um mandato de três anos, direta
e individualmente, em escrutínio secreto, pela maioria dos membros da Assembleia Geral e se reúnem
pelo menos três vezes por ano.
Em 1993, durante a Conferência Mundial de Direitos Humanos, a Assembleia Geral da ONU, através da
Resolução 48/141,15 criou o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (ACNUDH),
dedicado à promoção e proteção dos Direitos Humanos garantidos pela DIDH e estipulados na DUDH.
Os mecanismos instituídos pelos órgãos da Carta incluem principalmente:


11
“Art. 77 Qualquer Estado Parte na presente Convenção poderá, a qualquer momento, declarar, nos termos do presente artigo, que reco-
nhece a competência do Comitê para receber e examinar comunicações apresentadas por pessoas sujeitas à sua jurisdição ou em seu
nome, alegando a violação por esse Estado Parte dos seus direitos individuais, conforme estabelecidos pela presente Convenção. O Co-
mitê não receberá nenhuma comunicação relativa a um Estado Parte que não tiver apresentado a referida declaração”. ONU. Convenção
Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares. 1990.
12
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra Desaparecimento
Forçado. 2007. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/Treaties/CED/Shared%20Documents/PRT/INT_CED_STA_PRT_32941_O.pdf.
Acesso em: 16 out. 2022.
13
“Art. 1º (1). Qualquer Estado Parte do presente Protocolo (“Estado Parte”) reconhece a competência do Comitê sobre os Direitos das Pes-
soas com Deficiência (“Comitê”) para receber e considerar comunicações submetidas por pessoas ou grupos de pessoas, ou em nome
deles, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem vítimas de violação das disposições da Convenção pelo referido Estado Parte. ORGANI-
ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 2006. Disponível
em: http://www.un.org/disabilities/documents/natl/portugal-OP.doc. Acesso em: 16 out. 2022.
14
PLANCKE, Veronique van der et al. Corporate Accountability for Human Rights Abuses: A Guide for Victims and NGOs on Resource
Mechanisms. 3. ed. [S.l.: s.n.], 2016.
15
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia Geral das Nações Unidas. A/RES/48/141, de 20 de dezembro de 1993. Disponível
em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/resol4.htm. Acesso em: 16 out. 2022.

53
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

● Revisão Periódica Universal (RPU) - The Universal Periodic Review (UPR): estabelecida pelo
Conselho de Direitos Humanos, este mecanismo foi estabelecido pela Resolução 60/251 de
15 de março de 2006. Trata-se de um sistema concebido para rever regularmente o desem-
penho dos direitos humanos de todos os Estados-Membros. Este mecanismo tem o objetivo
de realizar um diálogo cooperativo liderado pelos Estados, sob a supervisão do Conselho de
Direitos Humanos. As principais fontes de informação da RPU são: as informações recolhidas
pelos Estados, apresentadas oralmente ou por escrito; as informações preparadas pelo Escri-
tório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos dos órgãos das Nações Unidas; as infor-
mações fornecidas por ONGs e instituições nacionais de direitos humanos;
● O procedimento 1503 - The complaint procedure of the Council – revised 1503 procedure: obje-
tiva permitir o exame de comunicações individuais em relação a qualquer padrão consistente
de violações graves e comprovadas de direitos humanos. Em princípio, nenhum governo pode
derrogar este procedimento;
● Os Procedimentos Especiais possuem o objetivo de examinar uma situação de direitos humanos
em determinado Estado ou promover direitos humanos específicos ou temas relacionados.
Normalmente são confiados mandatos a especialistas que são auxiliados em seu trabalho pelo
Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, mas também é possível se criar
Grupos de Trabalho quem geralmente, são compostos por cinco especialistas independentes.
Por fim, cabe ressaltar que existem outros órgãos internacionais que cuidam dos direitos humanos,
mas que, entretanto, não estão subordinados ao Conselho. Por exemplo: Mecanismo Especial para os
Direitos dos Povos Indígenas16; ACNUR17; R2P18; entre outros.

16
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia Geral das Nações Unidas. A/RES/48/141, de 20 de dezembro de 1993. Disponível
em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/resol4.htm. Acesso em: 16 out. 2022.


17
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. 2021. Site. Disponível em: https://
www.acnur.org/portugues/. Acesso em: 16 out. 2022.
18
UNITED NATIONS. Responsibility to protect. [2021?]. Site. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/about-responsibi-
lity-to-protect.shtml.

54
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

SISTEMA INTERAMERICANO DE
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Raysa Antônia Alves Alves

1. ORIGEM E ESTRUTURA DO SISTEMA INTERAMERICANO


DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

O período histórico do pós-guerra foi marcado pela criação e adoção de medidas que buscavam a
construção da proteção internacional destinada à pessoa humana. Umas das principais marcas desta
transformação na sociedade internacional foi a tentativa de limitar a soberania ilimitada dos Estados,
que culminava nos excessos relacionados ao uso da força ou na permissividade com que o recurso da
guerra era acionado para uma diversidade de fins.1
Esta preocupação inaugurou um novo paradigma e referencial ético na nova ordem internacional
contemporânea2 e culminou no fenômeno indicado por Antônio Cançado Trindade como a huma-
nização do direito internacional. 3 É neste contexto que surge a ONU em 1945 e é aprovada a DUDH
em 1948. Concomitantemente, foi incentivada pela própria ONU a criação de organismos regionais
destinados ao debate sobre temas relacionados à paz, à segurança e à proteção da pessoa humana.4
O continente americano foi pioneiro neste movimento. 5 As primeiras discussões sobre a necessidade
de consolidação da proteção internacional dos direitos da pessoa humana tiveram lugar já no processo
de criação da OEA e suas estruturas. O ato de criação da OEA ocorreu na IX Conferência Internacional
dos Estados Americanos, em 30 de abril de 1948, na cidade de Bogotá na Colômbia, com a assinatura
da Carta da Organização dos Estados Americanos (Carta da OEA). Nas palavras de Cristina Terezo, a
conferência significou o “apogeu das relações internacionais interamericanas.”6
Na ocasião, discutiu-se sobre a necessidade dos Estados-membros da OEA organizarem-se em regimes
democráticos, os quais tivessem como um de seus objetivos centrais o reconhecimento dos direitos
indispensáveis à proteção da dignidade humana. A Carta da OEA, bem como a DADDH, ambas assi-
nadas conjuntamente, cumpriram o papel de trazer os primeiros marcos protetivos sobre o assunto à
recém-criada organização internacional, direcionando os Estados para a adoção de mecanismos de


1
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Humanização do Direito Internacional. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 110.
2
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano
e africano. São Paulo: Editora Saraiva, 2017, p. 39.
3
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Humanização do Direito Internacional. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 110-111.
4
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 133.
5
ANTKOWIAK, Thomas M.; GONZA, Alejandra. The American Convention on Human Rights: essential rights. 1ªed. New York: Oxford
University Press, 2017, p. 5. Livro eletrônico. Disponível em: https://libgen.is/book/index.php?md5=BD08435A2967D90AA8CB2A88D-
F83B5CB. Acesso em: 19 de jan. 2021.
6
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 137.

55
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

cumprimento dos compromissos assumidos naquela oportunidade. Para tal deveriam levar em consi-
deração sua situação socioeconômica da época, bem como as características culturais locais. 7
Em contraste com a época, o SIDH nasceu marcado por um caráter progressista e inovador. O contorno
dos debates sobre a proteção da pessoa humana no continente americano alinhou-se ao ideal de que
os Estados não seriam mais os únicos e nem os mais preponderantes sujeitos de direito internacional,
ao mesmo passo em que sua evolução caminharia rumo à possibilidade de o indivíduo pleitear seus
direitos na esfera internacional.8

2. ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DO SISTEMA


INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Após a assinatura da Carta da OEA e da DADDH, as discussões sobre a proteção dos direitos humanos
e os mecanismos existentes na estrutura da OEA para este fim só retornariam à pauta prioritária em
1959.9 Tais debates, que ganharam corpo após inúmeros encontros e conferências, culminaram com a
elaboração e aprovação da CADH, em 1969.
A CADH é o tratado específico sobre a proteção dos direitos humanos na região. Com ele, o SIDH
conquistou seu atual desenho institucional e repartição de funções. Sua estrutura de monitoramento
do cumprimento das obrigações que derivam da CADH está dividida em dois órgãos, de acordo com
o artigo 33 da CADH: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (adiante CIDH, Comissão ou
Comissão Interamericana) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (adiante Corte IDH, Corte
Interamericana ou Corte de San José).
Tais órgãos foram criados para compartilhar funções e colaborar entre si tanto dentro do sistema
de petições individuais e casos, quanto na atividade de “monitorar o cumprimento do disposto nos
tratados interamericanos aderidos ou ratificados pelos Estados-parte, tendo em vista o que determina
a Carta da OEA e a CADH.”10

2.1 Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)


A CIDH foi o primeiro órgão do SIDH a ser criado. A CIDH é um órgão relevante e autônomo da OEA
instituído em 1959, com o intuito de atuar em prol da promoção e proteção dos direitos humanos no
continente americano. Sua estrutura e funcionamento passaram por sucessivas reformas até que a
CADH definisse seus atuais contornos e a vinculasse ao então recém-criado SIDH. Além da CADH, seus
procedimentos e operações são regidos por seu Regulamento e seu Estatuto, bem como pelo texto da
própria Carta OEA.
Suas funções essenciais constam no artigo 106 da Carta da OEA. São elas: servir como órgão consul-
tivo da OEA em matéria de direitos humanos e promover a observância, monitoramento e defesa dos


7
HEYNS, Christof; PADILLA, David; ZWAAK, Leo. Comparação esquemática dos Sistemas Regionais de direitos humanos: uma atualização.
SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos, n. 4, ano 3, 2006. Disponível em:www.scielo.br/pdf/sur/v3n4/09.pdf. Acesso em: 06
maio 2020, p. 162.
8
CAMBIAGHII, Cristina Timponi; VANNUCHI, Paulo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH): reformar para forta-
lecer. Lua Nova - Revista de Cultura e Política, São Paulo, 2013. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-64452013000300006. Acesso em: 06 maio 2020.
9
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 149.
10
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 200.

56
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

direitos humanos no continente.11 Ainda, a Comissão representa e exerce suas funções frente a todos
os Estados-membros da OEA, sejam eles Estados-partes ou não da CADH, como está disposto no
artigo 35 da CADH.12
A partir destes instrumentos, é possível determinar a estrutura, organização, composição, funções e
procedimento específicos, conforme se verá a seguir.

2.1.1 Estrutura, organização e composição

O trabalho da CIDH é realizado com base em três pilares fundamentais: o sistema de petição individual,
o monitoramento da situação dos direitos humanos nos Estados-membros da OEA e a atenção às linhas
temáticas prioritárias da região interamericana. Estre trabalho e suas atribuições são desempenhados
pelos comissionados e comissionadas, por especialistas independentes titulares de uma relatoria temá-
tica e pela Secretaria Executiva.
Os comissionados e comissionadas são membros independentes, eleitos pela Assembleia Geral da
OEA e devem ser dotados de elevada autoridade moral e notório conhecimento na matéria de Direitos
Humanos conforme exige o artigo 34 da CADH. São eleitos sete membros dentre os quais três irão
compor a diretoria da CIDH ocupando os cargos de presidente, 1º vice-presidente e 2ª vice-presidente.
Os seus mandatos possuem a duração de quatro anos e só podem ser reeleitos uma vez.
As funções exercidas por eles e elas estão previstas no artigo 9 do Estatuto da CIDH. Dentre as de maior
notoriedade destacam-se aquelas desempenhadas no âmbito das relatorias da Comissão Interame-
ricana, que podem ser relatorias temáticas e por países. Cada membro da Comissão será designado
como comissionado-relator para um Estado-membro da OEA e, concomitantemente, para um tema de
especial interesse para a promoção e proteção dos direitos humanos na região. Importa ressaltar que
apenas comissionados ou comissionadas podem estar à frente de uma relatoria temática ou de uma
relatoria para um país.
Além do trabalho exercido pelos comissionados e comissionadas, de acordo com o artigo 15 do seu
Regulamento, a CIDH tem a faculdade de criar relatorias especiais. Tais relatorias permitem o estudo
aprofundado sobre determinado direito protegido pelo corpo normativo interamericano ou temática
especialmente importante para a região.
Os mandatos das relatorias especiais são exercidos por especialistas independentes, escolhidos
mediante a realização de um processo seletivo promovido no âmbito da própria CIDH. Por não acumu-
larem outros mandatos e funções, o desempenho de suas atividades é feito de forma aprofundada e
oferecendo uma ação mais coordenada em prol da matéria a que dedica sua atuação. Atualmente,
existem duas relatorias temáticas instituídas pela CIDH, são elas: a Relatoria Especial para a Liberdade
de Expressão e a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais.

Tabela 1 – Relatorias temáticas e especiais da Comissão Interamericana de


Direitos Humanos13

Ano de
Relatoria Atuação
Criação

11
SALMÓN, Elizabeth. Introducción al sistema interamericano de derechos humanos. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú,
Fondo Editorial, 2019, p.103.
12
FAÚNDEZ, Héctor Ledesma. El sistema interamericano de protección de los derechos humanos: aspectos institucionales y procesa-
les. 3ª ed. San José, Costa Rica: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 2004, p. 142.
13
Mais informações a respeito das Relatorias Temáticas da CIDH podem ser acessadas em: http://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/
cidh/r/default.asp. Acesso em 30 set. 2021.

57
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Atua para fortalecer e impulsionar o trabalho voltado a


proteção povos indígenas da região, sobretudo detec-
RELATORIA SOBRE OS DIREITOS tando e monitorando em prol daqueles que se encontram
1990
DOS POVOS INDÍGENAS em especial situação de vulnerabilidade. Um dos produtos
mais destacados de seu trabalho é a emissão de diversos
relatórios temáticos escritos sobre a temática.

Atua para criar consciência sobre a necessidade de adoção


de medidas para garantir que as mulheres possam exercer
RELATORIA SOBRE OS os direitos básicos, bem como fomentar o cumprimento
1994
DIREITOS DA MULHER das obrigações estatais a partir de relatórios. Ademais, visa
promover mecanismos para melhorar a proteção das dos
direitos das mulheres no SIDH..
Esta relatoria tratava especificamente sobre trabalhadores
migratórios e seus membros familiares, porém em 2012 o
mandato foi ampliado em razão das dificuldades enfren-
RELATORIA SOBRE OS DIREITOS tadas na região. Assim a atuação tem como foco o respeito
1996
DAS PESSOAS MIGRANTES e garantia dos direitos das pessoas migrantes, em face
da sua especial vulnerabilidade. Um dos principais resul-
tados é o desenvolvimento jurisprudencial e das opiniões
consultivas emitidas pela CorteIDH.
Atua auxiliando a CIDH na avaliação de casos individuais,
bem como na elaboração de recomendações de medidas
RELATORIA ESPECIAL PARA A cautelares e na realização de visitas in loco. Dentre
1997
LIBERDADE DE EXPRESSÃO, 1997 os resultados, destaca-se a elaboração do Relatório
Anual e as atividades de capacitação de “atores estraté-
gicos” na região.
Atua a partir da análise e acompanhamento da situação
de crianças e adolescentes, bem como no tramite de
RELATORIA SOBRE OS DIREITOS petições, medidas cautelares. Destaca-se o importante
1998
DA CRIANÇA E ADOLESCENTES relatório por esta realizado em 2019, que contém um
importante compilado de práticas e desafios do cumpri-
mento das recomendações da CIDH.
Atua para auxiliar no acompanhamento da situação dos
RELATORIA SOBRE DEFENSORES defensores e defensoras de Direitos Humanos conside-
2001
DE DIREITOS HUMANOS rando a vulnerabilidade e as diversas violações, emitindo
informes para auxiliar na defesa deste grupo.
Atua no monitoramento das pessoas submetidas a qual-
RELATORIA SOBRE OS
quer forma de privação de liberdade, promovendo visitas
DIREITOS DAS PESSOAS 2004
aos Estados, bem como na preparação de informes com
PRIVADAS DE LIBERDADE
recomendações especializadas.
Atua com objetivo de gerar conhecimento das obrigações
RELATORIA SOBRE OS estatais no respeito dos direitos humanos de afrodes-
DIREITOS DOS AFRODES- cendentes e na eliminação das formas de discriminação
2005
CENDENTES E CONTRA A racial. Dentre os resultados, destaca-se a base de dados
DISCRIMINAÇÃO RACIAL com a informação mais atual recebida e as atividades de
educação e treinamento.

58
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Atua com o objetivo de dar continuidade ao trabalho


antes realizado pela Unidade Especializada, refletindo
o compromisso da CIDH em fortalecer a proteção,
RELATORIA SOBRE OS DIREITOS promoção e monitoramento das violações de direitos
DE PESSOAS LÉSBICAS, GAYS, 2014 humanos das pessoas do grupo LGBTI.
BISSEXUAIS, TRANS E INTERSEX
Destaca-se a realização de dois importantes rela-
tórios sobre os desafios de efetivação de direitos
na América Latina.
RELATORIA ESPECIAL SOBRE Atua no fortalecimento e aprofundamento do trabalho de
OS DIREITOS ECONÔ- defesa e proteção dos direitos econômicos, sociais, cultu-
2017
MICOS, SOCIAIS, CULTU- rais e ambientais, em face da alta demanda enviada pela
RAIS E AMBIENTAIS sociedade civil e pelos Estados, de maneira geral.
Atua para analisar especificamente os desafios na imple-
RELATORIA SOBRE MEMÓRIA, mentação das medidas determinadas no âmbito do SIDH,
2019
VERDADE E JUSTIÇA auxiliando na luta contra a impunidade e a promoção da
reparação integral, a verdade, a memória no continente.
Atua para auxiliar, ampliar e aprofundar a institucionali-
RELATORIA SOBRE OS
2019 zação do seguimento da proteção dos direitos dos idosos,
DIREITOS DO IDOSO
uma vez que é um desafio prioritário na região.
Atua para auxiliar o sistema de petições e casos, medidas
cautelares, audiências e relatórios da CIDH em face da
RELATORIA SOBRE AS PESSOAS
2019 situação de especial vulnerabilidade enfrentada pelo
COM DEFICIÊNCIA
grupo, que foi considerado tema prioritário no plano
estratégico de 2017-2021 da CIDH.
Fonte: Tabela elaborada pela autora, 2021.

Por fim, a Secretaria Executiva é uma unidade executiva especializada da CIDH que atua realizando
as seguintes funções: elaboração de projetos de relatórios; resoluções; estudos especializados; rece-
bimento e trâmite das petições encaminhadas à CIDH contendo supostas violações ao conteúdo das
convenções interamericanas e seus protocolos; recebimento e trâmite das comunicações enviadas às
CIDH.14 Sua estrutura é complexa e essencial ao sistema de peticionamento e casos do SIDH. Vejamos
a seguir o desenho geral da estrutura da CIDH.

14
SALMÓN, Elizabeth. Introducción al sistema interamericano de derechos humanos. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú,
Fondo Editorial, 2019, p.124.

59
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Figura 1 – Organograma da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Fonte: organograma elaborado pela autora, 2021.

2.1.2 Funções e competência

As principais funções exercidas pela CIDH estão disciplinadas primordialmente nos artigos 41 a 57 da
CADH, 18 do Estatuto da CIDH e 25 do Regulamento da CIDH. Cabe ressaltar que dos 35 Estados-
-membros da OEA, 23 deles cumpriram os procedimentos de ratificação da CADH.15 Todavia, a principal
inserção realizada no âmbito das competências da Comissão, foi a diferenciação entre as funções
do órgão desempenhadas para os países que são Estados-Parte da CADH e para os países que são
Estados-membros da OEA e signatários da Carta da OEA.16 Este fator permitiu alcance e exercício
de funções político-diplomáticas perante todos os Estados-membros da OEA, incluindo os que não
ratificaram a CADH.17

15
Ver status de ratificação da CADH em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm. Acesso em 05
nov. 2021.
16
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 209-210.


17
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 209-210.

60
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Neste sentido, as funções da CIDH são exercidas perante cada Estado-membro da OEA seguindo a
distribuição que consta na figura a seguir, que é baseada nos documentos interamericanos com os
quais estão comprometidos:

Figura 2 – Competência da CIDH para exercer suas funções frente aos Estados-membros
da OEA, que são signatários apenas da Carta da OEA.

Fonte: Imagem elaborada pela autora, 2021.

Figura 3 – Competência da CIDH para exercer suas funções frente aos Estados-mem-
bros da OEA, que ratificaram a CADH18.

Fonte: Imagem elaborada pela autora, 2021.


18
Estes países são signatários apenas da Convenção Americana e não aceitaram a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

61
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Figura 4 – Competência da CIDH para exercer suas funções frente aos Estados-membros da OEA, que
ratificaram a CADH e aceitaram a competência contenciosa da Corte IDH.

Fonte: Imagem elaborada pela autora, 2021.

Considerando esta disposição de competências, a CIDH pode exercer suas funções, dentre as quais
está o recebimento, análise e processamento petições individuais que aleguem violações de direitos
humanos, bem como pode receber e analisar comunicações interestatais.
Sobre o recebimento de petições individuais, estas devem estar em acordo com o artigo 28 do Regu-
lamento da Comissão. Estas possuem características específicas, as quais deve-se respeitar também
as regras do artigo 46.1 e 2 da CADH. Dentre estas regras, deve respeitar o esgotamento dos recursos
internos ou a demonstração de inadequação destes, por exemplo.
A partir da análise e processamento da demanda, a Comissão pode estabelecer a responsabilidade
internacional de um Estado-membro por violação dos direitos previstos na Convenção e nos Tratados.
Se o caso analisado representar, de fato, violação de direitos previstos nos instrumentos internacio-
nais do SIDH, a CIDH pode proceder com a publicação de Recomendações, ou com a tentativa de
um Acordo de Solução Amistosa entre o Estado e as vítimas em questão. Se as Recomendações ou
o Acordo não forem cumpridas, pode remeter ainda o caso à Corte Interamericana, caso o Estado
violador tenha ratificado a CADH e aceito a jurisdição da Corte IDH.
Além disso, a CIDH pode elaborar e publicar relatórios temáticos e sobre a situação de Direitos Humanos
nos países signatários da Carta da OEA, bem como realizar visitas in loco para emissão de relatórios.
Sobre os relatórios, estes devem estar em acordo com o artigo 18 do Estatuto da CIDH e se enquadram
na função de elaborar e publicar estudos e recomendações pertinentes. Em decorrência deste dispo-
sitivo, a CIDH também possui a função de consulta e assessoramento sobre a temática dos Direitos
Humanos, aplicação dos direitos previstos na Convenção e nos demais tratados, assessoria para o
cumprimento das obrigações atinentes aos Estados Membros.
Os resultados destes relatórios devem ser considerados como fontes doutrinárias aos países signatários
da Carta da OEA, pois tem como base uma análise ponderada das normas internacionais relevantes,
como a Recomendação sobre Asilo e Crimes Internacionais, os Princípios e Melhores Práticas sobre

62
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas. Da mesma forma devem ser considerados os capítulos
gerais dos relatórios temáticos recentemente adotados pela CIDH, tais como “A Situação da Mulher
nas Américas”, “A Situação dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas nas Américas”, “Terrorismo e
Direitos Humanos”, dentre outros19. Já os relatórios da CIDH sobre a situação dos direitos humanos
em países específicos também contêm observações e conclusões relevantes para a interpretação do
direito interamericano20.
Quanto às visitas in loco, estas possuem o objetivo de verificar a realização dos Direitos Humanos no
Estado21. Para tanto, são realizadas algumas atividades como a oitiva de vítimas ou familiares, coleta
de informações governamentais e não governamentais. A visita, contudo, somente será realizada
naqueles países que aceitaram expressamente o recebimento destas visitas. 22 O resultado destas visitas
e de alguns relatórios estão intimamente relacionados à função de estímulo à conscientização sobre os
Direitos Humanos nas Américas, bem como pode oferecer elementos para o diagnóstico e o enfrenta-
mento de problemas locais.
Para mais, a CIDH pode recomendar aos Estados a adoção de Medidas Cautelares. 23 Estas são de natu-
reza provisória e tem como objetivo contribuir para a proteção dos direitos humanos em situações de
urgência. Quando necessário, ou seja, quando verificada urgência e iminente risco de grave perigo às
pessoas a CIDH pode requerer à Corte IDH a concessão de Medidas Provisórias, 24 mesmo que o caso
ainda não tenha sido submetido ao referido órgão. 25
Sobre o tema, desde quando a CADH atribuiu à CIDH a competência de conhecer dos casos individuais
que chegariam ao SIDH, este órgão tem emitidos recomendações dirigidas aos Estados para que estes
adotem determinadas medidas com o condão de evitar que a vida ou a integridade pessoal dos benefi-
ciários destas recomendações sejam comprometidas26 por danos irreparáveis. 27
Originalmente esta função foi exercida com fundamento jurídico imediato no direito comparado,
adotando analogia com o instituto jurídico das medidas provisórias de que dispunham os Estados em

19
O’DONNELL, Daniel. Derecho internacional de los derechos humanos: Normativa, jurisprudencia y doctrina de los Sistemas Universal
e Interamericano. 2 ed. Ebook. México: Tribunal Superior de Justiça del Distrito Federal, 2012, p. 50.
20
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Situação dos direitos humanos no Brasil. Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/
jsForm/?File=/pt/cidh/relatorios/pais.asp. Acesso em 30 set. 2021.


21
A última visita in loco feita pela CIDH no Brasil ocorreu de 5 a 12 de novembro de 2018, em decorrência de convite feito pelo Estado
brasileiro em 29 de novembro de 2017. Antes dessa visita, a CIDH fez outra visita in loco ao Brasil em 1995. O objetivo da visita foi observar
a situação dos direitos humanos no país e sua conclusão foi publicada em 12 de novembro de 2018. Nesse sentido: ORGANIZAÇÃO DOS
ESTADOS AMERICANOS. CIDH conclui visita ao Brasil. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2018/238.asp. Acesso
em 30 set. 2021; ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Observações preliminares da visita in loco da CIDH ao Brasil. Dispo-
nível em: https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf. Acesso em 30 set. 2021.
22
Ver Artigo 56 do Regulamento da CIDH.
23
Ver Artigo 25 do Regulamento da CIDH.
24
Ver Artigo 76 do Regulamento da CIDH.
25
Ver Artigo 76 da CADH.
26
SALMÓN, Elizabeth. Introducción al sistema interamericano de derechos humanos. 1ª Ed. Lima: Pontificia Universidad Católica del
Perú, Fondo Editorial, 2019, p. 264.
27
Para a discussão proposta neste trabalho, será adotada a definição de “danos irreparáveis” prevista no Regulamento da Comissão Inte-
ramericana de Direitos Humanos, precisamente em seu artigo 22.2.c, segundo a qual: “el ‘daño irreparable’ significa la afectación sobre
derechos que, por su própria naturaleza, no son susceptibles de reparación, restauración o adecuada indenización.”. Ver em: Organização
dos Estados Americanos. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Documentos básicos em materia de derechos humanos en
el sistema interamericano. Actualizado a 30 de septiembre de 2014. 2014, p. 220.

63
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

seus ordenamentos jurídicos domésticos28. Entretanto, em 1979, a competência específica de outorgar


medidas cautelares foi formalmente incorporada ao rol de atribuições da CIDH, mediante a incorpo-
ração do artigo 25 ao Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (RCIDH). 29
Conforme dispõe o artigo 25.1 do RCIDH, 30 a Comissão poderá, por iniciativa própria, a pedido da parte
de uma petição ou caso, ou, ainda, mediante solicitação encaminhada sem que haja conexão do pedido
com uma petição ou caso, solicitar que um Estado adote medidas cautelares em benefício de uma
pessoa ou grupo de pessoas.
Essas medidas, tenham elas ou não conexão com uma petição ou caso, deverão necessariamente estar
relacionadas a situações de gravidade e urgência, nos termos previstos no artigo 22 do Regulamento
da CIDH. 31 O pedido de MC apresentado deve demonstrar risco de dano irreparável às pessoas ou ao
objeto de uma petição ou caso pendente nos órgãos do Sistema Interamericano.
De acordo com Cristina Terezo, esse procedimento não adotava regras claras quanto à admissão ou
o arquivamento das solicitações de medidas cautelares, mas a partir do Regulamento da CIDH ficou
claro quais são os critérios para solicitação. 32 Assim, a CIDH passou a estar formalmente respaldada a
emitir MC em caso de constatação da gravidade e urgência em um determinado caso, em prejuízo dos
direitos de uma pessoa ou grupo de pessoas que estivessem sob a jurisdição de um Estado que tenha
assinado a Declaração Americana.
Outra função da CIDH é a atuação junto à Corte IDH. Esta é uma das suas principais funções, uma vez
que o foco da Comissão parece estar fortemente voltado ao sistema de denúncias individuais, pelo
que se verifica do processo de reforma do seu Regulamento. 33 Conforme será demonstrado no tópico
2.1.3, há um procedimento específico para o encaminhamento dos casos para a Corte IDH, que deve
respeitar os requisitos de admissibilidade, mérito e verificação de cumprimento de Recomendações ou
Acordos. Ainda, desde 1996, os pareceres publicados pela CIDH em seus relatórios anuais incluem não
apenas decisões sobre os méritos, mas também sobre a admissibilidade das reclamações.
Para mais, a Comissão possui a prerrogativa para realizar audiências públicas. 34 Estas podem ser reali-
zadas por iniciativa própria ou por pedido da parte interessada. As audiências objetivam o recebimento
de provas e argumentos para decidir acerca da admissibilidade e o mérito das petições e, posterior-

28 CANÇADO TRINDADE, Antonio. Prólogo del presidente de la corte interamericana de derechos humanos in: Corte Interamericana
de Derechos Humanos. Compendio de Medidas Provisionales (1996-2000). 2000. Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/iachr/E/2-es-
p-pro.html. Acesso em: 18 jun. 2020; SALMÓN, Elizabeth. Introducción al sistema interamericano de derechos humanos. 1ª Edição.
Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, Fondo Editorial, 2019, p. 264
29
De acordo com o artigo 25.1 da CADH, a possibilidade de a CIDH outorgar MC encontra fundamento: nos artigos 106 da Carta da Or-
ganização dos Estados Americanos; 41.b da Convenção Americana de Direitos Humanos; no artigo 18.b do Estatuto da Comissão Intera-
mericana de Direitos Humanos; bem como, no artigo XIII da Convenção Americana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas. Sobre
o tema, ver: ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Documentos básicos en
materia de derechos humanos en el sistema interamericano. Actualizado a 30 de septiembre de 2014. 2014, p. 220.
30
Organização dos Estados Americanos. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Documentos básicos en materia de derechos
humanos en el sistema interamericano. Actualizado a 30 de septiembre de 2014. 2014, p. 220.


31
Os significados de “gravidade”, “urgência” e “danos irreparáveis” devem ser consultados no artigo 25.2 do Regulamento da CIDH.
32
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 221.
33
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. CIDH. Processo de reforma 2012. Módulo de Consulta I: Sistema de Petições Indivi-
duais. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/consulta/1_peticiones.asp. Acesso em 30 set. 2021.
34
Ver artigo 68 do Regulamento da CIDH.

64
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

mente, realiza a publicação de um relatório sobre o caso ou procede ao encaminhamento à CIDH que
decidirá da melhor maneira possível. 35
As audiências também podem ser de caráter geral. Estas podem tratar de temas gerais, como a proteção
das pessoas do grupo LGBTI nas Américas, ou específicas sobre países. Os requerimentos de audiência
devem ser encaminhados à CIDH no momento das convocatórias, que são públicas e regularmente
publicadas no site oficial, respeitando o regulamento. 36

2.1.3 Procedimento perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos

A CIDH pode ser acionada pela sociedade civil por diferentes vias, saber: sistema de petições e casos,
por meio do recebimento, tramitação e análise de admissibilidade e mérito das petições; solicitação de
Medidas Cautelares; solicitação de audiências; e por meio do envio de informações às relatorias temá-
ticas ou solicitação de visitas in loco. As disposições gerais sobre tais procedimentos estão inscritas nos
artigos 22 a 70 do RCIDH. Para as finalidades desta obra, serão abordados os aspectos procedimentais
essenciais para o envio de uma denúncia à CIDH.
De acordo com o artigo 23 do RCIDH, qualquer pessoa, grupo de pessoas ou organização, em repre-
sentação pessoal ou de terceiros, pode apresentar petição à Comissão com a finalidade de denunciar
uma violação de direitos humanos cometida por um Estado-parte da OEA. Por isso, as ONGs também
podem apresentar denúncias. O procedimento perante a CIDH é gratuito e deve ser iniciado a partir
de um documento escrito, sem necessidade de participação de um advogado ou bacharel em Direito.
A partir do recebimento, a Comissão remeterá aos peticionários uma carta acusando recebimento da
denúncia realizada.
Em casos específicos, a petição escrita em favor de um terceiro é necessária e o RCIDH não oferece
impedimentos a isto. No entanto, o documento deve anunciar qual o impedimento enfrentado pela
suposta vítima das violações de direitos humanos alegadas. Impedimentos comuns verificados na
prática do SIDH estão relacionados à morte de suposta vítima, desta ter sido submetida a uma situação
em que se encontre incomunicável, que tenha sido vítima de desaparecimento forçado, dentre
outras hipóteses.
Toda petição encaminhada à CIDH, por força do artigo 28 do RCIDH, deve incluir os seguintes elementos:
● Os dados da(s) suposta(s) vítima(s) e de seus familiares;
● Os dados da parte peticionária, como: nome completo, telefone, endereço e e-mail;
● A descrição completa, clara e detalhada dos fatos alegados – Devem descrever como, quando
e onde ocorreram as violações;
● Indicar quais respostas foram dadas pelas autoridades estatais, em especial dos tribunais judi-
ciais ou instâncias administrativas competentes;
● Indicar o Estado considerado responsável;
● A indicação das autoridades estatais que se consideram responsáveis;
● Indicar os direitos que se consideram violados;


35
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 221.
36
Ver Artigo 66 do Regulamento da CIDH.

65
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

● As instâncias judiciais ou as autoridades do Estado a que se recorreu para buscar resolver as


violações alegadas;
● A indicação de se a petição foi apresentada a outro organismo internacional com competência
para resolver casos;
● Se possível, cópias simples e legíveis dos principais recursos interpostos e das decisões judiciais
internas e outros anexos considerados pertinentes, como depoimentos de testemunhas. 37
Dos artigos 30 a 34 do RCIDH constam os requisitos de admissibilidade das petições encaminhadas
à CIDH. São estes requisitos o esgotamento dos recursos internos; respeito ao prazo para a apresen-
tação da petição, o qual é de seis meses contados a partir da data em que a suposta vítima tenha sido
notificada da decisão final oferecida pela jurisdição interna ou instância administrativa competente do
Estado; ausência de litispendência internacional; e, por fim, conforme artigo 46 da CADH, a presença
das assinaturas daqueles que submetem as petições, sejam eles as próprias supostas vítimas ou seus
representantes legais.
Em consonância com o artigo 23 do RCIDH, a CIDH é competente para analisar petições que descrevem
supostas violações a algum dos direitos humanos reconhecidos nos seguintes instrumentos normativos
interamericanos:
● Declaração Americana dos Direitos Humanos e Deveres do Homem;
● Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada de “Pacto de San José
da Costa Rica”;.
● Protocolo adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, também denominado de “Protocolo de San Salvador”;
● Protocolo à Convenção Americana De Direitos Humanos referente à abolição da pena de morte;
● Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura;
● Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, também
denominada de Convenção de Belém do Pará.
Todavia, é necessário alertar que, para que um caso possa ascender à Corte IDH, este deve conter
alegações de violações ao conteúdo da CADH e, ainda, os Estados-parte da CADH devem ter acei-
tado estar submetidos à jurisdição da Corte IDH38. Os atos que os Estados devem ter praticado para
que estes formalmente possam ser denunciados à Corte IDH são os assinalados abaixo, conforme
demonstra a Figura 5:

OEA. Sistema de Petições e Casos (folheto informativo). Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/docs/folleto/CIDHFolleto_port.


37

pdf. Acesso em 30 set. 2021.


38
O Brasil aceitou a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 10 de dezembro de 1998 e incorporou a Declaração de
Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte IDH em 8 de novembro de 2002. BRASIL. Decreto nº 4.463, de 8 de novembro de
2002. Promulga a Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sob
reserva de reciprocidade, em consonância com o art. 62 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José), de 22 de
novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4463.htm. Acesso em 30 set. 2021.

66
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Figura 5 - Requisitos para que um estado esteja submetido à jurisdição da Corte Intera-
mericana de Direitos Humano

Fonte: elaborado pela autora, 2021.

Em seguida, decidirá a CIDH: não tramitar a petição; solicitar informações adicionais; ou seguir com
a tramitação. Após analisar a admissibilidade da petição e acatá-la, a denúncia torna-se um caso,
seguindo-se a etapa de mérito ou solução amistosa entre as partes, que pode ser requerida a qualquer
momento. Contudo, se não for possível o Acordo de Solução Amistosa, a Comissão pode concluir que
houve responsabilidade do Estado e emitir Recomendações. 39 Se o Estado não cumprir as Recomenda-
ções, a CIDH pode publicar o caso ou submetê-lo à Corte IDH40.

2.2 Corte Interamericana De Direitos Humanos (Corte IDH)

A Corte IDH foi estabelecida na Convenção Americana de Direitos Humanos, iniciando suas atividades
em 1979. Este órgão possui estrutura menos complexa em comparação à CIDH. Esta é composta por 7
juízes indicados (1 Presidente e 1 Vice-Presidente) e, diferentemente da Comissão, é um órgão jurisdi-
cional por ser um tribunal internacional.
Possui duas funções. A primeira intitulada “função contenciosa”, por meio da qual está autorizada a
analisar um caso submetido à Corte pela CIDH; do exercício desta função pode culminar a condenação
de um Estado-parte da CADH mediante a emissão de uma sentença. Já a segunda, a “função consul-
tiva”. Todas elas serão mais bem esclarecidas a seguir.

2.2.1 Função contenciosa

No exercício de sua função contenciosa, a Corte analisa os casos submetidos pela CIDH, respeitados os
requisitos expostos na seção anterior (Procedimento da CIDH). Após o recebimento do caso, a Corte
realiza análise de admissibilidade e, no mérito, se um Estado incorreu em responsabilidade interna-


39
As recomendações expedidas pela CIDH têm caráter opinativo, em si não vinculante. Entretanto, sua obrigatoriedade para o Estado
demandado se justifica “na medida em que o caso é analisado em primeira instância por este órgão, e apenas em situações excepcionais,
casos, que preencham determinados requisitos, poderão ser encaminhados para a Corte”. TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das
recomendações da comissão interamericana de direitos humanos no Brasil. RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru,
v. 1, n. 46, p. 211-234, jul./dez. 2006, p. 214. Ainda, nesse sentido: RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos:
análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 298
40
Incumbe exclusivamente aos Estados partes e à Comissão submeter casos à CorteIDH. Vítimas ou seus representantes não podem,
portanto, recorrer diretamente à Corte IDH, devendo apresentar sua petição à Comissão. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICA-
NOS. Sistema de Petições e Casos (folheto informativo). Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/docs/folleto/CIDHFolleto_port.
pdf. Acesso em 30 set. 2021.

67
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

cional pela violação de algum dos direitos expressos na CADH ou em outros tratados interamericanos
de direitos humanos.
A decisão proferida pela Corte poderá conter medidas de reparação. Verifica-se a presença de seis
formas, são elas: restituição, reabilitação, satisfação, garantias de não repetição, indenizações e reem-
bolso de custas e gastos, bem como obrigação de investigar, julgar e punir.41
A jurisdição da Corte é limitada aos casos relativos à interpretação e aplicação das disposições CADH,
segundo artigo 62.3 do próprio instrumento. Contudo, na prática, a Corte utiliza outros documentos do
sistema interamericano para a análise dos casos, bem como de tratados de Direitos Humanos alheios
ao Sistema Interamericano como reforço argumentativo.
Por mais de duas décadas, a CIDH teve ampla discrição sobre a apresentação de casos à Corte Intera-
mericana. Porém, em 2001 entraram em vigor novas Regras de Procedimento da CIDH, que preveem
que qualquer decisão da Comissão relativa a um Estado Parte na Convenção Americana que reconheça
a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana deve ser submetida à Corte, a menos que o Estado
tenha cumprido as recomendações da CIDH ou a CIDH, por decisão fundamentada, determine o
contrário (art. 44). Esta reforma levou a um aumento significativo na demanda da Corte Interamericana.

2.2.2 Função Consultiva

Além da função contenciosa, a Corte detém uma função consultiva, oportunidade em que ela dispo-
nibiliza interpretações detalhadas de uma obrigação de direitos humanos ou disposição de tratado
quando for requisitado por um Estado-Membro ou algum organismo da OEA. As opiniões terão força
vinculante, assim como as sentenças.
Conforme destaca Piovesan, qualquer membro da Organização dos Estados Americanos, seja ele parte
da Convenção ou não, pode requisitar a função consultiva da Corte IDH para a interpretação de qual-
quer convenção ou tratado relacionado à proteção de direitos humanos42.
A jurisdição consultiva da Corte IDH se estende a dois tipos de consultas: 1) as que solicitam a inter-
pretação de uma disposição ou disposições da Convenção Americana ou outro tratado de direitos
humanos, ou possivelmente uma questão mais geral sobre a interpretação da Convenção; 2) as que
solicitam o parecer da Corte sobre a compatibilidade de uma lei com a Convenção.
Consultas do primeiro tipo podem ser apresentadas por qualquer Estado Membro da OEA, pela CIDH
e, em certas circunstâncias, por outros órgãos da OEA, enquanto as do segundo tipo só podem ser
apresentadas por um Estado Membro, com respeito a sua própria legislação. O procedimento relativo
ao exercício desta função consta nos artigos 70 a 75 do Regulamento da Corte IDH.

2.2.3 Medidas Provisórias

A Corte IDH tem a faculdade de adotar Medidas Provisórias, de acordo com o artigo 63.2 da CADH em
casos de extrema gravidade e urgência e quando se faça necessário para evitar danos irreparáveis às
pessoas ou ao objeto do processo. A outorga de medidas provisórias pela Corte IDH está regulamen-
tada pelo artigo 27 do RCIDH.


41
SIQUEIRA. Adriana Souza de Siqueira. As medidas reparatórias na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Dissertação (Mestrado
em Ciências Jurídico-Internacionais). 178 f. Universidade de Lisboa, 2017.
42
PIOVESAN, Flávia. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais euro-
peu, interamericano e africano. São Paulo: Editora Saraiva, 2017, p. 158-161.

68
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Este tipo de medida, de acordo com o artigo 27.1 do RCIDH, poderá ser ordenada em qualquer fase
do processo perante a Corte ou, de acordo com o artigo 27.2, poderá atuar mediante solicitação da
CIDH. Essas medidas serão periodicamente verificadas pela Corte, que emitirá relatórios sobre o
seu cumprimento.

3. MARCO NORMATIVO DO SISTEMA


INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Elizabeth Salmón nos recorda sobre a existência da direta e intensa vinculação entre os instrumentos
normativos adotados por uma organização e sua vida prática. 43 O SIDH possui seu funcionamento
ancorado em um marco normativo abrangente, o qual é integrado por declarações, convenções e
protocolos que definem desde a estrutura e funcionamento do SIDH até o conteúdo das obrigações
dos Estados Americanos em matéria de direitos humanos. A partir das lições de Cançado Trindade, tais
documentos podem ser classificados para fins didáticos como instrumentos de abrangência geral e
instrumentos de abrangência setorial ou específica44.
Os primeiros são marcados por abordarem um elenco mais amplo de direitos, relacionado à norma-
tiva-base que dará vida ao SIDH. Os demais abordam conteúdos voltados à proteção de um grupo
de pessoas específico (pessoa idosa ou pessoa com deficiência, pessoas privadas de liberdade por
exemplo), de uma temática específica (políticas públicas de memória nas américas, discriminação racial,
dentre outros) ou, ainda, dedicam-se a discorrer sobre a proteção de um direito específico (liberdade
de expressão) ou sobre a erradicação de uma prática violadora de direitos humanos (desaparecimento
forçado, tortura, dentre outras).
Quanto à interpretação do conjunto normativo interamericano, a atividade jurisdicional da Corte IDH
é guiada pelo artigo 29 da CADH e pelos critérios de interpretação de tratados estabelecidos pelos
artigos 31 (regra geral) e 32 (métodos complementares) da Convenção de Viena sobre Direito dos
Tratados de 1969. Ainda, podem ser utilizadas regras gerais de interpretação que são particulares dos
tratados de direitos humanos, são elas: a interpretação pro persona ou pro-homine; a interpretação
dinâmica ou evolutiva; bem como a interpretação conforme ao corpus iuris do direito internacional dos
direitos humanos45.
Cumpre mencionar que a Corte IDH privilegia regularmente a interpretação mais protetiva à pessoa
humana do texto da CADH, favorecendo a finalidade pro-homine da Convenção46. Nesta tarefa, três
fatores exercem influência sobre o fenômeno da interpretação do texto da CADH, são eles: contexto
legal; o contexto político, geralmente associado ao histórico institucional dos Estados ao lidarem
com determinada questão; e o contexto sociológico, vinculado à filiação doutrinária dos juízes e sua
formação acadêmica47.

43
SALMÓN, Elizabeth. Introducción al sistema interamericano de derechos humanos. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú,
Fondo Editorial, 2019, p. 41.
44
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. The Inter-American Human Rights System at the dawn of the century In: HARRYS, D. J.; LIVIN-
GSTONE, S. The Inter-American System of Human Rights. New York: Oxford University Press, 1998, p. 395-420.
45
SALMÓN, Elizabeth. Introducción al sistema interamericano de derechos humanos. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú,
Fondo Editorial, 2019, p. 46-47.
46
BURGORGUE-LARSEN, Laurence. El contexto, las técnicas y las consecuencias de la interpretación de la convención americana de los
derechos humanos. Estudios Constitucionales, Año 12, Nº 1, 2014, p. 107; SALMÓN, Elizabeth. Introducción al sistema interamericano
de derechos humanos. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, Fondo Editorial, 2019, p. 45-46.


47
BURGORGUE-LARSEN, Laurence. El contexto, las técnicas y las consecuencias de la interpretación de la convención americana de los
derechos humanos. Estudios Constitucionales, Año 12, Nº 1, 2014, pp. 105-161.

69
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Por meio da ratificação ou assinatura destes instrumentos, os Estados assumem obrigações em relação
aos indivíduos que estejam sob sua jurisdição, independentemente de sua nacionalidade, conforme
salienta a Corte IDH na Opinião Consultiva 02/82.48 Deste rol, abordaremos os principais instru-
mentos normativos que conformam o corpus iuris interamericano49, os quais foram sistematizados na
tabela a seguir.

Tabela 2– Principais instrumentos normativos do sistema interamericano de


direitos humanos.

INSTRUMENTO NORMATIVO DATA DE APROVAÇÃO ABRANGÊNCIA

CARTA DA ORGANIZAÇÃO
1948 Geral
DOS ESTADOS AMERICANOS
DECLARAÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS E
1948 Geral
DEVERES DO HOMEM
CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE
1969 Geral
DIREITOS HUMANOS
CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR
1985 Específica
E PUNIR A TORTURA
PROTOCOLO DE SAN SALVADOR OU PROTOCOLO
ADICIONAL À CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE
1988 Geral
DIREITOS HUMANOS EM MATÉRIA E DIREITOS
ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
PROTOCOLO À CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE
DIREITOS HUMANOS REFERENTE À ABOLIÇÃO 1990 Geral
DA PENA DE MORTE
CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ
OU CONVENÇÃO INTERAMERICANA
1994 Específica
PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE O DESAPA-
1994 Específica
RECIMENTO FORÇADO DE PESSOAS
CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA
ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE
1999 Específica
DISCRIMINAÇÃO CONTRA AS PESSOAS PORTA-
DORAS DE DEFICIÊNCIA
DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS SOBRE LIBER-
2000 Específica
DADE DE EXPRESSÃO
CARTA DEMOCRÁTICA INTERAMERICANA DA OEA 2001 Específica
PRINCÍPIOS E BOAS PRÁTICAS PARA A
PROTEÇÃO DAS PESSOAS PRIVADAS DE LIBER- 2008 Específica
DADE NAS AMÉRICAS


48
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC-2/82 de 24 de setembro de 1982. El efecto de las reservas
sobre la entrada en vigencia de la convención americana sobre derechos humanos (arts. 74 y 75). Serie “A”: Fallos y Opiniones, N° 1. Secre-
taria da Corte Interamericana de Direitos Humanos, San José, Costa Rica: 1982, parágrafo 29.
49
Os documentos aqui elencados e seu estado de ratificação ou assinatura pelos países podem ser consultados no site da Comissão Inte-
ramericana de Direitos Humanos, no link a seguir: http://www.oas.org/pt/cidh/mandato/dbasicos.asp.

70
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA TODA


2013 Específica
FORMA DE DISCRIMINAÇÃO E INTOLERÂNCIA
CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA O
RACISMO, A DISCRIMINAÇÃO RACIAL E FORMAS 2013 Específica
CORRELATAS DE INTOLERÂNCIA
CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE A
2015 Específica
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DOS IDOSOS
DECLARAÇÃO AMERICANA SOBRE OS DIREITOS
2016 Específica
DOS POVOS INDÍGENAS
PRINCÍPIOS SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS DE
2019 Específica
MEMÓRIA NAS AMÉRICAS
PRINCÍPIOS INTERAMERICANOS SOBRE OS
DIREITOS HUMANOS DE TODAS AS PESSOAS
2019 Específica
MIGRANTES, REFUGIADAS, APÁTRIDAS E VÍTIMAS
DE TRÁFICO DE PESSOAS

3.1 Carta da Organização dos Estados Americanos (1967)

A Carta da OEA instituiu a OEA. De acordo com seu artigo 1º, o objetivo central da criação da organi-
zação regional americana é o de promover a solidariedade e intensificar a colaboração dos Estados. Tal
cooperação ocorrerá a fim de estabelecerem uma ordem de paz e de justiça, promoverem solidariedade
entre si, intensificar sua colaboração e defender sua soberania, integridade territorial e independência.
No que diz respeito a proteção da pessoa humana, a Carta da OEA, nos termos do seu artigo 3º, afirma
que os Estados americanos proclamem como princípio os direitos fundamentais da pessoa humana,
sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo. Segundo Terezo, a Carta converteu os direitos
ali inscritos em princípios que norteiam a OEA “e, que, mais tarde, representariam o eixo também para o
Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos.”50
A temática “dos direitos fundamentais da pessoa humana”51 foi abordada em 18 capítulos e 122 artigos
no texto da Carta da OEA. No documento há também a previsão dos órgãos que compõe a Organi-
zação, dentre os quais a CIDH se destaca na missão de zelar pela situação de direitos humanos; todavia,
é apenas mediante a aprovação da CADH, em 1969, que a CIDH passou a integrar a estrutura do SIDH.
Por fim, desde a perspectiva do seu conteúdo, pode-se considerar que a Carta está seccionada em
quatro partes distintas, 52 vamos a elas:
i. Objetivos, natureza do documento e princípios norteadores da OEA;
ii. Obrigações dos Estados-membros para com seus nacionais e indivíduos sob sua juris-
dição, bem como entre si;
iii. Prevê a estrutura da OEA;

50
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 138.


51
Este é o termo utilizado ao longo da Carta para fazer referência ao que seria consolidado na CADH como “direitos humanos”, tal como
consta no Artigo 3º do documento em análise.
52
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 138-139.

71
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

iv. Traz as disposições finais, tais como a vigência do documento, ratificação,


dentre outros temas.

3.2 Declaração Americana dos direitos e Deveres do homem (1948)

O objetivo principal em matéria de direitos humanos foi o de fixar um rol mínimo de direitos indispen-
sáveis à proteção da pessoa humana frente aos Estados-membros da OEA. A Declaração utiliza o termo
“homem”, porém devem ser entendidos como sujeitos de direitos toda “pessoa humana”, ou seja,
todos aqueles que submetem à jurisdição dos Estados-parte, considerando a evolução da discussão
dos direitos humanos.
Além disso, a Declaração dispõe que “os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser
cidadão de determinado Estado, mas tem como base os atributos da pessoa humana”. Esta foi incor-
porada pelo SIDH a partir da Carta da OEA. Nas petições enviadas à CIDH, as violações cometidas
podem ser encontradas neste documento, uma vez que todos os Estados Parte devem cumprir com as
obrigações dispostas na Declaração.
Desde a Declaração, há o reconhecimento de que todos nascem “livres e iguais em dignidades e direitos”,
ressaltando a indivisibilidade e interdependência dos direitos listados no documento. Dentre os direitos
reconhecidos, tem-se o direito à vida, à liberdade, à segurança, igualdade perante a lei, liberdade (reli-
giosa, de investigação, opinião, expressão e difusão); preservação da saúde e ao bem-estar, à educação,
ao acesso à justiça. Dentre os deveres listam-se o de sufrágio, de obediência à lei e ao trabalho.

3.3 Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)

A CADH é um dos principais documentos do SIDH. Tal fato decorre da determinação da estrutura,
competência e processo dos órgãos (CIDH e Corte IDH) na matéria de proteção dos direitos humanos.
A CADH enuncia os deveres dos Estados de obrigação de respeitar os direitos e adotar medidas no
direito interno para a sua garantia. Além disso, lista diversos direitos civis e políticos a serem observados,
reservando apenas um dispositivo genérico para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Um aspecto importante contido na Convenção é a possibilidade de suspensão de garantias em caso de
guerra, perigo público ou outra emergência que ameace a independência do Estado Parte. Porém, essa
suspensão deve estar restrita a um período razoável e não pode ser incompatível com as obrigações
da CADH. Necessário pontuar que alguns direitos como o direito à vida não estão sujeitos à suspensão
em nenhuma hipótese53.
No que tange à estrutura dos órgãos específicos, a CIDH será composta de 7 membros e representa
todos os membros da OEA. Em razão disso, a CIDH tem competência para analisar denúncias refe-
rentes a qualquer Estado Parte. Na CADH há ainda a previsão do processamento das denúncias e da
possibilidade de realização de acordo de solução amistosa, conforme previamente abordado. Demais
especificações vieram a ser estabelecidas em Estatuto específico.
A Corte IDH foi instituída pela primeira vez na CADH, dispondo acerca de sua organização e da neces-
sidade de reconhecimento da jurisdição, uma vez que o reconhecimento de sua jurisdição não é obri-


53
27. 2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados seguintes artigos: 3 (Direito ao reconhecimento da
personalidade jurídica); 4 (Direito à vida); 5 (Direito à integridade pessoal); 6 (Proibição da escravidão e servidão); 9 (Princípio da legalidade
e da retroatividade); 12 (Liberdade de consciência e de religião); 17 (Proteção da família); 18 (Direito ao nome); 19 (Direitos da criança); 20
(Direito à nacionalidade) e 23 (Direitos políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos.

72
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

gatório. Da mesma forma da CIDH, maiores especificações vieram a ser definidas em Regulamento e
Estatuto específicos, tal qual disposto anteriormente.
A CADH, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, apesar de ter sido assinada em
1969, só entrou em vigor no ano de 1978. Esta foi projetada para ser o instrumento de maior importância
e base normativa do Sistema Interamericano de Direitos Humanos54.
A Convenção, é caracterizada pelo grande volume de dispositivos de proteção de direitos humanos,
sobretudo quando comparada com os documentos de outros sistemas regionais, a exemplo da
Convenção Europeia e Carta Africana. 55 Assim, sua estrutura está voltada na enumeração de direitos
substantivos e também a consolidação de meios para que os Estados possam garantir e promover os
direitos relacionados, a exemplo da criação de órgãos de monitoramento, promoção e controle de
Direitos Humanos. 56
A ratificação da Convenção é o mecanismo utilizado para que os Estados membros se vinculem a
observar o conteúdo do documento, de maneira que do seu texto normativo emanam obrigações que
abrangem dentre outros deveres, o dever de respeitar, garantir e o dever de resultado e meio.
O art. 1° da Convenção, obriga os Estados Membros a respeitar os direitos e liberdades reconhecidos
no decorrer do texto do documento, com o intuito de garantir o livre e pleno exercício por qualquer
pessoa, sem discriminações57. Em decorrência desta obrigação, cada Estado deve adotar todas as
medidas internas necessárias para a garantia dos direitos protegidos conforme o art. 2° da Convenção
Americana, dispositivo que trata não somente de previsões legislativas, mas sim de um arcabouço que
contenha ações governamentais, políticas públicas e outras atividades que permitam o cumprimento
destes direitos.
As medidas internas são instrumentos de garantia da implementação progressiva dos direitos humanos,
e, por meio da CADH, foram concretizadas, a responsabilidade solidária e a cooperação entre os
Estados, com a finalidade de obter o desenvolvimento integral capaz de abranger a garantia de direitos
econômicos, sociais, educacionais, culturais, científicos e tecnológicos, que podem ser consolidados
tanto por cooperações bilaterais, quanto por organismos multilaterais. 58
Os órgãos de monitoramento e peticionamento foram criados com o objetivo de assegurar a obser-
vância e defesa dos direitos humanos, sendo consolidados no texto da Convenção, a CIDH e a Corte
IDH como órgãos capazes de atuar em casos de violações de direitos humanos e interagir diretamente
com os Estados membros ou vítimas e representantes das vítimas de violações.
A CIDH, possui suas funções atribuídas pelo art. 41 da CADH, conforme examinado nos tópicos anteriores.
A partir dos artigos 62 e 63 da CADH, também é possível que um Estado-Parte reconheça a jurisdição
contenciosa da Corte IDH, para que possam ser apuradas as possíveis violações de direitos humanos. A
Corte IDH, em acordo com o art. 1° de seu Estatuto, é autônoma e foi criada com o objetivo de aplicar

54
MACEDO, Camila de Oliveira. Op. Cit. Pág.17.
55
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 133.
56
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 133.


57
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano
e africano. São Paulo: Editora Saraiva, 2017, p.56-57
58
TEREZO, Cristina Figueiredo. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: pela defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Curitiba: Appris, 2014, p. 133.

73
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

e interpretar a CADH, detendo competência jurisdicional (contenciosa) e consultiva59 para a realização


de suas funções. Apenas os Estados-Parte e a CIDH podem submeter um caso à Corte IDH, e esta
poderá exigir a reversão do quadro de violações de direitos humanos declarados, a reparação do dano
e o pagamento de justa indenização à(s) vítima(s).
De acordo com Thomas Antikowiak e Alejandra Gonza, durante décadas, em especial a década de 1980,
a CIDH e a Corte IDH foram responsáveis por garantir a responsabilização e reparação das violações
de direitos e por reforçar o Estado de Direito, ao passo em que voltou os olhares internacionais para os
abusos das ditaduras latino-americanas.

3.4  Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura (1985)60

Considerando a limitação de previsões normativas da CADH, posteriormente foram firmadas diversas


Convenções sobre assuntos específicos, as quais também podem ser alegadas por peticionários e
vítimas enquanto violadas no momento da denúncia. A Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir Tortura é a primeira destas.
A importância desta Convenção é a definição de tortura, responsabilizando aqueles que ordenem ou
induzam a tortura, ou ainda que não a impediram quando possível, bem como os que instiguem ou
induzam e até mesmo cometam diretamente. Ressalta-se que quem agiu por ordens superiores não
está imune à responsabilidade penal.
Assim, os Estados se comprometem a punir aqueles que cometeram atos de tortura e os perpetradores,
adotando medidas para prevenir e punir qualquer tratamento cruel, desumano ou degradante.

3.5 Protocolo de San Salvador ou Protocolo Adicional à Convenção


Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos,
sociais e culturais (1988)

Em razão da disposição genérica sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) na


CADH e a necessidade destes para a promoção dos direitos civis e políticos, foi firmado o Protocolo
de San Salvador.
O Protocolo prevê com especificidades diversos DESC, tal qual o direito à saúde e educação, que são
os únicos sobre os quais a CIDH e a Corte IDH podem se pronunciar em resposta a uma petição indi-
vidual apresentada contra um Estado.61 Os Estados que firmaram o Protocolo se comprometeram a
adotar as medidas necessárias para garantir o desenvolvimento progressivo de acordo com o máximo
de recursos disponíveis.

59
GARCÍA RAMÍREZ, Sergio. La jurisdicción interamericana de derechos humanos (Estudios). México, DF: Comisión de Derechos Hu-
manos del Distrito Federal; Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2006, p. 43.
60
O Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura em 20 de julho de 1989 e a incorporou ao ordenamento
jurídico interno em 9 de dezembro de 14989. BRASIL. Decreto n.º 98.386, de 9 de dezembro de 1989. Promulga a Convenção Interame-
ricana para Prevenir e Punir a Tortura. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/D98386.htm. Acesso em 30
set. 2021.
61
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Sistema de Petições e Casos (folheto informativo). Disponível em: http://www.oas.
org/es/cidh/docs/folleto/CIDHFolleto_port.pdf. Acesso em 30 set. 2021.

74
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

3.6 Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos


referente à abolição da pena de morte (1990)

Em razão da dificuldade em incluir o tópico na CADH por divergências entre os Estados parte, enten-
deu-se que a melhor alternativa seria a criação de um Protocolo Facultativo. Neste os Estados se
comprometem a abolir a pena de morte, não sendo permitida qualquer reserva ao Protocolo.

3.7 Convenção de Belém do Pará ou Convenção Interamericana para


prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (1994)

A Convenção define as formas de violência contra a mulher, como a violência física, sexual, psicológica,
baseada no gênero. Não há nesse sentido distinção entre a esfera pública ou privada.
Para mais, reconhece, enquanto dever do Estado, condenar todas as formas de violência, devendo ser
adotados os meios necessários para prevenir, punir e erradicar a violência, seja por políticas públicas,
alterações na legislação, a devida diligência, estabelecimento de mecanismos judiciais e administrativos
para apurar e punir eventuais violações.

3.8 Convenção Interamericana sobre o desaparecimento forçado


de pessoas (1994)

Nesta Convenção os Estados se comprometem a não praticar ou tolerar o desaparecimento forçado de


pessoas, nem em estado de emergência, exceção ou suspensão de garantias, bem como de prevenir,
punir e erradicar a prática internamente.
Além disso, os Estados devem tipificar o desaparecimento forçado enquanto delito passível de extra-
dição, garantindo o devido processo para os investigados. Por fim, reconhece a competência da CIDH
para adoção de medidas cautelares, se necessário.

3.9 Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de


discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência (1999)

Com fundamento na igualdade entre todos, os Estados se comprometeram a garantir a eliminação


da discriminação em todas as suas formas. Assim, a Convenção define deficiência enquanto qualquer
restrição física, mental ou sensorial, passageira ou permanente que limite a capacidade de exercer ativi-
dades essenciais da vida diária.
A integração social, apesar de ser uma diferenciação, não pode ser considerada discriminação, desde
que não limite o direito à igualdade.

3.10 Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão (2000)

Realizada pela Relatoria Especial para Liberdade de Expressão, com fundamento o artigo 13 da CADH,
a Declaração possui 13 princípios, sendo eles: o direito de buscar, receber e divulgar informações e
opiniões livremente; o direito de toda pessoa de ter acesso às informações pessoais ou sobre seus
bens de forma expedita e não onerosa, mantidas em registros públicos ou privados; a determinação de

75
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

que a censura prévia, a interferência ou a pressão direta ou indireta que restrinjam o direito de liber-
dade de expressão devem ser proibidas por lei; e a preservação da pluralidade e diversidade dos meios
de comunicação.

3.11 Carta Democrática Interamericana (2001)

A Carta reafirma o caráter essencial da promoção e proteção de direitos humanos para a sociedade
democrática, sendo a democracia indispensável para o exercício efetivo das liberdades funda-
mentais previstas.
Além disso, são componentes fundamentais a transparência, a probidade, a responsabilidade dos
governos, o respeito dos direitos sociais e a liberdade de expressão e de imprensa. No mais, reforça a
possibilidade de apresentação de denúncias ao SIDH.

3.12 Princípios e boas práticas para a proteção das pessoas privadas de


liberdade nas Américas (2008)

Neste documento tem-se a definição de privação de liberdade para abranger as pessoas privadas
de liberdade por delitos ou descumprimento da lei e as que estão sob custódia de instituições que
restringem a liberdade de ir e vir. O documento é dividido em seções, sendo elas: princípios gerais,
relativos às condições de privação de liberdade e aos sistemas de privação de liberdade.

3.13 Convenção Interamericana contra toda forma de discriminação e


intolerância (2013)

Nesta Convenção são delimitados os diversos tipos de discriminação, tal qual na Convenção anterior,
estabelecendo deveres similares, como a punição de apoio a atividades que promovam a intolerância,
de violência motivada por discriminação, entre outros.

3.14 Convenção Interamericana contra o racismo, a discriminação racial


e formas correlatas de intolerância (2013)

Em razão da “capacidade dinâmica de renovação” que permite assumir “novas formas” os Estados se
comprometem a prevenir, eliminar, proibir e punir as manifestações de racismo, discriminação racial e
formas correlatas de intolerância.
Para tanto, é definido cada tipo de discriminação (racial, racial indireta, múltipla, racismo e intolerância)
com objetivo de estabelecer devidamente ao que os Estados devem ter em conta ao adotar as medidas
para combatê-los.

3.15 Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos


dos Idosos (2015)

Considerando a necessidade de ampliar, formular e cumprir as leis e políticas públicas para prevenção
de abuso, abandono, negligência, maltrato e violência contra idosos, os Estados se comprometeram a

76
SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

prevenir, punir e sancionar qualquer ato atentatório à Convenção Interamericana sobre a Proteção dos
Direitos Humanos dos Idosos.
Para os fins da referida Convenção foram definidos os termos como velhice, abandono, maltrato e
violência, entre outros. No mais, ressaltou-se a necessidade de enfoque diferenciado para o gozo
efetivo dos direitos em questão e da necessidade de solidariedade e fortalecimento de proteção fami-
liar e comunitária.

3.16 Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2016)

Em razão das diversas notificações de violações aos direitos dos povos indígenas submetidas tanto à
CIDH quanto à Corte IDH, bem como a importância destes povos para a humanidade, foi aprovada
esta Declaração.
Entre os principais pontos, está o reconhecimento e o respeito ao caráter pluricultural e multilíngue
dos povos indígenas como parte integral da sociedade, bem como o reconhecimento da personalidade
jurídica dos povos indígenas. Para mais, há uma seção específica para o reconhecimento dos direitos
referentes à identidade cultural destes povos (seção 3).
Além disso, a Declaração reconhece o caráter coletivo que é indispensável na discussão relativa ao desen-
volvimento integral dos povos indígenas e de seus sistemas jurídicos, sociais, políticos e econômicos.

3.17 Princípios sobre políticas públicas de memória nas Américas (2019)

Considerando a necessidade de garantir a verdade, justiça e reparação de maneira integral os danos


causados por graves violações de direitos humanos, bem como a adoção de medidas de compensação,
satisfação, restituição, reabilitação, investigação dos fatos, determinação dos responsáveis, sanções e
medidas de não repetição, foi aprovada a Resolução em questão.
Por memória e verdade entendem-se as “formas que as pessoas e povos constroem sentido e rela-
cionam o passado com o presente e o ato de recordar sobre graves violações de direitos humanos e/ou
outras ações das vítimas e sociedade civil na defesa dos direitos humanos”.
Os princípios são divididos em seções, sendo elas: princípios gerais, relativos a iniciativas de memória de
caráter educativo, cultural ou de outra natureza, aos lugares de memória, aos arquivos.

3.18 Princípios interamericanos sobre os direitos humanos de todas


as pessoas migrantes, refugiadas, apátridas e vítimas de tráfico
de pessoas (2019)

Em razão da crise humanitária e a necessidade de guiar os Estados, a CIDH aprovou esta resolução. Para
tanto, define primeiramente os termos importantes, como migrante, movimentos mistos, apátrida,
solicitante de asilo, crianças ou adolescentes separados por uso da força, tráfico de pessoas, tráfico de
migrantes, entre outros.
Os princípios são divididos nas seguintes seções: princípios fundamentais; proteção em contexto de
mobilidade; não discriminação e igualdade de proteção; migrantes e necessidade de proteção especial;
desaparecimento forçado de pessoas, escravidão, tráfico de pessoas e tráfico de migrantes; nacionali-
dade; liberdade de consciência, religião, crença, expressão e associação; família; nível adequado de vida;

77
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

acesso à justiça, proteção de defensores de direitos humanos das pessoas migrantes; devido processo
de migração; liberdade de circulação e residência; refugiados, asilo e proteção internacional; estadia,
documentação e integração nos países de destino; controle migratório; garantias em processos e
procedimentos de repatriação, deportação e expulsão; retorno e integração aos Estados de origem.

3.19 Estatutos e Regulamentos da Comissão e Corte Interamericanas de


Direitos Humanos

3.19.1 Estatuto e regulamento da CIDH

O Estatuto delimita a estrutura, sede, funções e atribuições da CIDH, enquanto o regulamento dispõe
sobre as funções e devidos procedimentos.
Dentre os procedimentos estão a avaliação do pedido de medidas cautelares e das denúncias apresen-
tadas à CIDH, bem como os prazos, requisitos de admissibilidade, mérito e submissão à Corte.

3.19.2 Estatuto e regulamento da Corte Interamericana

Similar aos documentos da CIDH, o Estatuto delimita a estrutura, sede, funções e atribuições da Corte
IDH, enquanto o regulamento dispõe sobre as funções e devidos procedimentos.
Dentre os procedimentos estão a avaliação do pedido de medidas cautelares e das denúncias apresen-
tadas, bem como os prazos, requisitos de admissibilidade, mérito e submissão à Corte.
Além disso, consta como se dará o procedimento escrito, os elementos que o devem constituir, apre-
sentação de amicus curiae, bem como os procedimentos orais e o conteúdo das sentenças.

3.19.3 Regulamento da Comissão Interamericana e da Corte Interamericana sobre o


Funcionamento do Fundo de Assistência Legal às Vítimas

Considerando que o processo internacional possui custas e que muitas vezes os peticionários e vítimas
não podem arcar, tanto a CIDH quanto a Corte IDH possuem regulamentos próprios.
Cabe à suposta vítima apresentar o pedido de assistência legal na denúncia, quando na CIDH, e no
escrito de petições, argumentos e provas, quando na Corte IDH. O pedido será apreciado por cada
órgão competente.
A reintegração ao Fundo de Assistência Jurídica pode ser requerida pela CIDH ou pela Corte IDH ao
Estado envolvido a depender do caso em questão.

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CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

CONTROLE DE
CONVENCIONALIDADE: REFLEXÕES
PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

Gilberto Schäfer

Jesus Tupã Silveira Gomes

1. INTRODUÇÃO

A Corte Interamericana de Direitos Humanos realiza o exame de compatibilidade dos atos e omis-
sões dos Estados que compõem o Sistema Interamericano de Direitos Humanos com o conjunto de
disposições normativas de proteção à pessoa humana, tendo como centro a Convenção Americana de
Direitos Humanos e outros tratados de direitos humanos de âmbito regional e universal. No entanto,
pensar esta atividade como uma atribuição exclusiva da Corte IDH é visualizar apenas uma pequena
parte do trabalho voltado à promoção e à defesa dos Direitos Humanos.
No âmbito interamericano, a Corte IDH expede ordens aos Estados para que estes adotem medidas
administrativas e legislativas – inclusive constitucionais - quando há uma situação de violação ao
parâmetro de proteção representado pelo corpus juris interamericano. Quando se trata da ativi-
dade de harmonização legislativa, a Corte realiza controle de convencionalidade, como tradicional-
mente compreendido.
Tal fato não constitui óbice a que os Estados venham a promover, voluntariamente, por meio de seus
agentes, a compatibilização dos seus ordenamentos com o corpus juris interamericano, atribuindo-se
aos juízes, em especial, o dever de afastar a aplicação dos dispositivos normativos locais que venham
a contrariar os parâmetros de proteção internacionalmente estabelecidos, realizando, também, o
controle de convencionalidade, tendo em vista o princípio de subsidiariedade atualmente vigente no
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Num primeiro momento, o capítulo vai enfocar a concepção da Corte IDH sobre controle de conven-
cionalidade, para, a partir daí, em um sistema de diálogo, lançar luzes sobre a experiência brasileira,
de modo a explorar as potencialidades deste tipo de controle para um quadro de afirmação dos
direitos humanos.

2. O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE
REALIZADO PELA CORTE IDH
O controle de convencionalidade tradicional1 é o realizado pela própria Corte e constitui um instru-
mento de harmonização dos atos normativos nacionais com as disposições previstas em tratados


1
CASTILLA JUÁREZ, Karlos A. Control de Convencionalidad Interamericano: Una propuesta de orden ante diez años de incertidumbre. Re-
vista IIDH, San José, v. 32, n. 64, p. 88-89, jul./dez. 2016. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/iidh/media/4759/revista-64-2web.pdf. Acesso
em: 06 jun. 2022.

79
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

internacionais de direitos humanos, 2 sejam eles estabelecidos no âmbito interamericano ou universal,


sob o fundamento de que o bem comum internacional e regional encontra-se em um nível axiológico
– hierarquicamente - superior aos interesses nacionais. 3
Embora existam notícias da utilização do instituto há quase um século, 4 a denominação controle de
convencionalidade surgiu no Direito Francês, 5 a partir da Decisão n. 74-54, de 15 de janeiro de 1975,6 na
qual o Conselho Constitucional – órgão que, na ocasião, era responsável pelo controle exclusivamente
preventivo de constitucionalidade7 – recusou-se a examinar a compatibilidade de projeto de lei que
permitia a interrupção voluntária da gravidez com a Convenção Europeia de Direitos Humanos e com
os diversos tratados que regulamentam o Direito Comunitário que já se instaurava na Europa, e que
posteriormente deram origem ao modelo denominado de multinível.8

2
Valerio de Oliveira Mazzuoli descreve que o controle de convencionalidade impõe um exame da compatibilidade vertical dos atos norma-
tivos domésticos com os tratados internacionais de direitos humanos, colocando-os em uma posição hierárquica superior à Constituição
quando mais benéficos ao sujeito protegido. (MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional de convencionalidade das leis.
4 ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.).

3
SAGÜÉS, Néstor Pedro. Obligaciones Internacionales y Control de Convencionalidad. Estudios Constitucionales, Talca, v. 8, n. 1, p. 124-
125, 2010. Disponível em: http://www.scielo.cl/pdf/estconst/v8n1/art05.pdf. Acesso em: 06 jun. 2022.
4
Embora não lhe fosse atribuído este nome, conforme aponta Ernesto Rey Cantor (REY CANTOR, Ernesto. Controles de convencionali-
dad de las leyes. In: FERRER MAC-GREGOR, Eduardo; ZALDÍVAR LELO DE LARREA, Arturo (coord.). La Ciencia del Derecho Procesal
Constitucional: Estudios en homenaje a Héctor Fix-Zamudio en sus cincuenta años como investigador del derecho. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2008. p. 238. Disponível em: https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv/detalle-libro/2562-la-ciencia-del-dere-
cho-procesal-constitucional-estudios-en-homenaje-a-hector-fix-zamudio-en-sus-cincuenta-anos-como-investigador-del-derecho-t-ix-
-derechos-humanos-y-tribunales-internacionales. Acesso em: 06 jun. 2022.) foi aplicado quando a Corte Permanente de Justiça Inter-
nacional reconheceu a invalidade de lei polonesa que havia declarado a nulidade do título de propriedade de indústria alemã localizada
na região da Alta Silésia, cujo território havia sido repassado à Polônia após o encerramento da Primeira Guerra Mundial, e autorizado
a sua exploração pelo governo local, tendo como parâmetro o artigo 256 do Tratado de Versalhes e o Convênio Alemão-Polonês sobre
a Alta Silésia celebrado em Genebra em 1922. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (org.). Documento A/CN.4/151: resumen de las
decisiones de los tribunales internacionales relativas a la sucesión de Estados. 1962. p. 160-161. PDF. Disponível em: http://legal.un.org/ilc/
documentation/spanish/a_cn4_151.pdf. Acesso em: 06 jun. 2022.
5
DUTHEILLET DE LAMOTHE, Olivier. Contrôle de Constitutionnalité et Contrôle de Conventionnalité. 2007. p. 02. PDF. Disponível em:
http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/root/bank_mm/pdf/Conseil/cccc.pdf. Acesso em: 06 jun. 2022.
6
CONSEIL CONSTITUTIONNEL. Décision 74-54 du 15 janvier 1975. [2021?]. Site. Disponível em: http://www.conseil-constitutionnel.
fr/conseil-constitutionnel/francais/les-decisions/acces-par-date/decisions-depuis-1959/1975/74-54-dc/decision-n-74-54-dc-du-15-jan-
vier-1975.7423.html. Acesso em: 04 jun. 2017. O Conselho Constitucional afirmou que, apesar de os tratados internacionais gozarem de
hierarquia supralegal, na forma do artigo 55 da Constituição, tal circunstância não implicava a competência daquele órgão para examinar
a compatibilidade dos atos normativos domésticos com os tratados internacionais celebrados pela França.


7
Destaca-se que, na França, até a edição da Lei Constitucional de 23 de julho de 2008, que criou a Questão Prioritária de Constitucio-
nalidade, não se contava com um instrumento de aferição, a posteriori, da constitucionalidade das leis (APCHAIN, Hélène. La QPC et
le Contôle de Convetionnalité: complementarité ou antagonisme?. 2012. PDF. Disponível em: http://www.credho.org/credho/travaux/
apchainqpccc.pdf. Acesso em: 06 jun. 2022.)
8
Para uma explicação didática sobre o significado de multinível, ver URUEÑA, René. Proteção multinível dos Direitos Humanos na Amé-
rica Latina? Oportunidades, desafios e riscos. In: GALINDO, George Rodrigo Bandeira; URUEÑA, René; PÉREZ, Aida Torres (coord.).
Proteção multinível dos direitos humanos: manual. Barcelona: Rede Direitos Humanos e Educação Superior, 2014, p. 15-47. Disponível
em: https://e-archivo.uc3m.es/bitstream/handle/10016/19771/protecaomultinivel_bandeira_2014_manualpor.pdf?sequence=1&isAllowe-
d=y. Conforme o autor: “Mais importante para os nossos propósitos, no entanto, é que a ideia ganhou ampla aceitação nos estudos de
integração europeia e foi adotada gradualmente por alguns acadêmicos europeus para descrever outros processos nos quais normas de
diferentes âmbitos regulavam uma mesma área. Os direitos humanos

80
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

O controle de convencionalidade, neste sentido também chamado de controle de tratados,9 autoriza


que uma Corte internacional ou supranacional venha a aferir a compatibilidade dos atos normativos
de um Estado com os tratados de que ele é parte, determinando alterações no ordenamento interno,
sob pena de responsabilização internacional do Estado infrator, com fundamento no artigo 27 da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.10
Esse instrumento não constitui uma exclusividade do nosso sistema regional de proteção aos Direitos
Humanos.11 Tanto o Tribunal Europeu de Direitos Humanos quanto o Tribunal de Justiça da União
Europeia utilizam essa ferramenta ao examinarem, respectivamente, os casos em que a legislação
dos países membros afronta as disposições convencionais que regulamentam os direitos humanos
e o direito comunitário naquele continente,12 embora, a Corte Europeia, adote, em geral, disposi-
tivos condenatórios.
Além disso, a própria Corte IDH já vinha buscando harmonizar, desde sua instalação, os ordenamentos
dos Estados que a compõem com a CADH, especialmente quando tais entes submeteram-se – de
forma voluntária13 - à sua jurisdição.
Ao examinar o caso Neira Alegría y Otros vs. Perú (1995)14, a Corte reconheceu a inconvencionalidade
dos Decretos Supremos 012-IN e 006-86, editados em 02 e 06 de junho de 1986, que haviam declarado
estado de emergência nas províncias de Lima e El Callao e restringiram o uso de habeas corpus.
No âmbito da Corte IDH, a primeira referência ao controle de convencionalidade foi realizada pelo Juiz
Sergio García Ramírez, quando do julgamento do caso Myrna Mack Chang vs. Guatemala,15 realizado
em 2003. Em seu voto apartado, o magistrado referiu que o Estado responde internacionalmente pela
prática de ato contrário à CADH, independentemente do agente ou órgão faltoso, não se podendo
deixar determinados agentes públicos ou órgãos estatais “... fuera del ‘control de convencionalidad’
que trae consigo la jurisdicción de la Corte internacional.”16 Quando a Corte examinou o caso Tibi vs.

9
CASTILLA JUÁREZ, Karlos A. Control de Convencionalidad Interamericano: Una propuesta de orden ante diez años de incertidumbre.
Revista IIDH, San José, v. 32, n. 64, p. 88-89, jul./dez. 2016. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/iidh/media/4759/revista-64-2web.pdf. Aces-
so em: 06 jun. 2022.
10
Dispõe a CVDT (Decreto nº. 7.030, de 14 de dezembro de 2009), na primeira parte do seu artigo 27: ”Uma parte não pode invocar as dispo-
sições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.”
11
Nesse sentido Pablo González Domínguez (GONZÁLEZ DOMÍNGUEZ, Pablo. Implementación de la Convención Americana sobre
Derechos Humanos en los Sistemas Jurídicos Nacionales: La Doctrina del Control de Convencionalidad. Santiago: Centro de Estudios
Jurídicos de Las Américas, 2014. p. 08. E-book. Disponível em: http://biblioteca.cejamericas.org/bitstream/handle/2015/572/InformeCon-
troldeConvencionalidad_pgonzalez.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 21 set. 2016.).
12
NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Los Desafíos del Control de Convencionalidad del Corpus Juris Interamericano para los Tribu-
nales Nacionales, y su Diferenciación con el Control de Constitucionalidad. In: MARINONI, Luiz Guilherme; MAZZUOLI, Valerio de
Oliveira (coord.). Controle de Convencionalidade: Um panorama latino-americano: Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Uruguai. Brasília:
Gazeta Jurídica, 2013. p. 482.
13
Deve-se destacar que, no âmbito do Direito Internacional, vige o princípio da voluntariedade, segundo o qual nenhum Estado pode ser
submetido a ato normativo convencional ou a autoridade internacional sem seu consentimento expresso (MAZZUOLI, Valerio de Oliveira.
Direito dos Tratados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 542p.)
14
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Neira Alegría y otros Vs.Perú: Sentencia de 19 de enero de 1995 (Fondo).
1995. PDF. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_20_esp.pdf. Acesso em: 15 jan. 2017.
15
BAZÁN, Víctor. El Control de Convencionalidad: Incógnitas, desafíos y perspectivas. 2012. p. 25. PDF. Disponível em: http://www.corteidh.
or.cr/tablas/r30034.pdf. Acesso em: 01 mar. 2017.
16
… fora do ‘controle de convencionalidade que a jurisdição da Corte internacional traz consigo. (tradução nossa). CORTE INTERAMERICA-
NA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Myrna Mack Chang vs. Guatemala: Sentencia de 25 de noviembre de 2003 (Fondo, Reparaciones
y Costas). 2003. p. 165. PDF. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_101_esp.pdf. Acesso em: 06 mar. 2022.

81
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Ecuador,17 no ano seguinte, o Juiz García Ramírez afirmou, também em voto apartado, que os tribunais
constitucionais aferem a regularidade dos atos do poder público e dos demais agentes com a Consti-
tuição, enquanto a Corte IDH promove a conformação dos atos estatais com os tratados internacionais
de Direitos Humanos.
O controle de convencionalidade também possui outra faceta, que se identifica com o dever dos
Estados de promover, por si próprios e de forma voluntária, a adequação de seu ordenamento jurídico
às disposições convencionais a que ele aderiu. Trata-se, ainda, de um controle de tratados.18
Este é o sentido consagrado no julgamento do caso Almonacid Arellano y Otros vs. Chile, em que restou
consignado: “quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus
juízes, como parte do aparato estatal, também estão submetidos a ela” e, portanto, devem “velar para
que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam diminuídos pela aplicação de leis contrárias
a seu objeto e a seu fim e que, desde o início, carecem de efeitos jurídicos”. Assim, “o Poder Judiciário
deve exercer uma espécie de ‘controle de convencionalidade’ entre as normas jurídicas internas
aplicadas a casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos” e que “nesta
tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não apenas o tratado, mas também a interpretação
que a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana, fez do mesmo” (grifamos).19
A Corte IDH aproximou-se, assim, do significado do controle de convencionalidade que havia sido
fixado pelo Conselho Constitucional francês na Décision nº 74-54 du 15 janvier 197520, qual seja: cumpre
aos juízes nacionais aferirem diretamente a compatibilidade entre a legislação local e os tratados
internacionais. 21
Importante distinguir, no entanto, que na Espanha22 – a exemplo do que ocorre na França –, foi atri-
buído aos órgãos judiciais o ônus de promover a compatibilização dos atos normativos nacionais com


17
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Almonacid Arellano y Otros vs. Chile: Sentencia de 26 de septiembre de
2006 (Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas). 2006. PDF. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_154_esp.pdf. Acesso em: 04 jun. 2022.
18
CASTILLA JUÁREZ, Karlos A. Control de Convencionalidad Interamericano: Una propuesta de orden ante diez años de incertidumbre. Re-
vista IIDH, San José, v. 32, n. 64, p. 88-89, jul./dez. 2016. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/iidh/media/4759/revista-64-2web.pdf. Acesso
em: 06 mar. 2022.
19
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Almonacid Arellano y Otros vs. Chile: Sentencia de 26 de septiembre de
2006 (Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas). 2006. PDF. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_154_esp.pdf. Acesso em: 04 jun. 2022.
20
SCHÄFER, Gilberto; RIOS, Roger Raupp; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; GOMES, Jesus Tupã Silveira. Os controles de convencionalidade
tradicional e interamericano: institutos distintos ou duas faces da mesma moeda? Revista de Direito Internacional, v. 14, n.3, 2017, p.222.
Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/rdi/article/viewFile/4811/pdf. Acesso em: 16 out. 2022.
21
Olivier Dutheillet de Lamothe: “En refusant d’exercer un contrôle de la conformité des lois aux traités internationaux dans le cadre du
contrôle de constitutionnalité, le Conseil constitutionnel a conduit les juridictions administratives et judiciaires à affirmer et développer
une nouvelle compétence : le contrôle de conventionnalité de la loi.” (Ao recusar a realização do controle de conformidade das leis aos
tratados internacionais por meio do controle de convencionalidade, o Conselho Constitucional conduziu as jurisdições administrativas
e judiciárias a afirmar e desenvolver uma nova competência: o controle de convencionalidade da lei.) (tradução nossa). DUTHEILLET DE
LAMOTHE, Olivier. Contrôle de Constitutionnalité et Contrôle de Conventionnalité. 2007. p. 02. PDF. Disponível em: http://www.
conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/root/bank_mm/pdf/Conseil/cccc.pdf. Acesso em: 01 mar. 2017.
22
Nesse sentido, Luis Jimena Quesada afirma que o Tribunal Constitucional espanhol vem reconhecendo a competência dos juízos or-
dinários para realizar a compatibilização dos atos normativos locais com os tratados internacionais, diante da compreensão de que o
artigo 96.1 da Constituição Espanhola atribuem caráter supralegal a estas disposições (JIMENA QUESADA, Luis. Jurisdicción Nacional y
Control de Convencionalidad: A propósito del diálogo judicial global y de la tutela multinivel de derechos. Navarra: Thomson Reuters
Aranzadi, 2013. p. 112-113).

82
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

os ordenamentos supranacionais e comunitários, 23 enquanto a Corte IDH pretende que cada agente
público estatal promova a adequação dos seus atos ao corpus juris interamericano.
O caso Gelman vs. Uruguay24 trouxe um adendo muito importante, mas que precisa de cuidado na dose
e na técnica: os Estados que integram a CADH não devem obedecer apenas às disposições inscritas na
Convenção, mas também às interpretações a elas conferidas pela Corte no exercício da sua jurisdição
contenciosa – de mérito, provisional ou executiva – ou consultiva, cumprindo a cada agente público,
no limite de suas competências, o dever de verificar a compatibilidade dos atos normativos e adminis-
trativos com o corpus juris interamericano, com fundamento nos artigos 1.1 e 2 da Convenção. 25 Além
disso, os países integrantes do sistema encontram-se obrigados a adequar seu ordenamento jurídico
interno às disposições da CADH e de outros tratados internacionais vigentes no âmbito regional e
internacional, a promover alterações no seu aparato administrativo, a investigar os casos de violação de
direitos humanos ocorridos em seu território, promovendo a punição dos agentes públicos responsá-
veis e a fornecer treinamentos e capacitação em direitos humanos aos seus prepostos. 26
Esse modelo de controle de convencionalidade – interamericano27 – é alvo de críticas, em razão da
amplitude conferida ao seu objeto, que possibilita, ao menos em tese, exame de compatibilidade de
qualquer ação ou omissão estatal, de atos normativos, judiciais e administrativos, com a Convenção
e os demais instrumentos que compõem o corpus juris vigente no sistema regional de proteção aos
direitos humanos.
A partir desta leitura que a Corte IDH faz do controle de convencionalidade vamos examinar os pres-
28

supostos de um controle de convencionalidade efetivo para a experiência brasileira

3. QUESTÕES PRECEDENTES PARA UM CONTROLE DE


CONVENCIONALIDADE BRASILEIRO
A Corte IDH, como expusemos, afirma o papel da magistratura nacional no controle de convencionali-
dade, porque está ciente de que apenas os sete magistrados que a compõem não são suficientes para
tornar forte o sistema interamericano de direitos humanos.

23
Anote-se que agora tanto no direito comunitário (União Europeia) quanto no sistema europeu de direitos humanos há possibilidade de
utilização do reenvio da questão prejudicial. No direito comunitário há a possibilidade da utilização do processo de questão prejudicial em
que o juiz nacional apresenta ao juiz do Tribunal de Justiça da União Europeia um pedido específico de interpretação que deve ser dada
a um determinado dispositivo advindo das normas de direito comunitário. Também no sistema de Direitos Humanos, com a entrada em
vigor do Protocolo 16 à Convenção Europeia de Direitos Humanos, há permissão que uma corte nacional pode diretamente requerer ao
TEDH um parecer consultivo.
24
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 20 de
marzo de 2013: Caso Gelmán vs. Uruguay: Supervisión de Cumplimiento de Sentencia. 2013. PDF. Disponível em: http://www.corteidh.
or.cr/docs/supervisiones/gelman_20_03_13.pdf. Acesso em: 04 jan. 2017.
25
GONZÁLEZ DOMÍNGUEZ, Pablo. Implementación de la Convención Americana sobre Derechos Humanos en los Sistemas Jurí-
dicos Nacionales: La Doctrina del Control de Convencionalidad. Santiago: Centro de Estudios Jurídicos de Las Américas, 2014. p. 15.
E-book. Disponível em: http://biblioteca.cejamericas.org/bitstream/handle/2015/572/InformeControldeConvencionalidad_pgonzalez.
pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 21 set. 2016.
26
SCHÄFER, Gilberto; RIOS, Roger Raupp; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; GOMES, Jesus Tupã Silveira. Os controles de convencionalidade
tradicional e interamericano: institutos distintos ou duas faces da mesma moeda? Revista de Direito Internacional, v. 14, n.3, 2017, p.222.
Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/rdi/article/viewFile/4811/pdf. Acesso em: 16 out. 2022.


27
CASTILLA JUÁREZ, Karlos A. Control de Convencionalidad Interamericano: Una propuesta de orden ante diez años de incertidumbre.
Revista IIDH, San José, v. 32, n. 64, p. 102, jul./dez. 2016. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/iidh/media/4759/revista-64-2web.pdf. Acesso
em: 05 mar. 2017.
28
SCHÄFER, Gilberto; RIOS, Roger Raupp; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; GOMES, Jesus Tupã Silveira. Os controles de convencionalidade
tradicional e interamericano: institutos distintos ou duas faces da mesma moeda? Revista de Direito Internacional, v. 14, n.3, 2017, p.222.
Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/rdi/article/viewFile/4811/pdf. Acesso em: 16 out. 2022.

83
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A Corte quando resolve um caso, está a sinalizar um método para resolução de inúmeros outros casos
que sequer aportarão na Corte, dado o filtro exercido pela Comissão Interamericana e, porque, mesmo
que o filtro não fosse rígido, ou que o indivíduo pudesse pleitear na Corte, ela não teria estrutura para
julgar massivamente como, por exemplo, a sua congênere, a Corte Europeia. No julgamento de um
caso, a Corte estabelece garantias de não repetição e que poderão ser utilizadas em diversos outros
casos pelos agentes nacionais de todos os Estados, especialmente a magistratura.
Por esta razão, adquire relevância o papel exercido pelo juiz nacional, que começa por uma tarefa
básica para a aplicação dos estândares de direitos humanos, que é conhecer e estudar criticamente as
decisões da Corte.

3.1 Conhecer criticamente a Jurisprudência da Corte IDH

Não é possível aplicar – adequadamente - a jurisprudência da Corte sem conhecê-la de forma sufi-
ciente. Até aqui a afirmação parece trivial e aplicada a qualquer objeto e, por isto, a expressão deve ser
complementada, pois conhecer significa apropriar-se de forma crítica dos parâmetros de proteção que
vêm sendo estabelecidos no âmbito interamericano, 29 indo além da mera citação irrefletida de atos
normativos (legais, convencionais ou jurisprudenciais) estrangeiros ou supranacionais, sem levar em
conta que o seu conteúdo se encontra diretamente ligado às realidades sociais, econômicas, religiosas,
políticas e jurídicas do local em que foram criados, o que exige uma compreensão mais profunda do seu
significado, sob pena de realizar-se uma espécie de bricolagem jurídica.30
Nesse sentido, a Corte IDH mantém, em seu sítio eletrônico na internet (www.corteidh.or.cr), um
sistema de consulta jurisprudencial atualizado, contendo todos os casos julgados e ainda em proces-
samento. Ela também tem publicado compêndios temáticos, denominados Cuadernillos de Jurispru-
dencia, também disponíveis no seu sítio eletrônico para download e consulta gratuitos, envolvendo as
diversas matérias submetidas à sua apreciação. 31 De igual sorte, há publicações específicas da Corte
IDH em parceria com a Corte Europeia de Direitos Humanos e com o Tribunal Africano dos Direitos do
Homem e dos Povos acerca da fixação de parâmetros mínimos comuns de proteção à pessoa humana
e aos grupos em situação de vulnerabilidade em cada um dos sistemas regionais. 32 A obra na qual está
inserido o presente artigo também pretende contribuir com o conhecimento e debate.

29
Até porque é necessário evitar outro mal maior que é interpretar os Tratados Internacionais unicamente pelo seu viés nacional e não pelo
significado que tem no plano internacional.
30
A expressão “bricolagem” é utilizada por Gerber, e refere-se à mera invocação, a título argumentativo, de legislações ou decisões judiciais
alienígenas como reforço da uma certa posição, sem qualquer preocupação para compreender o ordenamento jurídico em que aquele
ato foi criado. Tal fenômeno pode ser observado, exemplificativamente, na invocação do “direito à busca da felicidade“ previsto no preâm-
bulo da Constituição do Butão como argumento a favor do reconhecimento de efeitos civis às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo
pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 132, desconhecendo que, naquele país, a homossexualidade é crime (GOMES,
Jesus Tupã Silveira. Controle de Convencionalidade no Poder Judiciário: Da hierarquia normativa ao diálogo com a Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2018. p. 87).

Os Cuadernillos de Jurisprudencia, disponíveis essencialmente em espanhol, podem ser consultados, acessados e baixados gratuita-
31

mente em https://www.corteidh.or.cr/publicaciones.cfm.
32
Neste sentido, mostram-se interessantes os Joint Law Reports relativos aos anos de 2019 (INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGH-
TS. Joint Law Reports 2019: African Court on Human and Peoples’ Rights, European Court of Human Rights and Inter-American Court
of Human Rights. San José: IACHR, 2020. E-book. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/Libro_tres_cortes.
pdf.) e 2020 (INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS. 2020 Joint Law Reports: African Court on Human and Peoples’ Rights,
European Court of Human Rights and Inter-American Court of Human Rights. San José: IACHR, 2021. E-book. Disponível em: https://
corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/Libro_tres_cortes_2020.pdf.), ambos em inglês, bem como a publicação Diálogo entre Cortes
Regionales de Derechos Humanos (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Diálogo entre Cortes Regionales de
Derechos Humanos. San José: Corte IDH, 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/dialogo-es.pdf.), este
em espanhol.

84
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

Há necessidade de compreender as decisões proferidas pela Corte IDH dentro de uma concepção de
precedentes. A Corte vêm assumindo uma posição de fortalecimento dos julgados interamericanos,
limitando-se a examinar os casos em que há efetiva transcendência, de modo a não se confundir com
um tribunal recursal ordinário. 33 Quando se fala em aplicação obrigatória da sua jurisprudência, deve-se
reconhecer que a decisão proferida é compulsória apenas para o Estado diretamente envolvido no
processo, mas o parâmetro de proteção ali estabelecido estende-se para todo o sistema interameri-
cano, na forma de um precedente já estabelecido, com um efeito panprocessual que atinge a todos
os que fazem parte do sistema da Corte e da própria CADH. 34 O estudo das questões abordadas pela
Corte permitirá que os grandes temas sejam desenvolvidos e os seus estândares jurisprudenciais
sejam aplicados.
Um sistema adequado de precedentes implica, necessariamente, o estabelecimento de uma relação de
diálogo entre as diversas Cortes, nacionais e supranacionais, a respeito do mínimo de proteção devido
à pessoa humana. Os magistrados nacionais, ao examinarem um determinado caso submetido à sua
apreciação, deverão analisar os parâmetros de proteção estabelecidos pela Corte IDH comparando-os
com aqueles fixados no ordenamento jurídico doméstico, de forma a aferir qual deles confere prerro-
gativas mais amplas ou efetivas em favor da suposta vítima de violação de direitos humanos, não se
podendo falar, a priori, de prevalência de uma ou outra. 35
Esse conjunto de decisões - tanto no exercício da jurisdição contenciosa quanto no desempenho da
função consultiva – implica a ampliação dos parâmetros de proteção estabelecidos nos tratados inter-
nacionais e interamericanos de proteção aos Direitos Humanos, agregando conteúdo normativo às
disposições convencionais, detalhando as obrigações impostas aos Estados. Nesse sentido, pode-se
citar, exemplificativamente, o julgamento proferido na Opinião Consultiva nº. 24/2017, relativa à iden-
tidade de gênero e igualdade e não discriminação a casais do mesmo sexo, em que a Corte IDH reco-
nheceu que os Estados têm a obrigação de estabelecer, em seus ordenamentos pátrios, atos normativos
possibilitando a celebração de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, 36 ampliando a proteção
estabelecida no artigo 24 da CADH, que dispõe sobre a igualdade perante a lei: “Todas as pessoas são
iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.”37

3.2 Direitos Humanos requerem amplo conhecimento: importância da


Soft Law no controle de convencionalidade

A soft law parece à primeira vista de pouca importância, por não ter obrigatoriedade, mas se cons-
titui em uma grande fonte de direito. Norberto Bobbio38 já reforça a percepção de que o poder não

33
GARCÍA RAMÍREZ, Sergio. ob. cit.,
34
GOMES, Jesus Tupã Silveira. O Controle de Convencionalidade no Poder Judiciário: da hierarquia normativa ao diálogo com a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2018. p. 62.
35
SCHÄFER, Gilberto; GOMES, Jesus Tupã Silveira. Diálogo entre o Supremo Tribunal Federal Brasileiro e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos: Uma realidade nos dias atuais?. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 44, n. 143, p. 207-232, dez. 2017. p. 207-232.
36
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión Consultiva OC-24/17 de 24 de noviembre de 2017, solicitada por
la República de Costa Rica: Identidad de género, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo sexo: Obligaciones estatales en
relación con el cambio de nombre, la identidad de género, y los derechos derivados de un vínculo entre parejas del mismo sexo (interpre-
tación y alcance de los artículos 1.1, 3, 7, 11.2, 13, 17, 18 y 24, en relación con el artículo 1 de la Convención Americana sobre Derechos Huma-
nos). San José: Corte IDH, 2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.pdf. Acesso em: 04 jun. 2022.

BRASIL. Decreto nº. 678, de 08 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José
37

da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Brasília, DF: Presidência da República, [2020?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 04 jun. 2022.
38
BOBBIO, Norberto, 1992: A Era dos Direitos, Campus, Rio de Janeiro [original de 1990; ensaios de 1964-90.

85
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

vem apenas da coerção, mas também da influência, especialmente quando se sabe que em ques-
tões de direitos humanos, especialmente no plano internacional, funciona o embaraço e a vergonha
(shame and blame).
Os tratados e as convenções internacionais são obrigatórios para os estados que fazem parte do
tratado (hard law), mas no plano internacional especialmente, se faz referências a instrumentos que
não possuem esta mesma força obrigatória, mas que carregam, em si, uma enorme persuasão para os
órgãos aos quais são destinatários, a soft law.39 Entre os instrumentos no plano internacional podemos
citar uma série de resoluções normativas de organizações internacionais, comentários, declarações
realizadas pelos Estados ou mesmo por um comitê de Especialistas, recomendações de organismos
que monitoram tratados, memorandos.
No controle de convencionalidade no Brasil cite-se como exemplo de aplicação da soft law a ADI 4275/
DF, que trata da alteração do prenome e do sexo no registro civil de pessoa transgênero. Nesta ADI
há referência nos votos a uma série de dispositivos constitucionais ou convencionais, mas também há
referência no Voto do Ministro Celso de Mello aos “Princípios de Yogyakarta (2006)”. Estes princípios
foram desenvolvidos por um grupo de especialistas na matéria40 e, por esta razão, o Ministro começa
com a sua citação de “que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos,
pois todos os direitos humanos são universais, interdependentes, indivisíveis e interrelacionados, sendo
certo, presente esse contexto, que a orientação sexual e a identidade de gênero são essenciais para a
dignidade e humanidade de cada pessoa, não devendo ser motivo de discriminação ou abuso”. É por
essa razão que, entre os Princípios de Yogyakarta – que exprimem postulados sobre a aplicação da
legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e à identidade de gênero –,
há um, o Princípio n. 3, que proclama o direito titularizado por qualquer pessoa “de ser reconhecida, em
qualquer lugar, como pessoa perante a lei. As pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero
diversas devem gozar de capacidade jurídica em todos os aspectos da vida. A orientação sexual e a
identidade de gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essencial de sua personalidade
e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade”.
A soft law tem, como se pode ver no exemplo acima, um grande caráter técnico, quando redigido por
comitês de especialistas. Elas possuem a vantagem de incorporar rapidamente o desenvolvimento
científico e não necessitar de um processo formal de ratificação, mesmo que não tenham a força vincu-
lante dos tratados. Por esta razão, a soft law pode atuar de forma complementar ao hard law, dando-lhe


39
Sobre o assunto para quem quiser brevemente ter um conhecimento didático: OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva; BERTOLDI, Márcia Rodri-
gues Bertoldi. A importância do soft law na evolução do direito internacional. RIDB, Lisboa, v. 1, n. 10, p. , 2012. e THIBIERGE, Catherine. Le
droit souple: réflexion sur les textures du droit. RTD Civ., Paris, n., p., 2003. e SOUZA, Leonardo da Rocha de Souza; LEISTER, Margareth
Anne. A influência da soft law na formação do direito ambiental. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 12, n. 2, p. 767-784, 2015. No
artigo de Catherine Thibierge faz uma retrospectiva deste fenômeno no plano teórico e de sua conceituação como direito, dividindo
a soft law em: lei vaga (sem precisão), sem obrigatoriedade e sem sanção. Nas palavras da autora no original: “Dans les années 80, un
grand débat a agité la doctrine internationaliste au sujet de la soft law. Aujourd’hui, l’ampleur de ce phénomène est devenue telle, dans
la pratique et dans la production juridiques, y compris en droite interne, qu’il n’est plus possible de l’ignorer sur un plan théorique, dans
les introductions au droit et dans la théorie Générale. Cet effort de conceptualisation suppose au préalable résolue une question de
principe: le ‘droit souple’ peut-il être véritablement du droit ? Ce n’est que dans l’affirmative qu’une cascade d’autres questions s’offrent
à la réflexion. Les propositions de réponse présentées ici approfondissent trois facettes du droit souple : droit flou (sans précision), droit
doux (sans obligation) et droit mou (sans sanction), tout à la foi reflets et outils de compréhension de la complexité juridique et des évolu-
tions actuelles vers un droit dit ‘postmoderne’. Elles conduiront aussi à s’interroger sur l’intégration de ce droit souple au sein du droit en
général. Et à découvrir, après Quelques autres auteurs, que le normatif ne se confond pas avec l’obligatoire et qu’une règle de droit peut
être souple, autrement dit non obligatoire et/ou non sanctionnée. De quoi souligner les limites de l’assimilation du droit au seul ‘droit dur’
et aboutir à une échelle de densité normative, comprenant diverses textures juridiques possibles, d’un droit très dur à un droit très souple
”.
40
COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS; SERVIÇO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS. Princípios de Yogyakarta: Princí-
pios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. [2020?].
PDF. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf.

86
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

densidade normativa de conteúdo, precisando uma determinada expressão e conferindo uma imensa
força interpretativa para um determinado dispositivo convencional.

3.3 A questão da hierarquia dos Tratados Internacionais de Direitos


Humanos. Uma teoria normativa das fontes

A Constituição brasileira não dispunha, em sua redação original, sobre a hierarquia dos tratados inter-
nacionais incorporados ao nosso ordenamento jurídico, apesar de o artigo 5º, § 2º, admitir a existência
de direitos fundamentais previstos em tratados internacionais de que o Brasil fosse parte, o que gerou
intenso debate.41
A Emenda Constitucional n. 45/2004, ao inserir o § 3º no artigo 5º da Constituição Federal: “os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais” não teve o efeito de encerrar as discussões sobre o posicionamento dos
tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento pátrio. É certo que estes tratados, na
locução do próprio dispositivo normativo, integram formalmente o bloco de constitucionalidade, pois
equivalentes às emendas constitucionais.
Quanto à CADH e os demais tratados que não estão formalmente equiparadas à EC o STF nomeou-lhes
uma hierarquia que, para fins didáticos, chamou de supralegal (RE n. 466.343/SP). Neste julgamento, o
STF abordou a questão da prisão civil do depositário infiel e acolheu a tese defendida pelo Min. Gilmar
Mendes, segundo a qual os dispositivos inscritos nos tratados internacionais de direitos humanos,
ao serem incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, assumem posição intermediária entre a
Constituição e os atos normativos em sentido lato. Assim, apesar de não gozarem do status normativo
atribuído aos dispositivos constitucionais, os tratados internacionais de direitos humanos afastam a
incidência das disposições infraconstitucionais que lhe sejam contrárias. 42 Então, mesmo que seja insu-
ficiente esta classificação e sequer o STF pague todo o preço epistêmico pela classificação que utilizou
para derrubar um dispositivo constitucional que permitia a prisão do depositário infiel, 43 o certo é que
materialmente ela integra o bloco de constitucionalidade, já que é incorporado pelo fundamento do
artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, o qual é interpretado como uma cláusula de abertura do orde-
namento jurídico interno às disposições convencionais. De tal sorte, independentemente do procedi-
mento estabelecido no artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal (o qual é necessário tão somente para
conferir às disposições convencionais caráter formalmente constitucional), os dispositivos inscritos nos
tratados internacionais de direitos humanos passam a ter, sempre, status materialmente constitucional.


41
GOMES, Jesus Tupã Silveira; SCHÄFER, Gilberto. Da pirâmide à bússola: considerações sobre o princípio pro homine e seu uso na prote-
ção dos direitos humanos. Rev. de Direitos Humanos em Perspectiva, Maranhão, v. 3, n. 2, p. 22-38, jul./dez. 2017.
42
GOMES, Jesus Tupã Silveira; SCHÄFER, Gilberto. Da pirâmide à bússola: considerações sobre o princípio pro homine e seu uso na prote-
ção dos direitos humanos. Rev. de Direitos Humanos em Perspectiva, Maranhão, v. 3, n. 2, p. 22-38, jul./dez. 2017.
43
Art. 5º., LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação
alimentícia e a do depositário infiel;

87
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Conforme já explanamos44 é necessário abandonar uma teoria rígida e piramidal das fontes e utilizar
uma aplicação mais flexível. Um caráter menos rígido já foi realizado aplicando o princípio pro homine45
– também denominado pro persona ou favor persona46 - o qual constitui a espinha dorsal do sistema
internacional de proteção dos direitos humanos, decorrente do esforço dos diversos Estados, após o
encerramento da Segunda Guerra Mundial, em estabelecer um mínimo de proteção à pessoa humana,
de forma a impedir a repetição das atrocidades ocorridas na Europa.47
Trata-se de uma norma originária do Direito Internacional dos Direitos Humanos que possibilita a
coordenação das diversas fontes normativas existentes no âmbito internacional, exigindo do operador
do Direito que se atribua, em cada caso, a maior proteção à suposta vítima de violação dos direitos
humanos, 48 atuando também como vetor de interpretação de uma determinada disposição norma-
tiva49 ou pode atuar como um instrumento auxiliar na escolha do dispositivo legal aplicável a um deter-
minado caso50 e no plano interno (nacional) ela permite selecionar o dispositivo que confere maior
alcance de proteção. 51

44
GOMES, Jesus Tupã Silveira; SCHÄFER, Gilberto. Da pirâmide à bússola: considerações sobre o princípio pro homine e seu uso na prote-
ção dos direitos humanos. Rev. de Direitos Humanos em Perspectiva, Maranhão, v. 3, n. 2, p. 22-38, jul./dez. 2017.
45
Ele encontra-se expressamente positivado em alguns tratados internacionais de direitos humanos, dentre os quais destacamos os Pactos
Internacionais dos Direitos Civis e Políticos (BRASIL, 1992b) e dos Direitos Civis, Econômicos e Sociais (BRASIL, 1992a), cujo artigo 5 – com
redação idêntica – dispõe que as disposição do Pacto não poderão ser interpretadas para “ reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo
qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades
reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhe limitações mais amplas do que aquelas nele previstas”. E também não se “admitirá qualquer
restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte do presente Pacto em
virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em
menor grau
46
Estes termos são os preferidos pelos autores de língua espanhola, por constituírem termos neutros em relação ao gênero AGUILAR CA-
VALLO, Gonzalo; NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. El Principio Favor Persona en el Derecho Internacional y en el Derecho Interno como
Regla de Interpretación y de Preferencia Normativa. Revista de Derecho Público, Santiago, n. 84, p. 13-43, 2016. Disponível em: https://
revistas.uchile.cl/index.php/RDPU/article/viewFile/43057/44992. Acesso em: 05 jun. 2022. CASTAÑEDA, Mireya. El Principio Pro Persona:
Experiencias y expectativas. 2. ed. México: Comisión Nacional de los Derechos Humanos, 2015. 315 p. Disponível em: http://appweb.cndh.
org.mx/biblioteca/archivos/pdfs/lib_PrincipioProPersona2aed.pdf. Acesso em: 05 jun. 2022. MEDELLÍN URQUIAGA, Ximena. Principio
Pro Persona. México: Comisión de Derechos Humanos del Distrito Federal, 2013. 97 p. Disponível em: http://www2.scjn.gob.mx/red/
coordinacion/archivos_Principio%20pro%20persona.pdf.
47
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2016; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; RIBEIRO, Dilton. The Pro Homine Principle as na Enshrined Feature of Internatio-
nal Human Rights Law. The Indonesian Journal of International & Comparative Law, Jacarta, v. 3, n. 1, p. 77-99, jan. 2016. Disponível
em: https://www.academia.edu/20292282/MAZZUOLI_Valerio_de_Oliveira_RIBEIRO_Dilton._The_pro_homine_principle_as_an_enshri-
ned_feature_of_international_human_rights_law._In_Indonesian_Journal_of_International_and_Comparative_Law_vol._III_issue_1_Ja-
nuary_2016_p._77-99. Acesso em: 11 jun. 2022.
48
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no Limiar do Novo Século: Recomendações
para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (coord.). O Sistema Interamericano de
Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 103-179.
49
MEDELLÍN URQUIAGA, Ximena. Ob. cit.
50
CASTAÑEDA, Mireya. Ob. cit.


51
AGUILLAR CAVALLO, Gonzalo; NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Ob cit.

88
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

No âmbito interamericano, sua aplicação decorre da interpretação conferida ao artigo 29 da Convenção


Americana de Direitos Humanos – CADH, 52 o qual determina que sejam adotadas, por um lado, as
interpretações que confiram a maior proteção ao indivíduo ou aos grupos em situação de vulnerabi-
lidade, e, por outro, aquelas mais restritivas no que se refere à limitação das prerrogativas e garantias
por ela fixadas. 53
A aplicação do princípio pro homine implica que as disposições normativas relativas aos direitos
humanos – nacionais ou internacionais, de caráter material ou processual – devem ser interpretadas
extensivamente no que se refere ao reconhecimento de prerrogativas e garantias às supostas vítimas
de violação, de forma a garantir-lhes seu efeito útil. Por sua vez, existindo a possibilidade de mais de
uma exegese do texto normativo, deve-se optar por aquela que, em maior grau, respeite e garanta o
exercício de direitos. 54
Ele implica uma superação dos critérios tradicionais de superação de antinomias jurídicas – hierárquico,
de especialidade e temporal – pelo diálogo entre as diversas fontes normativas, impondo a coorde-
nação entre os diversos dispositivos vigentes nos ordenamentos nacional e internacional. 55 Para além
da função interpretativa, o princípio pro homine exerce também uma função normativa, estabele-
cendo uma primazia axiológica que deve ser observada por todos os agentes para a realização dos
direitos humanos, possibilitando que, em um determinado caso concreto, seja aplicada uma dispo-
sição de hierarquia inferior – por exemplo, uma lei ordinária – em detrimento de outro dispositivo de
nível superior. 56
Dentro de uma concepção de hierarquia axiológica, 57 tendo em vista que o princípio pro homine esta-
belece uma preferência prima facie pela interpretação possível que seja mais protetora para o indivíduo
no caso concreto, a qual já se encontra definida e explicitamente aceita por cada um dos Estados que
celebraram os tratados internacionais de direitos humanos.
Essa primazia axiológica impõe ao operador do Direito o exame das especificidades de cada caso
concreto, bem como as disposições normativas estatais e convencionais, para a construção da
norma que seja mais protetora ao indivíduo, sem a utilização de critérios fechados ou fórmulas esta-
belecidas a priori para o estabelecimento das normas aplicáveis a todas as situações de violação aos
direitos humanos. 58
Para evitar o arbítrio deve o julgador – seja nacional ou supranacional – realizar uma motivação
consistente, ou seja, deve analisar de forma detalhada as consequências da aplicação de cada enun-

52
Artigo 29.  Normas de interpretação. Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a. permitir a qualquer
dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los
em maior medida do que a nela prevista; b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de
acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; c.
excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e
d. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais
da mesma natureza.
53
GOMES, Jesus Tupã Silveira; SCHÄFER, Gilberto. Da pirâmide à bússola: considerações sobre o princípio pro homine e seu uso na prote-
ção dos direitos humanos. Rev. de Direitos Humanos em Perspectiva, Maranhão, v. 3, n. 2, p. 22-38, jul./dez. 2017.
54
AGUILLAR CAVALLO, Gonzalo; NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Ob cit.
55
MAZZUOLI, Valério. Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Direito Interno. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 107.
56
AGUILLAR CAVALLO, Gonzalo; NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Ob cit.


57
GUASTINI, Riccardo. Interpretare e Argomentare. Milano: Dott. A. Giuffrè, 2011. 453p.
58
MAZZUOLI, Valério. Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Direito Interno. São Paulo: Saraiva, 2010. 251p. 2010.

89
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ciado normativo e a descrever o raciocínio realizado e justificar as razões que o levaram a adotar
determinada solução. 59
Além disso, nada obsta a criação, pelo Estado, de atos normativos mais benéficos aos indivíduos ou
grupos em situação de vulnerabilidade, os quais devem prevalecer sobre as disposições convencionais.
Não se pode estabelecer, como regra geral, que os dispositivos inscritos nos tratados internacionais
são mais favoráveis ao ser humano, na medida em que estes sempre representam padrões mínimos de
proteção60, ou seja, os dispositivos da Convenção Americana de Direitos humanos são o piso, e não o
teto de proteção dos Direitos Humanos.61
Dessa forma, estabelece-se um verdadeiro diálogo entre as diversas fontes normativas – nacionais ou
convencionais – que integram o sistema de proteção aos direitos humanos, devendo a atuação do intér-
prete sempre estar direcionada à aplicação dos dispositivos que alcancem, em maior grau, as garantias
concedidas aos indivíduos e aos grupos em situação de vulnerabilidade, ou às que limitem em menor
extensão tais prerrogativas, independentemente do seu grau hierárquico no ordenamento jurídico.62
Quando se faz uma interpretação pro homine não quer dizer que ela é uma interpretação ingênua, fácil,
que não se realizem ponderações ou que a atividade interpretativa seja simples, que não haja colisões
de princípios. A atividade interpretativa continua a ser uma atividade complexa e fonte de colisões das
mais variadas espécies. Por esta razão, sempre haverá a exigência de uma interpretação sistemática,
que tenha uma função harmonizadora e agregadora.

3.4 Do controle de Constitucionalidade ao controle de Controle de


Convencionalidade. - Estado de Coisas Inconstitucional – Inconvencional

O Estado de Coisas Inconstitucional como expressão e como conceito é novo, mas já existia como
objeto jurídico, ao menos em uma fase embrionária nas demandas estruturais julgadas nos EUA, em
que se destaca o famoso caso famoso caso Brown vs. Board of Education of Topeka.63
A expressão e a técnica foram utilizadas na Corte Constitucional da Colômbia no ano de 1997, por
ocasião do julgamento da Sentencia de Unificacion (SU) 559. O caso que deu o mote foi um processo
movido por 45 professores das cidades colombianas de Zambrano e Maria La Baja que tiveram seus
respectivos direitos previdenciários violados. As autoridades efetuavam o desconto da parcela previ-
denciária destes trabalhadores, mas não os repassavam ao Fundo Previdenciário sonegando-lhes,
por esta razão, o direito previdenciário e, ao mesmo tempo, apropriando-se do valor. O que a Corte
Colombiana visualizou foi que, embora a demanda tenha sido proposta apenas por um grupo pequeno
de professores, a violação era sistemática e generalizada, abrangendo um grande grupo de docentes.

59
RAMOS, André de Carvalho. Control of Conventionality and the Struggle to Achieve a Definitive Interpretation of Human Rights: The
Brazilian experience. Revista IIDH, San José, v.32, n.64, p.11-32, 2016
60
AGUILLAR CAVALLO, Gonzalo; NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Ob cit


61
GARCÍA RAMÍREZ, Sergio. La “Navegación Americana” de los Derechos Humanos: Hacia un ius commune. In: FIX-FIERRO, Héctor Felipe;
BOGDANDY, Armin von; MORALES ANTONIAZZI, Mariela (coord.). Ius Constitucionale Commune en América Latina: Rasgos, Poten-
cialidades y desafíos. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2014. p. 459-500. Disponível em: https://archivos.juridicas.unam.
mx/www/bjv/libros/8/3655/20.pdf. Acesso em: 04 jun. 2022.
62
AGUILLAR CAVALLO, Gonzalo; NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Ob cit, p. 22.
63
Marco Félix Jobim utiliza a categoria de processo estrutural e reconstrói a origem nas ações da Suprema Corte norte-americana, espe-
cialmente nos casos de integração racial a partir de 1950, como o famoso caso Brown vs. Board of Education of Topeka (JOBIM, Marco
Félix. Medidas estruturantes: da Suprema Corte Estadunidense ao Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2013).

90
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

A Corte Colombiana utiliza uma decisão que tem força além das partes no litigio – com efeitos panpro-
cessuais - com muita semelhança ao sistema das class actions – estendendo a decisão para além das
partes que estavam pleiteando o seu direito. Realizou uma expansão para “quem, inclusive, não era
parte, mas, no entanto, estava sendo afetado em seus direitos fundamentais previdenciários decor-
rentes das graves omissões dos poderes públicos.”64 Foi aí que o Tribunal utilizou esta técnica decisória
determinando que todos os Munícipios que estivessem violando os direitos da mesma forma fizessem
a correção, com o envio da sentença às várias autoridades estatais para que o quadro sistemático de
violação fosse corregido.
Este Estado de coisas pressupõe além da “violação generalizada de direitos fundamentais, a inércia ou
incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a situação; c) a superação
das transgressões exige a atuação não apenas de um órgão, e sim de uma pluralidade de autoridades”.65
Este Estado de Coisas Inconstitucional, embora não com este nome, já existia nos processos estrutu-
rais e o próprio Controle de Convencionalidade tradicional da Corte IDH, que determina uma série
de medidas para o cumprimento de suas decisões, especialmente quando julga demandas estruturais
como as questões que envolvem o sistema prisional, de encarceramento juvenis ou quando analisa a
questão da internação por deficiência – capacidade - mental.
É por esta razão que a Corte IDH consolidou que qualquer ato do Estado que viole disposições conven-
cionais, seja ele comissivo ou omissivo, seja administrativo, legislativo ou judicial, ou de sua hierarquia
no ordenamento jurídico interno, encontra-se sujeito ao controle de convencionalidade66.
 Na ADPF 347 no plano interno se reconhece uma violação grave e massiva de direitos humanos, que
para ser sanada necessita de uma intervenção sistemática e estruturada em uma política pública.  Claro
que o processo, concebido com esta dimensão, deve buscar um contraditório especial de forma a poder
concretizar mudanças. Na decisão cautelar foi reconhecido como caracterizado um estado de coisas
inconstitucional pois presente um quadro “de violação massiva e persistente de direitos fundamentais,
decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas
abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária”67.
A questão tem sido colocada no âmbito do STF em outras ações, cite-se para tal fim a Ação Direta
por Omissão nº 60 que, por trazer consigo traços de Estado de Coisas Inconstitucional, foi convertida
em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 708/2020), em que se discutem
questões ambientais sensíveis para o Estado Brasileiro.
É por esta razão que acompanhamos Siddharta Legale e David Araújo no sentido da existência de um
Estado de Coisas Inconvencional, a partir do próprio debate de questões estruturantes como o do
Sistema prisional. Inserir no contexto de um Estado de Coisas Inconvencional não é difícil no plano
interno, porque as convenções, mesmo que não formalmente equiparadas a Emendas Constitucionais,
fazem parte do bloco de constitucionalidade e, permitem, enlaces com os preceitos fundamentais que

64
FERREIRA, Marcus Vinicius Vita e COSTA, Leonardo Pereira Santos Costa; O Estado de Coisas Inconstitucional na jurisprudência do
STF: A contribuição do ministro Marco Aurélio Mello https, https://www.migalhas.com.br/depeso/349125/o-estado-de-coisas-inconstitu-
cional-na-jurisprudencia-do-stf.
65
ALVES, Jaime Leônidas Miranda; SOUZA, Maria Cláudia da Silva Antunes de. Proteção Ambiental: entre o direito da sustentabilidade e
o estado de coisas inconstitucional. Revista de Direito e Sustentabilidade, Florianópolis, v. 6, n. 2, p. 63-78, jul./dez. 2020.
66
MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Control de Convencionalidad (Test de). In: MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer; RAMÍREZ, Fabíola Martí-
nez; MEJÍA, Giovani A. Figueroa (org.). Diccionario de Derecho Procesal Constitucional y Convencional. 2. ed. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2014. p. 240. Disponível em: https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/8/3683/27. pdf. Acesso em:
05 jan. 2017.)


67
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347/DF. Relator:
Ministro Marco Aurélio. Pesquisa de Jurisprudência, Inteiro Teor do Acórdão, 09 set. 2015.

91
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

dão suporte a mover uma ADPF. Em outras palavras, a convenção pode ser utilizada como parâmetro
de controle ao inserir o seu conteúdo em um preceito fundamental, quando ocorra uma violação
massiva aos direitos humanos, representada por um litígio estrutural em que seja violada a Convenção
Americana de Direitos Humanos ou outro tratado internacional de Direitos Humanos.
Não é por outra razão que a audiência de custódia foi estabelecida no plano interno, justamente na
referida ADPF.
Este modelo exige um Poder Judiciário com protagonismo, com as portas abertas para a cidadania. Um
Corte Constitucional (e um Poder Judiciário) unicamente calcada na vetusta ideologia do Legislador
Negativo (der negative Gesetzgeber), na formulação de Hans Kelsen,68 não serve a esta realidade. Prin-
cipalmente quando temos um Poder Executivo e Legislativo povoados por forças antidemocráticas.

4. DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE AO


CONTROLE DE CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

4.1 Bloco de Constitucionalidade e Controle Concentrado

Para os Tratados que seguirem a incorporação do § 3º. do artigo 5º não há dúvida que possam ser utili-
zados como parâmetro do controle concentrado e abstrato,69 pois equivalentes a Emendas Constitu-
cionais. Por esta razão, como tratados incorporados por este procedimento e equivalentes a Emendas
Constitucionais elas podem ser parâmetros controladores de Ações Diretas como a Ação Direta de
Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Ação Direita de Inconstitucionali-
dade por Omissão.
São todas Ações com assento constitucional (art. 102 e seguintes da CF) e reguladas por lei infracons-
titucional (Lei 9868/99), ações que tem legitimados especiais (art. 103 da CF). Para muitos operadores
jurídicos pode parecer distante a possibilidade de acionar o Supremo Tribunal Federal por esta via, mas

68
A expressão é de Kelsen, mas ela não tem o significado de que a interpretação não seja criativa. Ver KELSEN, Hans. Jurisdição constitu-
cional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 119 a 210.
69
Conforme esclarece Luís Afonso Heck (HECK, Luís Afonso. O Controle Normativo no Direito Constitucional Brasileiro. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 91, n. 800, p. 57-64, jun. 2002) “... o par conceitual controle principal e incidental refere-se ao objeto do litígio.
No controle normativo principal somente a questão da constitucionalidade/inconstitucionalidade da lei é objeto do procedimento. O
controle incidental, ao contrário, ocorre no quadro de um litígio jurídico que tem outro objeto, por exemplo, a conformidade ao direito de
um ato. A decisão, porém, depende da constitucionalidade da lei que está na base desse ato. O par conceitual controle normativo abstrato
e concreto dirige-se a o motivo do controle normativo. Naquele não existe conexão com um caso litigioso concreto, neste sim, porque
se apresenta a questão de saber se a lei que importa para a decisão é ou não compatível com a Constituição. O par conceitual controle
concentrado e difuso aponta para o tribunal competente para a decisão. No controle concentrado, tanto a competência para o exame
como a competência para a rejeição estão concentradas em um mesmo tribunal, enquanto, no controle difuso, essas competências
encontram-se nas mãos de juízes, monocráticos ou não. Além disso, o par conceitual controle normativo especial e integrado expressa
o fato da jurisdição constitucional, e com isso o controle normativo, ser atribuído a um tribunal constitucional especial ou a um tribunal
supremo competente para todos os âmbitos jurídicos. Esses pares conceituais se cruzam na prática.”

92
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

sempre há possibilidades, dependendo do Procurador-Geral da República, de representação para que


ele mova a ação ou para que a ação seja encampado por algum partido político ou por outro legitimado. 70
Para os tratados que não foram incorporados pelo mesmo procedimento art. 5º. § 3º, e que são apenas
materialmente constitucionais ou supralegais se permitirá, em função da subsidiariedade, 71 a utilização
da Arguição de Descumprimento Fundamental (Lei 9882/99).
A Constituição Federal é extremamente vaga ao se referir ao instrumento. Segundo o § 1° do art. 102
da Constituição Federal, “a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta
Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. A matéria veio a ser regu-
lada na Lei 9882/99, mas a lei deixou vários pontos descobertos, decorrentes da própria sistematização
constitucional. O Supremo Tribunal Federal na ADPF 33-MC, através do voto do Relator Gilmar Mendes,
fixou como fundamentais os seguintes preceitos: os princípios fundamentais, as cláusulas pétreas –
onde estão contidos os direitos e garantias individuais – os direitos sociais, os princípios sensíveis que
dão ensejo à intervenção federal.
Na ADPF 54 e 46 inclui os princípios fundamentais, em consequência de ter aceitado como preceito
o princípio da dignidade da pessoa humana e livre iniciativa, da liberdade no exercício de qualquer
trabalho, da livre concorrência e do livre exercício de qualquer atividade econômica (CF, arts. 1°, IV; 5°,
XIII; 170, caput, IV e parágrafo único, respectivamente).
O mais importante e o que tem fundamental importância no controle de convencionalidade é a técnica
como estes preceitos podem ser interpretados. Já na ocasião da ADPF 33, MC, o Ministro Gilmar Medes
apresentou uma fórmula ampla de interpretação, ampliando o espaço protegido por esses preceitos
fundamentais. Para o Ministro, os conceitos, como os inseridos nas cláusulas pétreas, devem ter o seu
conteúdo preenchido por outros princípios e regras inscritos na carta constitucional. Referindo-se às
“cláusulas pétreas” elas parecem despidas de conteúdo específico, conforme o raciocínio do Ministro,
mas o seu conteúdo pode ser preenchido por um exame sistemático de outras disposições constitucio-
nais integrantes do mesmo texto constitucional.
Ao preencher o conceito de um preceito fundamental desta forma, grande parte da Constituição
acabou por se tornar parâmetro de controle em uma ADPF. E os tratados de direitos humanos não
poderiam deixar de fazer parte deste enlace.
O STF, em mais de uma ocasião, se pronunciou sobre a matéria, como na ADPF 320 que discute a
Lei da Anistia dada aos Brasileiros que cometeram crimes durante a ditadura, especialmente no que
tange a crimes de lesa humanidade; A ADPF 496 ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
em que se buscava a declaração de não recepção do art. 331 do Código Penal, que tipifica o crime
de desacato, que foi julgada, improcedente. Estas Ações, mesmo a que foi julgada improcedente,
fazem uma conexão de preceitos constitucionais com a Convenção Interamericana e a jurisprudência
da Corte, de tal forma a torná-la parâmetro de controle de convencionalidade/inconstitucionalidade
na ordem interna.

70
Ver a este respeito o trabalho realizado pela Clínica de Direitos Humanos da Uniritter em LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; RIOS, Leivas;
SCHÄFER, Gilberto. Clínica de Direitos Humanos do UniRitter: três anos de atividades. In: SEMANA DE EXTENSÃO, PESQUISA E PÓS-
-GRADUAÇÃO, 10., 2014, Porto Alegre. Anais [...]. Porto Alegre: UniRitter, 2014. Disponível em: https://vdocuments.com.br/clinica-de-di-
reitos-humanos-do-uniritter-tres-anos-de-critica-um-modelo.html?page=1. Acesso em: 21 set. 2022. Este trabalhando redundou em uma
representação para fins de propositura de ADPF contra a Criminalização da “Pederastia” no Código Penal Militar. Esta representação
redundou na ADPF 291, Relator(a): Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 28/10/2015, Processo Eletrônico Dje-094 Divulg 10-
05-2016 Public 11-05-2016), julgada procedente.


71
Lei 9882/99, art. 4o, § 1o Não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio
eficaz de sanar a lesividade.

93
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Portanto, os tratados internacionais de direitos humanos que não foram recepcionados como Emenda
Constitucional de forma expressa, podem ser parâmetro de controle concentrado realizado por meio
de ADPF, o que tem outra virtualidade, serve para impugnar qualquer ato do poder público (Art. 1º
da Lei 9882): a arguição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o
Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante
de ato do Poder Público.

4.2 Controle difuso de Convencionalidade

Para terminar a exposição do controle de convencionalidade no Brasil, devemos seguir a linha do


controle de constitucionalidade difuso/incidental.
O controle difuso de constitucionalidade, primeiro modelo jurisdicional adotado no Brasil, no início
da República, constou expressamente da Constituição de 1891. Este modelo teve como base o direito
dos Estados Unidos, mas sem a adoção do instituto do stare decisis (precedente obrigatório), o que
ocasionava os inconvenientes de decisões díspares já que a sua eficácia era apenas interpartes. Esses
inconvenientes só foram minorados pela solução de compromisso adotada pela atribuição de efeitos
erga omnes pela intervenção do Senado Federal (hoje art. 52, X da CF).
Este controle tem uma vantagem: ele permite uma legitimidade aberta, já que todo aquele que tiver
interesse em uma determinada declaração de inconstitucionalidade pode se utilizar do referido instru-
mento, ao contrário do modelo concentrado (ADI, ADC, ADPF, ADO) que é possível ser utilizado apenas
pelos legitimados taxativamente previstos na Constituição. O controle difuso/incidental é ainda a prin-
cipal forma de controlar as normas municipais e continua a ser “a única via acessível ao cidadão”.
No controle difuso de constitucionalidade, cabe a qualquer juiz ou tribunal a competência para julgar
a questão da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, arguida incidentalmente em processo cujo
objeto, no mérito, seja outro. Não importa o grau de hierarquia do órgão e inclusive o próprio Supremo
ou o Superior Tribunal de Justiça (com peculiaridades) possuem este poder de julgamento nos casos
que lhe são submetidos de forma originária.
A questão constitucional aparece de forma incidental, ou seja, aparece como uma questão prejudicial
à demanda. O controle incidental de inconstitucionalidade não é apenas a defesa contra a aplicação
de uma lei ou ato normativo, mas a verificação de uma questão concreta de inconstitucionalidade de
lei ou ato normativo.
No direito brasileiro em matéria de controle de constitucionalidade temos dois momentos, conforme
Airton Sott. 72 O primeiro é a competência ou o poder de verificação ou exame e o segundo momento
é a competência de declaração de inconstitucionalidade (caso se considere a norma inconstitucional).
Para o magistrado de primeiro grau, no controle incidental, não há qualquer procedimento especial,
podendo fazer a rejeição do ato inconstitucional. No entanto, nos Tribunais, quando for realizado
pelos órgãos fracionários (turmas, câmaras, seções), há a necessidade de se adotar o procedimento de


72
SOTT, Airton José. A possibilidade do controle judicial de constitucionalidade – incidental, concreto e difuso – Direito brasileiro anterior à
Constituição Federal de 1988 – em conexão com os direitos fundamentais. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 31, n. 93, p. 9-24, mar. 2004.

94
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

formatar o incidente de declaração de inconstitucionalidade (art. 948 a 950 do CPC73), em função da


cláusula de reserva do plenário (art. 97 da CF). 74
No Controle Incidental Difuso, nas emendas constitucionais de direitos humanos incorporadas
conforme o § 3º do artigo 5º da Constituição, a forma de submissão é a mesma do controle realizado
conforme o texto constitucional e as Emendas Constitucionais em geral. Há necessidade de formatar o
incidente de inconstitucionalidade perante o pleno ou o órgão especial.
No caso dos tratados que não foram incorporados na forma do § 3º do artigo 5º que, na dicção do STF
tem um caráter de supralegalidade e que integram materialmente o Bloco de Constitucionalidade, há
dispensa da formatação do Incidente de Inconstitucionalidade, podendo o próprio órgão fracionário
decidir a questão.
No caso do controle de convencionalidade, não há óbice à sua realização de forma difusa, tendo em
vista que os tratados internacionais firmados pelo Brasil são, paulatinamente, incorporados ao orde-
namento jurídico pátrio, após aprovação pelo Congresso Nacional, na forma do artigo 49, inciso I (em
caso de matérias diversas) ou do artigo 5º, § 3º (para tratados de Direitos Humanos), ambos da Consti-
tuição Federal, gozando, no caso dos tratados de direitos humanos, de status hierárquico privilegiado,
segundo sua forma de incorporação ao Direito brasileiro. 75
A vantagem da adoção dessa forma de controle de convencionalidade está diretamente relacionada
à sua semelhança com o controle de constitucionalidade difuso: há uma maior informalidade, tratan-
do-se de questão incidental a ser decidida no curso de um determinado processo judicial concreto,
com efeito – em regra – inter partes, com o reconhecimento da inaplicabilidade ato normativo incon-
vencional e sem necessidade de sua exclusão formal do ordenamento jurídico. 76.
Tal circunstância aplica-se tanto para os juízos singulares quanto aos Tribunais, independentemente
de seu grau hierárquico na estrutura do Poder Judiciário nacional, tendo em vista que a declaração
de inconvencionalidade não se confunde com o reconhecimento de eventual inconstitucionalidade e,
portanto, não exige a reserva de plenário prevista no artigo 97, da Constituição Federal. 77

73
CAPÍTULO IV - DO INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. Art. 948. Arguida, em controle difuso, a inconstitucio-
nalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator, após ouvir o Ministério Público e as partes, submeterá a questão à turma
ou à câmara à qual competir o conhecimento do processo. Art. 949. Se a arguição for: I - rejeitada, prosseguirá o julgamento; II - acolhida,
a questão será submetida ao plenário do tribunal ou ao seu órgão especial, onde houver. Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos
tribunais não submeterão ao plenário ou ao órgão especial a arguição de inconstitucionalidade quando já houver pronunciamento destes
ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão. Art. 950. Remetida cópia do acórdão a todos os juízes, o presidente do tri-
bunal designará a sessão de julgamento. § 1º As pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado poderão
manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade se assim o requererem, observados os prazos e as condições previstos no regimento
interno do tribunal. § 2º A parte legitimada à propositura das ações previstas no art. 103 da Constituição Federal poderá manifestar-se, por
escrito, sobre a questão constitucional objeto de apreciação, no prazo previsto pelo regimento interno, sendo-lhe assegurado o direito
de apresentar memoriais ou de requerer a juntada de documentos. § 3º Considerando a relevância da matéria e a representatividade dos
postulantes, o relator poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades.


74
“somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”
75
MAZZUOLI, Valério de Oliveira, op. cit.
76
GOMES, Jesus Tupã Silveira. Controle de Convencionalidade no Poder Judiciário: Da hierarquia normativa ao diálogo com a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2018.
77
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016, 236 p.

95
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Deve-se ter em mente que as disposições convencionais gozam de caráter especial no ordenamento
jurídico pátrio, decorrente da vinculação do Estado ao mínimo de proteção estabelecido pelos tratados
internacionais de direitos humanos e pelos julgamentos exarados pela Corte IDH. 78
Assim, mostra-se lícito ao juiz, ao examinar um determinado caso concreto, declarar a invalidade de
um ato normativo nacional em razão de sua inconformidade com o mínimo comum de proteção esta-
belecido no corpus juris interamericano, adequando o nível nacional de promoção e defesa à pessoa
humana aos parâmetros adotados no nosso sistema regional. 79

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Corte IDH tem invocado as disposições inscritas nos artigos 1.1 e 2 da CADH para justificar a preva-
lência do corpus juris interamericano sobre as disposições estatais e fixar o dever dos Estados de
promover alterações no seu ordenamento jurídico e na sua estrutura administrativa, adequando-o ao
sistema regional de proteção aos direitos humanos.
A Corte estabeleceu o dever de que os agentes nacionais façam a compatibilização de seu ordena-
mento e apliquem a jurisprudência da Corte aos casos que apreciam. Isto não significa que o corpus
juris interamericano goze de supremacia absoluta na proteção dos direitos humanos, sendo possível a
aplicação do ordenamento jurídico local a um determinado caso concreto sempre que essa providência
resultar em maior proteção à pessoa humana ou ao grupo em situação de vulnerabilidade, diante da
incidência do princípio pro homine.
Os julgamentos proferidos pela Corte IDH nos casos que caracterizam controle de convencionali-
dade em seu sentido tradicional, as sentenças possuem eficácia erga omnes e efeitos retroativos tão
somente nos casos em que as disposições normativas locais impedem a investigação e responsabi-
lização de agentes que praticaram atos de grave violação aos Direitos Humanos (os exemplos mais
comuns dizem respeito às leis de anistia quanto aos crimes praticados durante os períodos ditatoriais).
Nessas situações, a própria Corte afirma expressamente que tais leis carecem de efeitos jurídicos.
No entanto, como se observa do caso Gomes Lund y Otros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, nem
sempre a existência de um julgamento no plano internacional mostra-se suficiente, ao menos em
período razoável, para fazer com que o Estado signatário venha a reconhecer essa “ausência de efeitos
jurídicos” fixada pela CorteIDH.80
Nos demais casos, em regra, as sentenças internacionais são vinculantes e operam efeitos retroativos
apenas para aqueles que foram parte no processo internacional, por força da coisa julgada. Cumpre ao
Estado que participou daquele feito promover, em prazo razoável, a alteração ou revogação da dispo-
sição normativa considerada inconvencional, mostrando-se possível afastar-se, desde logo, a aplicação
dos referidos dispositivos, a fim de evitar novas responsabilizações no plano internacional.


78
SAGÜÉS, Néstor Pedro. El Control de Convencionalidad en Argentina: ¿Ante las puertas de La “Constitución Convencionalizada?”. In:
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Controle de Convencionalidade. Brasília: CNJ, 2016. p. 107-121. Coordenação: Fabiane Pereira
de Oliveira Duarte, Fabrício Bittencourt da Cruz, Tarciso Dal Maso. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/
arquivo/2016/09/2ec6678e8e725f2509d87aa661bc6926.pdf. Acesso em: 21 set. 2022.
79
GOMES, Jesus Tupã Silveira. O Controle de Convencionalidade no Poder Judiciário: Da hierarquia normativa ao diálogo com a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Curitiba: Juruá, 2018
80
SCHÄFER, Gilberto; RIOS, Roger Raupp; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; GOMES, Jesus Tupã Silveira. Os controles de convencionalidade
tradicional e interamericano: institutos distintos ou duas faces da mesma moeda? Revista de Direito Internacional, v. 14, n.3, 2017, p.222.
Disponível em: https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/rdi/article/viewFile/4811/pdf. Acesso em: 16 out. 2022.

96
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REFLEXÕES PARA UMA PRÁXIS BRASILEIRA

Em relação aos outros Estados nacionais é preciso que se formule uma adequada teoria de efeitos
vinculantes, identificando a ratio decidendi de cada julgamento para que possam ser aplicados pelas
Cortes nacionais em verdadeiro diálogo. É preciso que as Corte nacionais ao realizarem a busca da
identidade dos julgamentos atribuam aos mesmos efeitos panprocessuais, de modo que seja alcançada
a maior proteção às supostas vítimas de violação aos direitos humanos.
Os juízes e operadores devem para esta tarefa conhecer a jurisprudência da Corte, seus estândares e
debates, o que exige o conhecimento dos comentários sobre os julgamentos e a soft law relacionada
com a referida matéria.
O Brasil tem uma enorme vantagem, pois a jurisdição constitucional brasileira permite que todo o
magistrado faça o controle de convencionalidade de forma incidental difusa, e o STF o faça de forma
direta, especialmente, no caso da CADH através da Arguição de Descumprimento Fundamental.

97
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

Alex Sandro da Silveira Filho

7. INTRODUÇÃO

No mundo globalizado, cresce a passos largos a figura e a influência econômica e política das empresas,
sobretudo as transnacionais1 que, geralmente sediadas em países desenvolvidos ou de grandes econo-
mias, desenvolvem suas atividades econômicas em países periféricos, especialmente na América do
Sul, África e Sudeste Asiático. Segundo estudo realizado pela ONG inglesa Global Justice Now, 2 das
100 maiores economias mundiais, 69 são de empresas transnacionais e apenas 31 são estados. O
estudo apontou, também, que as receitas combinadas das transnacionais Walmart, Shell e Apple são
superiores às receitas combinadas dos 180 países mais pobres do mundo. Por meio dessas empresas,
empregos são gerados e a economia dos países onde se instalam é movimentada.
Como decorrência desse vultoso poder econômico consolidado sobretudo após a II Guerra Mundial
e com os Acordos de Bretton Woods, cresceu também o poder político das ETNs. Cada vez mais inci-
dindo nos ordenamentos jurídicos dos países onde buscam instalar suas operações, acabam por ganhar
incentivos fiscais e flexibilizar a legislação trabalhista, sob pena de não levarem adiante os empreendi-
mentos. Os países periféricos, dada a sua vulnerabilidade político-econômica, acabam, muitas vezes,
cedendo à pressão das ETNs, considerando a movimentação econômica gerada pela presença destas
corporações em seus territórios. 3
Além disso, não são raras as sérias e recorrentes violações de direitos humanos e ambientais causadas
pelas ETNs ao redor do mundo. Relatórios e casos julgados vêm demonstrando a dificuldade das vítimas
em acionar as empresas e obter reparação pelos danos provocados pelas suas operações. Isso ocorre
especialmente quando a empresa comete abusos fora do país de sua sede (extraterritorialmente) e por
meio de suas subsidiárias, o que inviabiliza, em muitas situações, que o ordenamento jurídico interno


1
Neste capítulo, valer-se-á do conceito de “empresas transnacionais” apresentado pelo professor Juan Hernández Zubizarreta, como sen-
do “aquelas que estão constituídas por uma sociedade matriz criada de acordo com a legislação do país em que se encontra instalada, que
se implanta em outros países mediante intervenção estrangeira direta, sem criar empresas locais ou mediante filiais que se constituem
como sociedades locais, conforme a legislação do país destinatário da atividade”. ZUBIZARRETA, Juan Hernández. El tratado internacio-
nal de los pueblos para el control de las empresas transnacionales: una análisis desde la sociologia jurídica. Madrid: Paz con Dignidad
y OMAL, 2017. p. 15.
2
GLOBAL JUSTICE NOW. 10 biggest corporations make more money than most countries in the world combined. 2016. Disponível
em: http://www.globaljustice.org.uk/news/2016/sep/12/10-biggest-corporations-make-more-money-most-countries-world-combined.
Acesso em: 16 ago. 2021.
3
FUCHS, Doris. Theorizing the Power of Global Companies. In: MIKLER, John (org.) The Handbook of Global Companies. Chichester:
Wiley-Blackwell, 2013. p. 79.

98
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

do país (quando minimamente existente) onde se deram as violações tenha condições de promover a
responsabilização correspondente.4
O chamado véu corporativo ou a doutrina da separação da personalidade jurídica mostra-se como
uma das principais barreiras jurídicas para responsabilizar ETNs por violações de direitos humanos
cometidas por suas subsidiárias perante Tribunais nacionais. 5 De acordo com esta doutrina, a responsa-
bilidade de uma empresa em um grupo empresarial não é necessariamente transferida para terceiros
ou para a empresa-mãe simplesmente porque fazem parte do mesmo conglomerado corporativo.
Cada empresa é considerada, juridicamente, uma entidade própria.6 Embora as ETNs se organizem
de diferentes formas, a independência jurídica das subsidiárias locais e sua ligação administrativa com
um núcleo de gestão situado em território distinto constituem o núcleo do modelo operacional dessas
empresas. 7 Quando entram em jogo megaprojetos empresariais, o interesse de trazer investimentos
econômicos aos países hospedeiros facilita que essas empresas exerçam pressão política sobre as
instituições dos países subdesenvolvidos, inclusive judiciais, com o objetivo de criar obstáculos que
impeçam sanções jurídicas.8
A fragmentação das ETNs e o fato de, até o presente momento, estarem submetidas ao Direito Inter-
nacional apenas como sujeitos de direitos (pessoas jurídicas de Direito Internacional Privado), torna
muito difícil responsabilizá-las pelos danos que suas operações acarretam às pessoas e às comuni-
dades locais. O direito internacional privado é permissivo à impunidade das empresas-mãe mesmo que
tenham violado preceitos de direitos humanos “com pleno conhecimento, ou pelo menos sem ignorar
as condições em que são realizadas”.9
Nesse sentido, a Anistia Internacional10 lista as três barreiras críticas para a reparação dos danos
causados aos direitos humanos envolvendo corporações, sendo que as duas últimas podem ser lidas
como decorrência da primeira:
Quando se trata de ações judiciais relacionadas a graves violações de direitos humanos, as empresas-
-mãe ainda podem se esconder atrás do véu corporativo para desviar a sua responsabilidade.

4
Exemplo disso foi o chamado Caso Chevron, que teve repercussão em todo o mundo, considerando as tentativas dos atingidos de efetivar
a responsabilização da transnacional pelos crimes que cometeu. Após 30 anos de atividade da ETN norte-americana do setor petrolífero
no Equador, gerando consideráveis impactos socioambientais às comunidades próximas das áreas nas quais tais atividades eram desen-
volvidas, a empresa deixou de possuir pessoa jurídica naquele país. Por conta disso, ainda que a ETN tenha sido condenada a indenizar as
vítimas de suas violações, a execução da sentença nos países nos quais mantinha atividade se mostrou infrutífera, dentre outros motivos,
por não haver relação entre a filial daqueles países e a equatoriana. PIGRAU, Antoni. The Texaco-Chevron case in Ecuador: law in justice in
the age of globalization. Revista Catalana de Dret Ambiental, Tarragona, v. 5, n. 1, p. 1-43, 2014.
5
NEGRI, Sérgio Marcos Carvalho de Ávila. A ilusão do levantamento do véu societário e a responsabilidade das empresas por violações de
direitos humanos. Homa Publica: Revista Internacional de Direitos Humanos e Empresas, Juiz de Fora, vol. 2, n. 1, p. 185-204, 2018.
6
ANISTIA INTERNACIONAL. Creating a paradigm shift: Legal solutions to improve access to remedy for corporate human rights abuse.
2017. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/documents/pol30/7037/2017/en/. Acesso em: 12 set. 2021.


7
ZUBIZARRETA. Juan Hernández. Las empresas transnacionales frente a los derechos humanos: historia de uma asimetría normativa.
De la responsabilidade social corporativa a las redes contrahegemónicas transnacionales. Madrid: OMAL, 2009.
8
INTERNATIONAL FEDERATION FOR HUMAN RIGHTS. Corporate Accountability for Human Rights Abuses. A Guide for Victims and
NGOs on Recourse Mechanisms. 3ª edição, 2016. Disponível em: https://www.fidh.org/IMG/pdf/corporate_accountability_guide_version_
web.pdf. Acesso em: 12 set. 2021.
9
Ibid.
10
ANISTIA INTERNACIONAL. Injustice incorporated: Corporate abuses and the human right to remedy, 2014. Disponível em: https://www.
amnesty.org/en/documents/pol30/001/2014/en/. Acesso em: 12 set. 2021.

99
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A cláusula non conveniens ainda é comumente invocada e aplicada em jurisdições da common law,
como o Canadá e os Estados Unidos, prolongando ações judiciais e muitas vezes resultando em
sua improcedência.
Poucas empresas hoje divulgam informações significativas sobre seus riscos e impactos reais e poten-
ciais sobre direitos humanos.
A estruturação legal das ETNs permite que elas atuem nos países da América Latina, por exemplo,
fazendo o que não podem fazer em seus países de origem, com o intuito de maximizarem os seus
lucros e minimizarem as possibilidades de responsabilização.11
As ETNs, ainda, protegem seus interesses por meio de uma normatividade global chamada lex merca-
toria ou normas comerciais, valendo-se de acordos internacionais de investimento e estruturas de
arbitragem internacional para garantir sua aplicação.12 Segundo o jurista espanhol Juan Zubizarreta, a
relação político-econômica entre os países desenvolvidos e as ETNs, bem como a sua pressão sobre
as organizações financeiras e comerciais internacionais, permitem a estes conglomerados corpora-
tivos definir políticas e regulamentações favoráveis aos
​​ seus interesses.13 A combinação do poder das
corporações e dos países desenvolvidos, ademais, coloca a lex mercatoria em uma posição de supre-
macia jurídica sobre o DIDH e os interesses das pessoas afetadas pelas atividades das ETNs.14 No que
tange aos acordos internacionais de investimento, cabe salientar que eles “limitam a possibilidade de
recurso aos tribunais nacionais por comunidades e indivíduos afetados por um investimento e também
restringem severamente a capacidade dos Estados de aprovar legislações que podem ser usadas para
conter os excessos das corporações multinacionais.” Portanto, tais Acordos desenvolvem um sistema
assimétrico para proteger “o interesse dos investidores e se intrometer no espaço dos direitos humanos
e ambientais.”15
A aliança entre as ETNs e os países desenvolvidos acaba vitimizando indivíduos e grupos vulnerabili-
zados em países periféricos, como os povos indígenas e outras minorias, que geralmente servem de
base para as cadeias produtivas globais corporativas, fornecendo recursos naturais e mão de obra.16 As
políticas monetárias das instituições financeiras internacionais perpetuam a dependência financeira
em desfavor dos países periféricos, forçando-os a aplicar políticas de austeridade. Os países desenvol-
vidos e as instituições financeiras internacionais garantem que tais políticas reforcem a presença das
ETNs nos países periféricos, o que, em casos de abusos, compromete a qualidade de vida de parte da
população. Os agentes políticos dos países periféricos são frequentemente compelidos ou conven-
cidos a relaxar seus controles econômicos, privatizar os serviços públicos e abrir fronteiras comerciais
para atrair as corporações transnacionais.17 Tal busca incessante por investimento estrangeiro resulta na
dificuldade de prever e impor sanções jurídicas por violações de direitos humanos que as ETNs venham


11
INTERNATIONAL FEDERATION FOR HUMAN RIGHTS. Corporate Accountability for Human Rights Abuses. A Guide for Victims and
NGOs on Recourse Mechanisms. 3ª edição, 2016. Disponível em: https://www.fidh.org/IMG/pdf/corporate_accountability_guide_version_
web.pdf. Acesso em: 12 set. 2021.
12
ZUBIZARRETA. Juan Hernández. Las empresas transnacionales frente a los derechos humanos: historia de uma asimetría normativa.
De la responsabilidade social corporativa a las redes contrahegemónicas transnacionales. Madrid: OMAL, 2009.
13
Ibid.
14
Ibid.
15
ZUBIZARRETA, Juan Hernández. El tratado internacional de los pueblos para el control de las empresas transnacionales: una análisis
desde la sociologia jurídica. Madrid: Paz con Dignidad y OMAL, 2017.
16
ZUBIZARRETA. Juan Hernández. Las empresas transnacionales frente a los derechos humanos: historia de uma asimetría normativa.
De la responsabilidade social corporativa a las redes contrahegemónicas transnacionales. Madrid: OMAL, 2009.
17
Ibid.

100
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

a cometer.18 Segundo González e Ramiro, isso permite que estas corporações atuem livres de qualquer
controle do Estado ou da sociedade civil, considerando seu poder econômico e político, caráter trans-
nacional, versatilidade jurídica e as complexas estruturas que utilizam para contornar o direito interno
e internacional.19
A ausência de mecanismos nacionais e internacionais capazes de frear o poder e o avanço do direito
empresarial global, somada ao poder político das ETNs e dos órgãos financeiros supranacionais, gera o
que Zubizarreta20 define como arquitetura da impunidade. Uma pluralidade de regulamentos (acordos
de livre comércio, tratados de investimento, resoluções de instituições como a Organização Mundial
do Comércio e o Banco Mundial, bem como a existencia de mecanismos arbitrais de solução de
controvérsias entre empresas, etc.) confere considerável poder jurídico, político e econômico às ETNs. 21
Zubizarreta explica que a existência de agentes e organizações econômico-financeiras supra-estatais
(por exemplo, as ETNs, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e assim por diante) gera
uma rede institucional com normatividade própria que equivale a uma “hiperinflação normativa.” Essas
organizações usam categorias e princípios jurídicos estatais e internacionais, além de práticas privadas
para regular o comércio internacional de uma forma que os agentes do Estado não podem deter, em
função das suas limitações institucionais e territoriais. Essa hiperinflação normativa permite, assim, que
as instituições econômicas e financeiras controlem o comércio internacional e administrem o aparato
jurídico por meio de sistemas próprios de resolução de disputas, como, por exemplo, os tribunais arbi-
trais. Por mais que a legislação nacional de cada país possua autoridade legal exequível, esse poder
acaba cedendo ao controle econômico exercido pelas ETNs e às práticas dos grandes escritórios de
advocacia que as representam. Os países considerados periféricos acabam por conformar seus ordena-
mentos jurídicos nacionais ao Direito Societário Global. 22
Diante deste quadro de impunidade e de dificuldades incontornáveis por parte dos sistemas de justiça
domésticos, o DIDH, sobretudo nos últimos cinquenta anos, tem sido cada vez mais provocado a
desenvolver mecanismos vinculantes para a responsabilização das ETNs pelas violações por elas
cometidas. Neste capítulo, serão apresentados os principais meios que o Sistema Global e o SIDH têm
desenvolvido a fim de responder às demandas das vítimas e da sociedade civil organizada no que toca
à responsabilização de ETNs por violações de direitos humanos.

18
INTERNATIONAL FEDERATION FOR HUMAN RIGHTS. Corporate Accountability for Human Rights Abuses. A Guide for Victims and
NGOs on Recourse Mechanisms. 3ª edição, 2016. Disponível em: https://www.fidh.org/IMG/pdf/corporate_accountability_guide_version_
web.pdf. Acesso em: 12 set. 2021.
19
GONZÁLEZ, Erika; RAMIRO, Pedro. Las empresas transnacionales en la arquitectura de la impunidad: poder, corrupción y derechos hu-
manos. Papeles: Revista de Relaciones Ecosociales y Cambio Global, Madri, n. 135, p. 43, 2016. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/
servlet/articulo?codigo=5874156. Acesso em: 12 set. 2021.
20
ZUBIZARRETA, Juan Hernández. El tratado internacional de los pueblos para el control de las empresas transnacionales: una análisis
desde la sociologia jurídica. Madrid: Paz con Dignidad y OMAL, 2017.


21
STOP CORPORATE IMPUNITY. Ideas y propuestas para avanzar hasta un Tratado Internacional de los Pueblos para el Control de
las Empresas Transnacionales. 2014. Disponível em: https://www.stopcorporateimpunity.org/wp-content/uploads/2016/11/PeoplesTrea-
ty-ES-dec2014.pdf. Acesso em: 12 set. 2021.
22
ZUBIZARRETA, Juan Hernández. El tratado internacional de los pueblos para el control de las empresas transnacionales: una análisis
desde la sociologia jurídica. Madrid: Paz con Dignidad y OMAL, 2017.

101
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

8. PREVISÃO NORMATIVA23

2.1 Princípios orientadores sobre empresas e Direitos Humanos da


Organização das Nações Unidas24

PRINCÍPIOS GERAIS

Estes Princípios Orientadores são fundamentados no reconhecimento de:


a) Obrigações assumidas pelos Estados de respeitar, proteger e implementar os direitos humanos e
as liberdades fundamentais;
b) O papel das empresas como órgãos especializados da sociedade que desempenham funções espe-
cializadas e que devem cumprir todas as leis aplicáveis e respeitar os direitos humanos;
c) A necessidade de que os direitos e obrigações sejam providos de recursos adequados e eficazes,
em caso de descumprimento.
Estes Princípios Orientadores aplicam-se a todos os Estados e a todas as empresas, transnacionais e
outras, independentemente de seu porte, setor, localização, proprietários e estrutura.
Estes Princípios Orientadores devem ser entendidos como um todo coerente e devem ser interpre-
tados, individual e conjuntamente, em termos de seu objetivo de aprimorar normas e práticas no que
diz respeito a empresas e aos direitos humanos de forma a atingir resultados tangíveis para indivíduos e
comunidades impactadas e, contribuindo, assim, para uma globalização socialmente sustentável.
Nenhuma disposição nestes Princípios Orientadores deve ser interpretada de forma a criar novas obri-
gações de direito internacional, nem de modo a limitar ou reduzir quaisquer obrigações legais que um
Estado possa ter assumido ou às quais esteja sujeito nos termos do direito internacional em matéria de
direitos humanos.
Estes Princípios Orientadores devem ser implementados de forma não discriminatória, com atenção
especial aos direitos e às necessidades, bem como aos desafios encontrados, de indivíduos perten-
centes a grupos ou populações que possam estar em maior risco de vulnerabilidade e marginalidade,
com a devida atenção aos diferentes riscos enfrentados por mulheres e homens.

23
O Direito interno brasileiro possui apenas uma normativa relacionada ao tema deste capítulo, que é o Decreto 9.571/2018, que estabelece
as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. Contudo, por se tratar de mecanismo inspirado, não apenas em seu texto,
mas também na natureza voluntarista que o constitui, nos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos das Nações
Unidas, serão apresentados apenas estes últimos, a fim de evitar tautologia.


24
MINISTÉRIO DA MULHER, FAMÍLIA E DIREITOS HUMANOS. Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos: imple-
mentando os parâmetros “Proteger, Respeitar e Reparar” das Nações Unidas. Brasília, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/
assuntos/noticias/2019/outubro/Cartilha_versoimpresso.pdf. Acesso em: 21 ago. 2021.

102
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

I. O DEVER DO ESTADO DE PROTEGER OS DIREITOS HUMANOS

A. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

1. Os Estados devem proteger contra violações a direitos humanos cometidas em seu território e/ou
jurisdição por terceiros, incluindo empresas. Para tanto, devem adotar as medidas adequadas para
prevenir, investigar, punir e reparar essas violações por meio de políticas públicas adequadas, normas,
regulamentação e apreciação judicial.
2. Os Estados devem estabelecer claramente a expectativa de que todas as empresas domiciliadas em
seu território e/ou jurisdição respeitem os direitos humanos em todas as suas atividades e operações.

B. PRINCÍPIOS OPERACIONAIS

FUNÇÕES NORMATIVAS E POLÍTICAS DE CARÁTER GERAL DOS ESTADOS

3. Em cumprimento do seu dever de proteger, os Estados devem:


(a) Fazer cumprir as leis que tenham por objeto ou por efeito fazer as empresas respeitarem os direitos
humanos e, periodicamente, avaliar a adequação dessas leis e suprir eventuais lacunas;
(b) Assegurar que outras leis e políticas que regem a criação e a atividade empresarial, como o direito
empresarial, não restrinjam, ao contrário, viabilizem que as empresas respeitem os direitos humanos;
(c) Fornecer orientação efetiva às empresas sobre como respeitar os direitos humanos em todas as suas
atividades e operações;
(d) Incentivar e, quando necessário, exigir que as empresas informem como lidam com seus os impactos
nos direitos humanos.

A RELAÇÃO ENTRE O ESTADO E AS EMPRESAS

4. Os Estados devem adotar medidas adicionais de proteção contra as violações a direitos humanos
cometidas por empresas de sua propriedade, sob seu controle e, ou que recebam significativo apoio e
serviços dos órgãos estatais, tais como órgãos oficiais de crédito à exportação e órgãos oficiais de seguro
ou de garantia de investimentos, exigindo, quando adequado, a devida diligência em direitos humanos.
5. Para cumprir as suas obrigações internacionais de direitos humanos, os Estados devem exercer
um monitoramento adequado quando contratam empresas ou promulgam leis para a prestação de
serviços que podem impactar o gozo e usufruto dos direitos humanos.
6. Os Estados devem promover o respeito aos direitos humanos por parte das empresas com as quais
realizam transações comerciais.

FOMENTAR O RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS PELAS EMPRESAS EM ZONAS


AFETADAS POR CONFLITO

7. Considerando que o risco de graves violações a direitos humanos é maior em zonas afetadas por
conflitos, os Estados devem assegurar que as empresas que operam nesses contextos não estejam
envolvidas em abusos dessa natureza, adotando, dentre outras, as seguintes medidas:

103
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

(a) Colaborar o quanto antes com as empresas para ajudá-las a identificar, prevenir e mitigar os riscos
de suas atividades e relações comerciais aos direitos humanos;
(b) Prestar assistência adequada para as empresas a fim de avaliar e tratar os principais riscos de viola-
ções, com atenção especial à violência de gênero e à violência sexual;
(c) Negar acesso a serviços e recursos públicos a qualquer empresa envolvida em graves violações a
direitos humanos e que se recuse a cooperar para resolver a situação;
(d) Assegurar que suas políticas, leis, regulamentos e medidas coercitivas vigentes sejam eficazes para
diminuir o risco de envolvimento das empresas em graves violações a direitos humanos.

GARANTIR A COERÊNCIA POLÍTICA

8. Os Estados devem assegurar que os departamentos, órgãos governamentais, e outras instituições


estatais que orientam as práticas empresariais sejam conscientes das obrigações de direitos humanos
do Estado e as respeitem no exercício de seus respectivos mandatos, especialmente oferecendo-lhes
informação, treinamento e suporte adequados.
9. Os Estados devem manter um marco normativo nacional adequado a fim de assegurar o cumprimento
de suas obrigações de direitos humanos ao firmar acordos políticos sobre atividades empresariais com
outros Estados ou empresas, por exemplo, por meio de tratados ou contratos de investimento.
10. Os Estados, quando atuarem como membros de instituições multilaterais que tratam de questões
relacionadas às empresas, devem:
(a) Buscar assegurar que essas instituições não limitem a capacidade dos seus Estados membros de
cumprir seu dever de proteger nem impeçam as empresas de respeitar os direitos humanos;
(b) Incentivar essas instituições, no âmbito de seus respectivos mandatos e capacidades, a promover
o respeito aos direitos humanos pelas empresas e, quando demandado, apoiar os Estados no cumpri-
mento de seu dever de proteção contra violações a direitos humanos por empresas, incluindo por meio
de assistência técnica, atividades de capacitação e sensibilização;
(c) Inspirar-se nestes Princípios Orientadores para promover o entendimento mútuo e avançar na
cooperação internacional no gerenciamento dos desafios relacionados às empresas e direitos humanos.

II. A RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS DE RESPEITAR OS DIREITOS HUMANOS

A. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

11. As empresas devem respeitar os direitos humanos. Isso significa que elas devem se abster de violar os
direitos humanos e devem enfrentar os impactos adversos nos direitos humanos com os quais tenham
algum envolvimento.
12. A responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos refere-se aos direitos humanos
internacionalmente reconhecidos – entendidos, no mínimo, como aqueles expressos na Declaração
Universal dos Direitos Humanos e os princípios fundamentais estabelecidos na Declaração da Organi-
zação Internacional do Trabalho sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho.
13. A responsabilidade de respeitar os direitos humanos exige que as empresas:
a) Evitem causar ou contribuir para impactos adversos nos direitos humanos por meio de suas próprias
atividades e enfrentem esses impactos quando eles vierem a ocorrer;

104
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

b) Busquem prevenir ou mitigar impactos adversos nos direitos humanos que estejam diretamente
relacionados às suas atividades e operações, produtos ou serviços prestados em suas relações
comerciais, mesmo se elas não tiverem contribuído para esses impactos.
14. A responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos aplica-se a todas as empresas,
independentemente de seu tamanho, setor, contexto operacional, proprietário e estrutura. Contudo,
a magnitude e a complexidade dos meios pelos quais as empresas cumprem com essa responsabili-
dade pode variar em função desses fatores e da gravidade dos impactos adversos das empresas nos
direitos humanos.
15. Para cumprir com sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos, as empresas devem ter
políticas e processos adequados em função do seu tamanho e circunstâncias, incluindo:
a) Um compromisso político de observar sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos;
b) Um processo de devida diligência em direitos humanos para identificar, prevenir, mitigar e prestar
contas de como elas abordam seus impactos nos direitos humanos;
c) Processos que possibilitem reparar quaisquer impactos adversos nos direitos humanos causados
por elas ou para os quais tenham contribuído.

B. PRINCÍPIOS OPERACIONAIS

COMPROMISSO POLÍTICO

16. Para cumprir com a sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos, as empresas devem
expressar seu compromisso com essa responsabilidade por meio de declaração política que:
a) Seja aprovada no mais alto nível de direção da empresa;
b) Baseie-se em assessoria especializada interna e/ou externa;
c) Estabeleça as expectativas de direitos humanos da empresa com relação ao seu pessoal,
parceiros comerciais e outras partes diretamente relacionadas às suas atividades, operações,
produtos ou serviços;
d) Esteja publicamente disponível e seja disseminada interna e externamente a todo o pessoal,
parceiros comerciais e outras partes interessadas;
e) Seja refletida em diretrizes políticas e processos operacionais necessários para incorporá-la no
âmbito de toda a empresa.

DEVIDA DILIGÊNCIA EM DIREITOS HUMANOS

17. Para identificar, prevenir, mitigar e responder aos impactos adversos nos direitos humanos, as
empresas devem realizar um processo de devida diligência em direitos humanos. O processo deve
incluir a avaliação dos impactos reais e potenciais de suas atividades e operações nos direitos humanos;
a consideração desses impactos nas suas políticas, em seus programas, na sua gestão; a adoção de
medidas de prevenção e mitigação; o monitoramento das ações adotadas; e a comunicação sobre
como esses impactos são enfrentados. A devida diligência em direitos humanos:
a) Deve abranger os impactos adversos nos direitos humanos que a empresa pode causar ou para os
quais possa contribuir, por meio de suas próprias atividades, ou que estejam diretamente relacio-
nados às suas atividades e operações, produtos ou serviços por meio de suas relações comerciais;

105
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

b) Variará em complexidade de acordo com o tamanho da empresa, o risco de impactos severos anos
direitos humanos e a natureza e o contexto de suas atividades e operações;
c) Deve ser contínua, reconhecendo que os riscos nos direitos humanos podem mudar com o passar
do tempo, conforme evoluem suas atividades e operações e o contexto operacional da empresa.
18. Para aferir os riscos para os direitos humanos, as empresas devem identificar e avaliar quaisquer
impactos adversos nos direitos humanos, reais ou potenciais, com os quais elas possam estar envolvidas
por meio suas próprias atividades ou como resultado de suas operações comerciais. Esse processo deve:
a) Basear-se no conhecimento especializado em direitos humanos de especialistas internos ou
externos e independentes;
b) Incluir consultas significativas com indivíduos e grupos potencialmente impactados e outros
atores relevantes, em função do tamanho da empresa, da sua natureza e seu contexto de ativi-
dade ou operação.
19. Para prevenir e mitigar os impactos adversos nos direitos humanos, as empresas devem integrar os
resultados das suas avaliações de impacto em todas as funções e processos internos relevantes e adotar
medidas apropriadas.
a) Para que a integração seja eficaz é preciso que:
i) A responsabilidade pela prevenção e mitigação desses impactos seja atribuída ao nível e à função
adequada na empresa;
ii) A tomada de decisões internas, as alocações orçamentárias e os processos de monitoramento
possibilitem respostas efetivas a esses impactos.
b) As medidas a serem adotadas irão variar conforme:
i) A empresa cause ou contribua para causar um impacto adverso, ou esteja envolvida em razão de o
impacto estar diretamente relacionado à suas atividades e operações, produtos ou serviços pres-
tados em uma relação comercial;
ii) A capacidade de influência para prevenir os impactos adversos.
20. Para verificar se os impactos adversos nos direitos humanos estão sendo endereçados, as empresas
devem monitorar a eficácia de sua resposta. O monitoramento deve:
a) Ter como base indicadores qualitativos e quantitativos adequados;
b) Fundamentar-se nas informações de fontes internas e externas, incluindo indivíduos e
grupos impactados.
21. Para explicar as medidas adotadas para enfrentar os seus impactos nos direitos humanos, as empresas
devem estar preparadas para comunicar isso externamente, sobretudo quando preocupações sejam
levantadas por ou em nome de indivíduos ou grupos impactados. As empresas cujas atividades, opera-
ções ou contextos operacionais geram riscos de severos impactos nos direitos humanos devem divulgar
oficialmente as medidas que tomam a esse respeito. Em todos os casos, as comunicações devem:
a) Possuir uma forma e frequência que reflita os impactos nos direitos humanos e serem acessíveis ao
público pretendido;
b) Fornecer informações sufi cientes para avaliar a adequação concreta da resposta de uma empresa
aos seus impactos nos direitos humanos;

106
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

c) Não colocar em risco os atores impactados, funcionários ou violar requisitos legítimos de confiden-
cialidade comercial.

REPARAÇÃO

22. Quando as empresas constatarem que causaram ou contribuíram para causar impactos adversos nos
direitos humanos, elas devem reparar ou contribuir para sua reparação por meio de processos legítimos.

QUESTÕES DE CONTEXTO

23. Em todos os contextos, as empresas devem:


a) Cumprir todas as leis aplicáveis e respeitar os direitos humanos internacionalmente reconhecidos,
onde quer que operem;
b) Buscar formas que lhes permitam respeitar os princípios de direitos humanos internacionalmente
reconhecidos quando confrontados com necessidades conflitantes;
c) Considerar o risco de causar ou contribuir para graves violações de direitos humanos como uma
questão de cumprimento da lei onde quer que operem;
24. Quando for necessário priorizar medidas para fazer frente aos impactos adversos, reais e potenciais,
nos direitos humanos, as empresas devem primeiramente buscar prevenir e mitigar as consequências
mais graves ou que possam se tornar irreversíveis caso não recebam uma resposta imediata.

III. ACESSO A MECANISMOS DE REPARAÇÃO

A. PRINCÍPIO FUNDAMENTAL

25. Como parte de seu dever de proteção contra violações a direitos humanos relacionadas com ativi-
dades empresariais, os Estados devem tomar medidas adequadas para garantir, por meios judiciais,
administrativos, legislativos ou outros meios apropriados que, quando essas violações ocorram em
seu território e/ou jurisdição, os indivíduos ou grupos impactados tenham acesso a mecanismos de
reparação eficazes.

B. PRINCÍPIOS OPERACIONAIS

MECANISMOS ESTATAIS JUDICIAIS

26. Os Estados devem adotar as medidas apropriadas para assegurar a eficácia dos mecanismos judi-
ciais nacionais ao tratarem de violações a direitos humanos relacionadas às atividades empresariais,
especialmente considerando formas de reduzir os obstáculos jurídicos, práticos e de outras naturezas
que possam levar a uma negação do acesso aos mecanismos de reparação.

MECANISMOS ESTATAIS EXTRAJUDICIAIS DE DENÚNCIA

27. Os Estados devem fornecer mecanismos de denúncia extrajudiciais eficazes e apropriados, paralela-
mente aos mecanismos judiciais, como parte de um sistema estatal integral de reparação de violações
a direitos humanos relacionadas às atividades empresariais.

107
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

MECANISMOS NÃO-ESTATAIS DE DENÚNCIA

28. Os Estados devem disponibilizar formas de facilitar o acesso a mecanismos não-estatais de denúncia
efetivos que tratem de violações a direitos humanos relacionadas às atividades empresariais.
29. Para que seja possível atender rapidamente e reparar diretamente os danos causados, as empresas
devem estabelecer ou participar de mecanismos de denúncia de nível operacional eficazes, que estejam
à disposição de indivíduos e grupos que possam sofrer os impactos adversos.
30. As corporações industriais, as coletividades formadas por múltiplas partes interessadas e outras
iniciativas colaborativas baseadas no respeito às normas de direitos humanos devem garantir que
mecanismos de denúncia efetivos estejam disponíveis.

CRITÉRIOS DE EFICÁCIA DOS MECANISMOS EXTRAJUDICIAIS DE DENÚNCIA

31. Para garantir sua eficácia, os mecanismos extrajudiciais de denúncia, estatais e não-esta-
tais, devem ser:
a) Legítimos: suscitar a confiança dos indivíduos e grupos interessados aos quais estão destinados, e
responder pelo correto desempenho dos processos de denúncia;
b) Acessíveis: ser conhecidos por todos os indivíduos e grupos interessados aos quais estão desti-
nados, e prestar a devida assistência aos que possam ter dificuldades para acessá-los;
c) Previsíveis: dispor de um procedimento definido e conhecido, com prazo indicativo de cada etapa,
e esclarecimento sobre os processos e resultados possíveis, assim como os meios para monitorar a
sua implementação;
d) Equitativos: assegurar que as vítimas tenham acesso a fontes de informação, assessoramento e
conhecimentos especializados necessários para iniciar um processo de denúncia em condições de
igualdade, com plena informação e respeito;
e) Transparentes: manter as partes em um processo de denúncia informadas sobre sua evolução e
fornecer informação suficiente sobre o desempenho do mecanismo, visando fomentar a confiança
em sua eficácia e salvaguardar o interesse público que esteja em jogo;
f) Compatíveis com os direitos: assegurar que os resultados e as reparações estejam em conformi-
dade com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos;
g) Uma fonte de aprendizagem contínua: identificar experiências relevantes a fim de melhorar o
mecanismo e prevenir novas denúncias e violações no futuro;
Os mecanismos de nível operacional também devem:
h) Basear-se na participação e no diálogo: consultar indivíduos e grupos interessados, para os quais
esses mecanismos são destinados, sobre sua concepção e desempenho, com especial atenção ao
diálogo como meio para tratar as denúncias e resolvê-las.

9. DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS À LUZ DO SIDH

A temática envolvendo violações de direitos humanos cometidas por empresas ganha efetivo espaço
no SIDH com a Resolução 2887/2016 da Assembleia Geral da OEA, que determinou, dentre outras

108
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

questões, que a CIDH elaborasse uma espécie de documento de orientação (tendo como norte os Prin-
cípios Orientadores das Nações Unidas) aos Estados na elaboração de políticas relacionadas ao tema. 25
Como resultado, a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (REDESCA) da
CIDH apresentou, em novembro de 2019, o relatório “Empresas e Direitos Humanos: Estândares Inte-
ramericanos”, 26 publicado em janeiro de 2020, que é, atualmente, o documento mais importante sobre
o tema existente no âmbito do SIDH.
Tal relatório foi elaborado pela CIDH com o intuito de esclarecer à comunidade jurídica internacional
as obrigações que os Estados possuem em relação às violações de direitos humanos cometidas por
empresas, à luz dos mecanismos existentes no âmbito do SIDH. 27 Dentre os temas tratados no relatório,
verificam-se a centralidade da pessoa e dignidade humana, igualdade e não-discriminação, direito ao
desenvolvimento, devida diligência em direitos humanos, extraterritorialidade, captura corporativa,
entre outros, mantendo o foco nas ações que o Estado pode (e deve) mobilizar, de forma vinculante ou
não, de modo a fiscalizar as atividades empresariais em seus territórios. 28
O relatório parte de pontos de análise centrais para a compreensão da temática de Direitos Humanos
e Empresas no SIDH para, em seguida, apresentar: a) quais são as obrigações que os Estados possuem
em relação às atividades empresariais em seus territórios; b) quais são os contextos, na conjuntura do
SIDH, que demandam especial atenção no que diz respeito às atividades corporativas; c) a necessidade
de desenvolver políticas especiais de defesa a grupos especialmente vulneráveis às ações empresa-
riais, como povos indígenas e defensores de direitos humanos; d) quais iniciativas levadas a cabo por
Estados ou outros atores devem servir de exemplo para assegurar o respeito, por parte das empresas,
aos direitos humanos. 29 Assim, o relatório busca contribuir:
i) para o empoderamento de pessoas, comunidades e sindicatos para o uso dos instrumentos jurí-
dicos e estândares neste âmbito; ii) para o fortalecimento das ações de prevenção e devida diligência
nessas situações [de violações de direitos humanos cometidas por empresas]; iii) para uma maior e
mais efetiva prestação de contas [pelas empresas] em face de violações e abusos de direitos humanos
nestes contextos; iv) para melhorar o acesso a reparações oportunas e adequadas às vítimas deste tipo
de violações de direitos humanos. 30
Todavia, questões envolvendo violações de direitos humanos cometidas por empresas não são novas
no SIDH. A seguir, serão apresentados alguns entendimentos sobre o tema que foram firmados tanto
em opiniões consultivas, quanto em casos julgados no âmbito do Sistema.

3.1 Opiniões consultivas

A primeira menção sobre violações a direitos humanos cometidas por empresas em opiniões consul-
tivas emitidas pelo SIDH foi verificada na Opinião Consultiva OC-18/03, de 17 de setembro de 2003,

25
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução AG 2.887/2016. Disponível em: https://www.oas.org/es/sedi/ddse/paginas/
documentos/discapacidad/RESOLUCIONES-AG/Portuguese/AG_2887_POR.doc. Acesso em: 22 ago. 2021.
26
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Empresas y derechos humanos: estândares interamericanos. Washington,
2019. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/EmpresasDDHH.pdf. Acesso em: 22 ago. 2021.

Ibid.
27

28
Ibid.
29
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Empresas y derechos humanos: estândares interamericanos. Washington,
2019. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/EmpresasDDHH.pdf. Acesso em: 22 ago. 2021.
30
Ibid.

109
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

sobre o tema da condição jurídica e direitos dos migrantes sem documentação31. Na ocasião, a Corte
IDH emitiu parecer no sentido que a observação de respeito e garantia aos direitos humanos também
deve se estender a entidades privadas, conforme verifica-se a seguir:
a obrigação de respeito e garantia dos direitos humanos, que normalmente tem seus efeitos nas rela-
ções entre os Estados e os indivíduos submetidos à sua jurisdição, também projeta seus efeitos nas
relações interindividuais. No que se refere ao presente Parecer Consultivo, estes efeitos da obrigação
de respeito dos direitos humanos nas relações entre particulares se especificam no marco da relação
trabalhista privada, na qual o empregador deve respeitar os direitos humanos de seus trabalhadores. 32
Ademais, tal Opinião Consultiva também sustenta que o Estado não poderá permitir “que os empre-
gadores privados violem os direitos dos trabalhadores, nem que a relação contratual viole os padrões
mínimos internacionais,”33 indicando inequívoca necessidade de vigilância estatal ao cumprimento das
normas trabalhistas por parte das empresas.
Nesse mesmo sentido, por meio da Opinião Consultiva OC 22-16, 34 oriunda de solicitação do Panamá,
que tratou do tema da titularidade de direitos das pessoas jurídicas no SIDH, a Corte IDH entendeu, em
26 de fevereiro de 2016, que os entes privados possuem a obrigação de respeitar os direitos humanos
conforme as legislações internas dos seus países, sob pena de responsabilização, devendo o Estado
garantir recurso efetivo aos cidadãos que sofrerem tais violações.
Por fim, no que diz respeito às opiniões consultivas apresentadas no âmbito do SIDH, vale mencionar a
OC-23/17, 35 oriunda de consulta realizada pela Colômbia, de 15 de novembro de 2017, tratando das obri-
gações do Estado em relação com o meio ambiente no marco de proteção e garantia dos direitos à vida
e à liberdade pessoal. Nesta ocasião, a Corte IDH entendeu que é dever do Estado garantir que entes
privados (como as empresas) não cometam violações do direito ao meio ambiente saudável, desenvol-
vendo, em seus ordenamentos jurídicos, meios adequados para prevenir e, se for o caso, responsabilizar
as pessoas jurídicas por tais violações.

3.2 Casos Contenciosos

No que diz respeito aos casos da Corte IDH que se relacionam com a temática de Direitos Humanos
e Empresas, um dos mais relevantes é o caso dos povos Kaliña e Lokono v. Suriname, 36 julgado em 25
de novembro de 2015. A Corte reconheceu a propriedade coletiva (e consequente direito à demar-
cação) das terras onde viviam os povos Kaliña e Lokono, localidade que era alvo de exploração mineral


31
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Parecer Consultivo OC-18/03 – A Condição Jurídica e os Direitos dos Mi-
grantes Indocumentados. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/04/58a49408579728bd7f7a6bf3f1f80051.pdf.
Acesso em: 22 ago. 2021.
32
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Parecer Consultivo OC-18/03 – A Condição Jurídica e os Direitos dos Mi-
grantes Indocumentados. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/04/58a49408579728bd7f7a6bf3f1f80051.pdf.
Acesso em: 22 ago. 2021. Par. 146.
33
Ibid., Par. 148.
34
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión Consultiva OC-22/16 – Titularidad de Derechos de las Personas Juri-
dicas en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_22_esp.pdf.
Acesso em: 22 ago. 2021.
35
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión Consultiva OC-23/17 – Obligaciones Estatales en Relación con el
Medio Ambiente en el Marco de la Protección y Garantía de los Derechos a la Vida y a la Integridad Personal. Disponível em: https://www.
corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. Acesso em: 22 ago. 2021.
36
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Pueblos Kaliña y Lokono v. Surinam. Disponível em: https://www.cortei-
dh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_309_esp.pdf. Acesso em: 22 ago. 2021.

110
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

de bauxita por transnacionais do setor, como a BHP-Billiton, o que colocava em risco a sobrevivência
destas comunidades e de seu modo de vida, haja vista o considerável dano ambiental causado pela
atividade em questão.
A Corte IDH sustentou que qualquer procedimento que impactasse a vida dos povos Kaliña e Lokono
deveria contar com a anuência prévia destas comunidades (respeitando os seus costumes e tradições),
a ser providenciada pelo Estado do Suriname, que, em caso de aceitação, deveria garantir compen-
sação àqueles povos. A Corte entendeu, também, que a incumbência de avaliar o impacto ambiental e
social da atividade em questão era obrigação do Estado, e não das empresas mineradoras. Diante disso,
a Corte IDH sustentou que
os Estados têm a responsabilidade de proteger os direitos humanos das pessoas contra as violações
cometidas em seu território e/ou jurisdição por terceiros, incluindo as empresas. Para tanto, os Estados
devem adotar as medidas apropriadas para prevenir, investigar, punir e reparar, mediante políticas
adequadas, os abusos que as empresas possam cometer, valendo-se de mecanismos regulatórios e
levando os casos à Justiça. 37
O caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus v. Brasil, 38 decidido pela Corte
IDH em 15 de julho de 2020, diz respeito a uma explosão ocorrida em uma fábrica de fogos de arti-
fício situada na localidade de Santo Antônio de Jesus, no estado da Bahia, em 11 de dezembro de 1998,
vitimando 64 trabalhadores, majoritariamente, crianças de 11 a 17 anos, e deixando 06 feridos. A Corte
IDH entendeu que o Estado brasileiro falhou ao não tomar as devidas medidas no sentido de observar
a adequabilidade e a segurança das instalações para os trabalhadores, considerando a periculosidade
do objeto com o qual trabalhavam. Contudo, tal obrigação deve ser considerada em conjunto com as
empresas responsáveis pela atividade, que também possuem a obrigação de respeitar e garantir os
direitos humanos de seus trabalhadores, devendo ser sujeitas a todas as sanções cabíveis, nas hipóteses
de inobservância a tal obrigação.
Outro importante entendimento da Corte IDH acerca da relação entre Direitos Humanos e Empresas
expressa-se no julgamento do caso Muelle Flores v. Peru, de 06 de março de 2019, 39 que trata das viola-
ções de direitos decorrentes do descumprimento de uma sentença judicial que determinava a inclusão
do Sr. Muelle Flores em um regime previdenciário daquele país. A Corte IDH sustentou que o Estado
criou obstáculos para o cumprimento da sentença na medida em que não especificou quem seria o
ente responsável pelo pagamento das pensões, o que decorreu, necessariamente, de privatizações
realizadas pelo Peru em seu sistema previdenciário. Com isso, a Corte IDH firmou entendimento no
sentido de que os Estados devem, necessariamente, mitigar os efeitos de privatizações ocorridas em
setores envolvidos com a garantia de direitos de natureza prestacional (os chamados DESCA).
No caso Escaleras Mejía e outros v. Honduras, 40 julgado pela Corte em 26 de setembro de 2018, um
defensor de direitos humanos, Sr. Carlos Escaleras Mejía, foi assassinado, em função de sua militância
contra a instalação de uma fábrica de azeite, que geraria considerável impacto ambiental na região. A
Corte IDH entendeu que o Estado hondurenho possuía o dever de proteger os defensores e defensoras
de direitos humanos (embora não haja previsão expressa na CADH sobre o assunto), sobretudo em
vista das ameaças que podem sofrer de setores que detêm poder econômico, como, por exemplo, as


37
Ibid., Par. 224.
38
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus v. Brasil.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_por.pdf. Acesso em: 22 ago. 2021.
39
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Muelle Flores v. Peru. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_375_esp.pdf. Acesso em: 08 jun. 2022.
40
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Escaleras Mejía e otros v. Honduras. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_361_esp.pdf. Acesso em: 22 ago. 2021.

111
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

empresas. Diante disso, cabe ao Estado criar mecanismos (administrativos e judiciais) que protejam
quem atua na defesa de direitos humanos destas ameaças, bem como promover a adequada perse-
cução penal nos casos que envolvam perseguições e mortes destes militantes.
Por fim, o caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honnat (Nuestra Tierra) v.
Argentina, julgado pela Corte IDH em 06 de fevereiro de 2020, 41 trata da violação, pelo Estado argentino,
do direito à propriedade de 132 comunidades indígenas integrantes da Associação Lhaka Honnat, em
relação à área de 643.000 hectares localizada na província de Salta, naquele país. A Corte IDH entendeu
que o Estado argentino violou o direito à propriedade comunal das comunidades da Associação Lhaka
Honnat, por não ter tomado as medidas legislativas para assegurar o registro da propriedade solicitado
pelos peticionantes no ano de 1991, bem como por não tê-los consultado previamente à outorga da
área para empresa transnacionais, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT, internalizada naquele
país desde 1992.42 Nesse sentido, a Corte IDH entendeu que, por força da intervenção, seja do Estado
argentino, seja de entes privados, nas áreas cuja propriedade foi reivindicada pelas comunidades, foi
violado o direito à identidade cultural, ao meio ambiente, ao acesso à água potável e à alimentação dos
peticionantes.43
O SIDH, embora mantenha a centralização da responsabilidade por violações de direitos humanos
cometidas por empresas na figura do Estado, apresenta, com sua jurisprudência, uma série de enten-
dimentos que podem ser úteis na efetivação de uma Agenda Interamericana de Direitos Humanos e
Empresas, a fim de desenvolver não somente orientações, mas também mecanismos jurídicos capazes
de promover, senão a responsabilidade das empresas, a responsabilização dos Estados por permitir que
empresas violem direitos humanos em seus territórios.

10. DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS NO ÂMBITO


DAS NAÇÕES UNIDAS

Diferentemente do SIDH, onde se destaca a atuação contenciosa e consultiva dos órgãos do sistema,
no âmbito do Sistema Universal da ONU, destaca-se a longa trajetória de construção de uma Agenda
Internacional de Direitos Humanos e Empresas, considerando que tal Organização foi a que mais
avançou nos debates e na apresentação de mecanismos sobre o tema, como é o caso dos Princípios
Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos já apresentados neste capítulo.

4.1 Primeira Fase da Agenda Internacional de Direitos Humanos e


Empresas da ONU (1972-1990)

A primeira fase de debates para fins de desenvolvimento de instrumentos normativos na área de


Direitos Humanos e Empresas no âmbito da ONU tem início nos anos 1970, a partir da influência que
as empresas exerciam em regiões periféricas, tanto no âmbito econômico, exercendo uma espécie de
continuidade da exploração colonial na África, quanto no âmbito político, intervindo nos países onde


41
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honnat (Nuestra
Tierra) v. Argentina. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_400_esp.pdf. Acesso em: 11 jun. 2022.
42
Ibid., Par. 319.
43
Ibid., Par. 289.

112
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

exercia atividades, como no caso da ITT Corporation no Chile, que colaborou para o golpe de estado
que culminou na morte do presidente Salvador Allende, em 1973.44
Diante disso, o primeiro mecanismo desenvolvido dentro da ONU para responsabilizar as empresas por
violações de direitos humanos foi a Resolução n° 1721, em 1972, “por meio da qual requisitava ao Secre-
tário Geral a constituição de um grupo de especialistas para estudar os efeitos das ETNs nas relações
internacionais.”45 Em 1974, o relatório final elaborado por tal grupo foi entregue à ONU, sugerindo a
criação de uma comissão que tratasse a temática de Direitos Humanos e Empresas, o que foi aprovado
por meio da Resolução n° 3.201. Esta Resolução previa “a regulação e supervisão das atividades das
empresas transnacionais, adotando medidas que levem em conta o interesse das economias nacionais
dos países onde tais empresas transnacionais operam com base na plena soberania desses países.”46
A Comissão, de tal modo, centralizou suas atividades na elaboração de um Código de Conduta Global
que pudesse abranger todas as empresas, cujo primeiro draft foi apresentado em 198247. Todavia,
“a busca por estabelecer um código de forma consensual perdurou por mais de uma década, pois
não havia consensos.” 48 Isto ocorreu porque, concomitantemente às discussões sobre o Código de
Conduta, “houve a proliferação exponencial das ETNs, as quais passaram a instalar-se nos países em
desenvolvimento, grande parte delas originárias dos países do norte.”49 Com isso, geraram-se dois
blocos divergentes, em que, de um lado, havia uma grande pressão das empresas nos organismos
internacionais, a fim de evitar a adoção de um modelo normativo vinculante, e do outro, uma grande
pressão da sociedade civil pela efetiva regulação da questão, tendo em vista, especialmente, a tragédia
ocorrida em Bophal, 50 na Índia, em 1984. 51
Após todo este processo, foi apresentada, em 1990, a proposta final de Código de Conduta para as
Empresas, que previa, em seu parágrafo 14, que as corporações “devem respeitar os direitos e liber-

44
WUNSCH, Marina Sanches. Empresas transnacionais e direitos humanos: desafios jurídicos e sociais a partir do direito internacional.
2019. Tese (Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2019. f. 74.
45
SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Do Direito Soft ao Direito Hard em matéria de responsabilidade jurídica das empresas transnacionais por
violação de direitos humanos. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis (org.). Estado & Constituição: o “fim” do Estado de Direito. Florianópo-
lis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 212.
46
WUNSCH, Marina Sanches. Empresas transnacionais e direitos humanos: desafios jurídicos e sociais a partir do direito internacional.
2019. Tese (Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2019. f. 78.
47
SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Do Direito Soft ao Direito Hard em matéria de responsabilidade jurídica das empresas transnacionais por
violação de direitos humanos. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis (org.). Estado & Constituição: o “fim” do Estado de Direito. Florianópo-
lis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 212.
48
WUNSCH, Marina Sanches. Empresas transnacionais e direitos humanos: desafios jurídicos e sociais a partir do direito internacional.
2019. Tese (Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2019. f. 79.
49
SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Do Direito Soft ao Direito Hard em matéria de responsabilidade jurídica das empresas transnacionais por
violação de direitos humanos. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis (org.). Estado & Constituição: o “fim” do Estado de Direito. Florianópo-
lis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 213.
50
Entre 2 e 3 de dezembro de 1984, na cidade de Bophal, na Índia, houve um vazamento do gás isocianato de metila, comumente usado na
fabricação de pesticidas, numa das unidades da ETN norte-americana Union Carbide, matando 8 mil pessoas e deixando cerca de 150 mil
com sequelas. COMO nuvem letal matou mais de mil pessoas em 72 horas. BBC BRASIL. São Paulo, 03 dez. 2014. Disponível em: https://
www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/12/141203_gas_india_20anos_rp. Acesso em: 23 ago. 2021.


51
FEENEY, Patricia. A luta por responsabilidade das empresas no âmbito das nações unidas e o futuro da agenda de advocacy. Sur: Revista
Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 6, n. 11, p. 177, dez. 2009. Disponível em: https://sur.conectas.org/empresas-e-direitos-hu-
manos/. Acesso em: 23 ago. 2021.

113
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

dades humanos fundamentais nos países em que elas operarem.”52 Contudo, a proposta foi arquivada
dois anos mais tarde, em 1992, caracterizando “uma prova evidente do efeito invasivo das políticas
neoliberais sobre a atuação da ONU e a desconsideração das tragédias provocadas pela atuação das
ETNs nas décadas anteriores, como a de Bophal.”53
Assim teve fim a primeira fase que classifica a atuação das Nações Unidas na busca pela regulação da
relação entre Direitos Humanos e Empresas54. Esta fase ficou conhecida especialmente por tentar lidar
com a dimensão das responsabilidades (ligadas às atividades das empresas) e com os direitos (ligados
ao tratamento das transnacionais pelos estados anfitriões). 55

4.2 Segunda Fase da Agenda Internacional de Direitos Humanos e


Empresas da ONU (1993-2005)

A segunda fase do processo de busca por regulação no campo dos Direitos humanos e Empresas foi
posta em marcha “quando as Nações Unidas se preocuparam com o impacto da globalização e das
ETNs na efetivação dos direitos humanos.”56 Em que pese o aumento da pressão contra a ONU em
prol da criação de mecanismos que regulassem a relação entre Direitos Humanos e Empresas, ocorreu,
“a partir da posse de Kofi Annan no cargo de Secretário-Geral em 1997, a aproximação da organização
aos ideais das empresas, inserindo as ETNs no papel de agentes de desenvolvimento.”57 Isso fez com
que fosse afastada “qualquer possibilidade de estabelecimento de normas de caráter mais vinculante,
como no caso da construção de um código de conduta.”58 Ainda assim, em 1998, durante o mandato
de Kofi Annan, foi criado, dentro do que hoje é chamado de Conselho de Direitos Humanos da ONU, o
“Grupo de Trabalho sobre Métodos de Trabalho e Atividades das Corporações Transnacionais - interno
à Subcomissão para a promoção e proteção de direitos humanos, incumbido de analisar a atuação das
ETNs.”59 Posteriormente, em 1999, foi apresentado, no âmbito desse grupo de trabalho, um esboço de

52
BILCHITZ, David; DEVA, Surya. The human rights obligations of business: a critical framework for the future. In: BILCHITZ, DAVID; DEVA,
Surya (eds.). Human rights obligations of business: beyond the corporate responsibility to respect? Cambridge: Cambridge University
Press, 2013. p. 6.
53
SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Do Direito Soft ao Direito Hard em matéria de responsabilidade jurídica das empresas transnacionais por
violação de direitos humanos. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis (org.). Estado & Constituição: o “fim” do Estado de Direito. Florianópo-
lis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 213.
54
BILCHITZ, DAVID; DEVA, Surya. The human rights obligations of business: a critical framework for the future. In: BILCHITZ, DAVID; DEVA,
Surya (eds.). Human rights obligations of business: beyond the corporate responsibility to respect? Cambridge: Cambridge University
Press, 2013. p. 5.
55
BILCHITZ, DAVID; DEVA, Surya. The human rights obligations of business: a critical framework for the future. In: BILCHITZ, DAVID; DEVA,
Surya (eds.). Human rights obligations of business: beyond the corporate responsibility to respect? Cambridge: Cambridge University
Press, 2013. p. 5.
56
BILCHITZ, DAVID; DEVA, Surya. The human rights obligations of business: a critical framework for the future. In: BILCHITZ, DAVID; DEVA,
Surya (eds.). Human rights obligations of business: beyond the corporate responsibility to respect? Cambridge: Cambridge University
Press, 2013. p. 6.


57
ROLAND, Manoela Carneiro et al. Desafios e perspectivas para a construção de um tratado vinculante em direitos humanos e empresas.
Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 399, mai./ago. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pi-
d=S1808-24322018000200393&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 24 ago. 2021.
58
Ibid., p. 399.
59
SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Do Direito Soft ao Direito Hard em matéria de responsabilidade jurídica das empresas transnacionais por
violação de direitos humanos. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis (org.). Estado & Constituição: o “fim” do Estado de Direito. Florianópo-
lis: Tirant Lo Blanch, 2018., p. 214.

114
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

Código de Conduta para as empresas, com autoria do professor David Weissbrodt, projeto que não foi
levado adiante pela ONU.60
Em função desta nova visão sobre a relação entre Direitos Humanos e Empresas dentro da ONU,
firmou-se em 1999 o chamado Pacto Global, que consistiu numa “iniciativa envolvendo várias partes
interessadas, diversos atores, como governos, corporações, organizações trabalhistas e da sociedade
civil, e as Nações Unidas.”61 O objetivo do Pacto Global era “mobilizar a comunidade empresarial inter-
nacional a comprometer-se em alinhar suas operações com dez princípios sobre os Direitos Humanos,
trabalho, meio-ambiente e a luta contra a corrupção.” 62 A estruturação do Pacto foi desenvolvida a
partir de “dez princípios genéricos tangentes à temática de Direitos Humanos, que reforçam a lógica
voluntarista à qual as Nações Unidas engendravam incontáveis esforços para estabelecer na ordem
internacional.”63 Em decorrência disso,
a pior punição que pode ser obtida por aquelas empresas que desrespeitarem os dez princípios
propostos é sua expulsão do Pacto Global, não havendo nenhuma outra possibilidade de sanção
prevista a esses atores. Dessa forma, tal medida serve apenas como instrumento de comprovação da
própria insuficiência desse marco regulatório, tendo sido divulgada, no ano de 2012, a exclusão de mais
de três mil empresas do Pacto devido ao não cumprimento de suas normas.64
Embora os avanços realizados com o Pacto Global tenham sido bastante tímidos, seu desenvolvimento
foi relevante para o campo da relação entre Direitos Humanos e Empresas, tendo em vista que “repre-
senta um movimento significativo no sentido de que a Organização passou a estabelecer relações não
somente com Estados, mas também com atores não estatais.”65
O segundo intento de estabelecer um mecanismo regulatório para empresas que cometam viola-
ções de direitos humanos foi a aprovação, no ano de 2003, das Normas sobre as Responsabilidades
das Corporações Transnacionais e Outras Empresas Comerciais com Relação aos Direitos Humanos
(também conhecidas como Draft Norms, UN Norms ou simplesmente Normas, expressão que será
usada doravante), pela Subcomissão para Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, por meio da
Resolução n° 16, documento cujo observância pretendia-se que fosse vinculante66. Tais Normas “advêm
da constatação da insuficiência dos marcos voluntaristas que tentavam regular as condutas das ETNs e
da consequente necessidade de desenvolver instrumentos concretos de impor obrigações de Direitos

60
Ibid., p. 214.
61
“multi-stakeholder initiative involving diverse actors such as governments, corporations, labour and civil society organizations, and the
UN”. DEVA, Surya. Regulating corporate human rights violations: humanizing business. Abingdon: Routledge, 2012. p. 92.
62
WUNSCH, Marina Sanches. Empresas transnacionais e direitos humanos: desafios jurídicos e sociais a partir do direito internacional.
2019. Tese (Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2019. f. 112.
63
ROLAND, Manoela Carneiro et al. Desafios e perspectivas para a construção de um tratado vinculante em direitos humanos e empresas.
Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 400, mai./ago. 2018. ROLAND, Manoela Carneiro et al. Desafios e perspectivas para a constru-
ção de um instrumento jurídico vinculante em direitos humanos e empresas. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 393-417, ago. 2018.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S180824322018000200393&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 24 ago.
2021.
64
Ibid., p. 400.
65
WUNSCH, Marina Sanches. Empresas transnacionais e direitos humanos: desafios jurídicos e sociais a partir do direito internacional.
2019. Tese (Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2019. f. 113.
66
BILCHITZ, DAVID; DEVA, Surya. The human rights obligations of business: a critical framework for the future. In: BILCHITZ, DAVID; DEVA,
Surya (eds.). Human rights obligations of business: beyond the corporate responsibility to respect? Cambridge: Cambridge University
Press, 2013. p. 6.

115
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Humanos a elas.”67 As inovações nas Normas podiam ser vistas, por exemplo, pela adoção de “uma
linguagem mais enfática do que aquela adotada nos marcos anteriores, substituindo o vocábulo should,
que expressa somente uma recomendação, por shall, que impõe uma obrigação legal”. Com isso, as
Normas apresentaram grande relevância para a temática de Direitos Humanos e Empresas, conside-
rando que elas previam “de forma expressa que tanto os Estados quanto as empresas têm a responsa-
bilidade de promover, assegurar o cumprimento, garantir o respeito e proteger os Direitos Humanos,
sendo essa a sua responsabilidade primária.” 68
Todavia, os avanços propostos pelas Normas acabaram provocando a ira dos grandes acionistas, que
“lançaram uma forte campanha contra o documento, alegando, além de violações a direitos legítimos
das ETNs, que as obrigações de Direitos Humanos seriam exclusivas dos Estados.”69 Em decorrência
desta mobilização, em 2004, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas arquivou as Normas,
sob a justificativa de que o documento não possuía legitimidade jurídica, pois as empresas não são
sujeitos de Direito Internacional, não podendo ser sancionadas perante as organizações internacionais.
Como medida alternativa, o Órgão indicou o professor da Universidade Harvard, John G. Ruggie, como
Representante Especial do Secretário-Geral (conhecido pela sigla inglesa SRSG), em 2005. 70 Com isso,
findou-se a segunda fase de busca pela regulação das violações aos direitos humanos cometidas por
ETNs, que pode ser caracterizada pela tentativa de elencar as responsabilidades que das corporações
em relação aos direitos humanos, e também pela participação ativa de diversos setores não-estatais,
não somente das empresas, mas também a sociedade civil organizada. 71

4.3 Terceira Fase da Agenda Internacional de Direitos Humanos e


Empresas da ONU (2005-2011)

A terceira fase de desenvolvimento de mecanismos visando a normatização da relação entre Direitos


Humanos e Empresas marca um vigoroso retorno ao paradigma do voluntarismo, que fica claro na
medida em que a Resolução 2005/69, que determinou a nomeação de um especialista sobre a temá-
tica, delimitou, desde logo, que as suas tarefas deveriam ser:
a) Identificar e esclarecer padrões de responsabilidade corporativa e responsabilidade para corporações
transnacionais e outras empresas de negócios com respeito a direitos humanos; b) elaborar o papel dos
Estados na efetiva regulação da atuação das corporações transnacionais e outras empresas em relação
aos direitos humanos, incluindo a cooperação internacional; c) pesquisar e esclarecer as implicações

67
ROLAND, Manoela Carneiro et al. Desafios e perspectivas para a construção de um tratado vinculante em direitos humanos e empresas.
Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 400, mai./ago. 2018. ROLAND, Manoela Carneiro et al. Desafios e perspectivas para a constru-
ção de um instrumento jurídico vinculante em direitos humanos e empresas. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 393-417, ago. 2018.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S180824322018000200393&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 24 ago.
2021.
68
WUNSCH, Marina Sanches. Empresas transnacionais e direitos humanos: desafios jurídicos e sociais a partir do direito internacional.
2019. Tese (Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2019. f. 115.
69
ROLAND, Manoela Carneiro et al. Desafios e perspectivas para a construção de um tratado vinculante em direitos humanos e empresas.
Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 401, mai./ago. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/j/rdgv/a/MQrcJNJfXHYM7RZ4twNpV-
Jr/?lang=p. Acesso em: 24 jan. 2020.
70
BILCHITZ, DAVID; DEVA, Surya. The human rights obligations of business: a critical framework for the future. In: BILCHITZ, DAVID; DEVA,
Surya (eds.). Human rights obligations of business: beyond the corporate responsibility to respect? Cambridge: Cambridge University
Press, 2013. p. 6-7.


71
WUNSCH, Marina Sanches. Empresas transnacionais e direitos humanos: desafios jurídicos e sociais a partir do direito internacional.
2019. Tese (Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2019. f. 116-117.

116
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

para corporações transnacionais e outras empresas de conceitos como ‘cumplicidade’ e ‘esfera de


influência’; d) desenvolver materiais e metodologias para compreender o impacto sobre os direitos
humanos das atividades de corporações transnacionais e outras empresas; e) organizar um compêndio
das melhores práticas para os Estados, para as organizações transnacionais e outras empresas. 72
Mesmo com o caráter voluntarista e mais interessante para as empresas, Ruggie conseguiu obter ampla
aceitação das suas propostas, que contaram com amplo debate, ouvindo diversos setores da socie-
dade, fundamentando-se no chamado pragmatismo baseado em princípios73 que balizou toda a sua
atuação. 74 Porém, tal busca de Ruggie pelo amplo consenso “resultou em uma diluição da robustez da
estrutura na promoção de responsabilidades corporativas de direitos humanos.” 75
Após todo esse processo de debates, consensos, lobbies e mobilizações, tendo apresentado dois rela-
tórios parciais anteriores, 76 Ruggie publicou, em 2008, o relatório em que lançou as bases que balizaram
seu trabalho: proteger, respeitar e remediar. 77 Este relatório manteve o Estado “como ente responsável
pela proteção dos Direitos Humanos em face de qualquer violação cometida por empresas, enquanto
as últimas teriam apenas contrapartida de ‘respeito aos direitos’, sem que disso acarretasse qualquer
tipo de obrigação” 78. Isto se deu pois Ruggie não tinha interesse em apresentar um mecanismo vincu-
lante às empresas em relação a direitos humanos, o que já havia adiantado nos relatórios preliminares
que apresentou. 79
O mandato de Ruggie como SRSG foi prorrogado até 2011, ano em que apresentou um documento
denominado Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (também conhecido como
Guiding Principles, Princípios Ruggie ou simplesmente GPs). De acordo com John Ruggie,80 os pilares
“proteger, respeitar e remediar” estão apresentados nos Princípios da seguinte maneira:

1) O dever do Estado de proteger contra violações dos direitos humanos por terceiros, incluindo
empresas comerciais, através de políticas, regulamentos e adjudicação apropriados; 2) uma
responsabilidade corporativa independente de respeitar os direitos humanos, o que significa

72
SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Do Direito Soft ao Direito Hard em matéria de responsabilidade jurídica das empresas transnacionais por
violação de direitos humanos. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis (org.). Estado & Constituição: o “fim” do Estado de Direito. Florianópo-
lis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 216.
73
Na prática, esse “pragmatismo baseado em princípios” buscava, ao mesmo tempo, criar um compromisso principiológico para as em-
presas de proteger e respeitar os direitos humanos, mantendo um apego pragmático pela criação de mudanças naquele setor em que
são mais importantes, qual seja, na vida diária das pessoas. BILCHITZ, DAVID; DEVA, Surya. The human rights obligations of business: a
critical framework for the future. In: BILCHITZ, DAVID; DEVA, Surya (eds.). Human rights obligations of business: beyond the corporate
responsibility to respect? Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p. 9.


74
DEVA, Surya. Regulating corporate human rights violations: humanizing business. Abingdon: Routledge, 2012. p. 105.
75
“resulted in dilution of the framework’s robustness in promoting corporate human rights responsibilities”. DEVA, Surya. Regulating cor-
porate human rights violations: humanizing business. Abingdon: Routledge, 2012. p. 105.
76
Ruggie apresentou um relatório preliminar em 2006 e outro em 2007, ambos bastante afastados do que as anteriores Normas apresen-
tavam, defendendo que a “obrigação de respeitar direitos humanos é do Estado e não das empresas”. SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Do
Direito Soft ao Direito Hard em matéria de responsabilidade jurídica das empresas transnacionais por violação de direitos humanos. In:
BOLZAN DE MORAIS, José Luis (org.). Estado & Constituição: o “fim” do Estado de Direito. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 216-
217.
77
ROLAND, Manoela Carneiro et al. Desafios e perspectivas para a construção de um tratado vinculante em direitos humanos e empresas.
Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 401, mai./ago. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pi-
d=S180824322018000200393&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 24 jan. 2020.
78
Ibid., p. 401.
79
WETTSTEIN, Florian. Normativity, Ethics, and the UN Guiding Principles on Business and Human Rights: A Critical Assessment. Journal of
Human Rights, Oxfordshire, v. 14, n. 2, p. 165, 2015.
80
RUGGIE, John Gerard. Just Business: Multinational Corporations and Human Rights. Nova York: W. W. Norton & Company, 2013. p. 13.

117
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

que as empresas devem agir com a devida diligência para evitar violar os direitos de terceiros e
enfrentar os impactos adversos com os quais estão envolvidos; 3) a necessidade de maior acesso
das vítimas a recursos efetivos, tanto judiciais quanto não judiciais. Simplificando: os estados
devem proteger; as empresas devem respeitar; e aqueles que são prejudicados devem ter repa-
ração (grifos e tradução nossos).81

Com a posterior aprovação dos GPs pelo Conselho de Direitos Humanos e pela Assembleia-Geral das
Nações Unidas, foi criado um grupo de trabalho visando implantar os princípios nos âmbitos de cada
Estado, por meio dos chamados Planos Nacionais de Ação.82 Contudo, com a implementação dos GPs
apenas no nível de cada Estado, o documento perde força, já que não tem o condão de fiscalizar a
atividade das empresas, sobretudo as transnacionais, dada a sua natureza transfronteiriça.83

4.4 Quarta Fase da Agenda Internacional de Direitos Humanos e


Empresas da ONU (2013-Atualmente)

A quarta (e atual) fase de busca pela construção de um mecanismo vinculante em matéria de Direitos
Humanos e Empresas se iniciou quando o Equador, no ano de 2013, declarou-se contra o voluntarismo
presente nos Princípios Ruggie, com o apoio de outros 85 Estados, após considerável pressão da socie-
dade civil organizada.84 Como resultado de toda essa pressão, o Conselho de Direitos Humanos da ONU
aprovou, em 2014, a Resolução 26/9, que implementou um Grupo de Trabalho Intergovernamental com
o objetivo de criar um instrumento jurídico de natureza vinculante sobre Direitos Humanos e Empresas.
O primeiro material apresentado pelo Grupo de Trabalho foi o Documento de Elementos para o
projeto de instrumento internacional juridicamente vinculante sobre empresas transnacionais e outras
empresas sobre Direitos Humanos, de 2017, que previa em seu texto a possibilidade de empresas serem
diretamente responsabilizadas por violações de direitos humanos.85 No ano de 2018, o Equador apre-
sentou um esboço de tratado vinculante em matéria de Empresas e Direitos Humanos, chamado de
Zero Draft86. Contudo, o Draft apresentado pelo foi alvo de diversas críticas por não conter em seu
texto a responsabilização direta das empresas por violações de direitos humanos, por não mencionar,
em seu texto, as empresas públicas, por não prever um mecanismo de controle e monitoramento do
respeito aos direitos humanos pelas empresas, e, por fim, por não fazer menção em relação a questões
de gênero e atuação das empresas em zonas de conflito.87


81
RUGGIE, John Gerard. Just Business: Multinational Corporations and Human Rights. Nova York: W. W. Norton & Company, 2013. p. 13.
82
ROLAND, Manoela Carneiro et al. Desafios e perspectivas para a construção de um tratado vinculante em direitos humanos e empresas.
Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 402, mai./ago. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/j/rdgv/a/MQrcJNJfXHYM7RZ4twNpV-
Jr/?lang=pt. Acesso em: 24 jan. 2020.
83
Ibid., p. 402.
84
Ibid., p. 402.
85
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Elementos para el Proyecto de Instrumento Internacional Jurídicamente Vinculante sobre
Empresas Transnacionales y otras Empresas con respecto a los Derechos Humanos. 2017. Disponível em: https://www.ohchr.org/
Documents/HRBodies/HRCouncil/WGTransCorp/Session3/LegallyBindingInstrumentTNCs_OBEs_SP.pdf. Acesso em: 24 ago. 2021.
86
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Legally binding instrument to regulate, in International Human Rights Law, the activities
of transnational corporations and other business enterprises. 2018. Disponível em: https://media.business-humanrights.org/media/
documents/files/documents/DraftLBI.pdf. Acesso em: 24 ago. 2021.
87
GUAMÁN, Adoración. El Draft 0 del Binding Treaty: análisis crítico del contenido del texto y su adecuación con el objetivo de la Resolución
26/9. Cadernos de Pesquisa Homa, vol. 1, n. 6, p. 10, 2018. Disponível em: http://homacdhe.com/wp-content/uploads/2018/09/Artigo-A-
nalisys-Draft-Zero.pdf. Acesso em: 24 ago. 2021.

118
DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS

Diante disso, no ano de 2019, o Equador apresentou uma nova minuta de tratado vinculante em matéria
de Direitos Humanos e Empresas, chamado de Draft One. O documento, de acordo com Roland,88 apre-
sentou avanços, como a extensão dos efeitos do tratado a todas as atividades comerciais e a correção
de diversos erros formais cometidos no Zero Draft. Todavia, o documento mantém a orientação para
a responsabilização aos Estados, como já fazem os GPs e o Zero Draft, fortalecendo o voluntarismo da
responsabilidade empresarial, além de não prever mecanismos de recurso efetivo às pessoas atingidas
pela ação das ETNs, como a criação de uma corte, por exemplo.89
A existência de insuficiências nos esboços de tratado vinculante em matéria de Direitos Humanos e
Empresas se mantiveram no Draft Two, apresentado pelo Equador no ano de 2020. Dentre estas insu-
ficiências, além da manutenção do voluntarismo, por não prever nenhuma possibilidade jurídica de
desvelamento das cadeias de produção das ETNs, e por não apresentar mecanismos adequados de
devida diligência em direitos humanos, o que torna tal minuta severamente incapaz de produzir os
efeitos almejados nesta fase.90
Com isso, verifica-se que, ao longo dos últimos cinquenta anos, a ONU apresentou muitos meca-
nismos, das mais diferentes naturezas jurídicas, a fim de buscar adequada solução às violações de
direitos humanos cometidas por empresas. Contudo, ainda há um longo caminho a percorrer a fim de
se atingir este desiderato, o que envolverá, por óbvio, o enfrentamento ao poder político e econômico
dos grandes conglomerados empresariais.

11. DESAFIOS PARA A RESPONSABILIZAÇÃO DAS ETNS


NO ÂMBITO DO DIDH

O SIDH e a ONU apresentam, cada um de sua forma, uma série de chaves, entendimentos e orientações
bastante válidas para a compreensão do tema Direitos Humanos e Empresas. Todavia, passos à frente
neste processo ainda são necessários. Para além da orientação, do voluntarismo e do foco no Estado, é
necessário terminar com a chamada “arquitetura da impunidade” e tornar as empresas, sobretudo as
ETNs, responsáveis diretamente pelas violações de direitos humanos que cometem nos países onde
operam, seja diretamente, seja por meio de subsidiárias ou em suas cadeias produtivas. Tragédias como
as de Bophal, da Chevron, no Equador, de Mariana e Brumadinho são exemplos de abusos cometidos
por transnacionais que até hoje seguem impunes e, portanto, apontam para a grande probabilidade
de sua repetição. Além de fortalecer a governança e os sistemas de justiça domésticos, é importante
que o DIDH crie mecanismos adicionais e subsidiários para a responsabilização das ETNs, especial-
mente pela sua capacidade de atuação transnacional que, não raro, escapa às possibilidades de atuação
dos Estados, limitada às fronteiras nacionais.


88
ROLAND, Manoela Carneiro et al. Análise do Draft One: avanço ou retrocesso? Cadernos de Pesquisa Homa. vol. 2, n. 8, p. 31, 2019.
Disponível em: http://homacdhe.com/wp-content/uploads/2020/01/Cadernos-de-Pesquisa-An%C3%A1lise-do-Draft-One-Retificado.
pdf. Acesso em: 17 nov. 2019.
89
Ibid., p. 31.
90
ROLAND, Manoela Carneiro et. al. Análise do Segundo Draft Revisado do Instrumento Juridicamente Vinculante sobre Empresas Trans-
nacionais e Outras Empresas com Respeito aos Direitos Humanos. Cadernos de Pesquisa Homa, vol. 5, n. 2, jul./dez. 2019. Disponível em:
https://periodicos.ufjf.br/index.php/HOMA/article/view/35227/23211. Acesso em: 29 ago. 2021.

119
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

DIREITO AO RECURSO EFETIVO

Aline Andrighetto

1. INTRODUÇÃO

O direito a um recurso contra violações de direitos humanos é de fundamental importância para a


sua efetividade. A Corte IDH considera que a disposição no artigo 25 da CADH sobre o direito a um
recurso efetivo perante os juízes ou tribunais nacionais competentes constitui um dos pilares básicos,
não apenas da CADH, mas do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática.1 A Corte IDH
compreende que deve ser assegurado, no que diz o artigo, o pleno acesso à justiça.
Por meio desse direito, os Estados comprometem-se a estabelecer instituições adequadas e tomar
decisões sobre violações de direitos humanos, assegurando que as vítimas tenham a possibilidade de
obter justiça em caso de ameaça ou de dano a seus direitos2. A reparação, por ser obtida de modo mais
célere no âmbito interno, leva à priorização da jurisdição doméstica, tornando a jurisdição internacional
subsidiária. No caso de inadequação destes recursos, o Estado responde duplamente: pela violação
inicial e também por não prover o indivíduo de recursos internos aptos a reparar o dano causado. 3

2. PREVISÃO NORMATIVA

Declaração Universal de Direitos Humanos

Artigo 8

Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os
atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Declaração Americana dos direitos e deveres do homem

Artigo XXVI
Parte-se do princípio que todo acusado é inocente, até provar-se-lhe a culpabilidade. 
Toda pessoa acusada de um delito tem o direito de ser ouvida numa forma imparcial e pública, de ser
julgada por tribunais já estabelecidos de acordo com leis preexistentes, e de que se lhe não inflijam
penas cruéis, infamantes ou inusitadas.


1
Corte IDH. Caso Castillo Paez, 1997. Parágrafo 82 . Reiterado nos Casos: Suárez Rosero, 1997. Parágrafo 65; Blake, 1998, Parágrafo 102;
Comunidad Mayagna, 2001. Parágrafo 112; Ivcher Bronstein, 2001. Parágrafo 135.
2
CORTE IDH. Caso Palamara Iribarne vs. Chile. 2005. Parágrafo 183.
3
RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 6 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 76.

120
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

Artigo 2
1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que
se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente
Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição.
2. Na ausência de medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar efetivos os direitos
reconhecidos no presente Pacto, os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a tomar as
providências necessárias com vistas a adotá-las, levando em consideração seus respectivos procedi-
mentos constitucionais e as disposições do presente Pacto.
3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a:
a) Garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto tenham sido
violados, possa de um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetra por pessoas que
agiam no exercício de funções oficiais;
b) Garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente
autoridade judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente
prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão; e a desenvolver as possibilidades de
recurso judicial;
c) Garantir o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer decisão que julgar proce-
dente tal recurso.
Artigo 14
1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito
de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e
imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra
ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poderão
ser excluídos de parte da totalidade de um julgamento, quer por motivo de moral pública, de ordem
pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida
privada das Partes o exija, que na medida em que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça,
em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entre-
tanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá torna-se pública, a menos que o
interesse de menores exija procedimento oposto, ou processo diga respeito à controvérsia matrimo-
niais ou à tutela de menores.

Convenção Americana de Direitos Humanos

Artigo 25. Proteção judicial


1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante
os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais
reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja
cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados Partes comprometem-se: 
a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do
Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso; 

121
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e 


c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha
considerado procedente o recurso. 

Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial


(1965) (Convenção contra a discriminação racial)

Artigo 6
Os Estados partes assegurarão às pessoas que estiverem sob sua jurisdição proteção e recursos eficazes
perante os tribunais nacionais e outros órgãos do Estado competentes, contra todos os atos de discri-
minação racial que, contrariando a presente Convenção, violem os seus direitos individuais e as suas
liberdades fundamentais, assim como o direito de pedir a esses tribunais satisfação ou reparação, justa
e adequada, por qualquer prejuízo de que tenham sido vítimas em virtude de tal discriminação

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres

Artigo 2
Os Estados Partes condenam a discriminação contra as mulheres sob todas as suas formas, acordam
em prosseguir, por todos os meios apropriados e sem demora, uma política tendente a eliminar a discri-
minação contra as mulheres e, com este fim, comprometem-se a:
[...]
c) Instaurar uma proteção jurisdicional dos direitos das mulheres em pé de igualdade com os homens e
garantir, por intermédio dos tribunais nacionais competentes e outras instituições públicas, a proteção
efetiva das mulheres contra qualquer ato discriminatório;
Convenção n° 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho - OIT
Artigo 12
Os povos interessados deverão ser protegidos contra a violação de seus direitos e deverão poder mover
ações legais, individualmente ou por meio de seus órgãos representativos, para garantir a proteção
efetiva de tais direitos. Medidas deverão ser tomadas para garantir que os membros desses povos
possam compreender e se fazer compreender em processos legais, disponibilizando-se para esse fim,
se necessário, intérpretes ou outros meios eficazes.
Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes
Artigo 12
Cada Estado Parte assegurará que as suas autoridades competentes procederão a uma investigação
rápida e imparcial sempre que houver motivos suficientes para se crer que um ato de tortura tenha sido
cometido em qualquer território a sob sua jurisdição.

122
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

Artigo 13
Cada Estado Parte assegurará que qualquer pessoa que alegue ter sido submetida a tortura em qual-
quer território sob a sua jurisdição tenha o direito de apresentar queixa e de ter o seu caso rápida e
imparcialmente examinado pelas autoridades competentes do dito Estado. Serão adotadas providên-
cias no sentido de assegurar a proteção do queixoso e das testemunhas contra qualquer maus-tratos
ou intimidações resultantes de queixa ou depoimento prestados.
Artigo 14
1. Cada Estado Parte assegurará, em seu ordenamento jurídico, à vítima de um ato de tortura, direito a
reparação e a uma indenização justa e adequada, incluindo os meios necessários a sua mais completa
reabilitação possível. No caso de morte da vítima em consequência de tortura, seus dependentes farão
jus a uma indenização.
2. Este artigo em nada afetará quaisquer direitos que a vítima ou outra pessoa possam ter em decor-
rência das leis nacionais.

Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura

Artigo 8
Os Estados Partes assegurarão a qualquer pessoa que denunciar haver sido submetida a tortura, no
âmbito de sua jurisdição, o direito de que o caso seja examinado de maneira imparcial.
Quando houver denúncia ou razão fundada para supor que haja sido cometido ato de tortura no
âmbito de sua jurisdição, os Estados partes garantirão que suas autoridades procederão de ofício e
imediatamente à realização de uma investigação sobre o caso e iniciarão, se for cabível, o respectivo
processo penal.
Uma vez esgotado o procedimento jurídico interno do Estado e os recursos que este prevê, o caso
poderá ser submetido a instâncias internacionais, cuja competência tenha sido aceita por esse Estado.
Artigo 9
Os Estados partes comprometem‐se a estabelecer, em suas legislações nacionais, normas que
garantam compensação adequada para as vítimas do delito de tortura.
Nada do disposto neste artigo afetará o direito que possa ter a vítima ou outras pessoas de receber
compensação em virtude da legislação nacional existente.

Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher,


“Convenção de Belém do Pará”

Artigo 4
Toda mulher tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos
humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos
direitos humanos.  Estes direitos abrangem, entre outros:
[...]
g. direito a recurso simples e rápido perante tribunal competente que a proteja contra atos que
violem seus direitos;

123
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3. DIFERENÇAS ENTRE OS DISPOSITIVOS DO


PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS
CIVIS E POLÍTICOS (PIDCP) E DA CONVENÇÃO
AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CADH)

Tanto o artigo 14.1 do PIDCP, como o artigo 8.1 da Convenção, dedicam-se essencialmente ao direito ao
devido processo, garantido também o “direito a ser ouvido” pelos tribunais. Este compreendido “para a
determinação de seus direitos ou obrigações de caráter civil”, segundo o PIDCP, e “para a determinação
de seus direitos e obrigações de ordem civil, laboral, fiscal ou de qualquer outro caráter’’, segundo
o texto da CADH.
Os artigos 2.3 do PIDCP e 25 da CADH dedicam-se ao direito a um recurso à vítima do direito violado,
e consagram além dele, as obrigações do Estado com relação ao direito a um recurso, assegurando
o cumprimento da decisão do recurso procedente. A redação dos dispositivos é muito próxima, por
isso cabe aqui elencar o que cada um menciona. A obrigação das autoridades ao conhecer recursos e
pronunciar-se sobre os direitos envolvidos está incorporada no inciso b) do artigo 2.3 do PIDCP, e no
inciso a) do artigo 25.2 da CADH. A obrigação das autoridades de cumprir com as decisões adotadas
sobre estes recursos está consagrada pelo inciso c) do artigo 2.3 do PIDCP e o inciso c) do artigo 25.2
da Convenção. Os incisos b) dos artigos 2.3 e 25.2 reconhecem a obrigação do Estado de desenvolver
recursos de caráter judicial.
A diferença fundamental entre o artigo 2.3 de PIDCP e o artigo 25 da Convenção está no primeiro
parágrafo do artigo 25, que consagra o direito subjetivo do indivíduo a um recurso. Não há disposição
similar no artigo 2 do PIDCP, que se limita a reconhecer as obrigações do Estado. Outra diferença
significativa se refere ao alcance do recurso previsto. Enquanto o artigo 2.3 se refere à obrigação de
proporcionar um recurso para violações dos direitos e das liberdades consagradas pelo PIDCP, o artigo
25.1 consagra o direito a um recurso para violações dos direitos fundamentais reconhecidos pela CADH,
a constituição ou as leis.
Diante disso, o direito à “proteção igualitária da lei”, consagrado pelo artigo 26 do PIDCP designa seu
texto para preencher as diferenças entre o seu artigo 2.3 e o artigo 25 da CADH. Embora este artigo
se dedique essencialmente ao direito de igualdade das pessoas e à não discriminação, a jurisprudência
desenvolvida pelo CDH estabelece que o conceito de “proteção da lei” inclui o direito a recorrer aos
tribunais para a proteção de seus direitos, incluindo aqueles consagrados pelo direito interno.4 O direito
previsto no artigo 26 do PIDCP completa então as diferenças entre o artigo 2.3 do mesmo e o artigo 25
da CADH, mesmo dedicando-se ao princípio da igualdade das pessoas e não discriminação. 5

4. SIGNIFICADO DO TERMO “RECURSO” E


ABRANGÊNCIA DO DIREITO AO RECURSO EFETIVO

Com relação ao termo “recurso efetivo”, a CADH não se refere tão somente aos “recursos” como meios
de impugnação contra decisões judiciais. Não se cuida de “recurso” como gênero de espécies “recur-
sais” como a apelação ou o agravo no Brasil. Ao fazer menção a “recurso efetivo”, o artigo 25.1
da CADH refere-se à efetividade dos instrumentos ou dos meios processuais em geral destinados a

ONU. Comentário Geral nº 31 - A natureza da obrigação jurídica geral imposta aos estados partes no pacto. 2004.
4

5
O’DONNELL, Daniel. Derecho internacional de los derechos humanos: Normativa, jurisprudencia
y doctrina de los sistemas universal e interamericano. p. 473.

124
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

garantir os direitos, sejam recursos (no sentido de impugnação às decisões judiciais) ou não.6 Trata-se
do dever dos Estados de prover meios judiciais internos eficazes para proteger os direitos, ou seja, obri-
gação de respeitar direitos, como no Caso Blake vs. Guatemala7 e no Caso García Asto y Ramírez Rojas
vs. Peru.8 A respeito do direito a um recurso efetivo no SIDH, pode-se dizer que pode ser utilizado como
via de esgotamento dos recursos internos, conforme estabelecido no artigo 43.1, “a”, da CADH.9
A CIDH considera que o direito de recurso nos termos do artigo 25, em conjugação com a obrigação
prevista no artigo 1.1 e artigo 8.1 deve ser entendido como o direito de cada indivíduo a acessar um
tribunal quando algum de seus direitos violados for um direito protegido pela Convenção, constituição
ou legislação interna do Estado, para obter uma investigação judicial a cargo de um tribunal compe-
tente, independente e imparcial, que fixe, quando for o caso, compensação adequada.
Em sua jurisprudência, a Corte IDH tem compreendido que a inexistência de um recurso efetivo contra
as violações dos direitos reconhecidos pela Convenção constitui uma transgressão por parte do Esta-
do-parte. Assim, para que um recurso seja considerado efetivo, “não basta sua previsão na Constituição
ou na lei ou que seja formalmente admissível, porém é requisito que seja realmente idôneo para estabe-
lecer se houve ou não violação de direitos humanos e, em caso de resposta positiva, prover o necessário
para remediar esta violação”.10
Embora possa ser considerado como uma garantia formal, no sentido de assegurar o devido tratamento
de uma violação de um direito fundamental assegurado pela CADH, a inexistência de um recurso
efetivo contra violações de direitos humanos reconhecidos pela CADH é intrinsecamente uma violação
a ela. Ou seja, o direito a um recurso efetivo previsto no artigo 25 da CADH está ligado ao princípio do
devido processo legal, conforme artigo 8.1 da mesma Convenção.
O recurso efetivo deve apresentar quatro características, segundo a jurisprudência da Corte IDH. Ele
deve ser simples, rápido, adequado e efetivo.11 Como pode-se observar no Caso Daniel Tibi vs. Ecuador,
onde a Corte IDH defende que deve ser dada possibilidade real de interposição de recurso simples e
rápido que permita chegar a tutela jurisdicional exigida. 12
O recurso deve ser simples e não há algum critério para a simplicidade, mas em todos os recursos e
julgamentos a Corte analisa se o recurso é simples à luz da Convenção, como no Caso Tribunal Consti-
tucional vs. Peru.13 O caráter de rapidez do recurso deve ser condição do recurso judicial, pois se não for
decidido dentro de um prazo que permita remediar a violação, de nada adianta. A Corte utiliza outros
parâmetros normativos para aferir a celeridade do recurso, tais como menciona o artigo 7.6 da CADH
ao referenciar a expressão sem demora e ainda o prazo razoável do artigo 8.
Também deve ser o recurso adequado e efetivo, pois a Corte entende que não basta a “dimensão
formal” do recurso judicial pois não é suficiente a mera existência de órgãos ou de procedimentos

6
CORTE IDH. Opinião Consultiva OC-9/87. Garantias judiciais em estados de emergência, 1987. Parágrafo 24.
7
CORTE IDH. Caso Blake vs. Guatemala. 1998. Parágrafos 102-103.
8
CORTE IDH. Caso García Asto y Ramírez Rojas vs. Peru, 2005. Parágrafo 113.
9
FONSÊCA, Vitor. Processo Civil e Direitos Humanos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 64.
10
CORTE IDH. Caso Durand e Ugarte vs. Peru. 2000. Parágrafo 102; Corte IDH, Garantias Judiciais em estados de emergência (arts. 27.2,
25 e 8 da Convenção Americana); Opinião Consultiva OC-9/87, 1987. Parágrafo 24; e Corte IDH, Caso Yatama vs. Nicarágua. 2005. Pará-
grafos 167-169.
11
CORTE IDH. Caso Tribunal Constitucional Vs. Perú. 2001. Parágrafo 86; CORTE IDH, Caso Las Palmeras Vs. Colômbia. Parágrafo 58.
12
CORTE IDH. Caso Daniel Tibi vs. Ecuador. 2004. Parágrafo 131.
13
CORTE IDH. Caso Tribunal Constitucional vs. Peru. 2001. Parágrafo 90.

125
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

formais ou de mera possibilidade de recorrer à justiça.14 O recurso é adequado a partir de sua idoneidade
para proteger a situação jurídica da suposta vítima. Nos ordenamentos jurídicos internos, há variados
recursos judiciais, mas nem todos são aplicáveis a todas as circunstâncias ou podem ser manejados
indistintamente por todos. Por isso, o recurso somente é considerado adequado se puder resolver a
violação, conforme identificado no Caso Velásquez Rodrigues vs. Honduras.15
O recurso para ser efetivo, deve ser também acessível. Sua acessibilidade diz respeito à possibilidade
real de interposição pela vítima. No caso Castañeda Gutman, vs. México,16 a Corte IDH destacou a
importância dos Estados regularem os recursos judiciais de forma que as vítimas tenham certeza e
segurança jurídica de suas condições de acesso. Nesse caso, o que se verificou é que se uma determi-
nada ação é o recurso destinado pela lei para obter a restituição do direito que se considera violado,
toda pessoa que seja titular do mencionado direito deve ter a possibilidade real de o interpor.17
A análise da acessibilidade do recurso é até mesmo questão prévia e anterior à adequação e à efetivi-
dade do próprio recurso. É necessário observar se o recurso existe e se é realmente possível exercê-lo
no contexto da situação do Estado, da situação narrada dos fatos ou da situação particular da vítima.
A acessibilidade do recurso judicial compreende também o valor das custas judiciais. Segundo a Corte
IDH, qualquer norma ou medida que impeça ou dificulte o uso do recurso constitui uma violação do
direito ao acesso, pois o valor excessivo das custas pode ser compreendido como obstrução à justiça, se
estiver fora do critério de razoabilidade.18

5. OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS

A respeito das obrigações do Estado, o artigo 25.2 da CADH dispõe sobre o compromisso assumido
no sentido de assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida
sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso, desenvolver as possibilidades de recurso
judicial, e ainda, assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão que tenha
considerado procedente o recurso.
O compromisso é assegurar a decisão sobre o recurso judicial. Em geral, os Estados não são condenados
pela Corte IDH por infringência do disposto na alínea “a” do artigo 25.2 a. Mas percebe-se que há uma
dificuldade na jurisprudência da Corte IDH de isolar esse artigo do critério da “efetividade do recurso”.
Isso ocorreu quando o Estado colombiano foi condenado pelo artigo 25.2 a no Caso das Comunidades
Afrodescendentes Deslocadas da Bacia do Rio Cacarica (Operação Gênesis) vs. Colômbia.19 Nesse caso,
as comunidades tentaram proteger sua propriedade coletiva de exploração madeireira, quando ocorreu
decisão judicial favorável anulando o contrato de exploração de madeira. Porém o contrato foi assinado
logo após a decisão judicial, sem haver notícia de anulação ou ineficácia posterior do contrato. Já no
Caso Caracazo vs. Venezuela, 20 o próprio Estado reconheceu sua responsabilidade internacional por
violação do artigo 25.2a., por não ter garantido recurso simples, rápido e efetivo às vítimas e aos seus
familiares contra prisões e mortes ocorridas durante um tumulto em Caracas.

14
FONSÊCA, Vitor. Processo Civil e Direitos Humanos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 68.
15
CORTE IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. 1988. Parágrafos 60-64.
16
CORTE IDH. Caso Castañe da Gutman vs. México. 2007. Parágrafos 102-114.


17
FONSÊCA, Vitor. Processo Civil e Direitos Humanos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 69.
18
Ibid. p. 70.
19
CORTE IDH. Caso das Comunidades Afrodescendentes Deslocadas da Bacia do Rio Cacarica vs. Colômbia. Parágrafos 409-410.
20
CORTE IDH. Caso Caracazo vs. Venezuela. 2002. Parágrafo 74.

126
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

O segundo compromisso dos Estados de desenvolver as possibilidades de recurso judicial prevista no


artigo 25.2 b relaciona-se a não aceitação de sua mera dimensão formal. No terceiro compromisso, o
25.2c. é muito utilizado pela jurisprudência da Corte, a qual entende que “assegurar o cumprimento da
decisão” implica o dever de cumprimento da decisão judicial, também chamado de “princípio da tutela
judicial efetiva”. 21
Uma das preocupações por parte da Corte IDH com a efetividade do direito ao recurso e com o próprio
processo judicial não se dá apenas no tocante à prolação de uma sentença ou decisão que reconhece
o direito do jurisdicionado, mas com a efetividade da implementação e da execução dessas decisões.
Por isso, a Corte IDH tem decidido que os recursos e meios judiciais internos de proteção aos direitos
precisam ser efetivos e não apenas de modo aparente, inclusive, no momento de conferir executividade
às decisões que reconhecem violações de direito para que as reparações possam ser adequadamente
efetivadas pela justiça de cada Estado. Nesse caso, a impossibilidade ou ineficácia da execução da
decisão pode configurar a denegação de justiça e ensejar a condenação do Estado Parte por violação
das garantias processuais previstas nos artigos 8 e 25 da CADH.
O conceito de efetividade do recurso é material, e não meramente formal, e com isso, a Corte não consi-
dera cumprido o dever estatal de conceder recurso efetivo para proteção da pessoa contra violação
de seus direitos quando o processo não é dotado de garantias mínimas necessárias que permitam às
partes atuarem em igualdade de condições, serem ouvidas e produzirem provas para defesa de seus
direitos. Com isso, a Corte considera também como violado o direito a um recurso efetivo e ao devido
processo legal quando as decisões judiciais não são adequadamente fundamentadas, não há análise
dos argumentos do jurisdicionado na decisão contrária a ele e, ainda, quando não há liberdade para a
produção das provas necessárias para a comprovação dos fatos que fundamentam o direito. 22
No Caso Baena Ricardo vs. Panamá, 23 a Corte IDH verificou que a responsabilidade estatal não termina
quando as autoridades competentes emitem a decisão ou sentença, pois exige-se que o Estado garanta
os meios para executar essas decisões definitivas, ou seja, o processo deve dirigir-se à materialização da
proteção do direito. Para a Corte IDH, a execução das decisões e das sentenças deve ser considerada
“parte integrante do direito de acesso à justiça”, em sentido amplo, abrangendo também o cumpri-
mento integral da decisão respectiva. O caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras24 demonstra a preocu-
pação da Corte ao manifestar que ao Estado é imputável qualquer violação dos direitos reconhecidos
pela CADH, especialmente por ato de poder público ou por pessoas que atuem em nome do poder
público. A Corte compreende que o Estado é detentor do poder jurídico de prevenir razoavelmente as
violações de direitos humanos e investigá-las.
No Caso 10.970, Martín de Mejía vs. Peru, 25 a CIDH entendeu que se configurou responsabilidade do
Estado por violação do direito à integridade pessoal por abuso sexual e tortura, do devido processo, da
presunção de inocência e do direito da vítima de ser julgada por um tribunal imparcial, da honra e digni-
dade, da proteção judicial, em particular, do direito a um recurso efetivo baseado na violação dos artigos
1.1, 5 , 8, 8.1, 8.2, 11, 25 da CADH. A CIDH recomendou que o Estado peruano investigasse os fatos,
punisse os responsáveis, compensasse as vítimas e revogasse ou alterasse a legislação para garantir o


21
FONSÊCA, Vitor. Os Direitos Humanos no Processo Civil. São Paulo. Thomson Reuters Brasil. 2018. p.74
22
GUEDES, Cintia Regina. O conteúdo do Direito de acesso à justiça e do princípio do devido processo legal na Jurisprudência da
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Cadernos estratégicos - Análise estratégica dos julgados da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Seção 1 – Acesso à Justiça e Garantias Judiciais. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r39105.pdf. Acesso em:
14 maio 2021.
23
CORTE IDH. Caso Baena Ricardo vs. Panamá. 2001. Parágrafos 79-81.
24
CORTE IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. 1988. Parágrafos 172- 174.
25
Report nº 5/96. Caso nº 10.970. Peru, 1996.

127
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

direito a um julgamento justo. Recomendou também ao Estado peruano desistir dos processos penais
instaurados contra a Sra. Martin de Mejia por supostamente cometer o crime de terrorismo, porque a
mesma não teve garantido o direito a um julgamento justo.

6. RECURSOS ILUSÓRIOS

A Corte IDH considera ilusórios os recursos que, mesmo disponíveis, não satisfazem a característica da
efetividade, ou seja, caracterizam-se: a) por sua inutilidade demonstrada pela prática; b) pela falta de
independência dos juízes para decidir ou para executar suas decisões; c) por qualquer outra situação
que configure um quadro de denegação da justiça (demora); ou d) por qualquer outro motivo que
impeça o suposto prejudicado de ter acesso à justiça. 26
Segundo a Opinião Consultiva nº 9/87, a Corte IDH tem assinalado que, segundo a CADH, os Estados
Partes obrigam-se a fornecer recursos judiciais efetivos às vítimas de violação dos direitos humanos,
conforme o artigo 25 da CADH. Os recursos devem ser fundamentados em conformidade com as
regras do devido processo legal conforme menciona o artigo 8.1, de acordo com as obrigações gerais
de garantir o livre e pleno exercício de direitos reconhecidos pela CADH a toda pessoa que se encontre
sob sua jurisdição, como determinado no Caso Velásquez Rodríguez. 27
Segundo este princípio, a inexistência de um recurso efetivo contra as violações aos direitos reconhe-
cidos pela Convenção constituem uma transgressão da mesma por parte do Estado Parte na qual
semelhante situação tenha lugar. Neste sentido, deve sublinhar-se que, para que tal recurso exista,
não basta com que esteja previsto pela Constituição ou lei ou que seja formalmente admissível, senão
que seja realmente idôneo para estabelecer se ocorreu uma violação aos direitos humanos e prover o
necessário para remediá-la.
O Caso Ivcher Bronstein vs. Peru28 ilustra o entendimento da Corte IDH sobre os recursos ilusórios.
Baruch Ivcher Bronstein era o proprietário majoritário de um canal de televisão desde 1986. O senhor
Ivcher nasceu em Israel e posteriormente adquiriu a cidadania peruana por naturalização.  Um dos
programas de dito canal começou a transmitir reportagens relacionadas ao governo do então Presi-
dente Alberto Fujimori. Em 23 de maio de 1997, o Poder Executivo do Peru expediu o Decreto Supremo
nº. 004-97-IN, que regulamentou a Lei de Nacionalidade nº. 26574, e estabeleceu a possibilidade  de
cancelá-la aos peruanos naturalizados. Em julho de 1997, o governo peruano deixou sem efeito legal o
título de nacionalidade peruana do senhor Ivcher. Como consequência, ele foi suspenso como acio-
nista majoritário do canal de TV. Os recursos apresentados para questionar estas decisões foram todos
indeferidos. No caso concreto, as autoridades responsáveis pela decisão não informaram o senhor
Ivcher de que seu expediente de nacionalização não se encontrava nos arquivos da instituição, nem lhe
requereram que apresentasse cópias com o fim de reconstruí-lo; não lhes comunicaram as acusações
de que era imputado, isto é, de ter adulterado este expediente e descumprido o requisito de renúncia
à sua nacionalidade israelense e, por último, tampouco lhe permitiram apresentar testemunhas que
demonstrassem sua posição. Além dessa, outras irregularidades formais culminaram na cassação da
nacionalidade e de sua participação como acionista majoritário do canal de televisão.
Nesta decisão, a Corte IDH entendeu que os recursos disponibilizados à vítima foram ilusórios, porque,
na prática, demonstraram sua inutilidade, na medida em que o Poder Judicial careceu de independência
necessária para decidir com imparcialidade ou faltaram os meios para executar as suas decisões. A isto

26
CORTE IDH. Opinião Consultiva OC- 9/87. 1987. Parágrafo 24.


27
CORTE IDH. Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras. 1988. Parágrafo 62.
28
CORTE IDH. Caso Ivcher Bronstein vs. Perú. 2001. Parágrafos 105-137.

128
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

pode agregar-se a denegação da justiça, a demora injustificada na decisão e o impedimento do acesso


do lesionado ao recurso judicial. 29 A Corte considerou que o Estado violou o direito às garantias judiciais
consagradas no artigo 8.1 e 8.2 da CADH, em prejuízo de Baruch Ivcher Bronstein, assim como violou o
direito à proteção judicial consagrado no artigo 25.1 da CADH. 30

7. EXCEÇÃO AO REQUISITO DO ESGOTAMENTO


DOS RECURSOS INTERNOS

O esgotamento dos recursos internos desenvolveu-se sob o âmbito da proteção diplomática, como
etapa para o exaurimento dos recursos locais junto ao Estado. A regra do esgotamento dos recursos
internos tem por função ressaltar o caráter subsidiário do direito internacional em face da jurisdição
doméstica, visando à manutenção da soberania dos Estados. Com o advento do DIDH e como decor-
rência de sua própria soberania, nasce, para os Estados, a obrigação de garantir recursos efetivos a seus
jurisdicionados.
Esta regra do esgotamento dos recursos internos está prevista no artigo 46, da CADH31 e no artigo 5º
do Primeiro Protocolo Facultativo ao PIDCP, 32 indicando que a jurisdição internacional está submetida à
jurisdição local, devendo esta ter prevalência no trato de uma situação de violação de direitos humanos. 33
A exceção à regra do esgotamento dos recursos internos diz respeito à inexistência do devido processo
legal para a proteção dos direitos humanos no plano local, conforme menciona o artigo 46.2, “a”, da
CADH, o que, por si só, caracteriza uma violação à Convenção, conforme artigo 8. Com isso, a inexis-
tência de recursos efetivos é um dos elementos constitutivos do princípio do devido processo legal
sob o regime da CADH, de forma que se cria um relacionamento inseparável entre a exceção à regra
do esgotamento dos recursos internos e a ausência de recursos, pois quando se verificar a falta destes
recursos haverá de se alegar exceção à regra do prévio esgotamento dos recursos internos.
No Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, 34 os fatos que configuram exceção ao requisito do esgota-
mento dos recursos internos foram também considerados uma violação ao direito ao recurso efetivo.

29
Ibid. Parágrafo 137.
30
Ibid.


31
Artigo 46   1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será
necessário: a.  que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacio-
nal geralmente reconhecidos; b.  que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado
em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva; c. que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro
processo de solução internacional; e d. que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e
a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição. 2.  As disposições das alíneas a e b do
inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando: a.  não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para
a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados; b.  não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus
direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e c. houver demora injustificada na decisão
sobre os mencionados recursos.
32
Artigo 5.º 1.O Comité examina as comunicações recebidas em virtude do presente Protocolo, tendo em conta todas as informações
escritas que lhe são submetidas pelo particular e pelo Estado Parte interessado. 2. O Comité não examinará nenhuma comunicação de
um particular sem se assegurar de que: a.A mesma questão não está a ser examinada por outra instância internacional de inquérito ou
de decisão; b. O particular esgotou todos os recursos internos disponíveis. Esta regra não se aplica se os processos de recurso excederem
prazos razoáveis. 3. O Comité realiza as suas sessões à porta fechada quando examina as comunicações previstas no presente Protocolo.
4. O Comité comunica as suas constatações ao Estado Parte interessado e ao particular.
33
NASCIMENTO, Jefferson Rodrigo. O direito a um recurso efetivo no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. In:
Thomas Richter; Rainer Schmidt. (Org.). Integração e Cidadania Europeia. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 579.
34
CORTE IDH. Caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras. 1988. Parágrafos 50 - 81.

129
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Neste caso, foi assentado que o conhecimento de um caso por um organismo internacional e a conse-
quente conclusão de que um direito humano foi violado quase sempre significa que a vítima foi privada
de um recurso efetivo ante a justiça nacional.
As demais hipóteses de exceção à regra do esgotamento estão no artigo 46.2, “b” e “c”, da CADH
(impedimento para esgotar os recursos ou demora injustificada na decisão do recurso), reafirmam que
se uma demanda se enquadrar nessas hipóteses haverá também uma violação autônoma do artigo
25 da Convenção Americana, pois o Estado-parte tem a obrigação de prover recursos efetivos a seus
jurisdicionados, fato que ocorreu no Caso Ximenes Lopes v. Brasil. 35

8. CONCEITO DE VÍTIMA

A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Declaração sobre os princípios fundamentais da justiça
para as vítimas de delitos e do abuso de poder. 36 Por vítimas entende-se as pessoas que, individual ou
coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou psicológicas, sofrimento emocional,
perda financeira ou prejuízo substancial de direitos fundamentais, como consequência de ações ou
omissões que violem a legislação penal vigente, assim como os familiares de tais pessoas. 37 Já “vítimas
de abuso de poder” foram conceituadas como pessoas que tenham sofrido danos por consequência
de atos ou omissões não tipificados como delitos, mas que são consideradas violações da normativa
internacional sobre direitos humanos.
Reconhecendo os direitos das pessoas que tenham sido vítimas de violações de direitos, a declaração
faz remissão ao direito internacional, pois os direitos reconhecidos incluem, em primeiro lugar, o acesso
aos mecanismos de justiça e a uma pronta reparação do dano, devendo as vítimas ser tratadas com
compaixão e respeito por sua dignidade.
Dispõe, também, a sobredita Declaração que os recursos judiciais e administrativos devem ser
adequados às necessidades das vítimas de delitos, em particular através de ações informando as vítimas
de seu papel e do alcance, o desenvolvimento cronológico e o progresso do processo, assim como da
decisão de suas causas, especialmente quando se trata de delitos graves e quando tenham solicitado
essa informação, permitindo que as opiniões e preocupações das vítimas sejam apresentadas e exami-
nadas em etapas apropriadas das atuações sempre que estejam em jogo seus interesses, sem prejuízo
do acusado e de acordo com o sistema nacional de justiça penal correspondente; prestando assistência
apropriada às vítimas durante todo o processo judicial; adotando medidas para minimizar as perturba-
ções causadas às vítimas, proteger sua intimidade, e caso seja necessário, garantir sua segurança, assim
como de seus familiares e das testemunhas em seu favor, contra todo ato de intimidação e represália
e evitando demoras desnecessárias na resolução das causas e na execução dos mandamentos ou
decretos que concedem indenizações às vítimas. 38
Já a Resolução 60/147-2005, da Assembleia Geral da ONU, 39 considera como vítima pessoas que indi-
vidualmente ou coletivamente sofreram danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento mental,

35
CORTE IDH. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. 2006. Parágrafo 171.
36
ONU. Asamblea General, resolución 40/34, 1985. Declaración sobre los principios fundamentales de justicia para las víctimas de delitos y
del abuso de poder.


37
Ibid. Parágrafos 1 -2.
38
Naciones Unidas, Asamblea General, resolución 40/34 del 29 de noviembre de 1985.Declaración sobre los principios fundamentales de
justicia para las víctimas de delitos y del abuso de poder. Parágrafos 4 -6.
39
Assembléia Geral da ONU. Resoluciónaprobada por la Asamblea General el 16 de diciembre de 2005. Parágrafo12. 2006. Disponível em:
https://undocs.org/es/A/RES/60/147. Acesso em 15 maio 2021.

130
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

perdas econômicas ou deterioração significativa de seus direitos fundamentais, por atos ou omissões
que constituam violações graves ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e ao Direito Interna-
cional Humanitário. Quando apropriado, e conforme a lei nacional, o termo “vítima” também inclui a
família próxima ou os dependentes da vítima e pessoas que sofreram danos diretos ao intervirem em
auxílio às vítimas em sofrimento ou para evitar a vitimização. 40 Uma pessoa será considerada vítima
independentemente de que o perpetrador da violação seja identificado, preso, processado ou conde-
nado e independentemente da relação familiar entre o perpetrador e a vítima.41
A respeito dos recursos contra as violações das normas internacionais de direitos humanos e as viola-
ções do direito internacional humanitário, são direitos da vítima, conforme o direito internacional: a)
acesso igual e efetivo à justiça; b) reparação adequada, efetiva e rápida do dano sofrido; c) acesso à
informação pertinente sobre as violações e os mecanismos de reparação.42
A CADH estabelece uma distinção entre o peticionário e a vítima.      Embora o termo “requerente”
indique quem tem legitimidade para apresentar uma queixa no SIDH, a palavra “vítima” refere-se aos
indivíduos que foram afetados pela violação de seus direitos de acordo com o artigo 47. 43   A Corte IDH
entende que nos casos em que a violação do direito à vida ocorre, o fracasso do Estado em fornecer
soluções eficazes que afeta os familiares transforma-os em “vítimas” indiretas da violação do direito à
proteção judicial, definidos em sentido lato, ou seja, incluindo o direito à reparação.44
No Caso Furlan e familiares vs. Argentina, 45 a Corte IDH destacou que, caso a vítima faça parte de algum
grupo vulnerável, exige-se ainda maior atenção dos Estados. A proteção desses grupos deve repercutir
em condições especiais de acesso à justiça para diligências e celeridade em ações, bem como garan-
tias mínimas no procedimento e ajustes no procedimento e capacitação de pessoas quando envolver
pessoas com deficiência. Fato importante a ser mencionado é que uma sentença de improcedência
não implica violação de direitos humanos, pois o direito à proteção judicial não gera automaticamente
resultados favoráveis à vítima. Para a Corte IDH, a violação ao artigo 25.1 relaciona-se com a falta de
resposta das autoridades judiciais sobre o mérito das alegações e não com o desacordo da suposta
vítima contra a decisão judicial.46

40
CORTE IDH. Caso Las Hermanas Serrano Cruz vs. El Salvador. 2005. Parágrafo 75.


41
Assembléia Geral da ONU. Resolución aprobada por la Assemblea General el 16 de diciembre de 2005. Pár.8.2006. Disponível em: https://
undocs.org/es/A/RES/60/147. Acesso em 15 maio 2021.
42

Princípios e diretrizes básicos sobre o direito das vítimas de violações das normas internacionais de direitos humanos e do direito interna-
cional humanitário a interpor recursos e obter reparações. Resolução 60/140 da Assembléia Geral. VII. Derecho de las víctimas a disponer
de recursos 11. Entre los recursos contra las violacionesmanifiestas de las normas internacionales de derechos humanos ylas violaciones
graves delderecho internacional humanitariofiguran los siguientesderechos de la víctima,
conforme a lo previsto en el derecho internacional:a ) Acceso igual y efectivo a la justicia; b ) Reparaciónadecuada, efectiva y rápida deldañosu-
frido; c ) Acceso a información pertinente sobre las violaciones y los mecanismos de reparación.
43
FONSÊCA, Vitor. Os Direitos Humanos no Processo Civil. São Paulo. Thomson Reuters Brasil. 2018.
44
Ver: Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Povo Saramaka vs. Suriname, 2007. Parágrafo 176-185; Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Caso Herzog e Outros vs. Brasil, 2018.Parágrafo 312.
45
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Furlan e familiares vs. Argentina 2012. Parágrafo 137.
46
CORTE IDH.Caso Chocrón vs. Venezuela, 2011. Parágrafo 128.

131
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

9. ENTENDIMENTO DO DIDH SOBRE AS LEIS DE ANISTIA


EM RELAÇÃO AO DIREITO AO RECURSO EFETIVO

O conceito de direito à verdade tem sido trabalhado pela Corte IDH e pode ser identificado nos Princí-
pios e diretrizes básicos sobre o direito das vítimas de violações das normas internacionais de direitos
humanos e do direito internacional humanitário ao interpor recursos e obter reparações. 47 O docu-
mento está em conformidade com a Resolução 60/14748 aprovada pela Assembleia Geral da ONU e
dispõe sobre a obrigação de respeitar, assegurar e aplicar normas internacionais de direitos humanos e
do direito internacional humanitário.
A aplicação de leis de anistia a perpetradores de graves violações de direitos humanos é considerada
contrária às obrigações estabelecidas na CADH e na jurisprudência da Corte IDH. Quando leis de
anistia são usadas para impedir a investigação dos fatos, a Corte IDH considera que os Estados violam
os artigos 8.1 e 25 da CADH, em concordância com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, em detri-
mento das vítimas e de seus familiares.49
Em casos de execução e desaparecimento forçado, os artigos 8 e 25 da CADH estabelecem que os
familiares das vítimas têm o direito a que essa morte ou desaparecimento seja efetivamente investi-
gado pelas autoridades estatais, que os responsáveis sejam processados e, se for o caso, punidos, e que
os danos que os familiares tenham sofrido sejam reparados.
Nestes casos, a jurisprudência da Corte IDH desenvolveu o conceito de “direito à verdade” como decor-
rência do artigo 25 da CADH. Com isso, toda pessoa, incluindo vítimas de graves violações de direitos
humanos ou seus familiares, como no Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) vs.
Guatemala, 50 tem o direito a conhecer a verdade que envolve um desaparecimento forçado. Os fami-
liares das vítimas e a sociedade devem ser informados sobre o que aconteceu com relação à vítima, por
isso a obrigação do Estado de investigar, julgar e, se for o caso, punir as violações de direitos.
O direito à verdade tem também repercussão no âmbito civil, pois embora a Corte IDH determine, em
geral, a realização de investigações penais dos fatos, a responsabilidade dos Estados não se resume ao
campo penal. 51 No Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) v. Brasil, 52 o Estado brasileiro foi
condenado, por exemplo, a determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas durante a Guerrilha do
Araguaia, e nesse caso, identificar e entregar os restos mortais às famílias, além de ter que capacitar as
Forças Armadas em matéria de direitos humanos.
No SIDH, são reiterados os pronunciamentos sobre a incompatibilidade das leis de anistia com as obri-
gações convencionais dos Estados quando se trata de graves violações dos direitos humanos. Seguindo

47
ONU. 60/147. Basic Principles and Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross Violations of International
Human Rights Law and Serious Violations of International Humanitarian Law. 2005. Disponível em: https://undocs.org/en/A/RES/60/147.
Acesso em: 29 ago. 2021.
48
Na resolução 2003/72 a CIDH pede aos Estados que estudem a possibilidade de aplicar os princípios. O Projeto de Princípios e diretrizes
básicos sobre o direito das vítimas de violações aos direitos humanos de interpor recursos e obter reparações se encontra no documento
E/CN.4/2000/62; em sua resolución 2003/34, a Comissão solicitou a um grupo de trabalho uma versão revisada que ocorreu em 2005
pela resolução nº 60/140, aprovada pela Assembléia Geral da ONU.

Casos em que a Corte aplicou o mesmo entendimento são: Caso Barrios Altos Vs. Perú. 2001;
49

Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile. 2006; Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs Brasil. 2010; Caso Gelman Vs.
Uruguay. 2011. Caso dos Massacres de El Mozote e lugares vizinhos Vs. El Salvador. 2011. Parágrafo 34.
50
CORTE IDH. Caso de los “Niños de la Calle” (VillagránMorales y otros) vs. Guatemala. 1999. Parágrafo 227.


51
FONSÊCA, Vitor. Processo Civil e Direitos Humanos. São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2018.p.66-67.
52
CORTE IDH. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. 2010. Parágrafos 147- 182.

132
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

sua jurisprudência consolidada, a Corte IDH reiterou que a obrigação de investigar, julgar e punir os
responsáveis por tais violações impede que os Estados invoquem: (i) prescrição; (ii) o princípio ne bis
in idem; (iii) leis de anistia; assim como (iv) qualquer disposição análoga ou excludente de responsabili-
dade similar, para eximir-se de seu dever de investigar e punir os responsáveis. 53
No âmbito do sistema universal, em seu Relatório ao Conselho de Segurança, intitulado “O Estado de
Direito e a justiça de transição nas sociedades que sofrem ou sofreram conflitos”, o Secretário-Geral
das Nações Unidas salientou que os acordos de paz aprovados pelas Nações Unidas nunca podem
prometer anistias por crimes de genocídio, de guerra, ou de lesa-humanidade, ou por infrações graves
dos direitos humanos, 54 entendimento reiterado pela Corte IDH em diversos casos, a saber: Peru
(Barrios Altos e La Cantuta), Chile (Almonacid Arellano e outros), Brasil (Gomes Lund e outros e Herzog
e outros), Uruguai (Gelman) e El Salvador (Massacre de El Mozote e lugares vizinhos).
Segundo o Comentário Geral nº 31 do CDH55 a respeito do artigo 2 do PIDCP, o parágrafo 3º do artigo 2º
exige que os Estados Partes outorguem uma compensação às pessoas cujos direitos do Pacto tenham
sido violados. Caso não se outorgue uma compensação aos indivíduos, a obrigação de proporcionar
um recurso efetivo, que é fundamental para a eficácia do artigo 2º. 3 não se cumpre. Para além da
reparação explícita exigida no artigo 9º, 5 e no artigo 14, 6, o Comitê considera que o PIDCP impõe
de uma maneira geral uma indenização adequada e diversas formas de compensação, envolvendo a
restituição, a reabilitação e medidas de satisfação, tais como pedidos de desculpa públicos, memoriais
públicos, garantias de não repetição e mudanças das leis relevantes e práticas pertinentes, bem como
submeter à justiça os autores de violações de direitos humanos.
Por isso, quando funcionários públicos ou agentes do Estado cometem violações dos direitos do PIDCP,
os Estados Partes não podem isentá-los da sua responsabilidade pessoal, concedendo anistias e imuni-
dades. Nenhuma posição oficial pode ser invocada para justificar que pessoas acusadas deste tipo de
violações fiquem imunes de responsabilização jurídica. Outros impedimentos para o estabelecimento
da responsabilidade jurídica devem ser igualmente eliminados, como a defesa da obediência a ordens
superiores ou os períodos excessivamente curtos de prescrição nos casos em que essas limitações são
aplicáveis. Para o CDH, os Estados Partes devem também prestar assistência mútua para submeter à
justiça as pessoas que sejam suspeitas de ter cometido atos de violação do PIDCP que são puníveis ao
abrigo do direito interno e do direito internacional. 56

10.  CONDENAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO POR


VIOLAÇÃO DO ART. 25 DA CADH NA CORTE IDH:

A Corte IDH condenou o Estado brasileiro por violar o direito à proteção judicial e ao recurso efetivo,
destacando-se o descumprimento do dever de investigar, processar e punir os responsáveis por viola-
ções de direitos humanos, em todos os nove casos já julgados contra o país. Os casos julgados demons-
tram que, em muitas situações, obstáculos de ordem interna impedem uma adequada resposta estatal,
a exemplo de causas extintivas da punibilidade como a anistia e a prescrição.


53
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Herzog vs. Brasil. 2018. Parágrafos 258-294.
54
ONU. Relatório do Secretário-Geral ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Estado de direito e a justiça de transição nas
sociedades que sofrem ou sofreram conflitos. U.N. Doc. S/2004/616, 3 de agosto de 2004. Parágrafo 10.
55
ONU. Observação Geral nº 31 do Comitê de Direitos Humanos da ONU. 2004. Parágrafos 16-19.
56
ONU. Comentário geral nº 31. 2004. Parágrafos 16-19.

133
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Em 2006, a Corte IDH julgou o Caso Ximenes Lopes vs Brasil, 57 resultando na primeira condenação do
Estado brasileiro no SIDH. O caso envolve a responsabilização do Estado pela violação dos direitos do
senhor Damião Ximenes Lopes, portador de deficiência mental, pelas condições desumanas e degra-
dantes da sua hospitalização, alegados golpes e ataques contra a sua integridade pessoal por parte dos
funcionários da Casa de Repouso Guararapes, sua morte enquanto se encontrava ali submetido a trata-
mento psiquiátrico, bem como pela suposta falta de investigação e garantias judiciais que caracterizam
seu caso e o mantém na impunidade. A vítima foi internada para receber tratamento psiquiátrico em
um centro de atendimento psiquiátrico privado, que operava no âmbito do sistema público de saúde do
Brasil (SUS), no Município de Sobral, Estado do Ceará. O senhor Damião Ximenes Lopes faleceu na casa
de repouso, após três dias de internação. Os fatos deste caso foram agravados pela situação de vulne-
rabilidade em que se encontram as pessoas portadoras de deficiência mental, bem como pela especial
obrigação do Estado de oferecer proteção às pessoas que se encontram sob o cuidado de centros de
saúde que integram o SUS. Em sua decisão, a Corte IDH reconheceu a responsabilidade internacional
do Estado pela violação dos direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e
5.2 da CADH, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes. E declarou que o Estado violou, em
detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, familiares do senhor
Damião Ximenes Lopes, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial consagrados nos artigos
8.1 e 25.1 da CADH.
O Caso Escher e outros vs. Brasil, 58 julgado em 2009, envolveu interceptação e monitoramento ilegal
das linhas telefônicas de membros das organizações ADECON e COANA, realizados pela Polícia Militar
do Estado do Paraná, entre abril e junho de 1999, a divulgação das conversas telefônicas, bem como a
denegação de justiça e da reparação adequada. O MST e a CPT (Comissão Pastoral da Terra) repor-
taram o fato ao Ministério Público, que por sua vez enviou notitia criminis ao Tribunal de Justiça, que
deflagrou uma investigação. O próprio Tribunal, posteriormente, arquivou a investigação no tocante à
interceptação telefônica e determinou que os autos fossem encaminhados à primeira instância para
análise da conduta do ex-secretário de segurança. O Ministério Público o denunciou e ele foi conde-
nado em primeira instância, porém a decisão foi revertida no tribunal. No tocante à “jurisdição penal”,
a Corte IDH observou que o Estado brasileiro deixou de proceder às investigações necessárias para
apurar o vazamento dos trechos das conversas interceptadas, e que a falta de resposta estatal tem
relação direta com o princípio da efetividade e deve caracterizar o desenvolvimento de tais investiga-
ções. Reconheceu, também, que as autoridades estatais não atuaram com a devida diligência (§206).
O Estado brasileiro foi condenado pela violação dos artigos 1º (dever de respeitar direitos), 8º (garantias
judiciais), 11 (direito à honra e à dignidade), artigo 16 (direito à liberdade de associação) e 25 (proteção
judicial), da CADH. 59
No caso Garibaldi vs. Brasil60, também julgado em 2009, a Corte IDH pronunciou-se sobre o caso ocor-
rido no município de Querência do Norte/PR, onde um grupo aproximado de 20 pistoleiros invadiu
uma gleba de terras ocupada por trabalhadores do Movimento Sem Terra (MST) para promover uma
operação extrajudicial de despejo, ocasião em que Sétimo Garibaldi, atingido por disparo de arma de
fogo, foi morto em consequência de uma hemorragia, em 27 de novembro de 1998. Na mesma data,
a Polícia instaurou inquérito policial para apurar a morte de Garibaldi. Em 12 de maio de 2004, o Minis-
tério Público solicitou o arquivamento da investigação, o qual foi homologado poucos dias depois, em
18 de maio. Em setembro de 2004, Iracema Garibaldi impetrou mandado de segurança pleiteando o
desarquivamento do inquérito, ao argumento de que a decisão judicial teria violado o dever de funda-


57
CORTE IDH. Caso Ximenes Lopes Vs Brasil. 2006.
58
CORTE IDH. Caso Escher e outros vs. Brasil. 2009. Parágrafo 2.
59
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos na jurisprudência internacional: sentenças, opiniões consultivas, decisões e relató-
rios internacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 353.
60
CORTE IDH. Caso Garibaldi vs. Brasil. 2009. Parágrafos 2, 17, 21, 24 e 120.

134
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

mentação das decisões judiciais, porém o Tribunal de Justiça do Paraná não reconheceu direito líquido
e certo a favor da impetrante. Em 2009, o Ministério Público solicitou o desarquivamento do inquérito,
sob a alegação de que dispunha de novas provas, o que foi autorizado pelo Poder Judiciário. Em sede de
habeas corpus, o Tribunal de Justiça do Paraná trancou a investigação, decisão que foi confirmada pelo
Superior Tribunal de Justiça (no ano de 2016). Na sentença, a Corte IDH fixou importantes premissas
a respeito das obrigações processuais positivas, dentre elas: a) a de que a obrigação de garantia não
se resume a prevenir, senão também investigar violações de direitos humanos, buscando, se possível,
restabelecer o direito infringido e, se for o caso, a reparação dos danos decorrentes de violações aos
direitos humanos (§112); b) que o dever de investigar é uma obrigação de meios e não de resultado – e
que por investigar não há “uma simples formalidade condenada de antemão a ser ineficaz” (§113); c)
que o Estado deve promover, de ofício e sem demora, uma investigação séria, imparcial e efetiva, e que
“esta investigação deve ser realizada por todos os meios legais disponíveis e orientada à determinação
da verdade” (§114). Ao relembrar as vítimas (no caso familiares), a Corte IDH reconheceu que elas têm
direito de saber o que e como ocorreram os fatos, bem assim, de saber quem são os responsáveis
pela prática censurada, devendo, com base no artigo 8, da CADH, “contar com amplas possibilidades
de ser ouvidos e atuar nos respectivos processos, em busca tanto do esclarecimento dos fatos e da
sanção dos responsáveis, com uma devida reparação”. (§116) Reconhecendo a obrigação internacional
de proteção, a Corte afirmou que o Estado descumpriu a sua obrigação, esclarecendo que questões
de ordem interna não podem fundamentar atrasos ou dilações indevidas, constituindo a morosidade
“denegação da justiça em prejuízo dos familiares de Sétimo Garibaldi.” (§139) No tocante à impuni-
dade, ficou registrado que ela “(a impunidade) propicia a repetição crônica das violações de direitos
humanos,” conforme §141. Na sentença, a Corte reconheceu a importância de desarquivamento do
inquérito, sublinhando porém a necessidade de realização efetiva de diligências tendentes ao esclare-
cimento dos fatos. Além destas providências, o Tribunal também condenou o Estado ao pagamento de
danos materiais e imateriais aos familiares das vítimas. O Estado brasileiro foi condenado pela violação
dos artigos 1º (dever de respeitar direitos), 2º (dever de adotar disposições de direito interno), 7º (direito
à liberdade pessoal), e 8º (garantias judiciais), da CADH.61
No caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, julgado em 2010,62 foi identificado
que entre abril de 1972 e janeiro de 1975, um contingente de milhares de integrantes do Exército, da
Marinha, da Força Aérea e das Polícias Federal e Militar empreendeu repetidas campanhas de infor-
mação e repressão contra os membros da Guerrilha do Araguaia. Denominou-se Guerrilha do Araguaia
ao movimento de resistência ao regime militar integrado por alguns membros do novo Partido Comu-
nista do Brasil, movimento que propôs-se a lutar contra o regime, “mediante a construção de um
exército popular de libertação”. Ocorre que no início de 1972, às vésperas da primeira expedição do
Exército à região do Araguaia, a Guerrilha contava com cerca de 70 pessoas, em sua maioria jovens. Nas
primeiras campanhas, os guerrilheiros detidos não foram privados da vida, nem desapareceram, mas
os integrantes do Exército receberam ordem de deter os prisioneiros e de “sepultar os mortos inimigos
na selva, depois de sua identificação” e para isso, eram “fotografados e identificados por oficiais de
informação e depois enterrados em lugares diferentes na selva”. Contudo, após uma “ampla e profunda
operação de inteligência, planejada como preparativo da terceira e última investida de contra-insur-
gência”, houve uma mudança de estratégia das forças armadas. Em 1973, a Presidência da República,
encabeçada pelo general Médici, assumiu diretamente o controle sobre as operações repressivas
quando a ordem oficial passou a ser de eliminação dos capturados quando o governo militar impôs
silêncio absoluto sobre os acontecimentos do Araguaia proibindo a imprensa de divulgar notícias sobre
o tema, enquanto o Exército negava a existência do movimento.63

61
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos Humanos na Jurisprudência Internacional: sentenças, opiniões consultivas, decisões e relató-
rios internacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 362.
62
CORTE IDH. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs Brasil. 2010.
63
CORTE IDH. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs Brasil. 2010. Parágrafo 89.

135
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A Corte IDH analisou, no presente caso, se a Lei de Anistia sancionada em 1979 poderia manter seus
efeitos jurídicos a respeito de graves violações de direitos humanos, uma vez que o Estado obrigou-se
internacionalmente a partir da ratificação da CADH. Declarou a Corte IDH que as disposições da Lei
de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos
são incompatíveis com a CADH, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um
obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos
responsáveis. Que o Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação
dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade
pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da CADH. Também, que o Estado descumpriu a obrigação
de adequar seu direito interno à CADH, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do
mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia
a respeito de graves violações de direitos humanos. E que o Estado é responsável pela violação dos
direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da CADH, pela falta de
investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsá-
veis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada.
O Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil,64 julgado em 2016, trata situação de
trabalho escravo largamente explorado em uma fazenda no interior do estado do Pará, no município
de Sapucaia. Em março de 1997, José da Costa Oliveira e José Ferreira dos Santos prestaram declaração
perante a Polícia Federal em Marabá, na qual relataram terem trabalhado e escapado da Fazenda Brasil
Verde. Na fazenda, os trabalhadores eram ameaçados de morte caso denunciassem o gato ou o fazen-
deiro ou se tentassem fugir, e que era prática comum esconder os trabalhadores quando o Ministério
do Trabalho realizava fiscalizações. Com base nessa denúncia, o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho
realizou uma nova visita de fiscalização à Fazenda Brasil Verde e concluiu em seu relatório que os traba-
lhadores se encontravam alojados em barracões cobertos de plástico e palha nos quais havia uma “total
falta de higiene”, vários trabalhadores eram portadores de doenças de pele, não recebiam atenção
médica e a água que ingeriam não era apta para o consumo humano, todos os trabalhadores haviam
sofrido ameaças, inclusive com armas de fogo, e declararam não poder sair da Fazenda. No momento
da fiscalização foram encontradas 81 pessoas, sendo que aproximadamente 45 não possuíam carteiras
de trabalho (CTPS). A Corte considerou que o Brasil, por ser signatário de documentos internacio-
nais que protegem contra a escravidão e suas formas análogas, que constituem inclusive obrigação
erga omnes, teria o dever de iniciar ex officio investigação destinada a apurar eventual irregularidade
e que, não obstante, deveria agir com a devida diligência para prevenir que os fatos permanecessem
em situação de impunidade (§ 362). Afirmou que a demora prolongada na conclusão das investigações
poderia resultar “violação das garantias judiciais” (§ 369), e que o artigo 25.1 da Convenção estabelece
que os Estados devem oferecer a todas as pessoas sob sua jurisdição um recurso judicial efetivo contra
atos violadores de direitos fundamentais (§ 391). O Tribunal asseverou que o instituto da prescrição é
incompatível com os crimes ligados à escravidão, que se trata de um delito de Direito Internacional,
cuja proibição tem status de jus cogens. Com isso, a Corte IDH declarou Estado responsável por violar o
direito à proteção judicial, previsto no artigo 25 da CADH, em prejuízo dos trabalhadores identificados
pela Corte no presente litígio.
O Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, 65 julgado em 2017, refere-se às falhas e à demora na investi-
gação e punição dos responsáveis pelas supostas execuções extrajudiciais de 26 pessoas no âmbito
das incursões policiais na Favela Nova Brasília feitas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro em outubro
de 1994 e maio de 1995. Ainda na incursão policial, três mulheres, duas delas menores, foram vítimas
de tortura e atos de violência sexual por parte de agentes policiais. As mortes foram justificadas pelas
autoridades policiais mediante o levantamento de “autos de resistência à prisão”. A investigação da

64
CORTE IDH. Caso trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Brasil. 2016.


65
CORTE IDH. Caso Favela Nova Brasília vs Brasil. 2017.

136
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

primeira incursão não avançou entre os anos de 1995 e 2002 (§129), ao passo que a investigação rela-
tiva à segunda incursão não foi movimentada com diligência relevante até o ano de 2000 (§173). No
julgamento em questão, a Corte reiterou que os Estados são obrigados a proporcionar às vítimas de
violações de direitos humanos, recursos efetivos, e que este dever de “garantir” pressupõe “obrigação
positiva de adoção, por parte do Estado, de uma série de condutas, dependendo do direito substantivo
específico de que se trate.” (§175). Reforçou que a obrigação de investigar é uma obrigação de meios e
não pode resultar em mera formalidade, sendo necessário que os atores nela envolvidos lancem mão
de “meios legais disponíveis” e que ela seja feita em prazo razoável. Sublinhou a necessidade de que
os órgãos encarregados da investigação sejam independentes dos servidores envolvidos no incidente
(§187). Asseverou que a falta de independência concreta dos investigadores (a entidade encarregada
de conduzir as investigações era a mesma instituição que realizou a incursão do ano de 1994), compro-
meteu a seriedade da investigação (§206). Assim, o Tribunal concluiu que o Estado deve conduzir
eficazmente a investigação “com a devida diligência e em prazo razoável, para identificar, processar e,
caso seja pertinente, punir os responsáveis” (§ 292). O Estado brasileiro foi condenado pela violação dos
artigos 1º (dever de respeitar direitos), 8º (garantias judiciais), 11 (direito à honra e à dignidade), artigo 16
(direito à liberdade de associação) e 25 (proteção judicial), da CADH.66
O caso Povo Indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil, julgado em 2018,67 trata da violação do direito
à propriedade coletiva e à integridade pessoal do Povo Indígena Xucuru, em consequência da demora
de mais de 16 anos, entre 1989 e 2005, do processo administrativo de reconhecimento, titulação,
demarcação e delimitação de suas terras e territórios ancestrais e da suposta demora na desintrusão
total dessas terras e territórios, para que o referido povo indígena pudesse exercer pacificamente esse
direito. O caso também se relaciona à violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial,
em consequência do alegado descumprimento do prazo razoável no processo administrativo respec-
tivo, bem como da demora em resolver ações civis iniciadas por pessoas não indígenas com relação
à parte das terras. A Corte IDH considerou o Estado responsável pela violação do direito à garantia
judicial de prazo razoável, previsto no artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em
relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, pela violação do direito à proteção judicial, bem como do
direito à propriedade coletiva, previsto nos artigos 25 e 21 da CADH, em relação ao artigo 1.1 do mesmo
instrumento, em detrimento do Povo Indígena Xucuru.
O Caso Herzog e outros vs Brasil,68 também julgado em 2018, tratou dos fatos que envolvem os desdo-
bramentos da detenção arbitrária do jornalista Vladmir Herzog na sede do DOI/CODI, em São Paulo,
ao qual compareceu para depor em 25 de outubro de 1975. Durante a tarde deste dia, foi torturado e
assassinado pelos membros do DOI/CODI, que o mantinham preso. Nesse mesmo dia, o Comando do
II Exército divulgou publicamente, mediante comunicado, que Vladimir Herzog se suicidara, enforcan-
do-se com uma tira de pano. Os responsáveis pela prática criminosa foram anistiados pela lei 6.683/79.
A Corte IDH concluiu que a morte de Herzog aconteceu como parte de um plano e ataque contra
os opositores da ditadura (§241) e portanto deve ser considerado crime contra a humanidade, com
status de norma imperativa de direito internacional – o que traz como consequência a imposição de
que o Estado investigue, julgue e puna os responsáveis. Relembrando o caso Gomes Lund e outros,
reafirmou a incompatibilidade da anistia com crimes contra a humanidade, por constituir obstáculo
a que se identifique e puna responsáveis por sua prática (§251). O Tribunal concluiu, outrossim, que a
falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pelos atos contra Herzog violou direitos
às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos os artigos 8.1 e 25.1, da CADH e os artigos 1ª, 6º e 8º,

66
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos na jurisprudência internacional: sentenças, opiniões consultivas, decisões e re-
latórios internacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 353.


67
CORTE IDH. Caso Povo Indígena Xucurú e seus membros vs Brasil. 2018.
68
CORTE IDH. Caso Herzog e outros vs. Brasil. 2018. Parágrafos 169-174.

137
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, por não ter prevenido e punido a Tortura,
e artigo 7º, da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (§312).
O Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil,69 julgado
em 15 de julho de 2020, trata de explosão ocorrida em uma fábrica de fogos de artifício, em Santo
Antônio de Jesus/BA, da qual resultaram 64 mortes e 6 sobreviventes, entre elas 22 crianças. A fábrica
consistia em um conjunto de tendas montadas em área de pasto, não havendo espaço separado para
descanso, alimentação e higiene. Grande parte dos trabalhadores eram mulheres, afrodescendentes,
vivendo em condição de pobreza, e contratados informalmente. Trabalhavam sem equipamentos
de proteção individual, treinamento ou capacitação. Não obstante, trabalhavam na fábrica também
crianças. Apurou-se que a fábrica, embora contasse com autorização para funcionar por parte do Minis-
tério do Exército, não tinha sido ainda objeto de fiscalização. Após a explosão, um integrante do Exército
compareceu ao local e constatou o manejo e armazenamento de explosivos de modo inadequado. A
Polícia Civil constatou que a causa determinante da explosão foi a falta de segurança. Em 12 de abril de
1999, o Ministério Público ofereceu denúncia contra os envolvidos, acusando-os da prática do crime de
homicídio. Em outubro de 2010, os réus foram julgados, sendo cinco deles condenados e outros três
absolvidos. Em 2018, os condenados impetraram habeas corpus, e, em 2019, o Tribunal de Justiça da
Bahia declarou extinta a punibilidade de um dos envolvidos, pela prescrição.
A Corte IDH, ao apreciar a demanda, reafirmou que o direito à vida exerce um papel fundamental
na CADH, dela advindo obrigações negativas e positivas, nestas compreendidas as medidas a serem
adotadas para proteger e preservar este direito, inclusive “[...] adotar as medidas necessárias para criar
uma estrutura normativa adequada que dissuada qualquer ameaça ao direito à vida.” (§116) Sublinhou
que a Estado tem o dever de regulamentar, supervisionar e fiscalizar a prática de atividades perigosas
(§118), e que “as garantias judiciais compreendidas no artigo 8.1 da Convenção estão intimamente vincu-
ladas ao devido processo legal, o qual ‘abrange as condições que se devem cumprir para assegurar a
adequada defesa daqueles cujos direitos ou obrigações estão sob consideração judicial’” (§216). A Corte
IDH reconheceu que houve violação aos artigos 1.1, 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 8
(garantias judiciais) 19 (direitos das crianças), 24 (igualdade perante a lei), e 25 (recurso efetivo).
No Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil70, a controvérsia se relaciona à situação de impunidade em
que se encontrou a morte de Márcia Barbosa de Souza, ocorrida em junho de 1998 por parte do então
deputado estadual Aércio Pereira de Lima. A Comissão determinou que a imunidade parlamentar,
nos termos definidos na norma interna provocou um atraso no processo penal de caráter discrimina-
tório, que o prazo de mais de 9 anos que durou a investigação e que o processo penal pela morte de
Márcia Barbosa de Souza resultaram em uma violação à garantia de prazo razoável e uma denegação
de justiça, que não foram sanadas as deficiências probatórias e nem foram esgotadas todas as linhas
de investigação, sendo a situação resultante incompatível com o dever de investigar os fatos com a
devida diligência.
A Corte IDH entendeu que houve a aplicação indevida da imunidade parlamentar, falta de devida dili-
gência na investigação sobre os demais suspeitos, violação da garantia do prazo razoável e ainda, a
utilização de estereótipos de gênero nas investigações. Assim, a Corte IDH definiu que em casos de
violência contra a mulher, as obrigações gerais previstas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana
se complementam e se reforçam com as obrigações provenientes da Convenção de Belém do Pará. 71
Além disso, a CADH obriga os Estados partes a utilizar a devida diligência para prevenir, sancionar e

69
CORTE IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil. 2018.

70
CORTE IDH, Caso Barbosa de Souza e outros vs Brasil, 2021.


71
CORTE IDH, Caso Barbosa de Souza e outros vs Brasil, 2021. Parágrafo 129.

138
DIREITO AO RECURSO EFETIVO

erradicar a violência contra a mulher, de modo que, diante de um ato de violência contra uma mulher,
resulta particularmente importante que as autoridades responsáveis pela investigação a conduzam
com determinação e eficiência, levando em consideração o dever da sociedade de rejeitar a violência
contra as mulheres e as obrigações do Estado de erradicá-la e de oferecer confiança às vítimas nas
instituições estatais para sua proteção. A Corte IDH definiu que o Estado é responsável pela violação
dos direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial, contidos nos artigos
8.1, 24 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação às obrigações de respeitar
e garantir os direitos sem discriminação e ao dever de adotar disposições de direito interno, estabele-
cidos nos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e em relação às obrigações previstas no artigo 7.b da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em prejuízo de
M.B.S. e S.R.S.

139
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

Lara Santos Zangerolame Taroco

1. INTRODUÇÃO

O direito às garantias judiciais previsto no artigo 8 da CADH remete ao direito ao devido processo
legal, cujas origens são atribuídas à Magna Carta, de 12151, ao desenvolvimento do constitucionalismo
moderno e a limitação dos poderes do Estado.
Posteriormente elaborado como doutrina do devido processo legal, nos moldes da jurisprudência
norte-americana2 , esse direito é previsto de forma direta ou indireta em diversos instrumentos norma-
tivos internacionais e nacionais, assim como no direito brasileiro. A CF de 1824 foi a primeira a prever o
direito ao devido processo legal no Brasil, ainda de forma imprecisa e adstrito ao direito penal. Daí em
diante todas as constituições passaram a consagrá-lo. A CRFB/88, no seu art. 5°, inciso LIV, então prevê:
“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
A DUDH, de 1948, situa o devido processo legal como o direito de toda pessoa a ser “ouvida publica-
mente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e
obrigações ou para o exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal”.
Como afirmado pela própria Corte IDH na Opinião Consultiva nº 9 de 1987: “esse artigo 8 reconhece
o chamado devido processo legal, que abarca as condições que devem se cumprir para assegurar a
adequada defesa daqueles cujos direitos ou obrigações estão sob consideração judicial”3.
O artigo 8 reúne um conjunto de requisitos a serem observados por instâncias judiciais para assegurar
um julgamento adequado, no qual o acusado possa ser ouvido, havendo observância aos parâmetros
legais anteriormente estabelecidos. O dispositivo consagra o direito à defesa técnica, o direito de não
produzir prova contra si mesmo, o direito de petição, o princípio do juiz natural, dentre outros, afir-
mados pela Corte IDH:
Constitui um princípio básico relativo à independência da magistratura que toda pessoa tem direito
a ser julgada por tribunais ordinários com respeito aos procedimentos legalmente estabelecidos.
Estes tribunais devem ser competentes, independentes e imparciais, de acordo com o artigo 8.1 da
Convenção Americana4

1
JUROW, Keith. Untimely Thoughts: a reconsideration of the origins of Due Processo of Law. American Journal of Legal History, v. 19, n. 4,
1975. Disponível em: https://academic.oup.com/ajlh/article-abstract
2
CHAPMAN, Nathan S; MCCONNELL, Michael W. Due Process as Separation of Powers. Yale Law Jounal, V. 121, 2012. Disponível em: https://
digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=5516&context=ylj; Acesso em: 05 maio 2021.
3
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinião Consultiva Consultiva OC-9/87, 1987, parágrafo 28.
4
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ivcher Bronstein vs. Peru, julgamento de 06 de fevereiro de 2001b, Série
C, nº 74, parágrafo 112.

140
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

De acordo com a jurisprudência da Corte IDH, em entendimento firmado no caso Castillo Petruzzi y
otros vs. Peru5, e reforçado nos casos Bámaca Velásquez. vs. Guatemala6 e Tribunal Constitucional vs.
Peru7, as formalidades e procedimentos compõem o sistema processual, constituindo:
(...) um meio para realizar a justiça e [...] esta não pode ser sacrificada em razão de meras formalidades.
Dentro de certos limites de temporalidade e razoabilidade, certas omissões ou atrasos na observância
dos procedimentos podem ser dispensados, se for conservado um adequado equilíbrio entre a justiça
e a segurança jurídica8.
A Corte ressaltou também que o artigo 8 “não contém um recurso judicial propriamente dito, mas sim
o conjunto de requisitos que devem ser observados, nas instâncias processuais, para que possa se falar
de verdadeiras e próprias garantias judiciais, conforme a Convenção”9.
É um direito de especial importância, como destaca O’Donnell, pois junto com o direito ao recurso
efetivo, “tutela todos os demais direitos da pessoa”10. Daí seu caráter estruturante, isto é, basilar para o
sistema jurídico e também substancial, enquanto direito a um julgamento justo e adequado.
Como será analisado a seguir, essa condição basilar resulta em um rol de garantias judiciais aplicáveis ao
processo cível, penal e administrativo, indispensáveis para a proteção de direitos.

2. PREVISÃO LEGAL

2.1 Normativa Internacional

2.1.1 Declaração Universal dos Direitos Humanos, 194811

Artigo 10
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um
tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer
acusação criminal contra ele.
Artigo 11

5
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Corte IDH. Caso Castillo Petruzzi e outros vs. Peru. Sentença de 30 de maio
de 1999. Série C No. 52, parágrafo 61.
6
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala. Sentença de 25 de novembro de
2000. Série C Nº 70, parágrafo 96.
7
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Corte IDH. Caso do Tribunal Constitucional vs. Peru. Sentença de 31 de janei-
ro de 2001. Série C Nº 71, parágrafo 45.
8
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Corte IDH. Caso Castillo Petruzzi e outros vs. Peru. Sentença de 30 de maio
de 1999. Série C No. 52, parágrafo 61.
9
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinião Consultiva Consultiva OC-9/87, 1987, parágrafo 28.
10
O’DONNELL, Daniel. Derecho Internacional de los Derechos Humanos: normativa, jurisprudencia y doctrina de los Sistemas Universal
e Interamericano. 2ª ed. Oficina en México del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. México: Tribunal
Superior de Justicia del Distrito Federal, 2012, p.320.
11
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral
das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948.

141
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua
culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam
delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que
aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

2.1.2 Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem – Declaração


Americana, 194812.

Artigo XVIII
Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos.  Deve poder contar,
outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridade
que violem, em seu prejuízo, qualquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.
Artigo XXVI
Parte-se do princípio que todo acusado é inocente, até provar-se-lhe a culpabilidade.

2.1.3 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), 1992 13

Artigo 14
1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito
de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e
imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra
ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poderão
ser excluídos de parte da totalidade de um julgamento, quer por motivo de moral pública, de ordem
pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida
privada das Partes o exija, que na medida em que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça,
em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entre-
tanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá torna-se pública, a menos que o
interesse de menores exija procedimento oposto, ou processo diga respeito à controvérsia matrimo-
niais ou à tutela de menores.
2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa.
3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as
seguintes garantias:
a) De ser informado, sem demora, numa língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e
dos motivos da acusação contra ela formulada;


12
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração Americana de Direitos e
Deveres do Homem. Aprovada na Nona Conferência Internacional Americana, Bogotá, 1948.
13
BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação.
Brasília, DF: Presidência da República, 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em:
30 abr. 2021.

142
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

b) De dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com
defensor de sua escolha;
c) De ser julgado sem dilações indevidas;
d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de
sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre
que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex-offício gratuitamente, se
não tiver meios para remunerá-lo;
e) De interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e de obter o comparecimento e o
interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação;
f) De ser assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua
empregada durante o julgamento;
g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
4. O processo aplicável a jovens que não sejam maiores nos termos da legislação penal em conta a idade
dos menos e a importância de promover sua reintegração social.
5. Toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da
pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.
6. Se uma sentença condenatória passada em julgado for posteriormente anulada ou se um indulto for
concedido, pela ocorrência ou descoberta de fatos novos que provem cabalmente a existência de erro
judicial, a pessoa que sofreu a pena decorrente dessa condenação deverá ser indenizada, de acordo
com a lei, a menos que fique provado que se lhe pode imputar, total ou parcialmente, a não revelação
dos fatos desconhecidos em tempo útil.
7. Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absorvido ou condenado
por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país.
Artigo 15
1. ninguém poderá ser condenado por atos omissões que não constituam delito de acordo com o direito
nacional ou internacional, no momento em que foram cometidos. Tampouco poder-se-á impor pena
mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a
lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se.
2. Nenhuma disposição do presente Pacto impedirá o julgamento ou a condenação de qualquer indi-
víduo por atos ou omissões que, momento em que forma cometidos, eram considerados delituosos de
acordo com os princípios gerais de direito reconhecidos pela comunidade das nações.

2.1.4 Convenção Americana de Direitos Humanos, 196914

Artigo 8º
1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um
juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração

14
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Assinada na Conferência Especiali-
zada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/
basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 16 maio 2021

143
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obriga-
ções de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove
legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes
garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender
ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua
escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou
não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor
dentro do prazo estabelecido pela lei;
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento,
como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;
h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo
pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça

2.1.5 Os princípios básicos relativos à independência judicial aprovados pela Assem-


bleia Geral da ONU, 198515

Independência da magistratura

1. A independência da magistratura será garantida pelo Estado e consagrada na Constituição ou na


legislação do país. É dever de todas as instituições, governamentais e outras, respeitar e acatar a inde-
pendência da magistratura.
2. Os juízes deverão decidir todos os casos que lhes sejam submetidos com imparcialidade, com base
nos factos e em conformidade com a lei, sem quaisquer restrições ou influências, aliciamentos, pressões,
ameaças ou intromissões indevidas, diretas ou indiretas, de qualquer sector ou por qualquer motivo.


15
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Adotados pelo Sétimo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Trata-
mento dos Delinquentes, realizado em Milão de 26 de agosto a 6 de setembro de 1985 e endossados pela Assembleia Geral das Nações
Unidas nas suas resoluções 40/32, de 29 de novembro de 1985, e 40/146, de 13 de dezembro de 1985 https://www.unodc.org/documents/
justice-and-prison-reform/projects/UN_Standards_and_Norms_CPCJ_-_Portuguese1.pdf . Acesso em: 25 out. 2022.

144
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

3. A magistratura terá jurisdição sobre todas as questões de natureza judicial e terá autoridade exclusiva
para decidir se um caso que lhe tenha sido submetido para decisão é da sua competência nos termos
definidos por lei.
4. Não haverá quaisquer interferências indevidas ou injustificadas no processo judicial e as decisões dos
tribunais não serão sujeitas a revisão. Este princípio é aplicável sem prejuízo da revisão judicial ou da
possibilidade de atenuação ou comutação, efetuadas por autoridades competentes, de penas impostas
pelos magistrados, em conformidade com a lei.
5. Todas as pessoas têm o direito de serem julgadas por tribunais comuns, de acordo com os processos
legalmente estabelecidos. Não serão criados tribunais que não 3 apliquem as normas processuais devi-
damente estabelecidas em conformidade com a lei, para exercer a competência que pertença normal-
mente aos tribunais comuns ou judiciais.
6. Em virtude do princípio da independência da magistratura, os magistrados têm o direito e o dever
de garantir que os processos judiciais são conduzidos de forma justa e que os direitos das partes
são respeitados.
7. Cada Estado Membro tem o dever de proporcionar os recursos necessários para que a magistratura
possa desempenhar devidamente as suas funções.
10. As pessoas selecionadas para o exercício da magistratura deverão ser íntegras e competentes,
dispondo da formação ou das qualificações jurídicas adequadas. Qualquer método de seleção de
magistrados deverá conter salvaguardas contra as nomeações por motivos indevidos. A seleção dos
juízes deverá ser efetuada sem qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, religião, opinião
política ou outra, origem nacional ou social, posição económica, nascimento ou condição; contudo, a
exigência de que os candidatos a cargos judiciais sejam nacionais do país em questão não será consi-
derada discriminatória.
11. A duração do mandato dos juízes e a sua independência, segurança, remuneração adequada, condi-
ções de trabalho, pensões e idade de reforma serão adequadamente garantidas por lei.
12. A inamovibilidade dos juízes, nomeados ou eleitos, será garantida até que atinjam a idade de reforma
obrigatória ou que expire o seu mandato, se existir tal possibilidade.
13. A promoção dos juízes, caso tal sistema exista, deve basear-se em fatores objetivos, em particular a
capacidade profissional, a integridade e a experiência.
14. A distribuição de processos aos juízes, no âmbito do tribunal a que pertençam, é um assunto interno
da administração judicial.

2.1.6 Convenção sobre os direitos das crianças, 199016

Artigo 40
1. Os Estados Partes reconhecem o direito de toda criança a quem se alegue ter infringido as leis
penais ou a quem se acuse ou declare culpada de ter infringido as leis penais de ser tratada de modo
a promover e estimular seu sentido de dignidade e de valor e a fortalecer o respeito da criança pelos
direitos humanos e pelas liberdades fundamentais de terceiros, levando em consideração a idade da
criança e a importância de se estimular sua reintegração e seu desempenho construtivo na sociedade.

BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Brasília, DF: Presidência
16

da República, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em: 17 abr. 2021.

145
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2. Nesse sentido, e de acordo com as disposições pertinentes dos instrumentos internacionais, os


Estados Partes assegurarão, em particular:
a) que não se alegue que nenhuma criança tenha infringido as leis penais, nem se acuse ou declare
culpada nenhuma criança de ter infringido essas leis, por atos ou omissões que não eram proibidos
pela legislação nacional ou pelo direito internacional no momento em que foram cometidos;
b) que toda criança de quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse de ter infringido
essas leis goze, pelo menos, das seguintes garantias:
i) ser considerada inocente enquanto não for comprovada sua culpabilidade conforme a lei;
ii) ser informada sem demora e diretamente ou, quando for o caso, por intermédio de seus pais ou de
seus representantes legais, das acusações que pesam contra ela, e dispor de assistência jurídica ou
outro tipo de assistência apropriada para a preparação e apresentação de sua defesa;
iii) ter a causa decidida sem demora por autoridade ou órgão judicial competente, independente e
imparcial, em audiência justa conforme a lei, com assistência jurídica ou outra assistência e, a não
ser que seja considerado contrário aos melhores interesses da criança, levando em consideração
especialmente sua idade ou situação e a de seus pais ou representantes legais;
iv) não ser obrigada a testemunhar ou a se declarar culpada, e poder interrogar ou fazer com que
sejam interrogadas as testemunhas de acusação bem como poder obter a participação e o interro-
gatório de testemunhas em sua defesa, em igualdade de condições;
v) se for decidido que infringiu as leis penais, ter essa decisão e qualquer medida imposta em decor-
rência da mesma submetidas a revisão por autoridade ou órgão judicial superior competente, inde-
pendente e imparcial, de acordo com a lei;
vi) contar com a assistência gratuita de um intérprete caso a criança não compreenda ou fale o
idioma utilizado;
vii) ter plenamente respeitada sua vida privada durante todas as fases do processo.
3. Os Estados Partes buscarão promover o estabelecimento de leis, procedimentos, autoridades e
instituições específicas para as crianças de quem se alegue ter infringido as leis penais ou que sejam
acusadas ou declaradas culpadas de tê-las infringido, e em particular:
a) o estabelecimento de uma idade mínima antes da qual se presumirá que a criança não tem capaci-
dade para infringir as leis penais;
b) a adoção sempre que conveniente e desejável, de medidas para tratar dessas crianças sem recorrer
a procedimentos judiciais, contando que sejam respeitados plenamente os direitos humanos e as
garantias legais.
4. Diversas medidas, tais como ordens de guarda, orientação e supervisão, aconselhamento, liberdade
vigiada, colocação em lares de adoção, programas de educação e formação profissional, bem como
outras alternativas à internação em instituições, deverão estar disponíveis para garantir que as crianças
sejam tratadas de modo apropriado ao seu bem-estar e de forma proporcional às circunstâncias e
ao tipo do delito.

146
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

2.1.7 Conjunto de Princípios para a proteção de todas as pessoas submetidas a qual-


quer forma de detenção ou prisão, 199017

III - MENORES SOB DETENÇÃO OU QUE AGUARDAM JULGAMENTO


17. Os menores que estão detidos preventivamente ou que aguardam julgamento (não julgados)
presumem-se inocentes e serão tratados como tal. A detenção antes do julgamento deve ser evitada,
na medida do possível, e limitada a circunstâncias excepcionais. Devem, por isso, ser feitos todos os
esforços para se aplicarem medidas alternativas. No entanto, quando se recorrer à detenção preventiva,
os tribunais de menores e os órgãos de investigação tratarão tais casos com a maior urgência, a fim de
assegurar a mínima duração possível da detenção. Os detidos sem julgamento devem estar separados
dos menores condenados.
18. As condições em que um menor não julgado se encontra detido devem estar de acordo com as
regras abaixo estabelecidas, sob reserva de disposições especiais, julgadas necessárias e apropriadas
em razão da presunção da inocência, da duração da detenção e do estatuto legal e circunstâncias do
menor. Estas disposições devem incluir, mas não necessariamente restringir-se, ao seguinte:
a) Os menores devem ter direito aos serviços de um advogado e podem requerer assistência judiciária
gratuita, quando essa assistência esteja disponível, e comunicar regularmente com os seus conse-
lheiros legais. A privacidade e confidencialidade de tais comunicações devem ser asseguradas.
b) Sempre que possível, os menores devem dispor de oportunidades de efetuar um trabalho remu-
nerado, e de continuar a sua educação e formação profissional, mas não lhes deve ser exigido
que o façam. O trabalho, os estudos ou a formação profissional não devem causar a conti-
nuação da detenção.
c) Os menores podem receber e guardar materiais para os seus tempos livres e recreio, na medida em
que isso for compatível com os interesses da administração da justiça

2.1.8 Declaração de princípios básicos de justiça para vítimas de crime e abuso de poder18

Acesso à justiça e a tratamento justo

4. As vítimas devem ser tratadas com compaixão e respeito por sua dignidade. Terão acesso aos meca-
nismos de justiça e de reparação imediata, conforme previsto na legislação nacional, pelo dano sofrido.
5. Mecanismos judiciais e administrativos devem ser estabelecidos e reforçados, quando necessário,
para permitir às vítimas obterem reparação, por meio de processos formais ou informais rápidos, justos,
de baixo custo e acessíveis. As vítimas devem ser informadas sobre seus direitos de buscar reparação
por meio de tais mecanismos.
6. Facilitar-se-á a adequação dos procedimentos judiciais e administrativos da seguinte forma: (a)
Informando às vítimas sobre seus papéis e sobre o âmbito, o tempo e o progresso dos procedimentos,
e também da disposição de seus casos, especialmente quando envolverem crimes graves e quando
tais informações forem solicitadas; (b) Permitindo que a opinião e as preocupações das vítimas sejam
apresentadas e apreciadas nos estágios adequados do processo, quando seus interesses particulares


17
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Anexo da Resolução 43/173, da Assembleia Geral, 1990. Disponível em: https://www.unodc.org/
documents/justice-and-prison-reform/projects/UN_Standards_and_Norms_CPCJ_-_Portuguese1.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
18
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Anexo da Resolução 40/34, da Assembleia Geral, 1985. Disponível em: https://www.unodc.org/
documents/justice-and-prison-reform/projects/UN_Standards_and_Norms_CPCJ_-_Portuguese1.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.

147
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

forem afetados, sem preconceito contra o acusado, e de maneira consistente com o sistema de justiça
criminal nacional relevante; (c) Fornecendo a correta assistência às vítimas ao longo do processo legal;
(d) Adotando as medidas para minimizar inconveniências às vítimas, para proteger sua privacidade,
quando necessário, e para garantir a sua segurança, a de seus familiares e de testemunhas a seu favor
contra intimidação e retaliação; (e) Evitando atrasos desnecessários na distribuição dos casos e na
execução de sentenças ou decretos que concedam indenização às vítimas.
7. Mecanismos informais para a solução de controvérsias, incluindo mediação, arbitragem e justiça
consuetudinária ou práticas autóctones, devem ser utilizados, quando apropriado, para facilitar a conci-
liação e a reparação das vítimas
18. O termo “vítimas” significa pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido dano, seja
físico seja mental, sofrimento emocional, perda econômica, ou que tenham sofrido substancial dano de
seus direitos fundamentais, por meio de ações ou omissões que ainda não constituam violação das leis
criminais nacionais, mas de normas relativas aos diretos humanos reconhecidos internacionalmente.
19. Os Estados devem considerar a incorporação, na lei nacional, de normas que condenem abusos de
poder e fornecer cuidados a vítimas de tais abusos. Em particular, tais cuidados devem incluir restituição
e / ou compensação, e a assistência e o apoio materiais, médicos, psicológicos e sociais necessários.
20. Os Estados devem considerar a negociação de pactos multilaterais internacionais relacionados às
vítimas, como descrito no parágrafo 18.
21. Os Estados devem, periodicamente, rever as práticas e as legislações existentes para garantir a
adequação às circunstâncias modificadas, atuar e implantar, se necessário, uma legislação que condene
atos que constituam graves abusos de poder político ou econômico, e promover políticas e meca-
nismos para a prevenção de tais atos, além de criar e tornar prontamente acessíveis direitos e cuidados
apropriados para vítimas de tais atos.

2.2 Normativa nacional

2.2.1 Constituição Federal de 198819

Artigo 5º
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;


19
BRASIL.[Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 maio 2021.

148
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

2.2.2 Código de Processo Civil20

Artigo 4º
As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a ativi-
dade satisfativa.
Artigo 7º
É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades proces-
suais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao
juiz zelar pelo efetivo contraditório.
Artigo 8º
Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum,
resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a
razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
Artigo 10
O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não
se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva
decidir de ofício.
Artigo 11
Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as deci-
sões, sob pena de nulidade.

2.2.3 Código de Processo Penal21

Artigo 3º-A
O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a subs-
tituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Artigo 3º-B
O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salva-
guarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judi-
ciário, competindo-lhe especialmente:
I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Cons-
tituição Federal;
II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto
no art. 310 deste Código;
III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua
presença, a qualquer tempo;

20
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 15 maio 2021.

BRASIL. Decreto lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
21

decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 15 mai. 2021.

149
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;


V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto
no § 1º deste artigo;
VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, asse-
gurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto
neste Código ou em legislação especial pertinente;
VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não
repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;
VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apre-
sentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;
IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua
instauração ou prosseguimento;
X - requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento
da investigação;
XI - decidir sobre os requerimentos de:
a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de
outras formas de comunicação;
b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;
c) busca e apreensão domiciliar;
d) acesso a informações sigilosas;
e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;
XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;
XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental;
XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código;
XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu
defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação
criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;
XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;
XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada,
quando formalizados durante a investigação;
XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.
§ 1º O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença
do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a
presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego
de videoconferência.
§ 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade
policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze)
dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.

150
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

Artigo 3º-C
A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial
ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.
§ 1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da
instrução e julgamento.
§ 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que,
após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares
em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.
§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na
secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos
do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas
irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos
para apensamento em apartado.
§ 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.

3. ABRANGÊNCIA DO DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS


NO PROCESSO PENAL, CÍVEL E ADMINISTRATIVO

O direito às garantias judiciais enquanto direito ao devido processo legal está vinculado a vários outros
direitos, em especial quando se trata da justiça penal. Dentre eles estão: o direito à informação e a um
julgamento em prazo razoável; o direito de impugnar a legalidade quando há privação de liberdade; o
direito de não produzir prova contra si mesmo; a admissibilidade das provas em geral, em especial as
ilícitas; o direito do estrangeiro em não ser expulso sem o devido processo, dentre outros.
Ao tratar sobre as garantias judiciais aplicáveis ao processo penal, o CDH22 destacou que as acusações
penais dizem respeito aos atos que o direito penal nacional declarou como puníveis. Pontuou que essa
noção pode ser estendida para incluir “atos de natureza delitiva, independentemente de sua qualifi-
cação no direito interno”; e que a previsão do artigo 14, do PIDCP “não é suscetível a nenhuma limitação”.
Ao julgar o caso Hernández Lima vs. Guatemala, a Corte IDH também estabeleceu que as garantias
judiciais previstas o artigo 8, da CADH, não se aplicam somente a pessoas acusadas de um delito em
sentido estrito, mas também para pessoas acusadas de “faltas, contravenções ou infrações”23.
O artigo 14.3, do PIDCP e o artigo 8.2, da CADH fazem referência a um momento específico para obser-
vância dessas garantias: “durante o processo”. No entanto, a jurisprudência da Corte IDH compreende
o processo de forma ampla, incluindo também atos associados à fase de investigação e demais atos
conduzidos para além da esfera judicial, mas com implicações penais. Esse posicionamento foi afir-
mado também no caso Figueredo Planchart vs. Venezuela24:

A Comissão Interamericana não pode considerar esses comparecimentos como o direito efetivo
do acusado de ser ouvido por um tribunal, porquanto as garantias do direito de defesa consa-
gradas no artigo 8 (2) (d) da Convenção foram sistematicamente violados pelos tribunais. Esses

22
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Observação Geral n. 32, 2007, p.15 a 18.
23
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Hernández Lima c. Guatemala, párrs. 63-64 (1996).


24
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Figuredo Planchart vs. Venezuela, 1999, p.33-34.

151
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

atos em que o sujeito investigado comparece sem assistência de advogado a um interrogatório


baseado em um arquivo que ele não conhece, sem saber quais atos criminosos são imputados,
não constituem o exercício do direito de ser ouvido por um tribunal, consagrado no Artigo 8
(1) da Convenção. Ouvir a uma pessoa investigada implica permitir que se defenda adequada-
mente, auxiliado por um advogado, com conhecimento de todos os elementos que lhe podem
ser contrários; ouvi-lo é permitir sua presença nos interrogatórios de testemunhas que podem
testemunhar em seu desfavor, podendo impugná-las; ouvir um réu é dar a ele a oportunidade de
ignorar, contestar os documentos que se destinam a ser usados contra ele. Fica comprovado que
o acusado não teve acesso a esses direitos em todas as etapas anteriores ao mandado de prisão, o
que na prática não lhe permitiu defender-se em liberdade. Ou seja, Reinaldo Figueredo Planchart
recebeu um mandado de prisão sem ter sido ouvido com todas as garantias do devido processo na
fundamentação da acusação penal contra ele.

Em outro trecho, a Corte ressalta a interdependência entre a fase investigatória e o processo propria-
mente dito, sendo que “tratá-los separadamente restringiria e enfraqueceria consideravelmente a
proteção do devido processo legal a que têm direito o acusado”25. Ao tratar da fase de investigação,
no caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras, a Corte IDH a situou como dever do Estado, a ser exercido
como dever jurídico próprio.
Portanto, a investigação não constitui “uma simples formalidade condenada de antemão a ser ineficaz,
ou como uma mera gestão de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual das vítimas
ou de seus familiares ou do aporte privado de elementos probatório”26. No Brasil, para o STF, o devido
processo penal reúne as seguintes garantias:

(a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhe-
cimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações
indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa
técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ex post facto; (f) direito à
igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas
de ilicitude; (h) direito ao benefício; da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz
natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); (l) direito à prova; e (m) direito
de presença e de ‘participação ativa’ nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes
penais passivos, quando existentes 27

Afirmado pelo STF como o “direito à defesa técnica”, coincide com a jurisprudência da Corte IDH,
que condiciona o cumprimento do devido processo legal não apenas à presença do acusado, mas que
durante o processo lhe seja permitido se defender adequadamente, auxiliado por advogado. Também
coincide a previsão da súmula vinculante n. 14 do STF, que assegura ao defensor o acesso aos elementos
de provas já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de
política judiciária28. Como afirma o referido tribunal:

Nada, absolutamente nada, respalda ocultar de envolvido – como é o caso da reclamante – dados
contidos em autos de procedimento investigativo ou em processo alusivo à ação penal, pouco
importando eventual sigilo do que documentado. Esse é o entendimento revelado no verbete
vinculante 14 (...). Tendo em vista a expressão “acesso amplo”, deve-se facultar à defesa o conheci-
mento da integralidade dos elementos resultantes de diligências, documentados no procedimento

25
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Figuredo Planchart vs. Venezuela, 1999, p.144.
26
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras, 1998, p.146.


27
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 94.016. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgamento em 16 de set. 2008, Segunda
Turma, DJE de 27 de fev. 2009.
28
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante n. 14. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.
asp?sumula=1230. Acesso em: 20 ago. 2021.

152
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

investigatório, permitindo, inclusive, a obtenção de cópia das peças produzidas. O sigilo refere-se
tão somente às diligências, evitando a frustração das providências impostas. Em síntese, o acesso
ocorre consideradas as peças constantes dos autos, independentemente de prévia indicação do
Ministério Público. 3. Defiro a liminar para que a reclamante, na condição de envolvida, tenha
acesso irrestrito e imediato, por meio de procurador constituído, facultada inclusive a extração de
cópia, aos elementos constantes do procedimento investigatório (...). 29

Entretanto, o STF também afirmou em outra oportunidade que: “o direito de acesso aos dados de inves-
tigação não é absoluto”30, considerando que a sumula vinculante n. 14 não abrange as diligências ainda
em andamento e elementos ainda não documentados. Na jurisprudência do Tribunal há ainda restrição
em relação a matéria, reduzindo a abrangência do direito ao acesso à documentação, que não se aplica
aos procedimentos de natureza administrativa ou cível31.
Essas mesmas restrições não são aplicadas pela Corte IDH, que em sua jurisprudência ressalta o direito
da pessoa investiga de se defender com propriedade e ser assistida por advogado, com conhecimento
de todos os elementos que possam lhe ser contrários32. Há divergência também em relação à abran-
gência, pois a Corte IDH estende os referidos direitos para além do processo penal, sendo aplicado
também em processos cíveis e administrativos, como decidido no caso Vélez Loor vs. Panamá33.
A súmula n. 523 do STF prevê que no processo penal: “a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas
a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”34. Quanto a esse tema, também
há distinção entre o entendimento da Corte IDH e do STF com relação a dois aspectos. Primeiro, no
que diz respeito à necessidade de comprovação de prejuízo para o réu no caso da ausência de advo-
gado. Essa exigência é aplicada pela Corte Constitucional e demais tribunais nacionais, porém, não pela
Corte IDH, que considera a ausência de advogado uma violação às garantias judiciais.
O segundo ponto é a necessidade de advogado na fase de inquérito. No caso Figueredo Planchart vs.
Venezuela, a Corte IDH afirmou a indispensabilidade da presença do defensor quando do interroga-
tório. Em sentido oposto, ao tratar sobre a necessidade de intimação prévia do defensor do investigado
para tomada de depoimentos orais, na fase de inquérito, o STF entendeu que: “inquérito policial é peça
destinada à formação da opinio delicti do órgão acusatório, com caráter meramente informativo, susce-
tível, portanto, de regular mitigação das garantias do sistema acusatório e da ampla defesa”35.
Nesse mesmo julgamento, a Corte nacional afirmou a não obrigatoriedade de intimação do advogado
durante a fase do inquérito, o que contrasta com as decisões interamericanas. Também faz parte da
jurisprudência nacional a aplicação do contraditório diferido no inquérito processual, compreendido
como direito não absoluto, o que restringe o direito do investigado em conhecer previamente, sequer

29
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 31.213 MC. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento: 24 ago. 2018. Disponível em: http://jurisprudencia.
stf.jus.br/pages/search/despacho898310/false. Acesso em: 20 ago 2021.
30
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 30.957. Rel. Min. Luiz Fux. Julgamento: 10 ago. 2018. Disponível em: http://jurisprudencia.stf.jus.br/
pages/search/despacho893921/false. Aceso em: 20 ago 2021.


31
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 10.771. Rel. Min Marco Aurélio. Julgamento: 04 fev. 2014. Disponível em: http:/redir.stf.jus.br/pagi-
nadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5290309. Acesso em: 20 ago. 2021.
32
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Informe n. 50/00 do caso 11.298. Reinaldo Figueredo Planchar tvs. Venezuela,
1999, p.112.
33
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Vélez loor vs. Panamá, 2010, p.144.
34
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 523. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=30&su-
mula=2729. Acesso em: 20 ago. 2021.
35
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet 7612. Relator Min. Edson Fachin. Julgamento: 12 mar. 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752042346. Acesso em: 20 ago. 2021.

153
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

concomitantemente, os fundamentos da medida que lhe restringe a privacidade36. O STF ressalta,


ainda, que não se trata de violação ao contraditório, pois:

Com efeito, cessada a medida, e reunidas as provas colhidas por esse meio, o investigado deve
ter acesso ao que foi produzido, nos termos da Súmula Vinculante 14. Os fundamentos da decisão
que deferiu a escuta telefônica, além das decisões posteriores que mantiveram o monitoramento,
devem estar acessíveis à parte investigada no momento de análise da denúncia e não podem ser
subtraídas da Corte, que se vê tolhida na sua função de apreciar a existência de justa causa da ação
penal. Trata-se de um contraditório diferido, que permite ao cidadão exercer um controle sobre as
invasões de privacidade operadas pelo Estado. 37

O mesmo tribunal também reconheceu o devido processo legal substancial, enquanto limitador do
poder de legislar. Nessa acepção, as leis devem ser elaboradas considerando os princípios de justiça,
fundadas na razoabilidade, racionalidade e preservando o nexo com o objetivo que se quer atingir38.
Além de prever de forma expressa o devido processo legal, o texto constitucional também assegura
o contraditório e a ampla defesa, que também se estende para a fase investigatória. A investigação
criminal no Brasil, via de regra, cabe às polícias judiciárias – Polícias Civis estaduais e Polícia Federal –,
conforme artigo 144 da Constituição.
Mas, a apuração e o esclarecimento de fatos e de circunstâncias relacionadas à infração penal não é
exclusiva ou privativa da polícia. Como prevê o CPP, no artigo 4º, outras autoridades também possuem
atribuição investigatória, inclusive, pode ser feita por particulares.
A fase de investigação quando promovida pelas polícias judiciárias têm natureza administrativa, por ser
anterior à provocação da jurisdição penal e é formalizada pelo inquérito policial, cujo procedimento é
previsto nos artigos 1º a 23 do CPP. Nesta etapa, é direito do advogado ter acesso amplo aos elementos
de prova e aos procedimentos desta etapa para assegurar o direito de defesa do interessado.
O procedimento administrativo investigatório é pré-processual, ou seja, antecede a propositura da
ação penal, justamente porque tem a finalidade de reunir indícios de autoria e materialidade relacio-
nadas às infrações penais, visando fornecer elementos ao MP ou ao titular da ação, para instruir a ação
penal a ser proposta.
No caso Ximenes Lopes vs. Brasil, a Corte IDH também estabeleceu parâmetros para condução de
investigações de mortes violentas:

Considerando as circunstâncias violentas em que se deu a morte do senhor Damião Ximenes


Lopes (par. 112.11 supra), este Tribunal julga que é necessário para a investigação de toda morte
violenta observar regras similares às que constam do Manual para a Prevenção e Investigação
Efetiva de Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias e Sumárias das Nações Unidas. As autoridades
estatais que conduzem uma investigação devem, inter alia: a) identificar a vítima; b) recuperar
e preservar o material probatório relacionado com sua morte, a fim de colaborar em qualquer
investigação; c) identificar possíveis testemunhas e obter suas declarações com relação à morte
que se investiga; d) determinar a causa, forma, lugar e momento da morte, bem como qualquer
procedimento ou prática que possa tê-la provocado; e e) distinguir entre morte natural, morte
acidental, suicídio e homicídio. É necessário, ademais, investigar exaustivamente a cena do crime e

36
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inq. 2.266. Rel Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 26 mai. 2011. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1812853. Acesso em: 20 ago. 2021.


37
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inq. 2.266. Rel Min. Gilmar Mendes. Julgamento: 26 mai. 2011. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1812853. Acesso em: 20 ago. 2021.
38
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.511-MC. Voto do Relator Ministro Carlos Velloso. Julga-
mento em 16 de out. 1996, Plenário, DJ de 6 de jun. 2003.

154
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

se devem ser realizadas necropsias e análise dos restos humanos, de maneira rigorosa, por profis-
sionais competentes e mediante o uso dos procedimentos mais adequados39.

A inserção do juiz de garantias no artigo 3º-A do CPP Brasileiro, pela Lei n.13.964, de 2019, reforça a
orientação constitucional do devido processo legal e também da jurisprudência da Corte IDH. No
dispositivo, a estrutura acusatória foi estabelecida para o processo penal, vedando a iniciativa do juiz na
fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Em consonância com esse modelo, houve a cisão do juiz competente para julgar no processo penal, em
dois tipos: juiz de garantias e juiz da instrução e julgamento. O que antes era desempenhado apenas
por um magistrado ao longo de todo processo penal, passou a ser dividido em dois momentos, visando
assegurar a estrutura acusatória e o devido processo penal.
O juiz de garantias é o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salva-
guarda dos direitos individuais, nas hipóteses em que o Poder Judiciário é instado a conceder autori-
zação prévia para determinado ato.40
A competência do juiz de garantias abarca todas as infrações penais, excetuadas a de menor potencial
ofensivo, e se encerra mediante o recebimento da denúncia ou queixa. Desse momento em diante as
questões passam a ser decididas pelo juiz da instrução e julgamento, que conduz o processo.
O artigo 8 da CADH assegura que as garantias judiciais se estendem a direitos e obrigações “de natu-
reza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”41. É obrigatório para “todos os órgãos que
exercitem função de natureza materialmente jurisdicional”42 , o que também inclui órgãos administra-
tivos, como estabelecido no caso Ivcher Bronstein vs. Peru43:

Nesse sentido, pese a que o artigo 8.1 da Convenção alude ao direito de toda pessoa a ser ouvida
por um “juiz ou tribunal competente” para a “determinação de seus direitos”, este artigo é igual-
mente aplicável às situações em que alguma autoridade pública, não judicial, profira resoluções
que afetem a determinação de tais direitos.

Apesar do artigo 8.2 da CADH prever “toda pessoa acusada de delito”, a Corte afirmou que tais direitos
são “direitos de defesa processual”44. Portanto, o rol listado no artigo 8.2 de “a” até “h”, bem como o
item 8.3, 8.4 e 8.5 são direitos estendidos aos demais procedimentos de natureza cível e administrativa.
No caso do Tribunal Constitucional vs. Peru, sobre a destituição de três magistrados de seus cargos
por uma comissão do Congresso peruano, a Corte manifestou-se especificamente a respeito dos
processos administrativos:

39
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes v. Brasil, julgamento de 04 de julho de 2006b, Série C, nº
149, p.68.
40
BRASIL. Decreto-lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal, 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 25 out. 2022.


41
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Yatama v. Nicaragua, julgamento de 23 de junho de 2005, Série C, nº 74.
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Baena Ricardo et al. v. Panamá, julgamento de 02 de fevereiro de 2001a, Série C, nº 72.
42
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso do Tribunal Constitucional vs. Peru, Sentença de 31 de janeiro de 2001.
Série C Nº 71, p. 45.
43
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ivcher Bronstein v. Peru, julgamento de 06 de fevereiro de 2001b, Série
C, nº 74, p.46-47).
44
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Genie Lacayo v. Nicarágua, julgamento de 29 de janeiro de 1997b, Série
C, nº 30.

155
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

(…) Que quando a Convenção se refere ao direito de toda pessoa ser ouvida por um “tribunal
competente” para a “determinação de seus direitos”, esta expressão refere-se a qualquer autori-
dade pública, seja administrativa, legislativa ou judicial, que através das resoluções acima deter-
minam direitos e obrigações das pessoas. Pelas razões acima expostas, este Tribunal considera que
qualquer órgão do Estado que exerça funções de natureza material jurisdicional, tem a obrigação
de adotar resoluções anexas às garantias do devido processo legal nos termos do artigo 8º do
Convenção Americana45.

A jurisprudência da Corte reforça a necessidade das atuações administrativas se desenvolverem em


compatibilidade com o direito do acusado de conhecer os termos da acusação e do processo; apre-
sentar provas e de a autoridade administrativa ser competente para decidir segundo o direito interno.
A aplicação das garantias judiciais para além do direito penal, em especial do contraditório e de um
juiz ou tribunal independente e competente, também encontram amparo na jurisprudência do CDH
da ONU. Em referência ao artigo 14, do PIDCP, ao julgar o caso Morael vs. França46, o Comitê decidiu:

O Comitê observa, a esse respeito, que o parágrafo anterior não apenas aplica-se em matéria penal,
mas também em litígios relativos a direitos e obrigações civis. Embora o artigo 14 não especifique
como o conceito de um julgamento “com as devidas garantias” deve ser entendido em civil (ao
contrário do que é feito no parágrafo 3 do mesmo artigo quando trata-se de determinar o mérito
das acusações em matéria penal), corresponde interpretar que o conceito de julgamento “com
as devidas garantias”, no contexto do artigo 14, parágrafo 1, do Pacto, requer um certo número
de condições, como a exigência de igualdade de armas, respeito pelo julgamento contraditório,
exclusão de agravamento ex officio das sentenças e procedimentos judiciais ágeis. Consequen-
temente, as circunstâncias do presente caso devem ser examinas tendo em conta estes critérios.

4. DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO

O artigo 8 da CADH estabelece que toda pessoa tem o direito a ser ouvida, com as devidas garantias
e “dentro de um prazo razoável”. A previsão visa assegurar o regular andamento processual garantindo
concretização dos direitos assegurados para evitar a prolação indefinida e injustificada.
No caso Vásquez Durand y otros vs. Equador, a Corte IDH estabeleceu que o “prazo razoável” previsto
no artigo 8.1, da CADH, deve considerar a duração total do procedimento em análise, do início ao
julgamento final. Considerou também que “o atraso prolongado constitui, por si só, uma violação das
garantias judiciais.”47
No Brasil, o princípio da duração razoável do processo foi inserido no art. 5º, LXXVIII, CRFB/88 pela
Emenda Constitucional nº 45/2004, com o objetivo de dar maior celeridade à tramitação dos processos,
estabelecendo que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
A celeridade na tramitação do processo com base nesse princípio visa a assegurar que o trâmite proces-
sual não ocorra de forma indefinida, ilimitada, eliminando, assim, o tempo patológico, estando em
consonância com o que também prevê o artigo 8, da CADH.

45
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso do Tribunal Constitucional vs. Peru, Sentença de 31 de janeiro de 2001.
Série C Nº 71, p. 45
46
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Caso Morael vs. França, 1989, p.9


47
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Vásquez Durand y otros Vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de febrero de 2017. Serie C No. 332, p. 159.

156
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

A delonga na prestação jurisdicional leva às partes envolvidas à descrença e à insegurança jurídica em


relação à solução do conflito. Da mora processual decorrem danos, como os ocorridos no caso Ximenes
Lopes vs. Brasil. Mesmo após a morte de Damião Ximenes Lopes na Casa de Repouso Guararapes e de
assumida a responsabilidade internacional pelo Estado brasileiro, a investigação policial instaurada foi,
além de falha, também morosa, o que ocasionou mais sofrimento para a família.
Essa foi a primeira condenação do Brasil na Corte IDH, motivada também pela violação do disposto no
artigo 8. No caso, a Corte IDH firmou:

A razoabilidade do prazo deve ser apreciada em relação com a duração total do processo penal.
Em matéria penal este prazo começa quando se apresenta o primeiro ato de procedimento contra
determinada pessoa como provável responsável por certo delito e termina quando se profere
sentença definitiva e firme48

Portanto, a razoável duração do processo deve ser aferida considerando a duração total do processo,
desde o primeiro ato processual até a prolação da sentença definitiva, incluindo eventuais recursos. A
razoável duração do processo é avaliada considerando “a) a complexidade do assunto; b) a atividade
processual do interessado; e c) a conduta das autoridades judiciais”49. Esses três critérios foram defi-
nidos pelo Sistema Europeu de Direitos Humanos50 e são aplicados pela jurisprudência da Corte51.
A partir desses marcos analíticos, a Corte IDH concluiu pela baixa complexidade do caso Ximenes
Lopes, dada a existência de uma única vítima, cujas circunstâncias de morte poderiam ser identificadas,
assim como os supostos agressores. Considerando que a família de Damião Ximenes Lopes também
cooperou em todas as diligências, a Corte concluiu que a “demora do processo se deveu unicamente à
conduta das autoridades judiciais”52.
O prazo em que se deu o processo foi considerado não razoável, pois mesmo passados mais de seis
anos ou 75 meses de iniciado o processo, não foi proferida sentença; e igualmente não foram apresen-
tadas razões por parte do Estado para justificar a demora:

Este Tribunal considera que este período excede em muito aquele a que se refere o princípio
de prazo razoável consagrado na Convenção Americana e constitui uma violação do devido
processo.143 204. Por outro lado, a falta de conclusão do processo penal teve repercussões parti-
culares para os familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, já que, na legislação do Estado, a
reparação civil pelos danos ocasionados por um ato ilícito tipificado penalmente pode estar sujeita
ao estabelecimento do delito em um processo de natureza criminal. Por este motivo na ação civil
de reparação de danos tampouco se proferiu sentença de primeira instância, ou seja, a falta de
justiça na ordem penal impediu que os familiares de Ximenes Lopes, em especial sua mãe, obti-
vessem compensação civil pelos fatos deste caso53

48
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes v. Brasil, julgamento de 04 de julho de 2006b, Série C, nº
149, p.66.
49
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes v. Brasil, julgamento de 04 de julho de 2006b, Série C, nº
149, p.66.
50
BURGORGUE-LARSEN, Laurence; ÚBEDA DE TORRES, Amaya. The Inter-American Court of Human Rights: Case Law and Commen-
tary. Oxford: Oxford University Press, 2011, p.658
51
Cf. Caso Baldeón García, nota 4 supra, par. 151; Caso López Álvarez, nota 121 supra, par. 132; e Caso do Massacre de Puerto Bello, nota 25
supra, par. 171
52
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes v. Brasil, julgamento de 04 de julho de 2006b, Série C, nº
149, p.66.
53
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes v. Brasil, julgamento de 04 de julho de 2006b, Série C, nº
149, p.67.

157
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Conforme reiterado pela jurisprudência da Corte e também no caso Ximenes Lopes: cabe ao Estado
denunciar e provar o motivo pelo qual demorou mais do que isso em princípio seria razoável emitir um
julgamento final em um caso particular, conformidade com os critérios indicados”54.
A partir do julgamento do caso Valle Jaramillo vs. Colômbia55, outro elemento foi indicado para deter-
minar a razoável duração do processo, qual seja: o impacto gerado na situação jurídica da pessoa envol-
vida no processo. O caso diz respeito ao assassinato do defensor de direitos humanos Jesús María Valle
Jaramillo, como represália pelas denúncias sobre atuação conjunta do Exército Nacional e os grupos
paramilitares, realizadas entre 1995 e 1998.
Considerando a relação entre passagem do tempo e situação jurídica do indivíduo, a Corte estabeleceu
a necessidade de analisar também a “afetação atual que o procedimento implica para os direitos e
deveres”56, ou seja, a situação jurídica do indivíduo:

A Corte considera pertinente especificar, ademais, que a referida análise de razoabilidade deve
levar em conta o impacto gerado pela duração do procedimento sobre a situação jurídica da
pessoa nele envolvida, considerando, entre outros elementos, o assunto em discussão. Caso a
passagem do tempo tenha impacto relevante na situação jurídica do indivíduo, será necessário
que o procedimento seja executado com mais diligência para que o caso seja resolvido em curto
espaço de tempo57

A Corte IDH reafirmou o dano provocado na situação jurídica da pessoa envolvida no processo como
quarto critério de aferição da razoável duração do processo. No caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, ao
tratar do descumprimento da garantia judicial do prazo razoável no processo penal, a Corte IDH esta-
beleceu que seriam examinados “os quatro critérios estabelecidos em sua jurisprudência na matéria”58,
quais sejam: “i) a complexidade do assunto; ii) a atividade processual do interessado; iii) a conduta das
autoridades judiciais; e iv) o dano provocado na situação jurídica da pessoa envolvida no processo.”59
A Corte IDH corroborou os quatro critérios também nos casos: Associação Nacional de Cesantes e Jubi-
lados da Superintendência Nacional de Administração Tributária (ANCEJUB-SUNAT) vs. Perú60 e Jenkins
vs. Argentina.61 Em ambos casos, a Corte IDH frisou que cabe ao Estado justificar, com base nos quatro
critérios indicados, o motivo pelo qual necessitou do tempo transcorrido. Na hipótese de não fazê-lo:
“a Corte dispõe de amplas atribuições para proceder a sua própria avaliação a respeito da matéria.”62
No caso Gallardo Rodríguez vs. México, a Corte afirmou a jurisprudência frisando a necessidade de
estabelecer critérios objetivos para verificação do que vem a ser razoável duração, o que demanda

54
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso Tibi, párr. 168; Caso Suárez Rosero, párr. 70; Caso Baldeón García, párr.
150; Caso López Álvarez, párr. 129; Caso Tibipárr. 169, Caso Ximenes Lopes c. Brasil, párr. 195.
55
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso Valle Jaramillo y otros c. Colombia, párr. 155 y Caso Kawas Fernández
c. Honduras, párr. 112.
56
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Valle Jaramillo vs. Colômbia. Voto do Juiz Sergio Garcia Ramírez, 27 de
novembro de 2008, p.5.
57
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Valle Jaramillo vs. Colômbia, 27 de novembro de 2008, p.48.
58
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, 16 de fevereiro de 2017, p.55.
59
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, 16 de fevereiro de 2017, p.55.
60
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Asociación Nacional de Cesantes y Jubilados de la Superintendencia
Nacional de Administración Tributaria (ANCEJUB-SUNAT) Vs. Perú, p.135.
61
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Corte IDH. Caso Jenkins Vs. Argentina, p.28-29.
62
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Asociación Nacional de Cesantes y Jubilados de la Superintendencia
Nacional de Administración Tributaria (ANCEJUB-SUNAT) Vs. Perú, p.135-136.

158
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

levar em conta também a complexidade do litígio. Ainda sobre esse ponto, o Brasil foi condenado em
outros casos, os quais não dizem respeito somente à tramitação de investigação e processo penal, mas
também de temática trabalhista, civil e administrativa, como se analisará abaixo.
Em 15 de julho de 2020 a Corte IDH condenou o Estado brasileiro no caso da Fábrica de Fogos de Santo
Antônio de Jesus (BA). O empreendimento armazenava materiais para produção de fogos de artifício de
forma ilegal e em 1998 uma explosão causou a morte de 60 pessoas63 e danos a outras seis, entre todas
as vítimas, 22 eram crianças e adolescentes entre 11 e 17 anos.
Após a explosão de 1998 não houve indenização ou qualquer outra forma de reparação às vítimas e
aos familiares. Em que pese a existência e utilização de diversos mecanismos jurídicos internos para
responsabilização e consequente indenização e assistência aos afetados.
Até a submissão do caso perante a Corte IDH, em 19 de setembro de 2018, não houve condenação dos
responsáveis no âmbito interno, seja para o pagamento de indenização, outras formas de reparação ou
responsabilização penal.
Por tratar também de processos trabalhistas, a Corte estabeleceu distinções para aferir a razoável
duração. Quanto ao processo penal, a Corte estabeleceu que cabe ao Estado demonstrar que “envidou
todos os esforços, em um tempo razoável, para permitir a determinação da verdade, a identificação e a
punição de todos os responsáveis, sejam eles particulares, ou sejam funcionários do Estado”64.
Em relação aos processos civis por dano, a devida diligência é verificada pela análise das ações das
autoridades estatais – juízes e membros do MP –, no sentido de “conduzir os procedimentos de forma
simples e rápida, com o objetivo de identificar os agentes que causaram os danos e, caso seja perti-
nente, reparar adequadamente as vítimas”65.
Já no que diz respeito aos processos trabalhistas, o exame deve levar em consideração “as medidas
adotadas pelas autoridades judiciais para estabelecer um vínculo laboral entre os trabalhadores e
trabalhadoras da fábrica de fogos e os donos, definir os montantes devidos e determinar e efetuar o
pagamento desses valores”66.
Frente a esses parâmetros, a Corte considerou a violação das garantias judiciais, consequentemente no
artigo 8, tendo em vista que:

(..)o processo penal foi iniciado de ofício após a explosão, e a acusação formal foi apresentada em
12 de abril de 1999. Em 20 de outubro de 2010, quase 12 anos depois de iniciadas as investigações,
foram condenadas cinco pessoas, inclusive Mario Fróes Prazeres Bastos e Osvaldo Prazeres Bastos,
o que foi confirmado em segunda instância. No entanto, em virtude da ausência de convocação
dos defensores dos acusados para o julgamento da apelação, as condenações não se tornaram
definitivas. Além disso, prescreveu a ação penal contra Osvaldo Prazeres Bastos. Os processos civis


63
“No escrito de submissão do caso e no Relatório de Admissibilidade e Mérito, a Comissão informou que 64 pessoas perderam a vida na
explosão da fábrica de fogos, e seis sobreviveram a ela, num total de 70 supostas vítimas. No entanto, ao comparar a lista anexada ao
Relatório de Admissibilidade e Mérito da Comissão com a lista anexada ao escrito de solicitações e argumentos dos representantes das
supostas vítimas, foram encontradas algumas incoerências que, uma vez depuradas, permitem identificar 60 supostas vítimas falecidas e
seis supostas vítimas sobreviventes”. Corte IDH. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares
vs. Brasil, sentença de 15 de julho de 2020, p.15.
64
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus
familiares vs. Brasil, sentença de 15 de julho de 2020, p.62.
65
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus
familiares vs. Brasil, sentença de 15 de julho de 2020, p.62.
66
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus
familiares vs. Brasil, sentença de 15 de julho de 2020, p.68.

159
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

iniciados pelas vítimas e os processos trabalhistas conduzidos entre 1999 e 2002 tampouco têm
solução definitiva, exceto no caso de dois dos processos civis67.

Em 2018, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte IDH, no caso do Povo Indígena Xucuru. A contro-
vérsia foi submetida à Corte em 2016, devido à alegada violação ao direito à propriedade coletiva e à
integridade pessoal do Povo Indígena Xucuru.
A Comissão salientou a violação desses direitos e também às garantias judiciais, em virtude da morosi-
dade no processo administrativo de reconhecimento e titulação, demarcação e delimitação das terras
indígenas, cujo tramitar ultrapassou 16 anos, entre 1989 a 2005; e também em função da demora na
desintrusão para que os indígenas pudessem de fato ocupar e exercer seu direito.
Trata-se de caso relevante, na medida em que diz respeito à condução de processo administrativo,
em que a Corte reafirmou os quatro marcos analíticos para análise da razoabilidade na duração do
processo. No caso, a Corte mencionou os critérios da Relatoria Especial das Nações Unidas para os
Direitos dos Povos Indígenas, salientando que:

(...) “efetividade” no contexto do caso sub judice implica que o procedimento administrativo elabo-
rado pelo Estado seja rápido e capaz de regularizar e garantir o direito dos povos indígenas de usar
seus territórios de forma pacífica, e deles usufruir. No caso concreto, isso não se limita à titulação
formal da propriedade coletiva, mas inclui a retirada das pessoas não indígenas que se encontrem
nesse território68.

Ainda, dadas as peculiaridades do caso, a Corte entendeu como adequado considerar não só a duração
global do processo, mas “a avaliação específica de cada etapa”, sendo que:

O Tribunal deve discernir não só se o processo administrativo teve uma demora excessiva, mas
também o processo de desintrusão dos territórios do povo Xucuru. Por conseguinte, a seguir, a
Corte passa a analisar os atos relevantes do processo administrativo e de desintrusão, no período
em que pode exercer sua competência contenciosa, isto é, de 10 de dezembro de 1998 até a data
de emissão desta Sentença. Nesse sentido, a Corte considera que, conforme sua jurisprudência,
150 a garantia de prazo razoável deve ser interpretada e aplicada com a finalidade de garantir as
regras do devido processo legal consagrado no artigo 8o da Convenção Americana, em processos
de natureza administrativa, ainda mais quando, por intermédio deles, se pretende proteger,
garantir e promover os direitos sobre os territórios indígenas, mediante os quais se possam levar
a cabo os processos de reconhecimento, titulação, demarcação e delimitação de sua proprie-
dade territorial69.

Quanto à complexidade do assunto, a Corte considerou esse critério devido a necessidade de estudos
étnicos, demarcação física, indenização e desintrusão de ocupantes não indígenas dos territórios tradi-
cionalmente ocupados. No entanto, o Estado não apresentou razões que justificassem a demora de
mais 27 anos para a conclusão do procedimento administrativo, motivando a condenação:

Sem prejuízo de que permaneçam somente seis ocupantes não indígenas no território Xucuru, no
momento da emissão da presente Sentença, a Corte observa que, em que pese o grande número
de ocupantes não indígenas presentes nesse território no início do processo de reconhecimento e


67
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus
familiares vs. Brasil, sentença de 15 de julho de 2020, p.69.
68
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil, sentença de 05 de
fevereiro de 2018, p.35.
69
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil, sentença de 05 de
fevereiro de 2018, p.34.

160
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

titulação, em 1989, a complexidade e os custos do processo de desintrusão não justificam a demora


de praticamente 28 anos – sendo 19 anos dentro da competência da Corte – para concluí-lo70.

No sistema universal, o CDH, na Observação Geral n. 32, definiu o que se entende por razoável:

O que é razoável deve ser avaliado nas circunstâncias de cada caso, levando em consideração
principalmente a complexidade do caso, a conduta do acusado e a forma como as autoridades
administrativas e as autoridades judiciais trataram do assunto. Nos casos em que o tribunal nega
réus libertados sob fiança, eles devem ser julgados tanto quanto possível rapidamente possível.
Esta garantia não se refere apenas ao intervalo de tempo entre a acusação e o momento em
que um processo deve começar, mas também ao tempo que medeia até a decisão final sobre
o recurso. Todas as fases do processo devem ser realizadas “sem atrasos indevidos”, tanto em
primeira instância como em recursos. 71

No mesmo documento também estabeleceu a extensão desse direito para os processos civis e outros
para além da esfera penal. Quando a mora se dá por falta de recursos e déficits crônicos de financia-
mento, o Comitê estabeleceu de forma expressa o dever de alocar recursos orçamentários suplemen-
tares suficientes para a administração justiça72.
Ao julgar o caso Thomas vs. Jamaica, o CDH da ONU considerou que ante a ausência de justificativa, 23
meses entre a condenação e a audiência de segunda instância viola a razoável duração do processo73. O
Comitê reiterou que todas as garantias previstas no artigo 14 do Pacto devem “ser estritamente obser-
vadas em qualquer procedimento criminal, particularmente nos casos de pena capital” 74 e na ausência
de justificativas, como ocorreu no referido caso, há violação ao Pacto.
No caso Rogerson vs. Austrália75, o Comitê afirmou a violação do artigo 14, do PIDCP, dada a delonga
de 24 meses entre a sentença de primeira instância e o julgamento da apelação em segunda instância.
O Comitê destacou a ausência de justificativa do Estado pelo atraso, embora houvesse sistema de
gestão de processos76.
Quando se trata de responsabilidade principal do defensor em dar prosseguimento ao processo, como
observa destaca O’Donnell77, demoras dessa duração ou mais, não são violadoras do PIDCP.

70
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil, sentença de 05 de
fevereiro de 2018, p.43.


71
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Observação Geral No. 32, 2007, p.27.
72
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Observação Geral No. 32, 2007, p.27.
73
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Samuel Thomas vs. Jamaica. 60ª sessão, 22 de março – 9 de abril
de 1999. Disponível em: http://www.worldcourts.com/hrc/eng/decisions/1999.03.31_Thomas_v_Jamaica.htm. Acesso em: 24 ago.2021.
74
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Samuel Thomas vs. Jamaica. 60ª sessão, 22 de março – 9 de abril
de 1999. Disponível em: http://www.worldcourts.com/hrc/eng/decisions/1999.03.31_Thomas_v_Jamaica.htm. Acesso em: 24 ago.2021.
75
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Andrew Rogerson vs. Australia. 74ª sessão, 18 de março – 5 de
abril de 2002. Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/undocs/802-1998.html Acesso em: 24 ago. 2021.
76
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos. Andrew Rogerson vs. Australia. 74ª sessão, 18 de março – 5 de
abril de 2002. Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/undocs/802-1998.html. Acesso em: 24 ago. 2021.
77
O’DONNELL, Daniel. Derecho Internacional de los Derechos Humanos: normativa, jurisprudencia y doctrina de los Sistemas Universal
e Interamericano. 2ª ed. Oficina en México del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. México: Tribunal
Superior de Justicia del Distrito Federal, 2012, p.479.

161
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

5. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O artigo 8.2 da CADH prevê o direito à presunção de inocência “enquanto não se comprove legalmente
sua culpa”. O direito à presunção de inocência representa uma garantia assegurada a todos os indivíduos
em face do exercício arbitrário do poder do Estado. Segundo a jurisprudência interamericana, o direito
à presunção de inocência constitui elemento essencial para efetivar o direito à defesa, acompanhando
o réu durante todo o processo até a sentença.
A primeira implicação desse direito, segundo a Corte, é de que “o acusado não deve demonstrar que
não cometeu o delito que se atribui a ele, já que o ônus probandi corresponde a quem acusa” 78. Em
diversas ocasiões, a Corte IDH afirmou que “o princípio da presunção de inocência constitui uma base
de garantias judiciais” 79.
Sendo assim, do artigo 8.2 deriva a “obrigação do Estado de não restringir a liberdade do detido além
dos limites estritamente necessários para garantir que não irá impedir o desenvolvimento eficiente de
investigações nem escapará à ação da justiça”.80
Segundo o CDH da ONU, o princípio da presunção de inocência possui três dimensões, estabelecidas
conforme o parágrafo segundo do artigo 14, do PIDCP. A primeira se refere à maneira pela qual se
determina a responsabilidade penal e especificamente a carga probatória.
A segunda dimensão diz respeito à imputação de responsabilidade penal ou participação em fatos deli-
tivos, a um indivíduo que não tenha sido julgado. Por fim, a terceira consiste em diretrizes em relação
a pessoas sob investigação por um delito e a presos sem condenação. Como ressaltou o Comitê na
Observação Geral n. 32, a presunção de inocência é fundamental para a proteção dos direitos humanos,
na medida em que:

(...) impõe o ônus da prova à acusação e garante que a culpa não seja presumida a menos que a
acusação tenha sido comprovada sem sombra de dúvida razoável; garante que o acusado tenha
o benefício da dúvida e exige que pessoas acusadas de um crime sejam tratadas de acordo com
esse princípio81.

O Comitê destacou ainda o dever das autoridades públicas em se abster de realizar comentários
públicos a respeito do julgamento. Também o direito dos réus de não serem algemados, nem subme-
tidos a tratamento que possa acarretar em prejuízo ou “dê a entender que eles possam ser criminosos
perigosos”82. Salientou ainda a necessidade de os meios de comunicação evitarem “expressar opiniões
prejudiciais à presunção de inocência”83; e que a duração da prisão preventiva não deve ser considerada
como indicativo de culpa ou grau de dela”84.

78
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Suárez Rosero vs. Equador. Sentença de 12 de novembro de 1997, p.77;
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso TIBI vs. Equador. Sentença de 07 de setembro de 2004, p.180; Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Caso Acosta Calderón vs. Equador. Sentença de 07 de fevereiro de 2008, p.38.
79
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Suárez Rosero vs. Equador. Sentença de 12 de novembro de 1997, p.77.
80
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso TIBI vs. Equador. Sentença de 07 de setembro de 2004, p.181.


81
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos, Observação Geral No. 32, 2007, p.30.
82
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos, Observação Geral No. 32, 2007, p.30.
83
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos, Observação Geral No. 32, 2007, p.30.
84
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comitê de Direitos Humanos, Observação Geral No. 32, 2007, p.30.

162
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

Sobre manifestações públicas e a presunção de inocência, o CERD85 considerou que o julgamento


antecipado a respeito da culpabilidade de acusados e grupos raciais e étnicos determinados podem
reforçar estigmatizações. Esse tipo de declaração pública afeta não só a presunção de inocência
enquanto direito individualmente considerado, mas como direito de todo um grupo.
Especialmente nos processos penais, a Corte estabeleceu a relação direta entre a imparcialidade do
juiz e a presunção de inocência. Declarou que: “A presunção da inocência está relacionada, em primeiro
lugar, ao espírito e atitude do juiz que deve saber da acusação criminal. O juiz deve tratar do caso sem
preconceito e sob nenhuma circunstância deve supor que o acusado é culpado”86.
Também no caso Figueredo Planchar vs. Venezuela, a Corte salientou essa relação, principalmente em
situações em que existem vazamentos para impressa de informações processuais e julgamentos ante-
cipados aptos a desqualificar a imparcialidade e independência dos juízes:

Na opinião da Comissão, os vazamentos para a imprensa por parte dos órgãos encarregados ​​de
administrar justiça na Venezuela, antes que o acusado pudesse exercer o seu direito de defesa vicia
seriamente o processo e coloca em sérias dúvidas a imparcialidade das autoridades judiciárias.
Esses fatos, somados às declarações de alguns magistrados prejulgando ou avançar no julga-
mento e qualificar o acusado como réu antes da sentença condenação, demonstrar o preconceito
da referida autoridade judiciária com uma das partes no processo, que no caso é o Estado, e o
desqualifica como um juiz independente e imparcial de acordo com os princípios estabelecido
pela Convenção Americana87.

Na jurisprudência da Corte IDH a presunção de inocência foi debatida em diversos casos considerando
a compatibilidade ou não com a prisão preventiva.
Segundo a jurisprudência interamericana, a privação de liberdade preventiva enquanto medida cautelar
deve obedecer aos princípios da legalidade, presunção de inocência, necessidade e proporcionalidade.
A prisão preventiva, para ser compatível com a presunção de inocência, deve ser compreendida como
medida de precaução, não como uma medida punitiva. Como salienta a Corte:

Este conceito figura em vários instrumentos do Direito Internacional dos Direitos Humanos. O
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos estabelece que a prisão preventiva dos réus
não deve constituir a regra geral (artigo 9.3). Uma violação da Convenção seria privar de liber-
dade, por um período desproporcional, as pessoas cuja responsabilidade criminal não foi esta-
belecida. Seria equivalente a antecipar a pena, que viola os princípios gerais do direito universal-
mente reconhecido88

No caso Bayarri vs. Argentina, foi estabelecido que em situações excepcionais, o Estado pode deter-
minar a prisão preventiva. Para restringir o direito à liberdade pessoal o Estado deve justificar de forma
satisfatória a existência de “indícios suficientes que nos permitem supor razoavelmente culpado a
pessoa submetida a um processo e que é estritamente necessário para garantir que o acusado não
impeça o desenvolvimento eficiente de investigações ou iludir ação da justiça”89.

85
COMITÊ SOBRE ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL. Recomendação geral n. XXXI, p.29. Comitê sobre Eliminação da Discrimi-
nação Racial. Recomendação geral n. XXXI, p.29.
86
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Martín de Mejía vs. Peru, 1996, p.209.


87
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Figueredo Planchar vs. Venezuela, p.140, 2000. CIDH. Caso Figueredo
Planchar vs. Venezuela, p.140, 2000.
88
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Suárez Rosero vs. Equador. Sentença de 12 de novembro de 1997, p.77.
89
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Palamara Iribarne vs. Chile, p. 98.

163
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Ao julgar o caso Giménez vs. Argentina, a Corte apontou para o risco à presunção de inocência, quando
o julgamento de réu preso na modalidade preventiva é excessivamente longo. Isso porque, apesar da
presunção de inocência, “uma pessoa ainda inocente está sendo privada de liberdade, uma punição
severa legitimamente imposta somente sobre aqueles que foram condenados”90.
No direito brasileiro a CRFB/88 foi a primeira a prever de forma explícita esse direito, no artigo 5º,
LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
Jacinto Coutinho91 observa que um sistema penal será predominantemente acusatório ou inquisitório
a depender dos princípios que regem a persecução penal. O estado de inocência é exigência constitu-
cional irrenunciável e demonstrativa “do grau de evolução da valoração do ser humano e da cidadania,
bem como da passagem do plano da retórica política à concretização constitucional”92.
A orientação constitucional privilegia o sistema acusatório, conformado pela presunção de inocência
que impõe o tratamento da pessoa como inocente e não com culpada, semi culpada ou presumida-
mente culpada “porque foi detida em flagrante, porque foi indiciada no inquérito policial ou acusada
(denúncia ou queixa-crime)”93.
Esse direito tem repercussões endoprocessuais, na medida em que conforma a atuação dos sujeitos
processuais, mas também extraprocessuais, o que demanda a observação por terceiros, principalmente
quando se trata do uso de nome e imagem do suspeito ou acusado.
O que é identificado pelo direito brasileiro como “execução provisória da pena”, diz respeito à possi-
bilidade de “início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo
grau”94, como referido no HC n. 126.292. A execução antecipada da pena além de afetar preceitos estru-
turantes da Constituição, como os artigos 1º, III e 5º, LVII, também contraria o conteúdo da CADH, assim
como a jurisprudência da Corte.
O artigo 7, da CADH, prevê que “nos Estados Partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir
ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim
de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido”.
O artigo 8.1 estabelece o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”, além de
prever no caput a presunção de inocência, até que se comprove legalmente a culpa. Também nesse
sentido o PIDCP, que no artigo 14.5 estabelece o direito de “toda pessoa declarada culpada por um
delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em confor-
midade com a lei”.
Ao julgar o caso Herrra Ulloa vs. Costa Rica, a Corte IDH reafirmou o direito de recorrer de sentença
como garantia primordial diretamente relacionada ao marco do devido processo legal. Visa permitir a
revisão por um juiz ou tribunal distinto e de hierarquia superior orgânica de forma a assegurar “uma

90
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Giménez vs. Argentina, p.80.


91
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Revista de informa-
ção legislativa, v. 46, n.183, 2009. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/194935. Acesso em: 23 de maio 2021.
92
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica.
2.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 110.
93
GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica.
2.ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 110.
94
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n.126.292 Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
cID=10964246. Acesso em: 18 mai. 2021.

164
DIREITO ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

verdadeira garantia de reconsideração do caso”, sendo que “a existência de uma via recursiva não basta
se não cumpre com esse objetivo”95.
Ao julgar o caso Mohamed vs. Argentina96, a Corte também estatuiu

Tendo em vista que as garantias judiciais buscam que quem esteja incurso em um processo não
seja submetido a decisões arbitrárias, a Corte interpreta que o direito de recorrer contra a sentença
não poderia ser efetivo, se não se garantisse o respeito de todo aquele que fosse condenado, já
que a condenação é a manifestação do exercício do poder punitivo do Estado. Resultado contrário
ao propósito desse direito específico, se não fosse garantido para quem é condenado mediante
uma decisão que revoga uma sentença absolutória. Interpretar contrariamente implicaria deixar o
condenado desprovido de um recurso contra a condenação. Trata-se de uma garantia do indivíduo
frente ao Estado, e não apenas um guia que orienta o desenho dos sistemas recursais nos ordena-
mentos jurídicos dos Estados Partes da Convenção.

Desse modo, as garantias judiciais previstas no artigo 8, da CADH, consolidam o devido processo legal,
enquanto condições a serem observadas para que o direito de defesa seja assegurado àqueles que são
submetidos à justiça. Além de assegurar os direitos do acusado em sentido estrito, as garantias judiciais
também dizem respeito a ter assegurado o acesso: aos meios materiais de defesa, a um prazo razoável
de apreciação, a procedimento conduzido por juiz ou tribunal competente, imparcial e independente.
Engloba, segundo a jurisprudência da Corte IDH, os processos judiciais e extrajudiciais, e também a
esfera penal, cível e administrativa, mesmo quando se trata de fase pré-processual, como o inqué-
rito. Como afirmado pela Corte IDH em mais de uma oportunidade, o devido processo legal mani-
festado pelas garantias judiciais é “um meio para realizar a justiça”97. Portanto, a observância desses
requisitos condiciona a atuação do Estado quando da prestação jurisdicional e também nos processos
administrativos.

95
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica. Sentença de 2 de julho de 2004.
96
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Mohamed vs. Argentina. Sentença de 23 novembro de 2012.


97
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso do Tribunal Constitucional vs. Peru, Sentença de 31 de janeiro de 2001.
Série C Nº 71, p. 45.

165
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

DIREITO À VIDA

Natália Caye Batalha Boeira

1. INTRODUÇÃO

O direito à vida é considerado o supremo bem humano, base e fundamento para os demais direitos e,
por isso, está no centro da proteção do DIDH. A Corte IDH considera que, juntamente com o direito à
integridade física, constituem mínimos indispensáveis para o exercício de qualquer atividade.1 A Corte
IDH assim especificou:

O direito à vida é um direito humano fundamental, e o gozo desse direito é um pré-requisito para o
exercício de todos os demais Direitos Humanos. Se não for respeitado, todos os direitos se tornam
sem sentido. Devido ao caráter fundamental do direito à vida, nenhuma restrição é admissível. Em
essência, o direito fundamental à vida inclui não somente o direito de todo ser humano de não ser
privado da vida arbitrariamente, como também o direito de não ter impedido o acesso a condições
que garantam uma existência decente. Estados têm a obrigação de assegurar a criação de condi-
ções necessárias para garantir que esse direito básico não seja violado, e eles têm especificamente
o dever de prevenir que seus agentes violem tal direito. 2

Apesar de ser o direito mais fundamental, o direito à vida não é absoluto. Os debates acerca do bem
jurídico “vida” dividem a opinião pública: de um lado, os chamados grupos “pró-vida”, defensores de
que a vida é um bem sagrado, indisponível e absoluto, geralmente ligados a crenças religiosas; de outro,
aqueles que defendem a possibilidade de relativização desse direito, tendentes a uma análise prática
e científica dos argumentos, apoiadores, em sua grande maioria, de temas como o aborto, a teoria da
concepção e o direito de escolha pela morte.
Quando começa a vida? Toda criança não nascida tem um direito fundamental à vida? Pode-se afirmar
a existência de um direito à morte?
A vida deve ser protegida, estando sua proteção assegurada em diversos documentos internacionais;3
o que até hoje gera grandes debates e divide os pesquisadores e população em geral é a extensão
dessa proteção.


1
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Informe sobre la situación de las defensoras y defensores de los derechos
humanos en las Américas, párr. 42. e CIDH, Caso 12.477, Lorenzo Enrique Copello Castillo y otros c. Cuba, 21 de octubre de 2006, párr.
116.
2
“The right to life is a fundamental human right, and enjoyment of this right is a prerequisite for the exercise of all other human rights. If
it is not respected, all the rights become meaningless. Because of the fundamental character of the right to life, no restrictions to it are
admissible. In essence, the fundamental right to life includes not only the right of all human beings not to be deprived of their life arbitra-
rily, but also the right not to be prevented access to the conditions guaranteeing a decent existence. States have the obligation to ensure
creation of the conditions needed to ensure that this basic right is not violated, and they specifically have the duty to prevent their agents
from violating this right.” INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Street Children Case, judgment on the merits, November
91, 1999, para. 144.
3
Como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (artigo 3º: Toda pessoa tem direito à vida [...]), em nível global, e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, de 1978 (artigo 4º, 1: Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida [...]), em nível regional,
bem como outros instrumentos de temas específicos, como tortura (Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes, de 1984) direito das crianças (Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989) e pessoas com deficiência
(Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2007).

166
DIREITO À VIDA

São duas as dimensões da proteção à vida: o direito de estar vivo; e o direito de viver dignamente.
Decorrem dessas dimensões as obrigações de cada Estado, que, além de garantir a proteção da vida do
indivíduo, deve assegurar, através de medidas positivas, os meios para que seu gozo seja digno e pleno.4
As medidas de prevenção para proteção do direito à vida (assim como do direito à integridade pessoal),
abarcam todas as medidas de caráter jurídico, político, administrativo e cultural que promovam os
Direitos Humanos e assegurem que suas violações serão consideradas e tratadas como um ilícito,
gerando uma obrigação de indenização da vítima. 5
Assim, a violação do direito à vida pode ocorrer mesmo que não haja o resultado morte, bastando
que o Estado, responsável primário por garantir o direito à vida das pessoas sob sua jurisdição, seja
omisso frente a ameaças de tal direito.6 É um dever dos Estados a adoção de medidas positivas para
prevenir violações do direito à vida, especialmente quando se tratar de pessoas em situação de vulne-
rabilidade e risco. 7

2. PREVISÃO NORMATIVA

O direito à vida representa o mais fundamental direito humano, sendo considerada uma norma de
jus cogens,8 estando previsto em todos os instrumentos internacionais e regionais de proteção aos
direitos fundamentais.9
Na DUDH, de 1948, o direito à vida consta no art. 3, que prevê:

Art. 3. “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”.

O PIDCP estabelece a proteção em seu art.6:

1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém
poderá ser arbitrariamente privado de sua vida.

4
ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. O direito à vida. Scientia Iuris, Londrina, v. 7/8, p. 340-353, 15 dez. 2004. p. 340. Disponível em: http://
search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&db=edsdoj&AN=edsdoj.06d545a6a2eb4e1b9b57ba2b841a52f1&lang=pt-br&site=eds-live.
Acesso em: 4 jan. 2019.
5
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Defensor de Derechos Humanos y otros Vs. Guatemala, párr 139.
6
No Caso Jiménez Vaca c. Colombia, o CDH entendeu que houve violação do art.6 do PIDCP, uma vez que o referido artigo implica na
obrigação do Estado de proteger o direito de todas as pessoas dentro do seu território e sob sua jurisdição. Além dos autores do atentado
à vida do cidadão serem agentes do Estado, este também não realizou investigações a fim de proceder à responsabilização dos autores.


7
A Corte IDH utilizou os seguintes critérios para avaliar que havia responsabilidade estatal na violação do direito: i) existia uma situação de
risco real para um indivíduo ou grupo de indivíduos determinados; ii) as autoridades sabiam ou deviam saber desse risco; iii) as autoridades
não adotaram medidas necessárias dentro de suas atribuições que, caso tomadas, poderiam ter prevenido ou evitado o risco. Nesse sen-
tido: Corte IDH, Caso Yarce e outros vs. Colombia. Também no sentido de reconhecer a necessidade de medidas especiais para pessoas
em situação de risco ou vulnerabilidade: Corte IDH, Caso comunidad Sawhoyamaxa c. Paraguay, párr. 153; Caso Zambrano Vélez y otros c.
Ecuador, párr. 81; Caso de la Masacre de Pueblo Bello c. Colombia, párr. 120; Caso Comunidad indígena Yakye Axa c. Paraguay, párr. 162.
8
As normas jus cogens são normas cujas violações, pode se afirmar, ferem a moralidade universal, uma vez que as normas desse gênero
decorrem de “[...] uma aproximação entre as normas costumeiras e os imperativos morais internacionais[...]”, remetendo a uma noção de
justiça universal. DAUDT, Gabriel Pithan. Reservas aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos: o conflito entre a eficácia e a
promoção dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. p.155.
9
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso “Street Children “ (Villagran-Morales et al.) v. Guatemala, Judgement
of 19 November 1999, Series C No. 77.

167
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2. Nos países em que a pena de morte não tenha sido abolida, esta poderá ser imposta apenas
nos casos de crimes mais graves, em conformidade com legislação vigente na época em que
o crime foi cometido e que não esteja em conflito com as disposições do presente Pacto, nem
com a Convenção sobra a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio. Poder-se-á aplicar
essa pena apenas em decorrência de uma sentença transitada em julgado e proferida por
tribunal competente.

3. Quando a privação da vida constituir crime de genocídio, entende-se que nenhuma disposição
do presente artigo autorizará qualquer Estado Parte do presente Pacto a eximir-se, de modo
algum, do cumprimento de qualquer das obrigações que tenham assumido em virtude das dispo-
sições da Convenção sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio.

4. Qualquer condenado à morte terá o direito de pedir indulto ou comutação da pena. A anistia, o
indulto ou a comutação da pena poderá ser concedido em todos os casos.

5. A pena de morte não deverá ser imposta em casos de crimes cometidos por pessoas menores
de 18 anos, nem aplicada a mulheres em estado de gravidez.

6. Não se poderá invocar disposição alguma do presente artigo para retardar ou impedir a abolição
da pena de morte por um Estado Parte do presente Pacto.

O 2º Protocolo Facultativo ao PIDCP, com o intuito de abolição da pena de morte e tendo como única
reserva, caso tal reserva tenha sido formulada no momento de ratificação ou adesão do Protocolo, a
possibilidade que a pena de morte seja aplicada em tempo de guerra em virtude de condenação por
infração penal de natureza militar de gravidade extrema cometida em tempo de guerra.10
A CADH, de 1978, dita a proteção no art.4:

4. DIREITO À VIDA

1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e,
em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

2. Nos países que não houverem abolido a pena de morte, esta só poderá ser imposta pelos delitos
mais graves, em cumprimento de sentença final de tribunal competente e em conformidade
com lei que estabeleça tal pena, promulgada antes de haver o delito sido cometido. Tampouco se
estenderá sua aplicação a delitos aos quais não se aplique atualmente.

3. Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido.

4. Em nenhum caso pode a pena de morte ser aplicada por delitos políticos, nem por delitos
comuns conexos com delitos políticos.

5. Não se deve impor a pena de morte a pessoa que, no momento da perpetração do delito, for
menor de dezoito anos, ou maior de setenta, nem aplicá-la a mulher em estado de gravidez.

10
ARTIGO 2º
1. Não é admitida qualquer reserva ao presente Protocolo, exceto a reserva formulada no momento da ratificação ou adesão que preveja a
aplicação da pena de morte em tempo de guerra em virtude de condenação por infração penal de natureza militar de gravidade extrema
cometida em tempo de guerra.” ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. 2º Protocolo Facultativo ao PIDCP. Adotado pela Resolu-
ção 44/128 da Assembleia Geral da ONU em 15 de dezembro de 1989.

168
DIREITO À VIDA

6. Toda pessoa condenada à morte tem direito a solicitar anistia, indulto ou comutação da pena, os
quais podem ser concedidos em todos os casos. Não se pode executar a pena de morte enquanto
o pedido estiver pendente de decisão ante a autoridade competente.

A CADH, de 1987, também prevê a proteção em seu art.4:“A pessoa humana é inviolável. Todo ser
humano tem direito ao respeito da sua vida e à integridade física e moral da sua pessoa. Ninguém pode
ser arbitrariamente privado desse direito”.
A CEDH, de 1953, abriga o direito em seu art.2.

ARTIGO 2° Direito à vida

1. O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencionalmente
privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso
de o crime ser punido com esta pena pela lei.

2. Não haverá violação do presente artigo quando a morte resulte de recurso à força, tornado
absolutamente necessário: a) Para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência
ilegal; b) Para efectuar uma detenção legal ou para impedir a evasão de uma pessoa detida legal-
mente; c) Para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreição.

Esses documentos representam o marco normativo básico do direito à vida, havendo diversos outros
documentos internacionais suplementares, de soft law11, que também preveem a sua proteção:
● Princípios básicos sobre o uso da força e de armas de fogo por Forças de Segurança (ONU, 1990);
● Princípios sobre a Efetiva Prevenção e Investigação de Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extra-
judiciais (ONU, 1989);
● Regras de proteção dos direitos das pessoas condenadas à morte (Conselho Econômico e
Social da ONU – 1984).
A CADH prevê e define os direitos humanos essenciais contidos na Carta da Organização, não podendo
se interpretar e aplicar a Carta sem integrar as normas pertinentes com as correspondentes disposi-
ções da Declaração.12
Ao se interpretar normas de Direitos Humanos, deve-se dar uma atenção especial ao sistema no qual
estão inseridos. Um dos métodos de interpretação utilizados pela Corte IDH, para delimitar o alcance
de artigos da CADH, é o sistemático, segundo o qual as normas devem ser interpretadas como parte
de um todo, seu significado e alcance devem ser determinados em função do sistema jurídico ao
qual pertencem.13


11
As normas de soft law são normas não vinculantes, ou seja, normas que, apesar de gerarem obrigações, são desprovidas de caráter
jurídico em relação aos signatários. Podem ser consideradas como normas diretivas, que deixam uma margem de apreciação quanto ao
cumprimento do conteúdo. Fonte: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
12
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Interpretación de la Declaración Americana de los Derechos y Deberes del
Hombre en el Marco del Artículo 64 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos. Opinión Consultiva OC-10/89 del 14
de julio de 1989. Serie A No. 10, párr. 43. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2002/1263.pdf. Acesso em: 21
jan 2021.
13
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Artavia Murillo e outros (“Fecundação in vitro”) vs Costa Rica. Par. 191.
Sentencia de 28 de noviembre 2012.

169
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A Corte IDH também já sinalou a importância da interpretação evolutiva, uma vez que os Tratados
de Direitos Humanos são instrumentos vivos, cuja interpretação tem de acompanhar a evolução dos
tempos e das condições de vida atuais.14
Assim, ao dar a interpretação a um Tratado, “não somente são levados em consideração os acordos
e instrumentos formalmente relacionados com este (inciso segundo do artigo 31 da Convenção de
Viena15), mas também o sistema dentro do qual se inscreve (inciso terceiro do artigo 3116), isto é, o
Direito Internacional dos Direitos Humanos”.17

3. STATUS LEGAL DO DIREITO À VIDA

A proteção do direito à vida não é formulada, no DIDH, em termos absolutos. A determinação dos
tratados internacionais aplicáveis à matéria é no sentido de que ninguém pode ser arbitrariamente
privado da vida.

14
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. El Derecho a la Información sobre la Asistencia Consular en el marco de las
Garantías del Debido Proceso Legal. Opinión Consultiva OC-16/99 de 1 de octubre de 1999. Serie A No. 16, párr. 114. Disponível em: ht-
tps://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2001/0102.pdf?file=fileadmin/Documentos/BDL/2001/0102. Acesso em: 16 ago. 2021.
15
“Artigo 31
Regra Geral de Interpretação
(…)
2. Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto compreenderá, além do texto, seu preâmbulo e anexos:
a)qualquer acordo relativo ao tratado e feito entre todas as partes em conexão com a conclusão do tratado;
b)qualquer instrumento estabelecido por uma ou várias partes em conexão com a conclusão do tratado e aceito pelas outras partes
como instrumento relativo ao tratado.” BRASIL. Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre
o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm. Acesso em: 16, ago. 2021.
16
“3. Serão levados em consideração, juntamente com o contexto:
a)qualquer acordo posterior entre as partes relativo à interpretação do tratado ou à aplicação de suas disposições;
b)qualquer prática seguida posteriormente na aplicação do tratado, pela qual se estabeleça o acordo das partes relativo à sua interpreta-
ção;”
c)quaisquer regras pertinentes de Direito Internacional aplicáveis às relações entre as partes.” Ibid.
17
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, O Direito à Informação sobre a Assistência Consular no âmbito das Garantias do
Devido Processo Legal. Parecer Consultivo OC-16/99 de 1° de outubro de 1999. Série A N° 16, par. 113, e Corte IDH, Caso das “Crianças de
Rua” (Villagrán Morales e outros) Vs. Guatemala. Reparações e Custas. Sentença de 26 de maio de 2001. Série C. N° 192.

170
DIREITO À VIDA

Segundo o CDH, a privação da vida envolve um dano ou lesão intencional ou de alguma forma previ-
sível e evitável, causada por um ato ou omissão, indo além de danos à integridade corporal ou mental
ou ameaça a elas, nos termos do art. 11 e 12 do PIDESC.18
Ao prever que a vida não deve ser privada de forma arbitrária, o PIDCP reconhece que há casos em que
a privação da vida poderá ocorrer de forma não arbitrária. Isso porque o direito à vida não é absoluto.
Nos termos do Capítulo VII da Carta da ONU, a ameaça ou o uso da força por qualquer Estado contra
outro Estado, exceto no exercício do direito inerente à autodefesa ou à defesa dos direitos humanos,
já é proibido.19
A tomada intencional da vida por qualquer meio é permissível somente se for estritamente necessária
para proteger a vida de uma ameaça iminente, ou quando se estiver diante de casos em que a pena de
morte é autorizada pela legislação interna e decorra do devido processo legal. 20
A noção de arbitrariedade, segundo o CDH, não se restringe à contrariedade à lei, mas se trata de uma
noção mais ampla, incluindo “elementos de inadequação, injustiça, falta de previsibilidade e devido
processo legal,” além de incluir os elementos indispensáveis da razoabilidade, necessidade e propor

18
“Artigo 11.º
1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas
famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de
existência. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito reconhecendo para este
efeito a importância essencial de uma cooperação internacional livremente consentida.
2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de todas as pessoas de estarem ao abrigo da fome, adotarão
individualmente e por meio da cooperação internacional as medidas necessárias, incluindo programas concretos:
a) Para melhorar os métodos de produção, de conservação e de distribuição dos produtos alimentares pela plena utilização dos conhe-
cimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo desenvolvimento ou a reforma dos regimes
agrários, de maneira a assegurar da melhor forma a valorização e a utilização dos recursos naturais;
b) Para assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentares mundiais em relação às necessidades, tendo em conta os problemas
que se põem tanto aos países importadores como aos países exportadores de produtos alimentares.
Artigo 12.º
1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do melhor estado de saúde física e mental
possível de atingir.
2. As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno exercício deste direito deverão compreen-
der as medidas necessárias para assegurar:
a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são desenvolvimento da criança;
b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene industrial;
c) A profilaxia, tratamento e controlo das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras;
d) A criação de condições próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e ajuda médica em caso de doença.” ASSEMBLEIA
GERAL. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Adotado pela Resolução n.2.200-A (XXI) da Assembleia Geral
das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 e ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992.
19
“Artigo 51. Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque
armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manu-
tenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão
comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que
a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabe-
lecimento da paz e da segurança internacionais.”BRASIL. Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações
Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de
1945, por ocasião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/1930-1949/d19841.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2019.841%2C%20DE%2022%20DE%20OUTUBRO%20DE%20
1945.&text=Promulga%20a%20Carta%20das%20Na%C3%A7%C3%B5es,Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Internacional%20das%20
Na%C3%A7%C3%B5es%20Unidas . Acesso em: 12 abr. 2021.
20
Comentários Gerais dos Tratados de Direitos Humanos da ONU. Disponível em: https://www.academia.edu/44631261/Coment%C3%A-
1rios_gerais_dos_Comit%C3%AAs_de_Tratados_de_Direitos_Humanos_da_ONU. Acesso em 12 abr. 2021. p. 199-200.

171
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

cionalidade. 21 A legalidade remete à ideia de que o uso da força deve ser utilizado para atingir um fim
legítimo e deve estar em conformidade com as normas legais existentes. 22
A absoluta necessidade será verificada caso outros meios não estejam disponíveis. A Corte EDH
entendeu que não se pode concluir pela absoluta necessidade nos casos em que a força é utilizada
contra pessoas que não representem uma ameaça direta, mesmo quando a falta do uso da força resulte
na sua não captura. 23
O princípio da proporcionalidade está ligado à noção de arbitrariedade. No Julgamento do caso Elet-
tronica Sicula, 24 a CIJ entendeu que arbitrário pode ser entendido como algo não só contrário à letra
da lei, como também ao próprio Estado de Direito, de modo que caracteriza um desrespeito inten-
cional do devido processo legal, ou mesmo um ato que choca o senso de propriedade jurídica. 25 Assim,
o princípio da proporcionalidade estabelece que a força utilizada deve ser proporcional ao nível de
resistência oferecido, sendo um fator crucial para determinar se a privação da vida foi arbitrária, cons-
tituindo um ilícito.
Os Estados não só têm o dever supremo de prevenir guerras, 26 atos de genocídio e outros atos de
violência em massa que causem perda arbitrária de vidas, como também devem garantir o direito à
vida e exercer a devida diligência para proteger a vida das pessoas que se encontram em seu território,
seja tomando as medidas necessárias para evitar mortes quando diante de ameaças razoavelmente
previsíveis, seja estabelecendo um quadro jurídico interno que controle o uso de força letal e garanta o
completo gozo do direito à vida de todos os indivíduos. 27
Em âmbito regional, referir que o direito à vida não pode ser privado arbitrariamente, não significa
afirmar que qualquer privação da vida é contrária à CADH, mas somente aquelas que ocorrem de forma
arbitrária/ditatorial/prepotente, 28 caracterizando, assim, uma obrigação negativa dos Estados. A Corte
IDH entendeu que:

É então claro que, em princípio, é imputável ao Estado toda violação aos direitos reconhecidos
pela CADH realizada por um ato do poder público ou de pessoas que atuam se beneficiando dos
poderes que ostentam por seu caráter oficial. Não obstante, não se esgotam ali as situações nas
quais um Estado está obrigado a prevenir, investigar e punir as violações aos Direitos Humanos,
nem as hipóteses em que sua responsabilidade pode ver-se comprometida por efeito de uma
lesão a esses direitos. Com efeito, um fato ilícito violatório dos Direitos Humanos que inicialmente


21
Ibid. P. 199-201.
22
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Nadege Dorzema et al. V. República Dominicana. Julgamento de 24 de
outubro de 2012. p. 28.
23
CEDH. Case of Kakoulli v. Turkey, para. 108.
24
CIJ, CASE CONCERNING ELETTRONICA SICULA S.P.A. (ELSI) (UNITED STATES OF AMERICA v. ITALY).
25
CIJ, Elettronica Sicula S.P.A. (ELSI), Judgment, I.C.J. Reports 1989, p. 15. (UNITED STATES OF AMERICA v. ITALY). parágrafo 128.
26
A esse respeito, o CDH observa, em particular, uma conexão entre o artigo 6º e o artigo 20, que estabelece que a lei proibirá qualquer
propaganda de guerra (parágrafo 1º) ou incitamento à violência (parágrafo 2º). Comentários Gerais dos Tratados de Direitos Humanos
da ONU. Disponível em: https://www.academia.edu/44631261/Coment%C3%A1rios_gerais_dos_Comit%C3%AAs_de_Tratados_de_Di-
reitos_Humanos_da_ONU. Comentário Geral n. 6. p. 197.
27
A esse respeito, o CDH observa, em particular, uma conexão entre o artigo 6º e o artigo 20, que estabelece que a lei proibirá qualquer
propaganda de guerra (parágrafo 1º) ou incitamento à violência (parágrafo 2º). Comentários Gerais dos Tratados de Direitos Humanos da
ONU. Disponível em: https://www.academia.edu/44631261/Coment%C3%A1rios_gerais_dos_Comit%C3%AAs_de_Tratados_de_Direi-
tos_Humanos_da_ONU. Comentário Geral n. 6. P. 197.
28
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS.. Caso Montero Aranguren y otros (Retén de Catia) Vs. Venezuela. Excepción
Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de julio de 2006. Serie C No. 150, párr. 68, y Caso Ortiz Hernández y otros Vs.
Venezuela, párr. 103.

172
DIREITO À VIDA

não resulte imputável diretamente a um Estado, por exemplo, por ser obra de um particular ou
porque o autor da transgressão não foi identificado, pode acarretar a responsabilidade interna-
cional do Estado, não por esse fato em si mesmo, mas pela falta da devida diligência para prevenir
a violação ou para tratá-la nos termos requeridos pela CADH. 29

O direito à vida compreende, ainda, não só o direito de todo ser humano de não ser privado da vida
arbitrariamente, como também o direito de não ser impedido de acessar condições que garantam uma
existência digna, de modo que os Estados têm a obrigação (positiva) de garantir a criação de condi-
ções necessárias para que não ocorram violações a esse direito, especialmente por agentes estatais. A
privação da vida decorrente da utilização de força ilegítima, excessiva ou desproporcionada será consi-
derada arbitrária. 30
A Corte IDH entende que, para a responsabilização do Estado pela violação de um direito à vida, não
é necessário que tenha sido determinada a culpabilidade/intenção dos autores, tampouco que estes
sejam individualmente identificados. Devem ser verificadas as ações e/ou omissões do ente estatal
que permitiram a perpetração dessas violações, ou que existia uma obrigação estatal e que esta
não foi cumprida. 31
Tanto o PIDCP, em seu art.6º, quanto a CADH, em seu art. 27, preveem que o direito à vida é inderro-
gável. Ou seja, não pode ser suspenso em casos de guerra, perigo público, ou outras ameaças à inde-
pendência ou segurança dos Estados Partes. 32 A Corte IDH, ao reafirmar o caráter inderrogável desse
direito, utiliza-se também de documentos de Direito Internacional Humanitário, que são complemen-
tares aos documentos de DIDH, sendo que toda pessoa, seja em um conflito interno, seja em algum
conflito internacional, encontra-se protegida tanto pelas normas de direito internacional humanitário,
como pelas normas de DIDH. Salienta-se que a Corte IDH tem, inclusive, competência para conhecer
casos em que um Estado possa ter violado a CADH, seja em tempos de paz ou de conflito armado. 33

4. ABRANGÊNCIA

Uma das principais divergências a respeito da abrangência da proteção do direito à vida é o momento
do seu início, ou seja, a partir de que momento a vida de um ser humano passa a ser protegida. O marco
inicial do direito à vida está interligado ao momento em que um indivíduo passa a ser considerado
como pessoa humana, dotada de personalidade jurídica, fazendo jus à proteção do art. 4 da CADH.

29
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez. Julgamento de 29 de Julho de 1988, Serie C No. 4.,
par. 172.
30
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala.
Fondo. Sentencia de 19 de noviembre de 1999. Serie C No. 63.


31
O Estado deve ter o conhecimento de uma situação de risco real e imediato a um indivíduo ou grupo de indivíduos determinados, agindo
de forma a prevenir a violação do direito. Não será imputada a responsabilidade ao Estado caso este tenha tomado todas as medidas ao
seu alcance para impedir a violação do direito, devendo se ater às circunstâncias particulares de cada caso. Nesse sentido: CORTE INTE-
RAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso de la Masacre de Pueblo Bello Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas; Caso
Comunidad Garífuna de Punta Piedra y sus miembros Vs. Honduras.
32
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso Montero Aranguren y otros (Retén de Catia) Vs. Venezuela; Caso
Zambrano Vélez y otros Vs. Ecuador; Caso Cruz Sánchez y otros Vs. Perú.
33
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS y Comité Internacional de la Cruz Roja Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte
Interamericana de Derechos Humanos No. 17 : Interacción entre el Derecho Internacional de los Derechos Humanos y el Derecho Inter-
nacional Humanitario / Corte Interamericana de Derechos Humanos y Comité Internacional de la Cruz Roja – [ed. ampl.] -- San José, C.R.
: Corte IDH, 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/cuadernillo17.pdf . Acesso em: 12 abr. 2021. pg. 6.

173
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A CADH prevê que o direito à vida será protegido, em geral, desde o momento de sua concepção,
sendo o único documento de Direitos Humanos que dita expressamente o momento em que esse
direito se inicia. A Corte IDH já se posicionou adotando a teoria concepcionista no caso Artavia
Murilo X Costa Rica. 34
O caso Artavia Murilo discutiu as violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado da Costa
Rica, decorrentes da proibição geral imposta pelo Estado parte de realização da Fecundação in vitro
(FIV), que feriu o direito à igualdade das vítimas, por lhes negar tratamento da causa que as colocava
em situação desigual à das demais mulheres e produzindo-lhes um impacto desproporcional, além de
constituir uma ingerência arbitrária nos direitos à vida privada e familiar e a formar uma família.
O caso foi apresentado à Corte IDH pela CIDH, tendo sido solicitada a declaração de responsabilidade
internacional da Costa Rica por violação dos artigos 11.2, 17.2 e 24 da CADH, em relação aos artigos 1.1
e 2 deste instrumento. A Corte IDH reconheceu que não existe uma proteção absoluta ao embrião
diante da cláusula “em geral” prevista no artigo 4 da CADH, que possibilita a invocação de exceções
diante de um conflito de direitos. O princípio da interpretação mais favorável não permite a supressão
dos demais direitos e liberdades reconhecidos na Convenção em detrimento a um direito absoluto à
vida. Em outras palavras, os direitos devem coexistir, não podendo um ser anulado em favor de outro.
A definição de pessoa, para os propósitos de interpretação do art. 4.1 da CADH, está ancorada nas
menções que se fazem no Tratado em relação à concepção e ao ser humano. Para chegar à conclusão
do conceito do termo concepção, a Corte IDH utilizou os seguintes métodos de interpretação do
art.4 da CADH: interpretação sistemática e histórica, evolutiva e teleológica. 35 Apesar de afirmar que a
controvérsia sobre o início da vida humana deve ser apreciada de diversas formas sob uma perspectiva
biológica, médica, ética, moral, filosófica e religiosa, a Corte IDH deixou claro que opiniões religiosas
não podem justificar que se conceda prevalência a algum tipo de literatura científica no momento de
interpretar o alcance do direito à vida consagrado na CADH, pois isso implicaria “impor um tipo de
crenças específicas a outras pessoas que não as compartilham”. 36
A Corte IDH, ao conceituar o termo concepção, entendeu que este não pode ser entendido como um
“um momento ou processo excludente do corpo da mulher, dado que o embrião não tem nenhuma
possibilidade de sobrevivência se a implantação não ocorre.” Assim, observa que somente no momento
em que ocorre a implantação do embrião no óvulo, e não no momento de sua fecundação, é possível
entender que existe a concepção. 37 O termo em geral, por sua vez, remete à noção de que a proteção
a esse direito não é absoluta, mas “gradual e incremental segundo seu desenvolvimento, em razão de
que não constitui um dever absoluto e incondicional, mas implica entender a procedência de exceções
à regra geral”. 38
A decisão da Corte IDH no caso Artavia Murilo sobrepõe a dignidade humana ao próprio direito à vida,
definindo que a interpretação a ser dada ao artigo 4.1 da CADH é: “Toda pessoa [embrião não é pessoa,
é parte da raça humana, requerendo proteção em nome da dignidade humana, sem que haja um direito
à vida propriamente dita] tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela
lei e, em geral [admitem-se exceções, ou seja, o direito à vida não é absoluto, mas gradual e incremental

34
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Artavia Murillo e outros (“Fecundação in vitro”) vs Costa Rica. Senten-
ça de 28 de novembro de 2012.
35
Ibid. Par. 163-256.
36
Ibid. Par. 185.


37
Ibid. par. 187
38
Ibid. Par.264.

174
DIREITO À VIDA

segundo seu desenvolvimento], desde o momento da concepção [momento em que o embrião é


implantado no útero]. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.”
Portanto, a Corte IDH concluiu que o embrião não pode ser entendido como pessoa, sendo que
concepção, no sentido do artigo 4.1, ocorre a partir do momento em que o embrião implanta-se no
útero, de modo que antes deste evento não se aplica o art. 4 da CADH. 39

5. LIMITAÇÕES DO DIREITO À VIDA E VIDA DIGNA

Todos os direitos protegidos no âmbito do DIDH visam garantir a dignidade da pessoa humana; dessa
forma, deve-se compreender que não basta garantir a vida, deve-se garantir a vida digna. Dessa
premissa surgem discussões acerca do direito de cada indivíduo de dispor da sua vida ou da vida que se
encontra dentro de si.

a) A Possibilidade do Aborto x O Direito à Vida do Feto

A possibilidade do aborto é um dos assuntos de maior controvérsia ao se tratar de direitos reprodu-


tivos. O debate na comunidade internacional sobre a extensão dos direitos reprodutivos da mulher
em confronto com o direito à vida do feto é de longa data.40 No entanto, a palavra aborto, ou qualquer
sinônimo, ainda não está presente em qualquer Tratado de Direitos Humanos no escopo da ONU, o
que impede que se afirme a existência de um direito universal (ou proibição) ao aborto. Assim, o dever
de legislar sobre a possibilidade do aborto ainda recai sobre cada Estado, 41 não havendo uma previsão
expressa nos documentos internacionais quanto à essa possibilidade, salvo quando em confronto com
o direito da mulher à dignidade, à vida e à saúde.42
A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Conferência do Cairo), realizada em
1994, descreveu o direito à saúde reprodutiva como um direito humano básico. O Programa de Ação,
resultado dessa Conferência, menciona que em situações em que o aborto é considerado legal pela
legislação doméstica de cada Estado, eles devem ser seguros, bem como que a prevenção da gravidez
indesejada é importante.43
Nenhum dos documentos internacionais de proteção aos Direitos Humanos contempla uma proteção
absoluta da vida do embrião, prevalecendo o direito da mulher à dignidade, à vida e à saúde.44
O único tratado de DIDH que prevê expressamente o momento em que a vida começa, especificando
que o embrião, a partir do momento em que é implantado no útero, merece a proteção prevista no art.

39
Ibid. Par. 264.
40
Os direitos reprodutivos foram proclamados como Direitos Humanos pela Conferência Internacional de Direitos Humanos, realizada no
ano de 1968, que também declarou que os pais têm o direito humano fundamental de determinar livremente o número de filhos e seus
intervalos de nascimento. PROCLAMAÇÃO DE TEERÃ. Proclamada pela Conferênca de Direitos Humanos em Teerã a 13 de maio de 1968.
A/CONF.32/41, Final act of the International Conference on Human Rights, proclamation 16, p.4.


41
CADH, White and Potter (Baby Boy) v. the United States, 1981. Par. 18.
42
A Corte Europeia de Direitos Humanos afirmou, no caso Vo. Vs. França, que há apenas um consenso entre os Estados de que o embrião é
parte da raça humana, requerendo proteção em nome da dignidade humana; reconhecendo, no entanto, que não se trata de uma pessoa
com direito à vida para os efeitos do artigo 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Do mesmo modo refere que o Tribunal de
Justiça da União Europeia, no Caso Oliver Brüstle Vs. Greenpeace, não estabelece que os embriões devem ser considerados pessoas, nem
que tenham direito subjetivo à vida. Corte EDH. Caso Vo v. França. Application no. 53924/00. Julgamento 8 de Julho de 2004.
43
A/CONF.171/13. Programme of Action adopted at the conference on ICPD in Cairo 1994.
44
CDH, Caso KL vs Peru, CCPR/C/85/D/1153/2003 (Nov. 2005).

175
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

4.1, é a CADH. Essa proteção, no entanto, não é absoluta, já tendo a CIDH, na sua Resolução 23/81, reco-
nhecido que a proibição absoluta ao aborto não está contida no escopo de proteção do direito à vida. 45
A CIDH, no caso Baby Boy Vs. Estados Unidos da América, 46 rejeitou o pedido dos peticionários para
declarar duas sentenças da Suprema Corte dos Estados Unidos, 47 que legalizaram o aborto sem
restrição de causa antes da viabilidade fetal, como violadoras da Declaração Americana dos Direitos
e Deveres do Homem. Em relação à interpretação do artigo I da Declaração Americana, a Comissão
rejeitou o argumento dos peticionários segundo o qual “o artigo I da Declaração incorporou a noção de
que o direito à vida existe desde o momento da concepção”, 48 considerando que a Nona Conferência
Internacional Americana, ao aprovar a Declaração Americana, “enfrentou esta questão e decidiu não
adotar uma redação que houvesse claramente estabelecido esse princípio”.49
Em relação à interpretação da CADH, a Comissão afirmou que a proteção do direito à vida não é abso-
luta. 50 Considerou que “[a] adição da frase `em geral, desde o momento da concepção´ não significa que
quem formulou a Convenção tivesse a intenção de modificar o conceito de direito à vida que preva-
leceu em Bogotá, quando aprovaram a Declaração Americana. As implicações jurídicas da cláusula `em
geral, desde o momento da concepção´ são substancialmente diferentes da cláusula mais curta `desde
o momento da concepção´, que aparec[ia] repetida muitas vezes no documento dos peticionários”. 51
Além disso, no emblemático caso Artavia Murilo X Costa Rica, já citado, a Corte IDH entendeu que o
embrião não pode ser considerado pessoa para os efeitos do artigo 4.1 da CADH, concluindo que o
momento da concepção ocorre quando o embrião é implantado no útero, de modo que, a proteção da
vida pré-natal contemplada no art. 4,1 não é absoluta, mas sim gradual e incremental de acordo com
seu desenvolvimento. 52
Ainda em caso envolvendo países da América Latina, o CDH53 em decisão que sobrepôs o direito à
saúde e dignidade da mulher ao direito à vida do feto, entendeu no caso KL vs. Peru, que o Estado, ao não
permitir o aborto de feto anencefálico em jovem de 17 anos, 54 violava os artigos 2, 7, 17 e 24 do PIDCP. 55
Em 2011, o CDH considerou o governo argentino culpado de violar as mesmas disposições em um
caso semelhante, LMR vs. Argentina, que dizia respeito a uma peticionária com deficiência mental que
engravidou após uma suspeita de estupro. 56

45
O caso 2141 trata sobre a suposta violação dos Estados Unidos ao direito à vida, ao não condenar um médico, Kenneth Edelin, pelo aborto
praticado na estimada 22ª semana gestacional de uma menina de 17 anos. Ao fazer uma análise histórica da CADH . CIDH, Baby Boy Vs.
Estados Unidos, Caso 2141, Relatório n° 23/81, OEA/Ser.L/V/II.54, doc. 9 rev. 1 (1981).
46
CIDH, Baby Boy Vs. Estados Unidos, Caso 2141, Relatório n° 23/81, OEA/Ser.L/V/II.54, doc. 9 rev. 1 (1981).
47
Corte Suprema de Justiça dos Estados Unidos, Casos Roe Vs. Wade, 410 U.S. 113, e Doe Vs. Bolton, 410 U.S. 179.
48
CIDH, Baby Boy Vs. Estados Unidos, Caso 2141, Relatório n° 23/81, OEA/Ser.L/V/II.54, doc. 9 rev. 1 (1981), par. 19.h).
49
Ibid.
50
Ibid, par. 25.


51
Ibid, par. 30.
52
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso Artavia Murillo e outros (“Fecundação in vitro”) vs Costa Rica. Dispo-
nível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_por.pdf. Acesso em: 21 jan 2019. Par. 163-264.
53
Órgão da ONU responsável pela fiscalização do cumprimento do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e seus protocolos.
54
O Estado informou à jovem que legislação interna apenas autorizava o aborto caso necessário para salvar a vida da mulher grávida, ou
quando comprovado que o nascimento da criança traria danos permanentes à saúde da mulher.
55
CDH, Caso KL vs Peru, CCPR/C/85/D/1153/2003 (Nov. 2005).
56
CDH, Caso LMR v. Argentina, CCPR/C/101/D/1608/2007, 2011.

176
DIREITO À VIDA

O art. 6.5 do PIDCP prevê que a pena de morte não pode ser aplicada a mulheres grávidas, 57 conce-
dendo uma proteção implícita ao feto. Essa proteção, no entanto, é apenas gradual e não absoluta, na
medida em que a partir do nascimento da criança, a pena de morte poderá ser executada.
Em suas Observações Finais sobre o Segundo Informe Periódico de Honduras, o CDH expressou sua
preocupação com legislações que proíbem o aborto em qualquer hipótese, especialmente quando há
risco de vida para a mulher gestante, de forma a ir contra o que prevê o art. 6 do PIDCP. Segundo o
CDH, o Estado deve ajudar as mulheres a evitar a gravidez não desejada, evitando a procura por abortos
clandestinos que põem em risco a vida da gestante. 58 Nesse mesmo sentido, o CDH entendeu que a
criminalização do aborto em casos de anormalidade fetal constitui uma violação aos arts. 3, 7, 17 e 19, do
PIDCP. O CDH considerou que o equilíbrio que o Estado escolheu estabelecer entre a proteção do feto
e os direitos da mulher no caso em debate não poderia ser justificado. 59
Segundo o Comentário Geral n.16 do CDH,60 quanto ao direito à privacidade, o conceito de arbitra-
riedade tem a intenção de garantir que mesmo que a interferência na vida privada seja baseada na lei
interna do Estado, esta deve estar de acordo com as provisões, intenções e objetivos do PIDCP, e devem
ser razoáveis consideradas as particularidades de cada circunstância.61
Já o Comentário Geral n.35 do Comitê sobre Eliminação da Discriminação contra Mulheres alerta
para violações dos direitos sexuais, reprodutivos e à saúde das mulheres, como esterilizações forçadas,
aborto forçado, gravidez forçada, a criminalização do aborto, negação ou demora de aborto seguro e
atenção pós-aborto, continuação forçada da gravidez, abuso e maus-tratos a mulheres e meninas que
buscam informações sobre saúde sexual e reprodutiva, bens e serviços. Todas são formas de violência
de gênero que, dependendo da extensão e das circunstâncias, podem equivaler a tortura, tratamento
cruel, desumano ou degradante.62
Solidificando esse entendimento, o CDH concluiu no caso Mellet vs. Irlanda que a proibição absoluta
ao aborto, amparada pela legislação interna do Estado, submeteu a autora a tratamento cruel, inumano
e degradante e feriu seu direito à dignidade e integridade física e mental ao a) negar o tratamento
reprodutivo que lhe era necessário; b) força-la a dar continuidade à gravidez de um feto que estava
morrendo; c) obrigá-la a terminar sua gravidez no exterior; e d) sujeitá-la a intenso estigma.63
Além disso, em suas observações finais aos relatórios dos Estados, o CDH afirmou que o direito à vida
da mãe é violado quando as leis que restringem o acesso ao aborto obrigam-na a recorrer ao aborto
inseguro, expondo-a à morte. Esses relatórios não indicam o reconhecimento de um direito geral ao


“Artigo 6º (…) §5. Uma pena de morte não poderá ser imposta em casos de crimes por pessoas menores de 18 anos, nem aplicada a mu-
57

lheres em caso de gravidez,


(…).”
58
CDH. Observaciones finales sobre el informe de Honduras A/62/40 (vol. I) (2006), párr. 8
59
CDH. Views adopted by the Committee under article 5 (4) of the Optional Protocol, concerning communication No. 2324/2013.
Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Women/WRGS/Mellet_v_Ireland.pdf. Acesso em 18 set. 2021.
60
Comentários Gerais dos Tratados de Direitos Humanos da ONU. Disponível em: https://www.academia.edu/44631261/Coment%C3%A-
1rios_gerais_dos_Comit%C3%AAs_de_Tratados_de_Direitos_Humanos_da_ONU. Acesso em: 25 out. 2022. Pg.73.


61
No caso Mellet v. Irlanda, o CDH considerou que o tratamento diferenciado a que a parte autora foi submetida em relação a outras
mulheres em situação semelhante, não levou em conta adequadamente suas necessidades médicas e circunstância socioeconômicas e
não atendeu aos requisitos de razoabilidade, objetividade e legitimidade de propósito. CDH. Views adopted by the Committee under
article 5 (4) of the Optional Protocol, concerning communication No. 2324/2013. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/
Issues/Women/WRGS/Mellet_v_Ireland.pdf. Acesso em 18 set. 2021. pg.17.
62
The CEDAW committee, General Recommendation No. 35, Gender-based violence against women, para. 18 e 31.
63
CDH. Views adopted by the Committee under article 5 (4) of the Optional Protocol, concerning communication No. 2324/2013.
Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Women/WRGS/Mellet_v_Ireland.pdf. Acesso em 20 out. 2021.

177
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

aborto, mas não há nenhuma regra nos Tratados de Direitos Humanos que impeça os Estados de
regulamentarem-no.64
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos reiterou no Caso Evans vs. Reino Unido o entendimento esta-
belecido no Caso Vo. vs. França, afirmando que

(…) na ausência de um consenso europeu em relação à definição científica e legal do início da vida,
o problema de quando se inicia o direito à vida se encontra dentro da margem de apreciação que a
Corte geralmente considera que os Estados deveriam desfrutar nesta esfera. No direito inglês, tal
como foi afirmado pelos tribunais internos no presente caso do peticionário […], um embrião não
tem direitos independentes ou interesses e não pode alegar – ou alegar em seu nome – um direito
à vida de acordo com o artigo 2 (da Convenção Europeia de Direitos Humanos).65

Portanto, apesar de o artigo 4.1 da CADH não impor uma obrigação geral de proibição ou legalização do
aborto, ele impõe obrigações positivas ao Estado – que deve adotar todas as medidas apropriadas para
proteger e preservar o direito à vida digna – sendo dever do Estado criar - e fazer valer - leis internas
de modo a respeitar a dignidade da mulher, por vezes em detrimento da vida do feto. O direito da
mulher ao aborto e ao acesso a serviços de saúde reprodutiva adequados acaba sendo um componente
essencial do direito à vida, segurança e igualdade de gênero, sendo obrigação do Estado garanti-los.66

b) O Direito à Morte Como Decorrência do Direito à Vida

Nenhum tratado internacional afirma expressamente que é garantido ao ser humano o direito à morte.
A morte é uma certeza, no entanto as circunstâncias nas quais ocorrerá são, geralmente, imprevisí-
veis. Com o avanço da medicina e o desenvolvimento de técnicas que permitem conforto ao morrer,
surgiram discussões acerca do direito de morrer e a existência ou não de uma autonomia para fazê-lo.
O direito à vida, conforme visto, é garantido por diversos documentos internacionais, não sendo sua
proteção, no entanto, absoluta. Há autores que afirmam que o direito de morrer ou a autonomia para
morrer integram o direito à vida na medida em que a dignidade humana só terá aplicação em um
contexto de liberdade e igualdade, de modo que impedir a escolha pela morte em pacientes que já
não encontram um sentido na vida seria uma ofensa à própria dignidade humana.67 Em contrapartida,
a Corte EDH já decidiu que o direito à vida previsto na CEDH não abrange o direito à morte, mas sim, a

64
À maneira de exemplo, o CDH emitiu as seguintes observações finais neste sentido: Argentina, § 14, UN Doc. CCPR/CO/70/arg (2000);
Bolívia, § 22, UN Doc. CCPR/C/79/Ad.74 (1997); Costa Rica, § 11, UN Doc. CCPR/C/79/Ad.107 (1999); Chile, § 15, UN Doc. CCPR/C/79/
Add.104 (1999); El Salvador, § 14, UN Doc. CCPR/CO/78/SLV (2003); Equador, § 11, UN Doc. CCPR/C/79/Add.92 (1998); Gâmbia, § 17,
UN Doc. CCPR/CO/75/GMB (2004); Guatemala, § 19, UN Doc. CCPR/CO/72/GTM (2001); Honduras, § 8, UN Doc CCPR/C/HND/CO/1
(2006); Quênia, § 14, UN Doc. CCPR/CO/83/KEN (2005); Kuwait, §§ 9, CCPR/CO/69/KWT (2000); Lesoto, § 11, UN Doc. CCPR/C/79/
Add.106 (1999); Ilhas Maurício, § 9, UN Doc. CCPR/CO/83/MUS (2005); Marrocos, § 29, UN Doc. CCPR/CO/82/MAR (2004); Paraguai, § 10,
UN Doc. CCPR/C/PRY/CO/2 (2006); Peru, § 15, UN Doc. CCPR/C/79/Ad.72 (1996); Peru, § 20, UN Doc. CCPR/CO/70/PER (2000); Polônia,
§ 8, UN Doc. CCPR/CO/82/POL (2004); República da Tanzânia, § 15, UN Doc. CCPR/C/79/Ad.97 (1998); Trinidad e Tobago, § 18, UN Doc.
CCPR/CO/70/TTO (2000); Venezuela, § 19, UN Doc. CCPR/CO/71/VEN (2001), e Vietnam, § 15, UN Doc. CCPR/CO/75/VNM (2002).
Além disso, no Caso K.L. Vs. Peru, o CDH determinou que, ao haver negado um aborto terapêutico a uma mulher apesar de que a conti-
nuação da gravidez colocava em grave perigo sua vida e saúde mental, o Estado violou seu direito a não ser submetida a tratamento cruel,
desumano ou degradante. Caso K.L. Vs. Peru, CDH, Com. nº 1153/2003, Doc. ONU CCPR/C/85/D/1153/2003 (2005). Essa interpretação
foi ratificada no Caso L.M.R. Vs. Argentina, no qual o CDH observou que negar o aborto legal em um caso de estupro causou à vítima
sofrimento físico e mental, com o que se violou seu direito à intimidade e a não ser submetida a tortura ou tratamento cruel, desumano
ou degradante. Caso L.M.R. Vs. Argentina, CDH, Com. nº 1608/2007, Doc. ONU CCPR/C/101/D/1608/2007 (2011).
65
CEDH, Caso Evans Vs. Reino Unido, (n° 6339/05), Sentença de 10 de abril de 2007, par. 54.
66
MALMSKOLD, Elin. The status of abortion in Public International Law and its effect on domestic legislation. Disponível em: https://
www.diva-portal.org/smash/get/diva2:1231728/FULLTEXT01.pdf. Acesso em 10 jan. 2021. pg. 51.


67
SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Direito de morrer: a realização da pessoalidade e a efetivação do direito de viver.
Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

178
DIREITO À VIDA

responsabilidade do Estado não apenas de não tirar a vida, como de adotar medidas a fim de proteger
os indivíduos sob sua jurisdição.68
A autonomia para morrer pode ser exercida de diversas formas, sendo as mais conhecidas: o suicídio, a
eutanásia, a ortotanásia e o suicídio assistido.
O termo eutanásia deriva do grego eu (boa), thanatos (morte), podendo ser traduzida como boa morte.
De acordo com Maria de Fátima Freire Sá e Diogo Luna Moureira:

A eutanásia, propriamente dita, é a promoção do óbito. É a conduta através da ação ou omissão


do médico, que emprega, ou omite, com consentimento da pessoa, meio eficiente para produzir a
morte em paciente incurável e em estado de grave sofrimento; diferentemente do curso natural,
abreviando-lhe a vida.69

A eutanásia ativa envolve uma ação para aliviar o sofrimento de uma pessoa sem perspectiva de
melhora. 70 Já na eutanásia passiva, também conhecida como ortotanásia, consiste em uma omissão,
por exemplo na não iniciação ou na suspensão de um tratamento, e envolve o não prolongamento da
vida diante de alguma enfermidade ou complicação intercorrente. 71
No suicídio assistido a morte não depende diretamente da ação de terceiro, é consequência de uma
ação do próprio paciente. Apesar de próximas, são figuras não equivalentes, como muito bem diferen-
ciado por Diaulas Costa Ribeiro:

Na eutanásia, o médico age ou omite-se. Dessa ação ou omissão surge, diretamente, a morte.
No suicídio assistido, a morte não depende diretamente da ação de terceiro. Ela é consequência
de uma ação do próprio paciente, que pode ter sido orientado, auxiliado ou apenas observado
por esse terceiro. 72

Não há consenso na comunidade internacional quanto a um chamado direito ao suicídio assistido. A


Convenção Europeia de Direitos Humanos, e os demais documentos de proteção internacional dos
Direitos Humanos já mencionados, apenas nos trazem a certeza de que o Estado não pode delibe-
radamente tirar a vida (obrigação negativa), bem como deve visar protegê-la (obrigação positiva); no
entanto, quando diante da vontade do indivíduo, cabe a cada Estado regular, por meio de suas leis, o
suicídio assistido. 73
Nesse sentido, há diversas decisões da Corte EDH, considerando que a não permissão pelas leis internas
de um Estado da prática do suicídio assistido não fere o artigo 8 da CEDH, que dita o dever de respeitar a
vida privada e familiar74, sendo levados em consideração os seguintes aspectos no momento da decisão:

[…] a existência no direito interno e na prática de um quadro legislativo compatível com os requi-
sitos do artigo 2.º; se foram levados em consideração os desejos anteriormente expressados pelo
requerente e de pessoas próximas a ele, bem como as opiniões de outros médicos; e a possibili-

68
Corte EDH, Caso Pretty v. The United Kingdom (29/04/2002).
69
SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Direito de morrer: a realização da pessoalidade e a efetivação do direito de viver.
Belo Horizonte: Del Rey, 2005. P.86.
70
RIBEIRO, Diaulas Costa. Viver bem não é viver muito. Revista Jurídica Consulex n.29, ano III, v.I, maio de 1999.


71
NIÑO, Luiz Fernando. Eutanasia: morir com dignidade (consecuencias jurídico-penales), p.82.
72
RIBEIRO, Diaulas Costa. Viver bem não é viver muito. Revista Jurídica Consulex n.29, ano III, v.I, maio de 1999.
73
CEDH, Caso Haas v. Switzerland: (20/01/2011); Lambert and Others v. France (05/06/2015).
74
CEDH, Caso Nicklinson and Lamb v. the United Kingdom; Haas v. Switzerland; Pretty v. the United Kingdom;

179
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

dade de recorrer aos tribunais em caso de dúvidas quanto à melhor decisão a ser tomada tendo
em conta os interesses do paciente. 75

As decisões da Corte IDH também deixam claro que o direito à morte não está abrangido no direito
à vida, derivando do art. 2 da CADH obrigações negativas e positivas, compostas, respectivamente, do
dever de não ceifar a vida, e da obrigação de garantir a vida digna dentro de sua jurisdição, 76 estando
presente nesse último aspecto a possibilidade de criação de medidas internas que visem resguardar
este bem jurídico mais precioso de todo ser humano: a vida.

6. PENA DE MORTE

Apesar de todos os esforços para abolir a pena de morte, poucos, mas poderosos Estados mantêm pena
de morte, sendo eles a China, os Estados Unidos da América e a Índia.
Apesar das tendências do Direito Internacional que encorajam a abolição da pena de morte, 77 ela não é
expressamente proibida pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, mas a sua prática é inclu-
sive regulada. No DIDH, o direito à vida não exclui a pena de morte, embora as convenções imponham
certas limitações à sua aplicação.
A Carta Africana é o único Tratado Internacional de Direitos Humanos que não traz qualquer previsão
sobre a pena de morte; no entanto, a Comissão Africana já afirmou seu compromisso de promover o
direito à vida e encorajar os Estados partes a abolirem-na. 78
Ao tratar do direito à vida, o PIDCP, no ser art. 6º, refere que nos países em que a pena de morte ainda
não tenha sido abolida, esta poderá ser imposta apenas nos casos de crimes mais graves, devendo
ser observado o devido processo legal, bem como as disposições do PIDCP e da Convenção sobre
Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, só podendo a pena ser imposta após sentença transi-
tada em julgado79, que tenha sido proferida por tribunal competente.80
O termo crime mais grave sublinha que a pena de morte só pode ser uma medida excepcional. De
acordo com o CDH, o requisito deve ser interpretado de forma restrita e pode apenas ser confinado
a assassinatos intencionais e a inflição intencional de lesões corporais graves. No entanto, a legislação

75
“the existence in domestic law and practice of a legislative framework compatible with the requirements of Article 2; whether account had
been taken of the applicant’s previously expressed wishes and those of the persons close to him, as well as the opinions of other medical
personnel; and the possibility to approach the courts in the event of doubts as to the best decision to take in the patient’s interests”.
CEDH, Julgamento do Caso Lambert and Others v. France ECHR 185 (05/06/2015). P.6.
76
A Corte IDH, no Caso García Ibarra e outros Vs. Equador, sinalou que faz parte do dever jurídico do Estado investigar seriamente as vio-
lações cometidas no âmbito de sua jurisdição, a fim de, além de identificar os responsáveis, impor-lhes sanções pertinentes assegurando
à vítima uma adequada reparação. Uma vez que o Estado tem conhecimento que seus agentes de segurança fizeram uso de armas de
fogo causando mortes, ele está obrigado a iniciar imediatamente uma investigação independente, imparcial e efetiva. Fonte: CORTE
INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso García Ibarra e outros Vs. Equador, párr. 181. (17/11/2015).


77
Em particular o 2.º Protocolo Facultativo do Convénio Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Estatuto do Tribunal Penal
Internacional.
78
COMISSÃO AFRICANA DOS DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS. 384 Resolução sobre a Renovação do Mandato e Reconstituições do
Grupo de Trabalho sobre Penas de Morte, Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias em África - CADHP/Res.384(LXI)2017. Dispo-
nível em: https://www.achpr.org/pr_sessions/resolutions?id=395. Acesso em 19 set 2021.
79
O CDH concluiu no caso Ashby v. Trinidad e Tobago que o Estado violou arbitrariamente o direito à vida do condenado à pena de morte,
uma vez que levou a execução a pena enquanto pedido de clemência tramitava. CDH. Caso Ashby v. Trinidad e Tobago. Communica-
tion No. 580/1994. CCPR/C/74/D/580/1994.
80
Art. 6º, §2. PIDCP.

180
DIREITO À VIDA

penal deve sempre deixar espaço para considerar as circunstâncias pessoais do acusado na situação
concreta do crime. Assim, no caso Eversley Thompson vs. Saint Vincent e os Grenadines, o CDH decidiu
que uma lei que impõe a pena de morte em todos os casos de homicídio, independentemente das
circunstâncias do caso individual, é uma privação arbitrária do direito à vida.81
A aplicação da pena de morte para crimes relacionados ao uso ou tráfico de drogas é considerada
contrária ao PIDCP, tendo o relator especial das Nações Unidas sobre execuções extrajudiciais se
manifestado sobre o assunto em 2015, quando pediu a Indonésia que não praticasse novas execu-
ções de pessoas condenas por crimes relacionados com drogas, afirmando que “  a pena de morte
é considerada uma forma extrema de castigo que, se usada, só deve ser imposta para crimes mais
graves, ou seja, aqueles que envolvem morte intencional, e só depois de um julgamento justo, entre
outras salvaguardas”.82
Além disso, o PIDCP garante o direito do condenado de pedir indulto ou comutação da pena, sendo a
estes mais a anistia, podem ser concedidos em todos os casos.83 É garantida uma proteção maior aos
menores de 18 anos e às mulheres grávidas, a quem não se pode aplicar a pena de morte em qualquer
caso. Salienta-se que essa proteção é temporária, enquanto durar o período de gravidez e até que o
condenado complete os 18 anos.84
Portanto, não havendo uma proibição expressa quanto à pena da morte, a possibilidade de criação
de norma que preveja a pena de morte é de soberania jurisdicional interna dos Estados, devendo, no
entanto, a norma estar adequada às Convenções internacionais das quais o Estado faça parte e princí-
pios básicos de Direito Internacional.85
O CDH já se pronunciou que a detenção prolongada de detentos já condenados à pena de morte, não
constitui, per se, uma violação ao art. 7, do PIDCP. No caso Robinson LaVende v. Trinidad e Tobago, no
entanto, o CDH concluiu que, tendo sido esgotados todos os recursos internos, e não havendo uma
explicação do Estado quanto às razões para a não aplicação da pena de morte por mais de 16 anos,
mantendo o detento no corredor da morte, tais circunstâncias constituíram tratamento cruel e desu-
mano, violando o art. 7, do PIDCP.86
Quanto à forma, caso aplicada, deve ser aquela que cause o “menor sofrimento físico e mental possível”,
sendo que o CDH já decidiu que a execução por asfixia por gás constitui tratamento cruel e desumano,
em violação ao art. 7, do PIDCP.87

CDH. Caso Eversley Thompson Vs. Saint Vincent e os Grenadines. U.N. Doc. CCPR/C/70/D/806/1998. Communication No. 806/1998.
81

Julgamento de 3 de novembro, 2020.


82
CONDENADOS à morte por narcotráfico na Indonésia não tiveram julgamento justo, diz relator da ONU. UNIC Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 13 fev. 2016. Disponível em: https://unicrio.org.br/condenados-a-morte-por-narcotrafico-na-indonesia-nao-tiveram-julgamento-
-justo-diz-relator-da-onu/. Acesso: em 10 de out. 2021.
83
Art. 6º, §4. PIDCP.
84
Art. 6º, §5. PIDCP.
85
Nesse sentido a Corte IDH afirma que ainda que a CADH não proíbe a aplicação da pena de morte, sua aplicação é limitada, de modo
que reduza até sua total supressão. Nesse sentido: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Razcacó Reyes Vs
Guatemala, párr. 56; Caso Hillaire, Constantine e Benjamin e outros Vs Trinidad e Tobago.
86
CDH. Robinson LaVende v. Trinidad and Tobago, Communication No. 554/1993 , U.N. Doc. CCPR/C/61/D/554/1993, 17 Nov. 1997.
87
No caso Charles Chitat Ng v. Canadá, além de entender que a execução por asfixia por gás constitui tratamento cruel e desumano, o CDH
também entendeu que o Canadá violou o art. 7, do PIDCP, uma vez que poderia razoavelmente prever que o Sr.Ng seria executado de
uma forma que equivale a uma violação do artigo 7, falhou em cumprir suas obrigações nos termos do Pacto, extraditando o Sr. Ng sem
ter procurado ou recebido garantias de que ele não seria executado. CDH. Caso Charles Chitat Ng v. Canada, CCPR/C/49/D/469/1991, 7
Jan. 1994.

181
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O art. 4 da CADH é ainda mais restritivo que o PIDCP, limitando essa possibilidade ao expressar que a
vida não pode ser privada arbitrariamente, ou seja, não se tratando dos casos de execuções sumárias,
necessária uma efetiva sentença transitada em julgado proferida por tribunal competente e desde que
tenha havido o devido processo legal, em consonância com o art. 8 e 9 da Convenção88.
O artigo também dispõe que a pena de morte só pode ser aplicada a delitos de alta gravidade, excluin-
do-se a possibilidade de aplicação em caso de crimes políticos ou crimes comuns conexos aos políti-
cos.89 Além disso, é direito do condenado, a solicitação de anistia, indulto ou comutação da pena, não
podendo esta ser executada enquanto o pedido estiver pendente de decisão da autoridade compe-
tente (art. 4.6)90.
Em suma, há três grupos expressamente resguardados pela CADH: (i) os menores de 18 anos; (ii) o
maior de 70 anos; (iii) a mulher em estado de gravidez. A aplicação da pena de morte a esses grupos
não pode ocorrer no momento da perpetração do delito, sendo que deve se aguardar o nascimento da
criança da mulher grávida para que a pena possa ser aplicada. Ainda, a CADH prevê a impossibilidade de
restabelecimento, pelo Estado-parte, da pena de morte uma vez abolida,91 sendo a decisão de abolição
definitiva e irrevogável.92
Embora a Convenção não proíba expressamente a aplicação da pena de morte, a Corte IDH afirmou
que as normas convencionais sobre essa possibilidade devem ser interpretadas no sentido de “limitar
definitivamente sua aplicação e seu alcance, para que seja reduzido até sua supressão final”.93
A Corte IDH considerou que uma das formas que a privação arbitrária da vida pode assumir, em termos
da proibição do artigo 4.1 da Convenção, é aquela configurada quando, em países onde a pena de morte
ainda existe, é usada para punir crimes que não apresentem as características mais graves, quando a
legislação interna não permite que o julgador leve em consideração as condições específicas do caso,
como ocorreu no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros vs. Trinidad e Tobago, no qual a legis-
lação previa a pena de morte para todo e qualquer caso de homicídio doloso. A Corte IDH entendeu
que ao se considerar todos os responsáveis do crime de homicídio doloso como merecedor de pena
capital, “está se tratando os acusados ​​deste crime não como seres humanos individuais e únicos,
mas como membros indiferenciados e sem rosto de uma massa que será sujeita à aplicação cega da
pena de morte”.94

88
O não respeito ao conjunto de garantias que compõem o devido processo, caracteriza uma privação arbitrária da vida, caso seja imposta
a pena de morte. Nesse sentido: Corte IDH, Caso Fermín Ramírez vs.Guatemala; Caso Dacosta Cadogan vs. Barbados.
89
art. 4.4 da CADH.
90
O art. 4.6 deve ser lido em conjunto com os artigos 8 e 1.1 da Convenção, sendo obrigação do Estado garantir que esse direito seja exercido
pelo condenado à pena de morte, devendo implementar um procedimento que seja imparcial e transparente, onde o condenado à morte
possa se valer de todos os remédios a seu dispor, antes que seja procedida a execução. A execução do condenado antes de esgotados
todos os remédios disponíveis caracteriza privação arbitrária do seu direito à vida. Nesse sentido: CORTE INTERAMERICANA DE DE-
RECHOS HUMANOS. Mansaraj vs Sierra Leone CCPR/C/72/D/841/1998 (execução antes do recurso); Ashby vs Trinidad and Tobago,
CCPR/C/74/D/580/1994 (execução enquanto pedido de clemência tramitava).


91
Art. 4.2, CADH.
92
Sobre a possibilidade de implantação da pena de morte posteriormente à assinatura da Convenção Americana, a Corte se manifestou na
Opinião Consultiva OC-3/83, entendendo ser absoluta a proibição de pena de morte se o Estado Parte não previa a possibilidade de pena
de morte, quando da assinatura da Convenção. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC-3/83
de 8 de setembro de 1983. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_03_esp.pdf . Acesso em 13 de maio de 2021.
93
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso o Hilaire, Constantine e Benjamin e outros vs.. Trinidad e Tobago, párr.
99.
94
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros vs. Trinidad e Tobago, párr. 105.

182
DIREITO À VIDA

Também sobre a pena de morte obrigatória prevista em legislação interna, a Corte IDH se pronunciou
no caso Raxcacó Reyes vs. Guatemala, entendendo que o Código Penal da Guatemala, que previa a apli-
cação da pena de morte a todos os casos de sequestro, sem distinção de pena consoante a gravidade do
caso, violava o art. 4.1 e 4.2 da CADH.95 Nesse mesmo sentido foi o entendimento no caso Ruiz Fuentes e
outra vs Guatemala: a pena de morte deve apenas ser aplicada aos delitos mais graves e deve-se analisar
cada caso especificamente. A aplicação da pena de morte sem que se considerem as circunstâncias
específicas do delito e do acusado, caracteriza uma violação arbitrária do direito à vida.96
Portanto, além de a aplicação da pena de morte dever estar limitada aos delitos comuns mais greves e
não relacionados a queixas políticas,97 deve se individualizar a pena em conformidade com as caracte-
rísticas do delito e a participação e culpabilidade do acusado.98 A aplicação da pena de morte também
deve estar sujeita a certas garantias processuais cujo cumprimento deverá ser estritamente obser-
vado e revisado.99
Apesar de não haver uma previsão expressa no PIDCP no sentido de proibição de restabelecimento da
pena de morte uma vez abolida, no Comentário Geral n.6 sobre o Direito à Vida, o CDH considerou a
abolição da pena de morte como um progresso no gozo do direito à vida.100 No caso Roger Judge Vs.
Canada, o CDH promoveu uma interpretação extensiva do direito à vida, entendendo que os Estados
que tenham abolido a pena de morte não devem expor qualquer pessoa que se encontre sob sua juris-
dição ao real risco de sua aplicação. O art. 6, do PIDCP, dessa forma, impõe limitações a extradições e
expulsões, proibindo que os Estados Parte extraditem pessoas sob sua jurisdição, quando houver um
risco real de aplicação da pena de morte.101 Também, vale ressaltar que os casos em que há condenação
à pena de morte, deve-se preservar a integridade física e a dignidade do condenado, até o momento
da aplicação da pena.102
A CADH prevê a proteção à vida em termos gerais e não absolutos. No entanto, existem outros
documentos de Direito Internacional que preveem a proteção específica dos sujeitos conside-
rados vulneráveis.

95
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Raxcacó Reyes vs. Guatemala.
96
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS Caso Ruiz Fuentes e outra vs. Guatemala.
97
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros vs. Trinidad e Tobago; Caso
Raxcacó Reyes vs. Guatemala, párr. 68.
98
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Caso Boyce y otros vs. Barbados, párr. 50.
99
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Fermín Ramírez, párr. 79.; Restricciones a la Pena de Muerte (arts. 4.2 y 4.4
Convención Americana sobre Derechos Humanos), párr. 55; El Derecho a la Información sobre la Asistencia Consular en el Marco de las
Garantías del Debido Proceso Legal. Opinião Consultiva OC-16/99 de 1 de outubro de 1999. Serie A No. 16, párr. 135.
100
Comentários Gerais dos Tratados de Direitos Humanos da ONU. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/
Coment%C3%A1rios%20Gerais%20da%20ONU.pdf . p. 53-54.
101
CDH, caso Roger Judge v. Canada, CCPR/C/78/D/829/1998, 13 August 2003.
102
Nesse sentido, a Corte IDH considerou que as condições de detenção de condenados constituía tratamento cruel, inumano ou degradan-
te, sendo que tal situação afetava a integridade física e psíquica dos detentos. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS,
Caso Hillaire, Constantine e Benjamin e outros vs. Trinidad e Tobago.

183
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A proteção contra aplicação da pena de morte a menores de 18 anos, além de estar prevista no PIDCP e
na CADH, também está prevista no art. 37, da Convenção sobre os Direitos da Criança.103
A proteção garantida a mulheres grávidas tanto pelo PIDCP, quanto pela CADH, é estendida para após
o momento que tenham dado a luz, pelas Garantias para a Proteção dos Direitos das Pessoas Sujeitas a
Pena de Morte, do Conselho Econômico e Social da ONU. O documento também prevê a impossibili-
dade de execução de pessoas atingidas por alienação mental.104

7. OBRIGAÇÕES DO ESTADO

Do art. 4.1 da CADH derivam obrigações positivas e negativas a serem cumpridas pelos Estados. As
obrigações negativas exigem que o Estado se abstenha de agir de forma que viole os Direitos Humanos,
enquanto as obrigações positivas exigem ações do Estado para proteger as pessoas ativamente contra
violações de direitos humanos. O art. 4.1 determina que os Estados têm a obrigação negativa de não
privar arbitrariamente as pessoas sob sua jurisdição do seu direito à vida, bem como a obrigação positiva
de adotar todas as medidas apropriadas para proteger e preservar o direito à vida.105
Na jurisprudência da Corte IDH as obrigações gerais dos arts. 1.1 e 2 da CADH são o prisma pelo qual a
Corte reconhece obrigações concretas derivadas de direitos humanos específicos; assim as obrigações
gerais presentes em ambas as provisões estão presentes em todo direito humano específico, sendo
esses artigos cruciais para que se atribua responsabilidade internacional aos Estados por suas ações ou
omissões que violem Direitos Humanos consagrados na CADH.106
Decorrentes dessas obrigações, os Estados devem adotar as medidas necessárias para criar um marco
normativo adequado que impeça qualquer ameaça ao direito à vida; estabelecer um sistema de justiça
eficaz, capaz de investigar, punir e reparar a violação do direito à vida por parte de agentes do Estado

103
“Art. 37 Os Estados Partes zelarão para que:
a) nenhuma criança seja submetida a tortura nem a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Não será imposta a
pena de morte nem a prisão perpétua sem possibilidade de livramento por delitos cometidos por menores de dezoito anos de idade;
b) nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária. A detenção, a reclusão ou a prisão de uma criança será
efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado;
c) toda criança privada da liberdade seja tratada com a humanidade e o respeito que merece a dignidade inerente à pessoa humana,
e levando-se em consideração as necessidades de uma pessoa de sua idade. Em especial, toda criança privada de sua liberdade ficará
separada dos adultos, a não ser que tal fato seja considerado contrário aos melhores interesses da criança, e terá direito a manter contato
com sua família por meio de correspondência ou de visitas, salvo em circunstâncias excepcionais;
d) toda criança privada de sua liberdade tenha direito a rápido acesso a assistência jurídica e a qualquer outra assistência adequada, bem
como direito a impugnar a legalidade da privação de sua liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e
imparcial e a uma rápida decisão a respeito de tal ação.”

“ANEXO
104

(…)
3. Não serão condenados à morte os menores de 18 anos à data da prática do crime, nem se executará a sentença de morte no caso de
mulheres grávidas ou que tenham dado à luz recentemente, nem quando se trate de pessoas atingidas por alienação mental.” CONSE-
LHO ECONÔMICO E SOCIAL. Garantias para a Proteção dos Direitos das Pessoas Sujeitas a Pena de Morte. 21.ª sessão plenária. 25 de
Maio de 1984.
105
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Case of the “Street Children” (Villagrán Morales et al.) v. Guatemala, Case
of the “Street Children” (Villagrán Morales et al.) v. Guatemala. Merits. Judgment of November 19, 1999. Series C No. 63, para. 144; Cf. Case
of the Miguel Castro Castro Prison v. Peru. Merits, Reparations and Costs. Judgment of November 25, 2006. Series C No. 160, para. 237,
and Case of Vargas Areco v. Paraguay. Merits, Reparations and Costs. Judgment of September 26, 2006. Series C No. 155, para. 75.
106
Exemplos: Corte IDH. Caso Defensor de Derechos Humanos y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 28 de agosto de 2014. Serie C No. 283; Caso Comunidad Garífuna Triunfo de la Cruz y sus miembros Vs. Honduras.
Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 8 de octubre de 2015. Serie C No. 305; Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Excepción Preliminar,
Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 22 de noviembre de 2016. Serie C No. 325, dentre outros.

184
DIREITO À VIDA

ou indivíduos,107 sendo que a obrigação geral de prevenir é um pré-requisito para que o Estado cumpra
efetivamente suas obrigações positivas de investigar, punir e fornecer reparações;108além de não
impedir e garantir o acesso a condições que garantam uma vida digna.109
Quanto às condições necessárias para uma vida digna, a Corte IDH já referiu a necessidade de acesso
e qualidade da água, alimentação e saúde110 – que constitui um estado completo de bem-estar físico,
mental e social111 - indicando que essas condições impactam fortemente o direito a uma existência
digna e às condições básicas para o exercício de outros direitos humanos.112 Da mesma forma, a Corte
IDH incluiu a proteção do meio ambiente como condição para uma vida digna.113
Na Opinião Consultiva 23/17, a Corte IDH analisou as obrigações que devem ser cumpridas pelos
Estados para o cumprimento das obrigações de respeitar e garantir o direito à vida e à integridade
social, no contexto de proteção do meio ambiente, examinando: (a) a obrigação de prevenção; (b) o
princípio da precaução; (c) a obrigação de cooperação; (d) as obrigações procedimentais em matéria
de proteção do meio ambiente, com o propósito de estabelecer e determinar as obrigações estatais
derivadas da interpretação sistemática das normas de direito ambientes junto com as obrigações de
respeitar e garantir o direito à vida e à integridade pessoal, como consagrados na CADH.114
A Corte IDH concluiu, então, que os Estados têm a obrigação de: (a) prevenir danos ambientais significa-
tivo, dentro ou fora do seu território; (b) com o propósito de cumprir com sua obrigação de prevenção,
devem regular, supervisionar e fiscalizar as atividades dentro de sua jurisdição que possam produzir um
dano significativo ao meio ambiente; realizar estudos de impacto ambiental quando exista risco de um
dano significativo ao meio ambiente; estabelecer um plano de contingência para ter medidas de segu-
rança e procedimentos a fim de minimizar a possibilidade de grandes acidentes ambientais; mitigar
o dano ambiental significativo que se tenha produzido, ainda que tenha ocorrido apesar das ações
preventivas do Estado; (c) atuar em conformidade ao princípio da precaução, a efeitos de proteção do
direito à vida e à integridade pessoal, frente a possíveis danos graves ou irreversíveis ao meio ambiente,
ainda que em ausência de certeza científica; (d) cooperar, de boa fé, para a proteção contra danos ao

107
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Baldeón García, párr. 85; Caso Comunidad indígena Sawhoyamaxa,, párr.
153, y Caso de la Masacre de Pueblo Bello, párr. 120.
108
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Sawhoyamaxa Indigenous Community v. Paraguay, Sentença de 29 de
March 2006, para. 153.
109
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Baldeón García, párr. 85; Caso de la Comunidad indígena Yakye Axa.
Sentencia de 17 de junio de 2005. Serie C No. 125, párr. 161, y Caso “Instituto de Reeducación del Menor”. Sentencia de 2 de septiembre de
2004. Serie C No. 112, párrs. 152 y 153.
110
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay, párr. 167, Caso Comuni-
dad Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguay, párrs. 156 a 178 y Caso de la Comunidad Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguay. Fondo Reparacio-
nes y Costas. Sentencia 24 de agosto de 2010. Serie C No. 214, párrs. 195 a 213.
111
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Artavia Murillo y otros (“Fecundación in vitro”) Vs. Costa Rica, párr.
148.
112
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay, párr. 163 y Caso Chin-
chilla Sandoval y otros Vs. Guatemala, párr. 168.
113
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay, párr. 163, Caso Comuni-
dad Indígena Xákmok.
Kásek Vs. Paraguay, párr. 187, y Caso Pueblos Kaliña y Lokono Vs. Surinam, párr. 172
114
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. OPINIÓN CONSULTIVA OC-23/17 DE 15 DE NOVIEMBRE DE 2017 SOLICITADA
POR LA REPÚBLICA DE COLOMBIA MEDIO AMBIENTE Y DERECHOS HUMANOS(OBLIGACIONES ESTATALES EN RELACIÓN CON
EL MEDIO AMBIENTE EN EL MARCO DE LA PROTECCIÓN Y GARANTÍA DE LOS DERECHOS A LA VIDA Y A LA INTEGRIDAD PERSO-
NAL - INTERPRETACIÓN Y ALCANCE DE LOS ARTÍCULOS 4.1 Y 5.1, EN RELACIÓN CON LOS ARTÍCULOS 1.1 Y 2 DE LA CONVENCIÓN
AMERICANA SOBRE DERECHOS HUMANOS). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. Acesso em 18
set. 2021. Par. 123-243.

185
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

meio ambiente; (e) com o propósito de cumprir a obrigação de cooperação, deve notificar os demais
Estados potencialmente afetados quando tenham conhecimento de uma atividade planejada na sua
jurisdição que poderia gerar risco de danos significativos transfronteiriços; assim como consultar e
negociar, de boa fé, com os Estados potencialmente afetados por danos transfronteiriços significa-
tivos; (f) garantir o direito de acesso à informação relacionada a possíveis efeitos ao meio ambiente; (g)
garantir o direito de participação pública de pessoas da sua jurisdição na tomada de decisões e políticas
que podem afetar o meio ambiente; e, (h) garantir o acesso à justiça, em relação às obrigações estatais
para proteção do meio ambiente previamente enunciadas.115
O dever dos Estados de prevenir as violações do direito à vida e à integridade pessoal abrange todas
as medidas de natureza jurídica,116 política, administrativa e cultural que promovam a salvaguarda dos
direitos humanos e que assegurem que eventuais violações dos mesmos sejam efetivamente conside-
radas e tratadas como um ato ilícito que, como tal, é sujeito a penalidades para quem as comete, bem
como a obrigação de compensar as vítimas por suas consequências prejudiciais.117
No caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil, a Corte
IDH reafirmou que a obrigação de garantia do Estado se projeta para além da relação entre os agentes
estatais e as pessoas submetidas a sua jurisdição, e abarca o dever de prevenir, na esfera privada, que
terceiros violem os bens jurídicos protegidos.118
Os Estados têm o dever de regulamentar, supervisionar e fiscalizar a prática de atividades perigosas,
que impliquem riscos significativos para a vida e a integridade das pessoas submetidas à sua jurisdição,
como medida para proteger e preservar esses direitos.119 Nesse mesmo sentido, o TEDH decidiu que a
obrigação de adotar todas as medidas necessárias para salvaguardar o direito à vida implica o dever de o
Estado estabelecer uma estrutura legislativa e administrativa que dissuada as ameaças ao direito, e que
essa obrigação se aplica indiscutivelmente ao contexto de atividades perigosas.120
Portanto, mesmo quando não haja uma ação direta por parte do Estado, este também pode ser respon-
sabilizado pela violação do direito à vida, caso seja comprovada omissão em relação às suas obrigações
em matéria de regulamentação, supervisão e fiscalização, e caso essa conduta omissiva tenha impacto
na violação dos direitos à vida em cada caso concreto.
Um dos deveres dos Estados, ao qual se atribui caráter especial, é o de vigiar suas autoridades policiais,
a quem é atribuído o uso da força de forma legítima, para que respeitem o direito à vida de quem

115
Ibid. Parágrafo. 242.
116
Além de normas que permitam que seus cidadãos vivam de forma digna, os Estados devem tipificar na legislação doméstica as violações
de Direitos Humanos, uma vez que essas devem ser tratadas como atos ilegais. Nesse sentido, a Corte IDH reiteradamente expressou que
a criminalização de condutas que violem esses direitos é um meio apropriado para sua proteção. Nesse sentido: CORTE INTERAMERI-
CANA DE DERECHOS HUMANOS. 27 April 2012, Fornerón and Daughter v. Argentina, para. 140.; 29 July 1988, Velásquez-Rodríguez v.
Honduras, para. 175; 22 November 2007, Albán-Cornejo et al. v. Ecuador, para. 135; entre outros.


117
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Defensor de Derechos Humanos y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preli-
minares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de agosto de 2014. Serie C No. 283; Caso Comunidad Garífuna Triunfo de la Cruz
y sus miembros Vs. Honduras. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 8 de octubre de 2015. Serie C No. 305.
118
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus fami-
liares Vs. Brasil, párr. 117.
119
Ibid.
120
TEDH, Caso Öneryildiz Vs. Turquia, No. 48939/99, Sentença de 30 de novembro de 2004, párr. 89 e 90.

186
DIREITO À VIDA

se encontra em sua jurisdição.121 Essa proteção ativa abarca, portanto, não somente os legisladores,122
como toda a instituição estatal, seja através de suas forças armadas ou do poder de polícia.123
Para que se estabeleça uma responsabilidade internacional do Estado, não é necessário que agentes
estatais tenham violado o direito à vida diretamente, também é possível a responsabilização nos casos
de omissão em que as autoridades estatais têm conhecimento de uma ameaça real e iminente a esse
direito. Como a Corte IDH decidiu no caso Velásquez-Rodríguez vs. Honduras, “um ato ilegal que viola
os direitos humanos e que inicialmente não é diretamente imputável a um Estado [...] pode levar à
responsabilidade internacional do Estado, não pelo ato em si, mas pela falta de devida diligência para
prevenir a violação ou responder a ela conforme exigido pela Convenção”.124
Além disso, para se estabelecer que houve uma violação ao direito à vida, não é necessário determinar
a culpabilidade dos autores ou sua intencionalidade, tampouco é preciso identificar individualmente
os agentes a quem se atribui os atos violadores, basta que a Corte IDH verifique ações ou omissões
suficientes por parte do Estado que tenham permitido a perpetração dessas violações, ou que exista
uma obrigação do Estado que não tenha sido cumprida.125
Não se pode considerar o Estado como responsável por toda e qualquer situação em que há a violação
do direito à vida, para que essa obrigação positiva surja, deve ser estabelecido que no momento dos
eventos que levaram à violação, as autoridades sabiam ou deveriam ter conhecimento da existência de
uma situação de risco real e imediato contra a vida de um indivíduo ou grupo de indivíduos, e, tendo
esse conhecimento, não tomaram as medidas necessárias dentro do escopo de suas atribuições que,
julgadas razoavelmente, poderiam ser esperadas para prevenir ou evitar a violação.126
A Corte IDH já referiu em reiteradas decisões que o Estado tem o dever jurídico de “[…] prevenir, razoa-
velmente, as violações de Direitos Humanos, de investigar seriamente com os meios ao seu alcance as
violações que tenha sido cometidas dentro do seu âmbito de jurisdição a fim de identificar os respon-
sáveis, impor-lhes sanções pertinentes e assegurar à vítima uma reparação adequada”127.


121
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Zambrano Vélez y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 4 de julio de 2007. Serie C No. 166; párr. 81.
122
Os Estados devem desenvolver um quadro jurídico adequado para regular o uso de força letal e armas de fogo. Corte IDH. 5 July 2006,
Caso Montero-Aranguren et al. (Detention Center of Catia) v. Venezuela, para. 75.
123
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Cruz Sánchez y otros Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentencia de 17 de abril de 2015. Serie C No. 292, párr. 259.
124
“[a]n illegal act which violates human rights and which is initially not directly imputable to a State […] can lead to international responsibili-
ty of the State, not because of the act itself, but because of the lack of due diligence to prevent the violation or to respond to it as required
by the Convention.” Corte IDH (Judgment) 29 July 1988, Velásquez-Rodríguez v. Honduras, para. 172.
125
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos
Humanos No. 29: Jurisprudencia sobre Honduras / Corte Interamericana de Derechos Humanos y la Agencia Suiza para el Desarrollo y
la Cooperación (COSUDE). -- San José, C.R. : Corte IDH, 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/cuader-
nillo29.pdf. Acesso em 10 jan. 2021. p. 18.
126
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso de la Masacre de Pueblo Bello, párrs. 123 y 124, y Caso Comunidad Indí-
gena Sawhoyamaxa Vs. Paraguay, párr. 155.
127
“[…]prevenir, razonablemente, las violaciones de los derechos humanos, de investigar seriamente con los medios a su alcance las viola-
ciones que se hayan cometido dentro del ámbito de su jurisdicción a fin de identificar a los responsables, de imponerles las sanciones
pertinentes y de asegurar a la víctima una adecuada reparación” Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Fondo, párr. 174, y
Caso Hermanos Landaeta Mejías y otros vs. Venezuela, parágrafo 181.

187
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Esse dever de investigar é uma obrigação de meios e não de resultados, que devem ser assumidos
pelo Estado como seu próprio dever legal, que não depende única ou necessariamente da iniciativa
processual das vítimas ou de seus familiares, ou de contribuição privada de provas.128
A Corte IDH entende que a investigação de casos de violação do direito à vida constitui um elemento
central na determinação da responsabilidade internacional do Estado e que esta obrigação decorre
da garantia do artigo 1.1 da Convenção e caso se verifique qualquer falta ou defeito na investigação
que prejudique a eficácia do estabelecimento da causa da morte ou da identificação dos responsáveis,
implicará na falta de cumprimento por parte do Estado do seu dever de proteger o direito à vida.129
Nesse mesmo sentido, a Corte IDH já se pronunciou que a falta de mecanismos efetivos de investi-
gação de violações ao direito à vida e debilidade de sistemas de justiça para lidar com tais violações
pode fomentar nos Estados um clima de impunidade e, em certos contextos e circunstâncias, podem
chegar a configurar situações generalizadas ou esquemas graves de impunidade, estimulando e perpe-
tuando, assim, a repetição de violações.130
Os Estados têm o dever especial de proteger pessoas que cumprem papel de defensores dos direitos
humanos, facilitando para que estes realizem livremente suas atividades e lutando contra a impunidade.
Além disso, em casos de ataques contra defensores de direitos humanos, os Estados têm a obrigação
de garantir a imparcialidade, informalidade, envolvendo uma busca exaustiva de todas as informações
para projetar e executar uma investigação que leve à devida análise das hipóteses de autoria, por ação
ou omissão, em diferentes níveis, explorando todas as linhas de investigação pertinentes para identi-
ficar os autores.131
No caso de ataques dirigidos a mulheres defensoras de direitos humanos, a Corte IDH considera que
devem ser adotadas todas as medidas destinadas a mitigar os riscos que correm com uma perspectiva
de gênero e com uma abordagem interseccional, de modo a garantir uma proteção integral baseada
em considerar, compreender e dar um lugar central às complexidades das formas diferenciadas de
violência que os defensores enfrentam por causa de sua profissão e pelo seu gênero.132
A proteção do direito à vida, como pré-requisito para gozo de todos os demais direitos humanos, está
interligada com a proteção de outros direitos. A necessidade de um tratamento integral aos casos de
desaparecimento forçado foi inúmeras vezes reforçada pela Corte IDH133, por possuir caráter plurio-
fensivo, uma vez que se trata de uma forma complexa de violação de vários direitos reconhecidos na
Convenção conjuntamente, em razão da pluralidade de condutas que, unidos por um único propósito,

128
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez. Fondo, supra, párr. 177, y Caso Acosta y otros Vs.
Nicaragua. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de marzo de 2017. Serie C No. 334, párr. 132.
129
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Baldeón García Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6
de abril de 2006. Serie C No. 147, párr. 97, y Caso Carvajal Carvajal y otros Vs. Colombia, supra, párr. 164.
130
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Anzualdo Castro Vs. Perú, párr. 179, y Caso Carvajal Carvajal y otros Vs.
Colombia, supra, párr. 164.


131
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Digna Ochoa y familiares Vs. México. Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de noviembre de 2021. Serie C No. 447; CEDAW, Recomendación general núm.33 sobre el acceso
de las mujeres a la justicia (CEDAW/C/GC/33), de 3 de agosto de 2015, párrs. 14, 15 y 18. Ver también, Consejo de Derechos Humanos,
Informe del Sr. Michel Forst, Relator Especial sobre la situación de los defensores de los derechos humanos (A/HRC/40/60), de 10 de
enero de 2019, párr. 98.
132
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Bedoya Lima y otra Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sen-
tencia de 26 de agosto de 2021. Serie C No. 431, párr. 95.
133
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Fondo. Sentencia de 29 de julio de
1988. Serie C No. 4, párr. 155; Caso Tenorio Roca y otros Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de
22 de junio de 2016. Serie C No. 314, párr. 141.

188
DIREITO À VIDA

violam continuamente direitos legais protegidos pelo referido instrumento, em particular os direitos ao
reconhecimento de personalidade jurídica, vida, integridade pessoal e liberdade pessoal.134
Devido a essa natureza pluriofensiva dos atos constitutivos de desaparecimento forçado, a Corte IDH
reitera o caráter permanente deste crime, quando não se conheça o paradeiro da vítima ou se encon-
trem seus restos, tendo os Estados o dever correlato de investigar tais atos e, eventualmente, punir
os responsáveis.135
A obrigação de investigação é um elemento condicionante para garantia do direito à vida. Especifi-
camente nos casos em que um Estado tenha conhecimento que seus agentes de segurança tenham
feito o uso de armas de fogo com consequências letais, ele tem a obrigação de iniciar ex officio e sem
dilação, uma investigação séria, independente, imparcial e efetiva.136
O critério utilizado pela Corte IDH no caso Yarce e outras vs. Colômbia para avaliar o surgimento da
responsabilidade do Estado pela falta do dever de garantir a vida, prevenindo que particulares137 violem
esse direito foi o de verificar que:

1) no momento de fatos houve uma situação de risco real e imediato para um indivíduo ou grupo
de indivíduos específicos;

2) que as autoridades sabiam ou deveriam ter conhecimento deste risco, e

3) que as autoridades, apesar disso, não adotaram as providências necessárias no âmbito de suas
atribuições que poderiam ser razoavelmente esperadas para prevenir ou evitar esse risco.138

Nos casos em que a privação arbitrária da vida sucedeu e ocorreu em decorrência de um conflito
armado, as normas e princípios de Direito Internacional Humanitário são utilizadas para complemen-
tação da interpretação dada ao art. 4 da CADH. A Corte IDH, portanto, recorre ao corpus iuris do Direito
Internacional Humanitário aplicável para determinar o alcance das obrigações estatais no que concerne
ao respeito e à garantia do direito à vida nessas situações. 139

134
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Masacre de la Aldea Los Josefinos Vs. Guatemala, párr. 70.
135
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Fondo, supra, párrs. 155 a 157, y Caso
Alvarado Espinoza y otros Vs. México, supra, párr. 165.
136
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez. Fondo, parágrafo 177; Caso Hermanos Landaeta
Mejías y otros vs. Venezuela, párr. 216.


137
A obrigação do Estado de garantir o direito à vida se estende além da relação entre os agentes do Estado e pessoas sujeitas à sua jurisdi-
ção, incluindo também o dever de evitar, na esfera privada, que terceiros violem esse direito. Nesse sentido: CORTE INTERAMERICANA
DE DERECHOS HUMANOS. Caso Defensor de Derechos Humanos y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 28 de agosto de 2014. Serie C No. 283. Par. 140; Caso Comunidad Garífuna de Punta Piedra y sus miembros
Vs. Honduras. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.Sentencia de 8 de octubre de 2015. Serie C No. 304. Par. 261.
138
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 22 de noviembre de 2016. Serie C No.325. par. 182.
139
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Cruz Sánchez y otros Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentencia de 17 de abril de 2015. Serie C No. 292

189
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Assim, a Corte IDH recorre a outros Tratados Internacionais,140 tal como as Convenções de Genebra
de 12 de agosto de 1949, em particular o art. 3 comum às 4 Convenções,141 o Protocolo II adicional às
Convenções de Genebra relativo à proteção das vítimas de conflitos armados, de 8 de junho de 1977,
o Direito Internacional Humanitário Consuetudinário142 , além de instrumentos complementares tendo
consideração de sua especificidade no assunto.143
Decorrentes dessas normas, cita-se em especial os princípios de Direito Internacional Humanitário que
impõem o dever de: (i) fazer uso da força apenas quando se mostrar extremamente necessário (prin-
cípio da necessidade); (ii) agir com proporcionalidade à vantagem militar que se pretende alcançar144;

140
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso de las Masacres de Ituango Vs. Colombia. Excepción Preliminar, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 1 de julio de 2006. Serie C No. 148, párr. 179; Caso de la Masacre de Mapiripán Vs. Colombia. Fondo,
Reparaciones y Costas, parágrafos 114, 153, 172 y 191, y Caso De la Masacre de las Dos Erres Vs. Guatemala. Excepción Preliminar, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2009. Serie C No. 211, párr. 191.
141
“No caso de conflito armado sem caráter internacional e que surja no território de uma das Altas Partes Contratantes, cada uma das Partes
em luta será obrigada a aplicar pelo menos, as seguintes disposições:
1) As pessoas que não participem diretamente das hostilidades, inclusive os membros de forças armadas que tiverem deposto as armas e
as pessoas que tiverem ficado fora de combate por enfermidade, ferimento, detenção, ou por qualquer outra causa, serão, em qualquer
circunstância, tratadas com humanidade sem distinção alguma de caráter desfavorável baseada em raça, cor, religião ou crença, sexo,
nascimento, ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo.
Para esse fim estão e ficam proibidos, em qualquer momento e lugar, com respeito às pessoas mencionadas acima:
a) os atentados à vida e à integridade corporal, notadamente o homicídio sob qualquer de suas formas, as mutilações, os tratamentos
cruéis, as torturas e suplícios;
b) a detenção de reféns;
c) os atentados à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes;
d) as condenações pronunciadas e as execuções efetuadas e sem julgamento prévio proferido por tribunal regularmente constituído, que
conceda garantias judiciárias reconhecidas como indispensáveis pelos povos civilizados.
2) Os feridos e enfermos serão recolhidos e tratados.
Um organismos humanitário imparcial, tal como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, poderá oferecer os seus serviços às Partes em
luta.
As partes em luta esforçar-se-ão, por outro lado, para pôr em vigor, por meio de acordos especiais, o todo ou partes das demais disposi-
ções da presente Convenção.
A aplicação das disposições precedentes não terá efeito sobre o estatuto jurídico das Partes em luta.” BRASIL. Decreto nº 42.121, de 21
de agosto de 1957. Promulga as Convenções concluídas em Genebra, a 12 de agosto de 1949, destinadas a proteger as vítimas da guerra.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D42121.htm. Acesso em: 04 set. 2021.
142
Comité Internacional da Cruz Vermelha, El derecho internacional humanitario consuetudinario, vol. I, editado por Jean-Marie Henckaerts
y Louise Doswald-Beck, 2007.
143
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Masacres de El Mozote y lugares aledaños Vs. El Salvador. Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de octubre de 2012. Serie C No. 252. Par.141.
144
O princípio da proporcionalidade é uma norma consuetudinário para conflitos armados tanto internacionais quanto não internacionais, o
qual estabelece a proibição que se lance um ataque quando se possa prever que cause acidentalmente mortes e feridos entre a população
civil, danos a bens de caráter civil ou ambas as coisas, que sejam excessivos em relação à vantagem militar prevista. Nesse sentido dispõe,
por exemplo, o artigo 35 do Protocolo I que evidencia o princípio da proporcionalidade no Direito Internacional Humanitário: “1. Em todo
conflito armado, o direito das Partes em conflito a escolha dos métodos ou meios de combate não é ilimitado.
2. É proibido o emprego de armas, projéteis, materiais e métodos de combate de tal índole que causem males supérfluos ou sofrimentos
desnecessários.
3. É proibido o emprego de métodos ou meios de combate que tenham sido concebidos para causar, ou dos quais se pode prever que
causem danos extensos, duradouros e graves ao meio ambiente natural.” BRASIL. Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993. Promulga os
Protocolos I e II de 1977 adicionais às Convenções de Genebra de 1949, adotados em 10 de junho de 1977 pela Conferência Diplomática
sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0849.htm. Acesso em: 28 set 2021.

190
DIREITO À VIDA

(iii) distinguir entre combatentes e civis145; (iv) tomar todas as medidas de precaução para evitar ou
reduzir a um mínimo o número de mortos e feridos entre a população civil, assim como os danos a vens
de caráter civil, que se possam causar acidentalmente (princípio da prevenção).146
O Estado tem o direito e o dever de garantir a segurança: no entanto, independentemente da gravidade
de certas ações e da culpabilidade dos autores de certos crimes, o poder do Estado não é ilimitado, não
podendo este recorrer a quaisquer meios para atingir seus fins.147 O Estado está sujeito à lei e à moral,
não podendo o desrespeito pela dignidade humana servir como base para qualquer ação do Estado.148
Esse dever de tomar medidas positivas abarca (e deve ser dada especial importância para) a proteção
de pessoas vulneráveis e em situações de risco. No caso Crianças de Rua, a Corte IDH defendeu que
a ilicitude de um ato de homicídio se estende à privação do direito de se viver dignamente. Essa visão
conceitua o direito à vida como pertencendo, ao mesmo tempo, ao domínio dos direitos civis e políticos,
bem como dos direitos econômicos, sociais e culturais, ilustrando assim a interrelação e indivisibilidade
de todos os direitos humanos.149
Não tendo o Estado cumprido seu dever de prevenir a violação do direito à vida, ele tem o dever de
investigar, punir e garantir a reparação (restaurando o direito ou fornecendo compensação) em todos
os casos em que direitos humanos sejam violados.150

8. EXECUÇÕES SUMÁRIAS, ARBITRÁRIAS E EXTRAJUDICIAIS

O uso da força é ferramenta excepcional do Estado que deve ser utilizado apenas em casos de extrema
necessidade, de forma planejada e proporcional à ameaça. A Corte IDH entende que o Estado só deve

145
O principio da distinção dita que os Estados devem distinguir entre civis e combatentes, e estão proibidos, em qualquer tempo ou lugar,
de atentar contra a vida, saúde e integridade física e mental das pessoas que não participem diretamente nas hostilidades, ou que tenham
deixado de participar delas. CICV. Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Métodos e os meios de Guerra. Panorama, 29 out. 2010. Dis-
ponível em: https://www.icrc.org/por/war-and-law/conduct-hostilities/methods-means-warfare/overview-methods-and-means-of-warfa-
re.htm. Acesso em: 2 set 2021.
146
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Masacres de El Mozote y lugares aledaños Vs. El Salvador. Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de octubre de 2012. Serie C No. 252. Par.141.


147
A Corte IDH argumentou no caso Neira-Alegría et al. v. Peru, no qual o Estado, a fim de frear o motim organizado por detentos, fez uso
de dinamites para destruir o pavilhão no qual se encontravam, que, apesar de haver evidências de que as pessoas detidas na Penitenciária
de San Juan Batista eram altamente perigosas e estavam armadas, essas não constituem razões suficientes para justificar a quantidade de
força empregada pelos agentes estatais. Além disso, também considerou como evidente a negligência por parte do Estado na busca de
sobreviventes e, posteriormente, na recuperação dos corpos. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Neira-Ale-
gría et al. v. Peru, para. 74. Sentença de 19 de janeiro de 1995.
148
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez Case, para. 154 e Caso Godínez Cruz Case, para.
162.
149
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso “Street Children “ (Villagran-Morales et al.) v. Guatemala, Judgement
of 19 November 1999, Series C No. 77. JOINT CONCURRING OPINION OF JUDGES A.A. CANÇADO TRINDADE AND A. ABREU-BURELLI.
Também nesse sentido: Corte IDH. Caso Defensor de Derechos Humanos y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Re-
paraciones y Costas. Sentencia de 28 de agosto de 2014. Serie C No. 28; Caso Comunidad Garífuna de Punta Piedra y sus miembros Vs.
Honduras. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 8 de octubre de 2015. Serie C No. 304.
150
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. 29 July 1988, Velásquez-Rodríguez v. Honduras, parágrafo 166.

191
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

fazer uso da força ou se utilizar de instrumentos de coerção quando tenha esgotado todos os demais
métodos de controle. Ou seja, a força deve ser sempre o último recurso.151
Um grau maior de excepcionalidade é atribuído ao uso da força letal e ao uso de armas de fogo por parte
de agentes de segurança estatal contra pessoas, que deve ser proibido como regra geral, sendo que seu
uso deve estar vinculado à previsão legal,152 devendo ser interpretado restritivamente e apenas utilizado
quando se mostrar absolutamente necessário em relação à força ou ameaça que se busca repelir.153
As execuções extrajudiciais ou sumárias são caracterizadas como privações deliberadas e ilegítimas da
vida por parte de agentes do Estado, geralmente agindo sob ordens ou pelo menos com o consenti-
mento ou aquiescência das autoridades. Portanto, execuções extrajudiciais são ações ilícitas cometidas
por aqueles que precisamente estão investidos do poder originalmente concebido para proteger e
garantir a segurança e a vida das pessoas.154
A Corte IDH estabeleceu que a existência de um padrão de execuções extrajudiciais gera um clima
incompatível com a efetiva proteção do direito à vida.155 Os Estados devem tomar as medidas neces-
sárias, não só para prevenir e castigar a privação da via como consequência de atos criminais, mas
também prevenir execuções arbitrárias por parte se suas próprias forças de segurança.156
O uso da força será considerado legal: (i) em defesa de alguém contra o uso de violência ilegítima;
(ii) para efetuar uma prisão legal ou evitar fuga de uma pessoa legalmente detida; (iii) para reprimir
legalmente uma revolta, motim ou manifestação. A CADH não estabelece objetivamente em quais
casos e circunstâncias em que a morte advinda do uso da força será justificada. A Corte IDH recorre ao
Direito Internacional Humanitário,157 entendendo que para que seja legítima, a força utilizada deve estar


151
No caso Nadege Dorzema e outros vs. República Dominicana, a Corte IDH, levando em consideração os diversos instrumentos inter-
nacionais sobre a matéria e, em particular, os Princípios Básicos sobre o uso de força e de armas de fogo por agentes responsáveis pela
aplicação da lei, entendeu haver uma violação do direito à vida por haver uso excessivo da força de militares contra um grupo de haitianos.
Sete pessoas foram mortas no conflito e diversas outras foram feridas. Restou demonstrado que as pessoas vítimas no conflito (suspeitas
de tráfico de drogas) não dispararam ou puseram em perigo a vida dos militares ou de terceiros. Diante disso, a Corte entendeu que o uso
da força não foi legítimo, por não ter sido respeitado o quesito do último recurso ou da proporcionalidade. O Estado poderia e deveria
ter utilizado medidas menos extremas que alcançariam o mesmo objetivo. Outros casos que salientaram que a força deve ser utilizada de
forma proporcional e ser sempre o último recurso: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Montero Aranguren
y otros (Retén de Catia) Vs. Venezuela; Caso Zambrano Vélez y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas; r. Caso del Centro
Penitenciario Regional Capital Yare I y II. Medidas Provisionale, dentre outros.
152
Em todos os casos de uso da força que resultem em morte ou em lesões, é dever do Estado o início de uma investigação séria, imparcial e
efetiva. Nesse sentido: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Montero Aranguen e outro Vs Venezuela; Caso
Cruz Sánchez e outros Vs Peru, dentre outros.
153
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS: Caso del Centro Penitenciario Regional Capital Yare I y II. Medidas Provi-
sionale, Caso Zambrano Vélez y otros Vs. Ecuador, Caso Montero Aranguren y otros (Retén de Catia) Vs. Venezuela; Corte Europeia de
Direitos Humanos: Case of Kakoulli v. Turkey; Case of McCann and Others v. the United Kingdom.
154
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. INFORME Nº 80/07 CASO 11.658 FONDO MARTÍN PELICÓ COXIC Vs.
GUATEMALA. 15 de octubre de 2007. Par.109.
155
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso 11.658, Martín Pelicó Coxic c. Guatemala, 15 de octubre de 2007, párr.
120.
156
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS., Caso Juan Humberto Sánchez. Sentencia de 7 de junio de 2003. Serie C No.
99, párr. 109.
157
Corte IDH y Comité Internacional de la Cruz Roja Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos No.
17 : Interacción entre el Derecho Internacional de los Derechos Humanos y el Derecho Internacional Humanitario / Corte Interamericana
de Derechos Humanos y Comité Internacional de la Cruz Roja – [ed. ampl.] -- San José, C.R. : Corte IDH, 2021. Disponível em: https://www.
corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/cuadernillo17.pdf. Acesso em: 12 abr. 2021. Par. 273.

192
DIREITO À VIDA

em conformidade com os princípios da finalidade (previsão legal), absoluta necessidade, proporciona-


lidade e humanidade.158
Para analisar a presença desses requisitos no uso da força por parte de agentes do Estado, a Corte IDH
utiliza três momentos fundamentais,159 quais sejam:
i. As ações preventivas: É analisada a existência de legislação estatal que estabeleça
os parâmetros para o uso da força por parte dos agentes do Estado, bem como ter
o Estado oferecido capacitação e treinamento a seus agentes para que conheçam as
normas existentes sobre o uso da força e estejam aptos a cumpri-las.160 Além disso,
verifica-se se o Estado cumpriu o disposto no artigo 2 da Convenção, do qual deriva seu
dever de supressão das normas e práticas que impliquem violação às garantias previstas
na Convenção e seu dever de aprovação de normas e desenvolvimento de práticas que
visem a observância dessas garantias.
ii. As ações durante os fatos: É analisada a legalidade, a necessidade e a proporcionali-
dade do uso da força utilizado em relação ao nível de resistência oferecido ou ao
direito ameaçado.
iii. As ações posteriores aos fatos: É verificado se houve a devida diligência por parte do
Estado nas investigações161, bem como humanidade no tratamento das vítimas, tendo
em vista o dever de garantia do direito à vida e à integridade pessoal pelo ente estatal162.
Os princípios básicos sobre o uso da força e de armas de fogo por Forças de Segurança (ONU, 1990) refere
que a força só deve ser utilizada como último recurso e apenas no caso previsto em lei, assim dispondo:

158
A CorteIDH determina que o uso da força deve estar dirigido ao alcance de um objetivo legítimo, devendo a legislação prever a forma
de atuação em casa situação. A absoluta necessidade será verificada quando houver um perigo direto, ou quando a abstenção do uso da
força permitir a fuga de pessoas, no entanto, a força letal só será permitida quando houver perigo real ou iminente aos agentes do estado
ou a terceiros. A proporcionalidade refere que o nível da força utilizado deve ser adequado ao nível de resistência oferecido, devendo os
agentes empregar táticas de negociação, controle ou uso de força, conforme se mostre necessário em cada caso. A Corte também rela-
ciona a proporcionalidade com o planejamento de medidas preventivas, analisando “a) se com a implementação de meios menos lesivos
poderiam ter sido evitadas as violações, e b) se existiu proporcionalidade entre o uso da força e o dano que estava encaminhado a repelir”.
Corte IDH, Caso Nadege Dorzema e Outros vs. República Dominicana, par.87. No mesmo sentido: Corte IDH, Caso Montero Aranguren e
outros (Retén de Catia) Vs. Venezuela, pars. 67 e 68; Corte EDH. McCann e Outros vs. Reino Unido, par. 150 e Erdogan e outros vs. Turquia,
nº 19807/02. Quarta Câmara. 13 de setembro de 2006, par. 68.
159
Assim foi analisada a legitimidade e legalidade do uso da força pelos agentes estatais no Caso Nadege Dorzema e outros vs. República
Dominicana. A metodologia baseia-se nos princípios nº 5,6,7,11, “f”, 22 e 23 previstos nos Princípios básicos sobre o uso da força e armas
de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei e nos artigos 1 a 8 do Código de Conduta. Em: Corte IDH. Caso Nadege
Dorzema e outros vs. República Dominicana. Sentença de 24 de outubro de 2012.
160
O Estado tem o dever de “[...]adequar sua legislação nacional e de vigiar que seus corpos de segurança, a quem está atribuído o uso da for-
ça legítima, respeitem o direito à vida de quem se encontra sob sua jurisdição”, devendo ser claro ao demarcar as políticas internas sobre
uso da força, bem como buscar implementar os Princípios sobre o uso da força e o Código de conduta. Além de fazer a capacitação dos
antes para que conheçam as disposições legais e estejam aptos segui-las, havendo infrações administrativas, é dever do Estado assegurar
uma capacitação apropriada a enfrentar a infração. Ibid, par.79-82.


161
Tratando-se de execuções extrajudiciais, compete ao Estado a investigação e punição dos responsáveis, especialmente quando estes fo-
rem agentes estatais. Não sendo cumpridas tais obrigações, o Estado pode ser internacionalmente responsabilizado, inclusive à violação
do direito à integridade psíquica e moral dos familiares da vítima, devido à angústia e sofrimento adicionais sofridos pela não impunidade
prolongada decorrente de ações e/ou omissões das autoridades estatais. Nesse sentido: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS
HUMANOS, Caso Nadege Dorzema e outros Vs. República Dominicana, par.105; Caso Myrna Mack Chang Vs. Guatemala. Mérito,
Reparações e Custas. Sentença de 25 de novembro de 2003. Série C Nº 101, par. 156, e Caso Família Barrios Vs. Venezuela, par. 176.
162
Os Princípios sobre o Uso da Força estabelecem que havendo feridos nos conflitos, estes devem receber atendimento médico o mais
rápido possível, além do dever de se notificar familiares ou amigos íntimos da pessoa ferida o mais depressa possível (vide Princípio nº5,
alínea “c” e |”d”).

193
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Princípio 9. Os policiais não usarão armas de fogo contra pessoas, exceto em legítima defesa ou
defesa de terceiros contra perigo iminente de morte ou lesão grave, para impedir a perpetração
de um crime particularmente grave que ameace a vida, para prender uma pessoa que apresenta
tal risco e resista à autoridade, ou para impedir a sua fuga, e somente quando outros meios
menos extremos forem insuficientes para atingir estes objetivos. Em qualquer caso, o uso
letal intencional de armas de fogo só poderá ser feito quando for estritamente inevitável para
proteger a vida. (Grifei).

Já a proporcionalidade reflete a preocupação com as consequências do uso da força, devendo haver


uma proporcionalidade entre os direitos violados; ou seja, para que se utilize a força de modo letal,
deve haver uma ameaça séria e real à vida de alguém ou a sua integridade física.163 Durante o desen-
volvimento de um evento de implantação de autoridade, os agentes do Estado, na medida do possível,
devem realizar uma avaliação da situação e um plano de ação antes da intervenção, com o objetivo de
minimizar o uso da força e evitar fatalidades.164
Quando não estão presentes os requisitos acima elencados, o uso de força é considerado ilegal e ilegí-
timo, sendo consideradas as perdas das vidas decorrentes do excesso uma privação arbitrária da vida.165
Os Princípios Básicos do Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação
da Lei trazem disposições que buscam garantir a observância do princípio de Direito Humanitário,
devendo os agentes estatais apenas utilizarem a força quando for extremamente necessário e de forma
proporcional, buscando minimizar danos e ferimentos, e respeitar e preservar a vida humana.166
No Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, a CIDH , recomendou, dentre outros, ao Brasil que: (i) capacitasse
adequadamente o pessoal policial sobre como tratar de maneira efetiva e eficiente as pessoas oriundas
dos setores mais vulneráveis da sociedade, inclusive as crianças, as mulheres e os residentes de favelas,
buscando superar o estigma de que todos os pobres são criminosos; e, (ii) regulamentasse legalmente,
tanto no aspecto formal como no material, os procedimentos policiais que envolvam uso legítimo da
força, estipulando expressamente que só se pode recorrer a esse extremo como último recurso, e que
o uso da força deve se inspirar nos princípios de excepcionalidade, necessidade e proporcionalidade,
levando em conta os Princípios Básicos mencionados. O caso foi levado à Corte IDH, que declarou a
responsabilidade do Estado brasileiro pela violação do direito às garantias judiciais de independência e
imparcialidade da investigação, devida diligência e prazo razoável, bem como pela violação do direito à
proteção judicial e à integridade pessoal.167
Quando o uso legítimo da força e de armas de fogo for inevitável, os responsáveis pela apli-
cação da lei devem:

163
Ressalta-se que mesmo nos casos de conflitos armados, as disposições da Convenção devem ser observadas e as normas de Direito
Internacional Humanitário aplicadas, especialmente o princípio da distinção, proporcionalidade e precaução, não sendo o Estado escuso
das violações perpetradas nesse período. Nesse sentido: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Cruz Sánchez e
outros Vs Peru. Sentença de 17 de abril de 2015.
164
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Roche Azaña e outros Vs. Nicaragua. párr. 63.
165
Nesse sentido:CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso Familia Barrios Vs. Venezuela, par. 49; Caso Zambrano
Vélez y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 4 de julio de 2007. Serie C No. 166, párrs. 81, 83, 84, 86 y 88; Caso
Montero Aranguren y otros (Retén de Catia) Vs. Venezuela. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de julio
de 2006. Serie C No. 150, párrs. 66, 67, 68 y 75.
166
Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei. Adotado por
consenso em 7 de setembro de 1990, por ocasião do Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento
dos Delinquentes.


167
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília v. Brasil. Sentença de 16 de fevereiro de 2017.

194
DIREITO À VIDA

(a) Exercer moderação no uso de tais recursos e agir na proporção da gravidade da infração e do
objetivo legítimo a ser alcançado; (b) Minimizar danos e ferimentos, e respeitar e preservar a vida
humana; (c) Assegurar que qualquer indivíduo ferido ou afetado receba assistência e cuidados
médicos o mais rápido possível; (d) Garantir que os familiares ou amigos íntimos da pessoa ferida
ou afetada sejam notificados o mais depressa possível.168

Também nesse sentido, a Corte IDH já se posicionou no sentido de que não se considera como abso-
luta necessidade a força utilizada por agentes estatais contra pessoas sem que haja um perigo direto,
inclusive nos casos em que a falta do uso da força resulte na perda da oportunidade de captura.169
Além disso, quando esse uso da força pelos agentes estatais der causa a um ferimento ou morte, estes
devem comunicar imediatamente o fato aos seus superiores (Princípio 6), uma vez que os governos
têm a obrigação de averiguar a legalidade do uso da força, bem como garantir que o uso arbitrário ou
abusivo da força por agentes estatais seja punido como delito criminal (Princípio 7), devendo haver uma
investigação séria, independente, imparcial e efetiva.170
O Relatório do Relator Especial de Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, na sua Missão ao
Brasil, dentre outras recomendações, referenciou que a prática comum de classificação das mortes por
policiais como “autos de resistência” ou “resistência seguida por morte” oferece um cheque em branco
às mortes por policiais, devendo ser abolido, devendo essas mortes serem incluídas nas estatísticas de
homicídios de cada estado e serem instigadas a fundo.171
Nos casos em que haja uma suspeita de execução extralegal, arbitrária ou sumária, os Estados devem
proceder com uma investigação exaustiva, imediata e imparcial.172 Os Princípios Relativos a uma Eficaz
Prevenção e Investigação das Execuções Extralegais, Arbitrárias ou Sumárias dispõem que, nos casos em
que se suspeite da participação de funcionários estatais, pode não ser possível uma investigação obje-
tiva e imparcial a menos que se crie uma comissão de inquérito especial. Entre os fatores que justificam
a crença de que funcionários estatais participaram do homicídio, e que deveriam levar à criação de uma
comissão especial imparcial que a investigue figuram, entre outros: quando a vítima tenha sido vista
pela última vez sob custódia da polícia ou detida; quando o modus operandi seja reconhecidamente
imputável a esquadrões da morte patrocinados pelo governo; quando pessoas do governo ou a ele
relacionadas tenham tentado obstruir ou atrasar a investigação do homicídio; quando não se possam
obter as provas físicas ou de testemunhas essenciais à investigação. Nessas situações, o parágrafo 11 dos
referidos Princípios dispõe que se crie uma comissão de sindicância independente ou procedimento
semelhante. Os investigadores, nesses casos, devem ser imparciais, competentes e independentes.173

168
Princípio 5. Ibid.
169
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Rocha Azaña e outros Vs Nicarágua., párr. 62; Caso Nadege Dorzema e
otros Vs. República Dominicana, párr. 85 ii); TEDH, Caso Kakoulli v. Turquía, no. 38595/97, Sentença de 22 de novembro de 2005, párr. 108.
170
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez. Fondo, párr. 177; Caso Hermanos Landaeta Mejías
y otros vs. Venezuela, párr. 216.


171
Conselho de Direitos Humanos. Relatório do Relator Especial de Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias Dr. Philip Alston. Aden-
do Missão ao Brasil. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/abc/onu/r_onu_philip_alston_2008.pdf. Acesso em 10 out. 2021.
172
PRINCÍPIOS relativos a uma eficaz prevenção e investigação de execuções extralegais, arbitrárias e sumárias. Adotados pelo Conselho
Econômico e Social das Nações Unidas em 24 de Maio de 1989, através da Resolução 1989/65, e aprovados pela Assembleia Geral das
Nações Unidas em 15 de Dezembro de 1989, através da Resolução 44/162. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/exec/
exec89.htm. Acesso em 20 out 2021.
173
CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS Manual sobre a Eficaz Prevenção e Investigação de Execuções Extraju-
diciais, Arbitrárias e Sumárias, das Nações Unidas (Protocolo de Minnesota). Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Publica-
tions/MinnesotaProtocol.pdf. Acesso em 10 out. 2021.

195
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A Corte IDH considera que a independência do órgão investigador é elemento essencial nos casos
de uso da força por agentes estatais, devendo este ser suficientemente independente das pessoas ou
estruturas cuja responsabilidade esteja sendo atribuída no caso concreto.174
Importante ressaltar que a Corte IDH não tem competência para julgar os indivíduos perpetradores
de crimes considerados internacionais, mas tão somente os Estados, não devendo a responsabilidade
criminal internacional do indivíduo ser confundida com a responsabilidade internacional dos Estados.175


174
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília v. Brasil. Par. 189. Sentença de 16 de fevereiro de 2017.
175
O Tribunal Penal Internacional (ou Corte Penal Internacional) é o tribunal competente para julgar os crimes internacionais e a responsa-
bilização do Estado pela CIDH não impede que o agente perpetrador dos excessos venha a ser responsabilizado pelo Tribunal Penal, caso
caracterize o ato um crime internacional e desde que preenchidos os requisitos do Tribunal para julgamento (quais sejam: esgotamento
das opções judiciais internas; o indivíduo não tenha respondido judicialmente pelo mesmo fato (não são considerados os casos em que
se comprova que o Estado não tomou as providências cabíveis para a apuração e punição dos crimes); a existência de um core crime).
BRASIL. Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 10 out. 2021.

196
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

Francine Oliveira Tassoni

Lais Nardon Martins

Diovanna Vitória Fritsch. In Memorian

1. INTRODUÇÃO

A CADH consagra, em seu art. 5º, a proteção da integridade pessoal, nas dimensões física, psíquica e
moral, incluindo a proibição de tortura e de penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
O direito à integridade está vinculado à “intangibilidade do ser humano.”1 A garantia do direito à integri-
dade pessoal implica a proteção da pessoa como um todo (art. 5.1), 2 no mais amplo complexo invólucro
protetivo para além do corpo humano, protegendo-se também a moral e a integridade psíquica do ser
humano. Desse modo, há uma intrínseca relação entre o direito à integridade pessoal e a dignidade da
pessoa humana. 3 Por isso, a violação a este direito pode assumir diversas formas e variações de grau:

A violação do direito à integridade física e psíquica das pessoas é uma classe de violação que tem
diversas conotações de grau e que abarca desde a tortura até outros tipos de abuso ou trata-
mentos cruéis, desumanos ou degradantes cujas sequelas físicas e psíquicas variam de intensidade
de acordo com fatores endógenos e exógenos que devem ser demonstradas em cada situação
concreta.4 (tradução nossa)

Além da dimensão psíquica e física, a Corte IDH tem reconhecido a dimensão moral da integridade
pessoal. No caso “Comunidad Moiwana Vs. Surinam”, 5 os fatos resultantes do massacre dos membros
da comunidade N’djuka na aldeia Moiwana, no ano de 1986, a saber, deslocamento forçado dos sobre-


1
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 8ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva Educação, 2021. p. 723.
2
Ibid.
3
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Loayza Tamayo Vs. Perú. Fondo. Sentencia de 17 de septiembre de 1997.
Serie C No. 33. par. 57; Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil. Sentencia de 4 de julio de 2006. Serie C No. 149. para. 127; CORTE INTERAMERICA-
NA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Vélez Restrepo y familiares Vs. Colombia. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 3 de septiembre de 2012. Serie C No. 248.
4
“La infracción del derecho a la integridad física y psíquica de las personas es una clase de violación que tiene diversas connotaciones de
grado y que abarca desde la tortura hasta otro tipo de vejámenes o tratos crueles, inhumanos o degradantes cuyas secuelas físicas y psí-
quicas varían de intensidad según los factores endógenos y exógenos que deberán ser demostrados en cada situación concreta”. CORTE
INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Loayza Tamayo Vs. Perú. Fondo. Sentencia de 17 de septiembre de 1997. Serie C
No. 33. par. 57; Ver também: Caso Caesar Vs. Trinidad y Tobago. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 11 de marzo de 2005. Serie
C No. 123. pár. 69; Caso de las Comunidades Afrodescendientes desplazadas de la Cuenca del Río Cacarica (Operación Génesis)
Vs. Colombia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 20 de noviembre de 2013. Serie C No. 270. par. 218;
Caso Guerrero, Molina y otros Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 3 de junio de 2021. Serie C No. 424. pars. 112-
114. Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil. Sentencia de 4 de julio de 2006. Serie C No. 149. para. 127; CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS
HUMANOS. Caso Vélez Restrepo y familiares Vs. Colombia. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 3 de
septiembre de 2012. Serie C No. 248.
5
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fon-
do, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de junio de 2005. Serie C No. 124. par. 93.

197
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

viventes, desaparecimento dos corpos dos mortos e ausência de investigação e punição dos respon-
sáveis, violaram o direito à integridade pessoal dos membros da comunidade. A Corte IDH considerou
que este direito foi vulnerado pela impossibilidade de honrar adequadamente os mortos, de privar
os membros da comunidade do retorno às suas terras tradicionais e pelo sofrimento e humilhação
diante da impunidade.
No caso “Masacres de Río Negro Vs. Guatemala”,6 a Corte IDH entendeu que a integridade pessoal
pode ser violada como consequência da violação de outros direitos também assegurados na CADH,
como é o caso da liberdade de consciência e religião. A integridade pessoal dos membros da comuni-
dade de Río Negro foi violada pela omissão do Estado em não localizar os corpos dos desaparecidos
e impedir os sobreviventes de enterrar seus mortos de acordo com suas crenças, uma vez que isso
provocou a perda de guias espirituais e lugares sagrados e a deterioração de sua estrutura social,
familiar, da vida cultural e espiritual. Também neste caso, a Corte considerou que desaparecimentos
forçados, violência sexual e submissão à escravidão são práticas que, dentre outros direitos, vulneram a
integridade pessoal das vítimas.
Inúmeros casos julgados da Corte IDH consideram que alguns casos de violação do direito à saúde
tem como consequência direta a violação do direito à integridade física e psíquica. No caso “Ximenes
Lopes Vs. Brasil”, a Corte entendeu que as pessoas com deficiência que vivem ou são submetidas a
tratamento em instituições psiquiátricas são particularmente vulneráveis ​​à tortura ou outras formas de
tratamento cruel, desumano ou degradante. A vulnerabilidade intrínseca das pessoas com deficiência
mental é agravada pelo alto grau de intimidade que caracteriza o tratamento de doenças psiquiátricas,
o que torna essas pessoas mais suscetíveis ao tratamento abusivo quando submetidas à hospitalização. 7
Por essa razão, a garantia do direito à integridade pessoal nesses casos deve receber atenção redobrada
por parte do Estado.
No caso “Manuela y otros Vs. El Salvador”, a prestação de serviço médico totalmente inadequado levou
à violação do direito à integridade pessoal da paciente, então chegada ao hospital para atendimento
obstétrico e posteriormente denunciada ao Ministério Público por suposta prática de aborto. No
contexto dos serviços de saúde, onde a integridade pessoal das pessoas está especialmente em risco
pela extrema vulnerabilidade em que se encontram, a Corte entende que o direito à saúde abrange
cuidados oportunos e adequados de acordo com os princípios de disponibilidade, acessibilidade, acei-
tabilidade e qualidade, cuja aplicação dependerá das condições prevalecentes em cada Estado.8
A Corte IDH também costuma citar o caso Ireland v. the United Kingdom9 julgado pelo Tribunal
Europeu de Direitos Humanos para notar que, “mesmo na ausência de lesões, o sofrimento físico e
moral, acompanhado de distúrbios mentais durante os interrogatórios, pode ser considerado trata-
mento desumano. O caráter degradante se expressa em sentimento de medo, ansiedade e inferiori-
dade para humilhar, degradar e quebrar a resistência física e moral da vítima.”
Embora o direito à integridade pessoal não esteja expressamente reconhecido como tal na DUDH e no
PIDCP, trata-se do direito humano cuja proteção constitui a principal finalidade e objetivo da proibição

6
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Masacres de Río Negro Vs. Guatemala. Excepción Preliminar, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 4 de septiembre de 2012. Serie C No. 250. par. 116, 132, 150 e 153.


7
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil. Sentencia de 4 de julio de 2006. Serie C No. 149.
par. 160.
8
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Manuela y otros Vs. El Salvador. Excepciones Preliminares, Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentencia de 2 de noviembre de 2021. Serie C No. 441. par. 183 e 185.
9
ECHR. Case of Ireland v. the United Kingdom, Judgment of 18 January 1978, Series A no. 25. párr. 167, citado em Caso Loayza Tamayo
Vs. Perú. Fondo. Sentencia de 17 de septiembre de 1997. Serie C No. 33. par. 57.

198
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes previstos no artigo 5º da DUDH e no


artigo 7º do PIDCP.
Semelhante abordagem é seguida pela Constituição Federal de 1988, que também não prevê expres-
samente o direito à integridade pessoal, mas preceitua que “ninguém será submetido a tortura nem
a tratamento desumano ou degradante”, conforme art. 5º, inc. III. Já no que diz respeito às pessoas
encarceradas ou com a liberdade restrita, a CF assegura o direito dos presos ao respeito à integridade
física e moral, vide art. 5º, inc. XLIX, com a garantia de que não haverá penas cruéis (art. 5º, inc. XLVII,
alínea ‘e’).10 Já no inciso XLIII, do art. 5º, ao considerar como prática inafiançável e insuscetível de graça
ou anistia o constituinte ressalta a extrema gravidade do ato de tortura.11
Como vimos, a Corte IDH já consignou em inúmeros julgados que a infração do direito à integridade
pessoal tem diversas conotações de grau. Embora não seja a única, a forma mais grave de violar a inte-
gridade pessoal de um indivíduo é por meio da tortura e dos tratamentos degradantes, desumanos
e cruéis, prática absolutamente proibida pelo DIH, e que tem sido objeto de inúmeros julgados no
sistema global e interamericano de proteção de direitos humanos, como se verá com detalhes ao
longo desse capítulo.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1 Instrumentos Internacionais

2.1.1 Declaração Universal dos Direitos Humanos de 194812

Artigo 5º
Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

2.1.2 Convenção Europeia de Direitos do Homem de 195013

Artigo 3º
Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.

10
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 08 jun. 2022.


11
Ibid.
12
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A
III) em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 08
jun. 2022.
13
ECHR. Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Roma, 4.11.1950. Disponível em: https://www.echr.coe.int/documents/convention_
por.pdf. Acesso em: 08 jun. 2022.

199
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2.1.3 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 196614

Artigo 7º
Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degra-
dantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências
médicas ou científicas.
Artigo 10º
1. Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade
inerente à pessoa humana.
2.
a) As pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das pessoas
condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição de pessoa não-condenada.
b) As pessoas processadas, jovens, deverão ser separadas das adultas e julgadas o mais rápido possível.
3. O regime penitenciário consistirá num tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e a reabi-
litação normal dos prisioneiros. Os delinquentes juvenis deverão ser separados dos adultos e receber
tratamento condizente com sua idade e condição jurídica.

2.1.4 Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 196915

Artigo 5. Direito à integridade pessoal


1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degra-
dantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade
inerente ao ser humano.

2.1.5 Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei16

Artigo 5º
Nenhum funcionário responsável pela aplicação da lei pode infligir, instigar ou tolerar qualquer ato de
tortura ou qualquer outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante, nem nenhum destes
funcionários pode invocar ordens superiores ou circunstâncias excepcionais, tais como o estado de
guerra ou uma ameaça de guerra, ameaça à segurança nacional, instabilidade política interna ou qual-
quer outra emergência pública, como justificativa para torturas ou outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes.

BRASIL. Decreto no. 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação.
14

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 08 jun. 2022.


15
BRASIL. Decreto no. 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 08 jun. 2022.
16
ONU. Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral
das Nações Unidas (resolução 34/169) em 17 de Dezembro de 1979. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev18.
htm. Acesso em: 08 jun. 2022.

200
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

2.1.6 Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 198117

Artigo 5º
Todo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento
da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem, nomeada-
mente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes são proibidos.

2.1.7 Código de Ética Médica Relativo à Proteção de Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma


de Detenção ou Prisão Contra Tortura ou outra Forma Cruel, Desumana ou Degradante
de Tratamento ou Punição de 1982 18

Artigo 1º
Adota os Princípios de Ética Médica concernentes ao papel do pessoal da saúde principalmente os
médicos, na proteção de prisioneiros e detentos, contra tortura e outra forma cruel, desumana ou
degradante de tratamento ou punição, estabelecidos no anexo da presente resolução.

2.1.8 Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional de 198819

Artigo 7º
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade”, qualquer um dos
atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qual-
quer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
[...]
f) Tortura;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento,
ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.
2. Para efeitos do parágrafo 1o:
[...]
e) Por “tortura” entende-se o ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais,
são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controle do acusado; este
termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legais, inerentes a
essas sanções ou por elas ocasionadas.

OUA. Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Carta de Banjul). Aprovada pela Conferência Ministerial da Organização da
17

Unidade Africana (OUA) em Banjul, Gâmbia, em janeiro de 1981, e adotada pela XVIII Assembléia dos Chefes de Estado e Governo da
Organização da Unidade Africana (OUA) em Nairóbi, Quênia, em 27 de julho de 1981. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/
africa/banjul.htm. Acesso em: 08 jun. 2022.
18
ONU. Código de Ética Médica Relativo à Proteção de Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão Contra Tortura
ou outra Forma Cruel, Desumana ou Degradante de Tratamento ou Punição. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Na-
ções Unidas (resolução 37/194) em 18 de Dezembro de 1982. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/codetica/codetica_diversos/
medtort.html. Acesso em: 08 jun. 2022.
19
BRASIL. Decreto 4.388/2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 21 set. 2021.

201
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

[...]
Artigo 8º
2. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crimes de guerra”:
[...]
ii) Tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas.
Além de modos genéricos de proteção à integridade pessoal, existem também instrumentos norma-
tivos internacionais específicos para tratar da proibição da tortura e de outros tratamentos degradantes,
desumanos ou cruéis, tais quais:
● Declaração Sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra a Tortura e Outras Penas ou Trata-
mentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral da Organização
das Nações Unidas na sua Resolução 3.452, de 9 de dezembro de 1975.
● Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degra-
dantes20, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na XL sessão em Nova York em 10
de dezembro de 1984.
● Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, aprovada pela Assembleia Geral da
OEA em 9 de dezembro de 198521.
● Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, adotado e aberto a assinatura em Nova Iorque, em 18 de dezembro
de 2002, pela resolução 57/199 da Assembleia Geral das Nações Unidas22.
Também, importante trazer as seguintes normativas para o Direito Internacional dos Direitos Humanos,
tanto para proteção do direito à integridade pessoal quanto ao combate da tortura ou do tratamento
cruel, desumano ou degradante, quais sejam: Regras de Pequim (Regras mínimas das Nações Unidas
para a administração da justiça de menores) de 1985; 23 Regras de Bankok (Regras das Nações Unidas
para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras)
de 2010; 24 e, Protocolo de Istambul (Manual para a Investigação e documentação eficazes da tortura

20
ONU. Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Adotada pela Resolução
39/46, da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/
bibliotecavirtual/instrumentos/degrdant.htm. Acesso em: 10 set. 2021. Tem-se que a referida Convenção foi internalizada pelo Brasil atra-
vés do Decreto nº 40/1991. BRASIL. Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção Contra a Tortura e Outros Trata-
mentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.Brasília: Presidência da República, 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm. Acesso em: 15 jun. 2022.

BRASIL. Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.Brasília:
21

Presidência da República, 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/d98386.htm. Acesso em: 15 jun.


2022.
22
BRASIL. Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007. Promulga o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos
ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado em 18 de dezembro de 2002. Brasília: Presidência da República, 2007. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6085.htm. Acesso em: 15 jun. 2022.
23
CNJ. Regras de Pequim: regras mínimas das Nações Unidas para a administração da justiça de menores. Coordenação: Luís
Geraldo Sant’Ana Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/2166fd6e650e-
326d77608a013a6081f6.pdf. Acesso em: 15 jun. 2022.
24
CNJ. Regras de Bangkok: regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade
para mulheres infratoras. Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
-content/uploads/2019/09/cd8bc11ffdcbc397c32eecdc40afbb74.pdf. Acesso em: 15 jun. 2022.

202
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

e outros tratamentos ou penas crueis, desumanas ou degradantes) de 2004. 25 Ainda, há previsão nas
Regras Mínimas Padrão para o Tratamento de Prisioneiros, da Organização das Nações Unidas, de 1955,
as quais foram revisadas e transformadas, em 2015, nas Regras de Mandela, 26 tidas como “soft law” para
o direito internacional

2.2 Normativa interna brasileira

2.2.1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

Artigo 5º
[...]
III. Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.
[...]
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por
eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
[...]
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
[...]
XLIX. É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

2.2.2 Lei nº 9.455 de 07 de abril de 199727

Art. 1º. Constitui crime de tortura:

NACIONES UNIDAS. Protocolo de Estambul. Manual para la investigación y documentación eficaces


25

de la tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes. Oficina del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Dere-
chos Humanos. Serie de Capacitación Profesional Nº 8/Rev.Nueva York y Genebra: Publicación de las Naciones Unidas 2004.
26
CNJ. Regras de Mandela: regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos. Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana
Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/a9426e51735a4d0d8501f06a4ba8b4de.
pdf. Acesso em: 15 jun. 2022.

BRASIL. Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1997.
27

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm. Acesso em: 08 jun. 2022.

203
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento


físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave
ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de
caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento
físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las,
incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de
60 (sessenta) anos;
III - se o crime é cometido mediante sequestro.
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu
exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena
em regime fechado.

3. DEFINIÇÃO DE TORTURA E TRATAMENTOS


DESUMANOS, DEGRADANTES E CRUÉIS

Para a definição e conceituação da tortura e tratamentos desumanos, degradantes e cruéis, tem-se que,
de acordo com a Corte IDH a violação da integridade física e psíquica das pessoas possui diversas cono-
tações, desde a tortura até outros tipos de abusos ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes,
com variações da intensidade de fatores endógenos e exógenos em cada caso concreto. 28 E, conforme
já citado anteriormente, mesmo na ausência de lesões, pode haver a consideração de tratamento desu-


28
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Loayza Tamayo Vs. Perú. Fondo. Sentencia de 17 de septiembre de 1997.
Serie C No. 33. par. 57; Ver também: Caso Caesar Vs. Trinidad y Tobago. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 11 de marzo de
2005. Serie C No. 123. pár. 69; Caso de las Comunidades Afrodescendientes desplazadas de la Cuenca del Río Cacarica (Operación
Génesis) Vs. Colombia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 20 de noviembre de 2013. Serie C No. 270.
par. 218; Caso Guerrero, Molina y otros Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 3 de junio de 2021. Serie C No. 424.
pars. 112-114.

204
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

mano, 29 a qual agrava-se em se tratando de uma pessoa ilegalmente detida. 30 Qualquer uso de força
que não seja estritamente necessário para o próprio comportamento do detido constitui uma violação
da dignidade humana31 e uma violação do art. 5 da Convenção Americana. 32
Também são consideradas formas de violação ao direito à integridade na modalidade de tratamento
cruel, desumano ou degradante a incomunicabilidade durante a detenção, a exibição pública em traje
inapropriado, o encarceramento em cela sem ventilação ou sem luz natural, as práticas de espanca-
mentos e outros maus-tratos como afogamento, intimidação e ameaças de outros atos violentos, além
das restrições às visitações. 33
Para tanto, o tratamento desumano inclui o tratamento cruel ou degradante, que se define, segundo
André de Carvalho Ramos, como “toda conduta que leva a humilhações, rebaixando e erodindo a
autoestima e a estima social de uma pessoa, violando sua dignidade” e que cria em suas vítimas “o
sentimento de inferioridade ou humilhação.”34
Sobre a abrangência da proteção do direito à integridade pessoal contra tratamentos degradantes,
desumanos e cruéis, o Comentário Geral no. 7 do CDH da ONU ao art. 7º. do PIDCP assim sedimentou:35

o escopo de proteção requerida vai muito além da tortura como normalmente é entendido. Pode
não ser necessário fazer distinções nítidas entre as várias formas proibidas de tratamento ou
punição. Essas distinções dependem do tipo, propósito e gravidade do tratamento específico. Na
opinião do Comitê, a proibição deve se estender ao castigo corporal, incluindo castigo excessivo
como uma medida educacional ou disciplinar. Mesmo uma medida como confinamento solitário
pode, de acordo com as circunstâncias, e especialmente quando a pessoa é mantida incomuni-
cável, ser contrária a este artigo. Além disso, o artigo protege claramente não apenas pessoas sob
custódia ou presas, mas também alunos e pacientes em instituições educacionais e médicas.

O conceito de tortura encontra-se no art. 1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou


Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes como:

[...] qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos inten-
cionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confis-
sões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter
cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado
em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um
funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou
com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofri-

29
Conforme nota de referência nº 13.
30
ECHR. Case of Ribitsch v. Austria, Judgment of 4 December 1995, Series A no. 336. par. 36, citado em Caso Loayza Tamayo Vs. Perú.
Fondo. Sentencia de 17 de septiembre de 1997. Serie C No. 33. par. 57.


31
Ibid., par. 38.
32
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Loayza Tamayo Vs. Perú, op. cit., p. 57.
33
Ibid., par. 58.
34
RAMOS, op. cit., p. 728.
35
ONU. Comentários Gerais dos Comitês de Tratados de Direitos Humanos da ONU. Comentário Geral n. 7: Artigo 7 (Proibição da
Tortura ou de Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes). Tradução de Carlos Nunes Schoucair Neto. Revisão de
Leonardo Biagioni de Lima. Disponível em: https://www.academia.edu/44631261/Coment%C3%A1rios_gerais_dos_Comit%C3%AAs_de_
Tratados_de_Direitos_Humanos_da_ONU. Acesso em 1 set. 2021. p. 55.

205
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

mentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais
sanções ou delas decorram36.

A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura traz no art. 2º. que, além das práticas
mencionadas acima, também será considerado tortura: “[...] métodos tendentes a anular a perso-
nalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou
angústia psíquica.”37
Ou seja, por meio da Convenção há uma ampliação do conceito de tortura em relação a normativa
universal, bem como:

O elemento subjetivo é praticamente eliminado pela adição das palavras “ou com qualquer outro
fim” e o elemento da dor ou sofrimento produzido na vítima não mais é classificado como “grave”.
Além disso, é incorporado uma definição ao tipo de abuso que está totalmente fora da definição
universal, a saber, as práticas que, mesmo quando não causam dor, tendem a ‘anular a personali-
dade da vítima ou diminuir sua capacidade física ou mental.’ Finalmente, são eliminadas todas as
referências à identidade do sujeito ativo. 38 (tradução nossa)

Nesse conceito do DIDH, há três elementos que caracterizam o crime de tortura39:


Dor e sofrimento severos, físicos ou mentais;
Devem ser infligidos com algum propósito tradicionalmente associado com a tortura;
Deve ser infligido por um funcionário público, ou outra pessoa à uma instigação sua.
A Corte Europeia de Direitos Humanos distingue a tortura do tratamento desumano, sendo a tortura
atribuída “apenas ao tratamento desumano deliberado, causando sofrimento muito sério e cruel”. 40
No caso “Aydin v. Turquia”, a Corte Europeia entendeu que o “acúmulo de atos de violência física e
mental infligidos à requerente e o ato especialmente cruel de estupro a que foi submetida constituem
tortura”, mas destaca que “teria chegado a esta conclusão com base em qualquer um dos fundamentos
considerados separadamente”.41 Já a Corte IDH afirmou que “a tortura pode ser perpetrada não apenas
por meio do exercício da violência física, mas também através de atos que produzem na vítima um
sofrimento agudo físico, mental ou moral”.42

36
BRASIL. Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, De-
sumanos ou Degradantes.Brasília: Presidência da República, 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/
d0040.htm. Acesso em: 15 jun. 2022
37
BRASIL. Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Brasí-
lia: Presidência da República, 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/d98386.htm. Acesso em: 15 jun.
2022.
38
“Esta definición es mucho más amplia que la universal. El elemento subjetivo prácticamente queda eliminado por la adición de las pala-
bras “o con cualquier otro fin” y el elemento de la pena o sufrimiento producido en la víctima ya no es calificado de “grave”. Además, se
incorpora a la definición un tipo de abuso que esta totalmente ausente en la definición universal, a saber, las prácticas que, aún cuando
no causen dolor, tienden a ‘anular la personalidad de la víctima o a disminuir su capacidad física o mental.’ Por último, se elimina toda
referencia a la identidad del sujeto activo”. O’DONELL, op. cit., p. 175.
39
Ibid., p. 174.
40
ECHR. Case Aydin v. Turquia. Application 23178/94, Judgment of 25 September 1997. par. 82.


41
Ibid., par. 86.
42
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Cantoral Benavides Vs. Perú. Fondo. Sentencia de 18 de agosto de 2000.
Serie C No. 69. par. 100.

206
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

Ocorre que é na intensidade do sofrimento infligido à vítima que está o centro da distinção entre tortura
e os tratamentos desumanos, degradantes ou cruéis. Para a CIDH, a tortura é uma forma agravada de
tratamento desumano perpetrado com o objetivo de obter informações, confissões ou infligir uma
punição, entretanto o critério essencial para distinguir a tortura de outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanas ou degradantes deriva da intensidade do sofrimento infligido.43
Importante constar que para a Corte IDH, no caso das “Comunidades Afrodescendentes deslocadas da
Bacia do Rio Cacarica (Operação Gênesis) Vs. Colômbia”, “a simples ameaça de realização de tortura ou
outra forma de tratamento cruel, degradante ou desumano, quando suficientemente real e iminente,
pode ser tipificada como violação ao direito à integridade”.44
A detenção prolongada em isolamento ou detenção em locais secretos, segundo o item 7. C da Reso-
lução 8/8 do CDH da ONU, 45 pode não somente favorecer a prática de tortura e outros tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes, como pode se constituir, em si mesma, numa forma deste tipo de
tratamento. A Corte IDH compartilha do mesmo entendimento e, na sentença do caso “Bámaca Velás-
quez Vs. Guatemala”, 46 sedimentou que “o isolamento produz no detento sofrimento moral e distúr-
bios psíquicos, coloca-o em uma situação de vulnerabilidade particular e aumenta o risco de agressão
e arbitrariedade em centros de detenção.” O posicionamento da Corte IDH a respeito da detenção
prolongada ou em local secreto é reafirmado nos casos “Cantoral Benavides Vs. Peru”, 47 “Maritza Urrutia
Vs. Guatemala”, 48 e no “Lori Berenson Mejía Vs. Peru”.49
Também a Corte IDH firmou entendimento, no caso “Guerrero, Molina e outros Vs. Venezuela”, de que
a tortura, em um contexto de violência policial pode ser usada para atingir um setor social específico de
homens jovens em situação de pobreza:50 “o ataque teve, portanto, uma base discriminatória, uma vez

43
Entendimento da CIDH relatado pela Corte IDH no julgamento do caso “Caesar Vs. Trinidade e Tobago”. CORTE INTERAMERICANA DE
DERECHOS HUMANOS. Caso Caesar Vs. Trinidad y Tobago. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 11 de marzo de 2005. Serie C
No. 123. par. 50.
44
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso de las Comunidades Afrodescendientes desplazadas de la Cuenca del
Río Cacarica (Operación Génesis) Vs. Colombia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 20 de noviem-
bre de 2013. Serie C No. 270. par. 218. Ver também: Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala. Fondo, par.
165; e, Caso Masacre de Santo Domingo Vs. Colombia. Excepciones Preliminares, Fondo y Reparaciones. par. 191.
45
CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA ONU. Resolução 8/8. Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradan-
tes, 2008. Disponível em: https://ap.ohchr.org/Documents/E/HRC/resolutions/A_HRC_RES_8_8.pdf. Acesso em: 17 de maio de 2021.
46
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Bámaca Velásquez Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia de 25 de noviembre
de 2000. Serie C No. 70. par. 150.


47
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Cantoral Benavides Vs. Perú. Fondo. Sentencia de 18 de agosto de 2000.
Serie C No. 69. par. 83.
48
“O isolamento prolongado e confinamento solitário coercitivo para o qual a autora foi exposta representam, por si mesmas, formas de
tratamento cruel e desumano, nocivo a integridade mental e moral da pessoa e o direito de cada detido a respeito devido à dignidade
inerente ao ser humano. Este isolamento produz no detento sofrimento moral e distúrbios psíquicos e o coloca em uma situação de
particular vulnerabilidade”. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Maritza Urrutia Vs. Guatemala. Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentencia de 27 de noviembre de 2003. Serie C No. 103. par. 87.
49
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Lori Berenson Mejía Vs. Perú. Demanda de Interpretación de la Senten-
cia de Fondo y Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de junio de 2005. Serie C No. 128. par. 106.
50
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Guerrero, Molina y otros Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 3 de junio de 2021. Serie C No. 424, par. 118.

207
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

que os agentes policiais procuraram intimidar e punir o Sr. Guerrero com base em preconceitos ligados
à sua posição econômica e status social”. 5152
Portanto, a tortura possui consequências para a vítima, como pânico e temor pela vida, trazendo grave
sofrimento físico e mental para a vítima. 53 No caso “Tibi Vs. Equador”, a Corte IDH entendeu que os atos
de violência perpetrados de modo intencional pelos agentes do Estado causaram contra a vítima grave
sofrimento físico e mental, através de reiterados atos de violência que diminuíram suas capacidades
físicas e mentais e anularam sua personalidade para que o Sr. Tibi se declarasse culpado de um delito, o
que é tortura, nos termos do art. 5.2 da Convenção Americana. 54
Por fim, no julgamento de um caso que envolva tortura, como é o caso “J. Vs. Peru” a Corte IDH
considerou elementos, amplos e distintos, como meios de prova que contribuíssem para esclarecer
o ocorrido, tais quais: o contexto da época dos fatos; as declarações da vítima; o exame médico legal;
a declaração do fiscal do Ministério Público; a falta de investigação dos fatos descritos;55 e também,
neste caso, um relatório psicológico feito pela organização Traumatic Stress Clinic, que descrevia os
maus-tratos sofridos pela vítima durante sua detenção. 56 Semelhantemente, no caso “Azul Rojas Marín
e outra Vs. Peru”, a Corte IDH considerou as declarações da vítima, o exame médico legal, e, neste caso,
a opinião dos peritos sobre as vestimentas da vítima, para então determinar os maus-tratos ocorridos
e sua classificação jurídica de tortura como violência sexual. 57 Ou seja, a declaração da vítima é de
suma importância, além de exames e laudos médicos e psicológicos, declarações de instituições e falta
de investigações, bem como, a consideração da prova específica que pode ser produzida conforme a
peculiaridade de cada caso concreto.

4. FORMAS DE TORTURA

A tortura pode ocorrer na fase investigativa ou de pré-julgamento, como no caso “Miguel Angel Estrella
v. Uruguai”, 58 em que o CDH entendeu que houve tortura e violação do art. 7 do PIDCP. Em 15 de
dezembro de 1977, o autor estava prestes a deixar o Uruguai, quando ele e seu amigo, Luis Bracony,

51
Idem.
52
Conforme demonstrado no caso “Guerrero, Molina y otros Vs. Venezuela” a violência policial como tortura costuma ter como alvos gru-
pos sociais específicos. Por mais que tal caso não seja objeto de análise do capítulo, a tortura policial ganhou destaque no caso de George
Floyd. O estadunidense afro-americano, antes de ser assassinado, em 25 de maio de 2020, em Minneapolis, no estado do Minnesota, nos
Estados Unidos, pediu, de forma agonizante, para viver, dizendo “I can’t breathe”, que, em tradução para o português, significa “Eu não
consigo respirar”, sendo brutalmente assassinado em decorrência de tortura e violência policial, pelo agente estatal Derek Chauvin, o
qual ajoelhou-se em seu pescoço por 8 minutos e 46 segundos, enquanto estava imobilizado, de bruços no asfalto da rua. Para maiores
informações: https://blacklivesmatter.com. Outro caso é o assassinato do brasileiro João Alberto Freitas, homem negro que foi espancado
e assassinado por asfixia nas mãos dos seguranças Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva, um ex-militar e um policial militar tem-
porário, no Supermercado “Carrefour”, em Porto Alegre/RS, na noite de 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra
no Brasil. Para maiores informações: Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano 12, v. 1, v. 1, n. Edição
especial: caso Carrefour, 2021. Disponível em: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/issue/view/25/27. Acesso em: 18 jun. 2022.
53
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Tibi Vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Cos-
tas. Sentencia de 7 de septiembre de 2004. Serie C No. 114. par. 149.
54
Idem.
55
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso J. Vs. Perú. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia
de 27 de noviembre de 2013. Serie C No. 275. par. 313.
56
Ibid., par. 314.
57
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Azul Rojas Marín y otra Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Re-
paraciones y Costas. Sentencia de 12 de marzo de 2020. Serie C No. 402. par. 143.
58
ONU, Comitê de Direitos Humanos, Miguel Angel Estrella v. Uruguai (74/1980), parecer de 29 de março de 1983, par. 8.3 e 10.

208
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

foram sequestrados em sua casa em Montevidéu por cerca de 15 indivíduos fortemente armados
em trajes civis. Eles foram levados de olhos vendados para um lugar onde ele reconheceu as vozes
de Raquel Odasso e Luisana Olivera. Lá, o autor foi submetido a torturas físicas e psicológicas graves,
incluindo a ameaça de que suas mãos seriam cortadas por uma serra elétrica, em um esforço para
forçá-lo a admitir atividades subversivas. Estes maus-tratos tiveram efeitos duradouros, particularmente
para os seus braços e mãos.
A detenção indefinida sem contato com o mundo exterior, também é caso de tortura e violação do art.
7 do PIDCP, como no caso “Sid Ahmed Aber, seu pai Abdelkader Aber e sua irmã Zina Aber v. Estado da
Argélia”, 59 ocorrido na fase investigativa. Nesse caso, o autor foi transferido em fevereiro de 1994 para o
campo de Tamanrasset, onde foi detido e mantido incomunicável até 23 de Novembro de 1995. Poste-
riormente, foi sequestrado em 11 de Outubro de 1997 e mantido incomunicável até 23 de Março de 1998.
Para tanto, o Estado simplesmente invocou o art. 5 do PIDCP proclamando o estado de emergência,
que autorizou “a colocação em centros de segurança, em um determinado lugar, de qualquer adulto
cuja atividade ameaça à ordem pública, pública segurança ou o bom funcionamento dos serviços
públicos” e afirmou que as famílias dos detidos foram informados sobre os locais e as condições de
detenção de seus parentes. O Comitê considerou que o Estado não respondeu às alegações suficien-
temente detalhadas do autor e concluiu que a manutenção do autor em cativeiro e impedindo-o de se
comunicar com sua família e o mundo exterior constituíram uma violação do art. 7 do PIDCP.
Outro caso tortura na fase investigativa ou de pré-julgamento é relatado no caso “José Vicente e
Amado Villafañe Chaparro, Luís Napoleón Torres Crespo, Angel María Torres Arroyo e Antonio Hugues
Chaparro Torres v. Colômbia,”60 em que duas das vítimas, os irmãos Villafañe, foram submetidas a
maus-tratos por soldados do Batalhão de Artilharia nº 2 “La Popa”, onde tiveram os olhos vendados
e foram mergulhados em um tonel d´água. A Comissão concluiu que José Vicente e Amado Villafañe
foram torturados, em violação do art. 7 do PIDCP.
Na fase de pós-julgamento, em que pese não se configurando tortura, uma pessoa pode sofrer uma
punição degradante, como no caso “Anthony M. Tyrer v. Reino Unido”61, em que a vítima foi submetida a
uma punição na qual o elemento de humilhação atingiu o nível compatível com noção de “degradante”.
Outro caso de extrema violação da condição humana é o caso “Raxcacó-Reyes Vs. Guatemala”, em que
a vítima foi condenada à pena de morte e mantida pelo Estado à espera da execução em uma cela de
aproximadamente 4 (quatro) metros quadrados, de onde só podia sair para um pátio cimentado do
mesmo tamanho, localizado ao lado de sua cela, com grades e malha no telhado, que constituía sua
única entrada de luz e ventilação naturais. Na mesma cela estavam as instalações sanitárias para os
reclusos que partilhavam o confinamento e que se encontravam em condições altamente deficientes
e insalubres.62 As visitas dos familiares do Sr. Raxcacó Reyes eram limitadas a duas horas semanais e

59
ONU, Comitê de Direitos Humanos, Sid Ahmed Aber, Abdelkader Aber e Zina Aber v. Argélia (1439/2005), parecer de 13 de julho de
2007, par. 7.3 e 7.4. No mesmo sentido, a No mesmo sentido, a detenção prolongada em isolamento ou detenção em locais secretos pode
favorecer a prática de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e pode constituir uma forma em si deste tipo
de tratamento. CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA ONU, Resolução 8/8, Item 7. C. Ver também: CORTE INTERAMERICANA DE
DERECHOS HUMANOS. Caso Maritza Urrutia Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 27 de noviembre de 2003.
Serie C No. 103. par. 87; Caso Bámaca Velásquez Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia de 25 de noviembre de 2000. Serie C No. 70. par. 150;
Caso Cantoral Benavides Vs. Perú. Fondo. Sentencia de 18 de agosto de 2000. Serie C No. 69. par. 83; e Caso Lori Berenson Mejía Vs.
Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de noviembre de 2004. Serie C No. 119. par. 106.

60
ONU, Comitê de Direitos Humanos, José Vicente e Amado Villafañe Chaparro, Luís Napoleão Torres Crespo, Angel María Torres
Arroyo e Antonio Hugues Chaparro Torres v. Colômbia (612/1995), parecer de 29 de julho de 1997, par. 8.5.
61
ECHR. Case Tyrer v. Reino Unido, (no 5.856/72), Judgment of 25 April 1978. par. 31.
62
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Raxcacó Reyes Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia
de 15 de septiembre de 2005. Serie C No. 133. par. 43.19.

209
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

aconteciam no mesmo pavilhão, com muitas limitações físicas. Até março de 2005, as visitas familiares
eram realizadas por meio de uma tela que impedia qualquer contato físico entre o detento e o visitante,
além disso, os privados de liberdade mantinham um dos braços preso a um tubo, e neste regime de
visitas a filha da vítima o visitava, mas sua companheira não podia visitá-lo, pois também se encontrava
detida.63 A alimentação que a vítima recebia era escassa e de má qualidade, sendo obrigado a comprar
a sua própria comida.64 Sob essas condições à espera da execução, a perícia concluiu pela intenso
sofrimento psicológico a que era submetido o Sr. Raxcacó-Reyes, levando a Corte IDH a considerar as
condições de detenção como tratamento cruel, desumano e degradante nos termos do artigo 5.2 da
CADH, portanto, violadoras de seu direito à integridade física, psíquica e moral, consagrado no artigo
5.1 do mesmo instrumento.65
No caso “Guerrero, Molina e outros Vs. Venezuela”, já trazido anteriormente, a Corte IDH considerou
que uma das formas de se torturar é através da violência policial e práticas discriminatórias, usadas
para atingir um setor social específico de homens jovens em situação de pobreza.66 No caso “Tibi Vs.
Equador”, a Corte IDH entendeu que as torturas podem ser de ordem físicas e psíquicas, “[...] a fim de
suprimir a sua resistência psicológica e forçá-la a incriminar-se a si própria ou a confessar-se a certos
comportamentos criminosos ou a sujeitá-la a formas de punição para além da privação de liberdade
em si”(tradução nossa).67
A ameaça de sofrer uma grave lesão física pode chegar a configurar uma “tortura psicológica”.68 No
caso “Guerrero, Molina e outros Vs. Venezuela”, “[...] as ameaças e o perigo real de sujeitar uma pessoa
a danos físicos, em determinadas circunstâncias, produz um sofrimento moral de tal grau que pode

63
Ibid., par. 43.22.
64
Ibid., par. 43.23.
65
Ibid., par. 101-102.
66
“Es evidente la intencionalidad de los vejámenes infringidos al señor Guerrero. Tuvieron, además, una finalidad o propósito específico. Al
respecto, lo sucedido se enmarca en un contexto de violencia policial contra hombres jóvenes en situación de pobreza. El mismo tenía
por base el prejuicio de que tales personas, por su pertenencia a un sector social, resultaban “peligrosas”. Lo acontecido el 17 de febrero
de 2003 se insertó en tal contexto y fue una manifestación del mismo, pues los vejámenes a que fue sometido Jimmy Guerrero estuvieron
motivados en una animadversión y ensañamiento contra él, por considerarlo un riesgo para la sociedad. Esto se muestra dado que tales
agresiones tuvieron como antecedentes varios otros actos policiales de hostigamiento y violación de los derechos de Jimmy Guerrero, y
queda confirmado por el hecho de que el personal policial, al agredirlo, le decía que él era “antisocial” y “peligroso”. El ataque, entonces,
tuvo un sustento discriminatorio, siendo que los funcionarios policiales buscaron amedrentar y castigar al señor Guerrero con base en
preconceptos ligados la posición económica y condición social.” CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Guerre-
ro, Molina y otros Vs. Venezuela, op. cit.


67
“[...] contra la víctima para suprimir su resistencia psíquica y forzarla a autoinculparse o a confesar determinadas conductas delictivas o
para someterla a modalidades de castigos adicionales a la privación de la libertad en sí misma.” CORTE INTERAMERICANA DE DERE-
CHOS HUMANOS. Caso Tibi Vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de septiembre de
2004. Serie C No. 114. par. 146.
68
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso del Penal Miguel Castro Castro Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 25 de noviembre de 2006. Serie C No. 160. par. 279. No mesmo sentido: Caso Baldeón García Vs. Perú. Fondo, Reparaciones
y Costas. Sentencia de 6 de abril de 2006. Serie C No. 147. par. 147; Caso 19 Comerciantes Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 5 de julio de 2004. Serie C No. 109. par. 149. Citando também: ECHR. Case Soering v. United Kingdom, Judgment of 7 July
1989, Series A Vol. 161, par. 111; e ONU, Comitê de Direitos Humanos, Miguel Angel Estrella v. Uruguai (74/1980), parecer de 29 de março
de 1983, par. 8.3 e 10.

210
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

ser considerado tortura psicológica”.69 Também no caso “Espinoza Gonzáles Vs. Peru”, 70 a Corte IDH
considerou os acontecimentos na época dos fatos, 71 para configurar a tortura psicológica, além dos
maus-tratos físicos, todo o contexto de temor e terror psicológico, com base:

[n]o fato de que pessoas desconhecidas terem detido a senhora Espinoza ao som de disparos,
terem golpeado sua cabeça, entre outros, a fim de colocá-la em um veículo junto com seu compa-
nheiro, o qual estava ensanguentado, e onde recebeu ameaças de morte contra ela e sua família e
de que seria “contaminada com AIDS [sic]”, e escutou que vinte homens iam “usá-la” necessaria-
mente provocou-lhe sentimentos profundos de angústia, medo e vulnerabilidade. 72

Castigos corporais aplicados às vítimas podem ser considerados formas de tortura, como no caso
“Caesar Vs. Trinidade e Tobago”. 73 No caso, a vítima foi submetida a pena de castigos corporais por
flagelação de extrema gravidade e grau de intensidade do sofrimento físico e mental, tendo o Estado
violado os arts. 5.1 e 5.2 da Convenção Americana. 74 A vítima foi castigada por um instrumento denomi-
nado “gato de nove caudas”, assim a Corte IDH considerou que a tortura por castigos corporais ocorreu
nos seguintes níveis: (i) humilhação extrema causada pela própria flagelação; (ii) a angústia, stress e
medo sofridos enquanto aguardava o seu castigo na prisão, um período que se caracterizou por um
atraso excessivo; e, (iii) o fato de ele ter testemunhado o sofrimento de outros prisioneiros que igual-
mente tinham sido flagelados. 75
A violência sexual é outra forma que pode configurar tortura. No caso “Aydin v. Turquia”, 76 já citado ante-
riormente, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou que as provas produzidas demonstraram
que a denunciante, com 17 de idade à época, foi estuprada e submetida a maus-tratos sob custódia. A
ECHR considerou o estupro de um detento por um funcionário do Estado como uma forma especial-
mente grave e abominável de maus-tratos, tendo o Estado violado o art. 3º, Convenção Europeia de
Direitos Humanos. 77
No caso do “Presídio Miguel Castro Castro Vs. Perú”, 78 a situação em que mulheres detidas em um
hospital, vigiadas por guardas armados até mesmo quando iam ao banheiro e, neste, tinham de ficar
desnudas para eles, de portas abertas com uma arma apontada para elas, foi considerado caso de

69
“[...] las amenazas y el peligro real de someter a una persona a lesiones físicas produce, en determinadas circunstancias, una angustia mo-
ral de tal grado que puede ser considerada tortura psicológica”. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Guerrero,
Molina y otros Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 3 de junio de 2021. Serie C No. 424. par. 117. Caso Cantoral
Benavides Vs. Perú. Fondo. Sentencia de 18 de agosto de 2000. Serie C No. 69, par. 102; e Caso Azul Rojas Marín y otra Vs. Perú. Excep-
ciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 12 de marzo de 2020. Serie C No. 402. par. 160.
70
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Espinoza Gonzáles Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 20 de noviembre de 2014. Serie C No. 289. par. 185.


71
Conforme já citado no tópico anterior, os meios de prova de tortura, incluem na análise da Corte IDH, os acontecimentos a época dos
fatos, ver: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso J. Vs. Perú. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 27 de noviembre de 2013. Serie C No. 275. par. 313.
72
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Espinoza Gonzáles Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 20 de noviembre de 2014. Serie C No. 289. par. 185.
73
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Caesar Vs. Trinidad y Tobago. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia
de 11 de marzo de 2005. Serie C No. 123. par. 88.
74
Idem.
75
Idem.
76
ECHR. Case Aydin v. Turquia. Application 23178/94, Judgment of 25 September 1997. par. 75-76.
77
Ibid., par. 85-87.
78
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso del Penal Miguel Castro Castro Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 25 de noviembre de 2006. Serie C No. 160.

211
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

violência sexual. 79 Nesse caso, as mulheres foram submetidas a uma gama mais ampla de violência
sexual, que incluiu atos que não envolviam penetração ou contato físico.80
Em “Presídio Miguel Castro Castro Vs. Perú”,81 a Corte afirmou que, por violação sexual, não deve ser
entendido apenas uma relação sexual sem consentimento, por via vaginal, mas também atos de pene-
tração vaginais ou anais, sem o consentimento da vítima, mediante a utilização de outras partes do
corpo do agressor ou objetos, assim como a penetração bucal mediante o membro viril. A Corte IDH
considerou que a violação sexual de uma detenta por um agente do Estado é um ato especialmente
grave e reprovável diante da vulnerabilidade da vítima e do abuso de poder do agente.82 Neste caso, a
suposta “inspeção” vaginal digital a que foi submetida uma detenta também caracterizou uma violação
sexual que, por seus efeitos, constituiu tortura.83
Já no caso “J. Vs. Peru”, tem-se o entendimento da Corte IDH de que a violência sexual viola valores e
aspectos essenciais da vida privada das pessoas, supõe uma interferência em sua vida sexual e anula seu
direito de tomar livremente decisões sobre com quem fazer sexo, perdendo completamente o controle
sobre suas decisões mais pessoais e íntimas e sobre funções corporais básicas.84
Ainda, sobre tortura como violência sexual, o caso das “Mulheres Vítimas de Tortura Sexual em Atenco
Vs. México”85 está relacionado a uma série de violações cometidas contra onze mulheres no contexto
de prisões e transferências realizadas em operações policiais no México. A Corte IDH determinou que
as onze mulheres foram vítimas de diversas formas de tortura física, psicológica e sexual no contexto
de sua detenção, transferências e chegada ao centro de detenção, entre outras violações do Estado.86
Neste caso, a Corte IDH entendeu que para classificar um estupro como tortura, deve-se considerar
a intenção, a gravidade do sofrimento e a finalidade do ato, levando-se em conta as circunstâncias
específicas de cada caso, bem como seguir os ditames do Manual de Istambul.87 Para a Corte IDH, o
grave sofrimento da vítima é inerente ao estupro e, em linhas gerais, o estupro, assim como a tortura,
persegue, entre outros, o propósito de intimidar, degradar, humilhar, punir ou controlar a pessoa que o
violou.88 Reconhecendo que o estupro constitui uma forma paradigmática de violência contra a mulher
cujas consequências transcendem inclusive a pessoa da vítima, o estupro de uma mulher detida ou sob
custódia de um agente do Estado é um ato especialmente grave e condenável, tendo em vista a vulne-
rabilidade da vítima e o abuso de poder demonstrado pelo agente.89 O uso do poder estatal para violar

79
Ibid., par. 306.
80
Idem.


81
No original: “[...] el Tribunal considera que la violación sexual no implica necesariamente una relación sexual sin consentimiento, por vía
vaginal, como se consideró tradicionalmente. Por violación sexual también debe entenderse actos de penetración vaginales o anales,
sin consentimiento de la víctima, mediante la utilización de otras partes del cuerpo del agresor u objetos, así como la penetración bucal
mediante el miembro viril.” Ibid., par. 310. Ibid., par. 310.
82
Ibid., par. 311.
83
Ibid., par. 312.
84
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso J. Vs. Perú. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia
de 27 de noviembre de 2013. Serie C No. 275, par. 367.
85
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Mujeres Víctimas de Tortura Sexual en Atenco Vs. México. Excepción
Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2018. Serie C No. 371.
86
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Mujeres Víctimas de Tortura Sexual en Atenco Vs. México. Excepción
Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2018. Serie C No. 371. par. 159-170 e 177-223.
87
Ibid., par. 195-196.
88
Ibid., par. 196.
89
Ibid., par. 183.

212
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

os direitos das mulheres em um conflito interno, além de afetá-las diretamente, pode ter o objetivo de
causar um efeito na sociedade por meio dessas violações e dar uma mensagem ou lição, uma vez que
as consequências da violência sexual pode, muitas vezes, ir além da vítima.90
A Corte IDH destaca o papel transcendental que a discriminação ocupa ao analisar as violações dos
direitos humanos das mulheres e sua adaptação à figura da tortura e dos maus-tratos a partir de uma
perspectiva de gênero.91A esse respeito, a Corte IDH considera que no caso “Bedoya Lima e outra Vs.
Colômbia” a condição de mulher da vítima a expôs a um risco particular e diferenciado, traduzido no
estupro, sem falar que “o medo de que a matariam a qualquer momento”, a expos a sequelas e trans-
tornos traumáticos irreversíveis.92 A Corte IDH considerou que o sequestro e os atos subsequentes
de violência contra a vítima foram intencionais e tiveram o objetivo claro de puni-la, intimidá-la e, em
suma, silenciá-la no exercício de sua atividade jornalística.93 Com isso, a Corte determinou que a vítima
foi submetida a atos de tortura física, sexual e psicológica, que não poderiam ser realizados sem a
aquiescência e colaboração do Estado, ou pelo menos com sua tolerância.94
A violência obstétrica também pode ser uma forma tortura, como no caso “Manuela e outros Vs. El
Salvador,”95 em que a vítima sofreu uma série de abusos enquanto estava sendo atendida em uma
emergência obstétrica após um parto seguido de morte do bebê. Além do atendimento médico inade-
quado, já que apresentava pré-eclâmpsia grave pós-parto, foi denunciada ao Ministério Público pela
médica que lhe atendeu, com exposição de seus dados privados. Enquanto estava internada, foi presa
provisoriamente e amarrada na maca hospitalar. Após, foi transferida para a prisão e condenada a trinta
anos de reclusão por homicídio qualificado, tendo morrido poucos anos depois. Segundo a Corte IDH, a
busca por emergências obstétricas não podem dar lugar automaticamente a uma sanção penal, tendo
o Estado violado sua integridade pessoal, além de considerar a pena imposta por El Salvador de 30 anos
como misógina.96 A sua detenção junto à maca do hospital foi considerada tortura, já que não ficou
provado que ela oferecesse risco aos outros ou a si ou de fuga.97

90
Ibid., par. 200. Ver também: Caso del Penal Miguel Castro Castro Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de noviembre de
2006. Serie C No. 160, par. 223-24; Caso Masacres de El Mozote y lugares aledaños Vs. El Salvador. Fondo, Reparaciones y Costas. Senten-
cia de 25 de octubre de 2012. Serie C No. 252, par. 165; e Caso Espinoza Gonzáles Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones
y Costas. Sentencia de 20 de noviembre de 2014. Serie C No. 289, par. 226.


91
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso I.V. Vs. Bolivia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 30 de noviembre de 2016. Serie C No. 329, par. 263, citando ONU, Informe do Relator Especial sobre a tortura e outros tra-
tamentos ou penas cruéis, desumanos os degradantes, Juan E. Méndez, A/HRC/31/57, 5 de enero de 2016, par. 5 e 9; e Caso López Soto y
otros Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de septiembre de 2018. Serie C No. 362. par. 188.
92
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Bedoya Lima y otra Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sen-
tencia de 26 de agosto de 2021. Serie C No. 431. par. 102.
93
Ibid., par. 103.
94
Ibid., par. 104.
95
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Manuela y otros Vs. El Salvador. Excepciones Preliminares, Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentencia de 2 de noviembre de 2021. Serie C No. 44.
96
Ibid., par. 161 e 169-170.
97
Ibid., par. 200.

213
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

5. STATUS LEGAL DO DIREITO DE NÃO SER


TORTURADO E DE NÃO SOFRER TRATAMENTOS
DESUMANOS, DEGRADANTES E CRUÉIS

O direito a não ser torturado e a não sofrer tratamentos desumanos, degradantes ou cruéis é inderrogá-
vel.98 Além disso, a proibição da prática destes atos é absoluta, não podendo ser uma opção. Não admite
exceções, nem por razões de interesse público, segurança nacional, emergência pública ou guerra.99
Nesse sentido, é o que prescreve o art. 2º, 2 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos
ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes: “Em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias
excepcionais tais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra
emergência pública como justificação para tortura.”
Além de ser uma norma inderrogável, a proteção contra a tortura tem caráter de norma jus cogens:
não pode ser modificada por tratado. A Corte IDH reitera seu entendimento sobre a proibição total
e inderrogável da tortura, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, como guerra, ameaça de guerra,
combate ao terrorismo e quaisquer outros crimes, estado de sítio ou emergência, comoção ou conflito
interno, suspensão de garantias constitucionais, instabilidade política interna ou outras emergências ou
calamidades públicas.100
No ordenamento jurídico brasileiro, o crime de tortura não é passível de fiança ou suscetível da anis-
tia.101 No caso “Herzog Vs. Brasil”, julgado em 2018, a Corte IDH reconheceu que Vladimir Herzog foi
torturado durante sua detenção arbitrária e, em seguida, assassinado por agentes do Estado, porém
identificou que a Lei de Anistia promulgada em 1979 foi utilizada como obstáculo para a prossecução
da verdade e punição dos responsáveis pelo crime de tortura.102

98
“Este Tribunal ha indicado que la tortura y las penas o tratos crueles, inhumanos o degradantes están estrictamente prohibidos por el
Derecho Internacional de los Derechos Humanos. La prohibición de la tortura y las penas o tratos crueles, inhumanos o degradantes
es absoluta e inderogable, aun en las circunstancias más difíciles, tales como guerra, amenaza de guerra, lucha contra el terrorismo y
cualesquiera otros delitos, estado de sitio o de emergencia, conmoción o conflicto interior, suspensión de garantías constitucionales,
inestabilidad política interna u otras emergencias o calamidades públicas”. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso
Lori Berenson Mejía Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de noviembre de 2004. Serie C No. 119. par. 100.
99
“Condena todas as formas de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, que são e devem permanecer
proibidos a qualquer momento e em qualquer lugar e, portanto, nunca podem ser justificados, e apela a todos os governos para que
implementem plenamente a proibição absoluta da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (tradução
nossa)”. Conselho de Direitos Humanos ONU, Resolução 8/8, 18/06/2008. Disponível em: https://ap.ohchr.org/Documents/E/HRC/reso-
lutions/A_HRC_RES_8_8.pdf. Acesso em: 07 set. 2021.
100
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Tibi Vs. Ecuador. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Cos-
tas. Sentencia de 7 de septiembre de 2004. Serie C No. 114. par. 143; Caso Maritza Urrutia Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 27 de noviembre de 2003. Serie C No. 103.par. 93; Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil. Sentencia de 4 de julio de 2006. Serie C
No. 14. par. 126.
101
BRASIL. Lei nº 9.455 de 7 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República,
1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.455%2C%20DE%207. Acesso
em: 7 set. 2021.
102
“No presente caso, a Corte considera que essa Lei não pode produzir efeitos jurídicos e ser considerada validamente aplicada pelos tribu-
nais internos. Já em 1992, quando se encontrava em plena vigência a Convenção Americana para o Brasil, os juízes que intervieram na ação
de habeas corpus deveriam ter realizado um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Ameri-
cana, evidentemente no âmbito de suas devidas competências e das regulamentações processuais respectivas. Com ainda mais razão, as
considerações acima se aplicavam ao caso sub judice, ao se tratar de condutas que chegaram ao limiar de crimes contra a humanidade.”
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Herzog y otros Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones
y Costas. Sentencia de 15 de marzo de 2018. Serie C No. 353. par. 292.

214
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

6. OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS

Considerando as disposições legais referentes à proibição da tortura e seus crimes correlatos, o Estado
que adota os tratados e promulga leis referentes a essas práticas assume obrigações internacionais
perante todas as pessoas sob sua jurisdição. Essas obrigações estatais podem ser negativas ou positivas.
Constituem obrigações negativas, isto é, que implicam obrigações de não fazer ao Estado: não praticar
atos tortura (seja diretamente, por meio de seus agentes, seja indiretamente, quando esta é facilitada
pela omissão de seus agentes) e não proceder à expulsão, devolução ou extradição de uma pessoa para
outro Estado quando houver razões substanciais para crer que esta corre perigo de ali ser submetida à
tortura (art. 3º da Convenção da ONU Contra Tortura).
As obrigações positivas (atitudes que devem ser tomadas pelo Estado) incluem o ato investigar (art.
12 da Convenção da ONU Contra Tortura) crimes de tortura, bem como processar (art. 7º), tipificar o
crime referido (art. 4º), prestar assistência entre Estados (art. 9º) e, ainda, prevenir e impedir a prática da
tortura (arts. 10, 11 e 16). A obrigação estatal ainda é prevista no artigo 1º da Convenção Interamericana
Para Prevenir e Punir Tortura, o qual estabelece que “os Estados Partes obrigam-se a prevenir e a punir
a tortura, nos termos desta Convenção.” Há diversos dispositivos internacionais determinando a forma
de atuação do Estado quanto à punição, prevenção e investigação dos crimes de tortura.
No SIDH, a Corte IDH estabeleceu que o Estado é responsável, na condição de garante dos direitos
consagrados na Convenção, pela observância do direito à integridade pessoal de todo indivíduo que
se encontre sob sua custódia.103 É possível considerar o Estado responsável pelas torturas, tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes sofridos por uma pessoa que esteve sob a custódia de agentes
estatais, caso as autoridades não tenham realizado uma investigação séria dos fatos, seguida do indi-
ciamento daqueles que sejam apontados como responsáveis.104 Recai sobre o Estado a obrigação de
apresentar uma explicação satisfatória e convincente do ocorrido, e tornar sem efeito as alegações
quanto a sua responsabilidade, mediante elementos probatórios adequados.105
Além disso, as autoridades penitenciárias exercem um forte controle sobre as pessoas sujeitas à sua
custódia. Por isso, o Estado deve garantir a existência de condições adequadas para que a pessoa privada
de liberdade desenvolva uma vida digna, assegurando-lhe o exercício dos direitos cuja restrição não é
consequência necessária da privação de liberdade, em conformidade com as regras características de
uma sociedade democrática.106 Constitui também uma obrigação do Estado, em atenção ao direito das

103
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil. Sentencia de 4 de julio de 2006. Serie C No. 149.
par. 138; Caso Baldeón García Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de abril de 2006. Serie C No. 147. par. 120; e, Caso
López Álvarez Vs. Honduras. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 1 de febrero de 2006. Serie C No. 141. par. 104-106.
104
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Baldeón García Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6
de abril de 2006. Serie C No. 147. par. 120; Caso de los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia
de 19 de noviembre de 1999. Serie C No. 63. par. 170; e Caso del Penal Miguel Castro Castro Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 25 de noviembre de 2006. Serie C No. 160. par. 273. Bem como no caso do “Presídio Miguel Castro Castro Vs. Peru”, par. 273,
nota 152, refere que no mesmo sentido há os casos “Aksoy v. Turquia” e “Tomasi v. França”. ECHR. Case Aksoy v. Turkey, Judgment of 18
December 1996, App. Nº 100/1995/606/694. par. 61-62; e ECHR. Case Tomasi v. France, Judgement of 27 August 1992, Série s A Nº 241-A,
par. 108-111.
105
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Baldeón García Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6
de abril de 2006. Serie C No. 147. par. 120; e Caso Juan Humberto Sánchez Vs. Honduras. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 7 de junio de 2003. Serie C No. 99. par. 111.
106
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso López Álvarez Vs. Honduras. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia
de 1 de febrero de 2006. Serie C No. 141. par. 167. No mesmo sentido: Caso García Asto y Ramírez Rojas Vs. Perú. Sentencia de 25 de
noviembre de 2005. Serie C No. 137. par. 221; Caso Raxcacó Reyes Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de
septiembre de 2005. Serie C No. 133. par. 95, e Caso Fermín Ramírez Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 20 de
junio de 2005. Serie C No. 126. par. 118.

215
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

pessoas privadas de liberdade a uma vida digna nos estabelecimentos penitenciários, criar as condições
que permitam assegurar aos presos alimentação adequada, atendimento médico e condições físicas e
sanitárias condizentes com os padrões internacionais sobre a matéria.107
Também, no SIDH, a obrigação estatal de investigar casos de tortura e tratamentos desumanos degra-
dantes e crueis “adquire particular intensidade e importância ante a gravidade dos delitos cometidos
e a natureza dos direitos lesionados”.108 A Corte IDH considerou que a realização de uma investigação
ex officio, sem demora, séria, imparcial e efetiva, é um elemento fundamental e condicionante para a
proteção de certos direitos afetados por execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, tortura,
como liberdade pessoal, integridade pessoal e vida. Nestes casos, a determinação das responsabili-
dades gerais é condição sine qua non para a erradicação da impunidade, ainda mais se houver um
contexto de violação sistemática de direitos humanos, de modo que o descumprimento gera, nesses
casos, responsabilidade internacional do Estado.109
A obrigação de investigar, como forma de garantia do art. 5º. da CADH, é reafirmada em inúmeros
outros julgados da Corte IDH. No caso “González y otras (“Campo Algodonero”) Vs. México”, por
exemplo, a Corte IDH determinou que o “dever de investigar é uma obrigação de meio e não de resul-
tado, que deve ser assumida pelo Estado como seu próprio dever jurídico e não como uma simples
formalidade condenada de antemão a ser infrutífera. A obrigação do Estado de investigar deve ser
cumprida com diligência para evitar a impunidade e a repetição desses tipos de atos.”110
Além disso, tal obrigação é reforçada pelas disposições dos artigos 1º, 6º e 8º da Convenção contra a
Tortura.111 À luz dessa Convenção, a Corte tem esclarecido vários pontos do dever estatal de investigar
quando é apresentada uma denúncia e, por outro, quando há razões fundadas para acreditar que um
ato de tortura foi cometido dentro da jurisdição do Estado, a saber:
● a decisão de iniciar e realizar uma investigação não recai sobre o Estado, ou seja, não é um
poder discricionário, mas o dever de investigar constitui uma obrigação imperativa do Estado
que decorre do direito internacional e não pode ser descartada ou condicionados por atos ou
regulamentos internos de qualquer natureza;
● mesmo quando os atos de tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes não
tenham sido comunicados às autoridades competentes pela própria vítima, em qualquer caso
em que haja indícios de sua ocorrência, o Estado deve iniciar ex officio e imediatamente uma
investigação imparcial, independente e completa para determinar a natureza e a origem das
lesões relatadas, identificar os responsáveis ​​e iniciar o processo judicial.112

107
Ibid., par. 209. No mesmo sentido: Caso Raxcacó Reyes Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de septiembre de
2005. Serie C No. 133. par. 134; Caso Fermín Ramírez Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 20 de junio de 2005.
Serie C No. 126. par. 130; e Caso Caesar Vs. Trinidad y Tobago. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 11 de marzo de 2005. Serie C
No. 123. par. 134.
108
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Perozo y otros Vs. Venezuela. Excepciones Preliminares, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 28 de enero de 2009. Serie C No. 195. par. 298.
109
Idem.
110
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso González y otras (“Campo Algodonero”) Vs. México. Excepción Preli-
minar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 16 de noviembre de 2009. Serie C No. 205. par. 289.


111
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Vélez Loor Vs. Panamá. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones
y Costas. Sentencia de 23 de noviembre de 2010. Serie C No. 218. para. 230.
112
Idem., para. 240.

216
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

Já em casos envolvendo violação do direito à integridade pessoal como consequência de atos de


violência contra a mulher, a Corte IDH tem estabelecido, à luz da Convenção de Belém do Pará, certos
parâmetros investigativos a serem observados pelos Estados:
● a declaração da vítima deve ser feita em ambiente confortável e seguro, que proporcione priva-
cidade e confiança;
● o depoimento da vítima deve ser registrado de forma a evitar ou limitar a necessidade
de sua repetição;
● deve ser prestado atendimento médico, de saúde e psicológico à vítima, tanto em caráter emer-
gencial quanto em caráter permanente, se necessário, por meio de protocolo de atendimento
cujo objetivo é reduzir as consequências da violação;
● deve ser realizado imediatamente um exame médico e psicológico completo e detalhado, por
pessoal idôneo e treinado, se possível do sexo indicado pela vítima, oferecendo-se para acom-
panhá-la por alguém de sua confiança, se assim o desejar;
● os atos investigativos devem ser documentados e coordenados e as provas tratadas com dili-
gência, coletando amostras suficientes, realizando estudos para determinar o possível autor do
ato, apurando outras provas como o vestuário da vítima, investigando imediatamente o local
dos fatos e garantindo a cadeia de custódia correta, e
● o acesso à assistência jurídica gratuita deve ser fornecido à vítima durante todas as
etapas do processo.113
Ainda, a Corte IDH indica que quando se trata de uma mulher que sofre uma morte, maus-tratos ou
violação de sua liberdade no quadro de um contexto geral de violência contra a mulher, o dever de
investigar tem um alcance adicional, pela dificuldade de categorizar o ocorrido por motivo de gênero.
Nesse caso, o dever de investigar deve ser ex officio e a investigação penal deve incluir uma perspectiva
de gênero e ser realizada por funcionários capacitados em casos similares.114
Por fim, a Corte IDH alertou que essa obrigação permanece “independentemente do agente a quem a
violação possa eventualmente ser atribuída, mesmo pessoas físicas, pois, se seus fatos não forem inves-
tigados seriamente, eles seriam, de certa forma, ajudados pelo poder público, o que comprometeria a
responsabilidade internacional do Estado.”115

6.1. Violação do Direito à Integridade Psíquica de Familiares de Vítimas


de Violação de Direitos Humanos

A Corte IDH entende que os Estados violam o direito à integridade psíquica e moral dos familiares
das vítimas em razão do sofrimento e da angústia adicionais que sofrem devido às ações ou omissões
posteriores das autoridades estatais no que diz respeito à investigação dos fatos e em razão da falta de

113
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso J. Vs. Perú. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia
de 27 de noviembre de 2013. Serie C No. 275. par. 344. ​​


114
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza y otros Vs. Brasil. Excepciones preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de septiembre de 2021. Serie C No. 435. par. 130.
115
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso González y otras (“Campo Algodonero”) Vs. México. Excepción Preli-
minar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 16 de noviembre de 2009. Serie C No. 205. par. 291.

217
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

acesso ao direito ao recurso efetivo.116 A integridade psíquica e moral dos familiares e pessoas próximas
à vítima pode ser também vulnerada pelas circunstâncias particulares das violações perpetradas contra
seus entes queridos, como é o caso da morte117 ou desaparecimento forçado.118
A Corte presume dano à integridade psíquica e moral dos familiares diretos de vítimas de certas viola-
ções de direitos humanos aplicando uma presunção juris tantum a respeito de mães e pais, filhas e
filhos, esposos e esposas, companheiros e companheiras permanentes, sempre que corresponda às
circunstâncias particulares do caso119. Quanto aos demais familiares, a Corte avalia se existe um vínculo
particularmente estreito entre aqueles e as vítimas do caso que lhes permita estabelecer uma afetação
a sua integridade pessoal.120

7. A TORTURA NO BRASIL

No Brasil, além do disposto na CF/88, inicialmente mencionado neste capítulo, a tortura é conside-
rada crime e definida por lei própria, qual seja, a Lei 9.455/1997, citada no item 2. É passível da pena de
reclusão aquele que comete a tortura, aumentando-se a pena em casos de o perpetrador do ato ser
agente público ou em condições de cometimento de tortura contra criança, gestante, pessoa com
deficiência, adolescente ou maior de sessenta anos. Diferentemente da normativa internacional, no
Brasil, a prática da tortura é também reconhecida como crime quando praticada por pessoas que não
estejam no exercício de funções públicas.

116
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Masacres de Río Negro Vs. Guatemala. Excepción Preliminar, Fondo, Re-
paraciones y Costas. Sentencia de 4 de septiembre de 2012. Serie C No. 250, par. 240; Caso de la Masacre de Pueblo Bello Vs. Colombia.
Sentencia de 31 de enero de 2006. Serie C No. 140, par. 145; Caso Blake Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia de 24 de enero de 1998. Serie
C No. 36, par. 114.


117
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza y otros Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de septiembre de 2021. Serie C No. 435, par. 156.
118
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Gomes Lund y otros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Excepciones
Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2010. Serie C No. 219.
119
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Familia Barrios Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia
de 24 de noviembre de 2011. Serie C No. 237, par. 302.
120
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Familia Barrios Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia
de 24 de noviembre de 2011. Serie C No. 237, par. 302.

218
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

Conforme o CNJ,121 a partir dos conceitos vigentes, em que pese divergentes,122 a designação de um
ato como tortura no Brasil contempla, mais aspectos que na seara internacional, e também pode ser
cometida por alguém que não agente público, desde que no exercício de funções públicas:
1. Inflição de dor ou sofrimento físico ou mental.
2. Intencionalidade da conduta.
3. Finalidade:
a. para fins de investigação criminal, incluindo:
i. obtenção de informação ou declaração da pessoa ou de terceiro;
ii. obtenção de confissão da pessoa ou de terceiro.
b. para castigo ou punição por ato que a pessoa ou terceiro tenha cometido ou se suspeite
que ela tenha cometido;
c. para intimidação ou coerção da pessoa ou de terceiro;
d. por qualquer razão com base em qualquer tipo de discriminação;
e. como medida preventiva; ou
f. com qualquer outro fim.
4. Realizado por agente público ou outra pessoa no exercício de funções públicas:
a. por ação, incluindo a sua instigação;
b. por omissão, incluindo o seu consentimento ou aquiescência.
Outros tratamentos degradantes são interpretados, em regra, à luz de leis específicas, como o caso
de maus-tratos (art. 36, do CP) e de abuso de autoridade (art. 13, II, da Lei 13.869/2019). Às crianças
e aos adolescentes também é priorizada a proibição da tortura e tratamentos degradantes, sendo
que foi promulgada a Lei 13.010/2014 (que ficou conhecida como a “Lei da Palmada” ou “Lei do
Menino Bernardo”). Esse diploma legal alterou o atual Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA

CNJ. Manual de prevenção e combate à tortura e maus-tratos para audiência de custódia. Conselho Nacional de Justiça, Programa
121

das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime; coordenação de Luís Geraldo Sant’Ana
Lanfredi et al. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2020. p. 28-29. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/11/
manual_de_tortura-web.pdf. Acesso em: 18 jun. 2022.
122
Para o CNJ os dispositivos art. 1.1 da Convenção da ONU, art. 2 da Convenção Interamericana e art. 1º da Lei nº 9.455/1997, em que pese
tragam conceitos divergentes, deve vigorar o princípio pro homine ou pro personae, o qual privilegia a norma mais ampla, ou a interpre-
tação mais ampla, no caso das normas internacionais, conforme art. 29 da CADH. Ibid., 27-28. Nesse sentido, o CNJ cita a jurisprudência
do STJ: “A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob
pena de negação da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos. Assim, o método
hermenêutico mais adequado à concretização da liberdade de expressão reside no postulado pro homine, composto de dois princípios
de proteção de direitos: a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta
Turma. Recurso Especial 1640084/SP. Relator Ministro Ribeiro Dantas. Julgado em 15/12/2016. DJe 01/02/2017, citado em: CNJ. Manual de
prevenção e combate à tortura e maus-tratos para audiência de custódia. Conselho Nacional de Justiça, Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime; coordenação de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi et al. Brasí-
lia: Conselho Nacional de Justiça, 2020. p. 28. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/11/manual_de_tortura-web.
pdf. Acesso em: 18 jun. 2022.

219
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

- Lei 8.069/1990), estabelecendo que a criança não poderá receber castigos físicos ou tratamento
cruel ou degradante.123
Entretanto, para fins de responsabilização penal, o único conceito aplicável, no Brasil, é o da Lei nº
9.455/1997.124 Segundo o ordenamento brasileiro, o responsável legal que empregar violentas atitudes
(alinháveis à tortura pela tipificação da Lei 9.455/97) pode ainda sofrer a perda do poder familiar (autori-
dade parental) por decisão judicial, nos termos do art. 1.638,125 do CC e das especificações do ECA, este
último inclusive alterado pela Lei 13.010/2014. A especial proteção de adolescentes e crianças contra
tortura já era prevista no ECA, em seu art. 233, que foi revogado pela Lei 9.455/97, com dispositivo mais
específico nesta nova lei.
No que concerne à assunção de obrigações no plano internacional, em 2007 o Brasil depositou o instru-
mento de ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (OPCAT) e através do Decreto nº. 6.085 aderiu ao Subcomitê
de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, dora-
vante denominado Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT). 126 Dentre as funções do SPT, está o esta-
belecimento de um sistema de visitas regulares a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade.
O OPCAT traz como uma das obrigações do Estado aderente, na esfera doméstica, a criação e manu-
tenção de um ou mais órgãos de visita, que fique encarregado dos mecanismos preventivos nacionais.
Em 2011, após sua visita aos estabelecimentos prisionais brasileiros, o SPT emitiu o Relatório sobre a
visita ao Brasil.127 Além de cobrar do governo brasileiro a criação do Mecanismo Nacional de Prevenção,
conforme estabelecido no artigo 17 do OPCAT,128 o relatório registrou que “a prevenção da tortura em
locais de privação de liberdade é uma responsabilidade compartilhada por diversas instituições que

123
RAMOS, op. cit., p. 729.
124
CNJ. Manual de prevenção e combate à tortura e maus-tratos para audiência de custódia. Conselho Nacional de Justiça, Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime; coordenação de Luís Geraldo Sant’Ana
Lanfredi et al. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2020. p. 28. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/11/ma-
nual_de_tortura-web.pdf. Acesso em: 18 jun. 2022.
125
Art. 1.638, Código Civil. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
V - entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017)
Parágrafo único. Perderá também por ato judicial o poder familiar aquele que: (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
I – praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar: (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência
doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão; (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
II – praticar contra filho, filha ou outro descendente: (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência
doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
b) estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão. (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018).
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.
htm. Acesso em: 21 set. 2021.
126
BRASIL. Decreto 6.085 de 19 de abril de 2007. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6085.
htm. Acesso em: 8 set. 2021.


127
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (UNITED NATIONS). Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tor-
tura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Disponível em: https://www.patriciamagno.com.br/wp-con-
tent/uploads/2014/08/PM_relatorio_visita_ao_Brasil_subcomite_prevencao_tortura_jun2012.pdf. Acesso em: 17 mai. 2021
128
Ibid., p. 7, §15.

220
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

trabalham no campo da administração da justiça.”129 O SPT também registrou no relatório que as condi-
ções de detenção policial e das instituições penitenciárias reservadas aos custodiados apresentavam
superlotação e condições materiais muito precárias.130 Com relação à existência de tortura e maus-
-tratos nestes locais, o SPT realçou a sua preocupação ao receber diversas e consistentes alegações de
violências físicas e psicológicas realizadas por policiais civis, policiais militares e agentes penitenciários.131
Especialmente em “Ary Franco, o SPT observou que a atmosfera geral era altamente repressiva e carac-
terizada pelo contínuo tratamento degradante dos internos.”132 Diante das constatações, o SPT instou o
Estado brasileiro, como medida de urgência, a publicamente reafirmar a absoluta proibição da tortura,
a garantir investigações imparciais nos casos denunciados de tortura, a garantir que os suspeitos de
maus-tratos e torturas sejam suspensos das suas atribuições por toda a duração da investigação e que,
se condenados, sejam exonerados.133
Em atenção às obrigações constantes do OPCAT, o Congresso Nacional aprovou, em 2013, a lei
12.847134, que instituiu Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT). Composto por
órgãos e entidades públicas e privadas incumbidos de realizar o monitoramento, a supervisão e o
controle de estabelecimentos e unidades onde se encontram pessoas privadas de liberdade, o SNPCT
também conta com a atuação do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - CNPCT, do
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - MNPCT, do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária - CNPCP e do órgão do Ministério da Justiça responsável pelo sistema peni-
tenciário nacional.
Em nova visita realizada pelo SPT em 2015, foram detectadas as mesmas falhas no que tange à prevenção
à tortura e aos maus-tratos. No relatório135 foi informado que os recintos se mantiveram superlotados,
condição que por si só já compromete a saúde física e mental e a dignidade dos detentos.136 As demais
condições concernentes às necessidades básicas, acesso a atendimento médico e atividades e contato
com o mundo externo também permaneceram precárias, com ênfase para a situação das mulheres,
minorias sexuais e de gênero e jovens.
O novo relatório feito pelo SPT deu especial atenção aos tratamentos e torturas perpetrados pelas
polícias137 que, segundo diversos relatos, empregavam força desproporcional no momento das prisões,
utilizando-se de “spray de pimenta, balas de borracha, cassetetes, armas de eletrochoque e sacos plás-
ticos na cabeça dos detentos”. Tais práticas, afirma o SPT, podem equivaler a tortura ou tratamento
cruel, desumano ou degradante. O Relatório também alertou sobre a ineficiência do Estado e dos Insti-
tutos médico-legais em identificar as práticas de tortura e a incompetência estatal em responsabilizar
os culpados pelas violações. O SPT também relatou apreensão quanto à possibilidade de os detentos
sofrerem represálias por denunciarem as situações de violência física e psicológica.138

129
Ibid., p. 8, §23.
130
Ibid., p. 18 e 22.


131
Ibid., p. 19 e 27.
132
Ibid., p. 27, § 126.
133
Ibid., p. 27, § 129.
134
BRASIL. Lei 12.874 de 02 de agosto de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12847.htm. Aces-
so em: 4 set. de 2021
135
ONU. Visita ao Brasil realizada de 19 a 30 de Outubro: observações e recomendações ao Estado Parte. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/denunciar/tortura/a_pdf/cejil_tortura_brasil_recomendacoes.pdf. Acesso em: 17 maio 2021.
136
Ibid.,. p. 13.
137
Ibid., p. 5.
138
Ibid., p. 4.

221
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A mesma preocupação quanto às condições dos ambientes e quanto à atuação dos agentes públicos
consta do relatório anual de 2015 da Human Rights Watch.139 No momento da pesquisa, no Brasil, “a
população carcerária adulta supera meio milhão de pessoas — 37 por cento além da capacidade do
sistema prisional.” O mesmo relatório revela que:

agentes da segurança pública ou da administração penitenciária que cometem abusos contra


presos raramente são levados à justiça. Em uma notável exceção, um total de 73 policiais foram
condenados por homicídio em 2013 e 2014 por sua participação no massacre de 111 detentos na
prisão de Carandiru em 1992, no estado de São Paulo.

O Relatório Pandemia da Tortura no Cárcere, produzido pela Pastoral Carcerária,140 desde 2014 até o dia
10 de novembro de 2020, apontou 394 denúncias de tortura sofridas por detentos. O número de regis-
tros cresceu de forma exponencial; de 2018 para 2020 houve um aumento de 104,5%, com impacto
substancial durante a pandemia de COVID-19. O número pode ser significativamente maior, visto que
60,15% das denúncias foram feitas por familiares de pessoas presas e por membros da pastoral Carce-
rária. Sobre a tortura vivenciada no sistema prisional, o relatório conclui que “não se trata apenas de
episódios isolados de agentes públicos violentos contra suspeitos em busca de confissão ou contra
condenados que merecem castigo. Trata-se de uma violência sistemática, perene, recorrente, micros-
cópica, que atravessa todos os espaços do cárcere.”141
No relatório da CIDH sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, divulgado em fevereiro de 2021
a partir de sua visita ao país em 2018, a Comissão destacou que são nos sistemas de privação de liber-
dade, socioeducacionais e comunidades terapêuticas onde residem significantes ameaças ao direito à
integridade pessoal,142 tanto para os custodiados quanto para os que os visitam.143 A respeito da situação
dentro das casas de custódia:

A CIDH observa que a falta de controle do Estado em relação a esses recintos, o consequente
autogoverno e as condições deploráveis de detenção nas instituições de privação de liberdade
causaram confrontos e tensões que resultam em altos níveis de violência e graves efeitos sobre a
vida e integridade pessoal.144

As condições deploráveis145 que são mencionadas no relatório, “constituem per se situações de trata-
mento cruel, desumano e degradante.”146 As conclusões do relatório de 2020 não diferiram muito

139
HUMAN RIGHTS WATCH. Relatório Mundial 2015: Brasil. Dados do ano de 2014. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/world-re-
port/2015/country-chapters/267990#3ea6cd. Acesso em: 07 set. 2021.
140
PASTORAL CARCERÁRIA. Pandemia da Tortura no Cárcere. Ano 2020. Disponível em: https://carceraria.org.br/wp-content/
uploads/2021/01/Relatorio_2020_web.pdf. Acesso em: 17 maio 2021.

PASTORAL CARCERÁRIA. Pandemia da Tortura no Cárcere. Ano 2020. Disponível em: https://carceraria.org.br/wp-content/
141

uploads/2021/01/Relatorio_2020_web.pdf. Acesso em: 17 maio 2021.


142
CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de
2021. p. 63, par. 150. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 07 set. 2021. p. 63, § 150.
143
Ibid., p. 73, par. 182.
144
Ibid., p. 64, par.152.
145
“Essas condições envolvem níveis alarmantes de superlotação, em sua maioria de pessoas afrodescendentes, infraestrutura precária, falta
de separação entre pessoas sub judice e condenadas e notável insuficiência de agentes penitenciários. Além disso, prevalecem cuidados
médicos negligentes, alimentação inadequada devido à sua escassez e baixo valor nutricional, falta de higiene, acesso inadequado à água,
falta de itens essenciais, falta de programas eficazes de reintegração social e falta de tratamento diferenciado em relação aos diferentes
tipos de população.” CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em
12 de fevereiro de 2021. Capítulo 2, p. 27, par. 46. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em:
07 set. 2021.
146
Ibid., p. 63.

222
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

das conclusões do Relatório anterior, que havia identificado condições sub-humanas nos recintos e
recomendado que o Governo brasileiro encarasse a necessidade de adoção das medidas necessárias à
supressão das falhas com absoluta urgência.147
As mesmas constatações, ou seja, torturas, tratamentos desumanos, degradantes e cruéis, além de
ilegalidades em geral, também se repetiram na CPI do Sistema Carcerário em 2009148 e nos informes
anuais da Anistia Internacional.149
Em setembro de 2015, o STF enfrentou as condições do sistema penitenciário nacional e reconheceu o
seu estado de coisas inconstitucional.150 Esse reconhecimento, por parte do STF, decorre das violações
generalizadas e contínuas dos direitos humanos das pessoas encarceradas, inclusive o de proibição a
tortura e tratamento desumano ou degradante. A situação é agravada em razão das falhas estruturais
e ações e omissões dos poderes do Estado. Persiste, no Brasil, para aqueles que estão recolhidos no
sistema prisional, situação de superlotação, torturas, homicídios, violência sexual, celas insalubres, proli-
feração de doenças infectocontagiosas e outras violações à sua integridade.
O relatório da Human Rights Watch151 revela outro dado sugestivo do descumprimento, por parte do
Estado Brasileiro, de suas obrigações negativas e positivas em relação à tortura. Apesar de inúmeros
relatos sobre tortura praticada por agentes públicos, raros são os casos em que os mesmos são investi-
gados, processados e punidos, sendo que os números de presos pelo crime de tortura revelam que a sua
maioria são agentes não-estatais, em um contexto de prática de tortura entre particulares. Conforme
dados do INFOPEN de 2014,152 até aquele ano havia 121 pessoas encarceradas que haviam sido conde-
nadas ou estavam aguardando julgamento no Brasil com relação ao crime de tortura. Não consta, no
referido grupo de dados, informação se os autores desses crimes eram ou não agentes públicos. O
relatório de 2017153 do INFOPEN, acerca das mesmas circunstâncias, já soma um número de 214 pessoas
que foram condenadas ou estão aguardando julgamento pela prática do crime de tortura.
No mesmo sentido do relatório de 2015 da Human Rights Watch, em uma pesquisa realizada por
Maria Gorete Marques de Jesus, onde foram analisados 51 processos de tortura que tramitavam na
primeira instância do Tribunal de Justiça de São Paulo e contavam com 203 réus,154 a autora concluiu

147
CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. 1997. Capítulo IV, § 38 e 39. Disponível em: https://cidh.oas.org/countryrep/brazil-port/
Cap%204%20.htm. Acesso em: 07 set. 2021.
148
BRASIL. CPI sistema carcerário. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerá-
rio. Edições Câmara, Brasília, 2009. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/2701. Acesso em: 02 set. 2021. p. 193.
149
ANISTIA INTERNACIONAL. O Estado dos Direitos Humanos no Mundo. 2012. Disponível em: http://files.amnesty.org/air12/air_2012_
full_pt-br.pdf. Acesso em: 17 maio 2021.
150
STF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, do Distrito Federal. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/
processos/detalhe.asp?incidente=4783560. Acesso em: 01 set. 2021.
151
HUMAN RIGHTS WATCH. Relatório Mundial 2015: Brasil. Dados do ano de 2014. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/world-re-
port/2015/country-chapters/267990#3ea6cd. Acesso em: 07 set. 2021
152
DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN - junho de 2014.
Ministério da Justiça; INFOPEN, 2014. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-ter-
ca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf. Acesso em: 27 out. 2021.
153
DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Atualização - Junho de
2017. Organização de Marcos Vinicius Moura. Brasília, Ministério da Justiça, 2019. Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/
sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf. Acesso em: 27 out. 2021.
154
JESUS, Maria Gorete Marques de. O Crime de Tortura e a Justiça Criminal, um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo.
2009. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-05022010-171309/publico/MARIA_GORETE_MARQUES_DE_JESUS.pdf.
Acesso em: 03 nov. 2021. p. 164.

223
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

que o maior percentual de absolvições se encontrava entre os agentes estatais.155 Sendo que dentro
desse grupo ainda se destacam os policiais civis, já que do total de 49 réus, 46 foram absolvidos em
primeira instância.156
Em outro estudo intitulado “Julgando a tortura”,157 também foi constatado que há uma tendência de
mais condenações de agentes privados do que agentes públicos.158 Neste estudo foram analisados
455 acórdãos. Destes, 277 tinham como réus agentes públicos e foi percebida uma predisposição para
reverter a condenação em absolvição quando os réus em questão eram agentes públicos159. Os autores
apontam como causa para esse fenômeno a dificuldade de produção de provas quando o perpetrador
é um agente estatal.160
Um instrumento que visa coibir esse comportamento de uso desproporcional da força dos agentes
públicos nas prisões em flagrante, em especial dos policiais civis e militares, é a audiência de custódia.
Disposta no artigo 310 do Código de Processo Penal e implementada a partir de 2015, essa audiência
propõe-se a analisar os elementos processuais sobre a prisão em flagrante, colocando o cidadão preso
em frente a um juiz em até 24 horas após a sua prisão.161
Contudo, como bem apontado no relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU,162 o Brasil
avança nos parâmetros legais, mas não consegue dar efetividade aos aparatos legais que objetivam
prevenir e investigar os casos de tortura e tratamentos cruéis e degradantes. Nessa mesma perspectiva,
a organização Conectas Direitos Humanos produziu um relatório sobre como as instituições do sistema
de justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia.163 Neste estudo, foram identificados 393
casos em que houve sinais de algum tipo de tortura ou maus-tratos perpetrados, majoritariamente, por
policiais militares contra homens negros, acusados de roubo, furto e tráfico de drogas.
Dessa amostra, verificou-se que o/a juiz(a) não perguntou nada sobre a violência em 109 dos casos
(33%) e que o/a promotor(a), representantes do Ministério Público – instituição encarregada de fisca-
lizar as polícias - também se absteve em 99 dos casos (30%). Além dessas observações, os pesqui-
sadores também identificaram: (1) uma naturalização das violências por parte das pessoas detidas, a
exemplo dos testemunhos: “O de sempre né, botinada e soco na cara, pra confessar o que não é seu” e
“Me espancaram um pouco”; (2) uma frequente incidência de torturas com agressões que não deixam
marcas visíveis, “como aplicar choques elétricos, jogar spray de pimenta nos olhos, machucar lesões

155
Ibid., p. 167.
156
Ibid., p. 166.
157
AÇÃO DOS CRISTÃOS PARA A ABOLIÇÃO DA TORTURA (ACAT), CONECTAS DIREITOS HUMANOS, NÚCLEO DE PESQUISAS DO INS-
TITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM), NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
(NEV-USP) E PASTORAL CARCERÁRIA. Julgando a tortura: Análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005-2010). São
Paulo, SP, 2015. Disponível em: https://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2018/01/documento_julgando-a-tortura.pdf. Acesso em: 03
nov. 2021.
158
Ibid., p. 12.
159
Ibid., p. 51.
160
Ibid., p. 58.


161
BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília, DF: Presidência da República, 1941. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em: 04 nov. 2021.
162
ONU. Conselho de Direitos Humanos – Assembleia Geral. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhu-
man or degrading treatment or punishment on his mission to Brazil, 2016. Disponível em: https://www.conectas.org/wp-content/
uploads/2017/02/G160141RelatorioTorturaVisitaBR2015.pdf. Acesso em: 04 nov. 2021.
163
CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Tortura Blindada: como as instituições do sistema de justiça perpetuam a violência nas audiências
de custódia. 2017. Disponível em: https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2017/12/2017_Tortura_Blindada_sumario_executivo.pdf.
Acesso em: 05 nov. 2021.

224
DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL

pré-existentes, enforcar e dar tapas no ouvido;”164 e (3) uma margem grande de discricionariedade dos
magistrados ao agirem frente às situações de violência, o que vai de encontro ao protocolo estabele-
cido pelo CNJ,165 sendo que em 18% dos casos analisados a postura do magistrado foi de desconfiança
em relação ao relato de tortura do cidadão privado de liberdade.166
A negligência com a exposição das situações de violência não é exclusividade dos magistrados, já que
os promotores, em quase todas as audiências analisadas, não se manifestaram no sentido de solicitar a
apuração dos fatos narrados:

Mais de uma vez, os promotores que deram encaminhamento aos casos de tortura acharam por
bem justificar sua atitude como uma medida meramente protocolar, uma vez que a audiência
estava sendo filmada e o preso estava visivelmente machucado. Reproduzindo uma cultura insti-
tucional conivente com a violência, os promotores abriram mão de seu dever constitucional de
exercer o controle externo das polícias.167

Por fim, “em apenas 1 dos 393 relatos de violência o juiz determinou a abertura de inquérito policial”168
e em alguns outros foi determinada a apuração da violência, no entanto essa apuração é feita pela
Divisão de Expediente da Polícia Judiciaria e Serviços Auxiliares (DIPO 5), que na prática encaminha as
evidências de tortura e maus-tratos às corregedorias das Polícias Civil e Militar,

ou seja, o que o DIPO 5 faz é enviar as denúncias às instituições suspeitas de praticar as agressões
[...] ou seja, o próprio policial (ou grupo de policiais) suspeito pelas práticas de violência recebeu
documentos com nome e endereço de quem o acusava, além de um vídeo com o rosto, a voz e o
depoimento das vítimas, aumentando sua vulnerabilidade.169

Os inúmeros estudos sobre tortura e tratamentos desumanos, degradantes e cruéis no Brasil ajudam a
evidenciar que as causas do baixo número de agentes públicos punidos por esses crimes relacionam-se
com a conivência ou falta de interesse das instituições que são encarregadas por investigar e punir, em
notória violação do artigo 12 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes. Ou seja, o Estado brasileiro falha em cumprir com suas obrigações nega-
tivas (não praticar) e com suas obrigações positivas (investigar, processar e punir).
Em relação ao histórico brasileiro, o período da ditadura militar (1964-1985) destaca-se pela altíssima
incidência de prática de tortura contra opositores ou suspeitos de oposição ao regime militar. A
Comissão Nacional da Verdade registrou 434 casos de assassinatos ou desaparecimentos forçados,170
havendo milhares de outros tratamentos degradantes ou desumanos que sequer foram documen-
tados ou investigados até hoje, já que “responsáveis por
​​ estes crimes foram protegidos pela Lei de
Anistia de 1979.”171

164
Ibid., p. 10.
165
CNJ. Resolução nº 213 de 15 de dezembro de 2015. Brasília, DF. 2015. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2234. Acesso em:
07 nov. 2021.
166
CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Tortura Blindada: como as instituições do sistema de justiça perpetuam a violência nas audiências
de custódia. 2017. Disponível em: https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2017/12/2017_Tortura_Blindada_sumario_executivo.pdf.
Acesso em: 05 nov. 2021. p. 13.
167
Ibid., p. 14.
168
Ibid., p. 18.
169
Idem.
170
CANINEU, Maria Laura. Primeira condenação por crimes da ditadura no Brasil. Human Rights Watch. Publicado em: 22 jun. 2021.
Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2021/06/22/379033. Acesso em: 07 set. 2021.


171
Idem.

225
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

No julgamento do caso “Herzog e outros vs. Brasil”, a Corte IDH considerou provado que durante o
período da ditadura brasileira:

a tortura passou a ser sistematicamente usada pelo Estado brasileiro desde o golpe de 1964, seja
como método de obtenção de informações ou confissões (técnica de interrogatório), seja como
forma de disseminar o medo (estratégia de intimidação). Converteu-se na essência do sistema
militar de repressão política, baseada nos argumentos da supremacia da segurança nacional e
da existência de uma “guerra contra o terrorismo”. Foi utilizada com regularidade por diversos
órgãos da estrutura repressiva, entre delegacias e estabelecimentos militares, bem como em
estabelecimentos clandestinos em diferentes espaços do território nacional. A prática de tortura
era deliberada e de uso estendido, constituindo uma peça fundamental do aparato de repressão
montado pelo regime. 172

No mesmo julgado, a Corte IDH fez constar o que tinha sido documentado em relatórios oficiais do
Estado brasileiro como métodos de tortura física e psicológica utilizados pelos agentes públicos no
período da ditadura militar. Dentre as torturas físicas, constam choque elétrico, “cadeira do dragão”,
“plamatória”, afogamento, telefone, sessão de caratê ou corredor polonês, uso de produtos químicos
(soro da verdade, temperar com éter, injeção com éter), sufocamento, enforcamento, crucificação,
furar poço de petróleo, colocar-se de pé sobre duas latas abertas, geladeira, pau de arara, utilização de
animais, coroa de cristo, “churrasquinho” e outras formas de tortura. Dentre as psicológicas, a Corte
IDH enumerou privação do sono, comida e bebida, camisa de força, olhos vendados ou capuz, ameaças
ao detido, a familiares e a amigos.173
Apesar da prática sistemática de tortura, a Corte IDH igualmente concluiu que “o marco jurídico insti-
tuído pelo regime assegurou especialmente a impunidade dos que praticavam sequestros, torturas,
homicídios e desaparecimentos, ao excluir do controle judicial todos os atos cometidos pelo “Comando
Supremo da Revolução” e ao instituir a competência da Justiça Militar para julgar crimes contra a segu-
rança nacional.”174 Por fim, a Lei de Anistia de 1979 veio sacramentar a impunidade dos agentes estatais,
o que também restou confirmado no julgamento deste caso, levando ao reconhecimento da responsa-
bilidade internacional do Estado Brasileiro.
Por fim, para atender os parâmetros do Protocolo de Istambul, o CNJ editou a Resolução nº 414 de
02/09/2021, estabelecendo diretrizes e quesitos periciais para a realização dos exames de corpo de
delito nos casos em que haja indícios de prática de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos
ou degradantes, com um anexo específico de “Quesitos padrão para o exame de corpo de delito com
indícios de tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.175

172
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Herzog y otros Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones
y Costas. Sentencia de 15 de marzo de 2018. Serie C No. 353. par. 239.
173
Ibid., par. 240.


174
Ibid., par. 238.
175
CNJ. Resolução Nº 414 de 02/09/2021. Estabelece diretrizes e quesitos periciais para a realização dos exames de corpo de delito nos
casos em que haja indícios de prática de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, conforme os parâmetros do
Protocolo de Istambul, e dá outras providências. DJe/CNJ n° 232/2021, de 8 de setembro de 2021, p. 4-9. Disponível em: https://atos.cnj.jus.
br/atos/detalhar/4105. Acesso em: 18 jun. 2022.

226
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

DIREITO À IGUALDADE
E NÃO-DISCRIMINAÇÃO
NOS DIREITOS HUMANOS
INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

Roger Raupp Rios

1. INTRODUÇÃO

O direito internacional dos direitos humanos tem, dentre seus elementos fundamentais, a afirmação do
direito de igualdade como mandamento de proibição de discriminação. Formulado e compreendido,
na arena internacional, a partir das violações perpetradas pelos regimes totalitários,1 assim como, na
ordem interna, respondendo ao projeto de reconstrução da democracia que se seguiu à ditadura militar
brasileira que se estabeleceu no período da Guerra Fria, o princípio da igualdade deita raízes no consti-
tucionalismo clássico, fruto de intensa elaboração política e filosófica.
Pode-se dizer que a proibição de discriminação integra o coração do princípio da igualdade, tanto nos
ordenamentos jurídicos nacionais, quanto no direito internacional; seu objetivo é enfrentar toda e
qualquer diferenciação injusta que se consubstancia em práticas e regimes de subordinação em detri-
mento de indivíduos e grupos histórica e socialmente discriminados. Há, como se sabe, rico e intenso
debate desenvolvido em diversos campos do conhecimento sobre a igualdade e a proibição de discri-
minação2 , cuja extensão e profundidade ultrapassam os limites deste estudo, que se limita a fornecer
um panorama da igualdade como mandamento antidiscriminatório no direito internacional dos direitos
humanos, e, mais especificamente, no direito interamericano dos direitos humanos.
Do ponto de vista jurídico, este esforço de efetivação do mandamento antidiscriminatório impulsionou
legislação e jurisprudência específicas, que, somadas à respectiva reflexão e sistematização resultaram
no “direito da antidiscriminação”. É neste campo próprio do conhecimento e da prática jurídica que
importa examinar as previsões normativas e as categorias empregadas pelo direito internacional dos
direitos humanos, cuja positivação se dá nos sistemas universal e regional de direitos humanos3.
Diante desta tarefa, este capítulo inicia-se com o inventário das principais previsões normativas do
SIDH em matéria de igualdade e proibição de discriminação (primeira parte), seguido pela exposição
das categorias jurídicas fundamentais desenvolvidas pelo direito da antidiscriminação (segunda parte).
Neste percurso, não serão abordadas as estratégias jurídicas e políticas públicas que buscam superar as
discriminações, tais como ações afirmativas e outras medidas administrativas e legislativas preventivas
e repressivas, que demandam estudo específico.


1
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados [online]. 1997, v. 11, n. 30, pp.
55-65. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40141997000200005. Acesso em: 03 set. 2021.
2
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo: Ed. 34, 1999; KYMLICKA, Will. Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of
Minority Rights”. Oxford: Oxford University Press, 1995.
3
PETERKE, Sven et al. Manual prático de direitos humanos internacionais. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2009.

227
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2. PREVISÃO NORMATIVA

Ainda que centrado no direito interamericano dos direitos humanos, este panorama das previsões
normativas também elenca dispositivos do sistema universal de direitos humanos. O compartilhar
do mesmo contexto histórico e inspiração, além da presença de referências mútuas e complemen-
tação, assim recomendam, sem esquecer da invocação dos marcos normativos universais nos
julgados da Corte IDH.

2.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)

Artigo 1º
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e cons-
ciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo 2º
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Decla-
ração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou
de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 
2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do
país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela,
sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

2.2. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948)

Preâmbulo
Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, como são dotados pela natureza de
razão e consciência, devem proceder fraternalmente uns para com os outros.
Artigo II. 
Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm os direitos e deveres consagrados nesta declaração, sem
distinção de raça, língua, crença, ou qualquer outra.

2.3. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966)

Artigo 2º
1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que
se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente
Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição.
Artigo 3º
Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a assegurar a homens e mulheres igualdade no
gozo de todos os direitos civis e políticos enunciados no presente Pacto.

228
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

Artigo 26
 Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da
Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas
proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou
qualquer outra situação.

2.4. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (1969)

Artigo 1 - Obrigação de Respeitar os Direitos


1. Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qual-
quer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição social.
2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.
Artigo 24 - Igualdade Perante a Lei
Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual
proteção da lei.

2.5. Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas


de Discriminação Racial (1968)

Artigo I
1. Nesta Convenção, a expressão “discriminação racial” significará qualquer distinção, exclusão restrição
ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou etnica que tem por objetivo
ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade
de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social,
cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública.

2.6. Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de


Discriminação Contra a Mulher (1979)

Artigo 1o
Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a
distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou
anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil,
com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos
campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

229
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2.7. Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais (1989)

Artigo 3º
1. Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades funda-
mentais, sem obstáculos nem discriminação. As disposições desta Convenção serão aplicadas sem
discriminação aos homens e mulheres desses povos. (...)
Artigo 4º
1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as
instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados.
2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos expressos livremente pelos
povos interessados.
3. O gozo sem discriminação dos direitos gerais da cidadania não deverá sofrer nenhuma deterioração
como conseqüência dessas medidas especiais.

2.8. Convenção Sobre os Direitos da Criança (1990)

Artigo 2
1. Os Estados Partes respeitarão os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua apli-
cação a cada criança sujeita à sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de raça, cor,
sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra índole, origem nacional, étnica ou social, posição
econômica, deficiências físicas, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais ou de
seus representantes legais.
2. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar a proteção da criança contra
toda forma de discriminação ou castigo por causa da condição, das atividades, das opiniões manifes-
tadas ou das crenças de seus pais, representantes legais ou familiares.

2.9. Convenção Interamericana Para a Eliminação de Todas as Formas


de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1989)

Artigo I - Para os efeitos desta Convenção, entende-se por:


1. Deficiência
O termo “deficiência” significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou
transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada
ou agravada pelo ambiente econômico e social.
2. Discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência
a) O termo “discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência” significa toda diferenciação,
exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência
anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir
ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus
direitos humanos e suas liberdades fundamentais.

230
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

b) Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado Parte para promover
a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferen-
ciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam
obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja a
declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar, esta não consti-
tuirá discriminação.

2.10. Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com


Deficiência (2006)

Artigo 1 - Propósito 
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover
o respeito pela sua dignidade inerente.  
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação
plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. 
Artigo 3 - Princípios gerais 
Os princípios da presente Convenção são:
a) O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias
escolhas, e a independência das pessoas;
b) A não-discriminação;
c) A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;
d) O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade
humana e da humanidade;
e) A igualdade de oportunidades;
f) A acessibilidade;
g) A igualdade entre o homem e a mulher;
h) O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das
crianças com deficiência de preservar sua identidade.

2.11. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos


Indígenas (2006)

2.12. Artigo 2

Os povos e pessoas indígenas são livres e iguais a todos os demais povos e indivíduos e têm o direito
de não serem submetidos a nenhuma forma de discriminação no exercício de seus direitos, que esteja
fundada, em particular, em sua origem ou identidade indígena.

231
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2.13. Convenção Interamericana Contra o Racismo, A Discriminação


Racial E Formas Correlatas De Intolerância (2013)

Artigo 1
Para os efeitos desta Convenção: 1. Discriminação racial é qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir
o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e
liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes. A
discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica. 2. Discri-
minação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um
dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem
particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no
Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um
objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

2.14. Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e


Intolerância (2013)

Artigo 1
Para os efeitos desta Convenção: 1. Discriminação é qualquer distinção, exclusão, restrição ou prefe-
rência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir
o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e
liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes. A
discriminação pode basear-se em nacionalidade, idade, sexo, orientação sexual, identidade e expressão
de gênero, idioma, religião, identidade cultural, opinião política ou de outra natureza, origem social,
posição socioeconômica, nível educacional, condição de migrante, refugiado, repatriado, apátrida ou
deslocado interno, deficiência, característica genética, estado de saúde física ou mental, inclusive infec-
tocontagioso, e condição psíquica incapacitante, ou qualquer outra condição.

2.15. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos


Indígenas (2016)

Artigo XII - Garantias contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e outras formas conexas
de intolerância
Os povos indígenas têm o direito de não ser objeto de racismo, discriminação racial, xenofobia ou outras
formas conexas de intolerância. Os Estados adotarão as medidas preventivas e corretivas necessárias
para a plena e efetiva proteção desse direito.

232
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

3. CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO


DA ANTIDISCRIMINAÇÃO E O SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Nesta segunda parte, o direito da antidiscriminação, acionado por meio de um panorama de suas prin-
cipais categorias, servirá de base para a compreensão da igualdade e da não-discriminação no direito
internacional dos direitos humanos, observada a ênfase no SIDH. Essa opção não indica desprestígio
algum ao sistema universal de direitos humanos, nem aos ordenamentos jurídicos nacionais; cuida-se
de um recurso delimitador deste estudo a seus limites espaciais, bem como reflete a inserção histórica,
social e cultural desta obra coletiva.
Os elementos fundamentais do direito da antidiscriminação (conceito jurídico, modalidades direta
e indireta e critérios proibidos de discriminação) serão expostos e relacionados a certos pronuncia-
mentos da Corte IDH, escolhidos por sua pertinência, papel emblemático e função exemplificadora.
Sem pretensão exaustiva, pretende-se, deste modo, contribuir ao mesmo tempo para a difusão do
direito da antidiscriminação e do sistema interamericano de direitos humanos, sempre com vistas à sua
concretização e efetividade.

3.1. Princípio da igualdade e mandamento antidiscriminatório

O princípio da igualdade ocupa lugar proeminente na construção dos direitos humanos, do direito da
antidiscriminação e do sistema interamericano. A afirmação da igualdade como princípio cardeal na
modernidade, somada à sua compreensão e desenvolvimento nos sistemas universais e regionais de
direitos humanos havida no pós II Guerra Mundial, deram ensejo, passo a passo, ao direito da antidiscri-
minação e seus instrumentos normativos internacionais proeminentes.
Desde o início, o princípio da igualdade e o mandamento antidiscriminatório revelam-se acoplados,
desempenhando, todavia, tarefas próprias. Enquanto a compreensão tradicional do princípio da
igualdade volta-se ao conteúdo dessa previsão de modo estático, por meio da enunciação de suas
respectivas dimensões formal e material e interdição de juízos arbitrários4, o mandamento antidiscri-
minatório aponta para a reprovação de condutas e situações em que desvantagens e subordinações
são historicamente forjadas e socialmente estabelecidas. Passa-se a atentar para a dinâmica por meio
da qual prejuízos injustos infringidos e suportados pelos destinatários de tratamentos desiguais, defla-
grados por estigmas e estereótipos de que se vale a dominação perpetrada contra indivíduos e grupos
discriminados. 5 O mandamento antidiscriminatório, mais que uma perspectiva formal, adquire feição
substantiva: importa perceber, enfrentar e rumar à superação das desigualdades prejudiciais e injustas.
Caminhando além da compreensão assentada pelo constitucionalismo liberal clássico, que, atado à
superação da ordem estamental do Antigo Regime,6 acabou por legitimar discriminações e desvan-
tagens produzidas pela dominação do sujeito de direito proprietário, branco, europeu, cristão, mascu-

4
FREDMAN, Sandra. Discrimination Law. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 7; RIOS, Roger Raupp. O princípio da igualdade e a
discriminação por orientação sexual: a homossexualidade no direito brasileiro e norte-americano. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-
nais, 2002, p. 33; MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito: Justificando. 2017, p. 17.
5
RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008; MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito: Justificando. 2017, p. 67; SOLANKE,
Iyiola. Discrimination as Stigma. A theory of Anti-Discrimination Law. Portland: Hart Publishing, 2017.
6
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte:
Fórum, 2019.

233
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

lino e heterossexual, o mandamento antidiscriminatório toma igualdade e não-discriminação como


“conceitos democráticos dinâmicos que propiciam a promoção da igualdade jurídica efetiva.” 7 Daí que
o direito da antidiscriminação faz acrescer as perspectivas da antidiferenciação e da antissubordinação
às dimensões formal (“igualdade perante a lei”) e material (determinação de mesmo tratamento diante
de casos iguais e tratamento distinto em face de casos díspares) da isonomia.8
Nessa arquitetura antidiscriminatória, a perspectiva da antidiferenciação, cuja pedra de toque é a unifor-
midade de tratamento, atrelada às noções de universalidade, abstração e pretensão de neutralidade,
acaba por fragilizar o direito de igualdade diante das discriminações; reduzida a mero dever de racio-
nalidade esvaziado de conteúdo substantivo, a igualdade, quando muito, habilita-se a somente prover
proteção jurídica em face de hipóteses de discriminação direta, individual e intencional.9 Por outro
lado, igualdade e antidiscriminação, informadas pela perspectiva da antissubordinação, ganham força
e vigor, ultrapassando a mera interdição lógico-formal de arbitrariedade e de imposição de tratamento
uniforme. Reforçados em seu conteúdo, o direito de igualdade e o dever antidiscriminatório passam a
instituir mandamentos de superação frente a atitudes, práticas e contextos que perpetuam dominação;
na metáfora utilizada no direito estadunidense, trata-se “dar dentes ao direito de igualdade”, tornan-
do-o apto a enfrentar subordinações e desvantagens que constituem “cidadanias de segunda classe.”10
A Corte IDH pode relacionar igualdade e proibição de discriminação articulando as categorias da
não-discriminação, igualdade perante a lei e igual proteção da lei em favor de todas as pessoas. Ao
tratar os deveres de respeito e garantia dos direitos humanos por parte dos Estados, o tribunal iden-
tificou as raízes da igualdade na afirmação da unidade da natureza humana e na dignidade da pessoa
humana, enfatizando o direito à proteção igualitária e efetiva da lei e da não-discriminação, em sintonia
perspectiva da antissubordinação:

83. La no discriminación, junto con la igualdad ante la ley y la igual protección de la ley a favor de
todas las personas, son elementos constitutivos de un principio básico y general relacionado con
la protección de los derechos humanos. El elemento de la igualdad es difícil de desligar de la no
discriminación. Incluso, los instrumentos ya citados (supra párr. 71), al hablar de igualdad ante la
ley, señalan que este principio debe garantizarse sin discriminación alguna. Este Tribunal ha indi-
cado que “[e]n función del reconocimiento de la igualdad ante la ley se prohíbe todo tratamiento
discriminatorio”.

85. Existe un vínculo indisoluble entre la obligación de respetar y garantizar los derechos humanos
y el principio de igualdad y no discriminación. Los Estados están obligados a respetar y garantizar
el pleno y libre ejercicio de los derechos y libertades sin discriminación alguna. El incumplimiento
por el Estado, mediante cualquier tratamiento discriminatorio, de la obligación general de respetar
y garantizar los derechos humanos, le genera responsabilidad internacional.

86. El principio de la protección igualitaria y efectiva de la ley y de la no discriminación está consa-


grado en muchos instrumentos internacionales33. El hecho de estar regulado el principio de
igualdad y no discriminación en tantos instrumentos internacionales, es un reflejo de que existe

OEA. Convenção Interamericana contra toda forma de Discriminação e Intolerância. Disponível em: https://www.oas.org/en/sla/dil/
7

docs/inter_american_treaties_A-69_Convencao_Interamericana_disciminacao_intolerancia_POR.pdf. Acesso em: 03 set. 2021.


8
RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008.
9
RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008, p. 33-35.
10
FISS, Owen. What is feminism? Arizona State Law Journal, n. 26, p. 413-428, 1994. Disponível em: https://www.law.yale.edu/sites/default/
files/documents/faculty/papers/What_Feminism.pdf. Acesso em: 08 ago. 2020.

234
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

un deber universal de respetar y garantizar los derechos humanos, emanado de aquel principio
general y básico.

87. El principio de igualdad ante la ley y la no discriminación ha sido desarrollado por la doctrina y
jurisprudencia internacionales. La Corte Interamericana ha entendido que: [l]a noción de igualdad
se desprende directamente de la unidad de naturaleza del género humano y es inseparable de la
dignidad esencial de la persona, frente a la cual es incompatible toda situación que, por considerar
superior a un determinado grupo, conduzca a tratarlo con privilegio; o que, a la inversa, por consi-
derarlo inferior, lo trate con hostilidad o de cualquier forma lo discrimine del goce de derechos
que sí se reconocen a quienes no se consideran incursos en tal situación de inferioridad. No es
admisible crear diferencias de tratamiento entre seres humanos que no se correspondan con su
única e idéntica naturaleza.

88. El principio de igualdad y no discriminación posee un carácter fundamental para la salvaguardia


de los derechos humanos tanto en el derecho internacional como en el interno. Por consiguiente,
los Estados tienen la obligación de no introducir en su ordenamiento jurídico regulaciones discri-
minatorias, de eliminar de dicho ordenamiento las regulaciones de carácter discriminatorio y de
combatir las prácticas discriminatorias.11

3.2. Conceito jurídico de discriminação

Para sua concretização, o mandamento antidiscriminatório tem seu alicerce e ponto de partida no
conceito jurídico de discriminação. Antes de adentrar no exame de sua conceituação jurídica, anote-se
que, na linguagem corrente, ao termo preconceito em geral se associam percepções mentais e internas
negativas em desfavor de indivíduos e grupos socialmente inferiorizados, ao passo que ao termo discri-
minação é acionado para designar a perpetuação e a prática de atitudes e situações violadoras de
direitos, cujo resultado é desvantagem e subordinação em prejuízo de indivíduos e grupos protegidos
por critérios proibidos de discriminação.12 O preconceito é termo bastante corrente nos campos da
psicologia e das ciências sociais, sendo o vocábulo discriminação mais difundido no meio jurídico.13
Tomando de forma conjunta a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial e a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra
a Mulher, o conceito jurídico de discriminação toma contornos como “distinção, exclusão, restrição
ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou
exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico,
social, cultural ou qualquer campo da vida pública, sendo categoria incorporada, com estatura consti-
tucional, no direito brasileiro, em virtude da recepção da Convenção Internacional sobre os Direitos da
Pessoas com Deficiência e com a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial
e Formas Correlatas de Intolerância.


11
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión consultiva oc-18/03 de 17 de septiembre de 2003, solicitada por
los estados unidos mexicanos condición jurídica y derechos de los migrantes indocumentados. Disponível em: https://www.acnur.org/
fileadmin/Documentos/BDL/2003/2351.pdf. Acesso em: 03 set. 2021; no mesmo sentido, também a manifestação da Corte na: opinión
consultiva oc-4/84 del 19 de enero de 1984, Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_04_esp.pdf. Acesso em: 03
set. 2021.
12
Sobre as abordagens psicológicas e sociológicas, ver RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direita, indireta e
ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 15-18.
13
RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008.

235
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A Convenção Interamericana contra toda forma de Discriminação e Intolerância vai no mesmo sentido,
ao definir discriminação como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer
área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento,
gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades funda-
mentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes.” Note-se que o
emprego da expressão “em qualquer área da vida pública ou privada” alargou, de modo explícito, a
amplitude conceitual da discriminação, não obstante, como visto logo acima, terem sido já consignados
os campos econômico, social e cultural.
Nunca é demasiado salientar que a discriminação não se confunde com a adoção de medidas positivas
que operam diferenciações visando à efetivação de direitos, como se dá nas ações afirmativas e nos
tratamentos diferenciados em virtude da especificidade de um indivíduo ou grupo.14
Nesta linha, a Corte IDH buscou distinguir distinções e discriminações, mediante o raciocínio que segue:

84. En la presente Opinión Consultiva se hará una diferenciación al utilizar los términos distinción
y discriminación. El término distinción se empleará para lo admisible, en virtud de ser razonable,
proporcional y objetivo. La discriminación se utilizará para hacer referencia a lo inadmisible, por
violar los derechos humanos. Por tanto, se utilizará el término discriminación para hacer referencia
a toda exclusión, restricción o privilegio que no sea objetivo y razonable, que redunde en detri-
mento de los derechos humanos.

89. Ahora bien, al examinar las implicaciones del trato diferenciado que algunas normas pueden dar
a sus destinatarios, es importante hacer referencia a lo señalado por este Tribunal en el sentido de
que “no toda distinción de trato puede considerarse ofensiva, por sí misma, de la dignidad humana.
En este mismo sentido, la Corte Europea de Derechos Humanos, basándose en “los principios que
pueden deducirse de la práctica jurídica de un gran número de Estados democráticos”, advirtió
que sólo es discriminatoria una distinción cuando “carece de justificación objetiva y razonable”36.
Pueden establecerse distinciones, basadas en desigualdades de hecho, que constituyen un instru-
mento para la protección de quienes deban ser protegidos, considerando la situación de mayor o
menor debilidad o desvalimiento en que se encuentran. Por ejemplo, una desigualdad sancionada
por la ley se refleja en el hecho de que los menores de edad que se encuentran detenidos en
un centro carcelario no pueden ser recluidos conjuntamente con las personas mayores de edad
que se encuentran también detenidas. Otro ejemplo de estas desigualdades es la limitación en el
ejercicio de determinados derechos políticos en atención a la nacionalidad o ciudadanía.

91. Por su parte, la Corte Interamericana estableció que: [n]o habrá, pues, discriminación si una
distinción de tratamiento está orientada legítimamente, es decir, si no conduce a situaciones
contrarias a la justicia, a la razón o a la naturaleza de las cosas. De ahí que no pueda afirmarse que
exista discriminación en toda diferencia de tratamiento del Estado frente al individuo, siempre que
esa distinción parta de supuestos de hecho sustancialmente diferentes y que expresen de modo
proporcionado una fundamentada conexión entre esas diferencias y los objetivos de la norma, los
cuales no pueden apartarse de la justicia o de la razón, vale decir, no pueden perseguir fines arbi-
trarios, caprichosos, despóticos o que de alguna manera repugnen a la esencial unidad y dignidad
de la naturaleza humana.15

Nesse sentido, a Corte IDH não só permite a adoção de medidas positivas em favor de grupos discri-
minados, mas inclusive as exige. A Corte IDH entende ser incompatível com a Convenção Intera-


14
RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008, p. 22.
15
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión consultiva oc-18/03 de 17 de septiembre de 2003, solicitada por
los estados unidos mexicanos condición jurídica y derechos de los migrantes indocumentados. Disponível em: https://www.acnur.org/
fileadmin/Documentos/BDL/2003/2351.pdf. Acesso em: 03 set. 2021.

236
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

mericana de Direitos Humanos todo tratamento, independentemente de sua origem ou forma que
assuma, que possa ser considerado discriminatório em relação ao exercício de direitos assegurados pela
Convenção, ainda que devido à omissão.16 Assim, o direito à não-discriminação impõe aos Estados uma
obrigação positiva de criar condições de igualdade real em favo de grupos historicamente excluídos ou
em maior risco de sofrer discriminação, além de simplesmente observar uma obrigação negativa de
não os discriminar.17 Trata-se de um dever especial dos Estados de adotar medidas específicas para o
enfrentamento das situações discriminatórias existentes em suas sociedades, sob pena de responsabi-
lização internacional.

3.3. Discriminação estrutural, sistêmica e institucional

O fenômeno discriminatório também é percebido no direito internacional dos direitos humanos em


suas manifestações estrutural, sistêmica e institucional. Disso há referência no sistema universal dos
direitos humanos no âmbito das Nações Unidas, especialmente a comentários gerais dos Comitês de
monitoramento dos tratados internacionais e em relatórios do Conselho de Direitos Humanos.
O Comentário Geral nº 20, do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,18 do ano de 2009,
adota a seguinte definição de discriminação sistêmica (item 12):

[...] Discriminação sistêmica. O Comitê constatou regularmente que a discriminação contra


alguns grupos é generalizada e persistente e profundamente enraizada no comportamento e na
organização social, muitas vezes envolvendo discriminação inconteste ou indireta. Tal discrimi-
nação sistêmica pode ser entendida como regras legais, políticas, práticas ou atitudes culturais
predominantes no setor público ou privado que criam desvantagens relativas para alguns grupos
e privilégios para outros grupos. [...].

O Comentário Geral nº 34, II, n. 6, do Comitê para Eliminação da Discriminação Racial, em 2011, por
sua vez, reconheceu discriminação racial estrutural e suas manifestações nos campos institucionais
e sociais. Constata-se, nesse ponto, a confluência de compreensões sobre as discriminações estru-
tural sistêmica:

[...]O racismo e a discriminação estrutural contra os afrodescendentes, enraizados no infame


regime da escravatura, manifestam-se nas situações de desigualdade que os afetam e refletem,
nomeadamente, nos seguintes domínios: o seu agrupamento, juntamente com os povos indí-
genas, entre os mais pobres dentre os pobres; sua baixa taxa de participação e representação
nos processos decisórios políticos e institucionais; dificuldades adicionais que enfrentam no
acesso, conclusão e qualidade da educação, o que resulta na transmissão da pobreza de geração

16
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Propuesta de Modificación a la Constitución Política de Costa Rica Rela-
cionada con la Naturalización. Opinión Consultiva OC-4/84, de 19 de janeiro de 1984, par. 53. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/
docs/opiniones/seriea_04_esp.pdf. Acesso em: 10 jan. 2022.
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil. Sentença de 20 de ou-
tubro de 2016, par. 335. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf. Acesso em: 7 Maio 2021; CORTE
INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares
Vs. Brasil. Sentença de 15 de julho de 2020, par. 184. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_por.pdf.
Acesso em: 7 Maio 2021.
17
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Furlan y Familiares Vs. Argentina. Sentencia de 31 de agosto de 2012,
par. 267. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_246_esp.pdf. Acesso em: 10 jan. 2022; CORTE INTERAME-
RICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Azul Rojas Marín y otra Vs. Perú. Sentencia de 12 de marzo de 2020, par. 89. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_402_esp.pdf. Acesso em: 04 jun. 2022.
18
ONU. Comentário Geral n.º 20, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_
layouts/15/treatybodyexternal/TBSearch.aspx?Lang=en&TreatyID=9&DocTypeID=11. Acesso em: 01 jun. 2021.

237
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

em geração; desigualdade no acesso ao mercado de trabalho; reconhecimento social limitado e


valorização de sua diversidade étnica e cultural; e uma presença desproporcional na população
carcerária.[...] 19

Já relacionando de modo expresso os conceitos de racismo sistêmico, estrutural e institucional, encon-


tra-se no relatório da Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos de 28 de junho de 2021 que:

[...] para os fins do presente relatório, o conceito de racismo sistêmico contra africanos e afrodes-
cendentes, inclusive no que se refere ao racismo estrutural e institucional, é entendido como a
operação de um sistema de leis complexo e inter-relacionado, políticas, práticas e atitudes nas
instituições do Estado, no setor privado e nas estruturas sociais que, combinadas, resultam em
discriminação, distinção, exclusão, restrição ou preferência direta ou indireta, intencional ou não
intencional, de jure ou de facto, distinção, exclusão, restrição ou preferência com base na raça, cor,
descendência ou origem nacional ou étnica. O racismo sistêmico frequentemente se manifesta
em estereótipos raciais generalizados, preconceito e frequentemente está enraizado em histórias
e legados de escravidão, o comércio transatlântico de africanos escravizados e colonialismo. 20

A Corte IDH teve oportunidade de se manifestar sobre discriminação estrutural no julgamento do


caso Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil, ocorrido em 2016. Lá foram reconhecidos fatores estruturais
impactantes (discriminação estrutural) em seus efeitos indiretos (discriminação indireta) sobre direitos
previstos na CADH. A decisão baseou-se em circunstâncias fáticas e históricas impositivas de barreiras
sistêmicas para o exercício de direitos em pé de igualdade para indivíduos e grupos discriminados. Foi
demonstrada a presença de elementos estruturais e a sua interação em contextos de discriminação
indireta ou de fato a atingir um determinado grupo:

[...] i) um grupo ou grupos de pessoas com características imutáveis ou imodificáveis pela própria
vontade da pessoa ou que estão relacionados a fatores históricos de práticas discriminatórias,
podendo ser este grupo de pessoas uma minoria ou maioria; ii) que estes grupos se encontravam
em uma situação sistemática e histórica de exclusão, marginalização ou subordinação que os
impedia de ter acesso a condições básicas de desenvolvimento humano; iii) que a situação de
exclusão, marginalização ou subordinação se concentra em uma região geográfica determinada
ou pode também ser generalizada em todo o território de um Estado e, em alguns casos, pode
ser intergeracional; e iv) que as pessoas pertencentes a estes grupos, sem importar a intenção da
norma, a neutralidade ou a menção expressa de alguma distinção ou restrição explícita baseada
nos enunciados e interpretações do artigo 1.1 da Convenção Americana, são vítimas de discrimi-
nação indireta ou de discriminação de facto, em virtude das atuações ou da aplicação de medidas
ou ações implementadas pelo Estado.[...]21

Posteriormente, a Corte IDH afirmou a existência de discriminação estrutural no julgamento do caso


Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares Vs. Brasil em 2020. 22
No caso, a Corte IDH identificou que as vítimas estavam submetidas a um contexto de discriminação
estrutural em razão de pobreza, pois não tinham oportunidades de acesso a renda seguras, tanto pela

19
ONU. Comentário Geral n.° 34, do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_
layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CERD%2fC%2fGC%2f34&Lang=en. Acesso em: 01 jun. 2021.
20
ESCRITÓRIO DO ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS DIREITOS HUMANOS. Aplicación de la resolución 43/1 del
Consejo de Derechos Humanos y del informe complet. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/Issues/Racism/Pages/Implementa-
tion-HRC-Resolution-43-1.aspx. Acesso em: 03 set. 2021.


21
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde Vs. Brasil. Sentença de 20 de
outubro de 2016. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf. Acesso em: 7 Maio 2021.
22
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus
familiares Vs. Brasil. Sentença de 15 de julho de 2020, par. 184. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_
por.pdf. Acesso em: 7 Maio 2021.

238
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

não-alfabetização quanto pelos estereótipos negativos, o que as exigia se submeter a trabalhos em


condições de vulnerabilidade.
Ao encerrar o apanhado que neste tópico se pretendeu, pede-se licença para sugerir uma síntese
da compreensão da discriminação estrutural e da discriminação institucional, meramente como
conceitos operativos.
Diante desta proposta, pode-se conceituar discriminação estrutural como sendo distinções, exclusões,
restrições ou preferências, que tenham o propósito ou o efeito de restringir, prejudicar ou anular, o
reconhecimento, gozo ou exercício, em pé de igualdade, de direitos humanos e liberdades funda-
mentais, em prejuízo de critérios proibidos de discriminação, resultantes da estrutura de determinada
sociedade, entendida como modo de organização e funcionamento de tal sociedade; por modo de
organização e funcionamento compreendem-se tanto os arranjos institucionais fundamentais da
sociedade em questão, vista amplamente, e de suas relações internas (família, escola, igreja, trabalho,
linguagem, organizações sociais, públicas e privadas, etc), como também as relações de poder que
engendram as hierarquias e subordinações fundamentais que se estabelecem entre indivíduos e
grupos naquela sociedade (raciais, sexuais, de classe, etárias, etc); enquanto conceito operacional,
distingue-se da discriminação institucional na medida em que, ao passo que esta se refere à dinâmica
específica e interna de cada instituição quanto ao reconhecimento, gozo e exercício de direitos em pé
de igualdade (por exemplo, o reconhecimento, gozo e exercício de direitos na família, na escola ou no
sistema de saúde),  na discriminação estrutural consideram-se os efeitos, para indivíduos e grupos, da
relação entre as diversas instituições na sociedade como um todo, em suas implicações recíprocas  (por
exemplo, os efeitos das relações entre arranjos familiares, linguagem, religiões e bases econômicas de
determinada sociedade, para indivíduos e grupos, conforme os critérios proibidos de discriminação).

3.4. Modalidades de discriminação

A partir do conceito jurídico de discriminação, apresentam-se de imediato pelo menos duas modali-
dades de discriminação, cuja distinção terminológica se expressa pela menção ao “propósito” (discrimi-
nação direta) e ao “efeito” (discriminação indireta) das distinções, exclusões, restrições e preferências
danosas ao reconhecimento, gozo e exercício, em pé de igualdade, de direitos.
Em sua modalidade direta, a discriminação pode se dar de maneira intencional e consciente; na sua
modalidade indireta, decorre de condutas e contextos desprovidos de propósito discriminatório,
mas com efeitos e impactos discriminatórios, produzindo resultados danosos desproporcionais para
determinados grupos. 23
A discriminação direta se manifesta de modo variado, podendo estar (a) explícita em determinada
medida (discriminação direta explícita; por exemplo, o racismo em discurso neonazista), (b) decorrer
da aplicação mais gravosa, de medida originalmente sem intenção discriminatória, contra determinado
grupo de medida (discriminação direta na aplicação da medida; por exemplo, aplicação intencional-
mente mais rigorosa de regulamento de trânsito contra jovens negros), ou, (c) desde a origem da
concepção e formulação de determinada medida, revelar-se intenção discriminatória (discriminação
direta na concepção ou no desenho; por exemplo, o estabelecimento de certo regulamento com o fim
de tornar inviável a participação de mulheres ou de pessoas com deficiência).
A discriminação indireta, a seu turno, ocorre quando determinadas medidas contextos, ainda que
desprovidos de intenção, impactam, de modo diferenciado e prejudicial, indivíduos e grupos discri-


23
RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008, p. 89-153.

239
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

minados. Ela pode (a) enraizar-se a uma motivação inconsciente (discriminação indireta inconsciente;
por exemplo, a perpetuação desapercebida de mentalidade discriminatória por indivíduos, grupos ou
instituições), (b) resultar de negligência diante de efeitos discriminatórios de medidas sem propósito
discriminatório (discriminação indireta por negligência; por exemplo, a omissão não-intencional na
adoção de medidas de conscientização diante do sexismo), (c) estar arraigada em práticas formais
informais reproduzidas institucionalmente (discriminação indireta institucional; por exemplo, a perpe-
tuação de critérios de promoção aparentemente neutros que tem impacto prejudicial para grupos
historicamente discriminados em determinada instituição) e (d) decorrer da invisibilidade de vantagens
e de privilégios em favor de certos indivíduos e grupos com prejuízos aos demais outros (discriminação
indireta por invisibilidade de privilégios; por exemplo, em países com passado escravocrata, os efeitos
presentes da escravidão).
Como visto, o enfrentamento das discriminações tem se revelado compromisso constante e orien-
tado à formulação dos instrumentos internacionais de direitos humanos, como expressam os alertas
sobre as discriminações diretas alusivos ao racismo e sua “...capacidade dinâmica de renovação que lhe
permite assumir novas formas pelas quais se dissemina e se expressa política, social, cultural e linguisti-
camente,”24 bem como sobre a necessidade de enfrentar a discriminação indireta, compreendida como

“...aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática
ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para
pessoas pertencentes a um grupo específico, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse
dispositivo, prática ou critério tenha algum objetivo ou justificativa razoável e legítima, à luz do
Direito Internacional dos Direitos Humanos.”25

Nesse sentido, a Corte tem afirmado uma proibição ampla de normas, ações, omissões, políticas e
práticas que tenham impacto desproporcionalmente prejudicial a um grupo protegido particular,
ainda que elas sejam aparentemente neutras e não haja comprovação de intenção discriminatória. 26
Por isso, exemplificativamente, a Corte IDH afirmou em julgamento recente que o meio de acesso a
frequências de rádios através de leilões públicos, embora aparentemente neutro, resultava discrimi-
nação indireta contra os povos indígenas, os quais não possuem condições econômicas para conseguir
acesso a frequências de rádio e, portanto, enfrentam obstáculos de fato para o exercício de sua liber-
dade de expressão. 27

24
OEA. Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Disponível em: ht-
tps://www.oas.org/en/sla/dil/docs/inter_american_treaties_A-68_Convencao_Interamericana_racismo_POR.pdf. Acesso em: 03 set. 2021.
25
OEA. Convenção Interamericana contra toda forma de Discriminação e Intolerância. Artigo 1, item 2. Disponível em: https://www.oas.
org/en/sla/dil/docs/inter_american_treaties_A-69_Convencao_Interamericana_disciminacao_intolerancia_POR.pdf. Acesso em: 03 set.
2021.
26
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Nadege Dorzema e Outros Vs. República Dominicana. Sentença de 24 de
outubro de 2012, par. 234-235. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_251_por.pdf. Acesso em: 10 jan. 2022;
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Artavia Murillo y otros (“Fecundación in vitro”) Vs. Costa Rica. Sen-
tença de 28 de novembro de 2012, par. 286. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_esp.pdf. Acesso em:
10 jan. 2022.


27
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Pueblos Indígenas Maya Kaqchikel de Sumpango y otros Vs. Gua-
temala. Sentencia de 6 de octube de 2021, par. 149. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_440_esp.pdf.
Acesso em: 4 jun. 2022.

240
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

3.5. Critérios proibidos de discriminação

Dentre os elementos centrais do direito da antidiscriminação, a enumeração dos critérios proibidos de


discriminação merece lugar preeminente, como testemunham os diversos instrumentos internacionais
de direitos humanos e os ordenamentos jurídicos nacionais.

3.5.1. Amplitude e função

Como visto, a mera interdição abstrata de arbitrariedade nas distinções, assente na formulação das
dimensões formal e material do direito de igualdade, tem se mostrado insuficiente para responder às
discriminações desferidas contra grupos subordinados. 28 A percepção e superação das diversas formas
de discriminação exige, a cada momento histórico, a definição e a compreensão evolutiva dos critérios
protegidos de diferenciações prejudiciais no reconhecimento, gozo e exercício de direitos, em pé de
igualdade, entre indivíduos e grupos.
Mais que simples procedimento técnico-jurídico, a definição dos destinatários da proteção antidiscri-
minatória, que serão explicitados no ordenamento jurídico por meio da lista de critérios proibidos de
discriminação, reflete a repercussão jurídico-institucional de lutas sociais, nas quais grupos politica-
mente marginalizados lutam por proteção antidiscriminatória. 29 Os critérios proibidos de discriminação
funcionam como mandamentos negativos que determinam que, como base em certo critério, alguém
não seja discriminado e receba igual proteção da lei. Ao reprovarem condutas e efeitos discriminatórios,
protegem de tratamento prejudicial indivíduos e grupos que se enquadrem no critério protegido, seja
em virtude de sua condição identitária (como raça ou sexo, por exemplo), seja por escolhas fundamentais
juridicamente protegidas (como convicções políticas e filosóficas ou afiliação religiosa, por exemplo).

3.5.2. Interpretação e enumeração dos critérios proibidos de discriminação

Os ordenamentos jurídicos adotam técnicas diversas na enumeração dos critérios proibidos de


discriminação. Alguns elaboram listas taxativas por meio de legislação específica, enquanto outros se
valem de previsões amplas e genéricas; um terceiro grupo adota técnica mista, enumerando de forma
exemplificativa dos critérios proibidos de discriminação. No primeiro grupo, a decisão sobre os critérios
proibidos de discriminação é restrita ao poder legislativo, ao passo que nos demais esta tarefa cabe
também a outros ramos do estado, o que ocorre por meio do trabalho de agências e comitês executivos
de combate à discriminação, como também aos tribunais.
Nesta trajetória, o acréscimo de novos critérios ou a extensão da proteção antidiscriminatória a grupos
antes desamparados por meio da aplicação de critérios já estabelecidos se dá mediante a atualização
da compreensão dos critérios existentes ou pela explícita adição de um critério antes não-previsto. Para
tanto, são levados em conta parâmetros como: (a) se o grupo é historicamente perseguido; (b) se
é estigmatizado; (c) se recebe tratamento desigual prejudicial; (c) se sofre preconceito, estereótipos
negativos e hostilidades; (d) se constitui minoria politicamente em desvantagem; (e) se a característica
distintiva do grupo, constitutiva de sua identidade, é imutável ou modificável somente a alto e inexigível


28
RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008; MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito: Justificando. 2017.
29
GERSTMANN, Evan. The Constitutional Underclass. Gays, Lesbians, and the Failure of Class-Based Equal Protection. Chicago: The
University of Chicago Press, 1999, p. 34.

241
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

custo e (f) se tal característica desencadeadora da discriminação em nada impede a participação posi-
tiva do grupo na sociedade. 30
Um sem-número de questões se coloca na aplicação dos critérios de proibição. O direito brasileiro
demonstra essa realidade. A primeira dessas questões, que toma a atenção de imediato, diz respeito
à enumeração exemplificativa contida no artigo 3º, inciso IV, da Constituição de 1988, que possibilita
a inclusão de novos critérios proibidos de discriminação; outra questão, muito relevante, concerne à
interpretação de cada um dos critérios enumerados. No campo do gênero e da sexualidade, as disputas
hermenêuticas são particularmente polêmicas, dada a extensão que se pode verificar na compreensão
da enumeração do “sexo” como critério proibido de discriminação, bem com o influxo das dinâmicas
sociais de gênero e sexualidade nesses processos. 31
No direito internacional dos direitos humanos, este processo paulatino de interpretação e ampliação
concretizadora do mandamento antidiscriminatório se verifica de modo exemplar no direito interame-
ricano dos direitos humanos.
A reprodução de alguns dos “considerandos” da Convenção Interamericana contra toda forma de
Discriminação e Intolerância é expressa e elucidativa quanto a esta caminhada:

CONSIDERANDO que a dignidade inerente e a igualdade de todos os membros da família humana


são princípios básicos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; REAFIR-
MANDO o firme compromisso dos Estados membros da Organização dos Estados Americanos
com a erradicação total e incondicional de todas as formas de discriminação e intolerância, e sua
convicção de que essas atitudes discriminatórias representam a negação dos valores universais e
dos direitos inalienáveis e invioláveis da pessoa humana e dos propósitos e princípios consagrados
na Carta da Organização dos Estados Americanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na Carta Social das Américas, na
Carta Democrática Interamericana, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Decla-
ração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos; RECONHECENDO o dever de
se adotarem medidas nacionais e regionais para promover e incentivar o respeito e a observância
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais de todos os indivíduos e grupos sujeitos a sua
jurisdição, sem distinção por motivo de gênero, idade, orientação sexual, idioma, religião, opinião
política ou de outra natureza, origem social, posição econômica, condição de migrante, refugiado
ou deslocado, nascimento, condição infectocontagiosa estigmatizada, característica genética,
deficiência, sofrimento psíquico incapacitante ou qualquer outra condição social;

CONVENCIDOS de que determinadas pessoas e grupos vivenciam formas múltiplas ou extremas


de discriminação e intolerância, motivadas por uma combinação de fatores como gênero, idade,
orientação sexual, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem social, posição
econômica, condição de migrante, refugiado ou deslocado, nascimento, condição infectoconta-
giosa estigmatizada, característica genética, deficiência, sofrimento psíquico incapacitante, ou
outra condição social, bem como outros reconhecidos em instrumentos internacionais;

LEVANDO EM CONTA que uma sociedade pluralista e democrática deve respeitar a identidade
cultural, linguística, religiosa, sexual e de gênero de toda pessoa, pertencente ou não a uma
minoria, bem como criar as condições que lhe possibilitem expressar, preservar e desenvolver
sua identidade;

30
WINTEMUTE, Robert. Sexual Orientation and Human Rights: the United States Constitution, the European Convention and the Cana-
dian Charter. Oxford: Claredon Press, 1995.


31
RIOS, Roger Raupp. Tramas e interconexões no Superior Tribunal Federal: antidiscriminação, gênero e sexualidade. Revista Direito e Prá-
xis, v.11, n.2, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdp/a/YBF9fKfmKTXdZj7j6GGYGqc/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 25 out.
2022.

242
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

CONSIDERANDO que a experiência individual e coletiva de discriminação e intolerância deve ser


levada em conta para combater a exclusão e a marginalização com base em gênero, idade, orien-
tação sexual, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem social, situação econô-
mica, condição de migrante, refugiado ou deslocado, nascimento, condição infectocontagiosa
estigmatizada, característica genética, deficiência, sofrimento psíquico incapacitante, ou outra
condição social, além de outras reconhecidas em instrumentos internacionais, bem como para
proteger o projeto de vida de indivíduos e comunidades em risco de exclusão e marginalização;

Não por acaso, a enumeração da lista de critérios proibidos de discriminação reflete tal compreensão:

Art. 1.1. A discriminação pode basear-se em nacionalidade, idade, sexo, orientação sexual, identi-
dade e expressão de gênero, idioma, religião, identidade cultural, opinião política ou de outra natu-
reza, origem social, posição socioeconômica, nível educacional, condição de migrante, refugiado,
repatriado, apátrida ou deslocado interno, deficiência, característica genética, estado de saúde
física ou mental, inclusive infectocontagioso, e condição psíquica incapacitante, ou qualquer
outra condição.

A dinâmica jurídica da proteção antidiscriminatória fornecida pelo DIDH quanto aos critérios proibidos
de discriminação é arrematada pela disposição geral acerca da interpretação da convenção:

Artigo 16. Interpretação

1. Nenhuma disposição desta Convenção será interpretada no sentido de restringir ou limitar a


legislação interna de um Estado Parte que ofereça proteção e garantias iguais ou superiores às
estabelecidas nesta Convenção. 2. Nenhuma disposição desta Convenção será interpretada no
sentido de restringir ou limitar as convenções internacionais sobre direitos humanos que ofereçam
proteção igual ou superior nessa matéria.

3.6. Interseccionalidade e discriminação múltipla

O fenômeno discriminatório é múltiplo e complexo. Os diferentes contextos, redes relacionais, fatores


intercorrentes e motivações que emergem quando, no trato social, indivíduos e grupos são discri-
minados, não se deixam reduzir a um ou outro critério isolado. 32 Não basta reprovar a discriminação
racial e a discriminação sexual, pois a injustiça sofrida por mulheres brancas é diversa daquela vivida
por mulheres negras, assim como a discriminação experimentada por homens negros e por mulheres
negras não é a mesma. 33
É preciso ir além de um soma aritmética dos critérios proibidos de discriminação, ainda que haja
cuidado e esmero na enumeração de todos os possíveis fatores de diferenciação injustificadamente
incidentes em tratos diferenciados. 34 Perceber a discriminação interseccional, decorrente da articu-


32
MACÊDO, Márcia dos Santos. Na trama das interseccionalidades: mulheres chefes de família em Salvador. 2008. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. p. 12. Disponível
em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/10983. Acesso em: 07 set. 2021.
33
RIOS, Roger Raupp; SILVA, Rodrigo. Democracia e direito da antidiscriminação: interseccionalidade e discriminação múltipla no direito
brasileiro. Ciência e Cultura, v.69, n.1, jan./mar., 2017, p.45. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v69n1/v69n1a16.pdf. Acesso
em: 25 out. 2022.
34
Sobre as compreensões qualitativa e quantitativa da discriminação múltipla, ver RIOS, Roger Raupp; SILVA, Rodrigo da. Discriminação
múltipla e discriminação interseccional: aportes do feminismo negro e do direito da antidiscriminação. Revista Brasileira de Ciência
Política [online]. 2015, n. 16. pp. 11-37. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-335220151602. Acesso em 14 out. 2022.

243
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

lação de diversas dimensões da existência humana, é ao mesmo tempo um desafio e uma necessidade,
tanto para as ciências sociais, quanto para a ciência jurídica.
A preocupação com a interseccionalidade emerge no movimento feminista a partir da década de
1990, vindo a agregar-se com as reivindicações antes concentradas na condição feminina tomada em
abstrato, nos âmbitos do trabalho, da saúde e da liberdade, registradas nas décadas de 1970 e 1980.
Deste modo, inicia-se a ênfase na pluralidade e heterogeneidade das mulheres entre si, o que produziu
novas expressões e elaborações do feminismo. 35 Assim, afirmada a diversidade de identidade entre
as mulheres, ampliam-se os horizontes para a articulação entre os diversos critérios discriminatórios,
ao enlace dos critérios proibidos de discriminação (ser, simultânea e diversamente, dependendo do
contexto, não só mulher, mas mulher e negra, mulher e deficiente, mulher e estrangeira, mulher latina
soropositiva, etc)36. Assim, como acontece quando o que esta em pauta é a universalidade abstrata dos
direitos humanos, o princípio jurídico da igualdade reclama a atenção, em concreto e de modo singular,
para os direitos humanos das mulheres além da abstração.
A abordagem interseccional recusa a redução das subjetividades a categorias identitárias fixas, abrindo
espaço para a construção de alianças e de redes de solidariedade, conforme as especificidades histó-
ricas. Os critérios proibidos de discriminação não são apenas um acúmulo de classificações; eles se
revelam no dinamismo histórico em que inserida a trajetória singular de cada pessoa, apontando para o
caráter processual da construção das identidades. 37
A perspectiva interseccional revela-se necessária para o conhecimento e a prática jurídica. Ao tornar
visíveis situações discriminatórias não percebidas, há a possibilidade de visibilidade de indivíduos e de
grupos até então ignorados, conduzindo a maiores chances de sucesso por parte das políticas públicas
contra a discriminação. 38 Como afirma Mara Viveros Vigoya, com a interseccionalidade possibilita-se a
compreensão teórica e política das relações sociais de poder e de como se dá o seu real funcionamento,
muito além da enumeração formal de critérios proibidos de discriminação, indo além de concepção
matemática das desigualdades. 39
Daí a compreensão da interseccionalidade como “...uma conceituação do problema que busca capturar
as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata
especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas

35
OLIVEIRA, Vanilda Maria. Um olhar interseccional sobre feminismos, negritudes e lesbianidades em Goiás. 2006. Dissertação (Mes-
tardo em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2006. Disponível em: https://
negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/um-olhar-interseccional-sobre-feminismos-negritudes-e-lesbianidades-em-goic3a1s-vanil-
da-maria-de-oliveira-dissertac3a7c3a3o.pdf. Acesso em: 07 set. 2021.
36
RIOS, Roger Raupp; SILVA, Rodrigo da. Discriminação múltipla e discriminação interseccional: aportes do feminismo negro e do direito da
antidisciminação. Revista Brasileira de Ciência Política, v.16, jan./abr., 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcpol/a/xKt5hWwZF-
ChwrbtfZxTGXKf/?lang=pt. Acesso em: 25 out. 2022.


37
COSTA, Cláudia de Lima; ÁVILA, Eliana. Glória Anzaldúa, a consciência mestiça e o ‘feminismo da diferença’”. Revista de Estudos Femi-
nistas, 2005, v. 13, n. 3, p. 691-703. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/R4rf3YG4z6ZMhTkLcVQQkPG/?lang=pt. Acesso em: 25 out.
2022..
38
DORLIN, Elsa. L’Atlantique feministe. L’intersectionnalité en débat. Papeles del CEIC, 2012, v. 2012/2, n. 83, p. 1-16.
39
VIGOYA, Mara Viveros (2008). La sexualizacións de la raza y la racialización de la sexualidad en el contexto latinoamericano actual. In:
Careaga, Gloria. Memorias del 1er. Encuentro Latinoamericano y del Caribe. La sexualidad frente a la sociedad. México, D.F., 2008.
p. 168 – 198. Disponível em: http://www.derechoshumanos.unlp.edu.ar/assets/files/documentos/la-sexualizacion-de-la-raza-y-la-racializa-
cion-de-la-sexualidad.pdf. Acesso em: 07 set. 2021.

244
DIREITO À IGUALDADE E NÃO-DISCRIMINAÇÃO NOS
DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS: ASPECTOS GERAIS

discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes (...)”.40
O SIDH conta com previsão normativa explícita acerca da discriminação interseccional, apreendida pela
categoria jurídica da discriminação múltipla ou agravada:

3. Discriminação múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição


baseada, de modo concomitante, em dois ou mais dos critérios dispostos no Artigo 1.1, ou outros
reconhecidos em instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir
o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos
e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados
Partes, em qualquer área da vida pública ou privada.41

Nas decisões da Corte IDH, a discriminação múltipla tem merecido atenção e reprovação em mais de
uma oportunidade, como registram os casos I.V. Vs. Bolívia (2016), Guzmán Albarracín e outras Vs.
Equador e Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus Vs. Brasil (ambos de 2020);
destaco um exemplo de concretização desta categoria, em julgamento proferido em 2015:

...la discriminación que vivió Talía no sólo fue ocasionada por múltiples factores, sino que derivó en
una forma específica de discriminación que resultó de la intersección de dichos factores, es decir,
si alguno de dichos factores no hubiese existido, la discriminación habría tenido una naturaleza
diferente. […] En suma, el caso de Talía ilustra que la estigmatización relacionada con el VIH no
impacta en forma homogénea a todas las personas y que resultan más graves los impactos en los
grupos que de por sí son marginados.42

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito de igualdade e a proibição de discriminação, como concretizados na contemporaneidade,


foram forjados passo a passo com a afirmação dos direitos humanos na ordem internacional; para tanto,
foram decisivos a derrota dos regimes fascistas e totalitários e as lutas dos movimentos sociais e desco-
loniais no pós II Guerra Mundial.
Nesse contexto, o direito da antidiscriminação ao mesmo tempo brotou e impulsionou os diversos
instrumentos internacionais de direitos humanos. Neste universo, o processo de concretização e
especificação do mandamento geral de igualdade gestou convenções seminais, como a Convenção
sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher e a Convenção Internacional
sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, abrindo portas não só para a formu-
lação dos critérios proibidos de discriminação, como também para as modalidades e a compreensão
das discriminações.

40
CRENSHAW, Kimberlè. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista
de Estudos Feministas, 2002, v.7, n. 12, p. 171-188. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/R4rf3YG4z6ZMhTkLcVQQkPG/?lang=pt.
Acesso em: 25 out. 2022.

OEA. Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Disponível em: ht-
41

tps://www.oas.org/en/sla/dil/docs/inter_american_treaties_A-68_Convencao_Interamericana_racismo_POR.pdf. Acesso em: 03 set. 2021;


OEA. Convenção Interamericana contra toda forma de Discriminação e Intolerância. Artigo 1, item 2. Disponível em: https://www.oas.
org/en/sla/dil/docs/inter_american_treaties_A-69_Convencao_Interamericana_disciminacao_intolerancia_POR.pdf. Acesso em: 03 set.
2021.
42
CORTE INTERAMERICANA DE DIRECHOS HUMANOS. Caso Gonzales Lluy y Otros Vc. Ecuador. Sentença de 1 de setembro de 2015, par.
290. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_298_esp.pdf. Acesso em: 10 jan. 2022.

245
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Nesta trajetória, o SIDH é arena exemplar na construção da igualdade e da não-discriminação no


paradigma dos direitos humanos, contribuição ilustrada, por exemplo, pelo conjunto de definições
e previsões normativas presentes na Convenção Interamericana contra toda forma de discrimi-
nação e intolerância.

246
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

DIREITOS HUMANOS DAS


PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Larissa de Oliveira Elsner

1. INTRODUÇÃO

Segundo relatório do UNDP, publicado em 2018, as pessoas com deficiência representam cerca de
15% da população mundial, correspondendo a 1,5 bilhões de pessoas.1 Desse montante, estima-se que
cerca de 66 milhões de pessoas com deficiência pertencem à população dos países da América Latina
e Caribe, compondo 12% da população total dessa região. 2-3 No Brasil, o último censo demográfico de
2010 identificou que 23,9% da população possui pelo menos um tipo de deficiência, o correspondente
a 45.606.048 milhões de pessoas.4
As informações gerais sobre a população mundial de pessoas com deficiência demonstram a existência
de mais mulheres com deficiência, pois em cada cinco pessoas com deficiência três são mulheres e,
também, que a deficiência é mais comum entre crianças e adultos que vivem em situação de pobreza. 5
A pobreza e a deficiência possuem uma relação bidirecional em que “[...] a deficiência pode aumentar
o risco de pobreza, e a pobreza pode aumentar o risco de deficiência.”6 Essa relação se confirma em
notícia publicada pela ONU em 2015, na qual a relatora Catalina Devandas Aguilar afirmou que “[...]
uma de cada sete pessoas no mundo tem uma deficiência, vivem em grande maioria nos países em


1
UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. Disability Inclusive Development in UNDP: guidance and entry points, 03 Decem-
ber 2018. New York: UNDP, 2018. p. 3. Disponível em: https://www.undp.org/sites/g/files/zskgke326/files/publications/UNDP-Disability-G-
N-Summary-accessible.pdf. Acesso em: 2 maio 2021.
2
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Informe sobre pobreza y derechos humanos em las Américas: OEA/
Ser.L/V/II.164.Doc.147.7 septiembre 2017. Washington, D.C.: CIDH, 2017. p. 145. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/
pobrezaddhh2017.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.
3
Importante referir que os números em relação a população mundial, ainda que expressivos, podem não refletir a totalidade real de pes-
soas com deficiência, pois como destaca a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), estima-se que o número real seja
ainda maior considerando as dificuldades para obtenção de informação, por força das diferenças entre os diversos métodos de censo e de
compilação de estatísticas. COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Informe sobre pobreza y derechos humanos
em las Américas: OEA/Ser.L/V/II.164.Doc.147.7 septiembre 2017. Washington, D.C.: CIDH, 2017. p. 145. Disponível em: http://www.oas.org/es/
cidh/informes/pdfs/pobrezaddhh2017.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.
4
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com De-
ficiência. Cartilha do Censo 2010: pessoas com deficiência. Brasília, DF: 2012. p. 6. Disponível em: http://www.unievangelica.edu.br/novo/
img/nucleo/cartilha-censo-2010-pessoas-com-deficienciareduzido.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.
5
UNPD, UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. Disability Inclusive Development in UNDP: guidance and entry points, 03
December 2018. New York: UNDP, 2018. p. 3. Disponível em: https://www.undp.org/sites/g/files/zskgke326/files/publications/UNDP-Disa-
bility-GN-Summary-accessible.pdf. Acesso em: 2 maio 2021.
6
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE; BANCO MUNDIAL. Relatório sobre a deficiência. São Paulo: SEDPcD, 2012. p. 10. Título original:
World report on disability 2011. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44575/9788564047020_por.pdf?sequen-
ce=4. Acesso em: 14 maio 2021.

247
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

desenvolvimento e mais de 80% das pessoas com deficiência são pobres” 7-8 (tradução nossa). Nessa
mesma linha, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publicitou em Informe sobre a
Pobreza e os Direitos Humanos nas Américas de 2017 que:

[...] ter uma deficiência aumenta a probabilidade de estar em situação de pobreza, devido a que
a discriminação que se deriva de viver com esta condição pode envolver a exclusão social, margi-
nalização, falta de educação, desemprego; além do que todos estes fatores aumentam o risco de
pobreza9.(tradução nossa).

Os índices sobre a pobreza são um dos elementos que justificam a classificação das pessoas com
deficiência enquanto um dos maiores grupos minoritários10 do mundo, tornando-as mais sujeitas às
violações de seus direitos humanos e a tratamentos discriminatórios em comparação às pessoas sem
deficiência. Já os motivos vinculados ao fato de pessoas com deficiência terem maior probabilidade de
viver em situação de pobreza do que as pessoas sem deficiência são as barreiras sociais, como a discri-
minação, o acesso limitado à educação, ao emprego e a falta de inclusão nos meios de subsistência e
outros programas sociais.11
Os dados e informações referidos apontam para a conclusão de que a discriminação está associada à
situação de pobreza, assim como também é condicionante das violações de direitos humanos sofridas
por pessoas com deficiência em todo o mundo, impedindo que essas pessoas exerçam seus direitos
em igualdade com aquelas sem deficiência, visto que o próprio reconhecimento das pessoas com defi-
ciência enquanto sujeito de direitos é algo recente, conforme destaca a CIDH:

Historicamente as pessoas com deficiência têm enfrentado sérios obstáculos físicos e sociais
para exercer plenamente seus direitos. Durante as últimas décadas, se tem registrado avanços
significativos na proteção de direitos desta população, principalmente com a adoção em 2006
da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas (‘CDPD’), que
estabelece uma mudança paradigmática em relação ao tratamento das pessoas com deficiência.
No novo paradigma, as pessoas com deficiência deixam de se ver como ‘meros objetos de
proteção’ para ser tratadas como ‘sujeitos de direitos e obrigações’. Sem dúvidas, a CIDH observa
que, apesar dos avanços significativos a nível internacional, segue existindo uma grande brecha na

7
“[...] una de cada 7 personas en el mundo tiene una discapacidad, viven la gran mayoría en países en vías de desarrollo y más del 80% de
las personas con discapacidad son pobres”. NACIONES UNIDAS. Noticias ONU: mirada global historias humanas. Más del 80 por ciento
de las personas con discapacidad son pobres, advierte relatora de la ONU. Publicado em 9 jun. 2015. Disponível em: https://news.un.org/
es/story/2015/06/1332101. Acesso em: 14 maio. 2021.
8
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Informe sobre pobreza y derechos humanos em las Américas: OEA/
Ser.L/V/II.164.Doc.147.7 septiembre 2017. Washington, D.C.: CIDH, 2017. p. 146. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/
pobrezaddhh2017.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.
9
“[...] tener una discapacidad aumenta la probabilidad de estar en situación de pobreza, debido a que la discriminación que se deriva de
vivir con esta condición puede conllevar a la exclusión social, la marginación, la falta de estudios, el desempleo; además de que todos
estos factores aumentan el riesgo de pobreza”. COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Informe sobre pobreza y
derechos humanos em las Américas: OEA/Ser.L/V/II.164.Doc.147.7 septiembre 2017. Washington, D.C.: CIDH, 2017. p. 147. Disponível em:
http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/pobrezaddhh2017.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.
10
Adota-se o conceito de grupo minoritário ou minoria que “[...] não significa grupos numericamente inferiores dentro da sociedade, mas
grupos com debilidade de poder. Por isso, não é o critério quantitativo que as define e sim critérios qualitativos”. BRAGATO, Fernanda Fri-
zzo. Sobre o Conceito de Minorias: uma análise sobre Racionalidade Moderna, Direitos Humanos e Não-Discriminação. In: STRECK, Lenio
Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson (Orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Mestrado e Doutorado, n. 14. São Leopoldo: Karywa, Unisinos, 2018. p. 52. E-book. Disponível em:
https://editorakarywa.wordpress.com/ 2018/08/15/constituicao-sistemas-sociais-e-hermeneutica-anuario-do-programa-de-pos-gradua-
cao-em-direito-da-unisinos/#more-324. Acesso em: 11 maio 2021.
11
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Departament of Economic and Social Affair. Realization of the Sustainable Development
Goals by, for and with persons with disabilities: UN flagship report on disability and development 2018. [S.l]: UNITED NATIONS, 2018.
p.25. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/CRPD/UN2018FlagshipReportDisability.pdf. Acesso em: 11 maio 2021.

248
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

aplicação efetiva de tais direitos a nível interno, e as pessoas que vivem com esta condição seguem
enfrentando sérios impedimentos no pleno desfrute de seus direitos12. (Tradução nossa).

Por esta breve amostragem de informações globais sobre a realidade vivida pelas pessoas com defi-
ciência, justifica-se a importância de normativas de direitos humanos que servem à proteção específica
deste grupo minoritário, as quais serão aqui analisadas de forma individual, com destaque aos artigos
de lei relacionados à igualdade e a não discriminação.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

2.1.1. Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria


de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protocolo de São Salvador” da Organi-
zação dos Estados Americanos (OEA) de 198813

Artigo 18. Proteção de Deficientes.


Toda pessoa afetada pela diminuição de suas capacidades físicas e mentais tem direito a receber
atenção especial, a fim de alcançar o máximo desenvolvimento de sua personalidade. Os Estados-
-Partes comprometem-se a adotar as medidas necessárias para esse fim e, especialmente, a:
a) executar programas específicos destinados a proporcionar aos deficientes os recursos e o ambiente
necessário para alcançar esse objetivo, inclusive programas de trabalho adequados a suas possibilidades
e que deverão ser livremente aceitos por eles ou, quando for o caso, por seus representantes legais;
b) proporcionar formação especial aos familiares dos deficientes, a fim de ajudá-los a resolver os
problemas de convivência e a convertê-los em elementos atuantes do desenvolvimento físico, mental
e emocional dos deficientes;
c) incluir, de maneira prioritária, em seus planos de desenvolvimento urbano a consideração de solu-
ções para os requisitos específicos decorrentes das necessidades desse grupo;
d) promover a formação de organizações sociais nas quais os deficientes possam desen-
volver uma vida plena.


12
“Históricamente las personas con discapacidad han enfrentado serios obstáculos físicos y sociales para ejercer plenamente sus derechos.
Durante las últimas décadas, se han registrado avances significativos en la protección de los derechos de esta población, principalmente
con la adopción en 2006 de la Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad de las Naciones Unidas (“CDPD”), que
establece un cambio de paradigma en relación con el tratamiento de las personas con discapacidad. En el nuevo paradigma, las personas
con discapacidad dejan de verse como “meros objetos de protección” para ser tratadas como “sujetos de derechos y obligaciones”. Sin
embargo, la CIDH observa que, a pesar de los avances significativos a nivel internacional, sigue existiendo una gran brecha en la aplicación
efectiva de tales derechos a nivel interno, y las personas que viven con esta condición siguen enfrentando serios impedimentos en el ple-
no disfrute de sus derechos”. COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Informe sobre pobreza y derechos humanos
em las Américas: OEA/Ser.L/V/II.164.Doc.147.7 septiembre 2017. Washington, D.C.: CIDH, 2017. p. 145-146. Disponível em: http://www.oas.
org/es/cidh/informes/pdfs/pobrezaddhh2017.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.
13
O Protocolo de São Salvador foi ratificado pelo Brasil e integrado ao ordenamento jurídico pelo Decreto n. 3.321/1999. BRASIL. Decreto
n. 3.321, de 30 de dezembro de 1999. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador”, concluído em 17 de novembro de 1988, em São Salvador, El Salvador.
Brasília, DF: Presidência da República, 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3321.htm. Acesso em: 7 jun. 2021.

249
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Artigo 6. Direito ao Trabalho.


1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, o que inclui a oportunidade de obter os meios para levar uma
vida digna e decorosa através do desempenho de atividade lícita, livremente escolhida ou aceita.
2. Os Estados-Partes comprometem-se a adotar medidas que garantam plena efetividade do direito ao
trabalho, especialmente as referentes à consecução do pleno emprego, à orientação vocacional e ao
desenvolvimento de projetos de treinamento técnico-profissional, particularmente os destinados aos
deficientes. [...].
Artigo 13. Direito à Educação.
1. Toda pessoa tem direito à educação.
2. Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno
desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o
respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça
e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de participar
efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de conseguir uma subsistência digna; bem
como favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos
raciais, étnicos ou religiosos, e promover as atividades em prol da manutenção da paz.
3. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito
à educação: [...] e) deverão ser estabelecidos programas de ensino diferenciados para os deficientes,
a fim de proporcionar instrução especial e formação a pessoas com impedimentos físicos ou defi-
ciência mental. [...].

2.1.2. Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discri-


minação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência ou Convenção da Guate-
mala da OEA de 199914

Artigo I
Para os efeitos desta Convenção, entende-se por:
1. Deficiência.
O termo “deficiência” significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou
transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada
ou agravada pelo ambiente econômico e social.
2. Discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência.
a) o termo “discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência” significa toda diferenciação,
exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência
anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir
ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus
direitos humanos e suas liberdades fundamentais.


14
A Convenção da Guatemala foi ratificada pelo Brasil e integra o ordenamento jurídico pelo Decreto n. 3.956/2001. BRASIL. Decreto n.
3.956, de 8 de outubro de 2001.Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília; Presidência da República, 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/2001/D3956.htm. Acesso em: 7 jun. 2021.

250
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

b) Não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo Estado Parte para promover
a integração social ou o desenvolvimento pessoal dos portadores de deficiência, desde que a diferen-
ciação ou preferência não limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam
obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência. Nos casos em que a legislação interna preveja a
declaração de interdição, quando for necessária e apropriada para o seu bem-estar, esta não consti-
tuirá discriminação.
Artigo II
Esta Convenção tem por objetivo prevenir e eliminar todas as formas de discriminação contra as
pessoas portadoras de deficiência e propiciar a sua plena integração à sociedade.
Artigo III
Para alcançar os objetivos desta Convenção, os Estados Partes comprometem-se a:
1. Tomar as medidas de caráter legislativo, social, educacional, trabalhista, ou de qualquer outra natu-
reza, que sejam necessárias para eliminar a discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência
e proporcionar a sua plena integração à sociedade, entre as quais as medidas abaixo enumeradas, que
não devem ser consideradas exclusivas: a) medidas das autoridades governamentais e/ou entidades
privadas para eliminar progressivamente a discriminação e promover a integração na prestação ou
fornecimento de bens, serviços, instalações, programas e atividades, tais como o emprego, o trans-
porte, as comunicações, a habitação, o lazer, a educação, o esporte, o acesso à justiça e aos serviços
policiais e as atividades políticas e de administração; b) medidas para que os edifícios, os veículos e
as instalações que venham a ser construídos ou fabricados em seus respectivos territórios facilitem o
transporte, a comunicação e o acesso das pessoas portadoras de deficiência; c) medidas para eliminar,
na medida do possível, os obstáculos arquitetônicos, de transporte e comunicações que existam, com
a finalidade de facilitar o acesso e uso por parte das pessoas portadoras de deficiência; e d) medidas
para assegurar que as pessoas encarregadas de aplicar esta Convenção e a legislação interna sobre esta
matéria estejam capacitadas a fazê-lo.
2. Trabalhar prioritariamente nas seguintes áreas: a) prevenção de todas as formas de deficiência preve-
níveis; b) detecção e intervenção precoce, tratamento, reabilitação, educação, formação ocupacional
e prestação de serviços completos para garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida
para as pessoas portadoras de deficiência; e c) sensibilização da população, por meio de campanhas
de educação, destinadas a eliminar preconceitos, estereótipos e outras atitudes que atentam contra o
direito das pessoas a serem iguais, permitindo desta forma o respeito e a convivência com as pessoas
portadoras de deficiência.
Artigo IV
Para alcançar os objetivos desta Convenção, os Estados Partes comprometem-se a: 1. Cooperar
entre si a fim de contribuir para a prevenção e eliminação da discriminação contra as pessoas porta-
doras de deficiência.
2. Colaborar de forma efetiva no seguinte: a) pesquisa científica e tecnológica relacionada com a
prevenção das deficiências, o tratamento, a reabilitação e a integração na sociedade de pessoas porta-
doras de deficiência; e. b) desenvolvimento de meios e recursos destinados a facilitar ou promover a
vida independente, a auto-suficiência e a integração total, em condições de igualdade, à sociedade das
pessoas portadoras de deficiência.

Artigo V

251
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

1. Os Estados Partes promoverão, na medida em que isto for coerente com as suas respectivas legisla-
ções nacionais, a participação de representantes de organizações de pessoas portadoras de deficiência,
de organizações não-governamentais que trabalham nessa área ou, se essas organizações não exis-
tirem, de pessoas portadoras de deficiência, na elaboração, execução e avaliação de medidas e políticas
para aplicar esta Convenção.
2. Os Estados Partes criarão canais de comunicação eficazes que permitam difundir entre as organiza-
ções públicas e privadas que trabalham com pessoas portadoras de deficiência os avanços normativos
e jurídicos ocorridos para a eliminação da discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência.

2.1.3. Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)


da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2006 e seu Protocolo Facultativo de
Nova Iorque de 200715

Artigo 1. Propósito.
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover
o respeito pela sua dignidade inerente.
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação
plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.
Artigo 2. Definições.
Para os propósitos da presente Convenção:
“Comunicação” abrange as línguas, a visualização de textos, o braille, a comunicação tátil, os caracteres
ampliados, os dispositivos de multimídia acessível, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os
sistemas auditivos e os meios de voz digitalizada e os modos, meios e formatos aumentativos e alterna-
tivos de comunicação, inclusive a tecnologia da informação e comunicação acessíveis;
“Língua” abrange as línguas faladas e de sinais e outras formas de comunicação não-falada; “Discri-
minação por motivo de deficiência” significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada
em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute
ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos
e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro.
Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;
“Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem
ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas
com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais; “Desenho universal” significa a concepção de
produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as
pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico. O “desenho universal” não excluirá as
ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias.


15
Este tratado foi promulgado no Brasil por meio do Decreto n° 6.494, de 25 de agosto de 2009, e lhe foi conferido status de emenda cons-
titucional, por ter sido aprovado com o quórum qualificado previsto no §3º do art. 5º da Constituição da República de 1988, por meio do
Decreto Legislativo n. 186/ 2008. BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Di-
reitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, DF: Presidência
da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9522.htm#:~:text=DECRETO%20
N%C2%BA%209.522%2C%20DE%208,27%20de%20junho%20de%202013. Acesso em: 29 ago. 2021.

252
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Artigo 3. Princípios gerais.


Os princípios da presente Convenção são:
a) O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias
escolhas, e a independência das pessoas;
b) A não-discriminação;
c) A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;
d) O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade
humana e da humanidade;
e) A igualdade de oportunidades;
f) A acessibilidade;
g) A igualdade entre o homem e a mulher;
h) O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das
crianças com deficiência de preservar sua identidade.
Artigo 4. Obrigações gerais.
1. Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discri-
minação por causa de sua deficiência. Para tanto, os Estados Partes se comprometem a:
a) Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a
realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção;
b) Adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regula-
mentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência;
c) Levar em conta, em todos os programas e políticas, a proteção e a promoção dos direitos humanos
das pessoas com deficiência;
d) Abster-se de participar em qualquer ato ou prática incompatível com a presente Convenção e asse-
gurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com a presente Convenção;
e) Tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada em deficiência, por parte
de qualquer pessoa, organização ou empresa privada;
f) Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços, equipamentos e insta-
lações com desenho universal, conforme definidos no Artigo 2 da presente Convenção, que exijam o
mínimo possível de adaptação e cujo custo seja o mínimo possível, destinados a atender às necessi-
dades específicas de pessoas com deficiência, a promover sua disponibilidade e seu uso e a promover
o desenho universal quando da elaboração de normas e diretrizes;
g) Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento, bem como a disponibilidade e o emprego de
novas tecnologias, inclusive as tecnologias da informação e comunicação, ajudas técnicas para loco-
moção, dispositivos e tecnologias assistivas, adequados a pessoas com deficiência, dando prioridade a
tecnologias de custo acessível;
h) Propiciar informação acessível para as pessoas com deficiência a respeito de ajudas técnicas para
locomoção, dispositivos e tecnologias assistivas, incluindo novas tecnologias bem como outras formas
de assistência, serviços de apoio e instalações;

253
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

i) Promover a capacitação em relação aos direitos reconhecidos pela presente Convenção dos profis-
sionais e equipes que trabalham com pessoas com deficiência, de forma a melhorar a prestação de
assistência e serviços garantidos por esses direitos.
2. Em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais, cada Estado Parte se compromete a tomar
medidas, tanto quanto permitirem os recursos disponíveis e, quando necessário, no âmbito da coope-
ração internacional, a fim de assegurar progressivamente o pleno exercício desses direitos, sem prejuízo
das obrigações contidas na presente Convenção que forem imediatamente aplicáveis de acordo com
o direito internacional.
3. Na elaboração e implementação de legislação e políticas para aplicar a presente Convenção e em
outros processos de tomada de decisão relativos às pessoas com deficiência, os Estados Partes reali-
zarão consultas estreitas e envolverão ativamente pessoas com deficiência, inclusive crianças com
deficiência, por intermédio de suas organizações representativas.
4. Nenhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer disposições mais propícias à reali-
zação dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado
Parte ou no direito internacional em vigor para esse Estado. Não haverá nenhuma restrição ou derro-
gação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em
qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos
ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou
que os reconhece em menor grau.
5. As disposições da presente Convenção se aplicam, sem limitação ou exceção, a todas as unidades
constitutivas dos Estados federativos.
Artigo 5. Igualdade e não-discriminação.
1. Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus,
sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei.
2. Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas
com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo.
3. A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados Partes adotarão todas as
medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida.
4. Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou
alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias.
Artigo 6. Mulheres com deficiência.
1. Os Estados Partes reconhecem que as mulheres e meninas com deficiência estão sujeitas a múltiplas
formas de discriminação e, portanto, tomarão medidas para assegurar às mulheres e meninas com
deficiência o pleno e igual exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.
2. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar o pleno desenvolvimento,
o avanço e o empoderamento das mulheres, a fim de garantir-lhes o exercício e o gozo dos direitos
humanos e liberdades fundamentais estabelecidos na presente Convenção.
Artigo 7. Crianças com deficiência.
1. Os Estados Partes tomarão todas as medidas necessárias para assegurar às crianças com deficiência
o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, em igualdade de oportuni-
dades com as demais crianças.

254
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

2. Em todas as ações relativas às crianças com deficiência, o superior interesse da criança receberá
consideração primordial.
3. Os Estados Partes assegurarão que as crianças com deficiência tenham o direito de expressar livre-
mente sua opinião sobre todos os assuntos que lhes disserem respeito, tenham a sua opinião devi-
damente valorizada de acordo com sua idade e maturidade, em igualdade de oportunidades com
as demais crianças, e recebam atendimento adequado à sua deficiência e idade, para que possam
exercer tal direito.
Artigo 8. Conscientização.
1. Os Estados Partes se comprometem a adotar medidas imediatas, efetivas e apropriadas para:
a) Conscientizar toda a sociedade, inclusive as famílias, sobre as condições das pessoas com deficiência
e fomentar o respeito pelos direitos e pela dignidade das pessoas com deficiência;
b) Combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas em relação a pessoas com deficiência, inclu-
sive aqueles relacionados a sexo e idade, em todas as áreas da vida;
c) Promover a conscientização sobre as capacidades e contribuições das pessoas com deficiência.
2. As medidas para esse fim incluem:
a) Lançar e dar continuidade a efetivas campanhas de conscientização públicas, destinadas a:
i) Favorecer atitude receptiva em relação aos direitos das pessoas com deficiência;
ii) Promover percepção positiva e maior consciência social em relação às pessoas com deficiência;
iii) Promover o reconhecimento das habilidades, dos méritos e das capacidades das pessoas com defi-
ciência e de sua contribuição ao local de trabalho e ao mercado laboral;
b) Fomentar em todos os níveis do sistema educacional, incluindo neles todas as crianças desde tenra
idade, uma atitude de respeito para com os direitos das pessoas com deficiência;
c) Incentivar todos os órgãos da mídia a retratar as pessoas com deficiência de maneira compatível com
o propósito da presente Convenção;
d) Promover programas de formação sobre sensibilização a respeito das pessoas com deficiência e
sobre os direitos das pessoas com deficiência.
Artigo 12. Reconhecimento igual perante a lei.
1. Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm o direito de ser reconhecidas em
qualquer lugar como pessoas perante a lei.
2. Os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em
igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.
3. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao
apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.
4. Os Estados Partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam
salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional
dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capa-
cidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de
interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se
apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou

255
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau


em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa.
5. Os Estados Partes, sujeitos ao disposto neste Artigo, tomarão todas as medidas apropriadas e efetivas
para assegurar às pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar
as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de
crédito financeiro, e assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente desti-
tuídas de seus bens.
Artigo 13. Acesso à justiça.
1. Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das pessoas com deficiência à justiça, em igualdade de
condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais adequadas
à idade, a fim de facilitar o efetivo papel das pessoas com deficiência como participantes diretos ou
indiretos, inclusive como testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigações
e outras etapas preliminares.
2. A fim de assegurar às pessoas com deficiência o efetivo acesso à justiça, os Estados Partes promo-
verão a capacitação apropriada daqueles que trabalham na área de administração da justiça, inclusive a
polícia e os funcionários do sistema penitenciário.
Artigo 19. Vida independente e inclusão na comunidade.
Os Estados Partes desta Convenção reconhecem o igual direito de todas as pessoas com deficiência de
viver na comunidade, com a mesma liberdade de escolha que as demais pessoas, e tomarão medidas
efetivas e apropriadas para facilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo desse direito e sua plena
inclusão e participação na comunidade, inclusive assegurando que:
a) As pessoas com deficiência possam escolher seu local de residência e onde e com quem morar, em
igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e que não sejam obrigadas a viver em determi-
nado tipo de moradia; [...].

2.1.4. Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas


Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto
Impresso da Organização das Nações Unidas (ONU) de 201316

Artigo 3º. Beneficiários.


Será beneficiário toda pessoa:
a) cega;
b) que tenha deficiência visual ou outra deficiência de percepção ou de leitura que não possa ser corri-
gida para se obter uma acuidade visual substancialmente equivalente à de uma pessoa que não tenha
esse tipo de deficiência ou dificuldade, e para quem é impossível ler material impresso de uma forma
substancialmente equivalente à de uma pessoa sem deficiência ou dificuldade; ou


16
Este tratado foi promulgado no Brasil por meio do Decreto n° 9.522, de 8 de outubro de 2018, e lhe foi conferido status de emenda cons-
titucional, por ter sido aprovado com o quórum qualificado previsto no §3º do art. 5º da Constituição da República de 1988, por meio do
Decreto Legislativo nº 261/2015. BRASIL. Decreto nº 9.522, de 8 de outubro de 2018. Promulga o Tratado de Marraqueche para Facilitar
o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso,
firmado em Marraqueche, em 27 de junho de 2013. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ ato2015-2018/2018/decreto/D9522.htm. Acesso em: 29 ago. 2021.

256
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

c) que esteja, impossibilitada, de qualquer outra maneira, devido a uma deficiência física, de sustentar
ou manipular um livro ou focar ou mover os olhos da forma que normalmente seria apropriado para a
leitura; independentemente de quaisquer outras deficiências.

3. AS INFLUÊNCIAS DAS CONCEPÇÕES DA DEFICIÊNCIA NAS


NORMATIVAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

As normativas internacionais supracitadas, ainda que abordem a proteção dos direitos das pessoas com
deficiência como ponto em comum, foram moldadas pela influência de concepções distintas sobre o
que é uma pessoa com deficiência. A própria terminologia adotada em cada uma delas confirma uma
modificação do modelo teórico que sustentou o conteúdo e a forma como os direitos foram reconhe-
cidos e garantidos às pessoas com deficiência. A indefinição do conceito da deficiência está na origem
das concepções diversas que sustentam esses instrumentos internacionais:

A deficiência é um conceito complexo, pois não é formado por uma base fixa, simples e muito
menos constituída por saberes de um único campo do conhecimento. Trata-se de um conceito
mutável, que sofre influências relativa à forma como as sociedades se organizam com o passar da
história, principalmente acerca da maneira como a estrutura social lida com a diferença.17

Há, pelo menos, dois modelos teóricos para entender a deficiência e que influenciaram diretamente
a estrutura das normativas do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), a saber: o modelo
biomédico e o modelo social da deficiência.
O modelo biomédico ou individual da deficiência18 foi fundamentado nas áreas da biologia e medicina e
representou o pensamento hegemônico sobre a deficiência até meados de 1960.19 Para essa concepção
teórica, a pessoa com deficiência é alguém doente que deve receber tratamento médico, com o intuito
de atingir um padrão de normalidade conferido às pessoas sem deficiência. O corpo é individualizado
e a deficiência é entendida como algo privado, de responsabilidade do indivíduo e de sua família. Pela
concepção do modelo biomédico, o Estado fica isento do dever de promover medidas que garantam
o exercício de direitos pelas pessoas com deficiência, visto que elas tampouco são consideradas como
sujeitos de direitos. 20
A influência do modelo biomédico pode ser observada no Protocolo de San Salvador de 1988, que foi
o primeiro instrumento jurídico internacional vinculante que reconheceu expressamente os direitos


17
ELSNER, Larissa de Oliveira. Deficiência, Discriminação e Lei de Cotas: as Barreiras ao Exercício do Direito ao Trabalho pela Perspectiva
do Pensamento Descolonial. In: BEN, Gustavo Vinícius; ELSNER, Larissa de Oliveira; COSTA, Vitória Volcato da. Pesquisa Científica e
Concretização de Direitos. Porto Alegre: Editora Fi, 2021. p. 205. Disponível em: https://www.editorafi.com/187direitos. Acesso em: 26 set.
2021.
18
MARTINS, Bruno Sena; FONTES, Fernando; HESPANHA, Pedro; BERG, Aleksandra. Deficiência, conhecimento e transformação social. In:
MARTINS, Bruno Sena; FONTES, Fernando. Deficiência e emancipação social: Para uma crise da normalidade. Coimbra: Almedina, 2016.
p.42.
19
MARTINS, Bruno Sena. Deficiência e a biomedicina: o corpo e as lutas pelo sentido. In: MORAES, Marcia; MARTINS, Bruno Sena; FONTES,
Fernando; MASCARENHAS, Luiza Teles. Deficiência em questão: para uma crise da normalidade. Rio de Janeiro: Nau, 2017. p.33.
20
FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. A proteção jurídica da pessoa com deficiência como uma questão de direitos huma-
nos. In: FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. (coord.). Direito à diversidade. São Paulo: Atlas, 2015, p.95.

257
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

das pessoas com deficiência. 21 Este Protocolo faz referência expressa às pessoas com deficiência nos
artigos 6, 13 e 18, sendo evidente a concepção do modelo biomédico da deficiência em dois deles. O
artigo 6 não é um exemplo explícito de adoção do modelo biomédico, uma vez que afirma ser direito de
todas as pessoas a oportunidade de trabalhar e obter meio de ter uma vida digna, ressaltando, no ponto
II, o dever dos Estados Partes em garantir a plena efetividade do direito ao trabalho, especialmente
às pessoas com deficiência. Da leitura do texto nota-se o reconhecimento da pessoa com deficiência
enquanto sujeito de direito, sendo o Estado responsável por assegurar a efetividade de tal direito.
Porém, o artigo 13, que trata do direito à educação, prevê medidas assistencialistas e preceitos segre-
gacionistas inerentes ao modelo biomédico da deficiência. Isso fica expresso no ponto 3, alínea ‘e’, que
ao referir o dever dos Estados Partes em assegurar o pleno exercício do direito à educação, destina
às pessoas com deficiência a promoção de programas de ensino diferenciados a fim de proporcionar
instrução especial. Essa proposta afasta-se, inclusive, do entendimento internacional da época, em que
os especialistas já defendiam uma educação integrada como forma de combater a exclusão social. 22
No artigo 18, de título Protección de los Minusválidos23 – traduzido para o português como Proteção dos
Deficientes – também se verifica a adoção do modelo biomédico na previsão de instrumentos assisten-
cialistas adotados pelos Estados Partes. 24 Isto se observa no disposto na alínea ‘b’, em que o compro-
misso de proporcionar formação especial aos familiares de pessoas com deficiência cumpriria com o
objetivo de ajuda promovida pelo Estado aos familiares, para que eles pudessem resolver problemas
de convivência com as pessoas com deficiência de seu convívio. A noção da deficiência enquanto um
problema social, bem como a posição do Estado como prestador de ajuda – e não enquanto respon-
sável – para que a família lide com seu familiar com deficiência, são dois elementos condizentes com a
noção da deficiência preconizada pelo modelo biomédico. Soma-se a isso, a ausência de uma referência
expressa aos direitos à igualdade de oportunidade e não discriminação, fazendo com que o Protocolo
de San Salvador fosse visto, neste ponto, como um instrumento anacrônico. 25
O Protocolo de San Salvador abriu espaço à discussão dos direitos das pessoas com deficiência no
Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), que avançou com a aprovação da Convenção
Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de
Deficiência (Convenção da Guatemala). Tal Convenção foi o primeiro instrumento internacional espe-
cífico para a proteção e promoção dos direitos humanos das pessoas com deficiência, reconhecen-
do-as enquanto sujeitos com igualdade de direitos, liberdades fundamentais e dignidade inerentes a


21
Importante destacar que na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), o principal instrumento normativo do Sistema
Interamericano, não há uma referência explícita às pessoas com deficiência. BREGAGLIO LAZARTE, Renata. La incorporación de la dis-
capacidad en el sistema interamericano. principales regulaciones y estándares post-convención. In: BELTRÃO, Jane Felipe et al. (org.).
Derechos Humanos de los Grupos Vulnerables: Manual. Barcelona: Red derechos humanos y educación superior (DHES), 2014. p. 114.
E-book. Disponível em: http://poblacion-indigena.iniciativa2025alc.org/wp-content/uploads/2017/04/98_DHGV_Manual.pdf. Acesso em:
7 jun. 2021..
22
PORTERO, Israel Biel. La Discapacidad en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Revista Jurídica UCA LAW REVIEW da Uni-
versidad Católica Nuestra Señora de la Asunción, Paraguai, p. 707-732, 2017. Disponível em: https://www.pj.gov.py/ebook/monografias/
extranjero/derechos-humanos/Israel-Biel-Portero-Discapacidad-Sistema-Interamericano-DDHH.pdf. Acesso em: 7 jun. 2021.
23
PORTERO, Israel Biel. La Discapacidad en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Revista Jurídica UCA LAW REVIEW da Uni-
versidad Católica Nuestra Señora de la Asunción, Paraguai, p. 707-732, 2017. Disponível em: https://www.pj.gov.py/ebook/monografias/
extranjero/derechos-humanos/Israel-Biel-Portero-Discapacidad-Sistema-Interamericano-DDHH.pdf. Acesso em: 7 jun. 2021.
24
PORTERO, Israel Biel. La Discapacidad en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Revista Jurídica UCA LAW REVIEW da Uni-
versidad Católica Nuestra Señora de la Asunción, Paraguai, p. 707-732, 2017. Disponível em: https://www.pj.gov.py/ebook/monografias/
extranjero/derechos-humanos/Israel-Biel-Portero-Discapacidad-Sistema-Interamericano-DDHH.pdf. Acesso em: 7 jun. 2021.
25
PORTERO, Israel Biel. La Discapacidad en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. Revista Jurídica UCA LAW REVIEW da
Universidad Católica Nuestra Señora de la Asunción, Paraguai, p. 707-732, 2017. p. 10. Disponível em: https://www.pj.gov.py/ebook/mo-
nografias/extranjero/derechos-humanos/Israel-Biel-Portero-Discapacidad-Sistema-Interamericano-DDHH.pdf. Acesso em: 7 jun. 2021.

258
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

todo ser humano. 26 Ela é formada por catorze artigos, nos quais são previstos conceitos, compromissos
dos Estados Partes e direitos resguardados às pessoas com deficiência.
Ainda que não estejam em conformidade com as normativas mais atuais, os conceitos e terminologias
desta Convenção não perderam sua relevância, pois seguem sendo aplicados pelo SIDH com as devidas
adequações. Esse é o caso da terminologia ‘pessoa portadora de deficiência’ que foi superada atual-
mente, visto que o verbo portar remete a uma ideia equivocada de algo que a pessoa pode escolher
não mais carregar. 27
Contudo, são outras definições que carregam com mais evidência os fundamentos do modelo biomé-
dico da deficiência, sendo eles: o conceito de deficiência do artigo I e o objetivo de promover a inte-
gração disposto no artigo II. A Convenção da Guatemala define deficiência como uma restrição do tipo
física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, sendo ela o principal fator que limita a
capacidade da pessoa de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, podendo ser causada
ou agravada pelo ambiente econômico e social. 28 A percepção biomédica da deficiência fica ressal-
tada nessa definição, pelo destaque conferido à restrição – inerente ao corpo com deficiência – que é
compreendida como a causa da limitação para o exercício das atividades da vida comum. Em relação
ao artigo II, os elementos que sustentam o conceito de integração à sociedade também condizem com
a concepção biomédica da deficiência, já que propugna a mudança do sujeito com deficiência para
que ele se adapte ao meio social. 29 Essa concepção não é compatível com a de inclusão social, 30 que
objetiva, ao contrário, a adaptação do meio para que todos possam exercer seus direitos em igualdade
de oportunidade. O conceito de inclusão social foi incorporado a partir de 2006, com a CDPD da ONU.
A CDPD foi adotada pela Assembleia Geral n. 61/106 da ONU, em 13 de dezembro de 2006, e entrou em
vigor no dia 3 de maio de 2008. 31 A CDPD contém cinquenta artigos, mais os dezoito que integram o seu
protocolo facultativo, nos quais estão previstos conceitos, princípios, direitos garantidos e obrigações
dos Estados Partes. A CDPD foi o primeiro tratado de direitos humanos do século XXI32-33 e tem o mérito

26
BRASIL. Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001.Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília; Presidência da República, 2001. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3956.htm. Acesso em: 7 jun. 2021.
27
ARAÚJO, Luiz Alberto David. A Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e seus reflexos na ordem jurídica interna no Brasil.
In: FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, George Salomão; LEITE, Glauber Salomão; LEITE, Glauco Salomão (coord.). Manual dos direitos
das pessoas com deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012, p.55.
28
BRASIL. Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001. Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília; Presidência da República, 2001. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3956.htm. Acesso em: 7 jun. 2021.
29
BARBOSA-FOHRMANN; Ana Paula. Os modelos médico e social de deficiência a partir dos significados de segregação e inclusão nos
discursos de Michel Foucault e de Martha Nussbaum. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v.2, n.2, 2016, p.738. Disponível em:
https://estudosinstitucionais.com/REI/ article/view/76. Acesso em: 14 jun. 2021.
30
O conceito de inclusão social é definido enquanto “ [...] um processo bilateral no qual as pessoas ainda excluídas, e a sociedade buscam,
em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos”. SASSAKI, Romeu
Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 8 ed. Rio de Janeiro: WVA, 2010, p.39.


31
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad y su concepción como cuestón de derechos humanos. Revista Colombiana
de Ciencias Sociales, Medelín, v. 6, n.1, p. 14-18, jan.- jun., 2017. p.15. Disponível em: https://revistas.ucatolicaluisamigo.edu.co/index.php/
RCCS/article/view/2190. Acesso em: 10 fev. 2020.
32
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad y su concepción como cuestón de derechos humanos. Revista Colombiana
de Ciencias Sociales, Medelín, v. 6, n.1, p. 14-18, jan.- jun., 2017. p.15. Disponível em: https://revistas.ucatolicaluisamigo.edu.co/index.php/
RCCS/article/view/2190. Acesso em: 10 fev. 2020..
33
MEEKOSHA, Helen; SOLDATIC, Karen. Human rights and the global south: the case of disability. Third World Quartely Journal, [s.l], v.
32, n. 8, p. 1383-1398, 2011. p. 1384. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/01436597.2011.614800. Acesso em: 10 fev.
2020.

259
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

de implementar no plano jurídico internacional os princípios e conceitos advindos do modelo social


da deficiência.
O modelo social da deficiência tem origem na década de 1960, 34 na Inglaterra, em que foram publi-
cados os primeiros estudos sobre a deficiência por uma perspectiva social. Eles foram elaborados por
estudiosos com deficiência, em sua maioria, homens, da área da sociologia, com deficiência física. Paul
Hunt, por exemplo, foi responsável pela criação da Union of the Physically Impaired Against Segre-
gation (UPIAS), a primeira organização política sobre a deficiência formada e gerenciada por pessoas
com deficiência. 35
O propósito desta primeira geração do modelo social foi o de afastar a hegemonia da concepção biomé-
dica da deficiência e de destacar o papel opressor da estrutura social para as pessoas com deficiência.
Ou seja, não se tratava de negar a lesão do corpo, mas sim retirar dela a causa da desvantagem econô-
mica e social das pessoas com deficiência. 36 O modelo social da deficiência também sofreu influência
da Teoria Feminista e dos Estudos pós-modernos em meados de 1990 e 2000, que ficou conhecida
como a segunda geração desse modelo. 37 Essa fase contribuiu para a reavaliação dos conceitos estrutu-
rados na primeira geração e proporcionou “[...] um processo de revigoramento e expansão do modelo
social, e não uma crítica externa e opositora.”38 A CDPD é resultado das construções teóricas advindas
desse modelo que se estruturou a partir dos estudos e contribuições de pessoas com deficiência.
A definição da expressão “pessoa com deficiência” é um exemplo de aplicação prática dos preceitos do
modelo social. Isto porque, com a abertura para a participação de Organizações Não Governamentais
(ONGs) representativas das pessoas com deficiência no processo de redação da CDPD, elas puderam
participar ativamente tanto na escolha da nomenclatura presente na CDPD, como na elaboração
dos preceitos inseridos nesse documento. Sendo assim, o princípio básico da luta do movimento de
‘nothing about us, withouth us’,39-40 cuja tradução literal é ‘nada sobre nós, sem nós’, foi colocado em
prática durante o processo de elaboração da CDPD, exaltando o profundo significado do princípio
de promover uma “[...] radical ruptura com as políticas de cunho tutelar e assistencialistas, que impu-
nham às pessoas com deficiência a condição de coadjuvantes em todas as questões que lhe diziam
respeito diretamente.”41

34
MARTINS, Bruno Sena. Deficiência, política e direitos sociais. JURIS – Revista da faculdade de direito FURG, Rio Grande, v.26, p.167-187,
2016. p. 174. Disponível em: https://siposg.furg.br/selecao/download/775/Martins2016_Deficiencia.pdf. Acesso em: 22 jan. 2020
35
DINIZ, Debora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2012. p.15.
36
BARNES, Colin. Disabilities studies: new or not so new directions? Disability & Society, [s. l.], v. 14, n. 4, p. 577–580, 1999. Disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09687599926136. Acesso em: 30 set. 2021.
37
DINIZ, Debora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.56.
38
DINIZ, Debora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.60.
39
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem. In: FERRAZ, Caro-
lina Valença; LEITE, George Salomão; LEITE, Glauber Salomão; LEITE, Glauco Salomão (coord.). Manual dos direitos das pessoas com
deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012, p.22-23.
40
GARCÍA, Rafael de Lorenzo; PALACIOS, Agustina. La convención internacional sobre los derechos de las personas con discapacidad: ba-
lance de una década de vigência. In: BUENO, Luis Cayos Pérez; LORENZO, Rafael de. La convención internacional sobre los derechos
de las personas con discapacidad- 2006-2016: una década de vigência. Madrid: CERMI, 2016, p.14-18. Disponível em: https://www.cermi.
es/es/colecciones/la-convenci%C3%B3n-internacional-sobre-los-derechos-de-las-personas-con-discapacidad-2006. Acesso em: 30 set.
2021.


41
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem. In: FERRAZ, Caro-
lina Valença; LEITE, George Salomão; LEITE, Glauber Salomão; LEITE, Glauco Salomão (coord.). Manual dos direitos das pessoas com
deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012, p.22-23.

260
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Seguindo o propósito de “[...] promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o
respeito pela sua dignidade inerente,”42 a CDPD salienta o reconhecimento da pessoa com deficiência
enquanto sujeito de direitos com igual dignidade em relação às pessoas sem deficiência. Além disso,
institui a seguinte definição de pessoas com deficiência como aquelas que têm “[...] impedimentos de
longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas
barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições
com as demais pessoas.”43 Nesse conceito, dá-se ênfase à palavra interação que esclarece como o impe-
dimento associado às diversas barreiras podem resultar na obstrução da participação plena e exercício
de direitos pelas pessoas com deficiência.
Um exemplo de aplicação do modelo social da deficiência, a partir das normativas analisadas, é o caso
Ximenes Lopes vs. Brasil,44 julgado pela Corte IDH. Esse caso tinha como vítima Damião Ximenes Lopes,
um homem com deficiência mental. Portanto, ao julgar o caso, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (Corte IDH) reservou um tópico em sua sentença para abordar a perspectiva dos direitos das
pessoas com deficiência, considerando a definição de deficiência presente no artigo 1.I, e mencionando
também, o conteúdo previsto na CDPD, a fim de pontuar a adoção do modelo social da deficiência.
Segundo a Corte, “[...] a deficiência não se define exclusivamente pela presença de uma deficiência
física, mental, intelectual ou sensorial, mas que inter-relaciona com as barreiras ou limitações que
socialmente existem para que as pessoas possam exercer seus direitos de maneira efetiva”45 (tradução
nossa). A adesão ao modelo social da deficiência e a referência à CDPD confirmam que o SIDH tem
adequado a sua normativa aos preceitos firmados por esse modelo, representando um rompimento
com o paradigma biomédico da deficiência.
Em recente decisão da Corte IDH, publicada em 26 de março de 2021, no Caso Guachalá Chimbo
e outros vs. Equador, 46 o Estado foi responsabilizado pela violação dos direitos do reconhecimento
da personalidade jurídica, vida, integridade, liberdade pessoal, dignidade, vida privada, acesso à
informação, igualdade ante a lei de saúde, em conformidade com os artigos3, 4, 5, 7, 11, 13, 24 e 26 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com as obrigações de respeitar e garantir
os direitos sem discriminação, o mesmo se identifica em relação a aplicação dos preceitos do modelo
social da deficiência.
Os fatos relacionados a esse caso ocorreram em 2004, diante do desaparecimento de Luis Eduardo
Guachalá Chimbo, homem com deficiência mental, que estava internado em um hospital psiquiátrico
público na cidade de Quito. Ao analisar o conteúdo fático, a Corte IDH concluiu que a internação e o

BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
42

e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em: 29 ago. 2021.
43
BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em: 29 ago. 2021.
44
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes versus Brasil, Sentença de 4 de julho de 2006. S.L.:
CIDH, 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.
45
“[...] implica que la discapacidad no se define exclusivamente por la presencia de una deficiencia física, mental, intelectual o sensorial,
sino que se interrelaciona con las barreras o limitaciones que socialmente existen para que las personas puedan ejercer sus derechos de
manera efectiva”. COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Furlan y familiares vs. Argentina, sentencia de 31
de agosto de 2012. S.L.: CIDH, 2012. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em: 26 ago.
2021.
46
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Guachalá Chimbo y otros Vs. Ecuador: Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 26 de marzo de 2021. Serie C No. 423. S.L: CORTE IDH, 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_423_esp.pdf. Acesso em: 29 jun. 2022.

261
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

tratamento médico recebido pelo Sr. Guachalá Chimbo no hospital psiquiátrico não foram realizados
mediante o consentimento informado do paciente, resultando na violação direito ao direito à saúde
da vítima, como também ao direito à liberdade pessoal, direito à dignidade e vida privada, bem como
direito ao acesso à informação. Dessa forma, destaca a Corte IDH o entendimento do Comitê sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, ressaltando que

[...] a negação da capacidade jurídica das pessoas com deficiência e sua privação de liberdade em
instituições contra sua vontade, sem seu consentimento ou com o consentimento do substituto
na tomada de decisões, é um problema habitual, o qual constitui uma violação ao direito da perso-
nalidade jurídica, liberdade pessoal e direito à saúde47. (tradução nossa).

Entendimento esse que reforça o reconhecimento da pessoa com deficiência enquanto sujeito de
direitos, com capacidade jurídica para tomar decisões sobre sua saúde, ou seja: “[...] o reconhecimento
da personalidade jurídica de pessoas com deficiência implica não negar sua capacidade jurídica e
proporcionar acesso ao apoio que a pessoa possa necessitar para tomar decisões com efeitos jurídicos.
Um modelo social da deficiência, baseado em direitos humanos implica passar do paradigma da subs-
tituição na tomada de decisões a um baseado no apoio para tomá-las.”48
Outros destaques importantes desta sentença que demonstram a consagração dos preceitos do
modelo social da deficiência foram que a Corte IDH estabeleceu que a deficiência é uma categoria
protegida pelo artigo 1.1 da Convenção Americana e que, portanto, a Convenção proíbe qualquer
norma, ato ou prática discriminatória com base na deficiência real ou percebida pelo indivíduo. Além
disso, a Corte IDH constatou a relevância da inter-relação entre a presença de deficiência física, mental,
intelectual ou sensorial com as barreiras ou limitações (físicas ou arquitetônicas, comunicativas, atitudi-
nais ou socioeconômicas) que existem socialmente para que as pessoas possam exercer efetivamente
seus direitos. e, também reconheceu a obrigação dos Estados de promover práticas de inclusão social
e adotar medidas de diferenciação positiva para remover tais barreiras e o dever de adotar as medidas
legislativas, sociais, educacionais, trabalhistas ou de qualquer outra natureza necessárias para eliminar
toda discriminação associada à deficiência e promover a plena inclusão dessas pessoas na sociedade.49

4. A RESPONSABILIDADE DOS ESTADOS EM FACE


DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

A normativa de direito internacional analisada é direcionada para os Estados Partes e contém obriga-
ções de natureza positiva – em que o Estado tem o dever de promover alguma medida – e negativa,


47
“[...] la negación de la capacidad jurídica a las personas con discapacidad y su privación de libertad en instituciones contra su voluntad, sin
su consentimiento o con el consentimiento del sustituto en la adopción de decisiones, es un problema habitual”, lo cual constituye una
violación al derecho a la personalidad jurídica, libertad personal y derecho a la salud”. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HU-
MANOS (CORTE IDH). Caso Guachalá Chimbo y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de marzo de 2021.
Serie C No. 423. S.L: CORTE IDH, 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_423_esp.pdf. Acesso em: 29
jun. 2022.
48
“[...] el reconocimiento de la personalidad jurídica de las personas con discapacidad implica no negar su capacidad jurídica y proporcionar
acceso el apoyo que la persona pueda necesitar para tomar decisiones con efectos jurídicos. Un modelo social de la discapacidad, “basado
en derechos humanos implica pasar del paradigma de la sustitución en la adopción de decisiones a uno basado en el apoyo para tomarlas”
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Guachalá Chimbo y otros Vs. Ecuador: Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 26 de marzo de 2021. Serie C No. 423. S.L: CORTE IDH, 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_423_esp.pdf. Acesso em: 29 jun. 2022.
49
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Guachalá Chimbo y otros Vs. Ecuador: Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 26 de marzo de 2021. Serie C No. 423. S.L: CORTE IDH, 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_423_esp.pdf. Acesso em: 29 jun. 2022.

262
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

quando se é exigido que o Estado e seus agentes públicos não realizem uma determinada ação. A
violação dessas obrigações implica em determinadas sanções previstas nas normativas.
Os artigos terceiro e quarto da Convenção da Guatemala preveem os compromissos estatais de caráter
positivo, tanto no âmbito legislativo, social, educacional, trabalhista ou de qualquer outra natureza, a
fim de contribuir para a eliminação da discriminação e para integrar socialmente as pessoas com defi-
ciência. As primeiras recomendações são medidas que propiciem às pessoas com deficiência o exer-
cício e o acesso a direitos, bens e serviços, tais como direito à educação, ao emprego, ao lazer, o acesso
à justiça, aos serviços policiais, as atividades políticas e de administração, bem como a previsão de ações
que promovam a acessibilidade de edifícios, veículos e instalações, a fim de facilitar o transporte e a
comunicação, eliminando assim, os obstáculos.
A Convenção também indica medidas que promovam capacitação das pessoas encarregadas de apli-
cá-la. A independência e qualidade de vida da pessoa com deficiência são sinalizadas entre as medidas
a serem empregadas pelos Estados Partes tanto por meio de ações vinculadas ao tratamento e reabi-
litação como também à educação, pesquisa e conscientização social destinada a eliminação de “[...]
preconceitos, estereótipos e outras atitudes que atentam contra o direito das pessoas a serem iguais,
permitindo desta forma o respeito e a convivência com as pessoas portadoras de deficiência.”50
A aplicação prática desse instrumento pelo SIDH é regida pelo princípio da igualdade e não discri-
minação previstos na DADDH, CADH e demais normativas vigentes, considerando que as pessoas
com deficiência são “[...] especialmente vulneráveis à discriminação e outras violações de direitos
humanos como a restrição arbitrária da liberdade privada, e ao tratamento desumano e degradante”
(tradução nossa). 51
O caso Ximenes Lopes vs. Brasil é um exemplo de vulnerabilidade de pessoas com deficiência à violação
de seus direitos humanos, que discutiu a responsabilidade do Estado Brasileiro. Damião Ximenes Lopes
foi um homem com deficiência que faleceu em 4 de outubro de 1999 quando estava internado para
tratamento na Casa de Repouso de Guararapes, uma clínica psiquiátrica privada que recebia pacientes
do SUS. As razões da morte de Damião Ximenes Lopes não foram de imediato esclarecidas pela clínica
aos familiares, que da mesma forma não encontraram amparo nos órgãos estatais brasileiros respon-
sáveis pela investigação. Os familiares recorreram ao SIDH alegando que a morte de Damião seria
resultado das condições desumanas e degradantes às quais ele estava submetido durante sua hospi-
talização, tendo sofrido violência física, golpes e ataques contra sua integridade pessoal pelos próprios
funcionários da Casa de Repouso de Guararapes e, ainda, quando levados tais fatos a apreciação das
autoridades brasileiras, essas não teriam realizado a devida investigação violando as garantias judiciais. 52
A CIDH encaminhou o caso à Corte IDH ressaltando que os fatos deste caso foram agravados pela
situação de vulnerabilidade que se encontram as pessoas com deficiência mental, “[...] bem como
pela especial obrigação do Estado de oferecer proteção às pessoas que se encontram sob o cuidado
de centros de saúde que integram o Sistema Único de Saúde do Estado.”53 A Corte IDH condenou o

50
BRASIL. Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001. Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Brasília; Presidência da República, 2001. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3956.htm. Acesso em: 7 jun. 2021.


51
“[...] son especialmente vulnerables a la discriminación y otras violaciones a los derechos humanos como la restricción arbitraria de la liber-
tad personal, y el trato inhumano y degradante”. CIDH, Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Compendio sobre la igualdad
y no discriminación: Estándares Interamericanos. S.l. : COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2019. p.151. Disponível
em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Compendio-IgualdadNo Discriminacion.pdf. Acesso em: 14 jun. 2021.
52
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes versus Brasil, Sentença de 4 de julho de 2006. S.L.:
CIDH, 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.
53
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes versus Brasil, Sentença de 4 de julho de 2006. S.L.:
CIDH, 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf Acesso em: 20 jun. 2021.

263
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Estado Brasileiro pela violação do direito à vida, previsto no artigo 4.1 da CADH, e ao direito à integridade
pessoal previsto no artigo 5.2 desse mesmo instrumento, e os examinou a partir da especificidade da
situação das pessoas com deficiência mental, ressaltando ter sido esta a primeira oportunidade em que
a Corte IDH se pronunciou a respeito54. Sobre o fato da vítima ser uma pessoa com deficiência, a Corte
IDH ressaltou que

[...] as características pessoais de uma presunta vítima de tortura ou tratamentos cruéis, desumanos
ou degradantes devem ser levadas em conta no momento de determinar se a integridade pessoal
foi violada, já́ que essas características podem mudar a percepção da realidade do indivíduo e,
por conseguinte, aumentar o sofrimento e o sentido de humilhação quando são submetidas a
certos tratamentos. 55

Na sentença foram destacados os deveres do Estado com relação às pessoas com deficiência mental,
sendo eles: dever de cuidar, em especial para aquelas que se encontram sob a guarda de cuidado, “[...]
a quem o Estado tem a obrigação positiva de proporcionar condições necessárias para desenvolver
uma vida digna;”56 o dever de regular e fiscalizar as instituições que prestam serviço de saúde, sendo
essa entendida pela Corte IDH como medida necessária para a devida “[...] proteção da vida e inte-
gridade das pessoas sob sua jurisdição, abrange tanto as entidades públicas e privadas que prestam
serviços públicos de saúde quanto aquelas instituições que prestam exclusivamente serviços privados
de saúde;”57 e o dever de investigar.
Além de representar o primeiro caso analisado pela Corte IDH referente a violação de direitos humanos
de uma pessoa com deficiência, o Caso Ximenes Lopes foi a primeira condenação do Estado brasi-
leiro perante o SIDH.
Outro caso levado ao julgamento da Corte IDH sobre violação de direitos de pessoas com deficiência é
o caso Furlan y Familiares vs. Argentina, na qual o Estado Argentino foi responsabilizado internacional-
mente pela ausência de resposta devida e demora excessiva por parte de suas autoridades judiciais para
solucionar o processo civil por danos e prejuízos contra o Estado, cuja resposta dependia o tratamento
médico de uma criança que se tornou um adulto com deficiência. Em síntese, a Corte IDH julgou que:

Em 31 de agosto de 2012 a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou, por unanimi-


dade, que o Estado da Argentina é internacionalmente responsável pela violação em prejuízo
de Sebastián Furlan, entre outros, por ter excedido o prazo razoável no processo civil por danos;
vulnerar o direito a proteção judicial e o direito a propriedade privada, e o não cumprimento da
obrigação de garantir, sem discriminação, o direito ao acesso a justiça e o direito a integridade
pessoal. Da mesma forma, o Estado é internacionalmente responsável pela vulnerabilização do
direito a integridade pessoal e o direito ao acesso a justiçados familiares de Sebastián Furlan, a

54
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes versus Brasil, Sentença de 4 de julho de 2006. S.L.:
CIDH, 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_149_por.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.
55
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes versus Brasil, Sentença de 4 de julho de 2006. S.L.:
CIDH, 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_149_por.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.
56
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes versus Brasil, Sentença de 4 de julho de 2006. S.L.:
CIDH, 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_149_por.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.


57
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes versus Brasil, Sentença de 4 de julho de 2006. S.L.:
CIDH, 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/ seriec_149_por.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.

264
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

saber: Danilo Furlan (pai), Susana Fernández (mãe), Claudio Furlan (irmão) y Sabina Furlan (irmã)58
(tradução nossa).

Os fatos que justificaram a condenação do Estado argentino ocorreram em 1988, quando Sebastián
Furlan tinha catorze anos de idade. Furlan ingressou em um prédio do exército argentino para brincar
naquele espaço – que não possuía nenhum tipo de cerca que impedisse a entrada de pessoas – e lá
sofreu um acidente, tendo sido golpeado na cabeça por uma peça de 45 a 50 kg. No hospital, ele foi
diagnosticado com um traumatismo encefalocraniano com perda de consciência em estado de coma
grau II-III e com fratura do osso parietal direito.
Durante o processo de recuperação médica de Furlan, sua família ingressou com uma demanda civil
contra o Estado argentino requerendo uma indenização por danos e prejuízos derivados do acidente,
visto que Furlan tornou-se uma pessoa com deficiência após o acidente. O processo demorou cerca
de doze anos para ser concluído, tempo esse que foi considerado excessivo na sentença da Corte IDH.
O reconhecimento de Sebastián Furlan enquanto pessoa com deficiência também se realizou em um
prazo temporal longo, tendo recebido seu certificado único de pessoa com deficiência apenas em 23
de setembro de 2008.
Assim, quando a Corte IDH afirma que toda pessoa que se encontre em situação de vulnerabilidade é
titular de proteção especial, e que isso se faz necessário para que o Estado satisfaça suas obrigações
gerais de respeito e garantia dos direitos humanos, significa a confirmação de que a pessoa com defi-
ciência é um sujeito de direitos reconhecidos e devidos por Estado. E mais do que o reconhecimento, a
Corte IDH ressalta o dever estatal com as obrigações positivas, em que

[...] não basta que os Estados se abstenham de violar os direitos, mas é imperativa a adoção de
medidas positivas, determináveis em função das particulares necessidades de proteção do sujeito
de direito, seja por sua condição pessoal ou pela situação específica em que se encontra, como
a deficiência. Neste sentido, é obrigação dos Estados propender pela inclusão das pessoas com
deficiência por meio da igualdade de condições, oportunidades e participação em todas as esferas
da sociedade, com o fim de garantir que as limitações anteriormente descritas sejam desmante-
ladas59. (Tradução nossa).

Os conceitos citados na sentença do caso Furlan – inclusão social, igualdade de oportunidade e parti-
cipação em todas as esferas da sociedade – são eixos que foram introduzidos pela CDPD a partir da
adesão ao modelo social da deficiência, mas que foram inseridos aos entendimentos do SIDH guian-
do-se pelo princípio da igualdade e não discriminação. Contudo, a CDPD superou a Convenção da
Guatemala tanto na sua estrutura quanto na maior abrangência de direitos e garantias previstas às
pessoas com deficiência.

58
“El 31 de agosto de 2012 la Corte Interamericana de Derechos Humanos declaró, por unanimidad, que el Estado de Argentina es interna-
cionalmente responsable por la violación en perjuicio de Sebastián Furlan, entre otros, por haber excedido el plazo razonable en el proce-
so civil por daños; vulnerar el derecho a la protección judicial y el derecho a la propiedad privada, y el incumplimiento de la obligación de
garantizar, sin discriminación, el derecho de acceso a la justicia y el derecho a la integridad personal. Asimismo, el Estado es internacional-
mente responsable por la vulneración al derecho a la integridad personal y el derecho al acceso a la justicia de los familiares de Sebastián
Furlan, a saber: Danilo Furlan (padre), Susana Fernández (madre), Claudio Furlan (hermano) y Sabina Furlan (hermana)”. CIDH, Comisión
Interamericana de Derechos Humanos. Caso Furlan y familiares vs. Argentina, sentencia de 31 de agosto de 2012. S.L.: CIDH, 2012.
Disponível em: Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em: 26 ago. 2021.
59
“[...] no basta que los Estados se abstengan de violar los derechos, sino que es imperativa la adopción de medidas positivas, determinables
en función de las particulares necesidades de protección del sujeto de derecho, ya sea por su condición personal o por la situación espe-
cífica en que se encuentre, como la discapacidad. En este sentido, es obligación de los Estados propender por la inclusión de las personas
con discapacidad por medio de la igualdad de condiciones, oportunidades y participación en todas las esferas de la sociedad, con el fin
de garantizar que las limitaciones anteriormente descritas sean desmanteladas”. COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMA-
NOS. Caso Furlan y familiares vs. Argentina, sentencia de 31 de agosto de 2012. S.L.: CIDH, 2012. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em: 26 ago. 2021.

265
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O princípio da igualdade e não discriminação, como já referido, é a base estruturante das normativas
específicas de proteção aos direitos das pessoas com deficiência analisadas. E enquanto direito, sua
aplicação prática pode ser observada no caso Mr X. vs. United Republic os Tanzania, julgado em 18 de
agosto de 2017, pelo Comitê de Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU.
Os fatos do caso ocorreram no ano de 2010, quando o Mr. X, pessoa com albinismo, foi vítima de
violência física por dois homens não identificados, que amputaram seu braço enquanto ele estava
desacordado, após ter sido golpeado na cabeça por eles. Mr. X declarou que a violência sofrida é
resultado da discriminação por sua deficiência, visto que na Tanzania há registros de outros casos de
perseguição e discriminação às pessoas com albinismo devido a crenças e mitos inclusive atribuindo
poderes mágicos e de cura a essas pessoas. Mr. X alegou que as autoridades policiais da Tanzania não
realizaram as devidas providências de investigação do caso, e acusou o Estado de violar os artigos 1
(Propósito), 5 (Igualdade e não discriminação), 15 (Prevenção contra tortura ou tratamentos ou penas
cruéis, desumanas ou degradantes), 17 (Proteção da integridade pessoal) da CDPD.60
Na sentença, o Comitê condenou a República Unida da Tanzania pela violação dos artigos da CDPD
referente ao direito à igualdade e não discriminação, direito à prevenção contra tortura ou tratamentos
ou penas cruéis, desumanas ou degradantes e direito à proteção da integridade pessoal, somados ao
artigo 4 que prevê as obrigações gerais dos Estados Partes.61 Entre as medidas previstas na sentença,
foram incluídas as recomendações de compensações devidas ao autor pelo abuso sofrido, bem como
ações envolvendo uma adequada investigação e punição dos agressores e revisão da legislação nacional
do Estado da Tanzania, a fim de incluir a violência contra pessoas com albinismo, incluindo o tráfico de
partes de corpos, como crime.62 O exemplo referido tem o potencial de demonstrar a extensão dos
danos relacionados à discriminação de pessoas com deficiência que, de um modo geral, promove a
violação de direitos humanos, tanto de forma a impedir o exercício de direitos, quanto pela violência
sobre seus corpos.
A responsabilização dos Estados em relação à saúde e aos tratamentos recebidos por crianças com
deficiência, bem como o dever de apoio às famílias, foi analisada no Caso Vera Rojas y otros Vs. Chile.63
A Corte IDH entendeu que os tratamentos de reabilitação para deficiências e cuidados paliativos
são serviços essenciais no que diz respeito à saúde da criança. A Corte considerou que o cuidado e a
assistência especiais necessários a uma criança com deficiência devem incluir, como elemento funda-
mental, o apoio às famílias responsáveis pelo seu cuidado durante o tratamento, especialmente as
mães, que tradicionalmente exercem esse papel. Nesta sentença, observa-se como a superação do
modelo biomédico da deficiência se reflete nas considerações da Corte IDH ao considerar o cuidado
e a assistência especial necessária dessa criança com deficiência como direito à saúde, sendo dever
do Estado fiscalizar e proporcionar os melhores tratamentos médicos à criança. O reconhecimento de
obrigação Estatal frente à saúde da pessoa com deficiência e, em especial, o dever de apoio às famílias
responsáveis pelo cuidado desta pessoa, inclusive, considerando os seus membros como vítimas da

60
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Communication n. 22/2014, Mr. X ver-
sus United Republic of Tanzania. Decisão de 31 agosto 2017. S.l.: UN, 2017. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/
CRPD/CRPD-C-18-DR-22-2014.pdf. Acesso em: 29 ago. 2021.
61
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Communication n. 22/2014, Mr. X ver-
sus United Republic of Tanzania. Decisão de 31 agosto 2017. S.l.: UN, 2017. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/
CRPD/CRPD-C-18-DR-22-2014.pdf. Acesso em: 29 ago. 2021.
62
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Communication n. 22/2014, Mr. X ver-
sus United Republic of Tanzania. Decisão de 31 agosto 2017. S.l.: UN, 2017. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/
CRPD/CRPD-C-18-DR-22-2014.pdf. Acesso em: 29 ago. 2021.
63
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Vera Rojas y otros Vs. Chile: Excepciones preliminares, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 1 de octubre de 2021. Serie C No. 439.. S.L: CORTE IDH, 2021.Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_439_esp.pdf. Acesso em: 9 jun. 2022.

266
DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

negligência do Estado, demonstra que a Corte IDH reafirma os preceitos inseridos pelo modelo social
da deficiência que se fundamentam em uma sociedade inclusiva e responsável por garantir os direitos
de todos os seus indivíduos sem discriminação.

267
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

268
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

Luciane Toss

1. INTRODUÇÃO

Breve história da participação das mulheres na construção de um sistema normativo de


proteção dos direitos humanos

A proteção e a promoção da igualdade entre homens e mulheres são reconhecidas como conceitos
fundamentais no DIDH e integram seus principais instrumentos: Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH); Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC) (1966); Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres (CEDAW) (1979) e Protocolo Opcional de 1999; Declaração sobre Eliminação da
Violência contra as Mulheres (1993); na Declaração de Pequim e na Plataforma de Acção (1995); consta
dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (no caso da equidade de gênero, o Objetivo de Desen-
volvimento Sustentável 5 – ODS5); e mais recentemente, na Convenção da ONU sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência, de 2006.
No âmbito da América Latina (no SIDH) teremos: a Convenção Americana de Direitos Humanos
(CADH); Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em Matéria De Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais - Protocolo De São Salvador (1988) e a Convenção Interamericana
Para Prevenir, Punir e Erradicar A Violência Contra A Mulher - Convenção de Belém Do Pará (1994). No
que diz respeito ao mercado de trabalho e a mulher trabalhadora, as Convenções e Recomendações
da Organização Internacional do Trabalho – OIT, em especial: Convenção sobre Igualdade de Remu-
neração, de 1951 (Nº 100); Convenção sobre Discriminação (Emprego e Profissão), de 1958 (Nº 111);
Convenção sobre Trabalhadores com Responsabilidades Familiares, de 1981 (Nº 156); Convenção sobre
Proteção da Maternidade, de 2000 (Nº 183).
As disposições são igualmente vinculativas para os Estados que não ratificaram os instrumentos espe-
cíficos (tais como os da OIT), mas aderiram às normas internacionais do sistema.
A importância das mulheres no direito internacional dos direitos humanos vai além da busca da afir-
mação da igualdade de direitos alcançando o sistema internacional de proteção de todos os direitos.
Delegações de mulheres estavam presentes na Conferência de São Francisco (1945) que resultou na
elaboração da Carta da Organização das Nações Unidas. Vários pontos do documento referem a igual-
dade entre os sexos ou a vedação de discriminação.

3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter


econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião;
Artigo 13.1. b) promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural, educa-
cional e sanitário e favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais,
por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; Artigo 55, c) o respeito
universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção
de raça, sexo, língua ou religião e Artigo 76. Os objetivos básicos do sistema de tutela, de acordo
com os Propósitos das Nações Unidas enumerados no Artigo 1 da presente Carta serão, c) esti-

269
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

mular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de
raça, sexo língua ou religião e favorecer o reconhecimento da interdependência de todos os povos.1

A Comissão de Direitos Humanos e a Comissão sobre o Estatuto Jurídico e Social da Mulheres (CSW)


foram criadas em 1946 e se envolveram na elaboração da DUDH. O compromisso dos Estados parti-
cipantes era o de promover a defesa dos direitos humanos como um dos pilares da organização. No
caso dos direitos das mulheres, a discriminação sexual figura entre as discriminações raciais, étnicas
e religiosas. 2
Assim como os instrumentos normativos, os mecanismos de controle e verificação da situação de
gênero, insertos nos organismos internacionais, são fundamentais para proteção dos direitos humanos
das mulheres e para que os Estados membros não se desincumbam de observar as orientações do
padrão normativo internacional nos seus sistemas jurídicos internos. 3
A participação das mulheres foi essencial para que uma linguagem neutra e com recortes de gênero
fizessem parte do texto final da DUDH.4 A CSW esteve vinculada à CDH e posteriormente ao Comitê
Econômico e Social (ECOSOC), onde a pauta de construção de um sistema de proteção para as
mulheres deu lugar a preocupação com a inserção das mulheres no sistema econômico social sem
questionamento das violências sistêmicas e estruturais pelas quais elas passavam. 5 Neste sentido
é importante referir que a CDH estava incumbida de uma série de ações para garantir os direitos
humanos e desenvolveu inúmeros instrumentos de monitoramento de violações destes direitos, mas
carecia de instrumentos de implementação para tratar as violações dos direitos das mulheres como
violações de direitos humanos.6
Somente em 1967 é aprovada a Declaração Sobre Todas as Formas de Discriminação contra a mulher,
que serve de base para a Convenção Sobre Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher
(CEDAW) adotada no Sistema Internacional em 1979. A CEDAW avança em muitos pontos, mas o prin-
cipal deles é reconhecer que a discriminação contra as mulheres é uma violação dos direitos humanos.
Os Estados membros devem buscar mecanismos que eliminem as formas discriminatórias, sobretudo
as que provém de práticas culturais, tradições, usos e costumes. A Convenção cria possibilidades para

1
BRASIL. Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Es-
tatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização
Internacional das Nações Unidas. Brasília, DF: Presidência da República, 1945. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1930-1949/d19841.htm. Acesso em: 09 set. 2021
2
É importante lembrar que os Estados pós II Guerra Mundial estavam empenhados em criar mecanismos de revalorização dos direitos
humanos, tendo em vista que o nazismo e o fascismo ameaçaram fortemente esses direitos. O extermínio racial e religioso estavam na
ordem do dia. Portanto, como bem refere Facio, significou de certa forma, um avanço importante que a discriminação sexual figurasse ao
lado da dscriminação racial, étnica e religiosa. FACIO, Alda. Los derechos de las mujeres son derechos humanos. Corte Interamericana
de Direitos Humanos, 2010. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r31195.pdf. Acesso em: 20 set. 2018.
3
FONTÃO, Maria Angélica Breda. As Conferências da ONU e o Movimento de Mulheres: construção de uma agenda internacional. 2011.
60 f. Monografia (Especialização em Relações Internacionais) – Universidade de Brasília. Brasília: UNB, 2011. Disponível em: https://bdm.
unb.br/handle/10483/2403. Acesso em: 10 out. 2021.
4
Dentrea as tantas mulheres, destaca-se Hansa Metha, da delegação indiana, que defendeu que o texto fosse alterado de “todos os ho-
mens” para “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e Minerva Bernardino, da República Dominicana,
que foi fundamental para no Preambulo constasse “a igualdade entre homens e mulheres”. BERTA Lutz: uma mulher na carta da ONU
[Documentário]. Direção: Guto Barra e Tatiana Issa. Brasil. HBO, 2019 (98 min), son., color.
5
FACIO. Alda. Viena 1993: cuando las mujeres nos hicimos humanas. Feminismo, género e igualdad - Pensamiento Iberoamericano.
N.9 – Año 2011, Costa Rica, p. 3-20. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3710875. Acesso em: 10 set. 2021
6
FACIO, Alda. Los derechos de las mujeres son derechos humanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2010. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/tablas/r31195.pdf. Acesso em: 20 set. 2018

270
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

políticas de discriminação positiva e para adoção de medidas especiais de caráter temporário desti-
nadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher. 7
É importante perceber que nesta complexa genealogia dos direitos humanos das mulheres há dife-
rentes conceitos de igualdade e dignidade que devem ser considerados de forma inter-relacionada. A
igualdade formal que define uma sujeita universal e abstrata atribuindo dignidade a todas as mulheres
independentemente de raça, etnia, religião, idade, opção sexual, condição econômica, origem e nacio-
nalidade não se separa da igualdade material, seja entendida como os acessos ao alcance desta digni-
dade ou seja a que permite que o conceito de dignidade varie de acordo com a perspectiva de cada
mulher em específico (mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres muçulmanas, mulheres do sul,
mulheres do norte, mulheres cis gênero mulheres lésbicas, etc.).
Até chegarmos à Convenção de Viena (1993), as mulheres se reuniram em três importantes confe-
rências mundiais: Cidade do México em 1975, Copenhagem, em 1980 e Nairóbi, em 1985. No México,
a opressão e as desigualdades entre as mulheres renderam uma importante discussão: mulheres não
são um todo homogêneo. A Conferência também detectou lacunas nas políticas governamentais
para implementar instrumentos de monitoramento da violação de direitos humanos das mulheres e o
conceito de “violência contra as mulheres” foi discutido.8 O Plano de Ação (que estabeleceu a década
da mulher) resultou na aprovação e adoção pela ONU, em 1979, da CEDAW.
Em Copenhague, o tema foi a igualdade material, o acesso das mulheres à educação, ao emprego e aos
serviços de saúde.9 Governos foram chamados para que eliminassem linguagens discriminatórias de
suas normativas internas e que ao mesmo tempo informassem às mulheres a respeito de seus direitos
e sobre como efetivá-los.10 Em Nairobi se reconheceu que as mulheres tem direitos individualmente e
que a violência contra elas é um assunto de direitos humanos.
Em 1993 os movimentos de mulheres levaram à Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena
uma pauta importante: “os direitos da mulher também são direitos humanos”. A violência contra a
mulher é uma violação dos direitos humanos. As mulheres impuseram a discussão de reconhecimento
das violências para além das praticadas pelo Estado na esfera pública. Reivindicavam a inclusão daquelas
praticadas no espaço privado, da família, do domicílio e as legitimadas pelas autoridades religiosas. “O
pessoal é político.”11
Na Conferência de Viena, as mulheres deixam de ser apenas um setor da humanidade e passam a inte-
grar o sistema de proteção como protagonistas. O reconhecimento, mesmo que tardio,12 da mulher
como sujeita de direitos humanos, revela que na construção dos mecanismos de proteção internacional

7
FACIO, Alda. Los derechos de las mujeres son derechos humanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2010. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/tablas/r31195.pdf. Acesso em: 20 set. 2018
8
WELDON, S. Laurel. Inclusion, Solidarity, and Social Movements: The Global Movement against Gender Violence. Perspectives on Poli-
tics, v. 4, n. 1, 2006. p. 55-74.
9
REICHERT, Elizabeth. Women’s rights are human rights: platform for action. Inter-national Social Work, v. 41, n. 3, 1998. p. 371-384 Dispo-
nível em: https://ehs.siu.edu/socialwork/_common/documents/articles/reichert-articles/article4.pdf. Acesso em: 20 set. 2009.
10
FACIO, Alda. Los derechos de las mujeres son derechos humanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2010. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/tablas/r31195.pdf. Acesso em: 20 set. 2018
11
“O pessoal é político” foi uma bandeira do feminismo, ouvido com frequência, especialmente durante o final dos anos 1960 e 1970. Foi
cunhado pela primeira por Hanisch, Carol. “ O Pessoal é Político. ” Notas do Segundo Ano: Libertação das Mulheres. Eds. Firestone,
Shulasmith e Anne Koedt. Nova York: Radical Feminism, 1970.
12
Tardio considerando a história da participação das mulheres na luta pela consolidação de direitos, de Olympe de Gouges em 1791 à Eleo-
nora Roosevelt em 1948, as mulheres só passam a ser consideradas membras especificas da comunidade humana pela ONU, em 1979.
FACIO. Alda. Viena 1993: cuando las mujeres nos hicimos humanas. Feminismo, género e igualdad - Pensamiento Iberoamericano,
Costa Rica, n. 9, p. 3–20, 2011. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3710875. Acesso em: 10 set. 2021.

271
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

dos direitos humanos das mulheres protagonizaram tanto múltiplas reivindicações (o que demonstra a
diversidade do movimento feminista13), como também, a inserção de recortes normativos necessários
que definiriam a violência de gênero como obstáculo à capacidade das mulheres e da meninas de
acessar direitos e de se desenvolver plenamente nas sociedades.
É com a Conferência de Pequim, em 1995, que os direitos das mulheres são efetivamente reconhecidos
como direitos humanos e suas demandas observadas na normatividade internacional de proteção dos
direitos humanos. Não há como falar em visibilidade, espaços, discursos, linguagens, sem entender que
os sistemas direcionados de poder precisam transversalizar o gênero em toda teoria e prática do DIDH.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

2.1.1. Carta das Nações Unidas (1945)

Artigo 8. 
As Nações Unidas não farão restrições quanto à elegibilidade de homens e mulheres destinados a
participar em qualquer caráter e em condições de igualdade em seus órgãos principais e subsidiários.

2.1.2. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)

Artigo 1° 
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de
consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
Artigo 2° 
Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração,
sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política
ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além
disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país
ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autô-
nomo ou sujeito a alguma limitação de soberania. 


13
“Direito a igualdade formal – feminismo liberal; igualdade sexual e reprodutiva – feminismo libertário-radical; igualdade econômica – fe-
minismo socialista”; perspectivas de raça e etnia – feminismo negro e decolonial. PIOVESAN, Flavia. A proteção internacional dos direitos
humanos das mulheres. Cadernos Jurídicos. São Paulo, ano 15, no. 38. Janeiro-Abril de 2014. p. 21-34

272
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

Artigo 16
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião,
têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao
casamento, sua duração e sua dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. 
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da socie-
dade e do Estado.

2.1.3. Convenção Sobre Os Direitos Políticos Da Mulher (1953)

Preâmbulo: Reconhecendo que toda pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos assuntos
públicos de seu país, seja diretamente, seja por intermédio de representantes livremente escolhidos,
ter acesso em condições de igualdade à funções públicas de seu país, e desejando conceder a homens
e mulheres igualdade no gozo e exercício dos direitos políticos, de conformidade com a  Carta das
Nações Unidas e com as disposições da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

2.1.4. Convenção sobre a Nacionalidade da Mulher Casada (1957)

Artigo 1º
Os Estados concordam em que nem a celebração ou dissolução do matrimônio entre nacionais ou
estrangeiros, nem a mudança de nacionalidade do marido durante o matrimônio, poderão afetar auto-
maticamente a nacionalidade da mulher.

2.1.5. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966)

Artigo 3º
Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a assegurar a homens e mulheres igualdade no
gozo de todos os direitos civis e políticos enunciados no presente Pacto.
Artigo 6º
§5. Uma pena de morte não poderá ser imposta em casos de crimes por pessoas menores de 18 anos,
nem aplicada a mulheres em caso de gravidez;
Artigo 23
§2. Será reconhecido o direito do homem e da mulher de, em idade núbil, contrair casamento e
constituir família.

2.1.6. Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966)

Artigo 3º
Os Estados Membros no presente Pacto comprometem-se a assegurar a homens e mulheres igualdade
no gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais enumerados no presente Pacto.

273
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Artigo 7º
Os Estados Membros no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições
de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente: 1.Uma remuneração que proporcione. no
mínimo, a todos os trabalhadores: 2. Um salário eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de
igual valor, sem qualquer distinção; em particular, as mulheres deverão Ter a garantia de condições de
trabalho não inferiores às dos homens e perceber a mesma remuneração que eles, por trabalho igual.

2.1.7. Declaração Sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (1967)14

Preâmbulo: [...] Preocupada porque, apesar da  Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal
de Direitos Humanos, dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos e de outros instrumentos das
Nações Unidas  e dos organismos especializados e apesar dos progressos realizados em matéria de
igualdade de direitos, continua existindo considerável discriminação contra a mulher;
Considerando que a discriminação contra a  mulher é incompatível com a dignidade humana e com
o bem-estar da família e da sociedade, impede sua participação na vida política, social, econômica e
cultural de seus países, em condições de igualdade com os  homens, e constituiu  um obstáculo ao
desenvolvimento completo das potencialidades da mulher no serviço aos seus países e à humanidade;
Tendo em mente a grande contribuição da mulher na vida social, política, econômica e cultural, assim
como sua função na família e especialmente na educação das crianças;
Convencida de que a máxima participação tanto das mulheres como dos homens em todos os campos
é indispensável para o desenvolvimento completo de um país, o bem-estar do mundo e a causa da paz;
Considerando que é necessário assegurar na lei e na realidade o reconhecimento universal do princípio
de igualdade de homens e mulheres [...]
Artigo 1º
A discriminação contra a mulher, porque nega ou limita sua igualdade de direitos com o homem, é
fundamentalmente injusta e constitui uma ofensa à dignidade humana.

2.1.8. Convenção Sobre o Casamento por Consenso, Idade Mínima para Casamento e


Registro de Casamentos (1967)15.

§1. Os homens e as mulheres, a partir da idade da adolescência, têm o direito, sem restrição alguma por
raça, nacionalidade ou religião, a se casar e fundar uma família; desfrutado de direitos iguais em relação
ao matrimônio e em caso de dissolução do matrimônio.
§2.  Somente mediante livre e pleno consentimento dos futuros esposos poderá ser contraído o matri-
mônio, Recordando assim mesmo que a Assembléia Geral das Nações Unidas, em sua “resolução 843
(IX)”, de 17 de dezembro de 1954, declarou que certos costumes, antigas leis e práticas referentes ao
matrimônio e à família são incompatíveis com os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas e
na Declaração Universal de Direitos Humanos.

14
ONU. Declaração Sobre A Eliminação Da Discriminação Contra A Mulher. 1967. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. Universidade
de São Paulo – USP. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw1.pdf. Acesso em: 10
out. 2021
15
ONU. Convenção Sobre O Casamento Por Consenso, Idade Mínima Para Casamento E Registro De Casamentos. 1967. Biblioteca
Virtual de Direitos Humanos. Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/conv-
-consentimentocasamento.pdf. Acesso em: 10 out. 2021.

274
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

Reafirmando que todos os Estados, inclusive os que tiverem contraído ou puderam assumir a obrigação
de administrar não autônomos ou em fideicomisso até o momento em que estes alcancem a indepen-
dência, devem adotar todas as disposições adequadas com o objetivo de abolir tais costumes, antigas
leis e práticas, entre outras coisas, assegurando a liberdade completa na escolha do conjugue. Abolindo
totalmente o matrimônio das crianças e a prática de esposar as meninas antes da adolescência, esta-
belecendo para tal fim penas que forem do caso e criando um registro civil ou de outra classe para a
inscrição de todos os casamentos.

2.1.9. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a


Mulher - CEDAW (1979)16

Artigo 1º
Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a
distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou
anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil
com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos
campos: político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Artigo 2º
Os Estados-parte condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam
em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discri-
minação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a: a) Consagrar, se ainda não o tiverem
feito, em suas constituições nacionais ou em outra legislação apropriada, o princípio da igualdade do
homem e da mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à realização prática desse princípio;
b) Adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam
toda discriminação contra a mulher; c) Estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher numa
base de igualdade com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de
outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação; d) Abster-se
de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher e zelar para que as autoridades e
instituições públicas atuem em conformidade com esta obrigação; e) Tomar as medidas apropriadas
para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa;
f) Adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar leis,
regulamentos, usos e práticas que constituam discriminação contra a mulher; g) Derrogar todas as
disposições penais nacionais que constituam discriminação contra a mulher.

2.1.10. Declaração e Programa de Ação de Viena (1993)17

18. Os Direitos Humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalie-
nável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais. A participação plena das mulheres, em
condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural, aos níveis nacional, regional
e internacional, bem como a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo, consti-
tuem objetivos prioritários da comunidade internacional. A violência baseada no sexo da pessoa e todas
as formas de assédio e exploração sexual, nomeadamente as que resultam de preconceitos culturais
e do tráfico internacional, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem

16
ONU. Convenção Sobre A Eliminação De Todas As Formas De Discriminação Contra A Mulher. 1979. Disponível em: https://www.
onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf. Acesso em: 10 out. 2021.

ONU. Plano De Ação - Declaração De Pequim. 1995. Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.
17

br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/pekin.htm. Acesso em: 09 set. 2021.

275
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ser eliminadas. Isto pode ser alcançado através de medidas de caráter legislativo e da ação nacional
e cooperação internacional em áreas tais como o desenvolvimento socioeconômico, a educação, a
maternidade segura e os cuidados de saúde, e a assistência social. Os Direitos Humanos das mulheres
deverão constituir parte integrante das atividades das Nações Unidas no domínio dos Direitos Humanos,
incluindo a promoção de todos os instrumentos de Direitos Humanos relativos às mulheres.

2.1.11. Programa de Ação do Cairo (1994)18

1.5 A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento não é um evento isolado. Seu
Programa de Ação baseia-se no considerável consenso internacional que se desenvolveu, a partir da
Conferência Mundial de População, em Bucareste, em 19743 e da Conferência Internacional sobre
População na Cidade do México, em 19844 na consideração dos grandes problemas demográficos e das
inter-relações entre população, crescimento econômico sustentado e desenvolvimento sustentável, e
dos progressos na educação, situação econômica e emancipação da mulher. Mais do que as anteriores
sobre população, a Conferência de 1994 recebeu explicitamente um mandato mais amplo sobre ques-
tões de desenvolvimento, o que reflete a crescente tomada de consciência de que população, pobreza,
sistemas de produção e de consumo e o meio ambiente estão tão intimamente inter-relacionados que
nenhum desses aspectos pode ser analisado isoladamente.

2.1.12. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher


– Pequim (1995)19

13. O empoderamento da mulher e sua total participação, em base de igualdade, em todos os campos
sociais, incluindo a participação no processo decisório e o acesso ao poder, são fundamentais para a
realização da igualdade, do desenvolvimento e da paz;
14. Os direitos da mulher são direitos humanos;
15. A igualdade de direitos, de oportunidades e de acesso aos recursos, a divisão eqüitativa das respon-
sabilidades familiares e a parceria harmoniosa entre mulheres e homens são fundamentais ao seu
bem-estar e ao de suas famílias, bem como para a consolidação da democracia;
16. A erradicação da pobreza deve ser baseada em um crescimento econômico sustentável, no desen-
volvimento social, na proteção ambiental e na justiça social, e requer a participação da mulher no
processo de desenvolvimento econômico e social, oportunidades iguais e a plena participação, em
condições de igualdade, de mulheres e homens, como agentes e beneficiários de um desenvolvimento
sustentável orientado para o indivíduo;
17. O reconhecimento explícito e a reafirmação do direito de todas as mulheres de controlarem todos
os aspectos de sua saúde em especial o de sua própria fertilidade, é essencial ao seu empoderamento;

Maternidade

29. As mulheres desempenham uma função decisiva na família. A família é o núcleo básico da socie-
dade e como tal deve ser fortalecido. A família precisa receber proteção e apoio amplos. Em diferentes
sistemas culturais, políticos e sociais, existem diversas formas de família. Os direitos, capacidades e

18
ONU. PROGRAMA DE AÇÃO DO CAIRO. 1994. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4293171/mod_resource/con-
tent/1/plano%20de%20ac%CC%A7a%CC%83o%20do%20Cairo.pdf. Acesso em: 10 out. 2021.
19
ONU. DECLARAÇÃO E PLATAFORMA DE AÇÃO DA IV CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE A MULHER – PEQUIM. 1995. Disponível
em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf. Acesso em: 10 out. 2021.

276
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

responsabilidades dos membros da família devem ser respeitados. As mulheres trazem grande contri-
buição ao bem-estar da família e ao desenvolvimento da sociedade, o que ainda não é reconhecido
em sua plena importância. Deve-se reconhecer a importância social da maternidade e da função de
ambos os progenitores na família, assim como na criação dos filhos. A criação dos filhos requer que os
progenitores, mulheres e homens, assim como a sociedade em seu conjunto, compartilhem responsa-
bilidades. A maternidade, a condição de progenitora e a função da mulher na procriação não devem ser
motivo de discriminação nem limitar a plena participação da mulher na sociedade. Deve-se reconhecer
também o importante papel que em muitos países a mulher costuma desempenhar no cuidado de
outros membros de sua família.

Direitos Reprodutivos

94. A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, em todos os
aspectos relacionados com o sistema reprodutivo e suas funções e processos, e não a mera ausência
de enfermidade ou doença. A saúde reprodutiva implica, assim, a capacidade de desfrutar de uma vida
sexual satisfatória e sem risco, a capacidade de procriar e a liberdade para decidir fazê-lo ou não fazê-
lo, quando e com que freqüência. Essa última condição implica o direito para o homem e a mulher
de obter informação sobre métodos seguros, eficientes e exeqüíveis de planejamento familiar e de
ter acesso aos de sua escolha, assim como a outros métodos por eles escolhidos para regularização
da fertilidade, que não estejam legalmente proibidos, e o direito de acesso a serviços apropriados de
atendimento à saúde que permitam às mulheres o acompanhamento seguro durante a gravidez, bem
como partos sem riscos, e dêem aos casais as melhores possibilidades de terem filhos sãos. Em conso-
nância com essa definição de saúde reprodutiva, o atendimento à saúde reprodutiva se define como
o conjunto de métodos, técnicas e serviços que contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivo,
ao evitar e resolver os problemas relacionados com a saúde reprodutiva. Inclui também a saúde sexual,
cujo objetivo é o desenvolvimento da vida e das relações pessoais e não meramente a assistência social
e o atendimento relativo à reprodução e às enfermidades sexualmente transmissíveis

Sexualidade

96. Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter controle sobre as questões
relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito
dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência. A igualdade entre mulheres e homens no
tocante às relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito à integridade da pessoa humana,
exige o respeito mútuo, o consentimento e a responsabilidade comum pelo comportamento sexual e
suas consequências.

Interseccionalidade

106. c) conceber e executar, em colaboração com as mulheres e organizações comunitárias, programas


de saúde orientados pelo gênero, que contemplem serviços descentralizados de saúde; procurar
atender às necessidades das mulheres durante toda sua vida e levar em conta os múltiplos papéis
por elas desempenhados e suas responsabilidades, suas disponibilidades de tempo, as necessidades
especiais das mulheres das áreas rurais e das mulheres deficientes físicas, e a diversidade das neces-
sidades das mulheres, em função, entre outras coisas, da idade e de diferenças socioeconômicas e
culturais; incluir as mulheres, especialmente a mulher indígena e a mulher das comunidades locais, na
determinação das prioridades e na preparação de programas de atendimento à saúde; eliminar todos
os obstáculos que impedem o acesso da mulher aos serviços de saúde e fornecer toda uma série de
serviços de assistência sanitária;

277
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2.1.13. Objetivos de Desenvolvimento do Milenio – ODS 5 – 200020

Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas


Meta 5.1 - Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em
todas as partes.
Meta 5.2 - Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas
e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos.
Meta 5.3 - Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados.
Meta 5.4 - Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da
disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção
da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais.
Meta 5.5 - Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a
liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública.
Meta 5.6 - Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como
acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas confe-
rências de revisão.
Meta 5.a - Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como
o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros,
herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais.
Meta 5.b - Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de informação e comu-
nicação, para promover o empoderamento das mulheres.
Meta 5.c - Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de
gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.

2.1.14. Declaração Americana de Direitos Humanos (1948)21

Artigo II. 
Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm os direitos e deveres consagrados nesta declaração, sem
distinção de raça, língua, crença, ou qualquer outra.

2.1.15. Convenção Americana dos Direitos Humanos – Pacto de San José de La


Costa Rica (1969)22

Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos.

20
IGUALDADE de gênero. Objetivos de desenvolvimento sustentável. ODS 5. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/ods/ods5.html. Acesso
em: 10 out. 2021

OEA. Declaracao Americana dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.declaracao_
21

americana.htm. Acesso em: 10 out. 2021.


22
OEA. Convenção Americana dos Direitos Humanos/ Pacto De San José De La Costa Rica. 1969. Disponível em: http://https://www.
cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 10 out. 2021.

278
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

§1. Os Estados Membros nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem
discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer
natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
§2. Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

2.1.16. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a


Mulher – Convenção de Belém (1994)23

Artigo 1
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta
baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto
na esfera pública como na esfera privada.
Artigo 2
Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:
a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o
agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas,
o estupro, maus-tratos e abuso sexual;
b ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro,
abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de
trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e 
c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

2.2. Sistema da Organização Internacional do Trabalho: Convenções da


OIT sobre igualdade de gênero24

● Convenção nº 3 sobre a proteção à maternidade, 1919


● Convenção nº 4 sobre o trabalho noturno (mulheres), 1919
● Convenção nº 41 (revisada) sobre o trabalho noturno (mulheres), 1934
● Convenção nº 45 sobre o trabalho subterrâneo (mulheres), 1935
● Convenção nº 89 sobre o trabalho noturno (mulheres), 1948 e Protocolo, 1990
● Convenção nº 103 sobre a proteção à maternidade (revisada), 1952
● Convenção nº 100 sobre a igualdade de remuneração, 1951
● Convenção nº 111 sobre a discriminação (emprego e ocupação), 1958

23
CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER – CONVENÇÃO DE BE-
LÉM – 1994. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em: 10 out. 21.
24
OIT. Igualdade de Gênero. Disponível em https://www.ilo.org/lisbon/temas/WCMS_650834/lang--pt/index.htm. Acessado em 10 out.
2021.

279
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

● Convenção nº 156 sobre os trabalhadores com responsabilidades familiares, 1981


● Convenção nº 171 sobre o trabalho noturno, 1990
● Convenção nº 183 sobre a proteção à maternidade (revisada), 2000
● Convenção n 189 sobre trabalho decente para trabalhadoras/es domésticos/as, 2011
● Convenção n 190 sobre assédio sexual e moral no trabalho, 2019

2.3. Normativa interna brasileira

2.3.1. Lei nº. 11.340 – Lei Maria da Penha (2006)25

Artigo 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e dimi-
nuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar
ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;          
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou
a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força;
que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar
qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,
mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus
direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração,
destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

BRASIL. Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos
25

do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Vio-
lência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 10 out. 2021.

280
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

3. O SISTEMA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS


E A CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA
PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER - CONVENÇÃO DE BELÉM

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher foi aprovada
pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos – OEA - em 9 de junho de 1994 e ratifi-
cada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995. O processo de aprovação foi impulsionado pela Comissão
Interamericana da Mulher – CIM, criada em 1928, mas integrada como organismo intergovernamental
do Sistema Interamericano da OEA somente a partir de 1948, mantendo caráter técnico permanente26.
A CIM integra o objetivo do sistema interamericano de cumprir com as vinculações dos países
membros da OEA aos sistemas internacional e interamericano em matéria de direitos humanos das
mulheres e equidade e igualdade de gênero, sobretudo tendo em vista a sua conversão em políticas
públicas e a efetivação de medidas igualitárias para as mulheres. 27 Neste sentido, deflagrou em 1990,
um processo de consulta com a participação da sociedade civil em nível internacional e nas instâncias
de decisão da própria OEA sobre mulher e violência.
O processo que culminou na Convenção de Belém (texto que se tornou referência mundial no
combate à violência contra a mulher) tem alguns documentos importantes, a respeito da matéria, que
a precedem. A consulta Interamericana sobre a Mulher e a Violência de 1990 e a Declaração sobre a
Erradicação da Violência contra a Mulher (aprovada em 1991). Participaram da consulta do anteprojeto
da Convenção, governos, comissões de parlamentares pertinentes, ministérios, agências governamen-
tais, associações profissionais e organizações da sociedade civil (ONGs), organizações de mulheres e de
direitos humanos da base do Sistema Interamericano. 28
Aprovada pelo Brasil mediante o Decreto Legislativo no 107, de 1o  de setembro de 1995, foi ratificada
em 27 de novembro de 1995 . O texto da Convenção de Belém do Pará amplia a definição da violência
contra a mulher:

1o: “Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou
conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à
mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”29

A Convenção de Belém do Pará garante uma vida livre de violência às mulheres, ao tratar a violência
contra elas como uma violação aos direitos humanos. Aqui o privado é público. Há o reconhecimento
da necessidade de intervenção normativa quando os direitos humanos das mulheres são violados na
privacidade, dentro do contexto doméstico e familiar. Nesse sentido, adota uma nova perspectiva obri-

26
Segundo o Estatuto, a finalidade da CIM é:[...] promover e proteger os direitos da mulher e apoiar os Estados-membros em seus esforços
para assegurar o pleno acesso aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais que permitam que mulheres e homens partici-
pem em condições de igualdade em todos os âmbitos da vida social, para lograr que desfrutem plena e igualitariamente dos benefícios do
desenvolvimento e compartam também a responsabilidade pelo futuro. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADO AMERICANOS (OEA). Estatuto
da Comissão Interamericana da Mulher. Disponível em: http://www.oas.org/xxxivga/portug/reference_docs/Estatuto_CIM.pdf. Acesso
em: 10 set. 2021.


27
ROQUE, Margarita. Historia de la Comision Interamericana de Mujeres 1928-1997. Washington, D.C: CIM/OEA, 1998.
28
BANDEIRA, Lurdes Maria e ALMEIDA, Tania Mara campos de. Vinte Anos Da Convenção De Belém Do Pará E A Lei Maria Da Penha.
Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, 23(2): 352, maio-agosto/2015. p.501-517.
29
OEA. Convenção de Belém do Pará. 1994. Disponível em:
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/belem.htm. Acesso em: 10 set. 2021.

281
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

gacional onde cabe aos Estados assumirem a responsabilidade e o dever indelegável de erradicar e
sancionar as situações de violência contra as mulheres. 30

Artigo 2 Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica.
a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer
o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras
turmas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; b) ocorrida na comunidade e comedida por qual-
quer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres,
prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições
educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e c) perpetrada ou tolerada pelo Estado
ou seus agentes, onde quer que ocorra. 31

A Convenção também dá especial atenção à violência sofrida por meninas, crianças e adolescentes. No
caso Caso Guzmán Albarracín contra o Estado do. Ecuador, a Corte IDH desenvolveu, pela primeira
vez, estândares relacionados com o direito das meninas a uma vida livre de violência sexual no âmbito
educativo, lembrando que o art. 2 da Convenção de Belém menciona o assedio sexual em instituições
de ensino como formas de violência de gênero32.
O Brasil publicou legislação própria sobre a matéria da violência contra a mulher somente em 2006,
após recomendações CIDH, em abril de 2001. O caso ficou conhecido em todo sistema e foi apre-
sentado por uma associação de ONGs, pelo Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e pelo
Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) em nome de Maria da Penha
Fernandes. Vítima de violência doméstica e familiar, Maria da Penha recorreu ao judiciário brasileiro.
A representação junto à CIDH que culminou na ação contra o Brasil, alegava a situação de extrema
tolerância do Brasil com a violência cometida contra Maria da Penha pelo seu ex-esposo e o quanto
o sistema de justiça brasileiro era conivente com a impunidade do agressor. Tanto a CADH, quanto a
Convenção de Belém fundamentaram a petição.
A CIDH analisou a denúncia por 13 anos e, durante esse tempo, foram enviadas três solicitações oficiais
de esclarecimentos ao governo brasileiro, que não as considerou. 33 Em seu relatório final, a Comissão
afirmou que “O Brasil não garantiu um processo justo contra o agressor em um prazo razoável”.
O Brasil foi novamente condenado por omissão em investigação, processamento e punição da
violência contra a mulher no caso da Favela Nova Brasília. Aqui, além dos vários trechos da decisão
que referem negligência na investigação e processamento dos agentes agressores e do uso abusivo da

30
BANDEIRA, Lurdes Maria e ALMEIDA, Tania Mara campos de. Vinte Anos Da Convenção De Belém Do Pará E A Lei Maria Da Penha.
Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, 23(2): 352, maio-agosto/2015, p.501-517.

OEA.
31
Convenção de Belém do Pará. 1994. Disponível em:
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/belem.htm. Acesso em: 10 set. 2021.
32
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Guzmán Albarracín y otras Vs. Ecuador, 24 de junho de 2020. Disponível em
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_431_esp.pdf. Acesso em 10 abr. 2022, parágrafo 111. Já no caso V.R.P contra o Estado
da Nicarágua, a Corte IDH lembra que a Convenção dá especial tratamento à proteção de menores de 18 anos, considerando sua situação
de vulnerabilidade. O Estado é responsável, não só por garantir que o processo de investigação de crimes sexuais envolvendo menores
sejam desenvolvidos e processados considerando tais vulnerabilidades, como deve haver uma política para reabilitação e reinserção da
vítima, através assistência, tanto médica, quanto psicológica e/ou psiquiátrica, por profissionais que atuem com perspectiva de gênero
em casos de violência sexual contra menores. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Mujeres Víctimas De Tortura
Sexual En Atenco Vs. México, 08 de março de 2018. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_350_esp.pdf.
Acesso em 10 fev. 2022
33
BANDEIRA, Lurdes Maria; ALMEIDA, Tania Mara campos de. Vinte Anos Da Convenção De Belém Do Pará E A Lei Maria Da Penha. Revista
de Estudos Feministas, Florianópolis, 2015, v. 23, n. 2. p. 501-517

282
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

força policial34[1], a Corte Interamericana fez referência à obrigação internacional de investigar casos de
violência sexual contra mulheres35, estabelecendo um recorte de gênero no julgamento das violações
perpetradas pelos agentes do Estado contra uma mulher e duas adolescentes. A presença do elemento
racial e étnico integra as recomendações da Corte:

“estabelecer sistemas de controle e prestação de contas internos e externos para tornar efetivo
o dever de investigar, com uma perspectiva de gênero e étnico-racial, todos os casos em que os
agentes da ordem utilizam a força letal e/ou a violência sexual, e fortalecer a capacidade insti-
tucional de órgãos independentes de supervisão, inclusive os órgãos forenses, para enfrentar o
padrão de impunidade dos casos de execuções extrajudiciais por parte da polícia”;

Os Estados membros da OEA estão obrigados a oferecer prevenção, investigação, sanção e reparação36.
A Convenção de Belém do Pará atua rompendo formas habituais de aplicar a justiça, derrubando
estereótipos tradicionais em relação à mulher, ou seja, em processos envolvendo violência contra as
mulheres recomenda a escuta contextualizada dos depoimentos, sejam consideradas a vulnerabilidade
da vítima e a credulidade dos depoimentos das mulheres, bem como, a premissa de que a violência foi
praticada contra a mulher e não provocada pela mulher.
A CIDH aduziu que o sistema de justiça brasileiro não atuou com plena diligência e eficiência no sentido
de punir o agressor e reparar a vítima, não garantindo um julgamento com perspectiva de gênero37.

[...] a Comissão recomendou ao Brasil, dentre outras medidas, prosseguir e intensificar o processo
de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência
doméstica contra mulheres no país, particularmente o seguinte: a) medidas de capacitação e
sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a
importância de não tolerar a violência doméstica; b) simplificar os procedimentos judiciais penais
a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido
processo; c) estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de

34
“209. Por outro lado, ainda que a atuação da polícia tenha sido coberta de omissões e negligência, outros órgãos estatais tiveram a opor-
tunidade de retificar a investigação e não o fizeram. Em primeiro lugar, a Corregedoria da Polícia Civil mostrou ser incapaz de conduzir a
investigação a partir de 2002. A esse respeito, o perito João Trajano destacou que há fortes indícios de que esse órgão privilegie o espírito
corporativo e se concentre em averiguar problemas administrativos ou disciplinares, e não priorize graves denúncias de violações de
direitos humanos e abuso da força no cumprimento de suas funções. Em resumo, o perito afirmou que as corregedorias “não conseguem
dar conta de sua missão investigadora e punitiva”.241 Além disso, o Ministério Público tampouco cumpriu sua função de controle da ati-
vidade de investigação da polícia, e aprovou o arquivamento do inquérito sem verificar a completa falta de diligência e de independência
nele presente durante mais de uma década. Por sua vez, o juiz chamado a decidir pelo arquivamento da investigação, em 2009, tampouco
procedeu a um controle efetivo da investigação e se limitou a manifestar estar de acordo com a Promotoria, o que foi decisivo para a im-
punidade dos fatos e a falta de proteção judicial dos familiares das pessoas mortas em 18 de outubro de 1994” CORTE INTERAMERICANA
DE DERECHOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. 16 de fevereiro de 2017, Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em 10 fev. 2022.
35
“38. No presente caso, a Corte observa que se identificaram 26 vítimas falecidas e três vítimas de violência sexual e estupro. Embora se
registrem problemas quanto à identificação dos supostos familiares de algumas das vítimas, que poderiam justificar-se em virtude: i) do
contexto do caso; ii) da natureza coletiva da violação dos direitos humanos; iii) da falta de documentos de identidade; iv) do período de 22
anos transcorridos desde a primeira incursão policial; e v) de alguns atos de omissão de registro atribuíveis ao Estado”. CORTE INTERA-
MERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. 16 de fevereiro de 2017, Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em 10 mai 2022.
36
A Corte IDH desenvolveu estândares sobre escravidão sexual e acesso à justiça em condições de igualdade para mulheres vítimas de vio-
lência. A decisão do Caso López Soto contra o Estado da Venezuela é emblemática porque relaciona a violência sexual ao exercício, pelo
agressor, de atributos do direito de propriedade sobre vítima.Em sua Sentença, a Corte IDH analisou a responsabilidade do Estado pela
violação à sua obrigação de prevenir violações de direitos e sua relação com a tolerância estatal diante de atos cometidos por particulares.
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso López Soto y otros Vs. Venezuela. 26 de setembro de 2018, Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_362_esp.pdf . Acesso em 10 fev. 2022, parágrafo 176.

CIDH. Caso 12.051. Maria da Penha Maia Fernandes vs. Brasil. de 04 de abril de 2001. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annual-
37

rep/2000port/12051.htm. Acesso em 10 set. 2021.

283
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequên-
cias penais que gera; d) multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos
direitos da mulher e dotá-las dos recursos necessários à efetiva tramitação e investigação de todas
as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação
de seus informes judiciais; e) incluir em seus planos pedagógicos, unidades curriculares destinadas
à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção
de Belém do Pará de 1994, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares.”38

Em 2006, o Brasil publicou a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, criando mecanismos para
coibir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Convenção de Belém do
Pará. A Lei cria Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, estabelece novos procedi-
mentos e ritos processuais e impõe a realização de acompanhamento de dados e casos no Brasil a fim
de levantar dados estatísticos a respeito da violência contra as mulheres em todo território nacional. 39
A Convenção de Belém do Pará foi um importante avanço não só para ampliar o conceito de violência e
reconhecer que no âmbito privado das relações é uma agressão aos direitos, mas também, e sobretudo,
trata a omissão dos Estados membros do sistema OEA como potenciais violações de direitos humanos
das mulheres. Aqui a violência de gênero que representa uma afronta aos direitos humanos pode
ser cometida quando o Estado não age decisivamente no combate à discriminação contra a mulher,
seja constituindo um aparato legal interno que garanta a igualdade de gênero, seja na promoção de
políticas que promovam mudanças sociais e culturais que obstaculizem a exclusão das mulheres e a
manutenção de estados de vulnerabilidade e subordinação.40

4. CONCEITOS IMPORTANTES, PROTOCOLO DE


PEQUIM E A TRANSVERSALIDADE DE GÊNERO

A 4ª Conferência Mundial de Mulheres da ONU aconteceu em setembro de 1995 em Pequim, na China.


A Conferência Internacional de Direitos Humanos de Viena já havia avançado bastante nas questões
que envolviam os direitos humanos das mulheres considerando a violência como violação dos direitos
humanos. Mas agora era necessário que se superassem alguns universalismos que haviam sido usados
para alcançar patamares normativos e de proteção junto ao DIDH. Em Pequim estavam na pauta o
direito das mulheres a uma vida livre de violências, aos direitos reprodutivos e ao acesso à saúde sexual.
O termo transversalização de gênero entra no vocabulário das Nações Unidas.41

38
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; BIANCHINI, Alice. Lei de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei Maria da Penha): constitucio-
nalidade e convencionalidade. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1242740418174218181901.pdf. Acesso em
09 set. 2021.
39
BRASIL. Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos
do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Vio-
lência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 10 out. 2021.
40
Vide artigos 8 e 9 da Convenção. Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Convenção de Belém do Pará. 1994. Disponível em: http://
www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/belem.htm. Acesso em: 10 set. 2021.


41
CORREA, Sonia. A “política do gênero”: um comentário genealógico. Cad. Pagu  no.53 Campinas  2018, Epub, June 11, 2018. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332018000200401&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 09 set. 2021.

284
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

O termo direitos reprodutivos surge fortemente referenciado na Conferência Internacional de Popu-


lação e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e se consolida na Conferência de Pequim (1995) .42 Autoras como
Freedeman43 e Cook44 defenderam medidas de proteção à saúde reprodutiva da mulher como direito
fundamental para o exercício das liberdades sobre o corpo e a autodeterminação reprodutiva.
Cabe referir que dentre os casos relativos à violação de direitos reprodutivos de mulheres, encon-
tram-se diferentes tipos de agressões, como: esterilização forçada45, negação ao direito de aborto legal,
questões relacionadas a gravidez e o direito a saúde especializado46, gravidez em situação de prisão,
problemas envolvendo questões de saúde reprodutiva, dentre outras47.

Os direitos humanos das mulheres incluem seus direitos a ter controle e decidir livre e responsa-
velmente sobre questões relacionadas à sua sexualidade, incluindo a saúde sexual e reprodutiva,
livre de coação, discriminação e violência. Relacionamentos igualitários entre homens e mulheres
nas questões referentes às relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito pela integri-
dade da pessoa, requerem respeito mútuo, consentimento e divisão de responsabilidades sobre o
comportamento sexual e suas consequências.48

Quanto aos direitos sexuais, Mattar49 revela que a discussão começa no final de 1980 com os contágios
pela SIDA/HIV no movimento gay e lésbico a quem se unificou o movimento feminista. Essa discussão
é retomada em nível de Conferência Mundial da Mulher em Pequim e culmina na redação do parágrafo
96 da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim:

42
Segundo o parágrafo 7.3 do Programa de Ação do Cairo: [O]s direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em
leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos consensuais. Esses direitos se ancoram no
reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e
a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual
e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência, conforme
expresso em documentos sobre direitos humanos. MATTAR, Laura Davis. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais: uma análise com-
parativa com os direitos reprodutivos. Rev. Int. Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n. 8 , p. 61-83, jun. 2008. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/sur/a/CwLVRN4HBQzfcPsGb8WJc9q/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 09 set. 2021..
43
REEDMAN, Lynn e ISAACS, Stephen. Human Rights and Reproductive Choice. Studies in Family Planning, v. 24, n. 1 p. 18-30, 1993. Dispo-
nível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/8511808/. Acesso em: 09 set. 2021.
44
COOK, Rebeca. International Human Rights and Women’s Reproductive Health. Studies in Family Planning, v. 24, n. 2, p. 73-86, Marc-Apr.
1993. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/8511808/. Acesso em: 09 set. 2021.
45
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Maria Mamerita Chaves y otras Vs. Peru, 10 de outubro de 2003. Disponível
em https://cidh.oas.org/annualrep/2003port/Peru.12191.htm. Acesso em 10 abr 2022.
46
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Cuscul Pivaral Y Otros Vs. Guatemala, 23 de agosto de 2018. Disponível em
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_359_esp.pdf. Acesso em 10 mar 2021


47
No caso Manuela y Outros contra o Estado de El Salvador, os fundamentos para a decisão que condena o Estado de San Salvador são
as violações a liberdade pessoal, a garantia judicial e a igualdade perante a lei, o direito a vida, o direito a integridade pessoal e da vida
privada, direito a saúde. O SIDH identificou que a atuação do sistema de justiça, a começar pela investigação, foi conduzida por precon-
ceitos e estereótipos negativos de gênero que afetaram a objetividade dos agentes encarregados. A Corte indicou que a aplicação de tais
estereótipos só foi possível em razão de Manuela ser mulher, de escassos recursos econômicos, analfabeta e que moradora da zona rural.
Isso constituiu uma violação do direito à presunção de inocência e o direito de ser julgada por um tribunal imparcial. CORTE INTERAME-
RICANA DE DIREITOS HUMANOS - Corte IDH, Caso Manuela y otras Vs. El Salvador, 2 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.
corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_441_esp.pdf. Acesso em 10 abr 2022.
48
MATTAR, Laura Davis. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais: uma análise comparativa com os direitos reprodutivos. Rev. Int.
Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, v. 8 , p. 61-83, jun. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sur/a/CwLVRN4HBQzfcPsGb8WJc-
9q/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 09 set. 2021.
49
MATTAR, Laura Davis. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais: uma análise comparativa com os direitos reprodutivos. Rev. Int.
Direitos Humanos, São Paulo v. 5, v. 8 , p. 61-83, jun. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sur/a/CwLVRN4HBQzfcPsGb8WJc-
9q/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 09 set. 2021.

285
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O conceito de gênero é entendido na ONU e na Plataforma de Ação de Pequim como “uma variável
sociocultural transversal (cross-cutting socio-cultural variable) no sentido de que pode se interligar
com outras variáveis, como raça, classe, nacionalidade, etc” (PONTES, 2018, p. 53). A intersecciona-
lidade consta no parágrafo 106, c, da Plataforma de Pequim onde são reconhecidas diversas formas
de discriminação, tais como, mulheres, meninas, portadoras de necessidades especiais, minorias
raciais e étnicas. 50
A perspectiva da transversalização do gênero permite estabelecer tanto a compreensão das conse-
quências para as mulheres de um mundo estruturado em função do gênero, quanto um conjunto de
práticas necessárias no âmbito dos Estados (políticas públicas e sistemas normativos)51 para que todas
possam livremente exercer suas opções, sem violações destas liberdades.
Mais do que defender a liberdade e a integridade, o reconhecimento da expressão da sexualidade, ou
da identidade, ou da orientação de gênero pode garantir a livre expressão das pessoas que integram a
comunidade LGBTQIAP+ . 52
No âmbito do SIDH, A Corte IDH reconhece que há discriminação estrutural e estigmatização das
pessoas que expressam uma sexualidade não normativa. Para a Corte discursos discriminatórios
acompanhados de comportamentos homofóbicos, lesbofóbicos e a transfobicos baseados em este-
reótipos da hetenormatividade e da cisnormatividade constroem e alimentam os discursos de ódio
contra a comunidade. 53
Por esta razão a Corte estabelece que orientação sexual, identidade de gênero e expressão do gênero
da pessoa são categorias protegidas pela Convenção de Belém e pela Convenção Americana de
Direitos Humanos. 54
A condenação de atos discriminatórios e de violência motivados pela orientação sexual e/ou pela iden-
tidade ou expressão de gênero, no sentido de garantir direitos humanos às pessoas da comunidade
LGBTQIAP+, foi fundamento para a decisão que condenou o estado peruano no caso Azul Roas
Marín, em 2020. 55
Os direitos relacionados à identidade de gênero também integram a fundamentação da Corte IDH
que condena o Estado de Honduras no caso Vicky Hernández. A Corte reconheceu que a violência

50
PONTES, Rúbia Marcussi. Gênero e Desenvolvimento Nas Nações Unidas: Avanços e Desafios com o Gender Mainstreaming. Orbis
Latina, Foz do Iguaçu, v.8, n 2, p. 38-59, 18 dez. 2018. Disponível em: https://revistas.unila.edu.br/orbis/article/view/1374. Acesso em: 10 out.
2021
51
WALBY, Sylvia.  Gender Mainstreaming. Productive Tensions in Theory and Practice. Social Politics: International Studies
in Gender, State & Society, Volume 12, Issue 3, Fall 2005, Pages 321–343. Disponível em: https://academic.oup.com/sp/arti-
cle-abstract/12/3/321/1679224?redirectedFrom=fulltext. Acesso em: 09 set. 2021.
52
O “+” é o termo coringa que engloba todas as letras da sigla completa LGBTT2QQIAAP, respectivamente se referindo a lésbicas, gays,
bissexuais, transgêneros, transexuais, 2 Spirits – segundo nativos americanos, trata-se de uma pessoa que nasceu com espíritos mas-
culinos e femininos -, queer, questionado – aqueles que ainda estão se encontrando -, intersexuais, assexuais, aliados – todos que
prestam apoio – e pansexuais – atração sexual independente de identidade de gênero ou sexo. MANUAL DO ORGULHO LGBTQIA+.
Publicação on-line. Editora Printi, 28.06.2021. Disponível em https://www.printi.com.br/blog/wp-content/uploads/2021/07/Manual-do-Or-
gulho-LGBTQIA-%F0%9F%8F%B3%EF%B8%8F_%F0%9F%8C%88-1.pdf. Acesso em 10 abr 2022.
53
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – Corte IDH, Caso Azul Rojas Maríny otras Vs. Peru, 12 de março de 2020. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_402_esp.pdf., Parágrafo 47. Acesso em 10 abr 2022, parágrafo 47.
54
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – Corte IDH, Caso Atala Riffo y niñas Vs. Chile.. Disponível em: https://corteidh.or.cr/
docs/casos/articulos/seriec_239_esp.pdf. Acesso em 10 abr 2022, parágrafo 93.
55
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS - Corte IDH, Caso Azul Rojas Maríny otras Vs. Peru, 12 de março de 2020. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_402_esp.pdf. Acesso em 10 abr 2022, parágrafo 46.

286
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

perpetrada contra a vítima, uma mulher transexual, se deu em razão da expressão de sua identi-
dade de gênero. 56
A Declaração/Protocolo de Pequim adota a transversalidade de gênero:

38. Pela presente nos comprometemos, na qualidade de Governos, a implementar a seguinte


Plataforma de Ação, de modo a garantir que uma perspectiva de gênero esteja presente em todas
as nossas políticas e programas. Nós insistimos ao sistema das Nações Unidas, às instituições
financeiras regionais e internacionais e às demais relevantes instituições regionais e interna-
cionais e a todas as mulheres e homens, como também às organizações não governamentais,
com pleno respeito à sua autonomia, e a todos os setores da sociedade civil que, em cooperação
com os Governos, se comprometam plenamente e contribuam para a implementação desta
Plataforma de Ação. 57

Em julho de 1997 o Conselho Econômico e Social da ONU definiu o conceito de transversalização de


gênero como sendo:

o processo de avaliação das implicações para mulheres e homens de qualquer ação planejada,
incluindo legislação, políticas ou programas, em todas as áreas e em todos os níveis. É uma estra-
tégia para fazer as preocupações de mulheres e homens uma dimensão integral do desenho,
implementação, monitoramento e avaliação de políticas e programas em todas as esferas políticas,
económicas e sociais, de modo a que as mulheres e os homens se beneficiem de forma igual O
objetivo final é o de alcançar a igualdade de gênero (FACIO, 2010, p. 37). 58

Significa dizer que o gender mainstreaming deve operar como uma estratégia formal de ampliação
da importância da perspectiva de gênero na elaboração de políticas de desenvolvimento e de planeja-
mento, de normas e implementação e monitoração de seus efeitos na vida de mulheres e de homens.
Em todas as etapas, fases e concepções. 59
A Plataforma de Ação (com 361 parágrafos) define uma agenda para o combate à discriminação de
gênero e aponta áreas críticas que exigem atuação direta dos Estados no sentido de eliminar os
obstáculos que impedem as mulheres de seu pleno desenvolvimento em todos os campos da vida
privada e pública60.

56
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – Corte IDH, Caso Vicky Hernández y otras Vs. Honduras, 26 de março de 2021.
Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_422_esp.pdf. Acesso em 10 abr 2022. A visão estereotipada da orientação
sexual também influenciou o laudo psicológico que desabilitou a guarda da avó no caso Ramirez Escobar x Guatemala. A conclusão do
laudo psicológico aduz que a homossexualidade da ascendente desfavorecia o cumprimento adequado da responsabilidade maternal.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – Corte IDH. Caso Ramírez Escobar y otros Vs. Guatemala (2018) , 09 de março de
2018. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_351_esp.pdf. Acesso em 10 fev. 2022.


57
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Declaração de Pequim, 1995. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/
bibliotecavirtual/instrumentos/pekin.htm. Acesso em: 09 set. 2021.
58
FACIO, Alda. Los derechos de las mujeres son derechos humanos. Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2010. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/tablas/r31195.pdf. Acesso em: 20 set. 2018.
59
PONTES, Rúbia Marcussi. Gênero e Desenvolvimento Nas Nações Unidas: Avanços e Desafios com o Gender Mainstreaming. Revista
Orbis Latina, vol.8, nº 2, Foz do Iguaçu/ PR (Brasil), 18 dez. de 2018. Disponível em: https://revistas.unila.edu.br/orbis/article/view/1374.
Acessado em: 10 out. 2021.
60
GUARNIERI, Tatiana Haddad. Os Direitos Das Mulheres No Contexto Internacional – Da Criação Da Onu (1945) À Conferência De Bei-
jing (1995). Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery do Curso de Direito - N. 8, JAN/JUN 2010. Disponível em: http://
re.granbery.edu.br/artigos/MzUx.pdf. Acesso em: 09 set. 2021.

287
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Dentre estas questões estão a participação política das mulheres, as questões que envolvem a repro-
dução e a maternidade e o mercado de trabalho para a mulher trabalhadora61.

4.1. Gênero e representação política

A adoção da CEDAW (princípios da não discriminação e da igualdade de direitos para as mulheres)


pela ONU implementa um amplo programa de ação para as mulheres. Os Estados membros assumem
compromissos de garantias importantes no âmbito político, tais como garantir o direito ao voto e elegi-
bilidade. As ações afirmativas, que tem na política de cotas sua mais importante versão, tem o objetivo
de acelerar estrategicamente o alcance de equidade de gênero, não só na ocupação dos cargos, mas na
possibilidade de encaminhamentos de pautas e tomadas de decisão. Documentos como as Estratégias
de Nairóbi (1985) e da Plataforma de Ação de Pequim (1995) são fundamentais (é aqui, que se estabe-
lece a meta de cotas mínimas de 30% de representação feminina nos parlamentos, uma cota mínima).62
Na América Latina, a perspectiva/meta da paridade de gênero é registrada no Consenso de Quito
(2007) e reafirmado nos Consensos de Brasília (2010) e de Santo Domingo (2013).63 A assinatura e a
ratificação de convenções internacionais e de seus protocolos facultativos criaram condições para
impulsionar, garantir e proteger os direitos das mulheres, incluindo os políticos. No caso das Consti-
tuições latino americanas recentes, há um especial  status jurídico aos tratados de direitos humanos.
A Constituição da Argentina (1994), por exemplo, atribui à CEDAW status de norma constitucional, a
Carta da Costa Rica (2003) incorpora o mesmo preceito e vai além lhe aferindo caráter supraconstitu-
cional. A Constituição Brasileira (1988), em que pese não mencionar a Convenção, acolhe os tratados
de direitos humanos.64
O direito ao voto foi obtido ainda nas décadas iniciais do século XX. Com a conquista do sufrágio, as
mulheres puderam candidatar-se, mas o cenário político ainda era pouco amigável para elas, sendo que
a conquista acabou por não significar representatividade. A pouca familiaridade com o cenário político,
dominado por códigos patriarcais e comandado por homens e a política partidária não receptiva, aliado
à manutenção das mulheres em papéis de subordinação sexual e laboral, atuaram fortemente no afas-
tamento das mulheres das instituições e do sistema político.65
Desde a conquista do direito ao voto (que variou bastante, tanto regionalmente, como nacionalmente
no mundo), as mulheres têm pautado a importância de sua participação no cenário político e decisório


61
O reconhecimento de dificuldades enfrentadas pelas mulheres no exercício profissional foi julgado pela Corte IDH no caso Bedoya Lima
y outra contra o Estado Colombiano. Destacou a Corte jornalistas mulheres enfrentam riscos específico pelo fato de serem mulheres,
o que se agrava quando incorporado o recorte interseccional (raça, orientação sexual, classe e origem étnica), os quais transversalizam
outros fatores de vulnerabilidade como raça, orientação sexual, classe origem étnica). A violência contra jornalistas mulheres reflete uma
pauta mais ampla, que muitas mulheres enfrentam no ambiente de trabalho, de sexismo e violência de gênero que castiga mulheres por
ter opiniõe. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – Corte IDH. Caso Bedoya Lima Y Otra Vs. Colombia, 26 de agosto de
2021. Disponível em https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_431_esp.pdf. Acesso em 10 mai 2022.
62
DAHLERUP, Drude. De uma pequena a uma grande minoria: uma teoria da “massa crítica” aplicada ao caso das mulheres na polí-
tica escandinava. In: LAMAS, Marta (org.). Debate feminista: cidadania e feminismo. São Paulo, Melhoramentos, 1999, pp.142-183.
63
LLANOS, Beatriz Cabanillas. A modo de introducción: caminos recorridos por la paridad en el mundo. In: IDEA/OEA/CIM. La apuesta
por la paridad: democratizando el sistema político en América Latina. Los casos de Ecuador, Bolivia y Costa Rica. Perú, IDEA Internacional/
CIM Comisión Interamericana de Mujeres, 2013, pp.17-46.
64
PRA, Jussara Reis. Mulheres, direitos políticos, gênero e feminismo. Cadernos Pagu (43), julho-dezembro de 2014:169-196. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/cpa/a/8nHJp8hN4rvR4sBpGWdKm9L/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 09 set. 2021.
65
FERREIRA, Mary. Do voto feminino à Lei das Cotas: a difícil inserção das mulheres nas democracias representativas. Revista Espaço
Acadêmico, n.37, jun de 2004.

288
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

internacional.66 As disputas por autonomia política e sexual sempre fizeram parte dos movimentos
feministas, mas no que diz respeito a uma agenda internacional de inserção das mulheres na política
institucional e aos mecanismos garantidores desta participação, a Conferência de Pequim (1995) deu
um salto importante.67
Dentre os objetivos da Declaração de 1995 estão que:

“a igualdade na adoção de decisões políticas exerce uma função de alavanca sem a qual é altamente
improvável viabilizar a integração real da igualdade na formulação de políticas governamentais.... a
participação eqüitativa das mulheres na vida política desempenha um papel essencial no processo
geral de avanço das mulheres.... condições de igualdade na tomada de decisões constitui não só
uma e;xigência básica de justiça ou democracia, mas pode ser também considerada uma condição
necessária para que os interesses das mulheres sejam levados em conta”68.

Dentre as medidas adotadas na Conferência para se atingir o objetivo supracitado, além das iniciativas
que permitam maior participação da mulher, estão entre as sugestões a possibilidade dos partidos
incorporarem questões de gênero em seus programas políticos; o desenvolvimento de programas de
promoção na carreira para mulheres; o incentivo à participação de mulheres indígenas e a criação de
uma massa crítica de mulheres em pontos estratégicos de tomada de decisão69.
As orientações, como de regra nas normativas internacionais, estabeleciam obrigações aos Estados
no sentido de implementar as medidas que reconheciam o papel fundamental das mulheres na esfera
política. Onze países sul-americanos adotarem o uso de cotas partidárias como mecanismo de efeti-
vação dos objetivos de equidade política70.
O sistema de cotas é um mecanismo de fácil compreensão que se apresentou como uma solução obje-
tiva de redução das disparidades de representação nos parlamentos. Na América Latina, a Argentina
adotou o sistema antes mesmo de Viena e Pequim, em 1991 (hoje o país ocupa o 20º lugar no ranking
de representação feminina no parlamento, com 42,4% dos assentos). A relação política de cotas X
participação feminina é fundamental para ampliação das oportunidades, mas não resulta em reconhe-
cimento efetivo das mulheres nos processos eletivos. O Brasil adotou a política de cotas em 1995. Hoje
ocupa a 175º posição no ranking mundial com apenas 15,2% de participação das mulheres nos cargos
políticos do parlamento. Nos Emirados Árabes as mulheres votaram pela primeira vez em 2015, mas já
somam 50% das representações parlamentares, ocupando a posição 114º do ranking. 71

66
Sobre a evolução do voto feminino ver ALVES PEREIRA, Maria do Rosário; LAGUARDIA, Angela; BARBOSA, Maria Lúcia. Mulheres Editoras
No Século Xix: Na Conquista De Um Espaço, A Luta Pela Educação E Pelo Voto Feminino. LETRAS EM REVISTA, [S.l.], v. 11, n. 2, maio 2021.
ISSN 2318-1788. Disponível em: https://ojs.uespi.br/index.php/ler/article/view/397. Acesso em: 10 out. 2021.
67
MARTINI, Diandra Ávila. Cotas partidárias e sub-representação feminina na América do Sul: Um estudo comparado entre Brasil e Bolívia.
I Seminário Internacional de Ciência Política. Estado e Democracia em mudança no Século XXI. Programa de Pós-Graduação em
Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 9-11 de setembro de 2015. Porto Alegre, RS. Disponível em: https://
www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/DIANDRA-MARTINI.pdf. Acesso em: 09 set. 2021.
68
ONU Mulheres. Declaração e Plataforma de Acão da IV Conferência Mundial sobre a Mulher – Pequim 1995. Disponível em: https://
www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf. Acesso em: 09 set. 2021.
69
MARTINI, Diandra Ávila. Cotas partidárias e sub-representação feminina na América do Sul: Um estudo comparado entre Brasil e Bolívia.
I Seminário Internacional de Ciência Política. Estado e Democracia em mudança no Século XXI. Programa de Pós-Graduação em
Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 9-11 de setembro de 2015. Porto Alegre, RS. Disponível em: https://
www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/DIANDRA-MARTINI.pdf. Acesso em: 09 set. 2021.
70
HTUN, Mala. A política de cotas na América Latina. Rev. Estudos Feministas, v. 9 n. 01, p. 225-230, 2001. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/S0104-026X2001000100013. Acesso em: 06 out. 2014.


71
INTER-PARLAMINTARY UNION – Global Date and Internacional Pariliamens - Monthly ranking of women in national parliaments.
Disponível em: https://data.ipu.org/women-ranking?month=9&year=2021. Acesso em: 09 set. 2021.

289
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O envolvimento das mulheres com a política ainda esbarra em uma série de obstáculos, dentre eles
estão o que Miguel e Biroli vão chamar de “estruturas de oportunidade” (2011, p. 89). 72 Aqui estão envol-
vidos desde a compreensão e a imagem que a mulher tem de si mesma, até os esquemas de subor-
dinação e do lugar da reprodução social. Quer dizer, a mulher permanece presa ao espaço privado,
enquanto a política se realiza no espaço público73 Esta divisão entre dentro e fora, entre esfera pública
e esfera privada delimita e demarca todos os espaços de atuação na sociedade. O público é o lugar da
política e da economia e está reservada aos homens, enquanto às mulheres coube o doméstico, do lar
e do cuidado, ou seja, a lugar privado. 74
Por isso as cotas podem representar um avanço fundamental, uma vez que têm caráter cogente em
relação tanto à organização partidária, quanto à participação efetiva nos processos eletivos de ocupação
de cargos parlamentares.
A Conferência de Pequim, além de solidificar a questão da violência contra a mulher como uma questão
para os direitos humanos, tratou das questões sobre desigualdade de gênero nas esferas públicas e
privadas. Em 1995 os movimentos de mulheres seguiram debatendo as pautas inseridas desde Viena e
Nairóbi (igualdade, desenvolvimento e paz, reforçando o compromisso de se atingir os objetivos para
o avanço da mulher antes do fim do século). O Capítulo IV da Plataforma de Ação trata da mulher no
poder e na tomada de decisão. 75
Mas a violência contra a mulher vai também se apresentar como obstáculo no ativismo das mulheres.
O controle através do abuso sexual e da privação de liberdade também estão associados ao exercício
de direitos políticos pelas mulheres. A CorteIDH julgou em 2018 o caso das mulheres floricultoras mexi-
canas, que se refere a atuação policial ocorrida nos municípios de Texcoco e San Salvador Atenco, no
México contra 11 mulheres que estavam em um protesto de floricultores, que foram submetidas a
diversas formas de violência sexual no momento de sua detenção e posterior privação de liberdade. 76
A decisão da CorteIDH analisa os limites impostos pelo direito internacional dos direitos humanos
ao uso da força por parte dos corpos de segurança, em particular nos cenários relacionados com o
exercício do direito de reunião. Analisa a violência sexual e o abuso verbal a que foram submetidas e
também como o mecanismo de tortura é utilizado como forma de controle politico e social. 77
Assuntos como aborto, igualdade de gênero, saúde da mulher, sexualidade, discriminação e violência de
gênero no local de trabalho são pautas que devem ser inseridas nos parlamentos dos Estados membros
e só com o incremento de vozes femininas é possível que isso seja feito.

72
BIROLI, Flavia e MIGUEL, Luis Felipe. Caleidoscópio Convexo: mulheres, política e mídia. São Paulo, editora UNESP, 2011. p. 241.
73
SULLEROT, Evelyne. A mulher no trabalho: História e Sociologia Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1970.


74
ABRAMO, Laís; TODARO, Rosalba. Custos do trabalho e reprodução social em cinco países latino-americano. In: ABRAMO, Laís (ed.).
Questionando um mito: cursos do trabalho de homens e mulheres. Brasília: OIT, 2005, pp. 13-64.
75
MARTINI, Diandra Ávila. Cotas partidárias e sub-representação feminina na América do Sul: Um estudo comparado entre Brasil e Bolívia. I
Seminário Internacional de Ciência Política. Estado e Democracia em mudança no Século XXI. Programa de Pós-Graduação em Ciên-
cia Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 9-11 de setembro de 2015. Porto Alegre, RS. Acessado em 09.09.2021.
Disponível em: https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/DIANDRA-MARTINI.pdf
76
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Mujeres Víctimas De Tortura Sexual En Atenco Vs. México. 28 de no-
vermbo de 2018. Disponível em: https://cdh.defensoria.org.ar/wp-content/uploads/sites/3/2020/06/caso-mujeres-v--ctimas.pdf. Acesso
em: 10 fev. 2022, parágrafo 202.
77
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – Corte IDH. Caso Mujeres Víctimas De Tortura Sexual En Atenco Vs. México 28 de
novermbo de 2018. Disponível em: https://cdh.defensoria.org.ar/wp-content/uploads/sites/3/2020/06/caso-mujeres-v--ctimas.pdf. Aces-
so em 10 fev. 2022, parágrafo 202.

290
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

4.2. Gênero, Reprodução e Maternidade

A saúde constitui bem jurídico de natureza extrapatrimonial e de personalidade. Nesse sentido, a CFRB
prevê a proteção da maternidade como direito social (art. 6º), da família como “base da sociedade” (art.
226 com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 65/2010), bem como do “planejamento como
livre decisão do casal, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade respon-
sável, atribuído ao Estado o dever de propiciar recursos educacionais e científicos para o seu exercício”. 78
Na perspectiva de valorização da maternidade em sua função social, os direitos fundamentais do traba-
lhador elencados no art. 7º CFRB - entre eles a licença à gestante sem prejuízo do emprego e do salário
(inciso XVIII) e a redução dos riscos inerentes ao trabalho (inciso XXII) -, bem como a estabilidade da
gestante garantida no art. 10, II, “b” do ADCT, impõem limites à liberdade de organização e adminis-
tração do empregador de forma a concretizar para a empregada-mãe merecida segurança no exercício
do direito ao equilíbrio entre trabalho e família. 79
A legislação social no Brasil mantém o princípio de conciliação da mulher com o mercado de trabalho.
Mesmo que tenhamos uma legislação que determina a igualdade entre homens e mulheres, a socie-
dade ainda tem a mulher como a responsável pelo cuidado e segurança da família. Segato esclarece
que há uma “privatização do espaço doméstico”80. Aqui o Estado protege famílias e mulheres no papel
de cuidadoras. As mulheres não estão no status de sujeitas autônomas.81 É a ideia de familismo e de
conciliação que afeta a perspectiva de direitos da mulher trabalhadora82. A CADH, em seu art. 17, aduz
que “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e
pelo Estado”, sendo que a criança ganha especial proteção no art. 19.
Em seu artigo XXV, proclama a relevância dos cuidados e assistência especiais à maternidade e à
infância. Assim também o artigo VI da DADDH, ao estatuir que “toda mulher em estado de gravidez ou
em época de lactação, assim como toda criança, têm direito à proteção, cuidados e auxílios especiais.”
O PIDESC reconhece o direito de toda pessoa de ao gozo de saúde física e mental, nele compreen-
dida uma variedade de fatores socioeconômicos, dentre os quais a alimentação, nutrição, habitação,
acesso à água potável e condições sanitárias, meio ambiente saudável, saúde e segurança no trabalho.
Nesse sentido, determina aos Estados Parte que assegurem medidas em direção à diminuição da
mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como, o desenvolvimento das crianças e a melhoria de
todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente.83 No caso da maternidade, os Estados
devem “conceder proteção especial às mães por um período de tempo razoável antes e depois do

78
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
79
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5938, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginador-
pub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750927271. Acesso em: 25 out. 2022.
80
SEGATO, Rita Laura . Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos
ES - Epistemologias feministas: ao encontro da crítica radical, n. 18 , Universidade de Coimbra, Cpoimbra, 2012, p.106-131. Disponível
em: https://journals.openedition.org/eces/1546?file=1. Conslutado em 21 fev. 2022, p. 121


81
NICHNIG, Claudia Regina. Uma Perspectiva De Gênero E Feminista Frente Ao Sistema De Justiça É Possível? Perspectivas de gênero e
o sistema de justiça brasileiro / organização: Ela Wiecko Volkmer de Castilho, João Akira Omoto, Marisa Viegas e Silva, Paulo Gilberto
Cogo Leivas. – Brasília : ESMPU, 2019, p. 79-104. p.
82
A OIT recomenda que as legislações que envolvem a o trabalho da mulher sejam de corresponsabilidade e não de conciliação. Isto está
previsto na Convenção 156 (convenção não ratificada pelo ratificada pelo Brasil), que no Artigo 1º estabelece: “1. Esta Convenção aplica-se
a homens e mulheres com responsabilidades com relação a seus filhos dependentes, quando estas responsabilidades restringem a pos-
sibilidade de se prepararem para uma atividade econômica e nela ingressar, participar ou progredir”.
83
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5938, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginador-
pub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750927271. Acesso em: 25 out. 2022.

291
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

parto. Durante esse período, deve-se conceder às mães que trabalham licença remunerada ou licença
acompanhada de benefícios previdenciários adequados.”
No Comentário Geral nº 22 sobre o direito à saúde sexual e reprodutiva previsto no art. 12 do PIDESC,
elaborado em 2.016, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, afirma
que interferem diretamente no direito à saúde sexual e reprodutiva, fatores sociais como educação e
informação, proteção contra violência, tortura e discriminação, saúde e segurança do trabalho e meio
ambiente do trabalho. 84
Os direitos reprodutivos e a saúde sexual das mulheres estão diretamente relacionados à concretização
do direito à saúde sexual e reprodutiva, sendo indispensáveis ao exercício da sua autonomia e liber-
dade, além de fundamental importância na construção de projetos de vida das mulheres.
Portanto, é crucial que qualquer padrão protetivo, seja ele normativo, seja institucional (como políticas
públicas, por exemplo), reconheçam necessidades específicas da saúde da mulher (sobretudo naquilo
que diferem da saúde dos homens e das crianças). Reitera-se que, conforme veremos, a proteção à
saúde da mulher, seja a relacionada aos direitos reprodutivos, seja a maternidade, seja a mulher traba-
lhadora, regra geral, estabelecem a proteção da prole, da família e do cuidado como elementos cuja
agregação é natural.
É na CEDAW que o papel da mulher como sujeita social, e não apenas como mãe e cuidadora, ganha
um especial contorno. A maternidade aqui tem uma função social e inclui os homens.85 Fica vedado
que medidas relacionadas à igualdade substancial da mulher, sobretudo no mercado de trabalho e na
distribuição de recursos públicos, sejam consideradas discriminatórias. Condições de igualdade entre
homens e mulheres, e em particular o direito à proteção da saúde e à segurança nas condições de
trabalho, inclusive a salvaguarda da função de reprodução (Art. 11).
A maternidade tem uma função social. Mesmo que esta ainda tenha relação direta com o trabalho
reprodutivo da mulher, ainda é dela a responsabilidade pela renovação das gerações.

4.3. Padrão Normativo da Organização Internacional do Trabalho – OIT

O padrão normativo internacional do trabalho tem como objetivo principal inspirar e nortear os
governos a elaborar e implementar regulações do trabalho, seja através do sistema normativo, seja
através de políticas públicas, seja através da prestação jurisdicional e do funcionamento do sistema de
justiça. Entre outras coisas, as convenções e recomendações da OIT consagram condições mínimas de
trabalho e o princípio da não discriminação nos seus vários aspectos.
As Recomendações definem diretrizes de orientação dos sistemas internos e as Convenções são
tratados internacionais abertos à ratificação por parte dos Estados Membros da OIT. Uma vez ratifi-
cadas há o compromisso de acolher as disposições da Convenção na lei e na prática, submetendo-se a
uma supervisão internacional regular, com vistas à averiguação do seu cumprimento (regulares à OIT,
indicando as medidas tomadas para a sua implementação e de aceitar o controle da OIT para averiguar
o seu cumprimento).
As normas da OIT que tratam explicitamente das questões de gênero, ou seja, referindo-se especi-
ficamente à igualdade e à não discriminação entre mulheres ou a homens são: as convenções sobre

84
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5938, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginador-
pub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750927271. Acesso em: 25 out. 2022.


85
(“art. 5º, b) Garantir que a educação familiar inclua uma compreensão adequada da maternidade como função social e o reconhecimento
da responsabilidade comum de homens e mulheres no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento de seus filhos...”).

292
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

igualdade de remuneração entre homens e mulheres, de 1951 (Nº 100), proteção da maternidade, de
2000 (Nº 183), cessação do contrato de trabalho, de 1982 (Nº 158), e política de emprego, de 1964 (Nº
122). Outras trabalham a dimensão do gênero - normas cujas disposições, pela sua natureza, tomam em
consideração as necessidades das mulheres e dos homens - embora não mencionem explicitamente
homens e mulheres, como, por exemplo, as convenções sobre trabalhadores com responsabilidades
familiares, de 1981 (Nº 156), eliminação das piores formas de trabalho infantil, de 1999 (Nº 182), traba-
lhadores a tempo parcial, de 1994 (Nº 175), e trabalhadores no domicílio, de 1996 (No. 177), bem como
uma série de normas que tratam de condições de trabalho, como segurança, e segurança e transporte.
A Convenção fundamental Nº 111 abrange estes dois grupos, uma vez que aborda a discriminação e,
consequentemente, a igualdade de gênero, embora não trate exclusivamente da discriminação com
base no sexo, o mesmo acontece com a última Convenção aprovada, a de número 190, que trata dos
assédio moral e sexual.
Para o alcance da igualdade de gênero, desde a perspectiva do sistema de proteção laboral interna-
cional, quatro são as convenções mais importantes; Convenção sobre Igualdade de Remuneração,
de 1951 (Nº 100); Convenção sobre Discriminação (Emprego e Profissão), de 1958 (Nº 111); Convenção
sobre Trabalhadores com Responsabilidades Familiares, de 1981 (Nº 156); Convenção sobre Protecção
da Maternidade, de 2000 (Nº 183)
A Convenção 100 protege o trabalho da mulher, garantindo-lhe o direito de ter remuneração igual à
do homem quando do desempenho de trabalho de igual valor. A Convenção 111 vai mais adiante, pois
trata da igualdade total entre homens e mulheres, para que ambos tenham oportunidades iguais em
matéria de emprego e, para tanto, veda qualquer discriminação de gênero na hora de contratar ou dar
oportunidades de conseguir um emprego ou profissão.86
A Convenção fundamental nº 111 da OIT sobre discriminação em matéria de emprego e ocupação
(promulgada pelo Decreto 62.150/68), inserida na declaração de princípios e direitos fundamentais do
direito do trabalho (1998), qualifica como não discriminatórias as medidas especiais destinadas à salva-
guarda das necessidades particulares das pessoas que necessitem de proteção ou assistência especial,
notadamente por motivos tais como sexo ou encargos de família.
Duas importantes Convenções ainda não foram ratificadas pelo Brasil, a de número 156 e
87

a de número 183.
As convenções ainda não ratificadas constituem fonte material de direito na medida em que devem
orientar, como modelo, o legislador infraconstitucional.88 Pletsch afirma que há diferentes consequên-
cias no sistema jurídico interno de uma norma internacional não ratificada e uma convenção da OIT não
ratificada. Enquanto a assinatura de um tratado internacional é um poder discricionário do governo, a
não ratificação de uma convenção obriga o Estado à relatar à OIT “as dificuldades que determinaram o
atraso ou impediram a ratificação da Convenção, bem como o estágio da legislação e a prática nacional
relativamente à matéria que é objeto da Convenção.”89

86
OIT. C100 (1951). Dispõe sobre igualdade de remuneração. Ratificada pelo Brasil em 1957. Considerada uma convenção fundamental pela
OIT, o que significa que deve ser ratificada e aplicada por todos os Estados Membros da Organização. Promulgada em 25/06/1957, por
meio do Decreto no. 41.721. OIT C 111 (1958). Dispõe sobre a discriminação em matéria de Emprego e Profissão. Ratificada pelo Brasil em
1965. Considerada uma convenção fundamental pela OIT, o que significa que deve ser ratificada e aplicada por todos os Estados Membros
da Organização. Promulgada em 19/01/1968, por meio do Decreto no. 62150.


87
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5938, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginador-
pub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750927271. Acesso em: 25 out. 2022.
88
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007
89
PLETSCH, Anelise Ribeiro. A Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho: por que o direito internacional pode colaborar
com o direito interno brasileiro? Revista de Direito da ADVOCEF. n. 14, ano VII, maio 2012, p. 33.

293
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A obrigação de informar a incompatibilidade está prevista no art. 5º da Constituição do OIT e pressupõe


a aplicação de dispositivos da convenção, por intermédio de leis, por meios administrativos, por força
de contratos coletivos, ou, ainda, por qualquer outro processo, expondo, outrossim, as dificuldades que
impedem ou retardam a ratificação da convenção.
O preâmbulo da C. 156 da OIT refere que “para alcançar a plena igualdade entre homens e mulheres,
é necessário modificar o papel tradicional, tanto do homem, quanto da mulher na sociedade
e na família.” 90
A Convenção 156 da OIT se refere especificamente às relações de trabalho de trabalhadoras e trabalha-
dores com encargos familiares estabelecendo condições laborais que coloquem homens e mulheres
em condição de igualdade de oportunidades e de tratamento levando em conta o trabalho de cuidado
e segurança familiares.91
Como encargos de família, consideram-se as situações elencadas no artigo 1º da C.156 da OIT,92 quais
sejam: responsabilidades com relação a filhos e filhas dependentes e responsabilidades com relação a
integrantes da família imediata que manifestamente precisam de seus cuidados ou apoio, bem como,
aqueles definidos no Estatuto do Idoso,93 Estatuto da Criança e do Adolescente94 e no Estatuto da
Pessoa com Deficiência.95
Ele é um importante marco no reconhecimento da importância e da possibilidade de mudança nos
modelos sociais de mulheres e homens que trabalham. Cuidados, segurança familiar e demais atividades
que envolvem responsabilidade familiar não devem ser um papel atribuído unicamente às mulheres.
A Convenção nº 183 sobre a proteção da maternidade (aprovada pela OIT em 2000, ainda não rati-
ficada pelo Brasil) estabelece, em seu art. 3º, o compromisso dos Estados Parte em assegurar que
as gestantes e lactantes não sejam obrigadas a trabalhar em atividade que tenha sido certificada por
autoridade competente como prejudicial à saúde da mãe ou da criança ou que tenha sido avaliada com
potencial risco significativo para a saúde da mãe ou do seu filho.96
No caso em que identificado risco significativo para a trabalhadora- mãe ou seu filho no ambiente de
trabalho, desde que adequadamente certificado, a OIT recomenda as seguintes medidas: i) eliminação
do risco, ii) adaptação das condições de trabalho; iii) no caso de não ser possível essa adaptação, trans-

90
OIT. C156 - Sobre a Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres Trabalhadores: Trabalhadores com
Encargos de Família. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242709/lang--pt/index.htm. Acesso em: 10 ago.
2020.


91
TOSS, Luciane. Como o sistema normativo pode garantir práticas e ações que estimulem a paridade de gênero e minimizem a sobrecarga
de trabalho das mulheres durante o isolamento social. Direito do trabalho em tempos de cólera. Adriana Lamounier, Larissa Matos,
Luciane Toss e Sílvia Sampaio (org.). São Paulo: Canal 6, 2020, p.p. 225-243.
92
OIT. C. 156 OIT - Sobre a Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres Trabalhadores: Trabalhadores
com Encargos de Família. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242709/lang--pt/index.htm. Acesso em: 10
ago. 2020.
93
BRASIL. Lei 10.741 de 01 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm. Acesso em: 10 ago. 2020.
94
BRASIL. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 10 ago. 2020.
95
BRASIL. Lei. 13.146 de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Defi-
ciência). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 10 ago. 2020.
96
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5938, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginador-
pub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750927271. Acesso em: 25 out. 2022.

294
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

ferência para outra função sem prejuízo da remuneração; iv) no caso em que não for possível essa
transferência, licença remunerada.97
Os padrões normativos internacionais,98 além de figurarem como uma espécie de molde para as legis-
lações, também orientam o desenvolvimento de políticas nacionais e locais, como emprego, trabalho
e políticas familiares
Reprodução social e divisão sexual do trabalho estão na gênese do problema da vulnerabilidade do
trabalho da mulher. O caráter reprodutivo do trabalho feminino permanece constitutivo das relações
sociais entre os sexos e o processo de proletarização da força de trabalho não foi concomitante à equi-
dade no espaço doméstico. Se aliarmos a isso a total supressão de diálogo social (com isso quero
dizer, a ausência de representações femininas) nas discussões de gerenciamento da crise gerada pelo
isolamento e na construção das chamadas medidas emergenciais de manutenção de emprego e renda,
veremos que as mulheres continuam sendo as mais penalizadas.

5. GARANTIAS E ACESSO AOS MECANISMOS DE


PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

Algumas questões preliminares para entendimento de como e porque os sistemas internacional e


interamericano agem de forma impositiva em relação às obrigações dos Estados membros é entender
que mais do que punir os agressores e ressarcir direitos violados das vítimas, as convenções, proto-
colos e recomendações têm como principal objetivo que as mulheres não sofram violações de seus
direitos humanos por serem mulheres. Portanto, uma série de diretrizes para estabelecer condições de
denúncia e proteção prévias às agressões são percebidos, tanto na posição das Comissões quanto das
Cortes Internacionais.
As mulheres são duplamente agredidas quando o sistema não lhes garante acesso para denunciar
violações e na garantia de obtenção de proteção imediata e eficiente, para a mulher e para sua prole.
A CIDH tem enfatizado, em relação à violência contra a mulher, a importante ligação entre o dever
dos Estados de agir com a atenção necessária e com a facilitação ao acesso dos recursos judiciais
adequados e eficazes contra a violência contra a mulher.99


97
Convenção 183.
98
RODRIGUES, Jr. Edson Beas (org.). Convenções da OIT e outros instrumentos de direito internacional público e privado relevantes
para o direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2017.
99
O caso Jessica  Lenahan  (Gonzales)  y Otros (Estados Unidos) é importante para compreensão da posição da CDH acerca de como os
sitemas de proteção devem.De acordo com o Informe  de  Fondo  No.  80/11,  Caso  12.626,  Jessica  Lenahan  (Gonzales)  y Otros (Estados
Unidos), 21 de julio de 2011. Jessica Lenahan, vítima de violência doméstica junto com suas filhas Leslie, Katheryn e Rebecca Gonzales, de
7, 8 e 11 anos, obteve uma ordem de proteção contra seu ex-cônjuge dos tribunais do Colorado em 21 de maio de 1999. Durante a noite
de 22 de junho e início da manhã de 23 de junho de 1999, sem saber o paradeiro de suas filhas, Jessica Lenahan teve oito contatos com o
Departamento de Polícia de Castle Rock, no qual ela solicitou a intervenção da polícia, relatando que ela tinha uma ordem de proteção
contra Simon Gonzales, ex-marido de Jessica e pai das três filhas. A resposta da polícia aos contatos de Jessica Lehahan foi passiva, frag-
mentada, descoordenada e despreparada, e não respeitou os termos da ordem de proteção concedida. Naquela manhã, Simon Gonzales
chegou em sua van no Departamento de Polícia de Castle Rock e começou uma troca de tiros com oficiais da estação, no curso do qual
ele foi fatalmente ferido. Os corpos sem vida das três garotas foram encontrados na van. A ordem de proteção foi a única medida que
Jessica Lenahan tinha à sua disposição na lei estadual para proteger sua segurança e a de suas filhas de atos de violência doméstica, e a
polícia não a implementou adequadamente. O aparato estatal não estava devidamente organizado, coordenado e pronto para proteger
essas vítimas de violência doméstica através da adequada e eficaz implementação da ordem de proteção. CIDH, Acceso a la Justicia para
las Mujeres Víctimas de Violencia en las Américas, OEA/Ser. L/V/II. doc.68, 20 de enero de 2007. Disponível em: https://archivos.juridicas.
unam.mx/www/bjv/libros/11/5212/11.pdf. Acesso em: 09 set. 2021.

295
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Em que pese o Judiciário ser apenas um componente de uma estrutura estatal obrigada a coordenar
os esforços de todos os seus setores para respeitar e garantir os direitos das mulheres, a operacionali-
dade de um sistema que esteja próximo das vítimas, o acesso a recursos judiciais adequados e eficazes,
constitui uma importante linha de defesa dos direitos humanos básicos. A Corte IDH estabeleceu que
todas as pessoas que sofreram violação de seus direitos humanos “têm o direito de obter dos órgãos
competentes do Estado o esclarecimento dos fatos violados e o estabelecimento das responsabilidades
correspondentes, através da investigação e acusação previstas nos artigos 8º e 25º da Convenção.”100
A Corte ofereceu uma ampla interpretação do conceito de violência sexual interpretando que a
violência sexual se configura com ações de natureza sexual que são cometidas contra uma pessoa sem
o seu consentimento, que incluem a invasão física do corpo humano e podem incluir atos que não
envolvam penetração ou qualquer contato físico.101 Aqui é importante entender que todos os estân-
dares de proteção (que reúnem normas, jurisprudência e doutrina) produzidos tanto pela CIDH, como
pela Corte IDH, são aplicáveis na defesa dos direitos humanos das mulheres.
A CADH consagra o direito à proteção e às garantias judiciais (vide arts. 8, 1 e 25, 1 e 2 da CADH).
Essas disposições são complementadas pelo artigo 7º da Convenção de Belém do Pará, que ao mesmo
tempo reconhece o elo crítico entre o acesso das mulheres à adequada proteção judicial ao denunciar
atos de violência e a eliminação da violência e da discriminação que a perpetua, mas cria mecanismos
objetivos para atuação dos Estados. A Convenção de Belém do Pará traz um conjunto de obrigações
para atuação das autoridades estatais em casos de violência que inclui procedimentos legais eficazes
para as mulheres submetidas a um ato de violência, mudanças legislativas (com a adoção de normas
penais, cíveis e administrativas) para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, definição
de  medidas protetivas para as mulheres e intervenções para mudar práticas legais ou habituais que
promovam a persistência ou tolerância à violência contra as mulheres.102
O Comitê CEDAW, que interpreta a Convenção de mesmo nome, incluiu no conceito de discriminação
a violência contra as mulheres em todas as suas formas (considerando que o art. 1º da Convenção
trata a questão de forma abrangente).103 A obrigação de respeitar, proteger e cumprir com a CEDAW
se estende à garantia da disponibilidade de recursos judiciais acessíveis, acessíveis e oportunos para
mulheres vítimas de violência.104
Segundo o CEDAW, há uma série de obstáculos ao acesso das mulheres à justiça, os quais são reflexos
da desigualdade estrutural e envolvem também práticas judiciais. O Comitê observou restrições que
impedem as mulheres de realizar seus direitos quando a garantia depende da atuação dos sistemas de
justiça de cada Estado. Os principais obstáculos ocorrem em um contexto estrutural de discriminação

100
Mesoamérica (OEA/Ser.L/V/II). Washington, D.C.: Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH), Organización de los Estados
Americanos (OEA), 2011a. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/pdf%20files/MESOAMERICA%202011%20ESP%20FINAL.pdf. Acesso
em: 09 set. 2021.


101
“305. La Corte considera que todos los internos que fueron sometidos durante ese prolongado período a la referida desnudez forzada
fueron víctimas de un trato violatorio de su dignidad personal”. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso del Penal Miguel Cas-
tro Castro Vs. Perú. Sentencia de 25 de noviembre de 2006. Serie, C. No. 160, párr. 305. Disponivel em: https://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_160_esp.pdf. Acesso em: 09 set. 2021.
102
Mesoamérica (OEA/Ser.L/V/II). Washington, D.C.: Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH), Organización de los Estados
Americanos (OEA), 2011a. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/pdf%20files/MESOAMERICA%202011%20ESP%20FINAL.pdf. Acesso
em: 09 set. 2021.
103
ONU.  Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW) Violência Contra a Mulher: 29/01/92 Cedaw Recomen-
dação Geral 19. (Comentários Gerais) Recomendação Geral Nº 19. Disponível em: http://archive.ipu.org/splz-e/cuenca10/cedaw_19.pdf.
Acesso em: 09 set. 2021.
104
ONU.  Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW) Violência contra a Mulher: 29/01/92 Cedaw. Recomendação
Geral 28 sobre as Obrigações dos Estados Partes sob o Artigo 2 da CEDAW, 19 de outubro de 2010, par. 34. Disponível em: https://
www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2017/11405.pdf. Acesso em: 09 set. 2021.

296
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

e desigualdade, devido a fatores como estereótipos de gênero, leis discriminatórias, discriminação


interseccional, padrões e requisitos normativos que impõem procedimentos e práticas em matéria
probatória baseados no princípio da neutralidade do direito.

O direito apresenta-se como democrático, humano, igual para todos e, para legitimar-se, procura
manter correspondência com os valores morais dominantes. A análise feminista mostrou que
os princípios constitucionais que legitimam o discurso jurídico carecem de eficácia social, pois
em todos os níveis da atividade jurídica (legislação, doutrina, aplicação) há elementos que (re)
produzem a discriminação da mulher, contrariando as promessas de liberdade e igualdade”
(SABADELL, 2013, p. 32).105

Nas decisões e na atuação dos poderes públicos, nos mais diversos sistemas, estão as subjetividades
das autoridades quando se defrontam com o desempenho dos chamados papéis de gênero (homens
e mulheres no espaço público, práticas sexuais permitidas e proibidas para as mulheres, reiteração
dos cuidados da família e dos filhos pelas mulheres) e com os estereótipos históricos que subalter-
nizam as mulheres.106
Quando o assunto é a inserção da perspectiva de gênero no campo dos sistemas de justiça ou dos
acessos das mulheres à proteção dos aparatos de segurança estatais ou da garantia de seus direitos
pelas vias de processos judiciais a suposta neutralidade do direito acaba por negar às mulheres a
proteção necessária e mitigar o alcance de normas protetivas baseadas na discriminação positiva.107
Conforme Harari e Pastorino “La aceptación de los principios de igualdad de género por parte da la
legislación no siempre tiene un correlato en el discurso judicial” (2002, p. 122).108 No direito, teóricos e
juristas, insistem que a justiça e as leis são aplicadas igualmente para o “sujeito de direito” dito universal,
não reconhecendo as marcações de gênero, geração, deficiências, raça, etnia, sexualidade.
Analisar os direitos a partir da perspectiva de gênero significa adotar uma postura ativa de reconheci-
mento das desigualdades históricas, sociais, políticas, econômicas e culturais a que as mulheres estão e
estiveram sujeitas desde a estruturação do Estado, e a partir disso, perfilhar um caminho que combata
as discriminações e as violências por elas sofridas, contribuindo para dar fim ao ciclo de reprodução dos
estereótipos de gênero e da dominação das mulheres.
Todos esses obstáculos constituem persistentes violações dos direitos humanos das mulheres.

5.1. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero e e


Recomendação 35 do Conselho Nacional de Justiça Do Brasil

Em fevereiro de 2021 o Conselho Nacional de Justiça publica um Protocolo para Julgamento com Pers-
pectiva de Gênero. O documento é um guia de orientação para a magistratura atuar considerando a
perspectiva de gênero.

105
SABADELL, Ana L. Manual de Sociologia Jurídica: Introdução a uma leitura externa do direito. 7ª ed. São Paulo: RT, 2017. p. 234.
106
NICHNIG, Claudia Regina. Uma Perspectiva De Gênero E Feminista Frente Ao Sistema De Justiça É Possível? Perspectivas de gênero e
o sistema de justiça brasileiro / organização: Ela Wiecko Volkmer de Castilho, João Akira Omoto, Marisa Viegas e Silva, Paulo Gilberto
Cogo Leivas. – Brasília : ESMPU, 2019, p. 79-104. p.


107
SABADELL, Ana L. Manual de Sociologia Jurídica: Introdução a uma leitura externa do direito. 7ª ed. São Paulo: RT, 2017. p. 234.
108
HARARI, Sofia; PASTORINO, Gabriela L. Acerca del género y el derecho. In: BIRGIN, Haydée (comp.). El derecho en el género y el género
en el derecho. Buenos Aires: Biblos, 2000, p. 117-145. (Colección Identidad, Mujer y Derecho). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/
tablas/29114.pdf. Acesso em: 10 out. 2019.

297
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A trajetória deste protocolo começa em setembro de 2018, quando o Conselho Nacional de Justiça
estabelece a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder
Judiciário109 e publica a Resolução nº 255110, instituidora da Política Nacional de Inclusão Feminina no
Poder Judiciário. As publicações tinham como objetivo provocar a discussão e a reflexão no Judiciário,
mas sobretudo, para que os Tribunais do País adotassem medidas para fomentar a participação de
mulheres em cargos importantes da carreira jurídica judiciária.
Outro importante precedente para uma nova lente no judiciário sobre o tema é a publicação, em 2021,
da Resolução 351 contra assédios moral e sexual e contra discriminações no serviço publico. 111
O protocolo, foi publicado através do resultado do Grupo de Trabalho instituído pela Portaria CNJ n. 27,
de 2 de fevereiro de 2021. 112Em 132 páginas, o texto está dividido em 2 partes: Parte I – Conceitos e Parte
II – Questões de Gênero Específicas Por Ramo de Justiça. Na parte conceitual além de todos os recortes
sobre violências interseccionais de gênero, há um guia para atuação da magistratura com orientação de
como conduzir o processo (atendimento às partes, avaliação e inversão de ônus probatórios, como os
conceitos para entendimento das violências devem ser relevados nas ações e assim por diante).
No dia 15 de fevereiro de 2022 o CNJ publica a Recomendação 128 – para a adoção do “Protocolo para
Julgamento com Perspectiva de Gênero” no âmbito do Poder Judiciário brasileiro.113 Não sem tempo, a
recomendação relembra a trajetória de legislações e padrões normativos que já estabeleciam a atuação
dos Estados e do Sistema de Justiça privilegiando a atuação com perspectiva de gênero.
O judiciário brasileiro até então, praticamente ignorou a perspectiva de gênero como critério para
julgamento. Fato recente é a condenação do Brasil no caso Márcia Barbosa de Souza e outros Vs. Brasil,
julgado pela Corte IDH em de 07 de setembro de 2021. 114 Na sentença, o Brasil foi responsabilizado
pela discriminação no acesso à Justiça, por não investigar e julgar a partir da perspectiva de gênero,
pela utilização de estereótipos negativos em relação à vítima e pela aplicação indevida da imunidade
parlamentar. A corte reconheceu que a violência contra as mulheres no Brasil é e continua sendo um
problema estrutural e generalizado, concluindo que os altos níveis de tolerância a esse tipo de violência
estão normalmente associados a altas taxas de feminicídio.
A perspectiva de gênero é uma base fundamental para os julgamentos que envolvem mulheres vítimas
na Corte IDH e estabelece critérios objetivos para essa atuação, tais como garantir, além do acesso
irrestrito e não discriminatório das mulheres à Justiça, que o sistema de justiça observe os padrões
internacionais de competência, eficiência, independência, imparcialidade, integridade e credibilidade,
e assegure rapidez aos atos.115

109
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ. Resolução 254, 04.09.2018. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/resolu-
cao_254_04092018_05092018142446.pdf.Acesso em: 20 fev 2022.
110
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ. Resolução 255, 04.09.2018 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2670. Aces-
so em: 20 fev 2022.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ. Resolução 351, 28.10.2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original-
111

192402202011035fa1ae5201643.pdf. Acesso em: 20 fev .2022.


112
CONSELHO NACIONALDE JUSTIÇA. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021. Grupo de Trabalho instituído pela
Portaria CNJ n. 27, de 2 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.
pdf. Acessado em: 20.02.2022.
113
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ. Recomendação 128, 15.02.2022. Disponível em https://atos.cnj.jus.br/files/origina-
l18063720220217620e8ead8fae2.pdf. Acesso em: 20 fev 2022
114
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Corte IDH. Caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil . Sentença de 7 de setem-
bro de 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em: 20 fev. 2022, parágrafo 101.
115
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – Corte IDH. Caso Digna Ochoa y familiares Vs. México, 25 de novembro de 2021.
Disponível em https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_431_esp.pdf. Acesso em 10 mai 2022.

298
DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

Estes instrumentos metodológicos, essas ferramentas de atuação, foram renovados com as publica-
ções do CNJ em 2021. Resta ao Sistema de Justiça brasileiro começar uma leitura mais interessada e
engajada nas normativas que já fazem parte do sistema jurídico nacional.

299
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E


DOS ADOLESCENTES

Natalia Martinuzzi Castilho

1. INTRODUÇÃO

A proteção jurídica dos interesses de crianças e adolescentes, enquanto um ramo específico do direito
e dos direitos humanos, é relativamente nova. Esse domínio de estudo desponta a partir das últimas
décadas do século XX e assenta suas bases no marco normativo internacional consolidado a partir do
fim da Segunda Guerra Mundial, relativo à proteção da dignidade da pessoa humana.
Trata-se de um ramo específico do direito que possui como fontes normativas Convenções, Decretos
Resoluções e Atos administrativos. Enquanto doutrina específica, o direito da criança e do adolescente
possui princípios próprios, que são delimitados historicamente. Podemos afirmar que o processo
internacional de afirmação dos direitos humanos foi essencial para o surgimento e a continuidade da
estrutura de proteção, defesa e promoção dos direitos da infância e da juventude existente não apenas
no Brasil, mas na grande maioria dos países do globo.
A afirmação dos direitos humanos de crianças e adolescentes passa por um processo histórico de
identificação, em primeiro lugar, desse grupo de pessoas enquanto sujeitos de direitos. Essa trajetória
continua sendo marcada por inúmeras transformações sociais e culturais em torno da compreensão do
quem vem a ser infância e a adolescência e na relevância de tais fases para o desenvolvimento humano,
de forma geral.
Assim, de “pequenos adultos” a meros objetos de tutela dos pais, apêndices de sua propriedade,1
crianças e adolescentes passaram à condição de sujeitos de direitos que possuem, inclusive, prioridade
absoluta e proteção especial. Importa destacar, com relação a tais transformações, que a noção de
infância e adolescência não é perene e as diferenças culturais de cada sociedade influenciam na divisão
dos distintos períodos da vida de um ser humano. Nesse sentido, a abordagem dos conceitos sociais e
jurídicos – e suas transformações históricas – realizada nesse capítulo leva em consideração a trajetória
ocidental no que tange ao processo de positivação de direitos. 2


1
Sobre a história social da infância, consultar ARIÈS, P. História social da infância e da família. Rio de Janeiro: LCT, 1978. Acerca das
mudanças de paradigma com relação ao conceito de infância para o ordenamento jurídico, importa destacar o caso Mary Ellen Wilson,
ocorrido em 1874 em Nova York, nos Estados Unidos. Tratou-se do primeiro caso de abuso e violência contra crianças que chegou à Corte
americana. A defesa de Mary Ellen contra os agressores, seus pais adotivos, precisou utilizar os dispositivos jurídicos contra crueldade
com animais, na medida em que não havia, no país, nenhum estatuto de proteção dos interesses da criança capaz de fundamentar seu
afastamento do convívio dos pais. Ver em: PEARSON, S. J. The Rights of the Defenseless: Protecting Animals and Children in Gilded Age.
Chicago: University of Chicago Press, 2011.
2
Para uma abordagem multicultural acerca dos direitos humanos, infância e aspectos identitários: SANTOS, Boaventura de Sousa. Por
uma concepção multicultural de Direitos Humanos. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitismo liberal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 427-461; OLIVEIRA, A. C. Indígenas Crianças, Crianças Indígenas:
Perspectivas Para Construção da Doutrina da Proteção Plural. Curitiba, PR: Juruá Editora, 2014. BELTRÃO, J.; OLIVEIRA, A. C. No horizonte:
quilombolas crianças e construções do pertencimento identitário. In: Programas e resumos do 34º Encontro Anual da ANPOCS. Ca-
xambu, MG: ANPOCS, p. 108, 2010.

300
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

As primeiras normativas de proteção e cuidado da infância estavam atreladas às visões da infância como
objeto de proteção. O primeiro instrumento normativo de âmbito internacional a tratar do assunto foi a
Convenção da Organização Internacional do Trabalho/OIT, nº 138, que disciplinou a idade mínima para
o trabalho (14 anos) e a proibição do trabalho noturno para essa faixa etária. Neste percurso temporal,
outro documento importante foi a Declaração de Genebra de 1924, no contexto do fim da Primeira
Guerra Mundial. No entanto, sua redação deixa transparecer a visão da infância enquanto um objeto
de tutela e de proteção. 3
Apenas a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
(1948) e de seu impacto, jurídico e político, que crianças e adolescentes passam a figurar também como
sujeitos de direitos4. Citamos também, no mesmo sentido, a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem (1948), da Organização dos Estados Americanos: “Artigo VII. Toda mulher em
estado de gravidez ou em estado lactente, assim como toda criança, tem direito à proteção, cuidados
e ajuda especiais.”5
Quase dez anos depois, inspirada nesses instrumentos, surge a Declaração Internacional dos Direitos
da Criança, em 1959. Com ela, a noção de criança como sujeito de direitos é positivada em uma norma
jurídica. Isso significa que, pela primeira vez, o sistema jurídico passa a compreender a criança como
indivíduo titular de direitos e deveres, a partir dos quais é possível estabelecer – em nível nacional e
internacional – redes e estatutos de proteção. Essa noção se amplia e se consolida em 1989, com a
Convenção sobre os Direitos da Criança, o tratado internacional com o maior número de ratificações
da história das Nações Unidas.6 Com isso, crianças e adolescentes podem não apenas se defender
das ameaças de violações aos seus interesses, mas também reivindicar a promoção de políticas que
criem ou aperfeiçoem as condições para que tais direitos sejam exercidos. 7 As funções de proteção,

3
“À criança deve ser concedido os meios necessários para o seu desenvolvimento normal, tanto material como espiritual. À criança que tem
fome deve ser alimentada, a criança que está doente deve receber os cuidados de saúde necessários, a criança que está atrasada deve ser
ajudada, a criança delinquente deve ser recuperada, e o órfão e a criança abandonada deve ser protegida e abrigada. A criança deve ser
a primeira a receber o socorro em tempos de crise ou emergência. À criança deve ser dados todas as ferramentas para que ela se torne
capaz de sustentar-se, e deve ser protegida contra toda forma de exploração. A criança deve ser criada na consciência de que seus talentos
devem ser colocados a serviço de seus semelhantes.” ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Genebra. Disponível em
http://ultimato.com.br/sites/maosdadas/2013/01/22/a-historia-da-heroina-que-criou-a-declaracao-dos-direitos-da-crianca/. Acesso em:
01 mai 2019.
4
Nota-se, nesse sentido, o preâmbulo da Declaração, que afirma: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os
membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;
[...] como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade,
tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e
por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos
tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.”. ORGANIZA-
ÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração dos direitos das crianças. 1959. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/
UDHR_Translations/por.pdf
5
Artículo VII. Toda mujer en estado de gravidez o en época de lactancia, así como todo niño, tienen derecho a protección, cuidados y
ayuda especiales. COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Declaración Americana de los Derechos y Deberes del
Hombre. [2019?]. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/mandato/Basicos/declaracion.asp. Acesso em: 20 abr. 2019.
6
Os Estados Unidos da América são o único país, até os dias atuais, que não ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Com a
adesão da Somália, em 2015, são 196 os países que ratificaram esse importante documento. GUEVANE, E. EUA são único país que não
ratificou Convenção Sobre Direitos da Criança. Rádio ONU em Nova Iorque. ONU News. 2 out. 2015. Disponível em: https://news.un.org/
pt/story/2015/10/1526871-eua-sao-unico-pais-que-nao-ratificou-convencao-sobre-direitos-da-crianca.. Acesso em: 01 mai 2019.


7
Ler também: PIOVESAN, F.; PIROTTA, W. R. B. Os direitos humanos das crianças e dos adolescentes no direito internacional e no direito
interno. In: PIOVESAN, F. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003. 2ª ed. p. 277-297. DELLORE, M. B. P. Convenção dos
Direitos da Criança. In: ALMEIDA, G. de; PERRONE-MOISÉS, C. (orgs.). Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Atlas,
2002. p. 76-86.

301
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

promoção e defesa dos direitos humanos8 aplicam-se de forma integral, nesse sentido, às crianças e
aos adolescentes.
A partir do enfoque dos direitos humanos, a criança é vista como um cidadão que progressivamente
exerce, cada vez em maior medida, seus direitos fundamentais. Por si mesmo, ao mesmo tempo, se
reconhece ao jovem certo grau de responsabilidade por seus atos, conforme veremos em seguida. De
outro lado, frente à violação ou ameaça de violação aos direitos da criança, seus pais e o Estado estão
obrigados de forma negativa e positiva. Isso significa dizer que devem observar a normativa referente
à proteção desses direitos, de maneira a não os violar (dimensão negativa). E, por outro lado, estão
obrigados também a remover os obstáculos e criar condições para que a criança ou quem a representa
exerça e reivindique seus direitos (dimensão positiva).
Neste capítulo, serão analisadas as principais normativas internacionais, jurisprudências e comentários
relativos aos direitos de crianças e adolescentes.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

2.1.1. Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (CDC), de 1989

Artigo 2
1. Os Estados Partes respeitarão os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua apli-
cação a cada criança sujeita à sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de raça, cor,
sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra índole, origem nacional, étnica ou social, posição
econômica, deficiências físicas, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais ou de
seus representantes legais.
2. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar a proteção da criança contra
toda forma de discriminação ou castigo por causa da condição, das atividades, das opiniões manifes-
tadas ou das crenças de seus pais, representantes legais ou familiares.
Artigo 3
1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar
social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente,
o interesse maior da criança.


8
Positivadas de forma a garantir a indivisibilidade dos direitos humanos, nos termos da Declaração de Viena e Programa de Ação, estabe-
lecidos na Conferência Mundial sobre Direitos do Homem, em 1993. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração de Viena e
Programa de Ação. 1993. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/viena.html. Acesso em: 01 mai 2019.

302
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

Artigo 12
1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o
direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança,
levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.
2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo
processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um
representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional.

2.1.2. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a


Mulher – Convenção de Belém do Pará, de 19949

Artigo 9º
Para a adoção das medidas a que se refere este capítulo, os Estados Membros terão especialmente
em conta a situação de vulnerabilidade à violência que a mulher possa sofrer em consequência, entre
outras, de sua raça ou de sua condição étnica, de migrante, refugiada ou desterrada. No mesmo sentido
se considerará a mulher submetida à violência quando estiver grávida, for excepcional, menor de idade,
anciã, ou estiver em situação socioeconômica desfavorável ou afetada por situações de conflitos
armados ou de privação de sua liberdade.

2.1.3. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Partici-


pação de Crianças em Conflitos Armados, de 200010

Artigo 3º
1 - Os Estados Partes devem elevar a idade mínima de recrutamento voluntário nas forças armadas
nacionais para uma idade superior à que se encontra referida no n.º 3 do artigo 38.º da Convenção sobre
os Direitos da Criança, tendo em conta os princípios contidos naquele artigo e reconhecendo que, nos
termos da Convenção, os menores de 18 anos têm direito a proteção especial.

2.1.4. Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Venda


de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil, de 200011

Artigo 8 1.
Os Estados Partes deverão adotar medidas adequadas para proteger, em todas as fases do processo
penal, os direitos e interesses das crianças vítimas das práticas proibidas pelo presente Protocolo, em
particular: a) Reconhecendo a vulnerabilidade das crianças vítimas e adoptando os procedimentos as
suas necessidades especiais, incluindo as suas necessidades especiais enquanto testemunhas; b) Infor-
mando as crianças vítimas a respeito dos seus direitos, do seu papel e do âmbito, duração e evolução do

9
BRASIL. Decreto nº 1973, de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Brasília, DF: Presidência da República, [2022?]. Disponível em: https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm. Acesso em: 30 abr. 2022.
10
BRASIL. Decreto nº 5006, de 8 de março de 2004. Promulga o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo
ao envolvimento de crianças em conflitos armados. Brasília, DF: Presidência da República, [2022?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5006.htm. Acesso em: 30 abr. 2021.
11
BRASIL. Decreto nº 5006, de 8 de março de 2004. Promulga o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo
ao envolvimento de crianças em conflitos armados. Brasília, DF: Presidência da República, [2022?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5006.htm. Acesso em: 30 abr. 2021.

303
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

processo e da solução dada ao seu caso; c) Permitindo que as opiniões, necessidades e preocupações
das crianças vítimas sejam apresentadas e tomadas em consideração nos processos que afetam os seus
interesses pessoais, de forma consentânea com as regras processuais do direito interno; d) Proporcio-
nando as crianças vítimas serviços de apoio adequados ao longo de todo o processo judicial; e) Prote-
gendo, sempre que necessário, a privacidade e identidade das crianças vítimas e adoptando medidas
em conformidade com a lei interna a fim de evitar uma imprópria difusão de informação que possa
levar a identificação das crianças vítimas; J) Garantindo, sendo caso disso, a segurança das crianças
vítimas, bem como das suas famílias e testemunhas favoráveis, contra atos de intimidação e represálias;
g) Evitando atrasos desnecessários na decisão das causas e execução de sentenças ou despachos que
concedam indemnização às crianças vítimas.

2.1.5. Comentário Geral N. 8, de 2006 - O direito da criança à proteção contra o castigo


físico e outras formas cruéis ou degradantes de castigo (artigos 19, 28(2) e 37)12

22. O Comitê enfatiza que a eliminação do castigo violento e humilhante de crianças, por meio da
reforma legislativa e outras medidas necessárias, é uma obrigação imediata e integral dos Estados
Partes. Nota, ainda, que outros órgãos criados em virtude de tratados (os denominados Treaty Bodies)
– inclusive o Comitê dos Direitos do Homem, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
e o Comitê contra a Tortura -, expressaram a mesma opinião em suas observações finais relativas aos
relatórios pertinentes dos Estados Partes, recomendando a proibição e outras medidas contra o castigo
físico nas escolas, sistemas penais e, em alguns casos, na família. Por exemplo, o Comitê dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, no seu Comentário Geral de 1999 sobre “O direito à educação”,
declara que: “Na opinião do Comitê, os castigos físicos são incompatíveis com o princípio orientador
fundamental da legislação internacional em matéria de direitos humanos, consagrado nos Preâmbulos
da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de ambos os Pactos: a dignidade humana. Outros
aspectos da disciplina escolar podem também ser incompatíveis com a dignidade humana, inclusive a
humilhação pública…”.

2.1.6. Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça, da Infância e


da Juventude (Regras de Beijing), de 198513

1.4 A Justiça da Infância e da Juventude será concebida como parte integrante do processo de desenvol-
vimento nacional de cada país e deverá ser administrada no marco geral de justiça social para todos os
jovens, de maneira que contribua ao mesmo tempo para a sua proteção e para a manutenção da paz e
da ordem na sociedade.
[...]
2.2 Para os fins das presentes regras, os Estados Membros aplicarão as definições seguintes, de forma
compatível com seus respectivos sistemas e conceitos jurídicos:
a) jovem é toda a criança ou adolescente que, de acordo com o sistema jurídico respectivo, pode
responder por uma infração de forma diferente do adulto;


12
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comentário Geral N. 8, de 2006: O direito da criança à proteção contra o castigo físico e ou-
tras formas cruéis ou degradantes de castigo. 2006. Disponível em: https://naobataeduque.org.br/site2017/wp-content/uploads/2019/09/
Coment%C3%A1rio-Geral-Nr8_CDC.pdf. Acesso em: 30 abr. 2021.
13
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça, da Infância e da Ju-
ventude (Regras de Beijing). Nova Iorque: Assembleia Geral da ONU, 1985. Disponível em: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/
politica_socioeducativa/regras_minimas_beijing.pdf. Acesso em: 30 abr. 2021.

304
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

b) infração é todo comportamento (ação ou omissão) penalizado com a lei, de acordo com o respectivo
sistema jurídico;
c) jovem infrator é aquele a quem se tenha imputado o cometimento de uma infração ou que seja
considerado culpado do cometimento de uma infração.
2.3 Em cada jurisdição nacional procurar-se-á promulgar um conjunto de leis, normas e disposições
aplicáveis especificamente aos jovens infratores, assim como aos órgãos e instituições encarregados
das funções de administração da Justiça da Infância e da Juventude, com a finalidade de:
a) satisfazer as diversas necessidades dos jovens infratores, e ao mesmo tempo proteger seus
direitos básicos;
b) satisfazer as necessidades da sociedade;
c) aplicar cabalmente e com justiça as regras que se enunciam a seguir.
3. Ampliação do âmbito de aplicação das regras
3.1 As disposições pertinentes das regras não só se aplicarão aos jovens infratores, mas também àqueles
que possam ser processados por realizar qualquer ato concreto que não seria punível se fosse prati-
cado por adultos.
3.2 Procurar-se-á estender o alcance dos princípios contidos nas regras a todos os jovens compreen-
didos nos procedimentos relativos à atenção à criança e ao adolescente e a seu bem-estar.
3.3 Procurar-se-á também estender o alcance dos princípios contidos nas regras aos infra-
tores adultos jovens.
4. Responsabilidade penal
4.1 Nos sistemas jurídicos que reconheçam o conceito de responsabilidade penal para jovens, seu
começo não deverá fixar-se numa idade demasiado precoce, levando-se em conta as circunstâncias
que acompanham a maturidade emocional, mental e intelectual.
5. Objetivos da Justiça da Infância e da Juventude
5.1 O sistema de Justiça da Infância e da Juventude enfatizará o bem-estar do jovem e garantirá que
qualquer decisão em relação aos jovens infratores será sempre proporcional às circunstâncias do
infrator e da infração.

2.1.7. Diretrizes para a prevenção da delinquência juvenil (Diretrizes de Riad), de 199014

1. A prevenção da delinquência juvenil é parte essencial da prevenção do delito na sociedade. Dedicados


a atividades lícitas e socialmente úteis, orientados rumo à sociedade e considerando a vida com crité-
rios humanistas, os jovens podem desenvolver atitudes não criminais.
2. Para ter êxito, a prevenção da delinquência juvenil requer, por parte de toda a sociedade, esforços
que garantam um desenvolvimento harmônico dos adolescentes e que respeitem e promovam a sua
personalidade a partir da primeira infância.
[...]

14
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Princípios das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil: Diretrizes de Riad.
Nova Iorque: Assembleia Geral da ONU, 1990. Disponível em: https://www.tjrr.jus.br/cij/arquivospdf/Diretrizes-de-Riad-1988.pdf. Acesso
em: 30 abr. 2021.

305
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

4. É necessário que se reconheça a importância da aplicação de políticas e medidas progressistas de


prevenção da delinquência que evitem criminalizar e penalizar a criança por uma conduta que não
cause grandes prejuízos ao seu desenvolvimento e que nem prejudique os demais. [...].

2.1.8. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), de 196915

Artigo 19 – Direitos da Criança


Direitos da criança. Toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor
requerem por parte de sua família, da sociedade e do Estado.
Artigo 26 – Desenvolvimento progressivo
Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante
cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a
plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência
e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de
Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.

2.1.9. Princípios e boas práticas sobre a proteção das pessoas privadas de liberdade nas
Américas16, de 2008.

Princípio II – Igualdade e não-discriminação


Não serão consideradas discriminatórias as medidas que se destinem a proteger exclusivamente os
direitos das mulheres, em especial as mulheres grávidas ou as mães lactantes; das crianças; dos idosos;
das pessoas doentes ou com infecções, como o HIV/AIDS; das pessoas com deficiência física, mental
ou sensorial; bem como dos povos indígenas, afrodescendentes e minorias.
Princípio III – Liberdade pessoal
A privação de liberdade de crianças deverá ser aplicada como último recurso, pelo período mínimo
necessário, e limitada a casos estritamente excepcionais.
Princípio X – Saúde
As pessoas privadas de liberdade terão direito à saúde, entendida como o gozo do mais alto nível
possível de bem-estar físico, mental e social, (...) e as medidas especiais para atender às necessidades
especiais de saúde das pessoas privadas de liberdade que façam parte de grupos vulneráveis ou de alto
risco, tais como: os idosos, as mulheres, as crianças, as pessoas com deficiência e as portadoras do HIV/
AIDS, tuberculose e doenças em fase terminal. O tratamento deverá basear-se em princípios científicos
e aplicar as melhores práticas. (...)
Princípio XII – Alojamento, condições de higiene e vestuário
(...) 1. Alojamento: As pessoas privadas de liberdade deverão dispor de espaço suficiente, com expo-
sição diária à luz natural, ventilação e calefação apropriadas, segundo as condições climáticas do local
de privação de liberdade. Receberão a cama individual, roupa de cama adequada e às demais condi-

15
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San Jose, 22 nov. 1969. Dispo-
nível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm . Acesso em: 14 maio 2021.
16
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Princípios e boas práticas para a proteção das pessoas privadas de liber-
dade nas américas. [S.l.]: OEA, 2008. Disponível em: https://fesudeperj.brdeploy.com.br/arquivos_material/2019.01.07-10.04.5050MAT09.
pdf. Acesso em: 14 maio 2022.

306
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

ções indispensáveis para o descanso noturno. As instalações deverão levar em conta, entre outras, as
necessidades especiais das pessoas doentes, das portadoras de deficiência, das crianças, das mulheres
grávidas ou mães lactantes e dos idosos. (...).
Princípio XIII – Educação e atividades culturais
(...) As pessoas privadas de liberdade terão direito à educação, que será acessível a todas elas, sem discri-
minação alguma, e levará em conta a diversidade cultural e suas necessidades especiais. 18 O ensino
fundamental ou básico será gratuito para as pessoas privadas de liberdade, especialmente as crianças
e os adultos que não tenham recebido ou concluído o ciclo completo de instrução dos anos iniciais
desse ensino. (...).
Princípio XIV – Trabalho
(...) Os Estados membros da Organização dos Estados Americanos deverão aplicar às crianças privadas
de liberdade todas as normas nacionais e internacionais de proteção vigentes em matéria de trabalho
infantil, a fim de evitar, especialmente, a exploração do trabalho e assegurar o interesse superior
da infância. (...)
Princípio XIX – Separação por categoria
(...) Nos casos de privação de liberdade dos solicitantes de asilo ou refúgio, e em outros casos similares,
as crianças não deverão ser separadas dos pais. (...).
Princípio XXII – Regime disciplinar
(...)
3. Medidas de isolamento: Serão proibidas, por disposição da lei, as medidas ou sanções de isolamento
em celas de castigo. Serão estritamente proibidas as medidas de isolamento das mulheres grávidas; das
mães que convivam com os filhos no interior 27 dos estabelecimentos de privação de liberdade; e das
crianças privadas de liberdade.

2.1.10. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado


Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em
Especial Mulheres e Crianças – Protocolo de Palermo, de 200017.

Artigo 6.º - Assistência e proteção às vítimas de tráfico de pessoas


4. Cada Estado Parte deverá ter em conta, ao aplicar as disposições do presente artigo, a idade, o sexo e
as necessidades especiais das vítimas de tráfico de pessoas, em particular as necessidades especiais das
crianças, nomeadamente o alojamento, a educação e os cuidados adequados.
(...)
Artigo 9.º - Prevenção do tráfico de pessoas
1. Os Estados Partes deverão estabelecer políticas, programas e outras medidas abrangentes para:
a) Prevenir e combater o tráfico de pessoas; e


17
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo de Palermo: Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Nova York:
Assembleia Geral da ONU, 2000. Disponível em: https://www.mdm.org.pt/wp-content/uploads/2017/10/Protocolo-de-Palermo.pdf. Aces-
so em: 30 abr. 20

307
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

b) Proteger as vítimas de tráfico de pessoas, especialmente as mulheres e as crianças, de nova vitimização.


(...)
4. Os Estados Partes deverão adotar ou reforçar medidas, designadamente através da cooperação bila-
teral ou multilateral, para reduzir os fatores como a pobreza, o subdesenvolvimento e a desigualdade
de oportunidades, que tornam as pessoas, em especial as mulheres e as crianças, vulneráveis ao tráfico.
5. Os Estados Partes deverão adotar ou reforçar as medidas legislativas ou outras, tais como medidas
educativas, sociais ou culturais, designadamente através da cooperação bilateral ou multilateral, a fim
de desencorajar a procura que propicie qualquer forma de exploração de pessoas, em especial de
mulheres e crianças, que leve ao tráfico.
Artigo 10.º - Intercâmbio de informações e formação
2. Os Estados Partes deverão assegurar ou reforçar a formação dos funcionários dos serviços responsá-
veis pela aplicação da lei, dos serviços de imigração ou de outros serviços competentes, na prevenção
do tráfico de pessoas. (...) A formação deverá igualmente ter em conta a necessidade de abarcar os
direitos humanos e as questões específicas dos homens, das mulheres e das crianças bem como enco-
rajar a cooperação com organizações não-governamentais, outras organizações relevantes e outros
sectores da sociedade civil.

2.2. Normativa interna brasileira

2.2.1. Constituição Federal

Artigo 227
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-
-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) [...]

2.2.2. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)18

Artigo 1º
Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
Artigo 2º
Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adoles-
cente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre
dezoito e vinte e um anos de idade.

18
BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF:
Presidência da República, [2021?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art2p. Acesso em: 30 abr. 2021.

308
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

Artigo 3º
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem
prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios,
todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem
discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, defi-
ciência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social,
região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em
que vivem. (incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)
Artigo 4º
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência fami-
liar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à
infância e à juventude.
Artigo 5º
Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, explo-
ração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão,
aos seus direitos fundamentais.
Artigo 6º
Na interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem
comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente
como pessoas em desenvolvimento.

2.2.3. Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)19

Artigo 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:
I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto;
II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de auto-
composição de conflitos;

BRASIL. Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Brasília, DF: Presi-
19

dência da República, [2017?]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm. Acesso em: 03 ago.


2021.

309
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às neces-
sidades das vítimas;
IV - proporcionalidade em relação à ofensa cometida;
V - brevidade da medida em resposta ao ato cometido, em especial o respeito ao que dispõe o art. 122
da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente);
VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente;
VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida;
VIII - não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade,
classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer
minoria ou status; e
IX - fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo.
Artigo 49
São direitos do adolescente submetido ao cumprimento de medida socioeducativa, sem prejuízo de
outros previstos em lei:
I - ser acompanhado por seus pais ou responsável e por seu defensor, em qualquer fase do procedi-
mento administrativo ou judicial;
II - ser incluído em programa de meio aberto quando inexistir vaga para o cumprimento de medida
de privação da liberdade, exceto nos casos de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou
violência à pessoa, quando o adolescente deverá ser internado em Unidade mais próxima de seu
local de residência;
III - ser respeitado em sua personalidade, intimidade, liberdade de pensamento e religião e em todos os
direitos não expressamente limitados na sentença;
IV - peticionar, por escrito ou verbalmente, diretamente a qualquer autoridade ou órgão público,
devendo, obrigatoriamente, ser respondido em até 15 (quinze) dias;
V - ser informado, inclusive por escrito, das normas de organização e funcionamento do programa de
atendimento e também das previsões de natureza disciplinar;
VI - receber, sempre que solicitar, informações sobre a evolução de seu plano individual, participando,
obrigatoriamente, de sua elaboração e, se for o caso, reavaliação;
VII - receber assistência integral à sua saúde, conforme o disposto no art. 60 desta Lei; e
VIII - ter atendimento garantido em creche e pré-escola aos filhos de 0 (zero) a 5 (cinco) anos.
§ 1º As garantias processuais destinadas a adolescente autor de ato infracional previstas na Lei nº 8.069,
de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), aplicam-se integralmente na execução
das medidas socioeducativas, inclusive no âmbito administrativo.
§ 2º A oferta irregular de programas de atendimento socioeducativo em meio aberto não poderá ser
invocada como motivo para aplicação ou manutenção de medida de privação da liberdade.

310
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

3. CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS CRIANÇAS DAS


NAÇÕES UNIDAS: CRIANÇAS COMO SUJEITOS DE DIREITOS

A Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (CDC), adotada em 1989 e em vigor
desde 1990 abrange direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de crianças e adolescentes.
Ao trazer em seu preâmbulo20 o conceito de criança, para os fins da convenção, o tratado inaugura
a chamada Doutrina da Proteção Integral, que estabelece o paradigma de cidadania da infância e se
define a partir de três princípios basilares: 1) universalização da condição de sujeitos de direitos para
todas as crianças e adolescentes, sendo vedada toda e qualquer forma de discriminação21; 2) condição
peculiar de desenvolvimento desse grupo de pessoas e 3) prioridade absoluta na garantia de seus
direitos fundamentais. Todos esses princípios, bem como os direitos específicos à criança enumerados
na Convenção, devem ser aplicados segundo a lógica do interesse maior, ou melhor interesse da
criança22: “Artigo 3 1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por autoridades administra-
tivas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interessa maior da criança.”23
A Convenção elenca diversos direitos fundamentais que devem ser garantidos e protegidos pelos Esta-
dos-parte. Entretanto, merece destaque a formulação do artigo 12, ao dar materialidade ao direito de
expressão, opinião e manifestação de ideias das crianças. O direito de ser ouvida e de ter sua opinião
considerada, nos limites e possibilidades de sua percepção, foi uma inovação importante e representa
um marco no que tange à afirmação da cidadania infanto-juvenil.
Para verificar o cumprimento das obrigações assumidas pelos Estados, a Convenção prevê em seu
artigo 43 a criação de um Comitê para os Direitos da Criança, que recebe periodicamente relatórios
dos Estados. Desde sua entrada em vigor, foram estabelecidos ainda mais três Protocolos facultativos à
CDC: 1) Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de criança,
à prostituição infantil e à pornografia infantil; 2) Protocolo Facultativo relativo ao envolvimento de

20
Relembrando a mesma determinação já estabelecida na Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, o texto da Convenção estabelece
que os direitos da criança (sua proteção e cuidados especiais) justificam-se tanto devido à sua falta de maturidade, física e mental, ou
seja, sua vulnerabilidade social, quanto à necessidade de sua preparação para uma vida independente na sociedade, o que deve ocorrer
“no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão”. BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990.
Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Brasília, DF: Presidência da República, [2017?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm. Acesso em: 02 maio 2019.


21
“Artigo 2: 1. Os Estados Partes respeitarão os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua aplicação a cada criança
sujeita à sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra índole,
origem nacional, étnica ou social, posição econômica, deficiências físicas, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais
ou de seus representantes legais. 2. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar a proteção da criança contra
toda forma de discriminação ou castigo por causa da condição, das atividades, das opiniões manifestadas ou das crenças de seus pais,
representantes legais ou familiares.” FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INF NCIA. A Convenção sobre os Direitos das Crianças.
[2019?]. Disponível em: http://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf . Acesso em: 08 maio 2019.
22
Ver de forma detalhada em: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Org.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos
teóricos e práticos. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
23
FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INF NCIA. A Convenção sobre os Direitos das Crianças. [2019?] Disponível em: http://www.
unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf . Acesso em: 08 maio 2019.

311
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

crianças em conflitos armados24 e 3) Protocolo Facultativo relativo aos procedimentos de comunicação.


Este último, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2011, foi assinado pelo Brasil no ano
seguinte e, em 2014, entrou em vigor. A entrada em vigor desse mecanismo consiste em um avanço
histórico em matéria de defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Com ele, crianças vítimas de
abusos ou quaisquer outras violações ou ameaças de violações aos seus direitos podem fazer direta-
mente a denúncia ao Comitê Internacional para os Direitos da Criança. O Protocolo também prevê a
solicitação de proteção à integridade da criança ou adolescente para evitar represálias, maus-tratos ou
intimidação em virtude da denúncia.
É possível, ainda, enviar diretamente comunicações ao Comitê contendo denúncias sobre possíveis
violações de um ou mais dispositivo da Convenção por algum Estado-parte. Um exemplo de utilização
recente de tal mecanismo pôde ser visto com a denúncia, formulada por associações da sociedade civil
em conjunto com outras instituições, sobre o recolhimento compulsório e segregação de crianças e
adolescentes pobres e negros no Rio de Janeiro, no contexto dos Jogos Olímpicos de 2016. O Comitê
sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) recebeu o documento, que
destacou evidências das possíveis violações de direitos básicos contra crianças e adolescentes mora-
dores de periferias e favelas na cidade25.
No âmbito das Nações Unidas, há ainda outros dois instrumentos internacionais de grande relevância:
Regras Mínimas para a Administração da Justiça dos Menores, também chamada Regras de Beijing (1985)
e os Princípios Orientadores da ONU para a prevenção da delinquência juvenil, denominadas Regras
de Riad (1990)26. São instrumentos que definem o desenvolvimento integral da criança como um bem
jurídico complexo e fortalecem o reconhecimento das peculiaridades da condição de crianças e adoles-
centes enquanto pessoas em desenvolvimento, sem desconsiderar seu status de sujeitos de direitos.
Esses dois últimos tratados, em especial as Regras de Beijing, estabeleceram marcos fundamentais para
a atuação e administração dos sistemas de justiça dos Estados com relação às crianças e aos adoles-
centes, principalmente quanto à responsabilização em matéria infracional. Estabelecem, ainda, o pres-
suposto da intervenção mínima e de um modelo de responsabilização capaz de satisfazer as diversas

24
Ambos datam da Assembleia Geral das Nações Unidas ocorridas em 2000 e foram promulgados pelo governo brasileiro em 2004: Decre-
to nº 5.007 e Decreto nº 5.006, ambos de 8 de março de 2004. Destaca-se, ainda, que a assinatura do primeiro Protocolo gerou diversas
transformações legislativas e políticas no contexto brasileiro. A instalação da chamada CPI da pedofilia, em 2008, bem como a inclusão de
mudanças significativas na Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, como a previsão do crime
de portar imagem erótica de criança ou adolescente (art. 240). Sobre esse tema, é importante destacar a decisão do Superior Tribunal de
Justiça sobre a matéria, no Recurso Especial nº 1.543.267-SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 3/12/2015 (DJe 16/2/2016).
Neste caso, o STJ entendeu que fotografar cena e armazenar fotografia de criança ou adolescente em poses nitidamente sensuais, com
enfoque em seus órgãos genitais, ainda que cobertos por peças de roupas, e incontroversa finalidade sexual e libidinosa, adequam-se,
respectivamente, aos tipos do art. 240 e 241-B do ECA. São dispositivos que devem ser interpretados, de acordo com a decisão, de acordo
com a ótica de maior proteção (garantia do melhor interesse) da criança e do adolescente. Por isso, ainda que não haja exibição explícita
do órgão sexual da criança ou do adolescente, o ato pode ser enquadrado no conceito de pornografia infantil. ROCHA, R. Principais
Julgamentos do STF, STJ, TST, TSE E PGR. [S.l.]: Editora Juspodivm, 2017.
25
RIO 2016: Organizações denunciam à ONU recolhimento compulsório de crianças e adolescentes. Justiça Global. 22 fev. 2016. Notícias.
Disponível em: http://www.global.org.br/blog/rio-2016-organizacoes-denunciam-a-onu-recolhimento-compulsorio-de-criancas-e-ado-
lescentes/. Acesso em: 05 mai. 2019.
26
Podemos citar, ainda nesse quadro normativo, as Regras para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, mais conhecidas como Regras
de Havana, e as Regras Mínimas da ONU para a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade, nomeadas de Regras de Tóquio ambas
aprovadas em 1990.

312
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

necessidades dos jovens infratores, e ao mesmo tempo proteger seus direitos básicos e satisfazer as
necessidades da sociedade27.

4. O ALCANCE DO ARTIGO 19 DA CADH: CASOS


EMBLEMÁTICOS NO SISTEMA INTERAMERICANO

No que tange aos direitos de crianças e adolescentes, existe uma notável compatibilidade entre o
sistema global e regional de proteção dos direitos humanos, visível na integração das diversas decisões
e julgados dos dois sistemas de proteção. 28 O SIDH, além de receber diretamente denúncias, realiza
monitoramentos constantes, produz relatórios e recomendações diretas aos Estados, por meio das
atribuições da CIDH e da Corte IDH. 29
Apesar da brevidade do Artigo 19, os órgãos de monitoramento do SIDH conferiram uma evolução
basilar e um sólido corpus jurisprudencial no que tange à defesa dos direitos de crianças e adolescentes
para os Estados membros da OEA. 30 Tal avanço também foi legitimado normativamente a partir da
interpretação combinada com o Artigo 26 da Carta, no sentido de se consolidar uma visão multidimen-
sional e progressiva das garantias dos direitos humanos de crianças e adolescentes.
Nesse sentido, neste tópico, destacamos alguns dos casos contenciosos mais emblemáticos, que
consolidaram avanços para a efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes no cenário
latino-americano. O impacto jurídico-político dessas decisões contribuiu para se reconhecer interna-
cionalmente as responsabilidades (e omissões) dos Estados com relação à vida das vítimas e dos grupos
vulneráveis que elas representam e promoveu avanços no campo das normativas e políticas públicas
internas voltadas a crianças e adolescentes.


27
As Regras de Beijing voltam-se ao estabelecimento de regras mínimas para administração da Justiça Juvenil, concentrando-se no esforço
para se “criar condições que garantam à criança e ao adolescente uma vida significativa na comunidade, fomentando, durante o período
de idade em que ele é mais vulnerável a um comportamento desviado, um processo de desenvolvimento pessoal e de educação o mais
isento possível do crime e da delinquência.”. As regras de Riad centram-se na necessidade de prevenção de delitos entre os jovens no
intuito de se garantir o bem-estar da sociedade, a partir de medidas de promoção de seus direitos, capazes de promover e respeitar sua
personalidade desde a infância.
28
“Pode ser afirmado que o sistema global e o sistema regional para a promoção e proteção dos direitos humanos não são necessariamente
incompatíveis; pelo contrário, são ambos úteis e complementares. As duas sistemáticas podem ser conciliadas em uma base funcional:
o conteúdo normativo de ambos os instrumentos internacionais, tanto global como regional, deve ser similar em princípios e valores,
refletindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é proclamada como um código comum a ser alcançado por todos os povos
e todas as Nações. O instrumento global deve conter um parâmetro normativo mínimo, enquanto o instrumento regional deve ir além,
adicionando novos direitos, aperfeiçoando outros, levando em consideração as diferenças peculiares em uma mesma região ou entre
uma região e outra. O que inicialmente parecia ser uma séria dicotomia — o sistema global e o sistema regional de direitos humanos
— tem sido solucionado satisfatoriamente em uma base funcional.”. STEINER, H. Regional Promotion, and protection of human rights:
twenty-eighth report of the Commission to Study the Organization of Peace, 1980. Apud: PIOVESAN, F. Direitos Humanos e Justiça
Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 54.
29

A Comissão interamericana é integrada por sete membros independentes, peritos/as em direitos humanos, que não representam ne-
nhum país e são eleitos/as pela Assembleia Geral da OEA. Suas principais funções são: realização de visitas aos países, atividades ou
iniciativas temáticas; produção de relatórios sobre a situação de direitos humanos ou sobre um tema determinado; adoção de medidas
cautelares ou pedido de medidas provisórias à Corte IDH e processamento e análise de petições individuais. Já a Corte IDH, instalada em
1979, é um órgão judicial autônomo da OEA, cujo mandato consta da Convenção Americana. A Corte IDH tem como objetivo interpretar e
aplicar a Convenção Americana e outros tratados interamericanos de direitos humanos, em particular por meio da emissão de sentenças
sobre casos e opiniões consultivas.
Somente os Estados partes e a Comissão podem submeter casos à Corte IDH.
30
Ver mais em PETERKE, Sven; FARIAS, Paloma Leite Diniz. 50 anos dos “direitos da criança” na Convenção Americana de Direitos Humanos:
a história do artigo 19. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 17, n. 1, p.310-323, 2020. Disponível em: https://publicacoes.uniceub.br/
rdi/article/view/6133/pdf . Acesso em: 30 ago. 2021.

313
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Caso Niños de la Calle (Villagrán Morales e outros) vs. Guatemala. Mérito. Sentença de 19 de novembro
de 1999. Série C, nº. 63. A Corte IDH entendeu que a Guatemala violou frontalmente o artigo 19, em
conjunto com o artigo 11 da CADH. A tortura e execução extrajudicial de cinco jovens em situação
de rua, três deles menores de 18 anos, levou a Corte a pontuar, em seu julgado, a importância, tanto
desses dispositivos, quanto da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989. O caso de
Julio Roberto Sandoval, Jovito Cifuentes e Astraum Villagrán representou um marco na jurisprudência
da Corte, porque a levou a questionar a forma como a grande maioria dos Estados latino-americanos
tratava – e ainda trata – as questões ligadas à infância pobre e periférica: mediante violência e tortura
institucionalizada. O caso trouxe luz à barbárie vivenciada nos sistemas de justiça juvenil e, portanto,
serviu para consolidar o entendimento de que, ao passar dos tempos, a interpretação da CADH deve
observar as condições e os contextos referentes ao momento de sua aplicação – e não ao período no
qual o texto foi elaborado. 31 A necessidade de estender os parâmetros de proteção do direito à vida,
portanto, foi consolidada com esse julgado, além da constatação de violação da obrigação de apurar e
investigar adequadamente e em tempo hábil, as denúncias de tortura e o assassinato dos jovens.
Caso Instituto de Reeducación del Menor vs. Paraguai. Exceções Preliminares. Mérito, Reparações e
Custas. Sentença de 2 de setembro de 2004. Série C, nº 112. A situação de superlotação, superpopulação,
insalubridade, que culminou com a ocorrência de três incêndios, com dez vítimas fatais, no Instituto de
Reeducação do Menor “Coronel Panchito López”, no Paraguai, levou a denúncia do Estado perante a
Comissão, em 1996 e, posteriormente, ao seu processamento na Corte IDH. Por conta de seu desen-
volvimento físico e emocional, crianças e adolescentes necessitam de proteção especial, portanto, no
presente caso, os arts. 4º (direito à vida) e 5º (direito à integridade pessoal), foram vistos sob a luz do
art. 19, que trata dos direitos da criança. A Corte IDH considerou também em sua fundamentação a
Convenção sobre os Direitos da Criança, das Nações Unidas, o Protocolo de São Salvador (protocolo
adicional à CADH, o qual trata de matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), ambos ratifi-
cados pelo Paraguai. Nos termos de um Estado democrático de Direito e do devido processo legal,
sempre que as condições da restrição de liberdade ofenderem outros direitos fundamentais, tais
como o direito à vida e à integridade pessoal, resta configurada uma violação às normas do Direito
Internacional. Por força do artigo 19 da CADH, a Corte entendeu que há, para os Estados, a obrigação
adicional de proteger a vida e a integridade dos adolescentes e crianças que se encontram submetidos
a algum tipo de limitação ao exercício de seus direitos, principalmente na situação excepcionalíssima da
restrição à liberdade. Nesta mesma seara, o Caso David Bulacio v. Argentina também merece destaque
porque ensejou a criação de um mecanismo de consulta com especialistas e representantes da socie-
dade civil para modernizar previsões legais sobre condições de detenção de crianças e adolescentes32.
Caso Comunidad Indigena Xákmok Kásek vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24
de agosto de 2010. Série C, nº 214. O mesmo Estado do Paraguai foi responsabilizado internacional-
mente por diversas violações a direitos fundamentais do povo Sanapaná, decorrentes da ausência de
demarcação das terras da etnia, requerida administrativamente desde 1990. 33 A decisão estabeleceu a
relação entre a violação do direito ao território do povo em questão com as condições indignas às quais


31
FERRAZ, H. G. Corte IDH, Casoteca, Por País – Guatemala, Por tema – Crianças. Núcleo Interamericano de Direitos Humanos. 22 fev.
2018. Informativo. Disponível em: https://nidh.com.br/villagran-morales-e-outros-vs-guatemala-1999-a-convencao-americana-como-ins-
trumento-vivo-e-o-combate-a-violacao-aos-direitos-da-crianca/. Acesso em: 30 maio 2022.
32
Conforme CALABRIA, C. 1315. O caso em questão se refere ao assassinato de um adolescente apreendido pela polícia argentina em 1991.
O Estado reconheceu sua responsabilidade internacional em 2003, por meio de uma solução amistosa e a realização de duas audiências
públicas pela Corte IDH.
33
FOLTRAN, F. Direito à identidade cultural dos povos indígenas: análise de casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2018.
38 f. Artigo (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. p. 16-17. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/
bitstream/handle/1884/62541/FRANCISCO%20FOLTRAN.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 09 jun. 2022.

314
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

a população, em especial crianças e adolescentes34, estavam submetidas há anos. Diante da análise das
provas, a Corte declarou por sete votos a um que o Estado do Paraguai violou o direito à propriedade
comunitária, às garantias judiciais, à proteção judicial, ao reconhecimento da personalidade jurídica
e à vida, consagrados respectivamente nos artigos 21.1, 8.1, 25.1, 3 e 4.1 da Convenção Americana; e,
por unanimidade, que foram violados os direitos da criança e da integridade pessoal, consagrados nos
artigos 19 e 5.1, respectivamente.
Caso Fornerón e filha vs. Argentina. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 27 de abril de 2012. Série
C, nº 242. Neste caso, por meio da responsabilização internacional, o Estado argentino foi impelido
a adotar medidas voltadas para criminalizar a troca de crianças por compensações de qualquer tipo,
forma ou finalidade. O pai biológico da criança M., Leonardo Fornerón, demandou judicialmente por
cinco anos perante o Estado argentino, sem sucesso, seu direito à guarda e ao convívio com a filha, que
fora doada pela mãe biológica logo ao nascer, em junho de 2000, para um casal que residia na cidade
de Victória. O Sr. Fornerón peticionou à Comissão Interamericana, que admitiu o caso e o remeteu à
Corte regional. A Corte IDH declarou que a Argentina incorreu em responsabilidade internacional por
violação dos direitos previstos na Convenção Americana, pelo artigo 1º (obrigação de respeitar direitos),
artigo 2º (dever de adoção de dispositivos internos), artigo 8º (garantias judiciais), artigo 17 (proteção à
família), artigo 19 (direito das crianças) e o artigo 25 (proteção judicial)35.
Caso Véliz Franco e outros vs. Guatemala. Exceções preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 19 de maio de 2014. Série C, nº 277. María Isabel Véliz tinha 15 anos no momento de sua
morte, era estudante e tinha acabado de terminar o terceiro ano básico. O caso de desaparecimento e
de assassinato brutal da menina revelou a omissão e a morosidade das autoridades guatemaltecas com
relação à violência cometida contra meninas e mulheres. No caso Véliz Franco, a Corte declarou sua
preocupação com a questão da dupla situação de vulnerabilidade consubstancial da vítima María Isabel,
mulher e menor de idade. Assim, o Estado foi responsabilizado por não haver protegido a menor antes
de seu assassinato e pela falta de devida diligência durante a investigação e o processo judicial. Além
de ter falhado para evitar o feminicídio, a Guatemala falhou ao não conseguir dar à família da vítima o
direito à verdade, justiça e reparação. Ademais, foi percebido pela Corte que a demora injustificada por
parte da Guatemala deu-se de maneira mais acentuada porque se tratava da morte de uma mulher36.
F. Caso Gonzales Lluy e outros vs. Equador. Exceções preliminares. Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 1 de setembro de 2015, Série C, nº 298. A demanda envolveu a responsabilização do Estado
do Equador pela violação dos direitos à saúde, à vida digna e à integridade de Talía Gabriela Gonzales
e, bem como de sua família. Com apenas três anos de idade, em 1998, ao necessitar de uma transfusão
de sangue em uma clínica médica privada, a menina foi contagiada com o vírus HIV. A família buscou


34
“(...) muitos dos rituais de passagem para a vida adulta, os que envolvem sua religiosidade ou o enterro e reverência aos falecidos deixaram
de ser praticados, pois necessitam de determinadas plantas ou locais para sua realização. (...) Na escola da comunidade, com condições
bastante precárias, sem merenda escolar ou material didático, estava sendo ensinado somente o currículo escolar previsto pelo governo,
em castelhano ou guarani, perdendo-se a língua enxet. O posto de saúde mais próximo localizava-se a 75 km da comunidade. As crianças
não receberam as vacinas conforme as determinações internacionais, muitas sendo vítimas fatais de doenças como tétano, pneumonia,
tuberculose, anemia, coqueluche e quadros graves de desidratação. (...) Pelos relatórios apresentados, a Corte constatou que muitos
membros da comunidade não tinham registros civis, mesmo alguns que já haviam falecido, os quais, portanto, não tiveram reconhecida
sua personalidade jurídica.”. SOARES, Bruna Kelly Oliveira. Os direitos dos povos indígenas perante a Corte Interamericana de Direi-
tos Humanos. 2015. 55 p. Monografia (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015. p. 45-46. Disponível em:
https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/25700/1/2015_tcc_bkosoares.pdf. Acesso em: 09 jun. 2022.
35
ANELLI, T. B. Accountability do cumprimento das decisões da Corte IDH: estudo dos casos dos países do MERCOSUL em fase de
execução de sentença. 2018. 140 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2018. p. 83. Dis-
ponível em: https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/20242/DIS_PPGDIREITO_2018_ANELLI_THAIS.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
Acesso em: 09 jun. 2022.
36
Cf. BELOFF, M. A proteção dos direitos das meninas na Justiça Juvenil. Cadernos do Programa de Pós-Graduação Direito/UFRGS, Porto
Alegre, vol. 13, n.2, 2018, p. 20. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/ppgdir/article/view/90244. Acesso em: 25 out. 2022.

315
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

judicialmente a reparação e a responsabilização criminal e civil dos envolvidos, mas não obteve êxito,
em um processo que durou mais de sete anos. Nesse período, a criança e a família sofreram diversas
violações a seus direitos fundamentais. Estigmatizada e discriminada por ser portadora do vírus, a
menina foi até mesmo impedida de frequentar a escola pública e alguns estabelecimentos de saúde,
tendo em vista, ainda, sua situação de vulnerabilidade econômica e financeira. Diante de um cenário
de discriminações e violações legitimadas pelo poder público do Equador, a Corte alegou que as viola-
ções aos direitos à vida e à integridade pessoal de Talía deram-se a partir da contaminação, haja vista
a obrigatoriedade de o Estado fiscalizar os estabelecimentos privados que prestam serviços médicos.
Além disso, os eventos posteriores agravaram a situação de vulnerabilidade da menina e de sua família,
haja vista que, além de impedida de acessar tratamentos médicos adequados, foram vítimas de novas e
graves violações de direitos, em especial o direito à integridade pessoal, à saúde e à educação. Assim, o
caso tornou-se um marco porque levou à reflexão acerca da condição da criança com deficiência e de
seus direitos, em especial o direito à vida digna. 37
G. Caso V.R.P., V.P.C. e outros vs. Nicarágua. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 08 de março de 2018. Série C, nº 350. O caso trata da violência sexual – e institucional
– sofrida pela criança V.R.P, à época dos fatos com 9 anos. A investigação criminal e posterior ação
penal realizadas diante da ocorrência do crime de estupro de vulnerável – cometido pelo genitor– reve-
laram condutas criminosas operadas por agentes públicos, que agravaram e reforçaram as violências
já sofridas pela vítima. 38 A República da Nicarágua foi condenada pela Corte IDH pois, tanto o estupro
quanto as falhas na prestação estatal referentes à sua investigação violaram os direitos à integridade
pessoal, à vida privada e familiar, à igualdade e não-discriminação e às garantias judiciais das vítimas.
A decisão reforçou a necessidade de proteção especial em investigações e ações penais por violência
sexual contra crianças e adolescentes e destacou o dever de não revitimização, com base em disposi-
tivos da Convenção de Belém do Pará e do Pacto de San José da Costa Rica. 39
H. Caso de las niñas Yean y Bosico vs. República Dominicana. Sentença de 08 de setembro de 2005.
Série C, nº 130. O caso refere-se à violação do direito à nacionalidade de duas meninas dominicanas
de ascendência haitiana. Funcionários do Registro Civil da República Dominicana, de forma arbitrária
e discriminatória, negaram-se a inscrever suas atas de nascimento, ato do qual decorreram inúmeras
outras violações de direitos humanos. A Corte IDH reconheceu a situação de vulnerabilidade em que
se encontraram as crianças pois, ao não obterem suas nacionalidades, viram-se privadas do direito a
estudar na escola diurna, sendo obrigadas a se inscrevem no ensino noturno. Além disso, suas famílias


37
Ver mais em MERLI, Isadora Marques; RIANELLI, Luiza Lima. Gonzales Lluy vs. Equador (2015): A equiparação do HIV à deficiência.
Núcleo Interamericano de Direitos Humanos. 26 set. 2020. Informativo. Disponível em: https://nidh.com.br/gonzaleslluy. Acesso em: 09
jun. 2022.
38
“A suspeita de violência sexual foi desencadeada após a vítima ser submetida a atendimento médico que constatou ruptura do hímen e
sinais indicativos de doença venérea. Antes, o pai da criança a levou a localidade conhecida como ‘Las Flores’ onde, após ingestão de be-
bida, a menor sentiu tonturas e adormeceu. Ao acordar, o genitor estava vestindo a roupa e limpando a região anal da menina. Noticiados
os fatos aos órgãos estatais, a vítima foi submetida a uma junta médica e o legista responsável comportou-se de maneira considerada
antiética e vulgar ao examiná-la, usando força excessiva e fazendo com que integrantes da equipe de saúde decidissem não participar do
ato. Em seguida, durante reconstrução dos fatos na instrução judicial, foi solicitado à criança que percorresse e reconhecesse os lugares
aos quais fora levada por seu genitor para recriar o evento, bem como que vestisse as mesmas roupas que usava e que ficasse na mesma
posição que se encontrava quando acordou após a violência. O julgamento foi realizado por júri popular, com suspeita de suborno dos
jurados, que absolveram o réu, resultado confirmado em segunda instância.”. MORAES, R. F. M. de. Lei 14.321/2022: a criminalização da
violência institucional. Consultor Jurídico. 10 de abril de 2022. Opinião. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-10/rafael-mo-
raes-criminalizacao-violencia-institucional. Acesso em: 09 jun. 2022.
39
No âmbito da proteção de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, ressaltamos também os marcos jurisprudenciais do caso
Caso Guzmán Albarracín y otras Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de junio de 2020. Serie C No. 405. O julga-
mento do caso pela Corte Interamericana de Direitos Humanos foi o primeiro a tratar de abusos sexuais sofridos no ambiente escolar. A
estudante foi abusada sexualmente dos 14 a 16 anos pelo vice-diretor de sua escola, o que culminou em seu suicídio. Ver mais em: CORTE
INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Guzmán Albarracín y otras vs. Ecuador. 2020. Disponível em: https://www.cortei-
dh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_405_esp.pdf . Acesso em: 09 jun. 2022.

316
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

vivenciaram a situação de incerteza e insegurança diante o temor fundado de que as filhas pudessem
ser expulsas do país da qual eram nacionais, por conta da ausência dos registros civis e das dificuldades
que enfrentaram para obter tais documentos. Assim, o Estado foi responsabilizado internacionalmente
por haver violado o direito à integridade pessoal, do direito à personalidade jurídica e o direito ao
nome das meninas.40
I. Caso de la “Masacre de Mapiripán” vs. Colômbia. Sentença de 15 de setembro de 2005. Série C,
nº. 134. Nesse caso, a sentença declarou a responsabilidade internacional da Colômbia pela morte,
lesões e abusos cometidos contra a população da localidade de Mapiripán durante o massacre de 49
camponeses, entre 15 e 20 de julho de 1997, realizado por agentes paramilitares, assim como a falta
de investigação e sanção dos responsáveis. As vítimas foram detidas, torturadas, executadas e/ou
desaparecidas, o que provocou um deslocamento massivo dos habitantes da região. Na sentença, a
Corte IDH reconheceu que o Estado tinha pleno conhecimento de que a localidade apresentava altos
índices de violência dentro do marco do conflito armado interno, e ainda assim omitiu-se de proteger a
sua população, particularmente suas crianças. Segundo a Corte, a obrigação do Estado em respeitar o
direito à vida de toda pessoa apresenta modalidades especiais no caso de crianças, e se transforma em
uma obrigação de “prevenir situações que possam conduzir, por ação ou omissão, a afetação daquele.”
41
A Corte considerou que o Estado não tomou as medidas necessárias para que as crianças pudessem
desenvolver uma existência digna, ao contrário, as expôs a um clima de violência e insegurança. O
deslocamento interno possui origem na desproteção sofrida durante o massacre e revela seus efeitos
nas violações à integridade pessoal e nas consequências das omissões relativas ao dever de investigar
os fatos, que resultaram parcialmente impunes. O Estado foi condenado pela violação ao artigo 19 da
Convenção Americana, em conexão com os artigos 4.1, 5.1 e 1.1 da mesma, 42 devido à desproteção a que
estiveram submetidos os meninos e meninas no momento de serem deslocados.
J. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e
Custas. Sentença de 22 de agosto de 2017. Série C, nº. 337. O Brasil foi condenado pela violação dos
direitos a não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas, ao reconhecimento da personali-
dade jurídica, à integridade pessoal, à liberdade pessoal, às garantias judiciais, à proteção da honra e da
dignidade, de circulação e residência e à proteção judicial das vítimas que foram localizadas, em duas
ocasiões: 43 trabalhadores localizados durante a fiscalização de 1997 e outros 85, resgatados em 2000,

40
CEJIL. Ninas Yean e Bosico. Disponível em: https://summa.cejil.org/pt/entity/ggjddpp7k0774x6r. Acesso em 09 jun. 2022. Ver, também:
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Parecer consultivo OC-21/14 de 19 de agosto de 2014. 2014. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_21_por.pdf. Acesso em: 09 jun. 2022. Ver, ainda, CORTE INTERAMERICANA DE DERE-
CHOS HUMANOS. Caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas vs. República Dominicana. Exceções Preliminares, Méri-
to, Reparações e Custas: Sentença de 28 de agosto de 2014. 2014. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_282_
esp.pdf. Acesso em: 09 jun. 2022.


41
INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case of the “Mapiripán Massacre” v. Colombia. 2005. Disponível em: https://corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_134_ing.pdf. Acesso em: 08 jun. 2022.
42
A decisão desenvolveu parâmetros de responsabilidade estatal sobre atos de particulares, em caso de ação ou omissão por parte de agen-
tes estatais que ocupem posições de garantia das obrigações de respeito e proteção. Determinou-se a utilidade das normas de direito
internacional humanitário para a interpretação da Convenção Americana, e afirmou que o Estado tem, em situação de conflito armado
interno, obrigações especiais em relação às crianças, por sua especial vulnerabilidade. A Corte IDH ampliou ainda a sua jurisprudência
sobre o conteúdo e alcance do direito de circulação e residência, relativamente ao deslocamento forçado das vítimas e à ampla gama de
direitos consequentemente afetados. Ver mais em: https://summa.cejil.org/pt/entity/tw59015lhlpzxgvi Acesso em 08 jun. 2022. Outros
casos relevantes, nesse tema: Caso Carvajal Carvajal y otros Vs. Colombia. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 13 de março de 2018.
Série C, nº. 352. O Caso Coc Max y otros (Masacre de Xamán) Vs. Guatemala. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 22 de agosto de
2018. Série C, nº. 356.

317
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

na Fazenda Brasil Verde. Uma das vítimas era criança na ocasião em que foi levada à Fazenda, o que
configurou também violação ao artigo 19 da CADH.43

5.  A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E O ARTIGO 227


DA CONSTIUIÇÃO FEDERAL: PRIORIDADE ABSOLUTA

O Brasil faz parte da lista de países que protagonizou intensas mobilizações e avanços legislativos, no
final dos anos 80, relativos à proteção da infância e da juventude. O intenso movimento pela cidadania
da infância44 refletiu-se especialmente no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 que, antecipando
a própria Convenção Internacional dos Direitos da Criança, reafirmou os princípios da Doutrina da
Proteção Integral. Trata-se da única referência à “absoluta prioridade” em todo o texto constitucional45:
Da condição peculiar de desenvolvimento, ou seja, da vulnerabilidade que exige tratamento especial
pelo Estado, pela família e pela sociedade, decorre a prioridade absoluta com relação às formas de
proteção, defesa e promoção desses direitos. Tais deveres, conferidos às três esferas já elencadas,
devem garantir, em toda e qualquer instância, a situação que melhor represente a proteção dos direitos
fundamentais de crianças ou adolescentes, na perspectiva de respeito ao seu melhor e superior inte-
resse. Assim, observamos no caput do artigo 227 a articulação dos três princípios-base da doutrina da
proteção integral: situação peculiar de desenvolvimento, prioridade absoluta e melhor/superior inte-
resse da criança.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, por sua vez, norma-
tiza tais disposições, definindo direitos e deveres de forma específica, estabelecendo competências e
responsabilidades no que tange aos direitos da infância e da juventude no Brasil. Esse documento é
reconhecido internacionalmente por seu pioneirismo e por incorporar de forma clara e qualificada as
disposições constantes da CDC e demais tratados internacionais de proteção dos direitos da criança. O
artigo 2º define criança como a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre
doze e dezoito anos de idade. Em seu artigo 4º, o ECA esclarece em que consiste a garantia de prioridade
absoluta. São diretrizes fundamentais, pois conferem materialidade e efetividade ao referido Princípio.
O artigo 6º também merece destaque, pois estabelece a linha interpretativa dos dispositivos da lei.
Tal artigo orienta as possibilidades de aplicação do ECA, na medida em que estabelece as prioridades,
e possiblidades de escolha, do intérprete frente à necessidade de efetivação dos direitos de crianças
e adolescentes. Podemos identificar a aplicação de tais dispositivos em diversos casos julgados nas
instâncias judiciais brasileiras, como no Supremo Tribunal Federal (STF). Em um caso envolvendo


43
Ver mais em: RÉU BRASIL. Caso dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Publicado em: jan., 2021. Disponível em: https://
www.reubrasil.jor.br/caso-trabalhadores-da-fazenda-brasil-verde-versus-brasil/#pontosresolutivosdasentena. Acesso em 08 jun. 2022.
Outra jurisprudência importante no tema consiste no Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares
Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Serie C No. 407). A referida fábrica,
localizada no município baiano (então segundo maior do país na produção de fogos de artifício), empregava majoritariamente mulheres
e crianças em situação de vulnerabilidade econômica, com baixos salários e precárias condições de trabalho. A explosão ocorrida em 11
de dezembro de 1998, vitimou pelo menos 60 pessoas, dentre elas 20 crianças. Ver mais em: RÉU BRASIL. Caso dos Trabalhadores da
Fábrica de fogos de Santo Antoônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil. Publicado em: jan., 2021. Disponível em: https://reubrasil.jor.
br/caso-empregados-da-fabrica-de-fogos-de-santo-antonio-de-jesus-e-seus-familiares-versus-brasil/#pontosresolutivosdasentena >
Acesso em 09 jun. 2022.
44
Ver em PINHEIRO, . A. A. Criança e Adolescente no Brasil: porque o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: UFC, 2006. Acerca do
contexto político jurídico em torno da Assembleia Constituinte no Brasil, consultar: PILATTI, A. A Constituinte de 1987-1988: Progressis-
tas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
45
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidên-
cia da República, [2019?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 abr. 2019.

318
DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

violação do direito à saúde de criança no estado do Tocantins, o Tribunal entendeu que a prioridade
absoluta do direito da criança e do adolescente abrange a possibilidade de intervenção judicial e conde-
nação do ente federativo quando houver omissão do dever de proteção prioritária:

Não há dúvida quanto à possibilidade jurídica de determinação judicial para o Poder Executivo
concretizar políticas públicas constitucionalmente definidas, como no presente caso, em que o
comando constitucional exige, com absoluta prioridade, a proteção dos direitos das crianças e
dos adolescentes, claramente definida no Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim também
já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ-Resp. 630.765/SP, 1ª Turma, relator Luiz Fux, DJ
12.09.2005). [...] A proibição da proteção insuficiente exige do Estado a proibição de inércia e
omissão na proteção aos adolescentes infratores, com primazia, com preferencial formulação e
execução de políticas públicas de valores que a própria Constituição define como de absoluta
prioridade. Essa política prioritária e constitucionalmente definida deve ser levada em conta
pelas previsões orçamentárias, como forma de aproximar a atuação administrativa e legislativa
(Annäherungstheorie) às determinações constitucionais que concretizam o direito fundamental
de proteção da criança e do adolescente.46

A universalização dos direitos humanos de crianças e adolescentes inaugurada com ECA pôs fim à
doutrina menorista, também conhecida como doutrina da situação irregular, marcando assim o fim de
um paradigma legal que reforçou, durante décadas, a marginalização social de uma grande parcela da
infância brasileira47. Ao entrar em vigor, o ECA revogou o Código de Menores, extinguindo tal nomen-
clatura e adequando o ordenamento jurídico nacional aos imperativos internacionais de proteção dos
direitos humanos. Além de reafirmar e especificar os pressupostos da Doutrina da Proteção Integral,
criando direitos e princípios, o Estatuto inaugurou mecanismos inovadores, democráticos e participa-
tivos de efetivação dos direitos de crianças e adolescente, como os Conselhos Tutelares, por exemplo48.
Para garantir a doutrina da proteção integral, o ECA estabelece um sistema de garantias de proteção
aos direitos de crianças e adolescentes, exigindo que as distintas esferas institucionais possuam, de
fato, uma política e um fluxo definido para lidar com as demandas dessa área, em especial quando
crianças e adolescentes se encontram em situações de risco49.

46
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Presidência). Suspensão de Liminar 235-0 – Tocantins. Trata-se de pedido de suspensão de liminar (fls.
02-22), formulado pelo Estado do Tocantins, contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do
Tocantins, que indeferiu pedido de suspensão de liminar ajuizado naquele Tribunal de Justiça. Requerente(S): Estado Do Tocantins Ad-
vogado(A/S): PGE-TO - Luís Gonzaga Assunção; Requerido(A/S): Tribunal De Justiça Do Estado Do Tocantins (Agravo Regimental Na
Suspensão De Liminar Nº 1848/07 Na Ação Civil Pública Nº 72658-0/06). Relator: Ministro Presidente, Gilmar Ferreira Mendes, 08 de julho
de 2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/sl235.pdf Acesso em 02 maio 2019.
47
Vigorou no país, até o surgimento da doutrina da proteção integral, um sistema normativo voltado ao controle e ao disciplinamento
da juventude em situação de “irregularidade”, conforme podemos observar em PINHEIRO, Â. A. A. Criança e Adolescente no Brasil:
porque o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: UFC, 2006. O Código de Menores de 1927 já estabelece a necessidade de correção
de menores “em estado habitual de vadiagem, mendicância ou libertinagem”, nos termos do artigo 26. Tal diretriz aprofunda-se quando
a lei é revisada em 1979. No artigo 2º, considera-se em situação irregular o menor: “I - privado de condições essenciais à sua subsistência,
saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta im-
possibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade
contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com
desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal.”. BRASIL. Lei nº 6.697, de 10
de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Revogado pela Lei nº 8.069 de 1990. Brasília, DF: Presidência da República, [2019?].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1970-1979/L6697.htm. Acesso em: 05 mai. 2019.
48
Os Conselhos Tutelares são órgãos municipais autônomos e permanentes, que possuem características particulares com relação às de-
mais instituições públicas. Seus membros são escolhidos pela população do município, de forma representativa, e apesar de não serem
jurisdicionais, possuem a função de zelar pelo cumprimento dos direitos de crianças e adolescentes. Para tanto, dispõem de certas prer-
rogativas, atribuições, deveres e competências, estabelecidas no Título V do Estatuto, artigos 131 a 140.
49
De acordo com o artigo 98, do ECA, quando ocorre quaisquer umas das hipóteses nele prevista, é preciso haver atuação: “Art. 98. As me-
didas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - em razão de sua conduta.”.

319
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Com relação ao quadro normativo nacional, a conformidade com os parâmetros internacionais de


proteção dos direitos humanos também se expressa a partir de legislações específicas, para além do
ECA. Podemos citar como exemplo a confluência, estabelecida pela Lei do Sistema Nacional de Aten-
dimento Socioeducativo (SINASE), Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, com as Diretrizes e Regras das
Nações Unidas acerca da administração do sistema juvenil e da prevenção da delinquência
No âmbito da proteção e promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes, citamos também
o marco regulatório da Primeira Infância, a Lei nº 13.257 de 08 de março de 2016, que define os princí-
pios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em
atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no
desenvolvimento do ser humano.

320
DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES

DIREITOS HUMANOS DOS


TRABALHADORES MIGRANTES

Vitória Volcato da Costa

1. INTRODUÇÃO

A proteção específica das pessoas migrantes pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos decorre
da posição de desigualdade e vulnerabilidade que estas enfrentam em relação aos cidadãos nacionais
do Estado de destino. Sendo o migrante toda pessoa que migra, “a migração se aplica a movimentos
de pessoas de um lugar para o outro e esses deslocamentos levam a uma mudança de residência que
pode ser temporária ou permanente.”1 Por sua vez, trabalhador migrante é toda pessoa que “vá realizar,
realize ou tenha realizado uma atividade remunerada em um Estado do qual não é nacional.”
Ao se dizer que os trabalhadores migrantes se encontram em uma situação de vulnerabilidade em sua
maioria, significa que estes não possuem, ou possuem de maneira desigual em relação aos cidadãos
nacionais, poder econômico, cultural e político, o que os impede de acessar determinados bens e
serviços necessários a uma vida digna. 2 A trajetória migratória possui diferentes etapas, e elas se dão no
local de origem, no local de trânsito e no local de destino. Os migrantes sofrem com a desigualdade e
a discriminação em todas as etapas da trajetória migratória, porquanto fazem parte de grupos social-
mente inferiorizados e há uma materialização na prática de atitudes arbitrárias, comissivas e omissivas,
que impedem o acesso a determinados direitos e/ou violam diretamente seus direitos humanos. 3
Tais atitudes são praticadas desde a política do Estado de destino, que concederá ou não uma proteção
internacional e uma possibilidade de entrada e regularização migratória, passa pela ausência de polí-
ticas públicas para integração local e/ou pela existência de políticas discriminatórias, até pela discri-
minação da sociedade de destino, os cidadãos nacionais do país que “recebe” o migrante. A CIDH se
pronunciou nesse sentido, afirmando que há um grande número de ações dos Estados (leis, políticas
e práticas estatais), bem como de ações e omissões de agentes não estatais e pessoas individuais, que
não reconhecem as pessoas migrantes como sujeitos de direito, violando os seus direitos humanos, em
desrespeito ao princípio da igualdade e não discriminação.4


1
No idioma original: “La migración se aplica a los movimientos de personas de un lugar a otro y estos desplazamientos conllevan a un cam-
bio de residencia que puede ser temporal o definitivo”. VIZCARRA, Ana Elizabeth Villalta. Migración, asilo y refúgio. Boletim da Sociedade
Brasileira de Direito Internacional, Belo Horizonte, ano CII, v. 103, n. 125-130, p. 709, jul./dez. 2017. Disponível em: https://drive.google.
com/file/d/1U8Jym4r61ghZelJj_HgNoJM-0kPJltMd/view. Acesso em: 03 maio 2021.
2
BRAGATO, Fernanda Frizzo; ADAMATTI, Bianka. Igualdade, não discriminação e direitos humanos: são legítimos os tratamentos dife-
renciados? Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, Brasília D.F., ano 51, n. 204, out./dez. 2014. Disponível em: https://www2.
senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/509929/001032257.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 17 maio 2021. p. 99.
3
RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008.
4
CIDH. Compendio Igualdad y no discriminación. Estándares interamericanos. Washington D.C., 2019. Disponível em: http://www.oas.
org/es/cidh/informes/pdfs/Compendio-IgualdadNoDiscriminacion.pdf. Acesso em: 03 maio 2021.

321
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

2.1.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 19485

Artigo 2º
Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração,
sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política
ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além
disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país
ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autô-
nomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.

2.1.2. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 19666

Artigo 26
Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da
Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas
proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou
qualquer outra situação.

2.1.3. Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria


de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), de 19887

Artigo 3 – Obrigação de não discriminação


Os Estados-Partes neste Protocolo comprometem-se a garantir o exercício dos direitos nele enun-
ciados, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou
de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer
outra condição social.

5
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, Assembleia Geral da ONU, 10 dez. 1948. Disponível em: https://www.unicef.
org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 03 ago. 2021. Acesso em: 03 ago. 2021.
6
ONU. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Nova Iorque, 26 dez. 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 17 maio 2021.

OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. San Salvador, 17 nov.
7

1988. Disponível em: http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-52.htm. Acesso em: 14 maio 2021.

322
DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES

2.1.4. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalha-


dores Migrantes e dos Membros de suas Famílias, de 19908

Artigo 1º
1. Salvo disposição em contrário constante do seu próprio texto, a presente Convenção aplica-se a todos
os trabalhadores migrantes e aos membros das suas famílias sem qualquer distinção, fundada nomea-
damente no sexo, raça, cor, língua, religião ou convicção, opinião política ou outra, origem nacional,
étnica ou social, nacionalidade, idade, posição económica, património, estado civil, nascimento ou
outra situação.
2. A presente Convenção aplica-se a todo o processo migratório dos trabalhadores migrantes e dos
membros das suas famílias, o qual compreende a preparação da migração, a partida, o trânsito e a
duração total da estada, a atividade remunerada no Estado de emprego, bem como o regresso ao
Estado de origem ou ao Estado de residência habitual.
Artigo 7º
Os Estados Partes comprometem-se, em conformidade com os instrumentos internacionais relativos
aos direitos humanos, a respeitar e a garantir os direitos previstos na presente Convenção a todos os
trabalhadores migrantes e membros da sua família que se encontrem no seu território e sujeitos à
sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo,
língua, religião ou convicção, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social, nacionalidade,
idade, posição económica, património, estado civil, nascimento ou de qualquer outra situação.

2.1.5. Convenção nº 97 sobre Trabalhadores Migrantes da OIT, de 19499

Artigo 6
1. Todo Membro para o qual se ache em vigor a presente convenção se obriga a aplicar aos imigrantes
que se encontrem legalmente em seu território, sem discriminação de nacionalidade, raça, religião
ou sexo, um tratamento que não seja inferior ao aplicado a seus próprios nacionais com relação aos
seguintes assuntos:
a) sempre que estes pontos estejam regulamentados pela legislação ou dependem de autoridades
administrativas:
I) a remuneração, compreendidos os abonos familiares quando estes fizerem parte da mesma, a duração
de trabalho, as horas extraordinárias, férias remuneradas, restrições do trabalho a domicílio, idade de
admissão no emprego, aprendizagem e formação profissional, trabalho das mulheres e dos menores;
II) a filiação a organizações sindicais e o gozo das vantagens que oferecem as convenções cole-
tivas do trabalho;
III) a habitação;

8
ONU. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Fa-
mílias. Nova Iorque: Assembleia Geral da ONU, 18 dez. 1990. Disponível em: http://acnudh.org/wp-content/uploads/2012/08/Conven%-
C3%A7%C3%A3o-Internacional-para-a-Prote%C3%A7%C3%A3o-dos-Direitos-Humanos-de-todos-os-Trabalhadores-Migrantes-e-
-Membros-de-suas-Fam%C3%ADlias.pdf. Acesso em: 30 abr. 2021.
9
OIT. Convenção nº 97 sobre Trabalhadores Migrantes. Genebra, 32ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, 1949. Disponível
em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235186/lang--pt/index.htm. Acesso em: 10 maio 2021.

323
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

b) a seguridade social (isto é, as disposições legais relativas aos acidentes de trabalho, enfermidades
profissionais, maternidade, doença, velhice e morte, desemprego, e encargos de família, assim como a
qualquer outro risco que, de acordo com a legislação nacional esteja coberto por um regime de segu-
ridade social), sob reserva:
I) de acordos adequados visando à manutenção dos direitos adquiridos e dos direitos em
curso de aquisição;
II) de disposições especiais estabelecidas pela legislação nacional do país de imigração sobre auxílios ou
frações de auxílio pagos exclusivamente pelos fundos públicos e sobre subsídios pagos às pessoas que
não reúnam as condições de contribuição exigidas para a percepção de um benefício normal;
c) os impostos, taxas e contribuições, concernentes ao trabalho, percebidas em relação à
pessoa empregada;
d) as ações judiciais relativas às questões mencionadas na presente convenção.

2.1.6. Convenção nº 143 sobre as Imigrações Efetuadas em Condições Abusivas e


Sobre a Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Tratamento dos Trabalhadores
Migrantes da OIT, de 197510

Artigo 10
Os Membros para os quais a presente Convenção esteja em vigor comprometem-se a formular e a
aplicar uma política nacional que se proponha promover e garantir, por métodos adaptados às circuns-
tâncias e aos costumes nacionais, a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de
emprego e de profissão, de segurança social, de direitos sindicais e culturais e de liberdades individuais
e coletivas para aqueles que se encontram legalmente nos seus territórios na qualidade de emigrantes
ou de familiares destes.

2.1.7. Declaração Sociolaboral do MERCOSUL, de 201511

Artigo 4° - Não discriminação


1. Os Estados Partes comprometem-se a garantir, conforme a legislação vigente e práticas nacionais, a
igualdade efetiva de direitos, o tratamento e as oportunidades no emprego e na ocupação, sem distinção
ou exclusão por motivo de sexo, etnia, raça, cor, ascendência nacional, nacionalidade, orientação sexual,
identidade de gênero, idade, credo, opinião e atividade política e sindical, ideologia, posição econômica
ou qualquer outra condição social, familiar ou pessoal.
2. Todo trabalhador perceberá igual salário por trabalho de igual valor, em conformidade com as dispo-
sições legais vigentes em cada Estado Parte.
3. Os Estados Partes comprometem-se a garantir a vigência deste princípio de não discriminação. Em
particular, comprometem-se a realizar ações destinadas a eliminar a discriminação no que tange aos
grupos em situação desvantajosa no mercado de trabalho.

10
OIT. Convenção nº 143 sobre as Imigrações Efetuadas em Condições Abusivas e Sobre a Promoção da Igualdade de Oportunida-
des e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes. Genebra, 60ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, 1975. Disponível
em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242707/lang--pt/index.htm. Acesso em: 14 maio de 2021.

MERCOSUL. Declaração Sociolaboral do MERCOSUL de 2015. Brasília D.F., 17 jul. 2015. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/
11

canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-sociolaboral-do-mercosul-de-2015-i-reuniao-negociadora-brasilia-17-de-
-julho-de-2015. Acesso em: 03 ago. 2021.

324
DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES

Artigo 7º - Trabalhadores Migrantes e Fronteiriços


1. Todos os trabalhadores, independentemente de sua nacionalidade, têm direito à assistência, à infor-
mação, à proteção e à igualdade de direitos e condições de trabalho, bem como direito de acesso aos
serviços públicos, reconhecidos aos nacionais do país em que estiver exercendo suas atividades, em
conformidade com a legislação de cada país.

2.2. Normativa interna brasileira

2.2.1. Constituição Federal

Artigo 5º
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade [...].

2.2.2. Lei de Migração Brasileira12

Artigo 3º
A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes: [...]
II - repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação;
IV - não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida
em território nacional;
IX - igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares;
XI - acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos,
educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social;
Artigo 4º
Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabili-
dade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados:
I - direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos; [...]
VII - direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos;
VIII - acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei,
sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória;
IX - amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita aos que comprovarem insufi-
ciência de recursos;
X - direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória;

BRASIL. Lei n.º 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília D.F., 24 maio 2017. Disponível em: http://www.planalto.
12

gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em: 03 ago. 2021.

325
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

XI - garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas


de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória; [...]
§ 1º Os direitos e as garantias previstos nesta Lei serão exercidos em observância ao disposto na Cons-
tituição Federal, independentemente da situação migratória, observado o disposto no § 4º deste artigo,
e não excluem outros decorrentes de tratado de que o Brasil seja parte.

3. FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA


PESSOAS MIGRANTES

A discriminação sofrida por pessoas migrantes pode se dar por diferentes fatores, os quais, inclusive,
irão indicar o grau de desigualdade e discriminação que o indivíduo irá enfrentar. Assim, é preciso escla-
recer primeiramente a xenofobia, a forma mais conhecida de discriminação contra pessoas migrantes.
Apesar de não existir no plano internacional uma definição universalmente aceita de xenofobia, a Orga-
nização Internacional para as Migrações (OIM) afirma que a xenofobia pode ser descrita como

[...] atitude, preconceito ou comportamento que rejeita, exclui e, frequentemente, diminui pessoas
com base na percepção de que são estranhas ou estrangeiras relativamente à comunidade, à
sociedade ou à identidade nacional. Existe uma relação estreita entre racismo e xenofobia, termos
que são difíceis de distinguir.13

Assim, a xenofobia provoca uma situação de desigualdade e vulnerabilidade das pessoas de diferente
origem nacional em relação aos cidadãos nacionais de determinado Estado, o que vem a ser trabalhado
no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Nesse sentido, é preciso mencionar que dentro deste
espectro da xenofobia há diferentes conotações e níveis de discriminação.
No Direito Internacional, a nacionalidade é a ligação jurídica que um indivíduo possui com determinado
Estado, e cada Estado pode decidir quanto às suas regras para determinar os critérios de atribuição de
nacionalidade e naturalização. Portanto, poderá haver tratamento diferenciado entre nacionais e não
nacionais, porém, em alguns casos, tais regras acabam implicando na desigualdade desproporcional
de determinados grupos étnicos ou raciais, bem como são desiguais entre determinadas nacionali-
dades estrangeiras. Já para o Direito Internacional dos Direitos Humanos especificamente, nem sempre
a nacionalidade terá tal conotação. A ideia de origem nacional conta com características culturais e
históricas, podendo existir nacionais de um mesmo Estado com diferentes origens nacionais, o que
possibilita os diferenciar quanto à sua origem étnica ou racial. Diante de tal circunstância, a discrimi-
nação contra pessoas de diferente origem nacional poderá configurar discriminação racial.14
Portanto, a discriminação pode ocorrer pelo fato de a pessoa não ser nacional daquele Estado, ou seja,
ser um imigrante, e quando a pessoa tem a nacionalidade deste Estado, mas sua origem nacional, étnica
ou racial, é distinta. Assim, a discriminação é acentuada quando um imigrante, para além do fato de não
ser nacional do Estado de destino, possui origem étnica ou racial diversa da dos cidadãos nacionais, que
seja pertencente a um grupo historicamente inferiorizado.15 Do mesmo modo, se a origem nacional

13
OIM. Glossário sobre Migração. n. 22. Genebra, 2009. Disponível em: https://publications.iom.int/system/files/pdf/iml22.pdf. Acesso em:
03 maio 2021.

INTERIGHTS. Non-Discrimination in International Law – A Handbook for practitioners. London, 2011. p. 168-169.
14

15
FIGUEIRA, Rickson Rios. Razões da Xenofobia. Ensaio sobre os fatores contribuintes da violência xenófoba contra imigrantes e refugiados
venezuelanos em Roraima. In: VON ZUBEN, Catarina et al. (org.). Migrações Venezuelanas. Campinas: Núcleo de Estudos de População
“Elza Berquó” – Nepo/Unicamp, 2018. p. 224-229.

326
DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES

deste imigrante é um Estado do Sul Global,16 a sua discriminação também será acentuada, fruto de
discursos desumanizantes e tratamentos desproporcionais aos habitantes do mundo periférico.17 Isso
ocorre porque a debilidade de poder de grupos vulneráveis serve como empoderamento aos demais
grupos que detêm o poder e, dessa forma, para justificar que alguns seres humanos não possuem
direitos, primeiro foi necessário afirmar que estes não eram seres humanos integrais, os colocando em
uma posição de vulnerabilidade.18
Tal lógica não é aplicada somente em relação à nacionalidade - cidadão nacional possui poder e direitos
sobre a sua propriedade Estado-nação, em detrimento do imigrante, que enfrenta políticas restritivas
de fronteiras, entre outras questões. A discriminação dos imigrantes vai além, se conectando também
com outros fatores, como raça, sexo, religião, etc. Nesse sentido:

[...] produziu-se, historicamente, a construção de um padrão de humanidade encarnado na figura


do indivíduo masculino, branco, proprietário, ocidental, heterossexual e cristão. Como padrão
unitário, superior e cientificamente orientado de comportamento, a racionalidade tornou-se um
atributo culturalmente centrado (ou etnocêntrico) e, portanto, ausente em diversos exemplares
da espécie humana, como é o caso das mulheres, dos estrangeiros, dos colonizados, dos negros,
dos deficientes e assim por diante.19

Daí a importância de ressaltar que a discriminação contra pessoas migrantes ocorre de diversas
maneiras e em diferentes níveis, demonstrando também a razão da dificuldade de diferenciar xeno-
fobia e racismo, conforme o conceito trazido pela OIM.

4. PROIBIÇÃO INTERNACIONAL DA DISCRIMINAÇÃO

A maioria dos tratados e documentos internacionais de direitos humanos possuem previsão de não
discriminação por origem nacional ou nacionalidade, como a DUDH e o PIDCP, dos quais o Brasil
é signatário. O art. 2º da DUDH prevê que todos os seres humanos podem invocar os direitos nela
constantes sem distinção alguma, incluindo a origem nacional, e o art. 26 do PIDCP prevê o direito
à igualdade e à não discriminação perante a proteção da lei, elencando entre os motivos vedados de
discriminação a origem nacional. 20

16
“O Sul é aqui concebido metaforicamente como um campo de desafios epistêmicos [...] historicamente causados pelo capitalismo na
sua relação colonial com o resto do mundo. Esta concepção do Sul sobrepõe-se em parte com o Sul Geográfico, o conjunto de países e
regiões do mundo que foram submetidos ao colonialismo europeu e que [...] não atingiram níveis de desenvolvimento econômico seme-
lhantes ao do Norte Global (Europa e América do Norte). A sobreposição não é total porque [...] no interior do Norte Geográfico [...] (tra-
balhadores, mulheres, indígenas, afrodescendentes) foram sujeitos à dominação capitalista e colonial, e [...] no interior do Sul Geográfico
houve sempre as “pequenas Europas”, pequenas elites locais [...]”. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias
do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. p. 13.


17
COSTA, Vitória Volcato da; VIEIRA, Luciane Klein. Nacionalismo, xenofobia e União Europeia: barreiras à livre circulação de pessoas e
ameaças ao futuro do bloco europeu. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, v. 64, n. 3, set./dez. 2019. Disponível em: https://
revistas.ufpr.br/direito/article/view/65536. Acesso em: 17 maio 2021.
18
BRAGATO, Fernanda Frizzo; ADAMATTI, Bianka. Igualdade, não discriminação e direitos humanos: são legítimos os tratamentos dife-
renciados? Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, Brasília D.F., ano 51, n. 204, out./dez. 2014. Disponível em: https://www2.
senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/509929/001032257.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 17 maio 2021. p. 99-100.
19
BRAGATO, Fernanda Frizzo; ADAMATTI, Bianka. Igualdade, não discriminação e direitos humanos: são legítimos os tratamentos dife-
renciados? Revista de Informação Legislativa, Senado Federal, Brasília D.F., ano 51, n. 204, out./dez. 2014. Disponível em: https://www2.
senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/509929/001032257.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 17 maio 2021. p. 99.
20
ONU. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Nova Iorque, 26 dez. 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 17 maio 2021.

327
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Em relação ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIDH), o art. 24 da CADH
prevê o direito à igualdade de uma maneira geral: “Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conse-
guinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei. 21 O art. 3 do Protocolo de San Salvador
prevê a obrigação dos Estados de não discriminação na garantia do exercício dos direitos previstos no
tratado, elencando como um dos motivos a origem nacional ou de nascimento. 22 Ambos os tratados
foram assinados e ratificados pelo Brasil.
Ainda no SIDH, a Convenção A-68, de 2013, aborda o tema da discriminação de maneira aprofundada.
O art. 2º traz o direito à igualdade e à igual proteção contra qualquer forma de discriminação e into-
lerância, e o direito de todo ser humano ao reconhecimento, gozo, exercício e proteção de todos os
direitos humanos em igualdade de condições. Para tanto, a Convenção A-68 estabelece um rol de
deveres dos Estados para assegurar tais direitos. 23
Em síntese, os tratados mencionados afirmam o direito à igualdade jurídica, à não discriminação e à
proteção igualitária dos direitos humanos. No que se refere ao gozo e exercício de tais direitos pelas
pessoas migrantes, a CIDH afirma sobre os estândares interamericanos do direito à igualdade e à não
discriminação, que a obrigação geral dos Estados de não discriminação exige que todos os direitos
previstos nos tratados do SIDH se aplicam às pessoas migrantes e apátridas, 24 sendo vedada a discrimi-
nação por origem nacional e por status migratório. 25
O Brasil, enquanto Estado signatário de todos os tratados internacionais acima referidos, tem a obri-
gação de respeitar e garantir o direito à igualdade e à não discriminação das pessoas migrantes em
seu território nacional. A CF/198826 estabelece no art. 5º a igualdade perante a lei entre os nacionais
e não nacionais, e a Lei de Migração brasileira, Lei n.º 13.445/2017, 27 foi inaugurada com o objetivo de
estar em consonância com os referidos tratados e com a CF/1988, instituindo uma política migratória
com perspectiva de direitos humanos. Nesse sentido, o art. 3º da Lei de Migração, que traz os princípios
e diretrizes da política migratória brasileira, e o art. 4º, que estabelece o rol de direitos garantidos aos
migrantes no Brasil, preveem o repúdio e prevenção à xenofobia e demais formas de discriminação,
assim como o acesso dos migrantes a direitos fundamentais em condições de igualdade com os cida-
dãos nacionais, independentemente do seu status migratório.
Ainda sobre o marco legal internacional, o tema da igualdade e não discriminação das pessoas
migrantes é abordado especificamente na Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos

OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. San Jose, 22 nov. 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portu-
21

gues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 14 maio 2021.


22
OEA. Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. San Salvador, 17 nov.
1988. Disponível em: http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-52.htm. Acesso em: 14 maio 2021.
23
OEA. Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Antígua, 5 jun.
2013. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/mandato/basicos/discriminacioneintolerancia.pdf. Acesso em: 14 de maio de 2021.
24
Apátrida significa pessoa sem pátria, ou seja, aquela pessoa sem nacionalidade, sem vínculo jurídico-político com nenhum Estado. A
apatridia é regulada no plano internacional pela Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e pela Convenção para a Redução dos
Casos de Apatridia de 1961, ambas da ONU.
25
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (CIDH). Compendio Igualdad y no discriminación: Estándares Interame-
ricanos. Washington D.C., 12 feb. 2019. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Compendio-IgualdadNoDiscriminacion.
pdf. Acesso em: 14 maio 2021. p. 123-124.
26
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília D.F., 05 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03 ago. 2021.
27
BRASIL. Lei n.º 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília D.F., 24 maio 2017. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em: 03 ago. 2021.

328
DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES

de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias28 (CTM), firmada em 1990 na
Assembleia Geral da ONU, entrando em vigor no ano de 2003. A Convenção possui 45 Estados signa-
tários, entre os quais o Brasil não está incluído, e que consistem sobretudo em países de origem dos
fluxos migratórios no cenário das migrações internacionais contemporâneas29, ou seja, países do Sul
Global, o que já acena para as dificuldades em torno da garantia dos direitos humanos deste grupo
vulnerável. O monitoramento da implementação da CTM pelos Estados Partes é realizado pelo Comitê
sobre Trabalhadores Migrantes, que faz parte do Sistema Global Especial de Proteção dos Direitos
Humanos, vinculado à ONU.
A CTM dispõe sobre o direito à igualdade e à não discriminação dos trabalhadores migrantes e
membros de suas famílias, sendo que família significa o cônjuge ou quem possua status legal equiva-
lente ao casamento no Estado em questão, filhos e outros dependentes previstos na legislação nacional
ou em acordos internacionais aplicáveis. Sobre o rol de direitos humanos previstos na CTM, o direito à
igualdade é ressaltado em diversas ocasiões. Assim, é previsto o direito à igualdade dos trabalhadores
migrantes e membros de suas famílias em relação aos cidadãos nacionais do Estado de destino, no que
tange a: litígios perante tribunais e cortes; remuneração; proteção contra demissão; benefícios quando
na situação de desemprego; acesso a serviços sociais e de saúde; acesso à educação de seus filhos; etc. 30

5. OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS

Os artigos 1º e 7º da CTM estabelecem o direito à não discriminação, determinando que os Estados


deverão respeitar e garantir o rol de direitos nela previstos, sem distinção de qualquer tipo, como origem
nacional, raça, sexo, idioma, posição econômica, etc. Sobre o direito à não discriminação dos trabalha-
dores migrantes e membros de suas famílias, o Comitê sobre Trabalhadores Migrantes se manifestou
em suas conclusões finais ao relatório apresentado pela Colômbia, em 2020. Apesar de a legislação
nacional do Estado colombiano prever o combate à discriminação e à xenofobia, reconhecendo direitos
iguais a nacionais e não nacionais, o Comitê expressou preocupação sobre os discursos xenofóbicos
proferidos contra pessoas migrantes na Colômbia, em especial contra mulheres migrantes e contra os
filhos de migrantes nascidos no país. As recomendações apresentadas pelo Comitê ao Estado colom-
biano foram no sentido de fortalecer a política para eliminação de estereótipos discriminatórios, sendo
uma maneira de fazê-lo adotar em todos os níveis educacionais o tema da prevenção à xenofobia. 31
Sobre as medidas que devem ser adotadas de maneira geral para que os Estados cumpram com os
princípios da igualdade e da não discriminação em relação às pessoas migrantes, a Corte IDH ressaltou

28
ONU. International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers and Members of Their Families. New York
City: UN General Assembly, 18 dec. 1990. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/ProfessionalInterest/cmw.pdf. Acesso em: 30
abr. 2021.
29
OHCHR. UN Treaty Body Database. Geneva, 2021. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/TBSear-
ch.aspx?Lang=en&TreatyID=7&DocTypeID=45&DocTypeID=29. Acesso em: 03 maio 2021.
30
ONU. International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers and Members of Their Families. New York
City: UN General Assembly, 18 dec. 1990. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/ProfessionalInterest/cmw.pdf. Acesso em: 30
abr. 2021.


31
COMMITTEE ON THE PROTECTION OF THE RIGHTS OF ALL MIGRANT WORKERS AND MEMBERS OF THEIR FAMILIES (CMW). Con-
cluding observations on the third periodic report of Colombia - CMW/C/COL/CO/3. Geneva, 27 jan. 2020. Disponível em: https://
tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CMW%2fC%2fCOL%2fCO%2f3&Lang=en. Acesso
em: 10 maio de 2021. p. 5.

329
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

no Caso Vélez Loor vs. Panamá32 que os Estados têm a obrigação de não inserir no seu ordenamento
jurídico interno disposições discriminatórias, de retirar quaisquer disposições legais discriminatórias
já existentes, de combater práticas discriminatórias e atuar positivamente no sentido de estabelecer
normas e políticas que visem garantir na prática a igualdade perante a lei. 33
Nesse mesmo sentido, decorrem do direito à igual proteção dos direitos humanos sem discriminação,
previsto na Convenção A-68, os estândares interamericanos sobre igualdade e não discriminação
quando estabelecem que, ao impor ao Estado o dever de garantir a igualdade e a não discriminação,
este deve adotar medidas para prevenir, investigar, processar e punir a violência e a discriminação
contra pessoas migrantes. 34
O tema da não criminalização da migração também está relacionado com os direitos à igualdade e à não
discriminação das pessoas migrantes. O princípio da não criminalização da migração exige que a irregu-
laridade migratória não seja tratada como punível no âmbito do Direito Penal, e sim somente na esfera
administrativa, bem como que não sejam inseridos termos como ilegal ou clandestino nas legislações
migratórias. Portanto, o princípio da não criminalização da migração determina que nenhum indivíduo
poderá ser considerado ilegal por não preencher os requisitos para uma regularização migratória,
tampouco preso por razões migratórias - princípio da não detenção, decorrente do anterior. Tais princí-
pios foram afirmados pela Corte IDH na Opinião Consultiva nº 21 de 2014 (OC 21/14), ambos gerados a
partir do art. 7 da CADH e art. XXV da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. 35
Os estereótipos e preconceitos contra as pessoas migrantes os relacionam frequentemente com
a delinquência, o que instiga o tratamento discriminatório contra essas pessoas nas leis e políticas
adotadas pelos Estados, que acabam por criminalizar a migração. De acordo com os estândares intera-
mericanos de proteção, os Estados devem se abster de adotas leis, políticas e medidas administrativas
que criminalizem a migração e que violem o princípio fundamental à não discriminação, ao devido
processo legal, à liberdade e à integridade pessoal das pessoas migrantes. 36


32
Trata-se do caso de Jesús Tranquilino Vélez Loor, de nacionalidade equatoriana e que à época dos fatos estava como imigrante no Panamá.
No referido Estado, foi preso por não portar documentação necessária para permanecer no país (migrante indocumentado ou irregular),
sendo condenado a uma pena de 2 anos e posteriormente deportado ao Equador, sem o respeito ao devido processo legal e havendo
sofrido tortura e maus tratos. A Corte IDH condenou o Estado do Panamá, em sentença proferida no ano de 2010, pelas violações do
direito à igualdade perante a lei, proteção judicial, integridade pessoal, garantias judiciais, etc. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS
HUMANOS (CORTE IDH). Caso Vélez Loor vs. Panamá. San Jose, 23 nov. 2010. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_218_esp2.pdf. Acesso em: 17 maio 2021.
33
CORTE IDH. Caso Vélez Loor vs. Panamá. San Jose, 23 nov. 2010. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/se-
riec_218_esp2.pdf. Acesso em: 17 maio 2021.
34
CIDH. Compendio Igualdad y no discriminación: Estándares Interamericanos. Washington D.C., 12 feb. 2019. Disponível em: http://
www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Compendio-IgualdadNoDiscriminacion.pdf. Acesso em: 14 maio 2021. p. 124.
35
COSTA, Vitória Volcato da. Direitos Humanos dos Imigrantes Venezuelanos no Mercosul: a recepção adotada pelos Estados Partes.
Belo Horizonte: Arraes Editores, 2020. p. 68 e 137.
36
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (CIDH). Compendio Igualdad y no discriminación: Estándares Interame-
ricanos. Washington D.C., 12 feb. 2019. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Compendio-IgualdadNoDiscriminacion.
pdf. Acesso em: 14 maio 2021. p. 125.

330
DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES

Nessa linha, a Corte IDH reconheceu no caso Nadege Dorzema e outros vs. República Dominicana37 a
violação dos direitos à igualdade e à não discriminação de imigrantes haitianos em situação migratória
irregular, por meio da discriminação indireta do Estado, o que se deu sobretudo pela política nacional
de criminalização da migração da República Dominicana. Ao fazer tal afirmação a respeito da discrimi-
nação indireta, a Corte IDH esclareceu que esta pode ocorrer quando leis, políticas e medidas estatais,
que a princípio podem parecer neutras por não terem um sujeito especificamente direcionado, causam
efeitos desproporcionais em relação a determinados grupos vulneráveis. 38

6. MULHERES MIGRANTES

Uma vez verificadas as diferentes implicações da xenofobia, a proibição internacional da discriminação


e as obrigações dos Estados em relação aos princípios da igualdade e da não discriminação, é impor-
tante falar sobre as interseccionalidades que perpassam a discriminação contra pessoas migrantes, as
quais geram um agravamento na desigualdade e vulnerabilidade enfrentadas. É o caso das mulheres
migrantes, que apesar de representarem 48% dos migrantes internacionais, 39 ou seja, quase a metade,
ainda são invisibilizadas em muitas políticas migratórias.
Do mesmo modo, outros fatores de discriminação também podem incidir, além da situação de mobili-
dade e do sexo/gênero. Nesse sentido, de acordo com a CIDH:

[...] a situação de vulnerabilidade estrutural dos migrantes se agrava quando, ademais de serem
migrantes, convergem outros fatores de vulnerabilidade, tais como a discriminação com base em
raça, cor, origem nacional ou social, idioma, nascimento, idade, sexo, orientação sexual, identi-
dade de gênero, deficiência, posição econômica, religião ou qualquer outra condição, as quais
ao se apresentarem ao mesmo tempo levam a que os migrantes sejam vítimas de discriminação
interseccional.40

Na mesma linha, o Comitê sobre Trabalhadores Migrantes emitiu um Comentário Geral sobre trabalha-
dores domésticos migrantes. Levando em consideração o fato de que a maioria das pessoas migrantes
trabalhando no mercado doméstico são mulheres e meninas, bem como que as trajetórias migratórias
de homens e mulheres são marcadas por diferenças que vão desde as rotas migratórias escolhidas,
até os abusos sofridos e a divisão sexual do trabalho, o Comitê afirmou a necessidade de os Estados
incorporarem a perspectiva de gênero em suas políticas migratórias, a fim de evitar a discriminação


37
Trata-se do caso de 30 imigrantes haitianos que adentraram o território da República Dominicana em situação irregular e ao passar por
um dos postos de controle migratório sofreram perseguição do corpo militar, ocasião que gerou a morte de alguns imigrantes do grupo e
a prisão dos sobreviventes, entre outros fatos que ensejaram violações de direitos humanos. A Corte IDH reconheceu a responsabilidade
internacional da República Dominicana, em sentença do ano de 2012, pela violação dos direitos à vida, integridade pessoal, igualdade
perante a lei, garantias judiciais, etc. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (CORTE IDH). Caso Nadege Dorzema e
outros vs. República Dominicana. San Jose, 24 oct. 2012. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_251_esp.
pdf. Acesso em: 17 maio 2021.
38
CORTE IDH. Caso Nadege Dorzema e outros vs. República Dominicana. San Jose, 24 oct. 2012. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_251_esp.pdf. Acesso em: 17 maio 2021.
39
OIM. World Migration Report 2020. Geneba: IOM, 2020. Disponível em: https://publications.iom.int/books/world-migration-re-
port-2020. Acesso em: 04 ago. 2021. p. 22.
40
No idioma original: “[…] cómo la situación de vulnerabilidad estructural de los migrantes se agrava cuando además de ser migrantes con-
vergen otros factores de vulnerabilidad, tales como la discriminación con base en la raza, color, origen nacional o social, idioma, nacimien-
to, edad, sexo, orientación sexual, identidad de género, discapacidad, posición económica, religión o cualquier otra condición, las cuales al
presentarse en un mismo tiempo conllevan a que los migrantes sean víctimas de discriminación intersectorial.” COMISIÓN INTERAMERI-
CANA DE DERECHOS HUMANOS (CIDH). Compendio Igualdad y no discriminación: Estándares Interamericanos. Washington D.C.,
12 feb. 2019. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Compendio-IgualdadNoDiscriminacion.pdf. Acesso em: 14 maio
2021. p. 127.

331
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

baseada em gênero que mulheres enfrentam durante todo o processo migratório, 41 o que gera uma
discriminação interseccional.
A diferença entre homens e mulheres já inicia na primeira etapa do projeto migratório, que são as
razões para migrar, o que está relacionado com os papéis de gênero e as hierarquias existentes no
Estado de origem. Como exemplo, se pode citar a busca por trabalho em razão de serem as provedoras
do lar, situações de violência e discriminação, sua luta como ativistas, etc. Logo, o próprio projeto migra-
tório pode ser uma maneira de emancipação desta mulher. Uma vez chegando ao Estado de destino,
as diferenças de gênero entre os migrantes são ressaltadas mais uma vez, no que tange às políticas
migratórias e às visões estereotipadas de ocupações de homens e mulheres. Ou seja, a divisão sexual do
trabalho é um dos fatores determinantes neste momento, sendo normalmente reservado às mulheres
migrantes o trabalho doméstico e no mercado de cuidados, ou então no mercado do sexo – sendo as
mulheres as maiores vítimas do tráfico de pessoas.42-43

7. MIGRANTES INDOCUMENTADOS

Em continuidade às especificidades que podem aumentar o grau de vulnerabilidade de pessoas


migrantes, a irregularidade migratória é um dos temas de maior relevância, porquanto no tema da
migração, muitas vezes a regularização é necessária para o reconhecimento do migrante como sujeito
de direito. A CTM reconhece desde as suas cláusulas preambulares a situação dos migrantes irregula-
res, 44 sendo também chamados de migrantes indocumentados, afirmando a necessidade de proteção
dessas pessoas, que se encontram em um grau maior de vulnerabilidade por não contarem com uma
regularização migratória.
O trabalhador migrante documentado ou em situação regular é toda “pessoa que se encontra auto-
rizada a ingressar, a permanecer e a exercer uma atividade remunerada no Estado de emprego, em
conformidade com as leis desse Estado e com os acordos internacionais que esse Estado seja parte.”45
Já o trabalhador migrante indocumentado ou em situação irregular é toda “pessoa que não se encontra


41
COMMITTEE ON THE PROTECTION OF THE RIGHTS OF ALL MIGRANT WORKERS AND MEMBERS OF THEIR FAMILIES (CMW). Ge-
neral comment No. 1 on migrant domestic workers. Geneva, 23 feb. 2011. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/
treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CMW%2fC%2fGC%2f1&Lang=en. Acesso em: 10 de maio de 2021. p. 11.
42
O crime de tráfico de pessoas é definido pelo Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mu-
lheres e Crianças, adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. O Protocolo define o tráfico de
pessoas no art. 3, como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça
ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou
à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para
fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o
trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”.
43
COSTA, Vitória Volcato da. Os desafios da mulher migrante à luz da teoria tridimensional de Nancy Fraser: uma abordagem para o Brasil
avançar no tema da migração. In: PEREIRA, Gustavo de Lima; DUTRA; Cristiane Feldmann (org.). Direitos Humanos e Migrações Força-
das: migrações, xenofobia e transnacionalidade. Porto Alegre: Editora Fi, 2020. Disponível em: https://www.editorafi.org/31direitoshuma-
nos. Acesso em: 17 maio 2021. p. 288-289.
44
ONU. International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers and Members of Their Families. New York
City: UN General Assembly, 18 dec. 1990. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/ProfessionalInterest/cmw.pdf. Acesso em: 30
abr. 2021.
45
No idioma original: “Persona que se encuentra autorizada a ingresar, a permanecer y a ejercer una actividad remunerada en el Estado de
empleo, de conformidad con las leyes de ese Estado y los acuerdos internacionales en que ese Estado sea parte”. CORTE INTERAMERI-
CANA DE DERECHOS HUMANOS (CORTE IDH). Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos
nº 2: personas en situación de migración o refugio. San Jose, 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/
cuadernillo2.pdf. Acesso em: 17 maio de 2021. p. 4.

332
DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES

autorizada a ingressar, a permanecer e a exercer uma atividade remunerada no Estado de emprego, em


conformidade com as leis desse Estado e com os acordos internacionais que esse Estado seja parte, e
que, entretanto, realiza tal atividade.”46
Sobre o direito à igualdade e à não discriminação dos imigrantes irregulares ou indocumentados, o
Comitê sobre Trabalhadores Migrantes emitiu o Comentário Geral nº 2 sobre os Direitos dos Trabalha-
dores Migrantes em Situação Irregular e os Membros de suas Famílias, afirmando que:

[...] qualquer tratamento diferente baseado na nacionalidade ou no status migratório equivale a


discriminação, a não ser que as razões para tal diferenciação sejam previstas pelo Direito, conte-
nham um objetivo legítimo nos termos da Convenção, sejam necessárias em circunstâncias espe-
cíficas, e proporcionais ao objetivo legítimo buscado.47

Portanto, são estabelecidos critérios para a diferenciação entre imigrantes regulares e irregulares,
sendo vedada a discriminação com base no status migratório. A Corte IDH se manifestou através da
Opinião Consultiva nº 18 de 2003 (OC 18/03) que, devido ao caráter fundamental dos princípios da
igualdade e não discriminação, reconhecendo-os como jus cogens, todos os Estados devem garanti-los
aos migrantes e a situação migratória irregular não pode servir como justificativa para a restrição de tais
direitos aos migrantes indocumentados.48
A Corte IDH ressalta na referida opinião consultiva que pode haver distinções entre nacionais e
migrantes ou entre migrantes documentados e indocumentados, desde que “esse tratamento diferen-
ciado seja razoável, objetivo, proporcional, e não lese os direitos humanos”, citando como exemplo o
direito dos Estados de estabelecer mecanismos de controle de ingresso e saída de migrantes indocu-
mentados, desde que estes respeitem as garantias do devido processo legal e o respeito à dignidade da
pessoa humana.49 Assim, verifica-se convergência da posição adotada pela Corte IDH na OC 18/03 e a
posição do Comitê sobre Trabalhadores Migrantes da ONU no Comentário Geral nº 2 sobre os Direitos
dos Trabalhadores Migrantes em Situação Irregular e os Membros de suas Famílias.
Um exemplo disso foi o caso das Observações Finais sobre o Segundo Relatório Periódico da Argentina,
no qual o Comitê sobre Trabalhadores Migrantes se manifestou sobre o direito à saúde de imigrantes
irregulares. O Comitê sobre Trabalhadores Migrantes expressou preocupação com as barreiras de
acesso ao sistema de saúde do Estado por parte dos imigrantes em situação irregular. Os hospitais
vinham se recusando a atender essas pessoas, bem como as reportando para as autoridades migrató-

46
No idioma original: “Persona que no se encuentra autorizada a ingresar, a permanecer y a ejercer una actividad remunerada en el Estado
de empleo, de conformidad con las leyes de ese Estado y los acuerdos internacionales en que ese Estado sea parte, y que, sin embargo,
realiza dicha actividad.” CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (CORTE IDH). Cuadernillo de Jurisprudencia de la
Corte Interamericana de Derechos Humanos nº 2: personas en situación de migración o refugio. San Jose, 2020. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/cuadernillo2.pdf. Acesso em: 17 maio de 2021. p. 4-5.


47
No idioma original: “Therefore, any differential treatment based on nationality or migration status amounts to discrimination unless the
reasons for such differentiation are prescribed by law, pursue a legitimate aim under the Convention, are necessary in the specific cir-
cumstances, and proportionate to the legitimate aim pursued”. COMMITTEE ON THE PROTECTION OF THE RIGHTS OF ALL MIGRANT
WORKERS AND MEMBERS OF THEIR FAMILIES (CMW). General comment No. 2 on the rights of migrant workers in an irregular
situation and members of their families. Geneva: UN, 28 aug. 2013. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybo-
dyexternal/Download.aspx?symbolno=CMW%2fC%2fGC%2f2&Lang=en. Acesso em: 10 maio 2021. p. 7.
48
CORTE IDH. Opinião Consultiva nº 18 de 2003 – A condição jurídica e dos direitos dos migrantes indocumentados. San Jose, 17 set.
2003. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_por.pdf. Acesso em: 14 maio 2021. p. 105-107.
49
CORTE IDH. Opinião Consultiva nº 18 de 2003 – A condição jurídica e dos direitos dos migrantes indocumentados. San Jose, 17 set.
2003. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_por.pdf. Acesso em: 14 maio 2021. p. 105-107.

333
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

rias por estarem irregulares. 50 Nesse sentido, o Comitê recomendou que o Estado adotasse as medidas
necessárias para respeitar o art. 28 da CTM, que dispõe o seguinte:

Os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias devem ter o direito de receber qualquer
tratamento médico que seja urgentemente necessário para a preservação de suas vidas ou para
evitar dano irreparável à sua saúde, com igualdade de tratamento em relação aos nacionais do
Estado em questão. Tal emergência médica não poderá ser recusada àqueles que, por qual-
quer razão, estejam irregulares com relação a permanência ou emprego51. (Grifo nosso).

Diante de tal previsão, o Comitê sobre Trabalhadores Migrantes recomendou à Argentina a permitir
o acesso aos serviços de saúde para todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias,
independentemente de seu status migratório. Ainda, recomendou que o Estado estabeleça um meca-
nismo que garanta que quaisquer registros para atendimento médico ou em outros serviços não sejam
utilizados contra os imigrantes com o propósito de discriminá-los em razão de seu status migratório. 52
Na mesma linha, as posições da CIDH e da Corte IDH estão em consonância com a adotada pelo
Comitê sobre Trabalhadores Migrantes. Ao passo que o Comitê abordou o direito à saúde dos migrantes
indocumentados, a CIDH e a Corte IDH se manifestaram sobre o direito ao trabalho dessas pessoas.
Tanto na OC 18/03 da Corte IDH, quanto no caso nº 12.834 – Trabalhadores Indocumentados vs. EUA
da CIDH, foi ressaltado que os Estados e seus particulares não estão obrigados a oferecer trabalho aos
migrantes indocumentados, mas no momento em que esta relação laboral é estabelecida, devem ser
respeitados todos os seus direitos trabalhistas, sem discriminação pelo status migratório irregular. 53-54

8. PROTEÇÃO CONTRA DISCRIMINAÇÃO NO


ACESSO A DIREITOS TRABALHISTAS

Sobre os direitos trabalhistas dos trabalhadores migrantes, além daqueles previstos na CTM, outro
marco normativo internacional importante no tema, que aborda a igualdade e a não discriminação
de pessoas migrantes, é a Convenção nº 97 sobre Trabalhadores Migrantes (Convenção nº 97), da OIT,
assinada em 1949, que entrou em vigor no ano de 1952. A Convenção nº 97 contou com a assinatura e
a ratificação do Brasil, sendo promulgada pelo Decreto nº 58.819/1966. O art. 6º da Convenção esta-
belece o direito à igualdade dos trabalhadores migrantes em relação aos cidadãos nacionais, no que

50
COMMITTEE ON THE PROTECTION OF THE RIGHTS OF ALL MIGRANT WORKERS AND MEMBERS OF THEIR FAMILIES (CMW). Con-
cluding observations on the second periodic report of Argentina. (CMW/C/ARG/2). Geneva, 4 feb. 2020. Disponível em: https://tbin-
ternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CMW%2fC%2fARG%2fCO%2f2&Lang=en. Acesso em: 05
maio 2021.


51
No idioma original: “Migrant workers and members of their families shall have the right to receive any medical care that is urgently
required for the preservation of their life or the avoidance of irreparable harm to their health on the basis of equality of treatment with
nationals of the State concerned. Such emergency medical care shall not be refused them by reason of any irregularity with regard to
stay or employment”. UNITED NATIONS (UN). International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers
and Members of Their Families. New York City: UN General Assembly, 18 dec. 1990. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/
ProfessionalInterest/cmw.pdf. Acesso em: 30 abr. 2021.
52
COMMITTEE ON THE PROTECTION OF THE RIGHTS OF ALL MIGRANT WORKERS AND MEMBERS OF THEIR FAMILIES (CMW). Con-
cluding observations on the second periodic report of Argentina. (CMW/C/ARG/2). Geneva, 4 feb. 2020. Disponível em: https://tbin-
ternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CMW%2fC%2fARG%2fCO%2f2&Lang=en. Acesso em: 05
maio 2021. p. 9.
53
CORTE IDH. Opinião Consultiva nº 18 de 2003 – A condição jurídica e dos direitos dos migrantes indocumentados. San Jose, 17 set.
2003. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_por.pdf. Acesso em: 14 maio 2021. p. 110.
54
CIDH. Compendio Igualdad y no discriminación: Estándares Interamericanos. Washington D.C., 12 feb. 2019. Disponível em: http://
www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Compendio-IgualdadNoDiscriminacion.pdf. Acesso em: 14 maio 2021. p. 126.

334
DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES

tange a: remuneração, duração do trabalho, horas extraordinárias, férias remuneradas, aprendizagem


e formação profissional, filiação a organizações sindicais, seguridade social, etc. O mesmo dispositivo
também prevê o direito à não discriminação desses migrantes no exercício dos direitos citados, em
relação a nacionalidade, raça, religião ou sexo. 55
Por sua vez, em 1975 foi adotada pela OIT a Convenção nº 143 sobre as Imigrações Efetuadas em Condi-
ções Abusivas e Sobre a Promoção da Igualdade de Oportunidades e de Tratamento dos Trabalhadores
Migrantes (Convenção nº 143), com o objetivo de trazer disposições complementares à supracitada
Convenção nº 97 e à Convenção nº 111 sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação
(Convenção nº 111). Assim, a Convenção nº 143 traz uma parte específica para tratar do tema da igual-
dade de oportunidades e de tratamento. 56
O art. 10 da Convenção nº 143 traz a previsão do direito à igualdade dos trabalhadores migrantes e
membros de suas famílias em matéria de emprego e de profissão, de segurança social, de direitos sindi-
cais e culturais e de liberdades individuais. Os artigos subsequentes preveem uma série de medidas
para cumprir com os referidos direitos, como a alteração de normativas internas incompatíveis com
as Convenções, a promulgação de novas leis e a adoção de programas que garantam e informem os
migrantes sobre seus direitos, a cooperação com organizações de empregadores e trabalhadores, etc. 57
Na esteira da adoção de medidas em âmbito interno para atender aos compromissos internacionais
firmados pelo Brasil, cabe mencionar as previsões trazidas na Resolução nº 405/2021 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre o tratamento das pessoas migrantes custodiadas, acusadas,
rés, condenadas ou privadas de liberdade. Em suas cláusulas preambulares, a referida resolução faz
menção ao Comentário Geral nº 02 do Comitê sobre Trabalhadores Migrantes, o qual traz orienta-
ções e padrões de proteção para migrantes em situação de privação de liberdade e sob custódia, na
parte “Proteção contra tratamento desumano”, em especial no parágrafo 43 onde se fala do direito à
não discriminação no Estado de emprego. 58 A partir disso, a resolução prevê em seu art. 3º, inciso X, a
inclusão social e laboral do migrante, com acesso igualitário a serviços, programas e benefícios, como
um dos princípios que regem o tratamento do migrante em privação de liberdade. Por sua vez, a reso-
lução traz em seu art. 12, §3º, inciso I, o direito à igualdade e não discriminação do trabalhador migrante
privado de liberdade: “a garantia de não discriminação e o oferecimento de oportunidades em iguais
condições em todas as iniciativas realizadas dentro do estabelecimento prisional.”59

55
OIT. Convenção nº 97 sobre Trabalhadores Migrantes. Genebra, 32ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, 1949. Disponível
em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235186/lang--pt/index.htm. Acesso em: 10 de maio de 2021.
56
OIT. Convenção nº 143 sobre as Imigrações Efetuadas em Condições Abusivas e Sobre a Promoção da Igualdade de Oportunida-
des e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes. Genebra, 60ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, 1975. Disponível
em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242707/lang--pt/index.htm. Acesso em: 14 maio de 2021.

OIT. Convenção nº 143 sobre as Imigrações Efetuadas em Condições Abusivas e Sobre a Promoção da Igualdade de Oportunida-
57

des e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes. Genebra, 60ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, 1975. Disponível
em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242707/lang--pt/index.htm. Acesso em: 14 maio de 2021.
58
COMMITTEE ON THE PROTECTION OF THE RIGHTS OF ALL MIGRANT WORKERS AND MEMBERS OF THEIR FAMILIES (CMW). Ge-
neral comment nº 2 on the rights of migrant workers in an irregular situation and members of their families. Geneva, 28 Aug. 2013. Dis-
ponível em: https://www.ohchr.org/en/documents/general-comments-and-recommendations/general-comment-no-2-rights-migrant-
-workers. Acesso em: 30 maio 2022. p. 11-13.
59
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução Nº 405 de 06/07/2021. Brasília D.F., 9 jul. 2021. Disponível em: https://atos.cnj.jus.
br/atos/detalhar/4030. Acesso em: 30 maio 2022.

335
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A nível regional, foi firmada a Declaração Sociolaboral do MERCOSUL,60 cuja primeira versão é de 1998,
sendo atualizada em 2015. Enquanto Estado Parte do MERCOSUL, o Brasil assinou e se comprometeu
com os compromissos firmados na Declaração Sociolaboral, a qual prevê em seu art. 4º a não discrimi-
nação de trabalhadores em razão da ascendência nacional e da nacionalidade, entre outros fatores. O
art. 7º da Declaração trata especificamente dos trabalhadores migrantes e fronteiriços, estabelecendo
a igualdade de direitos e condições de trabalho, assim como de oportunidades de emprego, em relação
aos cidadãos nacionais.
Em abril de 2020 a OIT emitiu o documento “Síntese sobre políticas - Proteger os trabalhadores e traba-
lhadoras migrantes durante a pandemia de COVID-19”, com recomendações aos agentes decisórios.
Menciona-se que os trabalhadores migrantes, em situações de crise como a causada pela pandemia,61
são os primeiros a serem demitidos. Do mesmo modo, os migrantes têm mais dificuldade de acesso
às políticas nacionais implementadas para diminuir os impactos negativos da crise da COVID-19 na
população, como subvenções salariais, subsídios de desemprego, e medidas de segurança e proteção
social62. Nesse sentido, a OIT se pronuncia no sentido de reforçar as convenções internacionais do
trabalho adotadas, que funcionam como

[...] uma bússola de trabalho digno para as respostas à COVID-19 que pode ajudar as agências
governamentais e outras partes interessadas a garantir a utilização de abordagens baseadas nos
direitos da proteção de homens e mulheres migrantes. As populações migrantes e refugiadas
enfrentam obstáculos semelhantes à realização dos seus direitos no local de trabalho, estando
ambas abrangidas pelas normas internacionais do trabalho.63

Portanto, em conformidade com as normas internacionais do trabalho, em especial as convenções


sobre trabalhadores migrantes anteriormente mencionadas, a OIT recomendou aos Estados que, no
contexto da pandemia de COVID-19, a fim de garantir os direitos à igualdade e à não discriminação das
pessoas migrantes, se adote as seguintes medidas: inclusão dos trabalhadores migrantes nas respostas
nacionais à pandemia de apoio à renda; ampliação do acesso aos serviços de saúde e à cobertura da
proteção social a migrantes; difusão de informação adequada e acessível; garantia às pessoas migrantes
para se regularizar ou não perder sua regularização migratória; abordagem dos riscos especiais dos
trabalhadores migrantes que vivem em habitações comuns ou no local de trabalho; proporção do
acesso a vias de recurso legais para tratamento desigual.64
Todo o exposto demonstra a importância de o Direito Internacional dos Direitos Humanos contar com
um arcabouço normativo protetivo dos direitos das pessoas migrantes. A xenofobia, enquanto principal
forma de discriminação contra pessoas migrantes, as coloca em uma situação de desigualdade e vulne-

60
MERCOSUL. Declaração Sociolaboral do MERCOSUL de 2015. Brasília D.F., 17 jul. 2015. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/
canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-sociolaboral-do-mercosul-de-2015-i-reuniao-negociadora-brasilia-17-de-
-julho-de-2015. Acesso em: 03 ago. 2021.
61
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 11 de março de 2020, situação de pandemia mundial, em virtude da doença causada
pelo novo coronavírus (COVID-19), vírus de alta transmissibilidade, que pode causar efeitos graves e letais aos seres humanos. WORLD
HEALTH ORGANIZATION (WHO). Coronavirus disease (COVID-19). Geneva, 2021. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/
diseases/novel-coronavirus-2019. Acesso em: 18 maio 2021.
62
OIT. Síntese sobre as políticas – Proteger os trabalhadores e trabalhadoras migrantes durante a pandemia da COVID19. Lisboa:
OIT Portugal, abr. 2020. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publi-
cation/wcms_760227.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.
63
OIT. Síntese sobre as políticas – Proteger os trabalhadores e trabalhadoras migrantes durante a pandemia da COVID19. Lisboa:
OIT Portugal, abr. 2020. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publi-
cation/wcms_760227.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.
64
OIT. Síntese sobre as políticas – Proteger os trabalhadores e trabalhadoras migrantes durante a pandemia da COVID19. Lisboa:
OIT Portugal, abr. 2020. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publi-
cation/wcms_760227.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.

336
DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES MIGRANTES

rabilidade, e pode estar relacionada com a nacionalidade da pessoa e com a sua origem étnica e racial,
podendo ter conotação racista. Ainda, à xenofobia podem somar-se outras formas de discriminação,
relacionadas ao sexo, religião, posição econômica, entre outras, gerando a chamada discriminação
interseccional.
Por fim, verificou-se que os trabalhadores migrantes se encontram em uma situação de vulnerabilidade
em relação aos cidadãos nacionais, especialmente quando seu status migratório está irregular. Por
conta disso, há um conjunto de tratados internacionais que protegem os direitos à igualdade e à não
discriminação das pessoas migrantes, independentemente do seu status migratório, tanto no Sistema
ONU de proteção, quanto no SIDH, destacando-se a CTM e as convenções da OIT, que abordam
especificamente o direito à igualdade e à não discriminação dos trabalhadores migrantes no gozo e
exercício dos direitos trabalhistas.

337
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

PROTEÇÃO CONTRA A
DISCRIMINAÇÃO RACIAL

César de Oliveira Gomes

1. INTRODUÇÃO

A discriminação racial tem sido objeto de preocupação do Direito Internacional dos Direitos Humanos
desde a Declaração Universal de 1948. Os principais documentos internacionais aprovados posterior-
mente seguiram a tendência de elencar a raça como um dos critérios proibidos de discriminação entre
seres humanos. Entretanto, somente por ocasião da Convenção Internacional sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial, em 1965, é que se elaborou um conceito de discriminação
racial, conforme o seu art. I, “4”.
A expansão marítima e comercial promovida pelas nações europeias nos séculos XVI e XVII, além de
promover a colonização do continente americano, resultou na escravização dos negros e no extermínio
dos povos indígenas.
Da necessidade de justificar as atrocidades cometidas contra os africanos escravizados e a população
indígena na América, surgiram teorias consolidadas a partir de uma perspectiva que defendia a exis-
tência de uma hierarquia de raças. Os brancos europeus seriam superiores, devido à sua capacidade
intelectual e racional para se desenvolverem seres humanos integrais. Os negros, por sua vez, só teriam
capacidade para a execução de tarefas que demandassem aptidões físicas – trabalhos braçais.
Esse contexto histórico é perceptível ao se analisar o debate havido entre o frade dominicano Barto-
lomé de Las Casas e o filósofo Juan Gines de Sepúlveda, em meados do Século XVI, acerca da condição
humana dos indígenas.1 Sepúlveda entendia que os indígenas não eram seres humanos, e por essa
razão se justificava a conquista imperialista nas Américas. Las Casas, por outro lado, além de advogar
pelos direitos dos povos indígenas, denunciava junto à Coroa Espanhola as crueldades praticadas
contra os colonizados. 2
No mesmo sentido, Francisco José de Jaca, em sua “Resolução sobre a liberdade dos negros e seus
originários na condição de pagãos e posteriormente de cristãos”, de 168, 3 refuta pormenorizadamente
todos os argumentos apresentados por teólogos e juristas da época para justificar a escravidão dos
negros na América. Referido texto é a primeira condenação da escravidão no pensamento hispânico e
José de Jaca é considerado um dos primeiros abolicionistas de que se tem notícia.


1
LAS CASAS, Fray Bartolome. Apología o Declaración y Defensa Universal de los Derechos del Hombre y de los Pueblos. [S.l.]:Univer-
sidad de León, Junta de Castilla y León, Consejería de Educación y Cultura, 2000.
2
FIGUEIREDO JÚNIOR, Selmo Ribeiro. Valladolid: a polêmica indigenista entre Las Casas e Sepúlveda. Revista Filosofia Capital, Brasília,
v. 6, n. 12, p. 100-107, 2011. Disponível em: http://www.filosofiacapital.org/ojs-2.1.1/index.php/filosofiacapital/article/view/174/148. Acesso em:
28 mar. 2019.
3
JACA, Francisco José de. Resolución sobre la libertad de los negros y sus originários, en estado de paganos y después ya cristianos:
la primera condena de la esclavitud em el pensamiento hispano. Ed. Miguel Anxo Pena González. Madrid: Consejo de Investigaciones
Científicas, 2002.

338
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

No Século XIX, inobstante a abolição da escravidão na maioria dos países ocidentais, as teses que abri-
gavam uma concepção de superioridade da raça branca ganharam sofisticação teórica amparada nas
ciências positivas. Para o cientificismo racialista, a ciência era europeia, e povos dos demais continentes
não atingiriam o saber elevado em razão de sua inferioridade. Para o cientificismo racialista, “o indivíduo
é determinado pela sua ancestralidade racial e, em vista disso, nada adianta empreender esforços no
âmbito educacional para atingir o nível de civilidade inato às raças superiores”4.
A lógica da superioridade racial decorre dos processos de desumanização e invisibilização aos quais
certos grupos étnicos são submetidos, resultando em uma violação seletiva de direitos humanos. 5
As teorias de supremacia racial surgidas no decorrer do Século XIX adentraram o Século XX, e estru-
turam concepções ideológicas para justificar a segregação, opressão e submissão dos seres humanos
pertencentes de raças consideradas inferiores. Nesse viés, a ascensão do nazismo e suas experiências
biogenéticas constituem uma marca histórica de influência do cientificismo racialista.
A partir da segunda metade do Século XX, verificou-se um processo de superação das teorias racialistas.
Atualmente, há um consenso de que a discriminação racial é um fenômeno político-social do qual
decorre um “conjunto de suposições, opiniões e ações falsas decorrentes da crença de que um grupo
seja superior ao outro”6.
O Holocausto e Apartheid pós-guerra foram os fatos históricos que levaram os Estados a elaborarem
documentos internacionais orientados à concretização das proibições de discriminação racial. Às
vésperas da terceira década do Século XXI, o tema permanece na rota principal do DIDH, resultando na
assunção de novos compromissos entre os Estados, tais como a Declaração e o Programa de Ação de
Durban (2001), a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Corre-
latas de Intolerância (2013) e o Plano de Ação da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024).

2. PREVISÃO LEGAL

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)

Artigo 2
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Decla-
ração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

4
ABREU, Sérgio. Os Descaminhos da Tolerância: o afro-brasileiro e o Princípio da Igualdade e da Isonomia no Direito Constitucional. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 14.
5
BRAGATO, Fernanda Frizzo. Discursos desumanizantes e violação seletiva de direitos humanos sob a lógica da colonialidade. Quaestio
Iuris, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 1807, 2016.
6
PETERKE, Sven (coord). Manual Prático de Direitos Humanos Internacionais. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União,
2010. Disponível em: http://escola.mpu.mp.br/a-escola/comunicacao/noticias/esmpu-lanca-manual-sobre-direitos-humanos-internacio-
nais/manual-pratico-direitos-humanos-internacioais.pdf/view. Acesso em: 02 ago. 2021.

339
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966)7

Artigo 2º
§1. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir a todos os indivíduos que
se encontrem em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no
presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política
ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação.
§2. Na ausência de medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar efetivos os direitos
reconhecidos no presente Pacto, os Estados-partes comprometem-se a tomar as providências necessá-
rias, com vistas a adotá-las, levando em consideração seus respectivos procedimentos constitucionais
e as disposições do presente Pacto.
Artigo 26.º
Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei. A
este respeito, a lei deve proibir todas as discriminações e garantir a todas as pessoas proteção igual e
eficaz contra toda a espécie de discriminação, nomeadamente por motivos de raça, de cor, de sexo, de
língua, de religião, de opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de
propriedade, de nascimento ou de qualquer outra situação.

Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966)

Artigo 2°
1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio
como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico,
até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os
meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em parti-
cular, a adoção de medidas legislativas.
2. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados e
exercerão em discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimi-


nação Racial (1965)8

Artigo I
1. Para fins da presente Convenção, a expressão “discriminação racial” significará toda distinção,
exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica
que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um
mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos
político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.


7
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi aprovado em 16/12/1966 pela Assembleia Geral da ONU. Embora faça menção
expressa à discriminação racial, seu espectro de proteção é restrito, uma vez que as hipóteses de aplicação estão limitadas aos direitos
nele previstos.
8
Na sigla em Inglês ICERD - International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination

340
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

2. Esta Convenção não se aplicará às distinções, exclusões, restrições e preferências feitas por um
Estado Membro entre cidadãos e não-cidadãos.
3. Nada nesta Convenção poderá ser interpretado como afetando as disposições legais dos Estados
Membros, relativas à nacionalidade, cidadania e naturalização, desde que tais disposições não discri-
minem contra qualquer nacionalidade particular.
4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de
assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem
da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exer-
cício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em
consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após
terem sido alcançados os seus objetivos.
Artigo II
1. Os Estados-Membros condenam a discriminação racial e comprometem-se a adotar, por todos os
meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação racial em todas as
suas formas e a encorajar a promoção de entendimento entre todas as raças, e para este fim:
a) Cada Estado-Membro compromete-se a abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discrimi-
nação racial contra pessoas, grupos de pessoas ou instituições e zelar para que as autoridades públicas
nacionais ou locais atuem em conformidade com esta obrigação.
b) Cada Estado-Membro compromete-se a não encorajar, defender ou apoiar a discriminação racial
praticada por uma pessoa ou uma organização qualquer.
c) Cada Estado-Membro deverá tomar as medidas eficazes, a fim de rever as políticas governamentais
nacionais e locais e modificar, sub-rogar ou anular qualquer disposição regulamentar que tenha como
objetivo criar a discriminação ou perpetuá-la onde já existir.
d) Cada Estado-Membro deverá tomar todas as medidas apropriadas, inclusive, se as circunstâncias
o exigirem, medidas de natureza legislativa, para proibir e pôr fim à discriminação racial praticada por
quaisquer pessoas, grupo ou organização.
e) Cada Estado-Membro compromete-se a favorecer, quando for o caso, as organizações e movimentos
multirraciais, bem como outros meios próprios para eliminar as barreiras entre as raças e a desencorajar
o que tenda a fortalecer a divisão racial.
2. Os Estados-Membros tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social, econômico, cultural
e outros, medidas especiais e concretas para assegurar, como convier, o desenvolvimento ou a proteção
de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a esses grupos, com o objetivo de garantir-lhes,
em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
Essas medidas não deverão, em caso algum, ter a finalidade de manter direitos desiguais ou distintos
para os diversos grupos raciais, depois de alcançados os objetivos, em razão dos quais foram tomadas.

Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais (UNESCO - 1978)

Artigo 1
1. Todos os seres humanos pertencem à mesma espécie e têm a mesma origem. Nascem iguais em
dignidade e direitos e todos formam parte integrante da humanidade.
2. Todos os indivíduos e os grupos têm o direito de serem diferentes, a se considerar e serem conside-
rados como tais. Sem embargo, a diversidade das formas de vida e o direito à diferença não podem em

341
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

nenhum caso servir de pretexto aos preconceitos raciais; não podem legitimar nem um direito nem
uma ação ou prática discriminatória, ou ainda não podem fundar a política do apartheid que constitui
a mais extrema forma do racismo.
3. A identidade de origem não afeta de modo algum a faculdade que possuem os seres humanos de
viver diferentemente, nem as diferenças fundadas na diversidade das culturas, do meio ambiente e da
história, nem o direito de conservar a identidade cultural.
4. Todos os povos do mundo estão dotados das mesmas faculdades que lhes permitem alcançar a pleni-
tude do desenvolvimento intelectual, técnico, social, econômico, cultural e político.
5. As diferenças entre as realizações dos diferentes povos são explicadas totalmente pelos fatores
geográficos, históricos, políticos, econômicos, sociais e culturais. Essas diferenças não podem em
nenhum caso servir de pretexto a qualquer classificação hierárquica das nações e dos povos.
Artigo 2
1. Toda teoria que invoque uma superioridade ou uma inferioridade intrínseca de grupos raciais ou
étnicos que dê a uns o direito de dominar ou de eliminar aos demais, presumidamente inferiores, ou
que faça juízos de valor baseados na diferença racial, carece de fundamento científico e é contrária aos
princípios morais étnicos da humanidade.
2. O racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas nos preconceitos raciais, os compor-
tamentos discriminatórios, as disposições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam
a desigualdade racial, assim como a falsa ideia de que as relações discriminatórias entre grupos são
moral e cientificamente justificáveis; manifesta-se por meio de disposições legislativas ou regulamen-
tárias e práticas discriminatórias, assim como por meio de crenças e atos antisociais; cria obstáculos ao
desenvolvimento de suas vítimas, perverte a quem o põe em prática, divide as nações em seu próprio
seio, constitui um obstáculo para a cooperação internacional e cria tensões políticas entre os povos; é
contrário aos princípios fundamentais ao direito internacional e, por conseguinte, perturba gravemente
a paz e a segurança internacionais.
3. O preconceito racial historicamente vinculado às desigualdades de poder, que tende a se fortalecer
por causa das diferenças econômicas e sociais entre os indivíduos e os grupos humanos e a justificar,
ainda hoje essas desigualdades, está solenemente desprovido de fundamento.
Artigo 3
É incompatível com as exigências de uma ordem internacional justa e que garanta o respeito aos direitos
humanos, toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, a cor, a origem étnica ou
nacional, ou a tolerância religiosa motivada por considerações racistas, que destrói ou compromete a
igualdade soberana dos Estados e o direito dos povos à livre determinação ou que limita de um modo
arbitrário ou discriminatório o direito ao desenvolvimento integral de todos os seres e grupos humanos;
este direito implica um acesso em plena igualdade dos meios de progresso e de realização coletiva e
individual em um clima de respeito aos valores da civilização e das culturas nacionais e universais.

Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância


Correlata (2001)

O texto final da Conferência foi elaborado e adotado pelos Estados-partes em dois documentos finais:
a Declaração de Durban e o Programa de Ação de Durban. A primeira trata do reconhecimento, por
parte dos Estados, de que alguns fenômenos históricos como a escravidão, o tráfico de escravos transa-
tlântico, o colonialismo e o apartheid foram decisivos para a propagação do racismo, da discriminação

342
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

racial, da xenofobia e da intolerância correlata. O segundo documento dispõe sobre as ações a serem
implementadas pelos Estados para combater a discriminação racial.

A Declaração de Durban

1. Declaramos que, para o propósito da presente Declaração e Programa de Ação, as vítimas do racismo,
discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata são indivíduos ou grupos de indivíduos que são
ou têm sido negativamente afetados, subjugados ou alvo desses flagelos;
2. Reconhecemos que racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata ocorrem com
base na raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica e que as vítimas podem sofrer múltiplas ou
agravadas formas de discriminação calcadas em outros aspectos correlatos como sexo, língua, religião,
opinião política ou de qualquer outro tipo, origem social, propriedade, nascimento e outros;
[...]
13. Reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo, incluindo o tráfico de escravos transatlântico,
foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas
também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da
essência das vítimas; ainda reconhecemos que a escravidão e o tráfico escravo são crimes contra a
humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico de escravos transatlân-
tico, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância correlata; e que os Africanos e afrodescendentes, Asiáticos e povos de origem asiática,
bem como os povos indígenas foram e continuam a ser vítimas destes atos e de suas consequências;
14. Reconhecemos que o colonialismo levou ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
correlata, e que os Africanos e afrodescendentes, os povos de origem asiática e os povos indígenas
foram vítimas do colonialismo e continuam a ser vítimas de suas consequências. Reconhecemos o
sofrimento causado pelo colonialismo e afirmamos que, onde e quando quer que tenham ocorrido,
devem ser condenados e sua recorrência prevenida. Ainda lamentamos que os efeitos e a persistência
dessas estruturas e práticas estejam entre os fatores que contribuem para a continuidade das desigual-
dades sociais e econômicas em muitas partes do mundo ainda hoje; [...]

O Programa de Ação

Insta os Estados, em seus esforços nacionais e em cooperação com outros Estados e com institui-
ções financeiras regionais e internacionais, a promoverem o uso de investimentos públicos e privados
com consulta às comunidades atingidas, a fim de erradicar a pobreza, particularmente naquelas
áreas em que as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata vivem
predominantemente;
[...]
4. Insta os Estados a facilitarem a participação de pessoas de descendência africana em todos os
aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais da sociedade, no avanço e no desenvolvimento
econômico de seus países e a promoverem um maior conhecimento e um maior respeito pela sua
herança e cultura;
[...]
58. Insta os Estados a adotarem e a implementarem, tanto no âmbito nacional quanto no internacional,
medidas e políticas efetivas, além da legislação nacional antidiscriminatória existente e dos impor-
tantes instrumentos e mecanismos internacionais, os quais incentivam todos os cidadãos e instituições

343
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

a tomarem posição contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância correlata e


a reconhecerem, respeitarem e maximizarem os benefícios da diversidade, dentro e entre todas as
nações, no esforço conjunto para a construção de um futuro harmonioso e produtivo, colocando em
prática e promovendo valores e princípios tais como justiça, igualdade e não-discriminação, demo-
cracia, lealdade e amizade, tolerância e respeito, dentro e entre as comunidades e nações, em particular
através da informação pública e de programas educativos para aumentar a consciência e o entendi-
mento dos benefícios da diversidade cultural, incluindo programas onde as autoridades públicas
trabalhem em parceria com organizações internacionais, organizações não-governamentais e outros
setores da sociedade civil;
59. Insta os Estados a incluírem uma perspectiva de gênero na formulação e desenvolvimento de
medidas de prevenção, educação e proteção visando à erradicação do racismo, discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata em todos os níveis, para fazerem frente com eficácia às distintas
situações vivenciadas por mulheres e homens; 60. Insta os Estados a adotarem e a fortalecerem,
quando seja aplicável, os programas nacionais para a erradicação da pobreza e redução da exclusão
social que levem em consideração as necessidades e experiências de grupos ou indivíduos que são
vítimas do racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e também recomenda que
eles intensifiquem seus esforços para promoverem a cooperação bilateral, regional e internacional na
implementação destes programas;
[...]
68. Insta os Estados a adotarem, implementarem ou fortalecerem a legislação nacional e as medidas
administrativas que, expressa e especificamente, se oponham ao racismo e proíbam a discriminação
racial, xenofobia e intolerância correlata quer direta ou indiretamente, em todas as esferas da vida
pública, de acordo com as obrigações observadas na Convenção Internacional sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação Racial assegurando-se de que suas reservas não sejam contrárias ao
objeto e ao propósito da Convenção;
[...]
72. Insta os Estados a desenharem, implementarem e cumprirem medidas efetivas para eliminar o fenô-
meno popularmente conhecido como “perfil racial” que compreende a prática dos agentes de polícia
e de outros funcionários responsáveis pelo cumprimento da lei de se basearem, de algum modo, na
raça, cor, descendência nacional ou origem étnica, como motivo para sujeitar pessoas a atividades de
interrogatório ou para determinar se um indivíduo está envolvido em atividade criminosa;
[...]
99. Reconhece que o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata é
responsabilidade primordial dos Estados. Portanto, incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem
planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, equidade, justiça social, igualdade
de oportunidades e participação para todos. Através, dentre outras coisas, de ações e de estratégias
afirmativas ou positivas; estes planos devem visar a criação de condições necessárias para a participação
efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos
e sociais em todas as esferas da vida com base na não-discriminação. A Conferência Mundial incentiva
os Estados que desenvolverem e elaborarem os planos de ação, para que estabeleçam e reforcem o
diálogo com organizações não-governamentais para que elas sejam intimamente envolvidas na formu-
lação, implementação e avaliação de políticas e de programas;
100. Insta os Estados a estabelecerem, com base em informações estatísticas, programas nacionais,
inclusive programas de ações afirmativas ou medidas de ação positivas, para promoverem o acesso de
grupos de indivíduos que são ou podem vir a ser vítimas de discriminação racial nos serviços sociais
básicos, incluindo, educação fundamental, atenção primária à saúde e moradia adequada;

344
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica – 1969)

Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos


1.  Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qual-
quer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição social.

Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Corre-


latas contra a Intolerância (2013)

Artigo 1
Para os efeitos desta Convenção:
1. Discriminação racial é qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da
vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou
exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais
consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes. A discriminação racial pode
basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica.
2. Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada,
quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma
desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões esta-
belecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério
tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
3. Discriminação múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada,
de modo concomitante, em dois ou mais critérios dispostos no Artigo 1.1, ou outros reconhecidos em
instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento,
gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades funda-
mentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes, em qualquer área
da vida pública ou privada.
4. Racismo consiste em qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideias que enunciam um
vínculo causal entre as características fenotípicas ou genotípicas de indivíduos ou grupos e seus traços
intelectuais, culturais e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial. O racismo
ocasiona desigualdades raciais e a noção de que as relações discriminatórias entre grupos são moral
e cientificamente justificadas. Toda teoria, doutrina, ideologia e conjunto de ideias racistas descritas
neste Artigo são cientificamente falsas, moralmente censuráveis, socialmente injustas e contrárias aos
princípios fundamentais do Direito Internacional e, portanto, perturbam gravemente a paz e a segu-
rança internacional, sendo, dessa maneira, condenadas pelos Estados Partes.
5. As medidas especiais ou de ação afirmativa adotadas com a finalidade de assegurar o gozo ou
exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais de
grupos que requeiram essa proteção não constituirão discriminação racial, desde que essas medidas
não levem à manutenção de direitos separados para grupos diferentes e não se perpetuem uma vez
alcançados seus objetivos.
6. Intolerância é um ato ou conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição
ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes

345
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ou contrárias. Pode manifestar-se como a marginalização e a exclusão de grupos em condições de


vulnerabilidade da participação em qualquer esfera da vida pública ou privada ou como violência
contra esses grupos.

Constituição Federal de 1988

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:


[...]
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
[...]
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-
rança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da lei;
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Lei Federal n. 7.716/1989 (define os crimes resultantes do preconceito de raça e de cor)

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940)

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:


Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
(...)
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a
condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)

346
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

Estatuto da Igualdade Racial (Lei Federal n. 12.288/2010)

Art. 1o  Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efeti-
vação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o
combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Parágrafo único.  Para efeito deste Estatuto, considera-se:
I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada
em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir
o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida
pública ou privada;
II - desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços
e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem
nacional ou étnica;
III - desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância
social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais;
IV - população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito
cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam
autodefinição análoga;
V - políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas
atribuições institucionais;
VI - ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada
para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.
Art. 2o É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo
cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comu-
nidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e
esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.
Art. 3o Além das normas constitucionais relativas aos princípios fundamentais, aos direitos e garantias
fundamentais e aos direitos sociais, econômicos e culturais, o Estatuto da Igualdade Racial adota como
diretriz político-jurídica a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da igualdade
étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira.
Art. 4o A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econô-
mica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:
I - inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social;
II - adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;
III - modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação
das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica;
IV - promoção de ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigual-
dades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais;
V - eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação
da diversidade étnica nas esferas pública e privada;

347
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

VI - estímulo, apoio e fortalecimento de iniciativas oriundas da sociedade civil direcionadas à promoção


da igualdade de oportunidades e ao combate às desigualdades étnicas, inclusive mediante a imple-
mentação de incentivos e critérios de condicionamento e prioridade no acesso aos recursos públicos;
VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades
étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de
comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros.
Parágrafo único.  Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a
reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas
pública e privada, durante o processo de formação social do País.

Lei Federal n. 12.711/2012 (Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências)

Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão,


em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50%
(cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino
médio em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por
cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5
salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.
[...]
Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão
preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com defi-
ciência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respec-
tiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação
onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística - IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016)
Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos
no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham
cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Art. 4º As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em cada concurso seletivo
para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para
estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por
cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5
salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.
Art. 5º Em cada instituição federal de ensino técnico de nível médio, as vagas de que trata o art. 4º
desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por
pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à
proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade
da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do IBGE. (Redação dada pela
Lei nº 13.409, de 2016)

348
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos
no  caput  deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser preenchidas por estudantes que tenham
cursado integralmente o ensino fundamental em escola pública.

Lei Federal n. 12.990/2014 (Reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos
públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da
administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas
públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União)

Art. 1º Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos
para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito d a administração pública federal,
das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista
controladas pela União, na forma desta Lei.

3. OS TIPOS DE RACISMO

O CDH, em relatório publicado em julho de 2021, reconheceu que o assassinato de George Floyd, em
25 de maio de 2020, e os protestos em massa que se seguiram em todo o mundo, foram um divisor de
águas na luta contra o racismo.9 Neste documento, a ONU aponta o racismo sistêmico como o principal
motivo para as inúmeras violações de direitos humanos das quais são vítimas as pessoas africanas e
afrodescendentes.
O Relatório apresenta o conceito de racismo sistêmico – incluindo-se o racismo estrutural e insti-
tucional - , como sendo “a operação de um sistema complexo e inter-relacionado de leis, políticas,
práticas e atitudes nas instituições do Estado, no setor privado e nas estruturas sociais que, combinadas,
resultam em discriminação, distinção, exclusão, restrição ou preferência, direta ou indireta, intencional
ou não intencional, de jure ou de facto, com base na raça, cor, ascendência ou origem nacional ou
étnica”. O documento, fazendo menção a categorias próprias da psicologia social da discriminação,
aponta que “o racismo sistêmico frequentemente se manifesta em estereótipos raciais generalizados,
preconceito e vieses” enraizados em legados da escravidão, no comércio transatlântico de pessoas
africanas escravizadas e no colonialismo.
A ICERD, em seu art. I, define a expressão “discriminação racial” como “qualquer distinção, exclusão,
restrição ou preferência fundadas na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha
por fim ou efeito anular ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em igualdade de
condições, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos domínios político, econômico,
social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública”.
O conceito de discriminação racial previsto no art. I, “1” da ICERD contempla todas as ações ou omis-
sões passíveis de causar desvantagem na vida pública para uma pessoa ou grupo social por motivo de
raça, cor ou origem étnica. Essa é uma questão central para se compreender o espectro de proteção
conferido pela Convenção às minorias raciais. Significa dizer que os Estados devem desenvolver polí-
ticas públicas aptas a combater o racismo em suas múltiplas dimensões, tais como o racismo individual,
estrutural, institucional, ambiental e religioso, e não apenas abster-se de promulgar legislações racistas
ou segregacionistas.


9
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos: Promoção e
proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas africanas e afrodescendentes contra o uso excessivo da força e
outras violações dos direitos humanos por agentes policiais. 2021. Disponível em: https://undocs.org/en/A/HRC/47/53. Acesso em: 26 ago.
2021.

349
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

No ano de 1965, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a ICERD, o mundo assistia a dois
fatos históricos que colocaram a questão racial no centro dos debates da comunidade internacional:
o regime do “Apartheid” na África do Sul e o Movimento dos Direitos Civis, que colocava em xeque
a segregação racial existente nos Estados Unidos da América. Não por acaso, a Convenção, no art. 4º
dispõe que “os Estados Partes condenam toda propaganda e todas as organizações que se inspiram em
ideias ou teorias cujo fundamento seja a superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas de uma
certa cor ou de uma certa origem étnica, ou que pretendam justificar ou encorajar qualquer forma de
ódio e de discriminação raciais [...]”.
O contexto histórico do período exigiu da comunidade internacional o enfrentamento da discriminação
racial, na sua modalidade direta. Além de teorias de superioridade racial propagadas por organizações
politicamente influentes, havia exemplos de segregação oficialmente patrocinada pelo Estado, que
estabelecia hierarquias de pessoas brancas em relação a pessoas negras.
O racismo, portanto, estaria relacionado apenas à modalidade direta de discriminação. Por discrimi-
nação direta compreende-se a situação na qual o “agente discrimina outro de forma consciente porque
está motivado por interesses que não podem ser justificados por estarem baseados em estereótipos ou
preconceitos ou porque está motivado por algum interesse estratégico.”10 Nessa perspectiva, o racismo
está associado à arbitrariedade, à intencionalidade e a um tratamento desvantajoso cujo fundamento
repousa em julgamentos morais negativos sobre determinada pessoa ou coletividade, por perten-
cerem a uma minoria racial.11 Algumas teóricas e alguns teóricos chamam essa interface do racismo de
“racismo individual”, o qual decorre da ação isolada de alguns indivíduos ou grupos, em razão da exte-
riorização de um preconceito.12 O sistema jurídico atua para conter essas ações por meio de sanções
civis de índole indenizatória ou mediante a criminalização da conduta. Entretanto, essa última exige
sempre a prova da intencionalidade da conduta por parte da vítima.
O problema da concepção individual de racismo é que ela não leva em consideração a dimensão cole-
tiva do fenômeno. Ao problematizar apenas a ação discriminatória de uma pessoa ou grupo específico,
a partir da reprodução intencional de discursos estereotipados, a teoria revela-se insuficiente para
explicar o caráter sistêmico do racismo.
Por essa razão, no final dos anos sessenta do século passado, após os avanços civilizatórios decorrentes
do Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos da América, teóricos e ativistas do movimento
negro começaram a denunciar um racismo “sem atores,”13 que tolera a persistência do fenômeno
ainda que não existam manifestações preconceituosas ou ações deliberadamente discriminatórias
em desfavor das pessoas negras. É o que se define por racismo sistêmico, em suas interfaces institu-
cional e estrutural.
As dinâmicas sociais que envolvem o racismo em sua perspectiva sistêmica são expressões represen-
tativas da discriminação indireta. Esta decorre de práticas aparentemente neutras, cujos resultados, no
entanto, têm impacto diferenciado para alguns indivíduos e grupos, ocasionando para essas pessoas
situações de desvantagem na sociedade.14 Na discriminação indireta não se perquire a intencionalidade
da conduta, uma vez que a pessoa ou instituição responsável pode não querer prejudicar determinada

10
MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020, p. 389.


11
Idem, ibidem, p. 389-390.
12
ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 28.
13
WIEVIORKA, Michel. El racismo: una introducción. Barcelona: Gedisa, 2009, p. 37.
14
RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2008, p. 117.

350
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

coletividade, mas, ainda assim, a ação ou omissão pode causar uma consequência negativa despropor-
cional para grupos vulneráveis historicamente marginalizados.
No ano de 1967, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, dois ativistas do movimento Panteras Negras,
inseriram o racismo institucional na centralidade dos debates referentes à questão racial nos Estados
Unidos da América. No livro “Black Power: the politics of liberation in America”, explicam como o
racismo opera no seio da sociedade e das instituições. Para os autores, racismo institucional é a “falha
coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas em razão de
sua cor, cultura ou origem étnica.”15
Carmichael e Hamilton lembram que a ausência da intencionalidade resulta em uma tolerância
maior por parte do poder público em relação às consequências do racismo institucional nos diversos
segmentos da sociedade, tais como mercado de trabalho, escola e acesso a políticas públicas de
saúde e moradia.16
Alan Freeman, em texto publicado no final dos anos setenta do século passado, observa que apesar da
evolução normativa e jurisprudencial sobre direito antidiscriminatório, a Suprema Corte dos Estados
Unidos da América proferiu muitas decisões que sinalizavam uma incompreensão acerca do caráter
sistêmico do racismo.17 A Corte constitucional estadunidense não aceitava ações que questionassem
práticas racistas da sociedade em geral, somente demandas em que fosse apontado um agente espe-
cífico que tivesse cometido um ato de discriminação racial. Exigia-se, também, a prova da intencionali-
dade da conduta e de que desta tivesse resultado uma obstrução a um direito que a vítima pleiteava. A
reclamação não poderia versar sobre questões associadas a valores essenciais da sociedade estadouni-
dense como, por exemplo, a meritocracia.18
Os conceitos de racismo institucional e racismo estrutural na literatura acadêmica estadunidense,
historicamente, se confundem. Robert Friedman, por exemplo, classifica o racismo estrutural e o
racismo sistêmico como duas formas de manifestação do racismo institucional.19 Esse autor trabalha
a noção de racismo estrutural para problematizar a participação de pessoas negras nas instituições de
poder. Em uma perspectiva horizontal, haveria a total exclusão de pessoas de ascendência africana das
instituições “brancas”. Na perspectiva hierárquica, permite-se a participação de afrodescendentes, mas
há uma definição de papéis de acordo com as funções e resultados, por meio de regras previamente
estipuladas pela instituição. Esse modelo materializa a subordinação de afrodescendentes em relação
a brancos, pois permite, a partir de normas institucionais elaboradas pelo grupo dominante, a restrição
do acesso de pessoas de ascendência africana a posições de prestígio. 20
No que se refere ao racismo sistêmico, o autor utiliza o conceito para investigar como a interação entre
os principais setores institucionais – governo, moradia, saúde, educação - perpetua uma desigualdade
racial sistêmica. 21 Por exemplo, a falta de acesso à educação para a população afrodescendente traz

15
CARMICHAEL, Stokely; HAMILTON, Charles. Black power: the politics of liberation in America. New York: Vintage, 1967.
16
CARMICHAEL, Stokely; HAMILTON, Charles. Black power: the politics of liberation in America. New York: Vintage, 1967.


17
FREEMAN, Alan David. Legitimizing racial discrimination through antidiscrimination law: a critical review of Supreme Court Doctrine.
Minnesota Law Review, [S. l.], n. 804, 1978, p. 1049. Disponível em: https://scholarship.law.umn.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1803&-
context=mlr. Acesso em: 28 ago. 2021.
18
Idem, ibidem.
19
FRIEDMAN, Robert. Institucional racism: how to discriminate without really trying. In: PETTIGREW, Thomas. Racial discrimination in the
United States. New York: Harper & Row, 1975. p. 386.
20
Idem, ibidem, p. 388.
21
FRIEDMAN, Robert. Institucional racism: how to discriminate without really trying. In: PETTIGREW, Thomas. Racial discrimination in the
United States. New York: Harper & Row, 1975. p. 395.

351
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

obstáculos para o acesso às funções de protagonismo na sociedade. A falta de acesso à moradia digna
traz consequências negativas para a saúde, ingresso no mercado de trabalho etc.
Os estudos das relações raciais mais contemporâneos apontam no sentido da pertinência em distinguir
o racismo institucional do racismo estrutural. Silvio Almeida define o primeiro como sendo “o resul-
tado do funcionamento das instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que
indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça.”22 Os conflitos raciais também são parte das
instituições, pois essas são hegemonizadas por alguns grupos raciais que utilizam mecanismos institu-
cionais para impor seus interesses políticos e econômicos. 23
A definição de racismo estrutural representa um avanço no debate das relações raciais. A partir da
ideia de racismo institucional, há de se considerar que “as instituições são apenas a materialização de
uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus compo-
nentes orgânicos.”24 Ao apresentar a concepção estrutural, Silvio Almeida explica que “o racismo é uma
decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações
políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo
institucional.”25 Todos os comportamentos, tanto de indivíduos quanto de instituições, decorrem de
uma estrutura que é racista. E por essa razão, o DIDH, ao tratar dos mecanismos de proteção contra
a discriminação racial, deve orientar-se pela análise que põe as dimensões objetivas do racismo no
centro dos debates.
O Relatório do ACNUDH publicado em julho de 2021 vai ao encontro das reflexões que expõem o
caráter sofisticado dos processos de hierarquização racial. Ele identifica que as pessoas afrodescen-
dentes enfrentam formas interconectadas e complexas de discriminação racial. A marginalização
e exclusão desse grupo vulnerável, conforme o documento, decorre de legados históricos que são
perpetuados por ciclos de desigualdades estruturais, afetando o gozo de direitos humanos em todos
os setores da vida. 26
Os entraves históricos que impulsionam o racismo sistêmico, de acordo com o relatório do ACNUDH,
estão diretamente relacionados com a ideia equivocada de que a abolição da escravidão, o fim do
comércio transatlântico de pessoas africanas escravizadas, o colonialismo e as medidas adotadas pelos
Estados até o momento, foram suficientes para debelar o racismo e fomentar a igualdade, indepen-
dentemente de raça, cor ou etnia. Todavia, o relatório destaca os obstáculos enfrentados pelas pessoas
afrodescendentes para ter acesso à educação, saúde e moradia, em condições de igualdade com as
pessoas brancas. 27
O sistema universal de proteção aos direitos humanos vem consolidando entendimento, portanto, no
sentido de reconhecer a interface sistêmica do racismo. Ela pode ser aferida por meio de relatórios e

22
ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 29.
23
Idem, ibidem, p. 30.
24
Idem, ibidem, p. 36.
25
Idem, ibidem, p. 38.
26
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos: Promoção e
proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas africanas e afrodescendentes contra o uso excessivo da força e
outras violações dos direitos humanos por agentes policiais. 2021. Disponível em: https://undocs.org/en/A/HRC/47/53. Acesso em: 26 ago.
2021.


27
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos: Promoção e
proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas africanas e afrodescendentes contra o uso excessivo da força e
outras violações dos direitos humanos por agentes policiais. 2021. Disponível em: https://undocs.org/en/A/HRC/47/53. Acesso em: 26 ago.
2021.

352
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

estatísticas que comprovam que as pessoas de ascendência africana não têm acesso a políticas sociais
que assegurem o patamar de uma vida digna.
As principais violações de direitos humanos das pessoas afrodescendentes, segundo o Relatório do
ACNUDH, estão concentradas nos seguintes fatores: (i) educação: elevados níveis de analfabetismo,
abandono escolar e discriminação racial nas escolas; (ii) déficit de representação nos processos de
tomada de decisão e na vida pública: consequência da racialização da pobreza e da disparidade do
acesso aos direitos econômicos e sociais; (iii) discursos de desumanização, viabilizados por meio de
estereótipos raciais generalizados cuja origem remontam a construções sociais criadas para justificar
a escravidão; (iv) associações nocivas e degradantes com a criminalidade e a delinquência, resultando
em violências desproporcionais dos agentes da segurança pública contra as pessoas afrodescendentes
– perfilamento racial; (v) impunidade de agentes da segurança pública que cometem crimes contra
as pessoas afrodescendentes, em razão de o sistema de justiça criminal desconsiderar o papel que a
discriminação racial e o preconceito institucional podem ter desempenhado nas mortes. 28
Com o objetivo de estabelecer uma agenda transformadora em direção à justiça e igualdade racial,
o relatório apresenta algumas medidas urgentes e necessárias para o enfrentamento do racismo
sistêmico: (i) avançar: reverter a negação e modificar estruturas, instituições e comportamentos que
conduzem à discriminação direta e indireta contra pessoas africanas e afrodescendentes; (ii) buscar
justiça: assegurar que agentes policiais sejam responsabilizados por violações de direitos humanos e
crimes contra pessoas africanas e afrodescendentes, e fortalecer a supervisão institucional; (iii) ouvir:
garantir que pessoas afrodescendentes e pessoas que se levantam contra o racismo sejam protegidas
e ouvidas, e que suas queixas sejam atendidas; (iv) reparar: admitir que por trás das formas contempo-
râneas de racismo, da desumanização e da exclusão está o fracasso em reconhecer a responsabilidade
pela escravidão, o comércio transatlântico de pessoas africanas escravizadas e o colonialismo, e em
reparar danos causados de forma abrangente. 29
Em relação ao Brasil, no ano de 2014, a ONU já apontava que as desigualdades sociais no País tinham
no racismo sistêmico um elemento preponderante. O Grupo de Trabalho de Peritos sobre Afrodescen-
dentes, do Comitê dos Direitos Humanos da ONU, em visita ao Brasil no ano de 2013, apontou que o
racismo institucional fazia com que hierarquias raciais fossem culturalmente toleradas. 30
O DIDH também tem se preocupado com uma outra interface da discriminação racial: o racismo
ambiental. O termo tem origem nos Estados Unidos da América, a partir da insurgência de minorias
raciais, no final dos anos setenta do século passado, que protestavam contra a desigual exposição a
catástrofes naturais e riscos ambientais, por habitarem áreas degradadas e expostas a resíduos químicos.
O CDH, em relatório publicado no ano de 2009, destacou o impacto desproporcional para a população
afrodescendente nas regiões afetadas pelo Furacão Katrina, que atingiu os Estados Unidos da América
no ano de 2005. 31 O Relator Especial sobre as formas contemporâneas de racismo, discriminação racial,
xenofobia e formas de conexas de intolerância, ao visitar aquele País, identificou práticas de discri-
minação racial que agravaram a situação de vulnerabilidade das pessoas afrodescendentes, a qual já
era elevada em função da pobreza. O documento aponta que a população branca em New Orleans
diminuiu aproximadamente 39% enquanto a população afro-americana diminuiu 69% por cento.

28
Idem, ibidem.
29
Idem, ibidem.
30
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe del Grupo de Trabajo de Expertos sobre los Afrodescendientes acerca de su 14º
período de sesiones: Misión Brasil, 23 de septiembre de 2014 (A/HRC/27/68/Add.1). 2014.


31
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Relatório do Relator especial sobre as formas contemporâneas de racismo, de dis-
criminação racial, de xenofobia e de intolerância que lhe são associadas: Missão aos Estados Unidos da América, 28 de abril de 2009
(A/HRC/11/36/Add.3). 2009.

353
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Esses últimos compunham 67,3% da população de New Orleans antes do Katrina e após o furacão
esse número diminuiu para 58,8%. O relatório também faz referência à omissão do governo federal
em estabelecer condições adequadas para que a população desabrigada, majoritariamente afro-a-
mericana, pudesse retornar e ter acesso à moradia. Abrigos foram demolidos e substituídos para que
fossem construídos empreendimentos privados, causando sérios danos aos afro-americanos, que eram
maioria dos residentes das casas de acolhimento.
No âmbito do SIDH, a CIDH, por meio do relatório sobre direitos econômicos, sociais, culturais e ambien-
tais das pessoas afrodescendentes, de agosto de 2021, reconheceu que o contexto da escravização e
do colonialismo compõem a origem das diversas formas de discriminação e racismo contra as pessoas
africanas e afrodescendentes. O documento recorda que o surgimento de categorias de grupos étnico-
-raciais contribuiu para a construção de discursos de inferiorização de africanos e afrodescendentes em
relação ao colonizador europeu. Isso ocasionou a proliferação de múltiplas formas de discriminação e
segregação racial, que impulsionaram processos de desumanização em todo o continente. 32
Ao tratar do conceito de discriminação estrutural, a CIDH sinaliza entendimento no sentido de
compreendê-la como sinônimo de racismo sistêmico. Para a entidade, discriminação estrutural ou
sistêmica se refere ao conjunto de normas, regras, hábitos, atitudes e padrões de conduta, de direito
e de fato, que acarretam uma situação de inferioridade e exclusão de um grupo de pessoas. Essas
características se perpetuam com o passar do tempo, por gerações. 33 Ao emergir de um contexto histó-
rico, socioeconômico e cultural, essa modalidade de discriminação é generalizada porque influencia
a maneira como são realizadas as tomadas de decisão no espectro político, como são proferidas as
decisões judiciais e moldada a cultura de uma sociedade. 34
A Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Into-
lerância, aprovada no ano de 2013, expressou o reconhecimento dos Estados signatários a respeito da
complexidade da discriminação racial como mecanismo de subordinação de minorias raciais ao padrão
dominante. O texto define o conceito de discriminação racial indireta como sendo “aquela que ocorre,
em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparente-
mente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a
um grupo específico”, por motivos de raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica, “ou as coloca
em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa
razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Essa parte final compreende
as chamadas discriminações positivas, que têm o objetivo de impulsionar medidas de superioridade
jurídica orientadas a promover a ascensão de grupos historicamente desfavorecidos na sociedade. É o
caso das ações afirmativas, que ganhou regramento próprio no art. 1º, item 5 da Convenção35.
A exemplo do Sistema Universal, o Sistema Interamericano tem caminhado no sentido de proble-
matizar as formas contemporâneas de discriminação racial. A partir do diagnóstico que identifica as
interfaces estrutural, institucional e interseccional do racismo, e os obstáculos que esses fenômenos


32
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodes-
cendientes: Estándares interamericanos para la prevención, combate y erradicación de la discrimininación racial estructural: aprobado
por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos el 16 de marzo de 2021. 2021. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/
pdfs/DESCA-Afro-es.pdf. Acesso em: 02 set. 2021.
33
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Afrodescendientes, violencia policial, y derechos humanos en los Estados Unidos.
2018, p. 34. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/ViolenciaPolicialAfrosEEUU.pdf. Acesso em: 05 set. 2021.
34
Idem, ibidem, p. 34.
35
Art. 1º, item 5. “As medidas especiais ou de ação afirmativa adotadas com a finalidade de assegurar o gozo ou exercício, em condições de
igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais de grupos que requeiram essa proteção não constituirão discrimi-
nação racial, desde que essas medidas não levem à manutenção de direitos separados para grupos diferentes e não se perpetuem uma
vez alcançados seus objetivos”.

354
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

representam na busca pela igualdade substancial, o DIDH tem recomendado aos Estados que imple-
mentem e promovam políticas públicas que tenham como ponto de partida a dimensão complexa e
sofisticada das práticas sociais que mantêm intocadas as dinâmicas que perpetuam desigualdades por
motivo raça, cor ou origem étnica.
No Brasil, a discriminação racial, nos últimos anos, tem sido objeto de uma série de observações e
recomendações advindas dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. De acordo
com a Relatora Especial das Nações Unidas sobre as formas contemporâneas de racismo, discriminação
racial, xenofobia e formas conexas de intolerância, em relatório apresentado junto à Assembleia Geral,
em agosto de 2019, o Brasil oferece muitos exemplos dos legados contemporâneos da escravidão e do
colonialismo. O documento destaca que, embora o Estado brasileiro tenha tentado abordar o tema do
racismo estrutural contra as pessoas de ascendência africana, os efeitos persistentes da escravidão e do
colonialismo seguem impregnando a sociedade brasileira. 36
O racismo que caracteriza a desigualdade existente entre brasileiros afrodescendentes e brasileiros de
origem europeia tem nas estatísticas a sua marca mais perversa. Segundo dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística – IBGE -, a população afrodescendente encontra-se em situação de desvan-
tagem em todos os indicadores sociais relevantes para uma vida digna objetivamente aferível – ex.:
mercado de trabalho, condições de moradia, exposição à violência, taxa de analfabetismo, represen-
tação política etc. 37 O Relatório da ONU destaca, ainda, que como resultado de uma discriminação
enraizada e patrocinada pelo Estado, este continua criminalizando e submetendo os brasileiros afrodes-
cendentes ao encarceramento e a uma desproporcional violência, que inclui execuções extrajudiciais. 38
A CIDH, em Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, afirma que “as pessoas afrodes-
cendentes estiveram historicamente inseridas dentro de um contexto de discriminação estrutural e de
racismo institucional”. 39 A CIDH pontua que

[...] o processo de dominação sofrido pelas pessoas afrodescendentes e o sentimento de subju-


gação dessa parcela da população seguem presentes na sociedade brasileira e se repetem nas
distintas estruturas estatais. Fenômenos esses que, por ações ou omissões do Estado, contribuem
para a construção de estereótipos raciais e submete a essas pessoas a “diferenças que estão longe
da igualdade mínima aceitável, e (...) se traduzem, em muitos casos, em padrões que violam os
direitos humanos, especialmente quanto à igualdade, a não discriminação e ao direito à dignidade.40

4. GRUPOS PROTEGIDOS CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

Os marcos normativos internacionais relacionados à proteção contra a discriminação racial têm como
destinatários aqueles grupos específicos que por motivos de raça, cor, etnia ou origem étnica, enfrentam

36
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e formas conexas de
intolerância. 19 de agosto de 2019 (A/74/321). Disponível em: https://undocs.org/es/A/74/321. Acesso em: 07 set. 2021.


37
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Estudos e Pesquisas,
Informação Demográfica e Socioeconômica, Rio de Janeiro, n. 41, p. 1-12, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/
livros/liv101681_ informativo.pdf. Acesso em: 07 set. 2021.
38
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e formas conexas de
intolerância, 19 de agosto de 2019 (A/74/321). Disponível em: https://undocs.org/es/A/74/321. Acesso em 07 set. 2021.
39
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Situação dos direitos humanos no Brasil:
Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021. [S.l.]: OEA, 2021. Disponível em: http://www.oas.
org/pt/cidh/relatorios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 07 set. 2021.
40
Idem, ibidem.

355
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

desvantagens políticas e sociais para o exercício pleno dos seus direitos humanos. Para a compreensão
do tema, destaca-se que a perspectiva de minorias está relacionada à condição de grupos sociais não
hegemônicos culturalmente e que, por esse motivo, carecem de poder em suas dimensões econômica,
cultural e política41.
O DIDH tem se posicionado no sentido de destacar a vulnerabilidade das pessoas afrodescendentes
e indígenas, historicamente vítimas da discriminação racial. Os sistemas universal e interamericano de
direitos humanos têm reconhecido que o legado da escravidão e do colonialismo contribuem para a
perpetuação de estereótipos depreciativos contra essas minorias raciais. O CERD, por meio da Reco-
mendação Geral n. 3442 , esclarece que por afrodescendente se entende todas aquelas pessoas assim
referidas na Declaração e Programa de Ação de Durban, e que se identificam a si mesmas desta forma.
No documento, o CERD reconhece que em razão da discriminação racial, em algumas sociedades,
milhões de pessoas afrodescendentes ocupam os degraus mais baixos da pirâmide social. Enfatiza-se
o racismo e a discriminação estrutural contra afrodescendentes como o ponto central para a desigual-
dade que impede essas pessoas de terem acesso à bens essenciais para a fruição de uma vida digna.
Os direitos previstos na Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
também alcançam os povos indígenas. O CERD, na Recomendação n. 23 de 1997, consolidou este
entendimento ao ressaltar que os povos indígenas, em muitas regiões ao redor do mundo, têm sido
discriminados e privados dos seus direitos humanos.43
Ao tratar dos mecanismos para combater o discurso de ódio racista, o CERD, por meio da Recomen-
dação Geral n. 35, reitera que o art. 1º da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discrimi-
nação Racial alcança os povos indígenas. Neste documento, o Comitê menciona outros grupos vulne-
ráveis destinatários da proteção contra a discriminação racial. Entre eles, destacam-se os trabalhadores
domésticos migrantes, refugiados, grupos étnicos que professam religiões distintas da maioria e grupos
cuja vulnerabilidade decorre, também, de discriminação interseccional.44
No âmbito do SIDH, a CIDH reconhecer que os povos indígenas, historicamente, têm sido vítimas de
discriminação racial. Esta se manifesta, dentre outras maneiras, pela forma como os Estados se negam
a reconhecer o caráter ancestral dos territórios indígenas, bem como seu modo de ser e viver.45


41
BRAGATO, Fernanda Frizzo. Sobre o conceito de minorias: uma análise sobre racionalidade moderna, direitos humanos e não-discrimi-
nação. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson (org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica:
anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Mestrado e Doutorado, n. 14. São Leopoldo: Karywa, Unisinos, 2018. p. 52.
E-book. Disponível em: https://editorakarywa.wordpress.com/2018/ 08/15/constituicao-sistemas-sociais-e-hermeneutica-anuario-do-pro-
grama-de-pos-graduacao-em-direito-da-unisinos/#more-324. Acesso em: 15 nov. 2021.
42
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS.: Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial (CERD), Recomendación general Nº 34
aprobada por el Comité: Discriminación racial contra afrodescendientes, 2011. Disponível em: https://www.refworld.org.es/docid/4e-
d3510a2.html. Acesso em: 15 nov. 2021.
43
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS.. Committee on the Elimination of Racial Discrimination (CERD), General Recommendation
n. 23: Indigenous People, 1997. Disponível em: https://www.uio.no/studier/emner/jus/jus/JUS5710/h13/undervisningsmateriale/gene-
ral%2Brecommendation%2Bno23.pdf. Acesso em: 15 nov. 2021.
44
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial (CERD), Recomendación general Nº 35:
La lucha contra el discurso de odio racista, 2013.Disponível em: https://www.refworld.org.es/docid/53f4596b4.html. Acesso em: 15 nov. 2021. 
45
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Informe No. 40/04: Caso 12.053: Fondo. Comunidades Indígenas Mayas del Distrito de
Toledo. Belice. 2004. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2004sp/Belize.12053.htm. Acesso em: 15 nov. 2021.

356
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

5. DISCRIMINAÇÃO RACIAL E SELETIVIDADE


DO SISTEMA DE JUSTIÇA

O sistema de justiça ganhou tópico específico no relatório do ACNUDH. Há apontamentos no sentido


de que muitos Estados não implementaram leis e políticas eficazes no intuito de estabelecer diretrizes
sobre o uso da força policial. Essa lacuna dificulta a responsabilização de agentes policiais pela violação
de direitos humanos das pessoas de ascendência africana. O relatório destaca que a população afro-
descendente se sente traída pelo sistema, e não demonstra confiança na polícia e no sistema de justiça
criminal, em virtude da impunidade.46
O CERD, na Recomendação Geral nº 36, de 24 de novembro de 2020, tratou dos mecanismos de
prevenção e combate ao perfilamento racial por agentes policiais. Em que pese a inexistência de um
conceito universal no âmbito do DIDH, o Comitê apresentou as seguintes definições sobre o perfila-
mento racial: a) cometida por autoridades policiais; b) não é motivado por critérios objetivos ou justi-
ficativas razoáveis; c) se baseia na raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica ou intersecções
relevantes, como religião, sexo ou gênero, orientação sexual e identidade de gênero, deficiência e idade,
status de migração, trabalho ou outro status; d) é usado em contextos específicos, como controle de
imigração, atividade criminosa, antiterrorismo ou outra atividade que supostamente viole ou possa
resultar em violações da lei.
A seletividade do sistema de justiça penal associada a violência policial contra os afrodescendentes
também tem sido objeto de análise por parte do SIDH. Em relatório pertinente à violência policial
contra as pessoas afrodescendentes nos Estados Unidos da América, a CIDH aponta questões estru-
turais que contribuem para a discriminação racial praticada por agente da segurança pública daquele
País. O contexto social produzido por estigmas e discursos de ódio, a desigualdade proporcionada pela
falta de acesso à justiça, a pobreza e a sobrerrepresentatividade da população carcerária são apontadas
como alguns dos problemas que resultam na violência policial contra os afrodescendentes, e na impu-
nidade pela prática dessas condutas.47
A abordagem discriminatória por comportamento suspeito também foi objeto de análise no caso
Acosta Martinez vs. Argentina.48 Neste precedente, a Corte IDH aprofunda a questão do racismo
estrutural e institucional no continente americano. José Delfin Acosta Martinez, cidadão afro-uruguaio
e ativista da luta contra a discriminação racial, no ano de 1996, interviu em uma abordagem policial
onde policiais argentinos detinham dois jovens afro-brasileiros em frente a uma boate, na cidade de
Buenos Aires. A abordagem policial teria decorrido de uma denúncia anônima de que na boate havia
uma pessoa armada que estava causando perturbação. Acosta Martinez alegou que os policiais haviam
detido os dois jovens pelo fato de serem negros, e acabou sendo detido e assassinado pela polícia local.
O caso trouxe para a Corte IDH o problema do perfilamento racial, consistente em ações de arbitra-
riedade e brutalidade policial cometidas por motivos de raça, cor ou origem étnica. Ele se dá por meio
da construção de estereótipos negativos que associam as pessoas afrodescendentes à delinquência e
à marginalidade. O próprio Estado Argentino reconheceu “a existência de padrões compatíveis com

46
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos: Promoção e
proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas africanas e afrodescendentes contra o uso excessivo da força e
outras violações dos direitos humanos por agentes policiais. 2021. Disponível em: https://undocs.org/en/A/HRC/47/53. Acesso em: 26 ago.
2021.


47
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Informe No. 40/04: Caso 12.053: Fondo. Comunidades Indígenas Mayas del Distrito de
Toledo. Belice. 2004. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2004sp/Belize.12053.htm. Acesso em: 15 nov. 2021.
48
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso “Acosta Martinez vs. Argentina”.
Sentença de 31 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_410_esp.pdf. Acesso em: 28 out.
2022.

357
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

práticas de violência institucional impregnadas de preconceitos racistas e discriminatórios”, contexto


que se mantém até os dias atuais. Ao final, a Corte entendeu que os agentes policiais argentinos agiram
mais por um perfil racial do que pela suspeita da prática de um ilícito, até porque as pessoas detidas não
preenchiam as características descritas na denúncia anônima. Assim agindo, o Estado Argentino teria
violado, dentre outros, o artigo 2449 c/c art. 1.150 da CADH.
Em relação à violência policial, é digno de registro, ainda, o caso “Favela Nova Brasília vs. Brasil”. Esse
precedente teve como ponto central as falhas e as demoras na investigação e punição dos responsáveis
pelas supostas execuções extrajudiciais de 26 pessoas ocorridas em operações realizadas pela Polícia
Civil do Estado do Rio de Janeiro, nos anos de 1994 e 1995, na Favela Nova Brasília. Na ocasião, a Corte
destacou que entre as vítimas fatais de violência policial, estimava-se uma predominância de jovens,
negros, pobres e desarmados. 51 Embora a questão racial apareça contextualmente (a Corte não analisa
especificamente como a discriminação racial resulta em uma violação de direitos humanos), a sentença
apresenta dados oficiais que demonstram o impacto negativo da violência policial para a população
negra. 52 A DPU enfatizou a questão por ocasião da apresentação de memorial na condição de amicus
curiae. Na oportunidade, a DPU lembrou que, embora formalmente abolida em 1888, a escravidão
estruturou a formação econômica do País, e seus efeitos para a manutenção da desigualdade perma-
necem até os dias atuais. 53
A Corte IDH chamou atenção para a prática habitual em que os relatórios sobre mortes ocasionadas
pela polícia se registrem como “resistência seguida de morte” (autos de resistência). Trata-se de
instrumento hábil a dar um aspecto de legalidade às execuções sumárias praticadas pelos agentes
policiais. As investigações, quando deflagradas a partir do registro dos “autos de resistência”, tendem
a ser conduzidas de forma a criminalizar a vítima e ignorar os indícios de execuções sumárias. A Corte
destacou, ainda, a falta de independência concreta dos investigadores e a pouca seriedade nas diligên-
cias investigatórias por parte do Estado brasileiro, diante da alta letalidade e violência policial no caso.
A discriminação racial no mercado de trabalho e a condescendência do sistema de justiça brasileiro com
a prática do racismo contra pessoas negras foi objeto de análise por parte da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos no caso “Simone André Diniz vs. Brasil”. 54 No ano de 1997, Simone André Diniz,
mulher afrodescendente, candidatou-se a uma vaga de emprego para doméstica publicada na parte
de Classificados de um jornal de grande circulação no País. O anúncio mencionava a preferência por
mulheres da cor branca. Ao telefonar para o número informado, a candidata foi questionada a respeito
da cor de sua pele. Ao responder que era negra, ouviu que não preenchia os requisitos exigidos para
o cargo. Simone André Diniz registrou ocorrência na Delegacia de Investigações de Crimes Raciais.

49
Art. 24. Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.
50
Art. 1.1. Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e
pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição
social.
51
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso “Favela Nova Brasília vs. Brasil”.
Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 10 set.
2021.
52
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso “Favela Nova Brasília vs. Brasil”.
Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf. Acesso em: 10 set.
2021. “Segundo dados oficiais, ‘os homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos no Brasil, e atingem especial-
mente jovens negros do sexo masculino, moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos”.
53
GOMES, César de Oliveira. Racismo Institucional e Justiça: interfaces da Defensoria Pública da União. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021,
p. 185.
54
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Relatório 66/06: Caso 12.001 Simone André Diniz vs. Brasil. 2006. Disponível em: http://
www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm. Acesso em: 04 set. 2021.

358
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

Após a tramitação do inquérito policial, o Ministério Público do Estado de São Paulo emitiu parecer
requerendo o arquivamento, por não vislumbrar os elementos legais para o oferecimento da denúncia.
O parecer foi acolhido pelo Magistrado, que determinou o arquivamento do processo.
No Relatório, a CIDH reconhece que “o racismo institucional é um obstáculo à aplicabilidade da lei
antirracismo no Brasil”, e que

Essa prática tem como efeito a discriminação indireta na medida em que impede o reconheci-
mento do direito de um cidadão negro de não ser discriminado e o gozo e o exercício do direito
desse mesmo cidadão de aceder à justiça para ver reparada a violação. Demais disso, tal prática
causa um impacto negativo para a população afrodescendente de maneira geral. [...]

Nesse precedente, a CIDH ainda afirma que “excluir uma pessoa do acesso ao mercado de trabalho
55

por sua raça constitui um ato de discriminação racial”56, e se o Estado permite que essa conduta perma-
neça impune, convalidando-a implicitamente, há violação do art. 24 da CADH, que prevê a igualdade
perante a lei, sem qualquer discriminação.
A discriminação racial no mercado de trabalho brasileiro e a impunidade decorrente dessa prática
retornou, em julho de 2021, ao centro das discussões sobre racismo institucional no âmbito do
SIDH. A CIDH apresentou perante a Corte IDH o caso “Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana
Ferreira vs. Brasil”.
No ano de 1998, após um anúncio publicado em jornal de grande circulação no Brasil, a respeito de
uma vaga em uma empresa, Neusa e Gisele, ambas mulheres negras, manifestaram interesse no cargo.
Ao serem atendidas, foram informadas de que todas as vagas haviam sido preenchidas, sem que lhes
fossem solicitadas quaisquer informações adicionais. Horas depois, uma mulher branca compareceu
a mesma empresa, manifestando interesse na vaga, e foi contratada imediatamente. Neusa e Gisele
registraram ocorrência por discriminação racial. Após a tramitação processual, em agosto de 1999, o
juiz julgou improcedente a ação penal. As vítimas interpuseram recurso, que levou quatro anos para
ser julgado. O Tribunal reformou a sentença para condenar o réu a dois anos de prisão, mas declarou
extinta a punibilidade em face da prescrição. O Ministério Público recorreu da decisão, com funda-
mento na imprescritibilidade do crime de racismo prevista na Constituição Federal. O Tribunal acolheu
os fundamentos, no ano de 2006 foi emitido um mandado de prisão, e em 2007, foi concedido um
recurso para que o condenado cumprisse a pena em regime aberto. Em novembro de 2007, nove anos
após a prática do crime, o processo ainda estava pendente de decisão definitiva. Neusa dos Santos
Nascimento ajuizou uma ação para reparação de danos, que foi rejeitada em dezembro de 2007. 57
No Relatório de Mérito, a CIDH considerou que apesar da existência de uma condenação penal, não
haveria uma decisão judicial definitiva, e tampouco teria sido implementada qualquer medida de resti-
tuição dos direitos violados e reparação integral das vítimas. A Comissão registrou, ainda, a falta de
acesso à justiça da população afrodescendente no Brasil, em especial das mulheres. 58
O entendimento das instituições do sistema de justiça brasileiro, em relação à Lei 7.716/1989, direcio-
na-se no sentido de impor à vítima o ônus da prova da existência do ato de discriminação racial. De

55
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Relatório 66/06: Caso 12.001 Simone André Diniz vs. Brasil. 2006. Parágrafo 87. Disponí-
vel em: http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm. Acesso em: 04 set. 2021.
56
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Relatório 66/06: Caso 12.001 Simone André Diniz vs. Brasil. 2006. Parágrafo 87. Disponí-
vel em: http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm. Acesso em: 04 set. 2021.


57
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. A CIDH apresenta caso sobre o Brasil perante a Corte Interamericana. 2021. Dispo-
nível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/213.asp#:~:text=Washington%2C%20D.C.%2DA%20
Comiss%C3%A3o%20Interamericana,Ana%20Ferreira%20relativo%20ao%20Brasil.
58
Idem, ibidem.

359
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

acordo com esse critério, três elementos devem estar presentes para a existência do delito: (i) a exis-
tência de um ato discriminatório; (ii) a existência de um preconceito racial do acusado contra a vítima;
(iii) a existência de um nexo causal entre o preconceito racial e o ato discriminatório. Em resumo, deve
ser demonstrada a intenção explícita de discriminar. 59 Essa exigência, na prática, dificulta a responsabi-
lização pelo crime, pois raramente o(a) autor(a) do ato de discriminação racial exporá abertamente o
seu preconceito.
O legislador infraconstitucional, por meio da Lei nº 9.459/1997, inseriu no capítulo referente aos crimes
contra a honra do Código Penal Brasileiro a injúria racial. O art. 140, parágrafo 3º do CPB, na redação
da citada lei, prevê uma modalidade qualificada de injúria para os casos em que o crime seja praticado
mediante a utilização de elementos relacionados a raça, cor, etnia, religião ou origem.
A grande questão em relação aos crimes previstos na Lei nº 7.716/1989 é que a injúria racial, inserida no
contexto dos crimes contra a honra do CPB, não estaria ao alcance da inafiançabilidade e da imprescri-
tibilidade prevista pelo art. 5º, XLII, da Constituição de 1988. Além disso, a ofensa verbal consolidada a
partir de uma ofensa racial possui características tanto do tipo penal do art. 140, parágrafo 3º do Código
Penal quanto do art. 20 da Lei nº 7.716/1989.60 À míngua de uma definição mais nítida sobre “discrimi-
nação racial” e os elementos que a constituem, os tribunais brasileiros inclinaram-se a reconhecer, na
maioria das vezes, o delito de injúria racial em detrimento do crime de racismo.61 Tanto para os crimes
da Lei Caó quanto para a injúria qualificada, a jurisprudência consolidou entendimento no sentido da
necessidade de a vítima comprovar que o agressor agiu com dolo. Em relação à Lei 7.716/1989, além
da intencionalidade, exige-se a prova de que a ofensa foi dirigida à coletividade negra, e não apenas à
honra subjetiva da pessoa.62 Em razão disso, o próprio Estado brasileiro reconheceu perante o Comitê
para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU – CERD - a inconsistência e a heterogeneidade da
jurisprudência brasileira em matéria de discriminação racial.63
O STF, em recente julgamento proferido no âmbito do HC 154.248/DF64, firmou entendimento no
sentido de que o crime de injúria racial deve ser interpretado como crime de racismo. Em razão disso,
o delito previsto no art. 140, § 3º do Código Penal torna-se inafiançável e imprescritível, assim como os
crimes previstos na Lei n. 7.716/1989. O Relator, Ministro Luiz Edson Fachin, assim se manifestou:

A Constituição de 1988 rompeu o silêncio da razão e estabeleceu como um dos objetivos funda-
mentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV), além de enunciar
como princípio norteador do ente soberano em suas relações internacionais o repúdio ao terro-
rismo e ao racismo (art. 4º, VIII). O texto constitucional trouxe ainda mandamento de incriminação
de condutas racistas, como inafiançáveis e imprescritíveis.

59
CENTRO DE ESTUDIOS DE JUSTICIA DE LAS AMÉRICAS. Sistema judicial y racismo contra afrodescendientes: Brasil, Colombia,
Perú y República Dominicana, 2004, p. 24. Disponível em: https://biblioteca.cejamericas.org/bitstream/handle/2015/656/raz-sistema-ju-
d-racismo2.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 02 set. 2021.
60
SILVA JÚNIOR, Hédio. Direito da Igualdade Racial. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 67.
61
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira; LYRIO, Caroline. Racismo institucional e acesso à justiça: uma análise da atuação do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro nos anos de 1989-2011. [S. l.]: [s.n.], 2014. Disponível em: http://www. publicadireito.com.br/artigos/?cod=7b-
f570282789f279. Acesso em: 10 set. 2021.
62
Idem, ibidem, p. 22-23.
63
UNITED NATIONS. Reports Submitted by States parties under article 9 of the Convention: Seventeenth periodic reports of States
parties due in 2002. Addendum BRAZIL, 2003. Disponível em: http://www.bayefsky.com/reports/brazil_cerd_c_431_add_8_2003.pdf. Aces-
so em: 10 set. 2021.
64
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 154.248. Distrito Federal. Primeira Turma. Relator Ministro Luiz Edson Fachin.
Brasília, 28 de outubro de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5373453. Acesso em: 25 out. 2022.

360
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

É imperativo constitucional, por conseguinte, não eclipsar a memória de eventos traumáticos pós-es-
cravidão, ainda não finalizados, contra a população negra no Brasil, reconstituída especialmente
com testemunhos oculares de experiências, negações e sobrevivências. Nada obstante, cumpre não
olvidar as dificuldades do trabalho da história do tempo presente, conforme retrata Marieta de Moraes
(FERREIRA, Marieta de Moraes. Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no
Brasil. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 80‐108, jan./mar. 2018. p. 83).
O precedente destaca os objetivos da legislação antirracista do período pós-Constituição de 1988, bem
como a necessidade de o sistema de justiça dar respostas mais contundentes em relação aos atos de
racismo, de forma a estabelecer mecanismos mais robustos para o combate à discriminação racial.

6. DISCRIMINAÇÃO MÚLTIPLA E INTERSECCIONALIDADE

O racismo sistêmico tem na interseccionalidade um instrumento complexo de desumanização. A partir


da combinação de vários marcadores sociais da diferença – sexo, orientação sexual, deficiência, religião,
status socioeconômico, nacionalidade e outros -, algumas pessoas são vítimas de múltiplas formas de
discriminação. A ONU, no relatório publicado em julho de 2021, reconhece que “as mulheres afrodes-
cendentes estão na encruzilhada da interseccionalidade e da desigualdade e, portanto, enfrentam
múltiplas formas de discriminação decorrentes de sua origem racial ou étnica, combinadas com discri-
minação baseada no gênero e estereótipos de gênero prejudiciais”65.
Para Kimberle Crenshaw, a interseccionalidade sugere que quando se trata de categorias de discrimi-
nação, não se está lidando com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos. A autora
estadunidense explica que um dos objetivos dessa perspectiva teórica é “identificar mecanismos para
que instituições trabalhem em conjunto para garantir que a discriminação racial que afeta mulheres e
a discriminação de gênero que afeta mulheres negras sejam consideradas mutuamente e não de uma
maneira excludente”66.
A teoria é resultado da luta política do feminismo negro, e mesmo antes de ser conhecido o termo
“interseccionalidade”, já era objeto de análise nos estudos de raça/classe/gênero. Intelectuais e ativistas
do feminismo negro como Ângela Davis e Lélia Gonzalez67, desde os anos sessenta e setenta do século
passado, já mobilizavam categorias teóricas no sentido de denunciar a natureza complexa da vulnerabi-
lidade das mulheres afrodescendentes, duplamente discriminadas pelo racismo e pelo sexismo.
No entanto, somente no ano de 1995 o sistema universal dá os primeiros passos para o reconhecimento
da discriminação interseccional. Naquele ano, por ocasião da Conferência Mundial sobre Mulheres
Presas da ONU, os instrumentos internacionais se atentaram para fatores como idade, deficiência,
posições socioeconômicas e pertencimento a grupo étnico racial.68

65
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos: Promoção e
proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas africanas e afrodescendentes contra o uso excessivo da força
e outras violações dos direitos humanos por agentes policiais. 2021. Disponível em: https://undocs.org/en/A/HRC/47/53. Acesso em: 01 set.
2021.
66
CRENSHAW, Kimberle Willians. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília:
Unifem, 2004. p. 8. Disponível em: https://static.tumblr.com/7symefv/V6vmj45f5/kimberle-crenshaw.pdf. Acesso em: 01 set. 2021..


67
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984.
68
RIOS, Roger Raupp; SILVA, Rodrigo da. Discriminação múltipla e discriminação interseccional: aportes do feminismo negro e do direito da
antidiscriminação. Revista Brasileira de Ciência Política. Brasília, n. 16, p. 11-37, jan./abr. de 2015, p. 11-37. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/rbcpol/a/xKt5hWwZFChwrbtfZxTGXKf/abstract/?lang=pt#. Acesso em: 25 out. 2022.

361
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

No ano 2000, o CERD adotou o Comentário Geral nº 25, que tratava sobre dimensões da discriminação
racial relacionadas ao gênero. O Comitê observou que a discriminação múltipla escaparia a qualquer
identificação se não houvesse reconhecimento explícito a respeito das diferentes experiências de vida
de mulheres e homens, em áreas de vida pública e privada.69
A Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, de
2001, consolidou o conceito de discriminação múltipla no âmbito do direito internacional dos direitos
humanos, ao reconhecer que as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância
correlata podem sofrer múltiplas ou agravadas formas de discriminação baseadas em outros motivos
correlatos como sexo, língua, religião, opinião política, origem social, econômica ou outro “status”.
A correlação entre racismo institucional e discriminação interseccional restou evidente no caso “Alyne
da Silva Pimentel Teixeira vs. Brasil” 70, submetido ao CEDAW. No ano de 2002, Alyne Pimentel, mulher
afrodescendente, 28 anos, grávida, sexto mês de gestação, buscou assistência médica em um centro
de saúde do Município de Belford Roxo, Estado do Rio de Janeiro. Ela estava apresentando náuseas e
dores abdominais. Ao ser atendida, recebeu analgésicos e foi liberada para retornar a sua residência. Em
razão de não ter passado o mal-estar, retornou ao posto de saúde, oportunidade em que foi detectada
a morte do feto.
Alyne foi submetida à cirurgia para retirada do feto, mas devido à complicações no quadro, foi transfe-
rida para outra unidade hospitalar. Ela teve que aguardar atendimento por horas no corredor, devido à
ausência de leito na emergência. Em razão disso, acabou falecendo por hemorragia digestiva, ocasio-
nada pelo parto do feto morto.
O caso foi submetido ao CEDAW, pela mãe da vítima, e o Comitê reconheceu que Alyne sofreu
discriminação múltipla, pois a sua condição de mulher negra e pobre foi decisiva para que tivesse um
atendimento precário do sistema de saúde público. O Comitê reconheceu, também, que o Estado não
assegurou a proteção judicial efetiva e os instrumentos jurídicos pertinentes, pois a ação indenizatória
ajuizada no ano de 2003, até a data da decisão do órgão internacional - julho de 2011 – não havia sido
julgada. Por fim, o Comitê fez recomendações ao Estado brasileiro, dentre elas, a de indenizar integral-
mente a família da vítima pelas violações constatadas. O Brasil cumpriu todas as reparações às quais se
comprometeu perante a ONU, fato que foi reconhecido pela entidade em abril de 201471.
A discriminação interseccional também tem sido objeto de preocupação no âmbito do SIDH. Em caso
envolvendo a explosão de uma fábrica de artifícios no Município de Santo Antônio de Jesus/BA, no ano
de 1998, na qual morreram 64 mulheres, a Corte IDH considerou que

a intersecção de fatores de discriminação neste caso aumentou as desvantagens comparativas


das supostas vítimas, as quais compartilham fatores específicos de discriminação que atingem as
pessoas em situação de pobreza, as mulheres e os afrodescendentes, mas, ademais, enfrentam
uma forma específica de discriminação por conta da confluência de todos esses fatores e, em
alguns casos, por estarem grávidas, por serem meninas, ou por serem meninas e estarem grávidas.
Sobre esse assunto é importante destacar que esta Corte estabeleceu que o estado de gravidez

69
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Mulheres e Meninas Afrodescendentes: Conquistas e Desafios de Direitos Humanos, 2018.
Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2018/04/Mulheres_e_Meninas_Afrodescendentes_WEB.pdf. Acesso
em: 02 set. 2021.
70
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Alyne da Silva Pimentel Teixeira vs. Brasil. 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/4495429/mod_resource/content/1/Relatorio2014CasoAlyne22agosto1v.pdf. Acesso em: 02 set. 2021.


71
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nota de reconhecimento da ONU Brasil à reparação feita pelo Governo Brasileiro ao ‘caso
Alyne Pimentel’. 2014. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/noticias/nota-de-reconhecimento-da-onu-brasil-a-reparacao-
-feita-pelo-governo-brasileiro-ao-caso-alyne-pimentel/#:~:text=%E2%80%9CA%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20das%20Na%-
C3%A7%C3%B5es%20Unidas,do%20Comit%C3%AA%20de%20Acompanhamento%20da. Acesso em: 02 set. 2021.

362
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

pode constituir uma condição de particular vulnerabilidade e que, em alguns casos de vitimização,
pode existir um impacto diferenciado por conta da gravidez. 72

A Corte IDH anotou que o Estado brasileiro violou o princípio da igualdade e não discriminação, pois
a fabricação de fogos de artifício era, no momento dos fatos, a principal e, inclusive, a única opção
de trabalho dos habitantes do município, os quais, dada sua situação de pobreza, não tinham outra
alternativa senão aceitar um trabalho de alto risco, com baixa remuneração e sem medidas de
segurança adequadas.
O caso Empregados da Fábrica de Fogos de Artifício vs. Brasil é paradigmático porque a Corte analisa a
questão do racismo estrutural em relação à violação de direitos econômicos, sociais, culturais e ambien-
tais (DESCA). Essa guinada para uma compreensão mais ampla em relação ao princípio da igualdade
e não discriminação pode ser identificada no parágrafo 182 da sentença, quando a Corte ressalta a
evolução do Direito Internacional em relação ao tema. Menciona-se que “os Estados devem abster-se
de realizar ações que de alguma forma sejam destinadas, direta ou indiretamente, a criar situações de
discriminação de jure o de facto”. 73
A Corte define, nesse precedente, duas formas distintas de construir a proteção jurídica do direito
à igualdade e não discriminação: naquelas hipóteses em que está se tratando da obrigação geral do
Estado de respeitar e garantir “sem discriminação” os direitos assegurados na CADH, eventual violação
acarretará o descumprimento do art. 1.1 e o direito substantivo em questão. Por outro lado, nos casos
em que a controvérsia envolve proteção desigual da lei interna do Estado ou de sua aplicação, o fato
deverá ser analisado à luz do art. 24 da CADH.
A Corte IDH estabeleceu que:

(...) os Estados têm a obrigação de não introduzir em seu ordenamento jurídico regulamentações
discriminatórias, eliminar as regulamentações de caráter discriminatório, combater as práticas
desse caráter e estabelecer normas e outras medidas que reconheçam e assegurem a efetiva
igualdade de todas as pessoas perante a lei.

A confluência de diferentes marcadores sociais como raça, sexo e condição socioeconômica, no caso
analisado, colocaram as vítimas em situação de extrema desvantagem, cuja origem decorre de uma
discriminação estrutural. A Corte afirma, especificamente, que “a discriminação contra a população
negra no Brasil foi uma constante histórica”, sendo o caso de se aplicar o art. 1.1 da CADH.
Em relação à legislação brasileira, a interseccionalidade aparece de maneira expressa no inciso III do art.
1º do Estatuto da Igualdade Racial: “desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da
sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais”.
O Plano de Ação da Década Internacional de Afrodescendentes dedicou um tópico específico para
a modalidade de discriminação múltipla ou agravada. O texto dispõe que os Estados devem adotar e
implementar políticas e programas que forneçam proteção efetiva para as pessoas afrodescendentes
que sejam vítimas de formas múltiplas, agravadas e inter-relacionadas de discriminação, baseadas em
características como idade, gênero, religião, deficiências, entre outras. 74

72
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares
vs. Brasil. 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_por.pdf. Acesso em: 05 set. 2021..
73
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Empregados da Fábrica de Fogos
de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil. Sentença de 15 de julho de 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/
casos/articulos/seriec_407_por.pdf. Acesso em: 05 set. 2021.


74
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Década internacional de afrodescendentes - 2015-2024: reconhecimento, justiça e desenvol-
vimento. [S. l., 2015]. Disponível em: https://decada-afro-onu.org/discrimination.shtml. Acesso em: 10 set. 2021.

363
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A questão da discriminação múltipla com recorte de raça e religião chegou ao Supremo Tribunal Federal
por meio do Recurso Extraordinário nº 494.601/RS. 75 O Ministério Público do Estado do Rio Grande do
Sul suscitava a inconstitucionalidade de lei estadual que excepcionava o sacrifício ritual de animais em
cultos e liturgias das religiões de matriz africana, do rol de infrações administrativas previstas no Código
Estadual de Proteção aos Animais. Argumentava que a exceção feriria o princípio da isonomia porque
a concessão do privilégio seria incompatível com o caráter laico do Estado. Ainda, que seria necessário
equacionar o direito à liberdade de consciência e de crença e a proteção aos animais.
O STF reconheceu que a proteção especial aos cultos de religião de matriz africana é compatível com
o princípio da igualdade em razão da estigmatização e do preconceito estrutural a que historicamente
foram submetidos na sociedade brasileira. O Ministro Luiz Edson Fachin lembrou a obrigação imposta
ao Estado Brasileiro de proteger as manifestações das culturas populares indígena e afro-brasileira,
prevista no art. 215, § 1º, da Constituição de 1988.

7. O TRATAMENTO LEGAL DO RACISMO NO BRASIL

A Constituição de 1988 foi a primeira a conferir um tratamento constitucional à questão racial no


Brasil. No capítulo referente aos princípios fundamentais, no art. 3º, III, prevê “a promoção do bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
O art. 4º, VIII estabelece que o Brasil em suas relações internacionais se rege pelo repúdio ao terro-
rismo e ao racismo.
O poder constituinte originário consolidou o compromisso do Estado brasileiro com o enfrentamento
do racismo no art. 5º, XLII, que dispõe que “a prática de racismo constitui crime inafiançável e impres-
critível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. O art. 215, parágrafo 1º, estabelece uma política
de reconhecimento às culturas indígena e afro-brasileira, ao prever que “o Estado protegerá as mani-
festações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros participantes do processo
civilizatório nacional”.
A lei a que se refere o art. 5º, XLII, da Constituição da República é a Lei nº 7.716/1989, que define os
crimes resultantes do preconceito de raça e de cor. O texto prevê uma série de condutas impulsionadas
pela intenção em restringir direitos a uma pessoa ou coletividade em virtude do preconceito de raça
ou cor, tais como negar ou impedir o acesso a emprego, impedir o acesso ou recusar atendimento em
estabelecimentos comerciais etc.
A Lei nº 7.716/1989, também denominada Lei Caó76, foi resultado da compreensão do pensamento jurí-
dico brasileiro a respeito do que seria um ato de discriminação racial. O texto legal descreve uma série
de condutas que remetem a ideia de discriminação direta. Em razão disso, a jurisprudência consagrou
entendimento no sentido de que a prova da intenção deliberada de discriminar seria condição essencial
para a configuração do crime de racismo.
O fato de a Lei Caó não definir um conceito de discriminação racial e, tampouco, definir o que é precon-
ceito, também contribuiu para que, na prática, a criminalização do racismo tivesse pouca efetividade
ao longo dos anos como política de reconhecimento e reparação em favor dos brasileiros afrodescen-

75
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 494.601/RS. Rel. Marco Aurélio. 28 de março de 2019. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751390246. Acesso em: 25 out. 2022. Recorrente: Ministério Público
do Estado do Rio Grande do Sul. Recorrido: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Intimados: Conselho Estadual da
Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul (CEUCAB/RS); União de Tendas e Candomblé do Brasil; Federação Afro-
-Umbandista e Espiritualista do Rio Grande do Sul - FAUERS.


76
Nome do autor da lei, o Deputado Federal Carlos Alberto Caó de Oliveira, jornalista, militante do movimento negro e parlamentar da
Constituinte.

364
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

dentes. Racusen, ao criticar a construção legal da ideia de discriminação racial no Brasil, lembra que o
Poder Legislativo definiu a discriminação como um “ato de preconceito racial”, pela primeira vez, em
195177, por ocasião da promulgação da Lei nº 1.390 – Lei Afonso Arinos78.
Para a elite política e jurídica brasileira dos anos cinquenta do século passado, a questão racial não
necessitava de regramentos mais complexos porque se entendia que o País vivia uma autêntica demo-
cracia racial. Segundo essa ideologia, cujos fundamentos repousam na obra de Gilberto Freyre, “Casa
Grande e Senzala”, a nação brasileira resulta da fusão das raças branca, negra e indígena, e por conta
disso, não haveria conflitos raciais porque não seria possível às pessoas discriminarem umas às outras.
Haveria, dessa forma, uma igualdade racial, e os casos de racismo seriam pontuais e episódicos. 79
A despeito dos inúmeros debates em torno da criminalização do racismo que se sucederam após a
promulgação da Lei Caó, somente no ano de 2003 o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade
de se debruçar sobre o tema. Por ocasião do julgamento do Habeas Corpus 82.424-2/RS, conhecido
como “Caso Ellwanger”, o Tribunal Constitucional analisou se a questão racial e étnica era de natu-
reza biológica ou cultural. Tratava-se de um editor que publicava e difundia reiteradamente obras de
cunho antissemita.80
O STF, neste precedente, alinhou-se ao entendimento consagrado no âmbito do direito internacional,
firmando a ideia de que o racismo decorre de um processo político-social e cultural, e não biológico. O
poder constituinte, no texto consolidado no art. 5º, LXII da Constituição de 1988, vislumbrou o racismo
como um fenômeno social, pautado por teorias ideológicas que lançam mão de discursos de infe-
riorização e estereótipos negativos para discriminar grupos e pessoas por motivos de raça, cor, etnia
ou origem étnica.
A legislação brasileira dispôs expressamente sobre o conceito de discriminação racial somente no ano
de 2010, com a promulgação do Estatuto da Igualdade Racial – Lei nº 12.288. Inserido no art. 1º, pará-
grafo único, I da lei, o conceito espelha a definição prevista na Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação Racial.81
O Estatuto da Igualdade Racial sinaliza uma abertura do Poder Legislativo para um debate mais
profundo a respeito da necessidade de o Estado brasileiro enfrentar o racismo, em suas interfaces
estrutural e institucional. O texto da lei contém uma série de normas programáticas relacionadas ao
acesso à direitos econômicos, sociais e culturais por parte dos afrodescendentes, tais como o direito
à saúde, à educação, à cultura, à moradia adequada e ao trabalho. Outras definições, tais como “desi-
gualdade racial”, “população negra” e “ações afirmativas” também mereceram atenção específica do
legislador ordinário.
O racismo institucional nas relações de trabalho também começa a ser debatido na jurisprudência
brasileira. O Tribunal Superior do Trabalho, em precedente paradigmático, reconheceu que a ausência
de pessoas negras em guia de padronização visual de uma empresa, traduz falta de diversidade racial

77
RACUSEN, Seth. A mulato cannot be prejudiced: the legal construction of racial discrimination in contemporary Brazil. [S. l.], June, 2002.
p. 115. Disponível em: https://dspace.mit.edu/handle/1721.1/31104. Acesso em: 08 set. 2021.
78
Inclui entre as contravenções penais a prática de atos resultantes do preconceito de raça e de cor.
79
RACUSEN, op. cit., p. 19.
80
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 82.424-2/RS. Tribunal Pleno. Relator p/ acórdão Ministro Maurício Correa. j. Brasí-
lia, 17 de setembro de 2003. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur96610/false. Acesso em: 25 out. 2022.


81
Art. 1º, parágrafo único, I, da Lei 12.288/2010: “I – discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência
baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou
exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou
em qualquer outro campo da vida pública ou privada.”

365
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

que constitui modalidade de discriminação indireta e que tem o condão de ferir a integridade psíquica
de empregados da raça negra.82
No caso, a reclamante, mulher afrodescendente, argumentou que o guia de padronização visual da
empresa serviu para que inúmeras vezes fosse advertida por usar o cabelo no estilo “black power”. O
TST enfatizou que toda a forma de discriminação deve ser combatida, especialmente aquela mais sutil
de ser detectada, como é o caso da discriminação institucional ou estrutural, que, independentemente
da intenção, afeta negativamente determinado grupo racial.

8. POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS E


SISTEMA DE COTAS RACIAIS NO BRASIL

No ano de 2012, as ações afirmativas estiveram na pauta do Supremo Tribunal Federal em razão da
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186/DF. Discutia-se a constitucionalidade da
política de instituição de cotas étnico-raciais no processo de seleção para ingresso de estudantes na
Universidade de Brasília.83
Os debates em torno das políticas de ações afirmativas para afrodescendentes no Brasil ganharam
ênfase após a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância
Correlata, que teve expressiva participação da delegação brasileira. O enunciado 99 do Programa de
Ação de Durban confere tratamento específico ao tema:

Reconhece que o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata


é responsabilidade primordial dos Estados. Portanto, incentiva os Estados a desenvolverem e
elaborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, equidade, justiça
social, igualdade de oportunidades e participação para todos. Através, dentre outras coisas, de
ações e de estratégias afirmativas ou positivas; estes planos devem visar a criação de condições
necessárias para a participação efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos
civis, culturais, econômicos, políticos e sociais em todas as esferas da vida com base na não-discri-
minação. A Conferência Mundial incentiva os Estados que desenvolverem e elaborarem os planos
de ação, para que estabeleçam e reforcem o diálogo com organizações não-governamentais
para que elas sejam intimamente envolvidas na formulação, implementação e avaliação de polí-
ticas e de programas.

Em que pese a Declaração e o Programa de Ação de Durban tenham dado ênfase às ações afirmativas
como medidas para assegurar a não-discriminação no acesso aos serviços sociais, o tema não era novi-
dade no âmbito dos marcos normativos internacionais. A Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, já previa no art. I, item 4, que

Medidas especiais tomadas com o objetivo precípuo de assegurar, de forma conveniente, o


progresso de certos grupos sociais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção para
poderem gozar e exercitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em igualdade de
condições, não serão consideradas medidas de discriminação racial, desde que não conduzam à
manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido
atingidos os seus objetivos.


82
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº 1000390-03.2018.5.02.0046. Segunda Turma, Ministra Relatora Delaíde
Miranda Arantes. Brasília, 11 de novembro de 2020. Disponível em: https://jurisprudencia-backend.tst.jus.br/rest/documentos/89477dd-
436428560f398155e9333cf7c. Acesso em: 25 out. 2022.
83
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de descumprimento de preceito fundamental n° 186-DF. Requerente: Democratas – DEM.
Tribunal Pleno. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. j. Brasília, 26 de abril de 2012. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693. Acesso em: 25 out. 2022.

366
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL

Na legislação brasileira, as ações afirmativas e a implementação de cotas possuem um histórico,


inclusive, anterior à Constituição de 1988. Em 1968, a Lei nº 5.465 (posteriormente revogada pela Lei
7.423/1985) estabeleceu cotas para o acesso à educação dos filhos de agricultores. Posteriormente,
o próprio Texto Constitucional dispôs sobre percentual de cargos e empregos públicos para pessoas
com deficiência.
Entretanto, em que pese o instituto não fosse novidade no âmbito normativo brasileiro, as discussões
em torno do sistema de cotas étnico-raciais levaram o Supremo Tribunal Federal a enfrentar o tema.
O autor da ação postulava a declaração de inconstitucionalidade da medida, sob o argumento, dentre
outros, de que raça, no Brasil, não seria fator de exclusão social como nos Estados Unidos da América,
mas sim a desigualdade econômica. O STF, ao julgar improcedente o pedido, ressaltou que “justiça
social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa
distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas
vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes”. O Relator, Ministro Ricardo Lewan-
dowski, também destacou que para as sociedades contemporâneas que passaram pela experiência da
escravidão, repressão e preconceito, ensejadora de uma percepção depreciativa de raça, a igualdade
formal realça as diferenças entre as pessoas, contribuindo para a perpetuação de desigualdades e
hierarquias raciais.84
O legislador ordinário consolidou o entendimento do Supremo Tribunal Federal três meses depois
do julgamento, com a promulgação da Lei nº 12.711/2012, que dispõe sobre o sistema de cotas para
ingresso de pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas e por pessoas com deficiência nas insti-
tuições federais de educação superior.
O sistema de cotas raciais também foi objeto de controvérsia na Ação Declaratória de Constitucionali-
dade nº 41/DF.85 O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil questionava a constituciona-
lidade da Lei nº 12.990/2014, que reserva às pessoas negras o percentual de 20% das vagas oferecidas
nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da adminis-
tração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades
de economia mista controladas pela União.
Nesta ação, o Supremo Tribunal Federal mencionou de forma explícita que a política de cotas para
negros em concursos públicos tem fundamento na necessidade de o Estado brasileiro avançar em polí-
ticas de combate ao racismo estrutural e institucional ainda presentes na sociedade. O Relator, Ministro
Roberto Barroso, ressaltou a importância das políticas de reparação histórica para os negros, “que
herdaram o peso e o custo social do estigma moral, social e econômico, que foi a escravidão no Brasil”.

84
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de descumprimento de preceito fundamental n° 186-DF. Requerente: Democratas – DEM.
Tribunal Pleno. Relator Ministro Ricardo Lewandowski. j. Brasília, 26 de abril de 2012. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693. Acesso em: 25 out. 2022.
85
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação declaratória de constitucionalidade 41 Distrito Federal. Requerente: Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB. Intimados :Presidente da República; Congresso Nacional; Am. Curiae.: Instituto de Advocacia;
EDUCAFRO - Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes. Relator: Min. Roberto Barroso. Brasília, DF. Julgado em 08 de junho
de 2017. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13375729. Acesso em: 25 out. 2022.

367
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

PROTEÇÃO CONTRA
A DISCRIMINAÇÃO DE
PESSOAS LGBTQIA+

Alice Hertzog Resadori

1. INTRODUÇÃO

A proteção específica dos direitos das pessoas LGBTQIA+1 é recente e vem sendo construída no curso
da consolidação dos direitos humanos no âmbito internacional. A primeira fase de proclamação dos
direitos humanos foi pautada pela lógica do universalismo e da abstração, contando com convenções
que garantiam genericamente os direitos à vida, à saúde, à igualdade, à não discriminação, à integridade
corporal, à proteção contra a violência, ao trabalho e à educação, como a DUDH, o PIDCP, o PIDESC e
a CADH2. Os direitos sexuais e de gênero, nesse contexto, não gozavam de proteção específica e sua
fundamentação ficava vinculada a esses direitos.
A universalidade e abstração dos direitos humanos foi desafiada pela concretude e pela especificidade
das experiências de ameaça e de violação de direitos de determinados sujeitos e grupos, que pleitearam
proteção específica, em razão da discriminação desproporcional a que são submetidos3. Assim, em um
segundo momento, foram aprovadas convenções internacionais dedicadas à proteção de determi-
nados grupos específicos, como é o caso da CIEDR, da CEDM, da CDC, CIDPD, entre outras.
No caso dos direitos LGBTQIA+, os primeiros passos para a sua proteção específica começaram a ser
dados a partir do reconhecimento dos direitos das mulheres, em especial, dos seus direitos sexuais e
reprodutivos. Ainda em 1968, a Conferência sobre Direitos Humanos, realizada em Teerã4, reconheceu
que a decisão sobre o número de filhos e o espaçamento entre eles constitui um direito dos casais. Em
1974, a Conferência de População (Bucareste)5, afirmou o papel do Estado na garantia desses direitos,
incluindo-se a informação e o acesso a métodos de controle da natalidade. No ano seguinte, foi reali-
zada no México a Conferência Mundial do Ano Internacional da Mulher6, na qual foi ressaltado que o
direito à integridade física e às decisões sobre o próprio corpo envolvem também o direito à orientação
sexual. Em 1979, foi aprovada a CEDM, que incluiu várias medidas relacionadas à saúde reprodutiva,
como o direito à igualdade entre homens e mulheres nas decisões sobre reprodução e a responsa-


1
Essa sigla designa lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, intersexuais, assexuadas(os) e outras tantas identidades que não
correspondem à cis-heteronorma. Adotamos esta e não outras siglas que são comumente utilizadas, como LGBT, ou LGBTI, por exemplo,
pois se trata da designação mais atual, assumida por diversos movimentos sociais. Ainda, é a mais “completa”, carregando múltiplos
sujeitos em suas letras.
2
RIOS, Roger Raupp. Tramas e interconexões no Supremo Tribunal Federal: Antidiscriminação, gênero e sexualidade. Revista Direito e
Práxis, v. 11, n. 2, 2020, p. 1332-1357.
3
PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2010.
4
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conferência Internacional de Direitos Humanos de Teerã. 1968. Disponível em: https://gddc.
ministeriopublico.pt/sites/default/files/proclamacao_de_teerao.pdf. Acesso em: 05 maio 2021.
5
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conferência Mundial de População de Bucareste. 1974.
6
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conferência Mundial do Ano Internacional da Mulher. 1975.

368
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+

bilidade compartilhada em relação aos filhos. Em 1993, foi realizada a Conferência de Viena sobre os
Direitos Humanos7, em que foi acordado que os direitos humanos das mulheres incluem o direito a ter
controle sobre a sua sexualidade e a decidir livremente, sem discriminação nem violência.
Em 1994, foi realizada no Cairo a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento8,
quando, pela primeira vez, a saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos constituíram os
aspectos principais de um acordo central sobre população9. O Princípio 9 do Programa de Ação do
Cairo reconheceu a existência de várias formas de família. Mas diversos países apresentaram reservas
com relação a esse princípio e afirmaram que ele não implica no reconhecimento de uniões entre
pessoas do mesmo sexo10. Em 1995, aconteceu a Quarta Conferência Mundial da Mulher11, em Pequim,
que confirmou as diretrizes definidas no Cairo, reforçou a necessidade de proteção dos direitos sexuais
e reprodutivos e o reconhecimento do livre exercício da sexualidade como direito.
A sexualidade, portanto, foi abordada nesses instrumentos internacionais a partir do foco das mulheres
e da necessária proteção dos seus direitos sexuais e reprodutivos, carecendo, ainda, de um desenvol-
vimento autônomo do direito à sexualidade12-13. Da mesma forma, as discussões de gênero estiveram,
até esse momento, ligadas às questões atinentes às mulheres. No caminho para o reconhecimento
dos direitos à sexualidade e à identidade de gênero, em 2006, foi publicado o documento interna-
cional conhecido como “Princípios de Yogyakarta”14, resultado da reunião de especialistas de 25 (vinte e
cinco) países, realizada em Yogyakarta, Indonésia. Este documento tem como objetivo estabelecer um
conjunto de princípios jurídicos sobre a aplicação da legislação internacional às violações de direitos
humanos realizadas com base na orientação sexual e na identidade de gênero, deixando claro aos
Estados quais são as suas obrigações na proteção antidiscriminatória dos sujeitos LGBTQIA+.
Apesar de não serem de observância obrigatória pelos Estados, os Princípios de Yogyakarta representam
um importante passo na consolidação dos direitos LGBTQIA+ como direitos humanos, na medida em
que instituem os standards mínimos a serem seguidos quando da interpretação dos instrumentos
internacionais e regionais que vinculam os Estados. Ainda, definem como devem ser compreendidas a
orientação sexual e a identidade de gênero, retirando destas categorias qualquer carga patologizante:

COMPREENDENDO “orientação sexual” como estando referida à capacidade de cada pessoa de


experimentar uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero dife-

7
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e Programa de Ação de Viena: Conferência Mundial sobre Direitos Humanos.
1993. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1993%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20e%20Programa%20de%20Ac%C3%A7%-
C3%A3o%20adoptado%20pela%20Confer%C3%AAncia%20Mundial%20de%20Viena%20sobre%20Direitos%20Humanos%20
em%20junho%20de%201993.pdf. Acesso em: 05 maio 2021.
8
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento: Plataforma de
Cairo. 1994 Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf. Acesso em: 05 maio 2021.
9
GYSLING, J. Salud y Derechos Reproductivos: Conceptos en Construcción. In: VALDÉS, T.; BUSTOS, M. (Ed.). Sexualidad y reproducción:
hacia la construcción de derechos. CORSAPS/FLACSO. Santiago: Salesianos, 1994. p. 13-26.
10
INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO. Legislação e Jurisprudência LGBTTT: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Transgêneros. Brasília: Letras Livres, 2007.
11
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e Plataforma de Ação de Pequim. 1995. Disponível em: https://www.onumulheres.
org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf. Acesso em: 05 maio 2021.
12
BORRILLO, Daniel. Le droit des sexualités. Paris: PUF, 2009.
13
RIOS, Roger Raupp. Para um direito democrático da sexualidade. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 12, n. 26, p. 71-100, dez.
2006.
14
PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orien-
tação sexual e identidade de gênero. 2006. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf.
Acesso em: 05 maio2021.

369
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

rente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como de ter relações íntimas e sexuais
com essas pessoas;

ENTENDENDO “identidade de gênero” como estando referida à experiência interna, individual


e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corres-
ponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que
pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos,
cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar
e maneirismos. 15

Em 2017, foram publicados mais 10 (dez) princípios, conhecidos como “Yogyakarta +10”16. Reconhe-
cendo os avanços dos Estados e regiões na implementação da legislação de direitos humanos, os
especialistas ampliaram o âmbito de atenção dos Princípios de Yogyakarta, de modo a abranger, junto
da identidade de gênero e da orientação sexual, também a expressão de gênero e as características
sexuais, compreendidas como:

COMPREENDENDO “expressões de gênero” como a apresentação de cada pessoa do seu


gênero, por meio da aparência física - incluindo roupas, penteados, acessórios, cosméticos - e
maneirismos, fala, padrões de comportamento, nomes e referências pessoais, e observando
ainda que a expressão de gênero pode ou não estar em conformidade com a identidade de
gênero de uma pessoa;

COMPREENDENDO “características sexuais como as características físicas de cada pessoa rela-


cionadas ao sexo, incluindo genitália e anatomia sexual e reprodutiva, cromossomos, hormônios e
características físicas secundárias emergentes da puberdade17 18.

Um outro marco importante na trajetória do reconhecimento dos direitos LGBTQIA+ como direitos
humanos é a Resolução 17/19, da ONU19 , que requereu a realização de um estudo sobre discriminação
à população LGBTQIA+, assim como a realização de conferências para discutir o tema de forma ampla.
Pela primeira vez, as Nações Unidas aprovaram uma resolução sobre orientação sexual e identidade de
gênero, abrindo espaço para a construção do primeiro relatório oficial sobre o assunto. Neste relatório,
o Alto Comissariado para os Direitos Humanos identificou que há, em todas as regiões, um padrão
sistemático de discriminação em razão da identidade de gênero e da orientação sexual das pessoas20.

15
PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orien-
tação sexual e identidade de gênero. 2006. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf.
Acesso em: 05 maio 2021.
16
YOGYAKARTA PRINCIPLES PLUS 10. Additional principles and state obligations on the application of international human rights
law in relation to sexual orientation, gender identity, gender expression and sex characteristics to complement the yogyakarta
principles. 2017. Disponível em: http://yogyakartaprinciples.org/wp-content/uploads/2017/11/A5_yogyakartaWEB-2.pdf. Acesso em: 05
maio 2021.


17
Ibidem., tradução nossa.
18
No original: UDERSTANDING ‘gender expression’ as each person’s presentation of the person’s gender through physical appearance –
including dress, hairstyles, accessories, cosmetics – and mannerisms, speech, behavioral patterns, names and personal references, and
noting further that gender expression may or may not conform to a person’s gender identity; UNDERSTANDING ‘sex characteristics’ as
each person’s physical features relating to sex, including genitalia and other sexual and reproductive anatomy, chromosomes, hormones,
and secondary physical features emerging from puberty
19
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolución 17/19. Derechos humanos, orientación sexual e identidad de género. 2011. Disponí-
vel em: https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Resolucao1719ONU.pdf. Acesso em: 05 maio 2021.
20
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos. Nascidos Livres e Iguais: Orienta-
ção Sexual e Identidade de Gênero no Regime Internacional de Direitos Humanos. Nova Iorque; Genebra, 2012. Disponível em: https://
www.ohchr.org/Documents/Publications/BornFreeAndEqualLowRes_Portuguese.pdf. Acesso em: 05 maio 2021.

370
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+

Tal padrão envolve tanto a discriminação no emprego, na assistência de saúde e na educação, como a
criminalização e a violência contra a população LGBTQIA+.
O relatório previu, ainda, 5 (cinco) grandes recomendações aos Estados para combater essas discri-
minações21: (i) proteger as pessoas da violência homofóbica e transfóbica; (ii) prevenir a tortura e o
tratamento cruel, desumano e degradante à população LGBT em cumprimento de pena; (iii) revogar as
leis que criminalizam a homossexualidade; (iv) proibir a discriminação com base na orientação sexual
e na identidade de gênero; e (v) proteger as liberdades de expressão, de associação e de reunião pací-
fica para essa população. A partir da concretização de tais recomendações, a ONU pretende garantir a
proteção dos direitos humanos LGBTQIA+, assegurando a estes sujeitos que não sejam discriminados
em razão de sua orientação sexual e identidade de gênero.
No âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a consolidação do reconhecimento dos
direitos LGBTQIA+ tem como marco inicial a Resolução n. 2.435 da Assembleia Geral da Organização
dos Estados Americanos - AG/RES. 2435 (XXXVIII-O/08)22 , de 03 de junho de 2008. Este documento,
fruto da atuação da delegação brasileira frente à OEA, expressa a preocupação da Assembleia Geral
diante dos atos de violência e de violação de direitos humanos motivadas pela orientação sexual e pela
identidade de gênero, determina que a Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos (CAJP) inclua em
sua agenda o tema “Direitos Humanos, orientação sexual e identidade de gênero” e que o Conselho
Permanente informe à Assembleia Geral sobre o cumprimento desta resolução.
Nos anos seguintes, a Assembleia Geral avançou no tratamento do tema, tendo aprovado resoluções
anuais que instam os Estados a enfrentar a discriminação por motivo de orientação sexual e identidade
de gênero, proteger defensoras e defensores de direitos humanos e produzir dados para enfrenta-
mento das violências e criação de políticas públicas. Em 2013, foi criada, no âmbito da CIDH, a Relatoria
sobre Direitos das Pessoas LGBTI, consolidando e institucionalizando, assim, a proteção, a promoção e
o monitoramento dos direitos LGBTQIA+ na região.
Já em 2015, diante dos altos índices de violência registrados contra a população LGBTQIA+ na região,
bem como da ausência de uma resposta estatal efetiva, a CIDH publicou o relatório intitulado “Violência
contra Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo nas Américas”23, no qual analisou, de forma
pormenorizada, os dados de violência contra esta população, chamando a atenção para os altos níveis
de selvageria e crueldade que envolvem tais crimes e para o fato de que a violência motivada pela
orientação sexual e pela identidade de gênero é decorrente do preconceito manifesto na região.
Ainda, apontou as deficiências na atuação dos Estados-membros para enfrentar tais violências e reco-
mendou uma série de medidas para aprofundar a atuação estatal e garantir, efetivamente, os direitos
humanos LGBTQIA+.
Nessa trajetória de consolidação dos direitos LGBTQIA+ como direitos humanos, percebemos que o
direito à antidiscriminação é acionado para garantir, de modo específico, os direitos a essa população.
Assim, considerando que os direitos à identidade de gênero (no qual está abarcada a expressão de
gênero) e à orientação sexual (que envolve também as características sexuais) são vinculados à proi-
bição de discriminação, passamos a identificar, no próximo ponto, de que maneira os instrumentos
internacionais e regionais de direitos humanos proclamam esses direitos.

Ibidem.
21

22
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Resolução AG/RES. 2435 (XXXVIII-O/08). Direitos Humanos, orientação sexual e iden-
tidade de gênero. 2008. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/16/o/pplgbt-180.pdf. Acesso em: 21 maio 2021.
23
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Violência contra Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo nas
Américas. 2015. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/docs/pdf/violenciapessoaslgbti.pdf. Acesso em: 20 maio 2021.

371
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

Diversos critérios proibidos de discriminação vêm sendo historicamente consolidados pelos instru-
mentos de direito internacional, tanto em âmbito global, como regional. Um desses critérios proibidos
de discriminação é o sexo, que é especialmente relevante quando tratamos de sujeitos LGBTQIA+
pois foi a partir deste critério proibido que passou a ser consolidada a proteção antidiscriminatória
a essa população.

2.1.1. Carta das Nações Unidas

CAPÍTULO I
PROPÓSITOS E PRINCÍPIOS
Artigo 1º
Os propósitos das Nações unidas são:
[...]
3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econô-
mico, social, cult-ural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às
liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião24;

2.1.2. Declaração Universal dos Direitos Humanos

Artigo 2º
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração,
sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição25.

2.1.3. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

Artigo 2º
1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que
se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente
Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição.

BRASIL. Decreto nº 19841, de 22 de outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Es-
24

tatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização
Internacional das Nações Unidas. Brasília, DF: Presidência da República, 1945. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1930-1949/d19841.htm. Acesso em: 05 maio 2021.
25
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/
brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 05 maio 2021.

372
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+

Artigo 24
1. Toda criança terá direito, sem discriminação alguma por motivo de cor, sexo, língua, religião, origem
nacional ou social, situação econômica ou nascimento, às medidas de proteção que a sua condição de
menor requerer por parte de sua família, da sociedade e do Estado.
Artigo 26
Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da
Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas
proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou
qualquer outra situação26.

2.1.4. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Artigo 2º
[...]
2. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados e
exercerão em discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação27.

2.1.5. Declaração do Milênio da ONU

I – VALORES E PRINCÍPIOS
4. Estamos decididos a estabelecer uma paz justa e duradoura em todo o mundo, em conformidade
com os propósitos e princípios da Carta. Reafirmamos a nossa determinação de apoiar todos os
esforços que visam fazer respeitar a igualdade e soberania de todos os Estados, o respeito pela sua
integridade territorial e independência política; a resolução dos conflitos por meios pacíficos e em
consonância com os princípios de justiça e do direito internacional; o direito à autodeterminação dos
povos que permanecem sob domínio colonial e ocupação estrangeira; a não ingerência nos assuntos
internos dos Estados; o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais; o respeito pela
igualdade de direitos de todos, sem distinções por motivo de raça, sexo, língua ou religião; e a coope-
ração internacional para resolver os problemas internacionais de carácter económico, social, cultural
ou humanitário28.

26
BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Brasília, DF:
Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 05 maio
2021.

BRASIL. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Cultu-
27

rais. Promulgação. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/
d0591.htm. Acesso em: 05 maio 2021.
28
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Milênio. 2000. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/2000%20Declara%-
C3%A7%C3%A3o%20do%20Milenio.pdf. Acesso em 05 mai. 2021.

373
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2.1.6. Convenção n. 111, da OIT

Artigo 1º
1. Para os fins da presente convenção o termo “discriminação” compreende:
a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascen-
dência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade
ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão29;

2.1.7. Carta da OEA

PRINCÍPIOS
Artigo 3º
Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios:
[...]
l) Os Estados americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção
de raça, nacionalidade, credo ou sexo;
Artigo 45
Os Estados membros, convencidos de que o Homem somente pode alcançar a plena realização de
suas aspirações dentro de uma ordem social justa, acompanhada de desenvolvimento econômico e
de verdadeira paz, convêm em envidar os seus maiores esforços na aplicação dos seguintes princí-
pios e mecanismos:
a) Todos os seres humanos, sem distinção de raça, sexo, nacionalidade, credo ou condição social, têm
direito ao bem-estar material e a seu desenvolvimento espiritual em condições de liberdade, dignidade,
igualdade de oportunidades e segurança econômica30;

2.1.8. Convenção Americana de Direitos Humanos

CAPÍTULO I
ENUMERAÇÃO DE DEVERES
Artigo 1º
Obrigação de respeitar os direitos
1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,
sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qual-


29
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 111. 1958. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/
WCMS_235325/lang--pt/index.htm. Acesso em: 05 maio 2021.
30
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da Organização dos Estados Americanos. 1967. Disponível em: https://www.oas.
org/dil/port/tratados_A-41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm. Acesso em: 05 maio 2021.

374
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+

quer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra
condição social31.

2.1.9. Declaração Americana dos Direitos e Deveres Do Homem

Artigo II. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm os direitos e deveres consagrados nesta decla-
ração, sem distinção de raça, língua, crença, ou qualquer outra.

Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais

Artigo 1º
Interdição geral de discriminação
1. O gozo de todo e qualquer direito previsto na lei deve ser garantido sem discriminação alguma
em razão, nomeadamente, do sexo, raça, cor, língua, religião, convicções políticas ou outras, origem
nacional ou social, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento ou outra situação.
Artigo 14°
Proibição de discriminação
O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quais-
quer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras,
a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer
outra situação32.

2.1.10. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

Artigo 21
Não discriminação 1. É proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem
étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras,
pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual33.

2.1.11. Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

Artigo 2º
Toda a pessoa tem direito ao gozo dos direitos e liberdades reconhecidos e garantidos na presente
Carta, sem nenhuma distinção, nomeadamente de raça, de etnia, de cor, de sexo, de língua, de religião,
de opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna, de nasci-
mento ou de qualquer outra situação34.


31
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos. 1969. Disponível em: https://www.cidh.
oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 05 maio 2021.
32
CONSELHO DA EUROPA. Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. 1953. Disponível em:
https://www.echr.coe.int/documents/convention_por.pdf. Acesso em: 05 maio 2021.
33
UNIÃO EUROPEIA. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 2000. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/char-
ter/pdf/text_pt.pdf. Acesso em: 05 maio 2021.
34
ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA. Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. 1981. Disponível em: http://www.dhnet.
org.br/direitos/sip/africa/banjul.htm. Acesso em: 05 maio 2021.

375
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3. ABRANGÊNCIA DO CRITÉRIO PROIBIDO DE


DISCRIMINAÇÃO “SEXO”: PROTEÇÃO ANTIDISCRIMINATÓRIA
DA IDENTIDADE DE GÊNERO E DA ORIENTAÇÃO SEXUAL

A proibição de discriminação por motivo de sexo, inicialmente prevista para proteger as mulheres da
discriminação, vem sendo ampliada por meio de lutas por reconhecimento, a fim de abarcar também a
proibição de discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero35. Compreendendo que
a discriminação sofrida por homossexuais se dá pela combinação dos sexos das pessoas envolvidas –
homem se relacionando com homem ou mulher se relacionando com mulher – foi possível alargar a
compreensão de discriminação por motivo de sexo para proibir a discriminação por orientação sexual,
já que esta, ao fim e ao cabo, também é decorrente do fator sexo36.
Esse foi o entendimento do Comitê de Direitos Humanos da ONU, ao analisar o paradigmático
caso Toonem vs. Australia37, que discutia a criminalização de atos sexuais consensuais entre adultos
do mesmo sexo pelo código penal da Tasmânia. O Comitê entendeu que tal criminalização violava o
PIDCP, na medida em que discriminava os sujeitos em razão da orientação sexual. Para o Comitê, “[...]
a referência a ‘sexo’ nos artigos 2, parágrafo 1 e 26 deve ser considerada como incluindo orientação
sexual. 38” 39. Ainda, ressaltou que a proibição de discriminação em razão da orientação sexual também
pode ser enquadrada na expressão “outra situação”, prevista no art. 26 do referido instrumento. A partir
desse caso, o Comitê de Direitos Humanos da ONU consolidou a posição de que leis que criminalizam
ou punem relações sexuais privadas, adultas e consensuais entre pessoas do mesmo sexo, violam o
direito à não discriminação.
Da mesma forma, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais entendeu que a proibição à
discriminação em razão da orientação sexual está consolidada na expressão “outra situação”, constante
do art. 2o do Pacto. Deste modo, afirmou no Comentário Geral n. 2040 que a orientação sexual de uma
pessoa não pode configurar um obstáculo para a realização de direitos nele previstos. Ainda, salientou
que a identidade de gênero também está alcançada pela cláusula de proibição de discriminação.
Em âmbito regional, a Corte Europeia de Direitos Humanos também se posicionou neste sentido no
caso Dungeon v. Reino Unido41, que discutiu a criminalização na Irlanda do Norte, e nos casos Gl e AV

35
ÁVILA, Ana Paula Oliveira; RIOS, Roger Raupp. Mutação constitucional e proibição de discriminação por motivo de sexo. Revista Direito
e Práxis, v. 7, n. 1, 2016. p. 21-47.
36
RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação, sexo, sexualidade e gênero: A compreensão da proibição constitucional de discrimi-
nação por motivo de sexo. In: COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre. O triunfo do corpo: polêmicas contemporâneas.
Petrópolis: Vozes, 2012. p. 85-118.
37
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Toonem v. Australia: Communication No. 488/1992, U.N. Doc CCPR/C/50/D/488/1992. 1994.
Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/undocs/html/vws488.htm. Acesso em: 29 jul. 2021, tradução nossa.
38
Ibidem.
39
No original: [...] the reference to “sex” in articles 2, paragraph 1, and 26 is to be taken as including sexual orientation.
40
COMITÊ DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS. Comentário Geral n. 20: Não Discriminação nos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais. 2009. Disponível em: https://acnudh.org/wp-content/uploads/2011/06/Compilation-of-HR-instruments-and-general-
-comments-2009-PDHJTimor-Leste-portugues.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.


41
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Dungeon v. United Kingdom: Judgment of 22 October 1981: Application No. 7525/76.
Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-57473&version=meter+at+null&module=meter-. Acesso em: 25 out. 2022.

376
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+

v. Áustria42 , SL v. Áustria43, Woditschka e Wifling v. Áustria44 , Wolfmeyer v. Áustria45 e Ladner v. Áustria46


que tratavam sobre a criminalização de condutas homossexuais na Áustria. Em todos esses casos, a
Corte decidiu que a criminalização de relações homossexuais configura discriminação em razão da
orientação sexual, que afronta o art. 14 da Convenção Europeia.
Para além do tema da criminalização das condutas homossexuais, a proibição à discriminação em razão
da orientação sexual foi reconhecida pela Corte Europeia no caso Eweida e outros v. Reino Unido47, que
tratou sobre os limites da liberdade religiosa diante do direito à livre orientação sexual. Nesse caso, dois
demandantes reclamaram especificamente das sanções aplicadas contra eles por seus empregadores,
como resultado de suas preocupações com a realização de serviços que consideravam tolerar a união
homossexual (para eles pecado), como a celebração de casamentos entre casais do mesmo sexo e o
aconselhamento a esses casais. A Corte entendeu que não houve discriminação por motivo de religião
a esses demandantes pois a ação dos seus empregadores visava a assegurar a implementação da polí-
tica de prestação dos serviços sem discriminação, inclusive no que tange à orientação sexual.
A Corte Europeia também se manifestou pela proteção antidiscriminatória em razão da orientação
sexual em casos que versam sobre casamento homossexual (caso Schalk e Kopf v. Austria48), sobre o
desligamento de homossexual das forças aéreas (caso Smith e Grady v. Reino Unido49) e sobre a proi-
bição do pai de ver sua filha, em razão de sua orientação sexual (caso Salgueiro da Silva v. Portugal50).
Em todos eles, a Corte entendeu que o art. 14 da CPDHLF proíbe a discriminação por motivo de
orientação sexual.

42
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Gl e AV v. Austria: Judgment of 22 November 2001: Applications Nos 39392/98
and 39829/98. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/pdf/?library=ECHR&id=003-673810-681021&filena-
me=003-673810-681021.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
43
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case SL v. Austria: Judgment of 9 January 2003: Application No. 45330/99. Disponível em:
http://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/docx/?library=ECHR&id=001-60877&filename=CASE%20OF%20S.L.%20v.%20AUSTRIA.do-
cx&logEvent=False. Acesso em: 25 out. 2022.
44
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Woditschka and Wifling v. Austria: Judgment of 21 October 2004: Application Nos.
69756/01 and 6306/02. Disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/pdf/?library=ECHR&id=001-67150&filename=001-67150.
pdf&TID=zfahqmilcp. Acesso: 25 out. 2022.
45
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Wolfmeyer v. Austria: Judgment of 26 May 2005: Application No. 5263/03. Disponível
em: http://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/pdf/?library=ECHR&id=001-67150&filename=001-67150.pdf&TID=zfahqmilcp. Acesso: 25
out. 2022.
46
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Ladner v. Austria: Judgment of 3 February 2005: Application No. 18297/03. Disponí-
vel em: https://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/pdf/?library=ECHR&id=001-68158&filename=001-68158.pdf&TID=ihgdqbxnfi. Acesso
em: 25 out. 2022.


47
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Eweida and others v. United Kingdom: Judgment of 15 January 2013: Applications Nos.
48420/10, 59842/10, 51671/10 and 36516/10. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/fre#%7B%22display%22:[2],%22itemid%22:[%-
22002-7391%22]%7D. Acesso em: 25 out. 2022.
48
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Schalk and Kopf v. Austria: Judgment of 24 June 2010: Application No. 30141/04. Dispo-
nível em: https://hudoc.echr.coe.int/fre#%7B%22itemid%22:[%22002-912%22]%7D. Acesso em: 25 out. 2022.
49
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Smith and Grady v. United Kingdom: Judgment of 27 September 1999: Applications
Nos. 33985/96 and 33986/96. Disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/app/conversion/docx/?library=ECHR&id=001-59023&filename=-
CASE%20OF%20SMITH%20AND%20GRADY%20v.%20THE%20UNITED%20KINGDOM%20. Acesso em: 25 out. 2022.
50
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Salgueiro da Silva Mouta v. Portugal: Judgment of 21 December 1999: Application no.
33290/96. Disponível em: https://www.globalhealthrights.org/wp-content/uploads/2015/02/SALGUEIRO-DA-SILVA-MOUTA-v.-PORTU-
GAL.pdf Acesso em: 25 out. 2022.

377
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Nesse mesmo sentido têm sido as decisões no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos51. A Corte Interamericana de Direitos Humanos inaugurou a apreciação de demandas relativas
à população LGBTQIA+ com o caso “Atala e filhas v. Chile”52 , em 2012, que versou sobre o tratamento
dado pelo Estado Chileno contra a juíza Atala Riffo no processo judicial de guarda das suas filhas, em
razão da sua orientação sexual. No caso, a Corte definiu que “[...] a orientação sexual e a identidade de
gênero das pessoas são categorias protegidas pela Convenção. Por isso, está proscrita pela Convenção
qualquer norma, ato ou prática discriminatória baseada na orientação sexual da pessoa.” 53 54.
O segundo caso envolvendo demandas LGBTQIA+ submetido à Corte é o Duque v. Colômbia55. Duque
teve negada a pensão por morte de seu companheiro, em razão de sua orientação sexual. Com esta
negativa, o Estado colombiano também inviabilizou seu acesso aos serviços de saúde necessários para
o tratamento do HIV, considerando que ele dependia economicamente de seu companheiro para o
custeio dos medicamentos que utilizava56. A Corte frisou que a CADH proíbe a discriminação em geral
e que, portanto, a discriminação motivada pela orientação sexual viola este instrumento.
A Corte analisou ainda o caso Flor Freire v. Equador57, que tratou sobre a baixa do serviço militar em
razão de uma presumida falta disciplinar ligada à orientação sexual. Novamente, a Corte reconheceu
que a discriminação em razão da orientação sexual viola a CADH. Ainda, avançou ao dizer que tal discri-
minação “[...] pode ser fundamentada em uma orientação sexual real ou percebida. 58”. Isso significa
que uma pessoa pode ser discriminada em razão da percepção que outras pessoas tenham sobre ela,
independente se essa percepção corresponde ou não à realidade. Então, pode haver discriminação
baseada na orientação sexual sem que a pessoa discriminada se autoidentifique como homossexual.
O que importa, nesses casos, é que a discriminação tenha se dado por motivo de orientação sexual.
Em 2017, a Corte IDH emitiu a Opinião Consultiva (OC) 24-1759, em razão de solicitação formulada pela
Costa Rica. Este Estado requereu que a Corte IDH se manifestasse sobre a interpretação da CADH
no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos patrimoniais decorrentes da união de casais do
mesmo sexo e ao reconhecimento da identidade de gênero, concretizado nas retificações de nome
e sexo no registro civil. A Corte reforçou que a lista de critérios proibidos de discriminação prevista na
Convenção Americana não é taxativa, mas enunciativa. Dessa forma, “deixa os critérios abertos com a
inclusão do termo “outra condição social” para incorporar outras categorias que não foram explicita-
mente indicadas, mas que possuem uma entidade assimilável”60, como é o caso da orientação sexual


51
Sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a discriminação contra a população LGBTQIA+, ver RIOS, Roger Raupp; RESA-
DORI, Alice Hertzog; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; SCHAFER, Gilberto. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a discriminação
contra pessoas LGBTTI: panorama, potencialidade e limites. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, v. 08, n. 2, 2017, p. 545-1576, 2017.
52
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Atala Riffo y niñas Vs. Chile: Sentencia de 24 de febrero de 2012: Serie C
No. 239. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_esp.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
53
Ibidem., p. 34.
54
No original: [...] la orientación sexual y la identidad de género de las personas son categorías protegidas por la Convención. Por ello está
proscrita por la Convención cualquier norma, acto o práctica discriminatoria basada en la orientación sexual de la persona.
55
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Duque Vs. Colombia: Sentencia de 26 de febrero de 2016: Serie C No. 310.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_310_esp.pdf Acesso em: 25 out. 2022.
56
RIOS; RESADORI; LEIVAS; SCHAFER, op. cit.
57
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Flor Freire Vs. Ecuador. Fondo: Sentencia de 31 de agosto de 2016: Serie C
No. 315. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_315_esp.pdf Acesso em: 25 out. 2022.
58
Ibidem.
59
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva 24/17: Costa Rica. 2017. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
60
Ibidem., p. 33.

378
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+

e da identidade de gênero. Assim, concluiu que a proteção dos direitos patrimoniais que derivam do
vínculo entre pessoas do mesmo sexo é protegida pela Convenção Americana, em virtude dos direitos
à proteção à vida privada e familiar, bem como aos direitos de igualdade e não discriminação.
Em março de 2020, a Corte decidiu sobre o caso de Azul Rojas Marín v. Peru61, à época dos fatos
identificado como homem gay, hoje como mulher trans, que foi detida de forma ilegal e arbitrária e
submetida à violência sexual, tortura e ofensas relacionadas à orientação sexual. Além disso, durante as
investigações da denúncia de tais violências, o Estado desqualificou a vítima e desacreditou sua palavra.
Ao apreciar este caso, a Corte afirmou que a violência contra a população LGBTQIA+ no Peru é uma
questão estrutural e, como tal, deve ser enfrentada. Ainda, reconheceu que o Estado é responsável pela
tortura e pela discriminação sofridas pela peticionária, em razão da sua orientação sexual, devendo,
portanto, adotar uma série de medidas para que situações como esta não ocorram novamente.
Dentre as obrigações dirigidas ao Estado, estão as de reparar a vítima, fornecer-lhe tratamento médico,
aplicar sanções aos responsáveis pela tortura e assumir, em um ato público, mediante a presença do
alto escalão do Estado, bem como da vítima, a responsabilidade internacional com relação aos fatos
deste caso. Ainda, o Estado peruano deve, em um prazo de 2 (dois) anos, adotar um protocolo de inves-
tigação e de administração da justiça nos casos que envolvem pessoas LGBTQIA+ vítimas de violência,
a capacitação dos membros das polícias e dos sistema de justiça sobre identidade de gênero e orien-
tação sexual, a implementação, em 1 (um) ano, de um sistema de coleta de dados sobre violência contra
a população LGBTQIA+ e a eliminação do indicador “erradicação de homossexuais e travestis” dos
planos de segurança do Peru. Até o momento, o Estado não executou totalmente a sentença da Corte.
Por fim, recentemente, em 22 de fevereiro de 2022, a Corte julgou o caso de Sandra Cecilia Pavez
Pavez v. Chile.62 A peticionária, professora de ensino religioso há mais de 25 anos, teve seu certificado
de idoneidade, requisito para dar aulas de religião no país, revogado em razão da sua orientação sexual,
ficando impossibilitada de exercer sua profissão. A decisão de revogação do certificado foi confirmada
pelo Poder Judiciário, que não reconheceu a ilegalidade ou arbitrariedade deste ato, decisão que
foi confirmada pela Corte Suprema de Justiça do Chile, em 2008. A Corte entendeu que o Estado é
responsável pelo tratamento discriminatório relacionado à orientação sexual da demandante, tendo
violado os direitos à igualdade, à antidiscriminação, à liberdade pessoal, à vida privada, ao trabalho e à
proteção judicial.
No Brasil, a proibição de discriminação em razão da orientação sexual vem sendo afirmada pelo STF em
diversas oportunidades. Assim foi o posicionamento da corte na Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) n. 13263, em que reconheceu a união estável entre casais do mesmo sexo, consi-
derando a homofobia uma forma de discriminação por motivo de sexo64, no Mandado de Injunção (MI)
4.73365 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 2666, em que o STF reconheceu


61
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Azul Rojas Marín Vs. Peru: Sentencia de 12 de marzo de 2020: Serie C No.
402. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_402_esp.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
62
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Pavez Pavez Vs. Chile: Sentencia de 22 de febrero de 2022: Serie C No. 449.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_449_esp.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
63
BRASIL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132. Brasília, DF: Diário de Justiça Eletrônico, 2011. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633. Acesso em: 25 out. 2022.
64
RIOS, Roger Raupp. Tramas e interconexões no Supremo Tribunal Federal: Antidiscriminação, gênero e sexualidade. Revista Direito e
Práxis, v. 11, n. 2, p. 1332-1357, 2020.
65
BBRASIL. Mandado de Injunção n. 4733. Brasília, DF: Diário de Justiça Eletrônico, 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginador-
pub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753957476. Acesso em: 25 out. 2022.
66
BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26. Brasília, DF: Diário de Justiça Eletrônico, 2020. Disponível em: https://
redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240. Acesso em: 25 out. 2022.

379
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

a homotransfobia como uma forma de discriminação, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)


n. 554367, em que o Supremo declarou a inconstitucionalidade de dispositivos legais que vedam a
doação de sangue por homens que fizeram sexo com homens nos últimos 12 meses.
Assim como a orientação sexual, a identidade de gênero também vem sendo considerada como uma
das “outras condições” proibidas de discriminação ou mesmo incluída em uma compreensão ampliada
do critério “sexo”. Afinal, tal discriminação é decorrente da tida incoerência entre o gênero experimen-
tado pelo sujeito e seu sexo biológico, relacionada à adoção da cis-heteronorma como o padrão a ser
seguido. Nesse sentido é o precedente do Tribunal de Justiça Europeu (C-13/94) 68, que trata do caso
de uma transexual demitida do emprego. A Corte entendeu que a transexualidade está incluída na
proibição de discriminação por motivo de sexo porque o que produz o tratamento desigual desfavo-
rável é justamente o fato de apresentar um sexo diverso do que anteriormente lhe foi atribuído. Ainda,
ressaltou que a discriminação por motivo de sexo se relaciona menos com os caracteres físicos sexuais
e mais com o papel social desempenhado pela pessoa (gênero). É essa representação social que acaba
ensejando tratamento diferenciado a um indivíduo ou grupo69.
Com efeito, tais afirmações do Tribunal de Justiça Europeu, tomadas conjuntamente, apontam para a
percepção de que tratamentos desfavoráveis decorrentes da chamada “identidade de gênero” são hipó-
teses de discriminação por motivo de sexo. Isso porque, como demonstra a evolução da compreensão
jurídica, discriminação por motivo de sexo concretiza-se, nos dias de hoje, não só na proibição de trata-
mento desfavorável a mulheres, homossexuais e transexuais, como também a todas as hipóteses em
que “a forma de um indivíduo se perceber e ser percebido pelos outros como masculino ou feminino,
de acordo com os significados desses termos construídos pela cultura à qual pertence70”, seja fator
determinante para uma diferença de tratamento desfavorável ao indivíduo ou ao grupo. Ou seja, podem
ser incluídas no critério “sexo” não apenas a orientação sexual e a identidade de gênero, mas também
a expressão de gênero e as diferenças sexuais, tal como afirmado pelos Princípios de Yogyakarta +10.
Também no âmbito do Sistema Europeu, destaca-se a decisão de 2002, do Tribunal Europeu de Direitos
Humanos, no caso Goodwin v. Reino Unido. 71 A demandante, mulher trans, denunciou uma série de
discriminações relacionadas ao não reconhecimento legal da sua identidade de gênero após a reali-
zação da cirurgia de transgenitalização. Tais discriminações se relacionam desde a manutenção do
mesmo número de seguro nacional, o que permitiria que seus empregadores tomassem conhecimento
de que a requerente já foi contratada com um nome masculino, até situações de assédio no trabalho, à
impossibilidade de se aposentar com a idade prevista para mulheres e de casar.
Ao apreciar o caso, o Tribunal entendeu, pela primeira vez em sua história, que o não reconheci-
mento legal do gênero feminino da demandante viola o seu direito à vida privada e familiar (art. 8o da
Convenção Europeia). Ainda, ressaltou que a cirurgia de transgenitalização foi realizada pelo sistema
público de saúde, sendo, portanto, ilógico negar o registro civil conforme sua identidade de gênero.
Esta decisão contribuiu para que o Reino Unido promulgasse, em 2004, sua lei de identidade de gênero.

67
BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5543. Brasília, DF: Diário de Justiça Eletrônico, 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.
br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753608126. Acesso em: 25 out. 2022.
68
TJE. P c. S e Cornwall County Council, P.º C-13/94 [1996] Colect. I-2143, 30 de Abril de 1996. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/
legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:61997CC0273 Acesso em: 25 out. 2022.
69
RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação, sexo, sexualidade e gênero: A compreensão da proibição constitucional de discri-
minação por motivo de sexo. In: COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre. O triunfo do corpo: polêmicas contemporâneas.
Petrópolis: Vozes, 2012. p. 85-118.
70
Idem, p. 114.


71
EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case Goodwin v. the United Kingdom: Judgment of 11 July 2002: Application No. 28957/95.
Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/fre#%7B%22itemid%22:[%22001-57974%22]%7D. Acesso em: 25 out. 2022.

380
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+

No que tange ao casamento, a Corte entendeu que, embora o art. 12 da Convenção Europeia se refira
expressamente ao direito de um homem e uma mulher se casarem, não se deve compreender o
gênero a partir de critérios eminentemente biológicos. Neste sentido, considerar o gênero do registro
da demandante para fins de matrimônio, acabaria por violar a essência de seu direito de se casar. A
Corte ainda frisou que aos Estados cabe apenas determinar regras gerais, como as condições para
se compreender que uma reatribuição de gênero foi realizada, ou que casamentos anteriores serão
invalidados, não havendo nenhuma justificativa para impedir que pessoas trans possam gozar o direito
de casar sob qualquer circunstância.
No Sistema Interamericano, a OC 24/17 72 , da Corte IDH, ao se manifestar sobre os questionamentos
que envolvem o reconhecimento da identidade de gênero no que tange às retificações de nome e
sexo no registro civil, estabeleceu standards para as alterações do registro civil, que se relacionam à
compreensão de que as mudanças no registro civil para adequá-lo à identidade de gênero autoper-
cebida constitui um direito protegido pela CADH, por meio das disposições que garantem o direito
à privacidade, ao reconhecimento da personalidade jurídica e ao nome. Nesse sentido, cada um tem
direito a realizar a sua identidade de gênero de forma autônoma, cabendo ao Estado apenas reconhe-
cê-la e respeitá-la. Assim, os Estados devem regular e estabelecer os procedimentos adequados para
alteração dos registros, que, independente da forma que assumem (administrativa ou judicial), devem
ser materialmente administrativos.
Para tanto, estes procedimentos devem cumprir com os requisitos estabelecidos pela Corte IDH: a)
devem estar focados na adequação integral da identidade de gênero, o que implica a alteração em
todos os documentos não apenas no nome, mas também do sexo; b) devem estar baseados exclusiva-
mente no consentimento livre e informado do solicitante, não podendo ser exigidos requisitos como
laudos médicos e psicológicos, visto que são irrazoáveis e patologizantes; c) devem ser confidenciais,
ou seja, os documentos não devem conter as mudanças que foram realizadas, sob pena de submeter as
pessoas a situações discriminatórias; d) devem ser céleres e, na medida do possível, gratuitos; e e) não
devem ser condicionados à realização de operações cirúrgicas ou tratamentos hormonais.
Esses standards foram levados em conta pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.
4.275-DF73, ajuizada pela Procuradoria Geral da República com o objetivo de dar interpretação consti-
tucional ao art. 58 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015, de 1973), de modo a reconhecer o direito de
pessoas trans a alterarem o nome e o gênero no registro civil, independente de terem ou não realizado
a cirurgia de transgenitalização. Após quase uma década de debates, a ADI 4.275-DF foi votada e o
direito à retificação do gênero e do nome no registro civil de pessoas transgêneras – nomenclatura
utilizada pelo STF para abranger tanto pessoas trans, como travestis – foi reconhecido, independente
da realização de cirurgia de transgenitalização e de quaisquer outros tratamentos hormonais ou patolo-
gizantes, em respeito aos direitos ao nome, ao reconhecimento da personalidade jurídica, da liberdade
pessoal, da honra, da dignidade e da proibição de discriminação.
Tal alteração pode se dar administrativamente ou pela via judicial, como a pessoa preferir. Em ambos
os casos, é dispensada a apresentação de laudos de terceiros e de outras provas sobre a identidade
de gênero da requerente, bastando apenas a sua autodeclaração. Afinal, “a identidade de gênero é
manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel
de reconhecê-la, nunca de constituí-la.” 74. Meses após o julgamento da ADI 4.275-DF, o STF reprisou

72
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva 24/17: Costa Rica. 2017. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
73
BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4275. Brasília, DF: Diário de Justiça Eletrônico, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.
br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749297200 Acesso em: 25 out. 2022.


74
BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4275. Brasília, DF: Diário de Justiça Eletrônico, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.
br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749297200 Acesso em: 25 out. 2022.

381
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

o entendimento sobre o tema ao analisar o Recurso Extraordinário 670.42275, que tratou sobre um
homem trans que desejava mudar o nome e o gênero no registro civil, mais uma vez, aplicando os
standards previstos na OC 24/17.
Ainda no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o caso Vicky Hernández Castillo
v. Honduras76 é paradigmático no que tange à proteção antidiscriminatória à identidade de gênero. O
caso trata da demora na investigação do assassinato de uma mulher e ativista trans e da discriminação
no acesso à justiça, durante o golpe militar de Honduras, em junho de 2009, com possibilidade de
execução sumária, tendo em vista que o ato ocorreu durante o toque de recolher, quando apenas os
oficiais das forças de segurança podiam circular. Durante o período, há o registro de 23 mortes violentas
de pessoas da comunidade LGBTQIA+, principalmente homossexuais e pessoas trans. No dia em que
se comemora o orgulho LGBTQIA+, 28 de junho de 2021, a Corte publicou a sentença deste caso,
responsabilizando, pela primeira vez, um Estado pela morte de uma pessoa trans.
Há, neste caso, três pontos que merecem destaque. O primeiro deles trata do fato que o Estado de
Honduras reconheceu, durante a audiência pública realizada pela Corte, em 11 e 12 de novembro de
2020, sua responsabilidade pela violação dos direitos às proteções e garantias judiciais previstas nos
artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana. Contudo, não reconheceu a violação dos seus deveres
relacionados à coibição e prevenção das violências contra as mulheres, previstos na Convenção Inte-
ramericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do
Pará). Na audiência pública, ainda, penderam de esclarecimentos os atos que levaram à morte de Vicky
Hernandez, bem como as alegações de discriminação das autoridades responsáveis por levar a cabo a
investigação do caso.
O segundo ponto se refere ao fato de que, durante a audiência pública, familiares de Vicky e integrantes
da organização Red Lésbica “Cattrachas” relataram que estavam sofrendo intimidações e ameaças e
solicitaram medidas provisórias para garantia de sua proteção. Em 12 de novembro de 2020, no último
dia da audiência pública, a Corte concedeu as medidas provisórias pleiteadas, determinando ao Estado
de Honduras que tome todas as medidas necessárias para proteger os direitos à vida e à integridade
física das pessoas indicadas pelas demandantes77.

4. DESAFIOS E AVANÇOS NA PROTEÇÃO


ANTIDISCRIMINATÓRIA LGBTQIA+

Atentos ao conteúdo que vêm sendo dado ao direito antidiscriminatório e compreendendo a neces-
sidade de explicitar a proibição de discriminação para além do motivo de sexo ou de “qualquer outra
situação”, Estados americanos elaboraram a Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discrimi-
nação e Intolerância78, o primeiro documento internacional juridicamente vinculante que proíbe expres-
samente a discriminação baseada em orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero:

75
BRASIL. Recurso Extraordinário nº 670.422 - RS. Brasília, DF: Diário da Justiça Eletrônico, 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7302788. Acesso em: 25 out. 2022
76
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Vicky Hernández Vs. Honduras: Sentencia de 26 de marzo de 2021: Serie
C No. 422. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_38_2021_port.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.


77
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Vicky Hernández Vs. Honduras: Resolución de 12 de noviembre de 2020.
2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_38_2021_port.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
78
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância.
2020. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/tratados_multilaterales_interamericanos_A-69_discriminacion_intolerancia.asp. Aces-
so em: 05 maio 2021.

382
PROTEÇÃO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBTQIA+

Artigo 1

Para os efeitos desta Convenção:

Discriminação é qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida


pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou
exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais
consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes.

A discriminação pode basear-se em nacionalidade, idade, sexo, orientação sexual, identidade e


expressão de gênero, idioma, religião, identidade cultural, opinião política ou de outra natureza,
origem social, posição socioeconômica, nível educacional, condição de migrante, refugiado,
repatriado, apátrida ou deslocado interno, deficiência, característica genética, estado de saúde
física ou mental, inclusive infectocontagioso, e condição psíquica incapacitante, ou qualquer
outra condição. 79

A recente convenção foi aprovada em 2013, tendo sido firmada por 12 (doze) países, inclusive o Brasil.
Contudo, entrou em vigor apenas em fevereiro de 2020, depois de ter alcançado apenas duas ratifica-
ções: do Uruguai, em 2018, e do México, em 2020. A baixa adesão a essa convenção reflete os desafios
enfrentados na região no que tange ao avanço das pautas LGBTQIA, que passam, atualmente, pelo
enfrentamento à chamada “ideologia de gênero”, movimento que ganhou a esfera pública e que
congrega um vasto repertório de ações de combate e de silenciamento à produção política, social e
subjetiva das diferenças.80 81
Apesar dos avanços na consolidação dos direitos LGBTQIA+ como direitos humanos e no reconheci-
mento de que a proibição de discriminação, prevista em tratados e convenções internacionais e regio-
nais, abrange a orientação sexual, a identidade de gênero e, mais recentemente, também a expressão
de gênero e as diferenças sexuais, ainda há um longo caminho para a efetivação destes direitos. As
pessoas LGBTQIA+ ou percebidas como tal ainda estão sujeitas à violência e à discriminação porque
seus corpos ou sua orientação sexual diferem da cis-heteronorma, tomada por nossas sociedades
como a medida de “normalidade” dos sujeitos.
Com o intuito de apontar algumas vias possíveis para proteção integral dos direitos humanos
LGBTQIA+, nos valemos do importante relatório “Avances y Desafíos hacia el reconocimiento de los
derechos de las personas LGBTI en las Américas”82 , publicado em 2018 pela CIDH. Neste relatório, a
CIDH recomenda aos Estados que implementem políticas públicas para prevenir, investigar, produzir
dados, sancionar e reparar as violações contra a população LGBTQIA+, que reconheçam o direito à
autoidentificação no que tange à identidade de gênero e à orientação sexual, que garantam espaços
de participação política das pessoas LGBTQIA+, que promovam ações para prevenir a discriminação
nas áreas da saúde, educação, segurança e justiça, que revoguem leis criminalizantes e discriminatórias,
que promulguem leis de identidade de gênero, que adotem medidas para reduzir a pobreza e a desi-

79
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância.
2020. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/tratados_multilaterales_interamericanos_A-69_discriminacion_intolerancia.asp. Aces-
so em: 05 maio 2021.
80
MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Socie-
dade e Estado, Brasília, n. 32, p. 725-748, 2017.


81
RIOS, Roger Raupp; RESADORI, Alice Hertzog. Gênero e seus/suas detratores/as: “ideologia de gênero” e violações de Direitos Humanos.
Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 18, p. 622-636, 2018.
82
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Avances y Desafios hacia el reconocimiento de los derechos de las perso-
nas LGBTI en las Americas. 2018. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/LGBTI-ReconocimientoDerechos2019.pdf.
Acesso em: 09 maio 2021.

383
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

gualdade social relacionadas à discriminação que sofre essa população e que não reproduzam, mas
combatam discursos de ódio contra pessoas LGBTQIA+.

384
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

DIREITO À LIBERDADE
DE PENSAMENTO,
CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

Fernanda Frizzo Bragato

Roger Raupp Rios

Pedro Lucas Faller

1. INTRODUÇÃO

Conteúdos religiosos, por definição, emanam de revelação divina, diante dos quais os fiéis devem
obediência;1 para os crentes, a fé é, ao fim e ao cabo, a luz que tudo deve iluminar2 e, mesmo no terreno
das ciências que se debruçam sobre as realidades terrestres, religiosos tem na fé o teste final para a
correção do método científico. 3 Argumentos religiosos, ao veicular certos conteúdos e defender
determinadas posições, fundam-se na observância daquilo que se acredita revelado pela divindade,
não na razão humana que busca apreender e compreender a realidade, de modo esforçado, metódico,
humilde e aberto à dúvida e à contestação.
O DIDH protege o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião (que inclui a liberdade de
ter ou não crenças), de forma abrangente e ampla; engloba a liberdade de pensamento sobre todas as
matérias, convicção pessoal e o compromisso com a religião ou crença, seja manifestada individual-
mente ou em coletivamente. Note-se que a liberdade de pensamento e a liberdade de consciência são
protegidas igualmente com a liberdade de religião e crença.4
Para a efetiva proteção dos direitos humanos, convicções religiosas colocam desafios ao convívio
democrático e plural quando pretendem ser abrangentes, fundamentalistas ou integristas e proseli-
tistas. 5 Isto porque (1) ao requerem que seus adeptos sigam sua doutrina em todas as dimensões de
suas vidas, sobrepondo seus deveres morais religiosos àqueles decorrentes da participação de seus
seguidores na comunidade política nacional, (2) ao pretenderem estabelecer conteúdos indiscutíveis,
vinculadores de todas as dimensões da vida de seus fiéis e (3) ao fazerem da ampliação de seu grupo de
seguidores um objetivo fundamental, as religiões podem entrar em rota de colisão com o pluralismo e


1
Constituição “Dei Verbum”. In: “Compêndio do Vaticano II: Constituições, Decretos, Declarações.” Petrópolis: Editora Vozes, 1984.
2
Constituição “Gaudium Et Spes”. In: “Compêndio do Vaticano II: Constituições, Decretos, Declarações.” Petrópolis: Editora Vozes, 1984.
3
Constituição “Gaudium Et Spes”. In: “Compêndio do Vaticano II: Constituições, Decretos, Declarações.” Petrópolis: Editora Vozes, 1984.
4
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
CCPR/C/21/Rev.1/Add.4. 30 Julho 1993, par. 1. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.as-
px?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022
5
LOPES, José Reinaldo de Lima; VILHENA, Oscar. “Religiões e Direitos Humanos”. Jornal O Estado de São Paulo, 22 abril 2013. Disponível
em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,religiao-e-direitos-humanos-imp-,1023910. Acesso em: 05 set. 2014

385
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

a diversidade, cujo pressuposto é precisamente o convívio simultâneo e não-excludente de diferentes


visões de mundo, decorrentes ou não de convicções religiosas.
Não raro, as convicções religiosas de alguns ultrapassam o âmbito individual ou da comunidade compar-
tilhada de crenças e adentram o âmbito privado de outros indivíduos e até mesmo a esfera pública,
implicando restrições às liberdades dos demais. Diante disso, o DIDH reconhece a liberdade de religião,
ao mesmo tempo que aponta para a existência de limites ao seu exercício, baseado na importância do
pluralismo e da diversidade, no perigo de intervenção e manipulação estatal no âmbito religioso e na
defesa de indivíduos e de grupos diante da tentação de maiorias que almejem impor suas convicções
religiosas sobre os demais por meio do processo político.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos Internacionais

2.1.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos

Artigo 18. Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito
inclui a liberdade de mudar de religião ou de crença, bem como a liberdade de manifestar essa reli-
gião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos, isolada ou coletivamente, em público
ou em particular.

2.1.2. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem

Art. III - Toda pessoa tem o direito de professar livremente uma crença religiosa e de manifestá-la e
praticá-la pública e particularmente.

2.1.3. Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos

Artigo 18
1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito impli-
cará na liberdade de ter ou adotar uma religião ou crença de sua escolha e a liberdade de professar sua
religião ou crença, isolada ou coletivamente, tanto em público como em particular, por meio do culto,
da celebração de ritos, de práticas e do ensino.
2. Ninguém será submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de
adotar uma religião ou crença de sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas às limitações previstas em
lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os
direitos fundamentais e as liberdades das demais pessoas.
4. Os Estados-partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for
o caso, dos tutores legais, de assegurar às crianças a educação religiosa e moral que esteja de acordo
com suas próprias convicções.
Artigo 20

386
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

1. Será proibida por lei qualquer propaganda em favor da guerra.


2. Será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento
à discriminação, à hostilidade ou a violência.
Artigo 27
Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas
minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo,
sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.

2.1.4. Convenção Americana Sobre Direitos Humanos

Artigo 12
1. Toda a pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito inclui a liberdade de
conservar ou de mudar de religião ou de crença, bem como a liberdade de professar e divulgar a sua
religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto em público como em particular.
2. Ninguém será submetido a medidas restritivas que possam limitar a sua liberdade de manter ou de
mudar de religião ou de crença.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e a própria crença está sujeita unicamente às limita-
ções previstas em lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral
públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.
4. Os pais ou os tutores, conforme o caso, têm direito a que os seus filhos ou tutelados recebam a
educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.
Art. 13. Liberdade de pensamento e de expressão
5. A lei deve proibir toda a propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional,
racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.

2.1.5. Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação


com base na religião ou crença, 19816

Artigo 6. De acordo com o artigo 1 desta Declaração e sem prejuízo do disposto no artigo 1, parágrafo
3, o direito à liberdade de pensamento, consciência, religião ou crença incluirá, em particular, as
seguintes liberdades:
a) Praticar o culto ou realizar reuniões relacionadas com religião ou convicções, e fundar e manter locais
para esses fins;
b) A de fundar e manter idôneas instituições caritativas ou humanitárias;
c) A de fabricar, adquirir e utilizar em quantidade suficiente os artigos e materiais necessários aos ritos
ou costumes de uma religião ou convicção;
d) Escrever, publicar e divulgar publicações relevantes nestes domínios;

ONU. Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convic-
6

ções, [s. l.]. 1981. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1981Declara%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20a%20Elimina%C3%A7%-


C3%A3o%20de%20Todas%20as%20Formas%20de%20Intoler%C3%A2ncia%20e%20Discrimina%C3%A7%C3%A3o%20Basea-
das%20em%20Religi%C3%A3o%20ou%20Cren%C3%A7a.pdf. Acesso em: 20 dez. 2021.

387
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

e) O de ensinar religião ou convicções em locais apropriados para tais fins;


f) Solicitar e receber contribuições voluntárias financeiras e outras de particulares e instituições;
g) A de formar, nomear, eleger e designar por sucessão os dirigentes correspondentes de acordo com
as necessidades e normas de qualquer religião ou convicção;
h) O direito de observar dias de descanso e de celebrar festas e cerimônias segundo os preceitos de
uma religião ou convicção;
i) Estabelecer e manter comunicações com indivíduos e comunidades sobre assuntos de religião ou
crença nos níveis nacional e internacional.

2.2. Normativa interna brasileira

2.2.1. Constituição Federal de 1988

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-
rança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares
de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou
política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir
prestação alternativa, fixada em lei;
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
Art. 143, § 1º. “Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em
tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decor-
rente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter
essencialmente militar”.

3. ALCANCE DO DIREITO À LIBERDADE


DE RELIGIÃO E DE CRENÇA

O direito à liberdade de religião ou crença inclui o direito de adotar uma religião de escolha do indi-
víduo, de mudar de religião, de se manter fiel a uma religião e de não seguir nenhuma. Esses aspectos
do direito à liberdade de religião ou crença têm caráter absoluto e não estão sujeitos a qualquer limi-

388
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

tação. 7 A liberdade de “ter ou adotar” uma religião ou crença implica necessariamente a liberdade de
escolhê-la, de substituí-la por outra ou de adotar opiniões ateístas, bem como o direito de manter a
própria religião ou crença.8
O artigo 18, 2, do PIDCP proíbe a coação que prejudique o direito de ter ou adotar uma religião ou
crença, incluindo o uso de suas crenças religiosas e congregações, à renúncia a ela ou a conversão.
Políticas ou práticas que restringem o acesso à educação, assistência médica, emprego ou os direitos
garantidos pelo artigo 25 e outras disposições do PIDCP por motivos religiosos são inconsistentes com
a disposição do art. 18, 2 do PIDCP. A mesma proteção é usufruída pelos detentores de todas as crenças
de natureza não religiosa.9
Diferentes Relatores Especiais da ONU sobre liberdade religiosa manifestaram-se sobre a incom-
patibilidade de leis que proíbem conversões com o disposto no artigo 18, 1, do PIDCP, por implicar
interferência na liberdade de pensamento, consciência e religião, também chamado forum internum.
A escolha da religião ou crença faz parte do forum internum, que não permite limitações, de modo
que uma proibição geral de conversão por um Estado necessariamente entra em conflito com as
normas internacionais aplicáveis.10 Por outro lado, conversões forçadas contrariam o disposto no art.
18, 1, do PIDCP. No relatório gerado após a visita ao Sri Lanka, o Relator Especial para liberdade religiosa
afirmou que os indivíduos devem ser protegidos contra atos destinados a conversões forçadas e que
sua liberdade de adotar uma religião de sua escolha ou mudar de religião deve ser salvaguardada, de
acordo com o Comentário Geral nº 22, do CDH. Isso inclui o direito de uma pessoa necessitada decidir
se converter a outra religião mesmo depois de ter recebido presentes e incentivos que melhoraram
significativamente sua vida.11
Nesse sentido, o caso Kang v. República da Coreia, o CDH considerou que o “sistema de conversão de
ideologias” bem como o subsequente “sistema de juramento de cumprimento da lei” violavam o artigo
18, 1, do PIDCP, em razão da natureza coercitiva desse sistema. O Comitê considerou que o “juramento
de obediência à lei” era aplicado de forma discriminatória com o objetivo de alterar a opinião política
de um preso, oferecendo incentivos de tratamento preferencial dentro da prisão e melhores possibili-
dades de liberdade condicional.12

7
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
(CCPR/C/21/Rev.1/Add.4). 30 Julho 1993, par. 5. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.
aspx?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022
8
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
(CCPR/C/21/Rev.1/Add.4). 30 Julho 1993, par. 5. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.
aspx?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022
9
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Resumo do Relator sobre Liberdade de Religião ou Crença Trechos dos Relatórios de 1986 a
2011 do Relator Especial sobre Liberdade de Religião ou Crença Organizado por Tópicos da Estrutura de Comunicações. Disponí-
vel em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Religion/RapporteursDigestFreedomReligionBelief.pdf (em inglês). Acesso em: 08 fev.
2022.
10
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Resumo do Relator sobre Liberdade de Religião ou Crença Trechos dos Relatórios de 1986 a
2011 do Relator Especial sobre Liberdade de Religião ou Crença Organizado por Tópicos da Estrutura de Comunicações. Disponí-
vel em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Religion/RapporteursDigestFreedomReligionBelief.pdf (em inglês). Acesso em: 08 fev.
2022.
11
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Relatório apresentado pela Relatora Especial sobre liberdade de religião ou crença, Asma
Jahangir. Missão Adenda ao Sri Lanka. (E/CN.4/2006/5/Add.3), 12 Dezembro 2005. Disponível em: https://undocs.org/sp/E/CN.4/2006/5/
Add.3 (em espanhol)
12
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Kang v. República da Coréia, adotada em 15 de julho de 2003 (CCPR/C/78/D/878/1999), par. 7.2.
Em: Resumo do Relator sobre Liberdade de Religião ou Crença Trechos dos Relatórios de 1986 a 2011 do Relator Especial sobre
Liberdade de Religião ou Crença Organizado por Tópicos da Estrutura de Comunicações. Disponível em: https://www.ohchr.org/
Documents/Issues/Religion/RapporteursDigestFreedomReligionBelief.pdf (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022.

389
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Ainda, a liberdade de religião é um direito individual, mas possui um aspecto coletivo. Significa o direito
de manter crenças espirituais e viver de acordo com elas, seja em público ou privadamente, sozinho
ou em comunidade. Deste modo, os lugares e as formas de culto são fundamentais para o exercício
da liberdade religiosa. Segundo o CDH, a liberdade de manifestar religião ou crença mediante o culto,
a celebração de ritos, as práticas e o ensino engloba uma ampla gama de atos. Constituem o conceito
de culto os atos rituais e cerimoniais onde se expressam a crença e as várias práticas integrantes de
tais atos, incluindo a construção de locais de culto, o uso de fórmulas e objetos rituais, a exibição de
símbolos, a observância de feriados, dias de descanso, restrições alimentares, uso de roupas distintas
ou véus/turbantes, participação em rituais associados a certos estágios de vida e uso de uma língua
em particular. Além disso, a prática e o ensino de religião ou crença incluem atos que são integrantes
da conduta dos grupos religiosos em seus assuntos básicos, tais como: a liberdade de escolher os seus
líderes religiosos, sacerdotes e professores, a liberdade de estabelecer seminários ou escolas religiosas
e a liberdade para preparar e distribuir textos ou publicações religiosas. 13
O Relator Especial para liberdade religiosa considera que os locais de culto são um elemento essencial
da manifestação do direito à liberdade de religião ou crença na medida em que a grande maioria das
comunidades religiosas ou de crença precisam destes locais para que seus membros possam manifestar
sua fé. Por locais de culto, o Relator considera os diversos tipos de edifícios ou imóveis que tenham uma
significação mais do que material para a comunidade religiosa que a ele está vinculada, como cemité-
rios, mosteiros ou sedes comunitárias. Ataques ou outras formas de restrição a locais de culto ou outros
locais e santuários religiosos violam, em muitos casos, o direito não apenas de um único indivíduo, mas
o direito de um grupo de indivíduos que formam a comunidade que está ligada ao local em questão. 14
Em sua visita à Índia, o Relator Especial notou que os locais de culto devem ser utilizados exclusivamente
para fins religiosos e não políticos. Como lugares de oração e meditação, eles devem ser protegidos
contra tensões e lutas partidárias. O Estado deve, portanto, garantir que os locais de culto permaneçam
em terreno neutro e protegidos de correntes políticas e controvérsias ideológicas e partidárias. 15
O parágrafo 4º do art. 18 do PIDCP protege também a liberdade dos pais ou tutores de educar as
crianças conforme a crença à qual forem adeptos, sem que nenhum Estado parte no Pacto possa violar
essa garantia. Em relação aos filhos, a escolha da religião é limitada pelo direito dos pais de determinar
a sua religião até a idade em que ele ou ela seja capaz de fazê-lo por conta própria.16 No tópico relativo
ao ensino religioso nas escolas, esse tópico será melhor aprofundado.

13
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
(CCPR/C/21/Rev.1/Add.4). 30 Julho 1993, par. 4. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.
aspx?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022


14
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Kang v. República da Coréia, adotada em 15 de julho de 2003 (CCPR/C/78/D/878/1999), par. 7.2.
Em: Resumo do Relator sobre Liberdade de Religião ou Crença Trechos dos Relatórios de 1986 a 2011 do Relator Especial sobre
Liberdade de Religião ou Crença Organizado por Tópicos da Estrutura de Comunicações. Disponível em: https://www.ohchr.org/
Documents/Issues/Religion/RapporteursDigestFreedomReligionBelief.pdf (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022.
15
ONU. Comissão do Comitê de Direitos Humanos. Relatório apresentado pelo Sr. Abdelfattah Amor, Relator Especial, de acordo com
a resolução 1996/23 da Comissão de Direitos Humanos. Termo aditivo. Visita à Índia (E/CN.4/1997/91/Add.1), par. 93. Disponível em:
https://undocs.org/E/CN.4/1997/91/Add.1. Acesso em: 12 fev. 2022.
16
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Kang v. República da Coréia, adotada em 15 de julho de 2003 (CCPR/C/78/D/878/1999), par. 7.2.
Em: Resumo do Relator sobre Liberdade de Religião ou Crença Trechos dos Relatórios de 1986 a 2011 do Relator Especial sobre
Liberdade de Religião ou Crença Organizado por Tópicos da Estrutura de Comunicações. Disponível em: https://www.ohchr.org/
Documents/Issues/Religion/RapporteursDigestFreedomReligionBelief.pdf (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022.

390
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

Quanto ao proselitismo, o Relator Especial apontou em seu Relatório de visita à Grécia que se trata de
uma atividade inerente à religião, protegida na Declaração de 1981. Portanto, considerou a disposição
constitucional grega que proibia o proselitismo incompatível com o DIDH.17
Outro importante assunto estritamente relacionado à liberdade religiosa é o direito dos indivíduos
membros de minorias, assegurado no artigo 27 do PIDCP, que impede os Estados de proibi-los de
praticar sua religião, desfrutar de sua cultura e falar sua língua. Segundo o CDH, em seu Comen-
tário Geral no. 23:

5.2. O artigo 27 confere direitos a pessoas pertencentes a minorias que “existem” em um Estado
Parte. Dada a natureza e o alcance dos direitos previstos no referido artigo, não é relevante deter-
minar o grau de permanência que o termo “existe” conota. Esses direitos garantem simplesmente
que, aos indivíduos pertencentes àquelas minorias, não deve ser negado o direito, em comuni-
dade com membros do seu grupo, de desfrutar de sua própria cultura, praticar sua religião e falar
sua língua. Assim como eles não precisam ser nacionais ou cidadãos, eles tampouco precisam
ser residentes permanentes. Assim, trabalhadores migrantes ou mesmo visitantes em um Estado
Parte que constituam tais minorias têm o direito ao exercício desses direitos. Como qualquer
outro indivíduo no território do Estado Parte, eles também têm os direitos gerais, por exemplo, à
liberdade de associação, de reunião e de expressão. A existência de minorias étnicas, religiosas ou
linguísticas num dado Estado Parte não depende de uma decisão desse Estado Parte, mas requer
que seja estabelecida por critérios objetivos.18

Para garantir às minorias, especialmente os povos indígenas, o acesso às diferentes formas de manifes-
tação da cultura, pode ser necessário que o Estado adote medidas positivas:

7. o comitê observa que a cultura se manifesta em muitas formas, incluindo um modo particular
de vida associado ao uso de recursos terrestres, especialmente no caso dos povos indígenas. Esse
direito pode incluir atividades tradicionais como pesca ou caça e o direito de viver em reservas
protegidas por lei. O gozo desses direitos pode exigir medidas legais positivas de proteção e
medidas para assegurar a participação efetiva de membros de comunidades minoritárias em deci-
sões que os afetam.19

No relatório gerado a partir da visita à Argentina, 20 o Relator Especial para liberdade religiosa notou
que a terra é condição sine qua non para a manutenção e desenvolvimento de uma identidade indí-
gena e guarda uma dimensão e significado religioso para os povos indígenas, pois é a matriz de suas
crenças e um suporte para a sua manifestação. As reivindicações das comunidades indígenas para que
as terras lhes sejam restituídas incorporam uma dimensão religiosa, ou seja, o acesso à terra coincide
com o acesso a locais sagrados e a sepulturas, onde podem exercer legitimamente atividades religiosas
ou espirituais.
Nos casos em que reconhece o direito à propriedade comunal das comunidades indígenas e tribais
sobre as terras que ocupam, à luz do art. 21 da CADH, a Corte IDH tem consignado, em inúmeros


17
ONU. Comissão de Direitos Humanos. Implementação da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de
Discriminação Baseadas em Religião ou Crença (A/51/542/Add.1). 7 de novembro de 1996, paras. 11-12 e 134. Disponível em: https://
undocs.org/A/51/542/Add.1. Acesso em: 12 de fev. 2022.
18
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º 23. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Co-
mentários%20Gerais%20da%20ONU.pdf. Acesso em: 12 fev. 2022.
19
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º 23. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Co-
mentários%20Gerais%20da%20ONU.pdf. Acesso em: 12 fev. 2022.

ONU. Comissão de Direitos Humanos. Relatório apresentado pelo Sr. Abdelfattah Amor, de acordo com
20

Resolução 2001/42 da Comissão de Direitos Humanos. Termo aditivo – Visita à Argentina. (E/CN.4/2002/73/Add.1), paras. 112-113 and 150.
Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G02/101/47/PDF/G0210147.pdf?OpenElement. Acesso em: 12 fev.
2022.

391
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

julgados, que “a relação com a terra não é apenas uma questão de posse e produção, mas um elemento
material e espiritual que devem desfrutar plenamente, inclusive para preservar seu legado cultural e
transmiti-lo às gerações futuras.”21 Em outro caso, a Corte evidencia a relação entre a privação do direito
à terra e a violação da dimensão espiritual/religiosa dos povos indígenas:

174. A cultura dos membros das comunidades indígenas corresponde a um modo particular de vida
de ser, ver e agir no mundo, constituído a partir de sua estreita relação com suas terras tradicionais
e recursos naturais, não apenas por serem seus principais meios de subsistência, mas também
por constituírem elemento integrante de sua visão de mundo, religiosidade e, portanto, de sua
identidade cultural.

175. Quando se trata de povos indígenas ou tribais, a posse tradicional de suas terras e os padrões
culturais que surgem dessa estreita relação fazem parte de sua identidade. Tal identidade atinge
um conteúdo particular devido à percepção coletiva que eles têm como grupo, suas visões de
mundo, seus imaginários coletivos e a relação com a terra onde vivem suas vidas.

176. Para os membros da Comunidade Xákmok Kásek, traços culturais como as próprias línguas
(Sanapaná e Enxet), os ritos de xamanismo e de iniciação masculina e feminina, os saberes xamâ-
nicos ancestrais, a forma de comemorar seus mortos e a relação com território, são essenciais para
sua visão de mundo e modo particular de existir.

177. Todos esses traços e práticas culturais dos membros da Comunidade foram afetados pela falta
de suas terras tradicionais. De acordo com o depoimento da testemunha Rodrigo Villagra Carron,
o processo de deslocamento do território tradicional afetou “o fato de as pessoas não poderem
enterrar [seus parentes] em locais escolhidos, [...] de não poderem retornar [a esses locais] , que
esses lugares também foram de alguma forma profanados [...]. [Esse] processo forçado implica que
toda aquela relação afetiva não pode acontecer, nem aquela relação simbólica, nem espiritual”. 22

Porém, nos casos em que o acesso à terra foi negado ou que os Estados falharam em demarcar e/
ou proteger esses territórios, a Corte IDH não declarou que os Estados também violaram o art. 12 da
CADH. Já no caso de uma comunidade surinamesa maroon, conhecida como N’djuka, a Corte reco-
nheceu que, para essas comunidades, é extremamente importante ter a posse dos restos mortais do
falecido, pois somente aqueles que foram considerados maus não recebem um enterro honroso. Não
realizar rituais de morte de acordo com a tradição N’djuka, é considerado uma transgressão moral, que
pode ofender o espírito do morto e de outros ancestrais da comunidade. Isso pode levar a uma série
de “doenças causadas espiritualmente” que não se curam sozinhas, e que, se não forem resolvidas por
meios culturais e cerimoniais, persistirão por gerações. 23 Porém, não declarou violação do art. 12 da
CADH. Somente em 2012, a Corte entendeu que, em caso envolvendo desaparecimentos forçados de
pessoas indígenas, o Estado incorre em violação à liberdade religiosa (art. 12, da CADH), uma vez que os
familiares das pessoas desaparecidas não podem enterrá-las, nem celebrar os ritos fúnebres de acordo
com suas crenças religiosas. 24


21
Corte IDH. Caso de la Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto
de 2001. Serie C No. 79. P. 149.
22
Corte IDH. Caso Comunidad Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de agosto de 2010.
Serie C No. 214.
23
Corte IDH. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de
junio de 2005. Serie C No. 124. P. 86.
24
Corte IDH. Caso Masacres de Río Negro Vs. Guatemala. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 4 de septiem-
bre de 2012. Serie C No. 250. P. 157.

392
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

4. CONCEITO DE RELIGIÃO PARA FINS DE


PROTEÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA

Ainda que inexista um conceito de religião nos tratados, dada a pluralidade de concepções sobre o
fenômeno religioso, não há dúvida de que a religião constitui dimensão fundamental na vida daqueles
que acreditam. De todo modo, conforme Segura, 25 a maioria dos estudiosos entende a religião como
“um conjunto de crenças ou dogmas sobre a divindade, de sentimentos de veneração e medo em
relação a ela, de normas morais e éticas de conduta individual e social e de práticas rituais”.
O CDH da ONU já salientou que o termo “religião” deve ser considerado em sua forma ampla, de modo
a abarcar tanto as novas quanto as religiões antigas, portanto, não somente as já institucionalizadas ou
reconhecidas pela tradição. 26 Segundo a Relatora Especial das Nações Unidas sobre a eliminação de
todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou em convicções, 27 “religião pode
definir-se como uma explicação do sentido da vida e um modo de viver de acordo com ela. Toda religião
tem pelo menos um credo, um código de conduta e um culto”. 28 Já ao termo “Igreja”, compreende-se
como “comunidade estável institucionalizada de crentes com uma administração, uma hierarquia ecle-
siástica, um corpo fixo de convicções e práticas e uma forma estabelecida de ritual.”29
Segura30 observa que a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discri-
minação Baseadas na Religião ou Crença foi um grande avanço na matéria, tomando quase duas
décadas de trabalho, pois no início havia sérias dificuldades na definição de noções como “religião” e
“convicções”. A Declaração foi proposta por iniciativa dos governos da Suécia, Holanda e Uruguai, com
base no trabalho realizado pelo Relator sobre o assunto, Sr. Krishnaswami, e mais dois membros da
Subcomissão, o Sr. Abram e o Sr. Calvocoressi.
No preâmbulo da Declaração de 1981, há o reconhecimento da importância da religião ou das convicções:

“Considerando que religião ou convicções, para quem os professa, constituem um dos elementos
fundamentais de sua concepção de vida e que, portanto, liberdade de religião e as convicções
devem ser integralmente respeitadas e garantidas (...)”

Segundo Segura, 31 as Nações Unidas seguem o caminho do respeito e da tolerância mútua entre as
diferentes religiões, credos e crenças não religiosas. As diferentes Declarações e Convenções das

25
SEGURA, Jorge Rhenán. La Libertad religiosa en el Sistema de Naciones Unidas. Revista IIDH No.19 (Enero-Junio 1994), p. 113-140.
Disponível em: https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/r19925.pdf. Acesso em: 25 jan. 2022. p. 128.
26
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
(CCPR/C/21/Rev.1/Add.4). 30 Julho 1993, par. 2 e 3. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.
aspx?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022.
27
Trata-se do informe da Sra. Elizabeth Odio Benito, que é o terceiro informe elaborado sobre a problemática da religião e das convicções,
em conformidade com a Resolução 37/187 da Assembleia Geral da ONU, a Resolução 1983/ 40 da então Comissão de Direitos Humanos
e a Resolução 1983/31 da Subcomissão de Prevenção de Discriminações e Proteção às Minorias.
28
ONU. Comissão de Direitos Humanos. Estudo das dimensões atuais dos problemas da intolerância e de discriminação em razão da
religião ou crença. (E/CN.4/Sub.2/1987/26). Disponível em: https://undocs.org/E/CN.4/Sub.2/1987/26. Acesso em: 12 fev. 2022.
29
ONU. Comissão de Direitos Humanos. Estudo das dimensões atuais dos problemas da intolerância e de discriminação em razão da
religião ou crença. (E/CN.4/Sub.2/1987/26). Disponível em: https://undocs.org/E/CN.4/Sub.2/1987/26. Acesso em: 12 fev. 2022.
30
SEGURA, Jorge Rhenán. La Libertad religiosa en el Sistema de Naciones Unidas. Revista IIDH No.19 (Enero-Junio 1994), p. 113-140.
Disponível em https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/r19925.pdf. Acesso em 25 jan. 2022. p. 121.


31
SEGURA, Jorge Rhenán. La Libertad religiosa en el Sistema de Naciones Unidas. Revista IIDH No.19 (Enero-Junio 1994), p. 113-140.
Disponível em https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/r19925.pdf. Acesso em 25 jan. 2022. p. 119.

393
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Nações Unidas tratam de garantir a liberdade de religião e convicções, e não defender e promover uma
determinada religião ou crença em detrimento de outras.
Por isso, em relação à liberdade de religião, o artigo 18 do PIDCP protege crenças teístas, não-teístas e
ateístas, e também o direito de não professar religião ou crença alguma. 32 O art. 18, do PIDCP, não se
limita em sua aplicação às religiões tradicionais ou às religiões e crenças com características ou práticas
institucionais análogas às das religiões tradicionais. Além de prever a autonomia do sujeito de poder
escolher livremente qual crença ele irá profetizar, sendo vedado o uso de qualquer medida coerci-
tiva que possa prejudicar tal liberdade, está evidenciado também o caráter das limitações, que estão
restritas à lei, desde que esta seja necessária para proteger a “segurança pública, a saúde ou a moral, ou
os direitos e liberdades fundamentais de terceiros” (art. 18, 3, do PIDCP).
Mesmo estando fora de dúvida de que as religiões de matriz africana no Brasil estão cobertas pela defi-
nição de religião do DIDH, há decisões recentes excluindo a umbanda e o candomblé desta proteção:
“(...) No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião
a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser
venerado. (...)”33 A má compreensão da proteção de direitos humanos dispensada a religiões de matriz
africana revelou-se em decisão federal envolvendo a empresa GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA, em
que acionado conceito de religião que vai contra os estândares internacionais34.
As religiões não tradicionais que fazem uso de substâncias entorpecentes também contam com
proteção legal, como se verificou no caso envolvendo rastafáris, onde a maconha toma parte de seu
ritual religioso. Com efeito, na ADPF 187, o Ministro Celso de Mello, do STF, destacou que o art. 2º. da
Lei n. 11.343/2006, “ao excluir a possibilidade de intervenção repressiva do Estado motivada por atos
que, registrados durante o culto, possam culminar em utilização cerimonial de bebidas ou de plantas
alucinógenas cujo consumo seja dogmaticamente qualificado como prática essencial, em termos espi-
rituais, segundo os cânones e as concepções teológicas formulados com apoio no corpo doutrinário
que dá sustentação teórica a uma particular comunidade de fiéis” refletiu a “preocupação do Poder
Público em respeitar a liberdade religiosa e, notadamente, em manter incólumes os rituais e as celebra-
ções litúrgicas de qualquer denominação confessional”. 35
Todavia, o CDH da ONU não admitiu e ainda considerou abusiva uma comunicação apresentada por
dois indivíduos que alegavam ser membros da “Assembly of the Church of the Universe” contra o
Estado do Canadá. Os autores alegavam que a prisão realizada pelas autoridades canadenses após a
distribuição e comercialização de cannabis ativa a supostos membros da Igreja violou o seu direito à


32
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
(CCPR/C/21/Rev.1/Add.4). 30 Julho 1993, par. 2. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.
aspx?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022.
33
BRASIL. 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro nº Processo nº 0004747-33.2014.4.02.5101 (2014.51.01.004747-2), de 28 de abril de 2014. Ação
Civil Pública. [S. l.]. Disponível em: https://eproc.trf2.jus.br/eproc/externo_controlador.php?acao=processo_seleciona_publica&acao_ori-
gem=processo_consulta_publica&acao_retorno=processo_consulta_publica&num_processo=00047473320144025101&num_cha-
ve=&num_chave_documento=&hash=73c27a7f85d97327249db84d67f4df89. Acesso em: 20 dez. 2021.
34
BRASIL. TRF-2 nº Processo nº 0004747-33.2014.4.02.5101 (2014.51.01.004747-2), de 8 de junho de 2015. Ação Civil Pública. [S. l.], 20 jan. 2022.
Disponível em: https://eproc.trf2.jus.br/eproc/externo_controlador.php?acao=processo_seleciona_publica&acao_origem=processo_con-
sulta_publica&acao_retorno=processo_consulta_publica&num_processo=00047473320144025101&num_chave=&num_chave_docu-
mento=&hash=73c27a7f85d97327249db84d67f4df89. Acesso em: 20 dez. 2021.
35
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187/DF. Arguição de Descum-
primento de Preceito Fundamental – admissibilidade – observância do princípio da subsidiariedade (lei nº 9.882/99, art. 4º, § 1º) – jurispru-
dência – possibilidade de ajuizamento da ADPF quando configurada lesão a preceito fundamental provocada por interpretação judicial
(adpf 33/pa e adpf 144/df, v.g.) – adpf como instrumento viabilizador da interpretação conforme à constituição – controvérsia constitucio-
nal relevante motivada pela existência de múltiplas expressões semiológicas propiciadas pelo caráter polissêmico do ato estatal impugna-
do (cp, art. 287) – magistério da doutrina – precedentes do supremo tribunal federal – adpf conhecida. Relator: Min. Celso de Mello, 23 de
junho de 2011. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5956195. Acesso em: 13 fev. 2022

394
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

liberdade religiosa (art. 18 do PIDCP), uma vez que o cultivo, posse, distribuição, manutenção e culto da
maconha constituiria o “Sacramento” da Igreja. 36
Kestenbaum e Fiss, em recente estudo publicado pelo United States Commission on International
Religious Freedom (USCIRF), 37 concluíram que leis internas que criminalizam a blasfêmia, entendida
como insultos ou ofensas a doutrinas religiosas, violam estândares internacionais dos direitos à liber-
dade de expressão e liberdade de religião ou crença, porque, em geral, protegem ideias religiosas em
detrimento dos direitos individuais. Em 2020, 84 países no mundo mantinham leis criminalizando a
blasfêmia, incluindo o Brasil (art. 208 do Código Penal).
A Corte IDH, ao julgar o caso Olmedo Bustos e outros v. Chile, 38 que envolveu a rejeição em 1998,
pelo Conselho de Qualificação Cinematográfica, da exibição do filme “A Última Tentação de Cristo” no
Chile e a ratificação dessa decisão pelo Supremo Tribunal de Justiça do país, entendeu que o Estado
violou o direito à liberdade de pensamento e expressão dos peticionários, previsto no art. 13 da CADH.
A Corte considerou provado que a rejeição da exibição do filme se baseou no fato de ser supostamente
ofensivo à figura, à honra e à reputação de Jesus Cristo e, portanto, de ter afetado os fiéis e outros
seguidores que peticionaram perante a Justiça, o que constituiu censura prévia e uma violação ao artigo
13 da Convenção.

5. O CONTEÚDO DA LIBERDADE DE RELIGIÃO E SEUS LIMITES

A liberdade de religião e crença tem duas dimensões, uma interna e outra externa. O artigo 18 distingue
entre a liberdade de pensamento, de consciência, de religião ou de crenças e a liberdade de manifestar
a própria religião ou as próprias crenças. Não permite nenhum tipo de limitação ao direito de professar,
aderir ou não a uma religião e de mudar para outra. Estas liberdades estão protegidas incondicional-
mente. Conforme o artigo 17 e 18.2, do PIDCP, não se pode obrigar ninguém a revelar seus pensa-
mentos ou sua adesão a uma religião o a crenças.
Já em relação à dimensão externa da liberdade de religião pode haver limitações. A manifestação
religiosa, ou seja, o direito a manifestar e praticar a religião tanto no âmbito público quanto privado
podem ser limitados.
A liberdade de religião e crença pode ser limitada com fundamento em segurança pública, ordem,
saúde pública ou em relação às liberdades e direitos de terceiros. Segurança nacional não está incluída
nesse rol. Mais importante, cada limitação deve estar prescrita em lei.
O CDH da ONU refere que essa disposição deve ser interpretada no sentido estrito; portanto, segu-
rança nacional, que restringe outros direitos do PIDCP, não pode ser invocada para limitar liberdade
religiosa e de crença. Além disso, as limitações só podem ser aplicadas para aqueles fins para os quais
foram previstas e precisam estar diretamente relacionados e ser proporcionais às necessidades espe-

36
ONU. Comitê de Direitos Humanos. M.A.B., W.A.T. and J.-A.Y.T. v. Canada. Fiftieth session. Communication No. 570/1993. 8 April 1994.
http://hrlibrary.umn.edu/undocs/html/dec570.htm. Acesso em: 18 fev. 2022.


37
FISS, Joele; KESTENBAUM, Jocelyn. Violating Rights: Enforcing the World’s Blasphemy Laws. United States Commission On Interna-
tional Religious Freedom, 2020. Disponível em: https://www.uscirf.gov/sites/default/files/2020%20Blasphemy%20Enforcement%20Re-
port%20_final_0.pdf.
38
CORTEIDH. Caso “La Última Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) Vs. Chile. Data de Julgamento: 05 de fevereiro de 2001.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_73_esp.pdf. Acesso em: 18 fev. 2022.

395
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

cíficas para as quais foram previstas, e não podem ser impostas para fins discriminatórios ou aplicadas
de forma discriminatória. 39
Em recente decisão, o STF decidiu de modo coerente com o regime internacional dos direitos humanos,
quanto à possibilidade de limitação da liberdade religiosa em sua dimensão externa:

A dimensão do direito à liberdade religiosa (art. 5o, VI, da CF/1988) que reclama proteção jurídica
na ADPF afasta-se do núcleo de liberdade de consciência (forum internum) e aproxima-se da
proteção constitucionalmente conferida à liberdade do exercício de cultos em coletividade (forum
externum). Sob a dimensão interna, a liberdade de consciência não se esgota no aspecto religioso,
mas nele encontra expressão concreta de marcado relevo. Por outro lado, na dimensão externa, o
texto constitucional brasileiro alberga a liberdade de crença, de aderir a alguma religião e a liber-
dade do exercício do culto respectivo. A CF, no entanto, autoriza a restrição relativa dessa liberdade
ao prever cláusula de reserva legal para o exercício dos cultos religiosos (art. 5o, VI, da CF).40

Segundo o art. 20 do PIDCP, nenhuma manifestação de caráter religioso ou de crenças pode equivaler
à propaganda em favor da guerra ou a apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua
incitação à discriminação, à hostilidade ou à violência. Os Estados Partes têm a obrigação de promulgar
leis que proíbam tais atos. Nesse sentido, o CDH da ONU adota a seguinte orientação:

O Artigo 20 do Pacto estabelece que toda propaganda de guerra e qualquer defesa de ódio
nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, hostilidade ou violência
serão proibidos por lei. Na opinião do Comitê, essas proibições exigidas são plenamente compa-
tíveis com o direito à liberdade de expressão, conforme consta do artigo 19, cujo exercício traz
consigo deveres e responsabilidades especiais. A proibição prevista no parágrafo 1 se estende a
todas as formas de propaganda que ameacem ou resultem em um ato de agressão ou violação
da paz contrária à Carta das Nações Unidas, enquanto o parágrafo 2 é dirigido contra qualquer
defesa de ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, hostilidade ou
violência, mesmo que tal propaganda ou defesa tenha objetivos internos ou externos ao Estado
em questão. As disposições do artigo 20, parágrafo 1, não proíbem a defesa do direito soberano de
legítima defesa ou o direito dos povos à autodeterminação e à independência, de acordo com a
Carta das Nações Unidas. Para que o artigo 20 se torne totalmente efetivo, deve haver uma lei que
deixe claro que a propaganda e a defesa de discursos de ódio, como descritas no dispositivo, são
contrárias à política pública e que preveja uma sanção apropriada em caso de violação. O Comitê,
portanto, acredita que os Estados Partes que ainda não o fizeram devem tomar as medidas
necessárias para cumprir as obrigações contidas no artigo 20, e abster-se de tal propaganda ou
defesa de ódio.41

A respeito da objeção de consciência para eximir-se de obrigações militares, o CDH da ONU observa
que o PIDCP não se refere explicitamente a isso, mas sustenta que tal direito pode ser derivado do art.

39
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
CCPR/C/21/Rev.1/Add.4. 30 Julho 1993, par. 8. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.as-
px?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022

40
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 811/SP. Arguição de descum-
primento de preceito fundamental (adpf). art. 2°, ii, “a”, do decreto n. 65.563, de 12.3.2021, do estado de são paulo. medidas emergenciais
de combate à pandemia da covid-19. vedação temporária de realização presencial de cultos, missas e demais atividades religiosas de
caráter coletivo no estado de são paulo. medida cautelar deferida. referendum da medida cautelar convertido em julgamento de mérito.
preliminar de prevenção do relator da adpf 701 afastada. restrição ao exercício do direito fundamental à liberdade religiosa e de culto (art.
5º, vi, cf). violação ao dever de laicidade do estado (art. 19, i, cf). proporcionalidade e razoabilidade das medidas adotas. Relator: Min. Gilmar
Mendes, 26 de março de 2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346816672&ext=.pdf. Acesso em:
13 fev. 2022.


41
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º 11. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Co-
mentários%20Gerais%20da%20ONU.pdf. Acesso em: 12 fev. 2022

396
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

18, na medida em que a obrigação de usar força letal pode entrar seriamente em conflito com a liber-
dade de consciência e com o direito de manifestação de religião ou crença.42 O mesmo posicionamento
de que a objeção de consciência ao serviço militar é um legítimo exercício do direito à liberdade de
consciência e religião é adotado pelos Relatores Especiais para liberdade religiosa.43
A Constituição Brasileira, por exemplo, impõe limitações ao exercício da objeção de consciência, condi-
cionando-o à prestação alternativa:

Art. 5°, inciso VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recu-
sar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

A regra constitucional brasileira coaduna-se com a opinião do Relator Especial para liberdade religiosa,
segundo o qual :os objetores de consciência devem ser isentos de combate, mas podem ser obrigados
a prestar serviços alternativos44. Estes serviços devem ser compatíveis com seus motivos de objeção de
consciência e, para evitar oportunismo, pode ser pelo menos tão oneroso quanto o serviço militar, mas
não tão oneroso a ponto de constituir uma punição para o opositor. O Relator prossegue sugerindo que
esses serviços alternativos sejam úteis ao interesse público, tenham como objetivo a melhoria social, o
desenvolvimento ou a promoção da paz e do entendimento internacional.
Em relação à saúde pública como fator de limitação da liberdade religiosa em sua dimensão externa, o
STF decidiu recentemente, na ADPF 811/SP, 45 que o Decreto Estadual de São Paulo que restringiu acesso
das pessoas aos locais de culto durante fase de intensa transmissão de coronavírus na pandemia de
COVID-19 são compatíveis com a Constituição Brasileira.

6. OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS

Como ensina Segura, as liberdades religiosa, de consciência e de pensamento são concebidas no art. 18
do PIDCP direitos protegidos de intromissão indevida por parte dos Estados. Ou seja, o artigo 18 esta-
belece uma obrigação negativa no sentido de que os Estados devem abster-se de limitar toda liberdade

42
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
CCPR/C/21/Rev.1/Add.4. 30 Julho 1993, par. 11. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.as-
px?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022
43
ONU. Comissão de Direitos Humanos. Relatório apresentado pelo Sr. Abdelfattah Amor, Relator Especial, conforme com a re-
solução 1999/39 da Comissão de Direitos Humanos. (E/CN.4/2000/65). 15 Fevereiro 2000. Disponível em: https://undocs.org/E/
CN.4/2000/65. Acesso em: 12 fev. 2022.
44
ONU. Comissão de Direitos Humanos. Relatório apresentado pelo Sr. Angelo Vidal d’Almeida Ribeiro. Relator Especial nomeado de
acordo com Resolução da Comissão de Direitos Humanos 1986, 10 de março de 1986. (E/CN.4/1992/52), 18 Dezembro 1991. para. 185.
Disponível em: https://undocs.org/E/CN.4/1992/52. Acesso em: 12 fev. 2022.
45
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 811/SP. Arguição de Descum-
primento de Preceito Fundamental (ADPF). art. 2°, ii, “a”, do decreto n. 65.563, de 12.3.2021, do estado de São Paulo. medidas emergenciais
de combate à pandemia da covid-19. vedação temporária de realização presencial de cultos, missas e demais atividades religiosas de
caráter coletivo no estado de são paulo. medida cautelar deferida. referendum da medida cautelar convertido em julgamento de mérito.
preliminar de prevenção do relator da adpf 701 afastada. restrição ao exercício do direito fundamental à liberdade religiosa e de culto (art.
5º, vi, cf). violação ao dever de laicidade do estado (art. 19, i, cf). proporcionalidade e razoabilidade das medidas adotas. Relator: Min. Gilmar
Mendes, 26 de março de 2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346816672&ext=.pdf. Acesso em:
13 fev. 2022.

397
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

dos indivíduos que se encontrem em seu território, bem como respeitar e proteger aqueles que não
professam nenhuma religião. 46
O parágrafo 2 do art. 18 proíbe as medidas coercitivas que possam prejudicar o direito a ter ou a adotar
uma religião ou crença, compreendidos o emprego de força ou sua ameaça, bem como de sanções
penais para obrigar crentes ou não crentes a aceitar as crenças religiosas de quem aplica tais medidas
ou a incorporar-se a suas congregações, a renunciar a suas próprias crenças ou a converter-se.47
Ainda, segundo a Relatora Especial para liberdade religiosa, os Estados não devem exigir qualquer tipo
de registro oficial que condicione a manifestação de religião e crença individual ou coletivamente, em
público ou privadamente.48 O CDH também entende que as políticas ou práticas que limitam o acesso
à educação, à assistência médica, ao emprego ou aos direitos garantidos no art. 25 e outras disposições
do PIDCP, são igualmente incompatíveis com o art. 18.2. A mesma proteção se aplica aos que têm
qualquer tipo de crença de caráter não religioso.49
A Declaração de 1981 prescreve aos Estados uma série de obrigações: garantir a liberdade de pensa-
mento, consciência e religião; a certeza de que ninguém será coagido por ter religião; a liberdade de
manifestar sua própria religião; a garantia de que os Estados tomem medidas efetivas para prevenir e
eliminar toda discriminação baseada em religião ou crença; a certeza de que os Estados promulgam leis
para proibir toda discriminação e combater a intolerância por motivos de religião ou crença na matéria;
o direito de as pessoas praticarem o culto ou realizarem reuniões em conexão com a celebração de
serviços religiosos, bem como a liberdade de ensinar, escrever, publicar e distribuir publicações rele-
vantes sobre assuntos religiosos; bem como observar os dias de descanso, celebrar as festividades e
cerimônias de acordo com os preceitos de uma religião ou convicção. 50
A proibição da discriminação por parte dos Estados, ou a necessidade de repressão à discriminação
praticada por agentes não-estatais com base em motivos religiosos, é objeto de especial atenção no
DIDH. No relatório anual de 2009 da Relatora Especial para liberdade religiosa, 51 ela destacou que dos
artigos 2 e 4 da Declaração de 1981 emergem três questões que precisam ser enfatizadas.
Em primeiro lugar, o princípio da não discriminação, consagrado na Declaração, aplica-se tanto aos
Estados como aos atores não-estatais como potenciais perpetradores. Os Estados têm, portanto, o
dever de abster-se de discriminar indivíduos ou grupos de indivíduos por causa de sua religião e crença
e também devem tomar as medidas necessárias para prevenir e eliminar a discriminação entre atores

46
SEGURA, Jorge Rhenán. La Libertad religiosa en el Sistema de Naciones Unidas. Revista IIDH No.19 (Enero-Junio 1994), p. 113-140.
Disponível em https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/r19925.pdf. Acesso em 25 Jan 2022. P. 121.
47
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
CCPR/C/21/Rev.1/Add.4. 30 Julho 1993, par. 5. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.as-
px?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022

ONU. Conselho de Direitos Humanos. Relatório do Relator Especial sobre liberdade de religião ou crença,
48

Asma Jahangir, Termo aditivo - Missão ao Turquemenistão (A/HRC/10/8/Add.4) 12 Janeiro 2009. Para. 25. Disponível em: https://undocs.
org/A/HRC/10/8/add.4. Acesso em: 12 fev. 2022.
49
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
CCPR/C/21/Rev.1/Add.4. 30 Julho 1993, par. 5. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.as-
px?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022.
50
SEGURA, Jorge Rhenán. La Libertad religiosa en el Sistema de Naciones Unidas. Revista IIDH No.19 (Enero-Junio 1994), p. 113-140.
Disponível em https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/r19925.pdf. Acesso em: 25 jan. 2022. p. 123.


51
ONU. Conselho de Direitos Humanos. Relatório do Relator Especial sobre liberdade de religião ou crença,
Asma Jahangir (A/HRC/10/8). 6 Janeiro 2009. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/10/8. Acesso em: 12 fev. 2022.

398
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

não estatais. 52 Em segundo lugar, os Estados devem, em certas situações, adotar ações afirmativas em
favor de comunidades que sofreram por conta de práticas discriminatórias históricas. 53 Em terceiro
lugar, o artigo 2, 2 da Declaração oferece proteção contra discriminação formal (de jure) e real (de fato),
sendo que a primeira se refere à discriminação consagrada em leis, e a segunda aos efeitos de leis,
políticas ou práticas. Segundo a relatora, os Estados devem erradicar imediatamente a discriminação de
jure, alterando ou revogando legislação discriminatória, enquanto, em relação à discriminação de fato,
medidas que possam levar à sua eliminação devem ser adotadas pelos Estados o mais rápido possível. 54
No que se refere a minorias nacionais, étnicas ou religiosas dentro de um Estado, este deve garantir
que o sujeito ou grupo tenha o livre direito de manifestar sua crença, cultura e de utilizar a sua própria
língua, no espaço privado ou público. Essas garantias estão previstas no Artigo 2 da Declaração sobre
os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, de
1992. Dessa forma, o Estado precisa criar uma condição favorável para que estes grupos possam gozar
de tais direitos.
Tais obrigações são desafiadas por intolerância religiosa, como ilustram os dados referentes a crimes
perpetrados contra as religiões de matriz africana. Em Brasília, por exemplo, conforme levantamento
policial, 55 tais religiões são alvos de 59,42% dos crimes envolvendo intolerância religiosa, o que exige
atuação positiva do Estado no sentido de assegurar às pessoas que professam tais religiões proteção
contra discriminação e violência.

6.1. Escola Pública e Ensino Religioso

Em atenção à liberdade dos pais e responsáveis de oferecer a seus filhos uma educação de acordo
com sua próprias convicções, o Comentário Geral no. 22 é claro no sentido de que uma educação
pública que inclua educação em uma determinada religião ou crença é inconsistente com o artigo
18,4, a menos que haja exceções ou alternativas não-discriminatórias que acomodem os desejos dos
pais e responsáveis. Segundo o Comitê, o artigo 18, 4 do PIDCP permite que a escola pública ensine
assuntos como a história geral das religiões e da ética, desde que o conteúdo seja repassado de maneira
neutra e objetiva. 56
Em seu Relatório Anual, o Relator Especial para liberdade religiosa destacou:

é crucial distinguir conceitualmente entre informações sobre religiões ou crenças, por um lado,
e instrução religiosa, por outro. A nível prático, há uma série de sobreposições que colocam
problemas na aplicação real dessa distinção. Além disso, diferentes abordagens pedagógicas

ONU. Conselho de Direitos Humanos. Relatório do Relator Especial sobre liberdade de religião ou crença,
52

Asma Jahangir (A/HRC/10/8). 6 Janeiro 2009. para. 35. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/10/8. Acesso em: 12 fev. 2022.

ONU. Conselho de Direitos Humanos. Relatório do Relator Especial sobre liberdade de religião ou crença,
53

Asma Jahangir (A/HRC/10/8). 6 Janeiro 2009. para. 36. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/10/8. Acesso em: 12 fev. 2022.

ONU. Conselho de Direitos Humanos. Relatório do Relator Especial sobre liberdade de religião ou crença,
54

Asma Jahangir (A/HRC/10/8). 6 Janeiro 2009. para. 37. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/10/8. Acesso em: 12 fev. 2022.
55
RIOS , Alan. Religiões de matriz africana são alvos de 59% dos crimes de intolerância. Correio Braziliense , [s. l.], 11 nov. 2019. Disponí-
vel em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/11/11/interna_cidadesdf,805394/religioes-de-matriz-africana-al-
vos-de-59-dos-crimes-de-intolerancia.shtml. Acesso em: 20 dez. 2021.
56
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
CCPR/C/21/Rev.1/Add.4. 30 Julho 1993, par. 6. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.as-
px?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022

399
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

podem adicionar nuances, por exemplo, se os métodos de ensino encorajarem os alunos a


“aprender sobre as religiões” ou a “aprender com a religião”. 57

No mesmo relatório, o Relator enfatiza que a instrução em contexto religioso deve respeitar as
convicções dos pais e tutores que não acreditam em nenhuma religião, assim como o direito de
membros de minorias optarem por não se submeter a uma instrução religiosa que vá contra suas
próprias convicções. 58
Contudo, o relatório aponta que vários países não respeitam estes princípios, expondo estudantes
pertencentes a minorias, ou mesmo dissidentes ou críticos à religião ensinada, à pressão formal ou
informal para frequentar instrução religiosa dada apenas com base na tradição religiosa dominante do
país. O Relator cita, ainda, a existência de situações em que estes estudantes são obrigados a criticar sua
própria convicção como pré-condição para fazer seus exames escolares. Já as isenções para os alunos
que aderem a religiões ou crenças diferentes das ensinadas na escola, se existirem, estão por vezes
ligadas a procedimentos de candidatura onerosos ou a práticas estigmatizantes, razão pela qual alunos
e pais muitas vezes se abstêm de as utilizar. 59
Conforme o CDH, a situação da instrução religiosa em escolas privadas é diferente:

A razão é que as escolas particulares, dependendo de sua lógica e currículo particulares, podem
acomodar os interesses ou necessidades educacionais mais específicos de pais e filhos, inclusive
em questões de religião ou crença. Com efeito, muitas escolas privadas têm um perfil de denomi-
nação específica que pode torná-las particularmente atraentes para os adeptos da respetiva deno-
minação, mas frequentemente também para pais e filhos de outra orientação religiosa ou crença.
Nesse sentido, as escolas privadas constituem parte da diversidade institucionalizada dentro de
uma sociedade pluralista moderna. Os Estados não são obrigados pelo Direito Internacional dos
direitos humanos a financiar escolas que sejam estabelecidas com base religiosa, no entanto, se
o Estado optar por fornecer financiamento público a escolas religiosas, deve disponibilizar esse
financiamento sem qualquer discriminação.60

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela constitucionalidade do ensino religioso confes-
sional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, após
a Procuradoria Geral de República propor uma ação direta de inconstitucionalidade. No julgamento, a
maioria dos ministros do STF entenderam que o modelo confessional não fere a laicidade do Estado:

A singularidade da previsão constitucional de ensino religioso, de matrícula facultativa, observado


o binômio Laicidade do Estado (CF, art. 19, I)/Consagração da Liberdade religiosa (CF, art. 5o, VI),
implica regulamentação integral do cumprimento do preceito constitucional previsto no artigo


57
ONU. Conselho de Direitos Humanos. Relatório do Relator Especial sobre liberdade de religião ou crença, Heiner Bielefeldt. (A/
HRC/16/53). 15 Dezembro 2010. Para. 47. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/16/53. Acesso em: 12 fev. 2022.
58
ONU. Conselho de Direitos Humanos. Relatório do Relator Especial sobre liberdade de religião ou crença, Heiner Bielefeldt. (A/
HRC/16/53). 15 Dezembro 2010. Para. 50. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/16/53. Acesso em: 12 fev. 2022.
59
ONU. Conselho de Direitos Humanos. Relatório do Relator Especial sobre liberdade de religião ou crença, Heiner Bielefeldt. (A/
HRC/16/53). 15 Dezembro 2010. Para. 52. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/16/53. Acesso em: 12 fev. 2022.
60
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comunicação n.º 694/1996. Waldman v. Canada, Pareceres adotados em 3 de Novembro de 1999,
par. 10.6. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/record/412142. Acesso em: 12 fev. 2022.

400
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

210, §1o, autorizando à rede pública o oferecimento, em igualdade de condições (CF, art. 5o,
caput), de ensino confessional das diversas crenças.61

6.2. Laicidade Estatal

No que concerne à relação entre religião e Estado, pode-se afirmar que não há nenhuma proibição
no DIDH de que um Estado seja confessional. Porém, de acordo com Comentário Geral no. 22, o
reconhecimento, pelo Estado, de uma religião oficial ou tradicional, ou a existência de uma maioria no
país adepta à determinada religião, não pode ter como consequência prejuízo no desfrute dos direitos
previstos no PIDCP, incluídos os art. 18 e 27, nem nenhuma discriminação contra os adeptos de outras
religiões ou os não crentes.62 Entretanto, os Estados não devem assumir o controle da religião definindo
seu conteúdo, conceitos ou limitações, além daqueles estritamente necessários, conforme disposto no
artigo 1, parágrafo 3, da Declaração de 1981, e no artigo 18, do PIDCP.63
Na elaboração de seu informe, a Relatora Especial sobre a eliminação da intolerância e discriminação
com base na religião ou crença64 constatou que a realidade é bem diferente. Para a metade dos Estados
que lhe submeteram informações, existiam disposições constitucionais sobre a separação entre Estado
e Igreja, porém esses Estados outorgavam, de alguma maneira, concessões oficiais a favor de uma reli-
gião determinada, o que constitui, por si só, prática discriminatória.
Os desafios que os Estados confessionais representam para a liberdade religiosa são apontados em
diversos relatórios da ONU. Por exemplo, no Relatório da visita à República do Irã, o Relator Especial
destacou que o reconhecimento oficial de uma religião pelo Estado não pode significar restrições aos
direitos de cidadania dos que não a professam.65 No Relatório da visita à Romênia, o Relator chamou
a atenção para o fato de que não adeptos da religião oficial não poderiam ser tratados de forma
discriminatória.66
Por atentar à importância do pluralismo e da diversidade, compreende-se a laicidade como o arranjo
político-institucional e a configuração jurídico-constitucional mais apropriados à proteção da liberdade
de pensamento, de opinião e de crença de todos em pé de igualdade. Com efeito, a laicidade reve-

61
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.439/DF. Ensino religioso nas escolas públicas.
Conteúdo confessional e matrícula facultativa. Respeito ao binômio laicidade do estado/liberdade religiosa. Igualdade de acesso e trata-
mento a todas as confissões religiosas. Conformidade com art. 210, §1°, do texto constitucional. Constitucionalidade do artigo 33, caput
e §§ 1º e 2º, da lei de diretrizes e bases da educação nacional e do estatuto jurídico da igreja católica no brasil promulgado pelo decreto
7.107/2010. Ação direta julgada improcedente. Relator: Min. Roberto Barroso, 27 de novembro de 2017. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=15085915. Acesso em: 13 fev. 2022.
62
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral n.º. 22 - Artigo 18 (Liberdade de Pensamento, Consciência ou Religião).
(CCPR/C/21/Rev.1/Add.4). 30 Julho 1993, par. 9. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.
aspx?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.4&Lang=en (em inglês). Acesso em: 08 fev. 2022.
63
ONU. Comissão de Direitos Humanos. Relatório apresentado pelo Sr. Abdelfattah Amor, Relator Especial, em de acordo com a
resolução 1995/23 da Comissão de Direitos Humanos. Termo aditivo - Visita do Relator Especial ao Paquistão. (E/CN.4/1996/95/Add.1),
para. 81. Disponível em: https://undocs.org/E/CN.4/1996/95/Add.1. Acesso em: 12 fev. 2022.
64
ONU. Comissão de Direitos Humanos. Estudo das dimensões atuais dos problemas da intolerância e de discriminação em razão da
religião ou crença. (E/CN.4/Sub.2/1987/26). Disponível em: https://undocs.org/E/CN.4/Sub.2/1987/26. Acesso em: 12 fev. 2022.

ONU. Comissão de Direitos Humanos. Relatório apresentado pelo Sr. Abdelfattah Amor, Relator Especial,
65

de acordo com a resolução 1995/23 da Comissão de Direitos Humanos Termo aditivo - Visita do Relator Especial à República Islâmica do
Irã (E/CN.4/1996/95/Add.2), 9 Fevereiro 1996. para. 88. Disponível em: https://undocs.org/E/CN.4/1996/95/Add.2. Acesso em: 12 fev. 2022.
66
ONU. Comissão de Direitos Humanos. Direitos Civis E Políticos, Incluindo a Questão de Intolerância Religiosa. Relatório do Sr. Abdelfa-
ttah Amor, Relator Especial sobre a liberdade de religião ou crença. Termo aditivo – Visita à Romênia, (E/CN.4/2004/63/Add.2), 16
Dezembro 2003, par. 94. Disponível em: https://undocs.org/E/CN.4/2004/63/Add.2. Acesso em: 12 fev. 2022.

401
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

la-se princípio de organização estatal que possibilita, simultaneamente, a proteção em face do perigo
de intervenção e de manipulação estatal no âmbito religioso, bem como a defesa de indivíduos e de
grupos diante da tentação de maiorias que almejem impor suas convicções religiosas sobre os demais
por meio do processo político.
A laicidade tem dentre seus conteúdos essenciais a esfera de liberdade, em favor de indivíduos e grupos,
de tomada de posição diante do fenômeno religioso como bem entenderem, adotando ou rejeitando
crenças religiosas, onde se inclui o ateísmo. A laicidade cumpre a função de garantia institucional para
a liberdade religiosa, cujo alcance inclui não somente a esfera pública, como também as relações entre
privados, o que pode ser percebido pelo fenômeno do assédio religioso no ambiente de trabalho.67
A relação entre laicidade e igualdade é direta e inestimável. A laicidade, como princípio de organização
da vida estatal na democracia, leva a sério a igualdade de todos os cidadãos. Ela impede vantagens ou
prejuízos na esfera estatal a indivíduos e grupos por motivo de crença religiosa. Afastando qualquer
consideração religiosa do debate político estatal, ela viabiliza a igualdade de todos diante do Estado,
ao tornar argumentos religiosos não somente irrelevantes no processo de deliberação estatal, como
também proscrevê-los.
Na laicidade, a irrelevância e o afastamento de conteúdos religiosos da esfera política estatal decorrem
dos pressupostos necessários para o convívio democrático em sociedades plurais, cujo teor não se
coaduna à veiculação, muito menos imposição, de argumentos de fé na esfera pública estatal. Em
sociedades democráticas, dada a valorização e o respeito ao pluralismo, os processos de tomada de
decisão política e a execução das políticas públicas necessitam ser acessíveis a todos os cidadãos, tanto
pelos instrumentos de participação disponíveis, quanto pela possibilidade de compreensão e debate
público das razões invocadas no processo político.
Conectada de modo umbilical à liberdade religiosa e à igualdade de todos, ao pluralismo como princípio
político basilar e à diversidade religiosa, a laicidade apresenta diversas dimensões. A formulação de um
conceito, na medida do possível, deve abarcá-los da melhor forma. O termo, datado de 1871, surge como
neologismo francês no seio do republicanismo da liberdade de opinião, num contexto de marcada
oposição à monarquia e à vontade divina como fundamentos e organização da sociedade política.68
Partindo da diversidade religiosa e moral nas sociedades modernas, dos desafios de constituir uma
convivência pacífica e de possibilitar decisões democráticas, e calcada nos direitos humanos, a laicidade
foi assim definida na “Declaração Universal da Laicidade no Século XXI”69, como elemento chave da
vida democrática:

Artigo 4. Definimos laicidade como a harmonização, em diversas conjunturas sócio-históricas e


geopolíticas, dos três princípios já indicados: respeito à liberdade de consciência e à sua prática
individual e coletiva; autonomia da política e da sociedade civil com relação às normas religiosas e
filosóficas particulares; nenhuma discriminação direta ou indireta contra os seres humanos.


67
LOREA, Roberto Arriada. O assédio religioso. In: LOREA, Roberto Arriada (Org.) Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria
do advogado, 2008. p. 170.
68
ORO, Ari Pedro; URETA, Marcela. Religião e política na América Latina: uma análise da legislação dos países. Ho-
riz. antropol., Porto Alegre, v. 13, n. 27, Junho 2007. p. 81. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-71832007000100013&lng=en&nrm=iso. Accesso em: 16 set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832007000100013.
69
Documento comemorativo do centenário da separação Estado-Igreja na França, apresentado junto ao Senado francês, datado de 09
de dezembro de 2005.

402
DIREITO À LIBERDADE DE PENSAMENTO, CONSCIÊNCIA E RELIGIÃO

No debate sobre os elementos essenciais ao conceito70, destacam-se: (a) a legitimidade das instituições
políticas radicada na soberania popular, não mais em conteúdos religiosos;71 (b) a “relação chave” com
os direitos fundamentais de liberdade religiosa, de consciência e de igualdade;72 e (c) tratar-se de instru-
mento para a gestão das liberdades e direitos de todos os cidadãos. 73
Daí a formulação jurídica da laicidade a partir dos textos internacionais protetivos de direitos humanos,
quando estes garantem as liberdades de pensamento, de consciência e de religião, como também
quando afirmam a igualdade de todos, a não-discriminação e o combate à intolerância. 74
No Brasil, ainda que o processo constituinte tenha registrado movimentação e tensão religiosas diante
de vários temas, 75 o resultado do processo constituinte foi a afirmação do Estado laico, por meio da sepa-
ração institucional entre Estado e religião, com possibilidade de cooperação em determinadas áreas
entre o Estado e as igrejas (o inciso I do artigo 19 veda a vinculação do Estado à religião, “ressalvada, na
forma da lei, a colaboração de interesse público.”). Este arranjo de “separação com cooperação”, acres-
cido (1) da presença do ensino religioso, de caráter facultativo, nos estabelecimentos públicos (art. 201,
p. 1º), (2) da escusa do serviço militar por crença religiosa (art. 143, p. 1º), (3) da possibilidade de efeitos
civis do casamento religioso (art. 226, p. 2º), (4) da possibilidade de assistência religiosa nas entidades
civis e militares de internação coletiva (art. 5º, VII) e (5) da imunidade tributária a templos de qualquer
culto (art. 150, VI, b), configura o modelo de laicidade denominado pluriconfessional.
A laicidade pluriconfessional contrasta com o modelo de laicidade como neutralidade religiosa. Neste
não se reconhece qualquer caráter primordial ao fato religioso, sendo inclusive um dado a ser evitado
no espaço público estatal, dada sua potencial e irresolúvel conflitividade. Em vez de preocupar-se com
a expressão pública e plural das crenças, até mesmo as apoiando (como faz a pluriconfessionalidade),
a laicidade da neutralidade almeja coibir pretensões de ascensão ao poder estatal por parte de grupos
religiosos, característica que a faz receber pecha de mecanismo de opressão estatal diante da diversi-
dade religiosa. 76 A laicidade como neutralidade, com efeito, traz consigo sempre o perigo de esmaecer
realidades históricas e políticas onde determinadas tradições religiosas acabam deixando marcas nas
definições de nacionalidade e de espaço público. 77

70
Um panorama acerca do conceito jurídico da laicidade e sua caracterização como norma constitucional tipo princípio é fornecida por Joa-
na Zylbersztajn, 2012, em especial os capítulos 1 e 2 (“O princípio da laicidade na Constituição Federal de 1988”, São Paulo, Faculdade
de Direito da USP, tese de doutorado, março de 2012).


71
BLANCARTE, Roberto. O porquê de um Estado Laico. In: LOREA, Roberto Arriada (Org.) Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre:
Livraria do advogado, 2008. p. 19.
72
HUACO, Marco. A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito. In: LOREA, Roberto Arriada (Org.) “Em defesa das liber-
dades laicas”. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008. p. 45.
73
BLANCARTE, Roberto. O porquê de um Estado Laico. In: LOREA, Roberto Arriada (Org.) Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre:
Livraria do advogado, 2008. p. 25.
74
Ver, neste sentido, a Declaração Universal de Direitos Humanos (art. 18), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 18), a
Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 12), a Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e Discriminação
fundadas na Religião ou nas Convicções (art. 1) e a Convenção Interamericana contra todas as formas de Discriminação e Intolerância (art.
1).
75
PINHEIRO, Douglas Antônio Rocha, “Direito, Estado e Religião – a Constituinte de 1987/1988 e a (re)construção da identidade religiosa
do sujeito constitucional brasileiro.” Belo Horizonte: Argumentum, 2008; PIERUCCI, Antônio Flávio e PRANDI, Reginaldo. “A Realidade
Social das Religiões no Brasil: Religião, Sociedade e Política”. São Paulo: Hucitec, 1996.
76
DINIZ, Debora. Quando a verdade é posta em dúvida. In: DINIZ, Debora; BUGLIONE, Samantha e RIOS, Roger Raupp (org.) “Entre a
dúvida e o dogma. Liberdade de cátedra e universidades confessionais no Brasil”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 77.
77
GIUMBELLI, Emerson. “Minorias e religiosidade em seus contextos.” In: Antônio Carlos de Souza Lima (coord.) “Antropologia e direito:
temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de Janeiro: Brasília: Contracapa/LACED/Associação Brasileira de Antropologia, 2012, p.
242.

403
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Este desenho institucional coloca o Brasil no campo da laicidade, uma vez que seus elementos funda-
mentais estão presentes: (a) garantia dos direitos fundamentais de liberdade e de igualdade para todos,
sem depender de crença religiosa; (b) neutralidade quanto ao dado religioso do ponto de vista institu-
cional, pela impossibilidade de argumentos de fé em processos de deliberação democrática majoritária
e na configuração e execução das políticas públicas, ainda que admitida a cooperação de interesse
público e (c) ausência de hostilidade a indivíduos e grupos em virtude de crença religiosa, conjugada
com mecanismos de convivência e de valorização da diversidade religiosa.

404
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Bruna Marques da Silva

1. INTRODUÇÃO

A liberdade de expressão é um dos direitos mais imprescindíveis para as democracias e para o conjunto
dos direitos humanos. As razões pelas quais a liberdade de expressão deve ser protegida juridicamente
são inúmeras. É por meio de sua garantia que outros direitos humanos são reivindicados e exercidos
efetivamente. É pela liberdade de expressão que a autonomia, o livre desenvolvimento da personali-
dade, a participação política, o pluralismo, a organização de oposições políticas, o exercício da atividade
jornalística, o debate e a formação da opinião pública se tornam possíveis.
Esse direito, ainda, está interligado com outros direitos de liberdade, como o acesso à informação, asso-
ciação e reunião, e de religião. Além disso, a proteção da liberdade de expressão abrange não apenas
o direito de falar, escrever e se expressar por qualquer outro meio garantido, mas também buscar e
difundir informações, ideias e opiniões. Por isso, há uma dimensão dupla que lhe é característica e
deve ser efetivamente garantida a todas as pessoas e à sociedade, enquanto coletivo. A importância da
liberdade de expressão, e todas as demais justificativas que fundamentam a sua garantia e necessária
efetivação, não significam uma natureza absoluta desse direito. Assim como outros direitos humanos, o
seu exercício implica deveres e responsabilidades e pode ser limitado de forma legítima, a depender de
circunstâncias e em respeito aos critérios previstos nas normativas internacionais de direitos humanos.
Esses e outros pontos serão trabalhados e esclarecidos nesse capítulo, com base nos estândares e no
marco normativo internacional dos Sistemas Global (ONU) e Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos, aos quais o Brasil está comprometido em razão da ratificação e promulgação de tratados
internacionais e vinculado perante a jurisdição internacional.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos (ONU)

2.1.1. Declaração Universal de Direitos Humanos

Artigo 19
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser
inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras,
informações e ideias por qualquer meio de expressão.

2.1.2. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

Artigo 19

405
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões. 2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão;
esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer
natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma
impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no
parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente,
poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e
que se façam necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.
Artigo 20
1. Será proibida por lei qualquer propaganda em favor da guerra. 2. Será proibida por lei qualquer
apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostili-
dade ou a violência.

2.1.3. Convenção sobre os direitos da criança

Artigo 13
1. A criança terá direito à liberdade de expressão. Esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber
e divulgar informações e ideias de todo tipo, independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita
ou impressa, por meio das artes ou por qualquer outro meio escolhido pela criança. 2. O exercício de
tal direito poderá estar sujeito a determinadas restrições, que serão unicamente as previstas pela lei e
consideradas necessárias:
a) para o respeito dos direitos ou da reputação dos demais, ou
b) para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger a saúde e a moral públicas.

2.1.4. Convenção para a Proteção dos Trabalhadores Migrantes

Artigo 13:
1. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm o direito de exprimir as suas convic-
ções sem interferência. 2. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm direito à
liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informa-
ções e ideias de toda a espécie, sem consideração de fronteiras, sob a forma oral, escrita, impressa ou
artística ou por qualquer outro meio à sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no nº 2 do presente
artigo implica deveres e responsabilidades especiais. Por esta razão, pode ser objeto de restrições,
desde que estejam previstas na lei e se afigurem necessárias:
a) Ao respeito dos direitos e da reputação de outrem;
b) À salvaguarda da segurança nacional dos Estados interessados, da ordem pública, da saúde ou da
moral públicas;
c) A prevenir a incitação à guerra;
d) A prevenir a apologia do ódio nacional, racial e religioso, que constitua uma incitação à discriminação,
à hostilidade ou à violência.

406
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

2.1.5. Convenção Internacional para a Proteção das Pessoas com Deficiência

Artigo 21
Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar que as pessoas com defi-
ciência possam exercer seu direito à liberdade de expressão e opinião, inclusive à liberdade de buscar,
receber e compartilhar informações e ideias, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas
e por intermédio de todas as formas de comunicação de sua escolha, conforme o disposto no Artigo 2
da presente Convenção, entre as quais:
a) Fornecer, prontamente e sem custo adicional, às pessoas com deficiência, todas as informações
destinadas ao público em geral, em formatos acessíveis e tecnologias apropriadas aos diferentes
tipos de deficiência;
b) Aceitar e facilitar, em trâmites oficiais, o uso de línguas de sinais, braile, comunicação aumentativa
e alternativa, e de todos os demais meios, modos e formatos acessíveis de comunicação, à escolha das
pessoas com deficiência;
c) Urgir as entidades privadas que oferecem serviços ao público em geral, inclusive por meio da
Internet, a fornecer informações e serviços em formatos acessíveis, que possam ser usados por pessoas
com deficiência;
d) Incentivar a mídia, inclusive os provedores de informação pela Internet, a tornar seus serviços aces-
síveis a pessoas com deficiência;
e) Reconhecer e promover o uso de línguas de sinais.

2.2. Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (OEA)

2.2.1. Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem

Artigo IV
Toda pessoa tem direito à liberdade de investigação, de opinião e de expressão e difusão do pensa-
mento, por qualquer meio.

2.2.2. Convenção Americana de Direitos Humanos

Artigo 13
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liber-
dade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fron-
teiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo
de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura
prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser neces-
sárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de
controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipa-

407
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

mentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados
a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos
públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da
infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. 5. A lei deve proibir toda propaganda a
favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à
discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.

2.2.3. Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais,


Étnicas, Religiosas e Linguísticas

Artigo 2
1. As pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas (doravante deno-
minadas “pessoas pertencentes a minorias”) têm o direito de fruir a sua própria cultura, de professar
e praticar a sua própria religião, e de utilizar a sua própria língua, em privado e em público, livremente
e sem interferência ou qualquer forma de discriminação. 2. As pessoas pertencentes a minorias têm o
direito de participar efetivamente na vida cultural, religiosa, social, económica e pública. 3. As pessoas
pertencentes a minorias têm o direito de participar efetivamente nas decisões adotadas a nível nacional
e, sendo caso disso, a nível regional, respeitantes às minorias a que pertencem ou às regiões em que
vivem, de forma que não seja incompatível com a legislação nacional. 4. As pessoas pertencentes a
minorias têm o direito de criar e de manter as suas próprias associações. 5. As pessoas pertencentes
a minorias têm o direito de estabelecer e de manter, sem qualquer discriminação, contatos livres e
pacíficos com os restantes membros do seu grupo e com pessoas pertencentes a outras minorias, bem
como contatos transfronteiriços com cidadãos de outros Estados com os quais tenham vínculos nacio-
nais ou étnicos, religiosos ou linguísticos.

2.2.4. Declaração Americana de sobre o Direito dos Povos Indígenas

Artigo 20
1. Os povos indígenas têm os direitos de associação, reunião, organização e expressão, e a exercê-los
sem interferências e de acordo com, entre outros, sua cosmovisão, seus valores, usos, costumes, tradi-
ções ancestrais, crenças, espiritualidade e outras práticas culturais. 2. Os povos indígenas têm direito
de se reunir em seus lugares e espaços sagrados e cerimoniais. Para essa finalidade, terão o direito
de usá-los e de a eles ter livre acesso.3. Os povos indígenas, em especial os que estejam divididos por
fronteiras internacionais, têm direito a transitar, manter, desenvolver contatos, relações e cooperação
direta, inclusive atividades de caráter espiritual, cultural, político, econômico e social, com os membros
de seu povo e com outros povos. 4. Os Estados adotarão, em consulta e cooperação com os povos
indígenas, medidas efetivas para facilitar o exercício e assegurar a aplicação desses direitos.

2.2.5. Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e formas


correlatas de Intolerância

Artigo 4
Os Estados comprometem-se a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas consti-
tucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e manifestações de racismo, discrimi-
nação racial e formas correlatas de intolerância, inclusive:
i. apoio público ou privado a atividades racialmente discriminatórias e racistas ou que promovam a intole-
rância, incluindo seu financiamento; ii. publicação, circulação ou difusão, por qualquer forma e/ou meio
de comunicação, inclusive a internet, de qualquer material racista ou racialmente discriminatório que:

408
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

a) defenda, promova ou incite o ódio, a discriminação e a intolerância; e b) tolere, justifique ou defenda


atos que constituam ou tenham constituído genocídio ou crimes contra a humanidade, conforme defi-
nidos pelo Direito Internacional, ou promova ou incite a prática desses atos;

2.3. Marco normativo interno brasileiro

2.3.1. Constituição Federal de 1988

Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-
rança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material,
moral ou à imagem;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares
de internação coletiva;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente-
mente de censura ou licença;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da lei;
Art. 220: A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação
jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
§ 3º Compete à lei federal:
I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza
deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se
mostre inadequada;
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem
de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como
da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

2.3.2. Lei 7.716 de 05 de janeiro de 1989 (Define os crimes resultantes de preconceito


de raça ou de cor)

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou proce-
dência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propa-
ganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de
dois a cinco anos e multa.

409
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação
social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

2.3.3. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Institui o Código Civil)

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar
dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especi-
ficados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, risco para os direitos de outrem.

3. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O DIREITO


À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E ESTÂNDARES
INTERNACIONAIS DOS DISPOSITIVOS NORMATIVOS

O direito à liberdade de expressão é um dos direitos individuais amplamente protegidos pelo DIDH, e
consiste na garantia de expressar, difundir e receber pensamentos, ideias, informações e outras formas
comunicativas, de qualquer natureza e por diferentes meios de expressão.
De acordo com diretrizes internacionais dos Sistemas Global e Interamericano de Proteção dos
Direitos Humanos, esse direito é indispensável para as sociedades livres e democráticas, configurando
uma de suas mais importantes condições de possibilidade e existência. A importância da liberdade de
expressão pode ser compreendida porque esse direito tem como funções principais: a) ser essencial e
indispensável para a realização do ser humano e livre desenvolvimento da personalidade; b) ser uma
das condições para a consolidação e funcionamento das democracias; c) ser um direito imprescindível
para o exercício de outros direitos, como direito à educação, saúde, ao voto, à liberdade de associação
e reunião, e para reivindicá-los. Ou seja, ser também fundamental para a promoção e proteção dos
direitos humanos; d) ser necessário para assegurar e concretizar o acesso à informação, juntamente
com a transparência e responsabilidade públicas.1
No marco normativo do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos da ONU, a DUDH garante
no artigo 19 o direito à liberdade de opinião e expressão a todas as pessoas, incluindo a procura, o rece-
bimento e a difusão de informações e ideias, independente de limites de fronteiras. 2 No marco norma-
tivo do SIDH, a DADDH garante o direito de liberdade de investigação, opinião, expressão e difusão
no artigo IV. Diante da característica de declaração, os conteúdos éticos-normativos da DUDH e da

1
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34.
Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de expresión, 2011.
2
ONU. Assembleia Geral. Declaração Universal de Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
Paris, dezembro. 1948. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf. Acesso em: 02 maio
2021.

410
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

DADDH são instrumentalizados por normativas com natureza de tratados internacionais, que reforçam
a obrigação jurídica vinculativa aos estados. 3
No âmbito do Sistema Global, o PIDCP é o principal tratado internacional que protege e garante o
direito à liberdade de expressão, nos artigos 19 e 20. Em consonância à DUDH, os dispositivos 19.1 e
19.2 garantem a livre opinião e expressão a todas as pessoas, bem como o recebimento e difusão de
informações. Por esta razão, o direito à liberdade de expressão não configura apenas o direito de mani-
festar-se livremente e sem interferências, mas de informar-se, estar bem informado e transmitir esses
conteúdos, juntamente com ideias e opiniões.4
Segundo a Observação Geral nº 34 do CDH da ONU, o artigo 19.1 do PIDCP dispõe sobre a proteção da
liberdade de opinião, que significa o direito de uma pessoa não sofrer interferências ou incômodos em
razão da expressão de opiniões particulares, ou de cunho científico, histórico, moral ou religioso. Assim,
o direito à liberdade de opinião não pode estar sujeito a restrições ou exceções e abrange a garantia
de mudança de opiniões a qualquer momento, motivo e de forma livre5. Além disso, o Informe sobre a
Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão de 2021 indica que a liberdade de
opinião inclui o direito a não expressar uma opinião, ou seja, abrange a proteção contra coerções para
expressá-la6, sendo:

[...] proibido divulgar a opinião própria contra a vontade, devendo ser protegida a autonomia
mental. Toda a tentativa de coagir uma pessoa para que tenha ou não tenha uma determinada
opinião está proibida. Castigar, acusar, intimidar e estigmatizar uma pessoa por ter uma opinião,
entre outros meios manipulando de maneira coercitiva (contra a sua vontade ou sem o seu
consentimento) seu processo de raciocínio para desenvolver uma opinião são violações do direito
à liberdade de opinião. 7

Já o artigo 19.2 do PIDCP garante a proteção da liberdade de expressão, que, como dito, inclui também o
direito de buscar, receber e transmitir informações e ideias. De acordo com a Observação Geral nº 34 do
CDH da ONU, esse direito protege os mais variados conteúdos, como o pensamento político, religioso,
as discussões sobre direitos humanos e outros assuntos de interesse público, as expressões culturais
e artísticas, o ensino e o aprendizado, entre outros. As formas de expressões são também múltiplas,
abrangendo a oralidade, a escrita, libras, as expressões não verbais, como as imagens e objetos artís-
ticos8. Além disso, os meios de difusão compreendem “[...] os livros, os jornais, os folhetos, os cartazes,
banners, peças de vestuário, argumentos jurídicos, bem como modalidades de expressão audiovisual,

3
O’DONNEL, Daniel. Derecho Internacional de los derechos humanos: Normativa, jurisprudencia y doctrina de los sistemas univer-
sal e interamericano. 2 ed. México: Tribunal Superior de JUstila del Distrito Federal, 2012.
4
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de
opinión y libertad de expresión, 2011.
5
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011.
6
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la Relatora Especial sobre la promoción y protección del derecho a la liber-
tad de opinión y de expresión, Irene Khan (la desinformación y la libertad de opinión y de expresión). 13 abr. de 2021. Disponível
em: https://undocs.org/es/A/HRC/47/25. Acesso em: 01 jun. 2021.


7
No original: “[...] prohibido divulgar la opinión propia en contra de la voluntad y se debe proteger la autonomía mental. Todo intento de
coaccionar a una persona para que tenga o no tenga una opinión determinada está prohibido. Castigar, acosar, intimidar y estigmatizar
a una persona por tener una opinión, entre otros medios manipulando de manera coercitiva (en contra de su voluntad o sin su consenti-
miento) su proceso de raciocinio para desarrollar una opinión, son violaciones del derecho a la libertad de opinión. ASSEMBLEIA GERAL
DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la Relatora Especial sobre la promoción y protección del derecho a la libertad de opinión y de
expresión, Irene Khan (la desinformación y la libertad de opinión y de expresión). 13 de abril de 2021. Disponível em: https://undocs.
org/es/A/HRC/47/25. Acesso em: 01 jun. 2021. p. 8.
8
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011.

411
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

eletrônica ou internet, em todas as suas formas.”9 Por fim, apesar da regra ampla de proteção à livre
expressão e difusão, o artigo 19.2 está sujeito às disposições do artigo 19.3 e 20 do PIDCP, traduzindo o
caráter não absoluto desse direito, o que será aprofundado no próximo item.
No âmbito do SIDH, é a CADH o tratado internacional que dispõe sobre o direito à liberdade de
expressão com maior protagonismo, em seu artigo 13. Ainda que similar ao PIDCP, o marco normativo
do Sistema Interamericano supera o do Sistema Global na tutela da liberdade de expressão, oferecendo
garantia ainda mais ampla e detalhada a esse direito. Por exemplo, no artigo 13.1 da CADH está prevista
a proteção da livre expressão e opinião dos indivíduos, bem como o recebimento e difusão de infor-
mações por qualquer meio e para além de fronteiras. Assim como no Sistema Global, essa garantia é
estendida para diferentes meios de difusão e formas de expressão. No entanto, o artigo 13.2 da CADH
dispõe sobre a impossibilidade de censura prévia, o que não consta no PIDCP. Além disso, o artigo 13.3
da CADH prevê a impossibilidade de restringir à liberdade de expressão de forma indireta, por meio de
abuso de controle da imprensa, frequência de transmissões de rádio, aparelhos ou quaisquer outros
meios utilizados para difundir informações, comunicação, ideias e opiniões.10
Assim, de acordo com a CIDH, as previsões protetivas à liberdade de expressão reforçam que esse
direito não pode receber nenhum tipo de controle anterior ou preventivo, e sim possíveis responsa-
bilidades ulteriores nos casos que configurarem abuso do seu exercício, como dito. A CIDH esclarece
também que eventuais restrições ao exercício da liberdade de expressão previstas em outros instru-
mentos internacionais não devem ser utilizadas para interpretar a CADH, em respeito à primazia da
norma mais favorável – princípio pro homine.11
Segundo Torrijo, uma explicação possível para essa regulação detalhada no Sistema Interamericano é
o histórico de ditaduras e regimes autoritários na América Latina, que articularam a censura direta e
indireta para silenciar críticas ao governo e autoridades públicas, organizações políticas de oposição e
reivindicações por direitos, caracterizando graves violações à liberdade de expressão e outros direitos
humanos12. Isso não significa que a CADH não admita restrições legítimas ao exercício abusivo do
direito à liberdade de expressão. Assim como no PIDCP, a CADH estabelece possíveis limitações a esse
direito nos artigos 13.2 e 13.5, conferindo a natureza não absoluta.13 Diante das especificidades, isso será
abordado no próximo item.
É possível, ainda, destacar algumas características importantes do direito à liberdade de expressão,
como a sua titularidade, dupla dimensão e os tipos de discursos protegidos pela liberdade de expressão.

9
No original: “[...]los libros, los periódicos, los folletos, los carteles, las pancartas, las prendas de vestir y los alegatos judiciales, así como
modos de expresión audiovisuales, electrónicos o de Internet, en todas sus formas. COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES
UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de expresión, 2011.
10
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão. 2014. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/docs/publicaciones/20140519%20
%20PORT%20Unesco%20%20Marco%20Juridico%20Interamericano%20sobre%20el%20Derecho%20a%20la%20Libertad%20
de%20Expresion%20adjust.pdf. Acesso em: 01 maio 2019.
11
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interameri-
cano sobre o direito à liberdade de expressão. 2014. Disponível em: https://https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/docs/publicacio-
nes/20140519%20-%20PORT%20Unesco%20-%20Marco%20Juridico%20Interamericano%20sobre%20el%20Derecho%20a%20
la%20Libertad%20de%20Expresion%20adjust.pdf Acesso em: 01 mai. 2019.
12
TORRIJO, Ximena Fuentes. Democracia y libertad de expresióon en America Latina: la amenaza del ímpetu devorador de los derechos.
Revista de Estudios Internacionales. Chile, n. 137, ano 35, abr/jul, 2002. Disponível em: https://revistaei.uchile.cl/index.php/REI/article/
view/14736. Acesso em: 15 mar. 2020.
13
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interame-
ricano sobre o direito à liberdade de expressão. 2014. Disponível em: https://wwww.oas.org/pt/cidh/expressao/docs/publicacio-
nes/20140519%20-%20PORT%20Unesco%20-%20Marco%20Juridico%20Interamericano%20sobre%20el%20Derecho%20a%20
la%20Libertad%20de%20Expresion%20adjust.pdf. Acesso em: 01 maio 2019.

412
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

3.1. Titularidade

Como visto, tanto o artigo 19 PIDCP quanto o artigo 13.2 CADH referem expressamente que a
liberdade de expressão é um direito de toda a pessoa. Isso significa que a titularidade de expressar,
receber e difundir pensamentos, ideias e informações é de todos os indivíduos, sem discriminação por
motivo raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional, situação econômica,
nascimento ou qualquer condição.14 A Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão da
CIDH dispõe sobre isso nos princípios 1 e 2 15 e, tanto é assim, que a garantia desse direito consta em
normativas específicas de proteção de determinados grupos sociais, com atenção a particularidades
que os envolvem.
No âmbito do SIDH, por exemplo, a Corte IDH ressaltou no Caso Tristán Donoso vs. Panamá que esse
direito não está reservado a um grupo social ou a profissões, a exemplo de jornalistas ou comunica-
dores.16 Assim, a liberdade de expressão compõe à liberdade de imprensa, mas a ela não se resume
ou iguala. Enquanto a liberdade de expressão possui caráter amplo, a liberdade de imprensa abrange
especificidades ligadas aos meios de comunicação e radiodifusão, à atuação e aos direitos de pessoas
que exercerem essas funções. Já no âmbito do Sistema Global, o Informe sobre a Promoção e Proteção
do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão de 2021 destaca a relação de influência que há entre
pensamentos e opiniões de uma pessoa com as das outras, além daquelas capazes de circularem e
predominarem no meio social.17

3.2. Dupla dimensão: individual e coletiva ou social

Já no que se refere à característica da dupla dimensão, isso significa que o direito à liberdade de
expressão abrange uma perspectiva individual e outra coletiva ou social. De acordo com a CIDH, a
dimensão individual “[...] consiste no direito de cada pessoa a expressar os próprios pensamentos,
ideias e informações” e a dimensão coletiva ou social “[...] consiste no direito da sociedade a procurar
e receber qualquer informação, a conhecer os pensamentos ideias e informações alheias, e a estar
bem informada.”18
Essa interpretação tem sido construída pela Corte IDH desde a Opinião Consultiva nº 8519 e reiterada
no SIDH por posteriores documentos internacionais e casos jurídicos. Segundo a Opinião Consultiva
nº 85, quando a liberdade de expressão de uma pessoa é restringida ilegalmente, estão sendo violados
o direito desse indivíduo de difundir opiniões, ideias e informações e o direito de todos de receberem

14
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34.
Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de expresión, 2011.
15
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. 16 a 27 de outubro de
2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm. Acesso em: 02 jun. 2021.
16
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Tristán Donoso v. Panamá. Sentença de 27 de janeiro de 2009. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_193_esp.pdf. Acesso em: 15 maio 2021.


17
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la Relatora Especial sobre la promoción y protección del derecho a la liber-
tad de opinión y de expresión, Irene Khan (la desinformación y la libertad de opinión y de expresión). 13 de abril de 2021. Disponível
em: https://undocs.org/es/A/HRC/47/25. Acesso em: 01 jun. 2021.
18
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 5.
19
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinión Consultiva OC-5/85. 1985.

413
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

o conteúdo que seria expresso. 20 O direito à liberdade de expressão, portanto, contempla a garantia de
ambas as dimensões que deve ocorrer de forma efetiva e simultânea, não sendo possível “[...] diminuir
uma delas invocando como justificativa a preservação da outra.”21
Por exemplo, no Caso Palamara Iribarne vs. Chile, a justiça militar do Chile controlou o conteúdo e
impediu a circulação de um livro escrito por Humberto Antonio Palamara Iribarne, que criticava
a Armada Nacional. Com base no estândar da dupla dimensão, a Corte IDH compreendeu que o
impedimento da publicação do livro constituiu uma censura prévia e gerou uma violação do direito à
liberdade de expressão tanto na dimensão individual da expressão de Palamara, isto é, de suas ideias,
pensamentos e informações, quanto na dimensão coletiva ou social da sociedade chilena em receber o
conteúdo contido no livro. 22 O caso “La Última Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile,
que será exemplificado oportunamente, também desenvolve a compreensão da dupla dimensão,
estabelecendo que:

[...] a liberdade de expressão e a difusão do pensamento e da informação são indivisíveis, de modo


que uma restrição das possibilidades de divulgação representa diretamente, e em igual medida,
um limite ao direito de expressar-se livremente. [...] para o cidadão comum tem tanta importância
o conhecimento da opinião alheia ou da informação de que dispõe os outros como o direito a
difundir a sua própria. 23

No âmbito do Sistema Global, as dimensões do direito à liberdade de expressão são sustentadas


mediante uma classificação de dupla dimensão específica para a liberdade de opinião, em especial.
Segundo o Informe sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão de
2021, a dimensão individual da liberdade de opinião se refere ao direito à vida privada e à liberdade de
pensamento, enquanto a dimensão coletiva diz respeito à expressão ou não de pensamentos, ideias ou
informações, que está ligada com um aspecto mais amplo da liberdade de expressão. 24

3.3. Tipos de discursos protegidos pela liberdade de expressão

Como dito, a proteção do direito à liberdade de expressão no Sistema Interamericano se estrutura de


forma mais detalhada em comparação ao Sistema Global. A Observação Geral nº 34 do CDH da ONU
registra, de forma geral, a regra de que os discursos sejam amplamente protegidos pela liberdade de
expressão, inclusive os considerados ofensivos, críticos e desagradáveis. O funcionamento da demo-
cracia e o debate público devem contar com o pluralismo de ideias, críticas e informações e, por isso,
possíveis limitações ao exercício desse direito devem ser a exceção. 25 O mesmo entendimento é refe-

20
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinión Consultiva OC-5/85. 1985.


21
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 6.
22
OEA. Caso Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_135_esp.pdf. Acesso em: 03 jun. 2021.
23
No original: “[...] la expresión y la difusión del pensamiento y de la información son indivisibles, de modo que una restricción de las posi-
bilidades de divulgación representa directamente, y em la misma medida, un límite al derecho de expresarse libremente. [...] para el ciu-
dadano común tiene tanta importancia el conocimiento de la opinión ajena o de la información de que disponen otros como el derecho
a difundir la propia.” OEA. Caso “La Última Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile. Sentença de 05 de fevereiro de
2001. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_73_esp.pdf. Acesso em: 03 jun. 2021.
24
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la Relatora Especial sobre la promoción y protección del derecho a la
libertad de opinión y de expresión, Irene Khan (la desinformación y la libertad de opinión y de expresión). 13 abr. 2021. Disponível
em: https://undocs.org/es/A/HRC/47/25. Acesso em: 01 jun. 2021.
25
ONU, Comité de Derechos Humanos. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de expresión, 2011.

414
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

rido pela CIDH, juntamente com uma identificação que classifica os discursos protegidos em relação às
formas de expressões quanto aos seus conteúdos. 26
A proteção das formas de expressão compreende: a) o direito a falar, que abrange expressar ideias,
opiniões e informações, incluindo a garantia de toda a pessoa utilizar o idioma de sua escolha para tanto.
Um exemplo disso pode ser visto no caso López Álvarez vs. Honduras, no qual a Corte IDH entendeu
que o direito de falar consiste no “[...] no direito das pessoas de utilizarem o idioma que elegerem na
expressão do seu pensamento.”27 Alfredo López Álvarez era membro da comunidade garífuna, uma
minoria étnica que se comunicava em idioma específico (o garífuna). No período em que foi privado de
liberdade, López Álvarez foi impedido de se expressar no seu idioma materno. Segundo a Corte IDH,
a proibição foi especialmente grave porque a comunicação nesse idioma era parte de sua identidade
como garífuna, o que violou sua dignidade enquanto membro da comunidade. 28
Além disso, há também o b) direito de escrever, com proteção estendida ao idioma escolhido pela
pessoa e pelas formas escrita, impressa, por livros, artigos em jornais, revistas e outros meios; c) direito
a difundir as expressões, isto é, a liberdade de expressão não se limita a expressar, mas também difundir
conteúdos, atingido um maior número de destinatários. Esse aspecto se interliga com a dupla dimensão
da liberdade de expressão, já indicado; d) o direito à expressão e difusão artística ou simbólica, bem
como o acesso à arte; 29 e) o direito de toda a pessoa a buscar, ter acesso, retificar informações sobre si
própria e seus bens, que constem em base de dados e registros públicos e privados; f) o direito a buscar,
receber e ter acesso a expressões e ideias, o que compreende o direito de acesso à informação, 30 e o
direito a possuir, transportar e distribuir informações. 31
Já a proteção de discursos pelos seus conteúdos é regida pela regra geral de ampla cobertura, nomeada
pela CIDH de ab initio. Isso significa que o direito à liberdade de expressão também abrange manifesta-
ções ofensivas, intolerantes ou perturbadoras para o estado ou quaisquer segmentos sociais, em razão
da importância do pluralismo, diversidade e da tolerância para as democracias. 32
Nesse aspecto, a grande questão é a preocupação do SIDH em garantir a inviolabilidade de críticas e
manifestações que chocam ou atingem as opiniões das maiorias, do poder público ou daqueles que
representam as autoridades públicas em um determinado momento. Tanto é assim que a CIDH enfa-
tiza a incompatibilidade das leis de desacato com o direito à liberdade de expressão, pois estas “[...] se
prestavam ao abuso como um meio para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo, desse

26
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. NACIONES UNIDAS, Comité de Derechos Humanos. Observación General nº 34.
Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de expresión, 2011.
27
No original: “[...] el derecho de las personas a utilizar el idioma de su elección en la expresión de su pensamiento.” OEA. Caso López Ál-
varez vs. Honduras. Sentença de 01 de fevereiro de 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_141_esp.
pdf. Acesso em: 02 jun. 2021.
28
OEA. Caso López Álvarez vs. Honduras. Sentença de 01 de fevereiro de 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_141_esp.pdf. Acesso em: 02 jun. 2021.
29
A referência a essa proteção consta no Caso“La Última Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile. OEA. Caso “La Última
Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile. Sentença de 05 de fevereiro de 2001. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_141_esp.pdf. Acesso em: 02 jun. 2021.
30
Isso será aprofundado no item X.8.


31
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 9.
32
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.

415
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas.”33 Contudo,
isso não anula ou relativiza a necessidade de cumprimento das possíveis restrições legítimas ao exer-
cício desse direito, que serão detalhadas a seguir.
O Caso Palamara Iribarne vs. Chile já citado anteriormente ilustra a divergência das legislações de
desacato com o direito à liberdade de expressão. No caso, Palamara foi privado de liberdade de forma
arbitrária também pelo delito de desacato em razão da publicação de seu livro crítico da Armada
Nacional. O livro deu origem a um processo penal militar por desobediência e quebra dos deveres mili-
tares, que fez com que o Estado retirasse de circulação todas as cópias físicas e eletrônicas existentes.
O delito de desacato estava incluído no ordenamento jurídico do Chile, descumprindo a obrigação
geral de adotar disposições no direito interno condizentes com a CADH. 34 Há, ainda, os discursos que
são protegidos devido sua especial relevância para o exercício da autonomia individual, para o debate
público e para a democracia e direitos humanos como um todo. Segundo a CIDH, são: a) o discurso
político e sobre assuntos de interesse público; b) o discurso sobre funcionários públicos no exercício
de suas funções, e sobre candidatos a cargos públicos; e (c) o discurso que expresse um elemento da
identidade ou da dignidade pessoais de quem se expressa. 35
A justificativa para a proteção especial ao discurso político e sobre assuntos de interesse público
decorre da imprescindibilidade desses debates para as sociedades livres e democráticas. Democracias
garantem que os cidadãos participem, construam e exerçam o controle da gestão pública por meio da
opinião pública, o que implica a necessidade de que o maior número de informações e ideias sobre
interesse comum circulem no meio social. De acordo com a CIDH, o papel da liberdade de expressão é
crucial para tanto, pois é esse direito que garante a inviolabilidade de que jornalistas e comunicadores
sociais, por exemplo, realizem investigações e publiquem informações ou críticas ligadas ao interesse
público. Nesse sentido, a liberdade de expressão se apresenta como um elemento crucial ao enfren-
tamento de problemas sociais e políticos como a corrupção, atos improbidade e condutas abusivas de
funcionários públicos e do poder público. 36
Em relação às manifestações sobre funcionários públicos e candidatos a cargos públicos, a especial
proteção se fundamenta pelas mesmas razões. O controle democrático das atuações públicas é
mediado pela participação cidadã no debate público, por isso, expressões em referência a esses indi-
víduos e suas atuações devem ser compreendidas com uma margem ampla de proteção e tolerância.
Nessa margem são incluídas críticas e até mesmo ofensas, que se justificam com base no exercício de
suas funções e diante da voluntariedade em assumir essas posições em uma democracia. 37
O propósito disso é evitar mecanismos potencialmente geradores de autocensura ou intimidação para
a população. Porém, a CIDH esclarece que se as críticas ou ataques forem injustificados, é possível
que a proteção da honra de funcionários públicos seja protegida. 38 Há uma série de casos na Corte

33
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório sobre Desacato e Difamação Criminal (Capítulo V). 2002. Disponível
em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2002port/vol.3i.htm#_ftn3. Acesso em: 15 jul. 2021.
34
OEA. Caso Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_135_esp.pdf. Acesso em: 03 jun. 2021.
35
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
36
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.


37
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
38
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.

416
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

IDH que tratam sobre esse tema39 e esclarecem possíveis hipóteses. No caso Herrera Ulloa vs. Costa
Rica, por exemplo, a Corte IDH pontua que “[...] a ênfase dessa medida diferente de proteção não está
assentada na qualidade do sujeito, e sim no caráter de interesse público das atividades ou atuações
de uma determinada pessoa”40 O Sistema Global também reforça a necessidade de proteção desses
discursos, sustentando que “[...] todas as figuras públicas, incluindo as que exercem os cargos políticos
de maior importância, como os Chefes de Estado ou de Governo, podem ser objeto legítimo de críticas
e oposição política.”41
Por fim, as expressões relativas a um elemento da identidade ou da dignidade pessoais são especial-
mente protegidos porque constituem a plena existência dos indivíduos, podendo ser identificadas
como formas de comunicação de culturas próprias, como línguas, manifestações artísticas, ou discursos
religiosos ou relativos à orientação sexual ou identidade de gênero.42 O caso López Álvarez vs. Honduras
já referido é um desses exemplos, pois a proibição de manifestação no seu idioma materno impediu
a expressão da língua, uma das mais importantes formas de identidade cultural de minorias sociais
étnicas, sendo injustificada e abusiva.43

4. RESTRIÇÕES LEGÍTIMAS E RESPONSABILIDADES ULTERIORES

Apesar de ser protegido de forma prioritária, o direito à liberdade de expressão não é absoluto, e por
isso seu exercício implica em deveres e responsabilidades de acordo com as condições estabelecidas
na CADH, no PIDCP e em outras normativas internacionais de ambos os Sistemas de Proteção. Ou
seja, o direito internacional dos direitos humanos prevê limitações ou proibições legítimas ao direito
à liberdade de expressão consideradas necessárias para as sociedades democráticas e que, uma vez
configuradas pelo exercício abusivo desse direito, exigem responsabilidades ulteriores.44
No âmbito do Sistema Global, essas hipóteses estão previstas nos artigos 19.3 e 20 do PIDCP. De acordo
com o artigo 19.3, é legítima a limitação do exercício desse direito para: a) assegurar o respeito aos
direitos ou a reputação de outras pessoas e b) para a proteção da segurança nacional e a ordem, saúde
ou moral públicas.45

39
De acordo com a CIDH, no Marco jurídico interamericano sobre o direito à liberdade de expressão são indicados como referência os casos
Palamara Iribarne vs. Chile, Ricardo Canese vs. Paraguai, Kimel vs. Argentina, Tristán Donoso vs Panamá. OEA. Comissão Interamericana
de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano sobre o direito à liberdade de
expressão, 2014.
40
OEA. Caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica. Sentença de 02 de julho de 2004. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articu-
los/seriec_107_esp.pdf. Acesso em: 05 jul. 2021.


41
No original: “[...] todas las figuras públicas, incluso las que ejercen los cargos políticos de mayor importancia, como los Jefes de Estado o de
Gobierno, pueden ser objeto legítimo de críticas y oposición política” NACIONES UNIDAS, Comité de Derechos Humanos. Observación
General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de expresión, 2011.
42
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
43
OEA. Caso López Álvarez vs. Honduras. Sentença de 01 de fevereiro de 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_141_esp.pdf. Acesso em: 02 jun. 2021.
44
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011. OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico
interamericano sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
45
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011.

417
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Segundo a Observação Geral nº 34 da CDH e o Informe sobre a Promoção e Proteção do Direito


à Liberdade de Opinião e Expressão de 2019, as restrições do artigo 19.3 do PIDCP devem observar
certas condições de interpretação e aplicação, como a legalidade, legitimidade, necessidade e propor-
cionalidade. Assim, as restrições devem ser previstas pelos estados por leis claras, públicas e precisas,
evitando possíveis discricionariedades ou ambiguidades na aplicação da norma. Além disso, devem
estar adequadas aos propósitos indicados nas alíneas a) e b) do artigo 19.3, e cumpridas considerando
a necessidade e a proporcionalidade. Os estados precisam demonstrar que a restrição é necessária,
considerando a sustentação democrática das sociedades, adequada e menos restritiva para proteger
um interesse comum ou direito legítimos.46
Outro ponto importante é que “[...] quando um estado parte impõe restrições ao exercício da liberdade
de expressão, essas não podem colocar em perigo esse direito propriamente dito.”47 Ou seja, os estados
não devem utilizar essa possibilidade como forma de intimidação, desvirtuada de seus sentidos vitais
para as sociedades democráticas e proteção dos direitos humanos.
Já de acordo com o artigo 20.1 e 20.2 do PIDCP, são entendidas como proibidas: a) toda a propaganda a
favor da guerra e b) toda a apologia do ódio nacional, racial ou religioso, que constitua incitação à discri-
minação, hostilidade ou violência. A Observação Geral nº 34 do CDH da ONU ainda indica que essas
determinações são excepcionais e obrigatórias aos estados, e devem observar inclusive os critérios
referentes ao artigo 19.3. Isso porque ambos os dispositivos são complementares e compatíveis. Nesse
sentido, “[...] em todos os casos em que o estado restrinja a liberdade de expressão, é necessário justi-
ficar as proibições e colocar suas disposições em estrita conformidade com o artigo 19”.48 As hipóteses
do artigo 19.3 e 20 são igualmente interpretadas em relação aos discursos de ódio que, considerando as
especificidades, serão aprofundadas a seguir.
No âmbito do SIDH, as limitações e proibições ao exercício do direito à liberdade de expressão constam
nos artigos 13.2 e 13.5 da CADH. A redação dos dispositivos é semelhante ao PIDCP, mas há especi-
ficidades no SIDH relativas à proteção ampla da liberdade de expressão. De acordo com a CIDH, a
tolerância e o pluralismo são exigências básicas das sociedades livres e democráticas, e determinadas
formas de comunicação podem configurar abusos, devendo ser reguladas pelos estados. Isso porque o
gozo da liberdade de expressão pressupõe “[...] o dever de não violar os direitos dos outros ao exercer
essa liberdade fundamental.”49
Nesse sentido, o artigo 13.2 também indica que o exercício do direito à liberdade de expressão está
sujeito a responsabilidades ulteriores visando assegurar o respeito aos direitos e à reputação das demais
pessoas e a proteção da segurança nacional, da ordem pública ou da saúde ou da moral públicas, mas
não sujeito à censura prévia. Esse é, portanto, um reforço de proteção ampla e detalhada ao direito à
liberdade de expressão no âmbito do Sistema Interamericano. Em sequência, o artigo 13.4 dispõe que a
possibilidade de regulação dos espetáculos públicos para a proteção de crianças e adolescentes, o que
constitui uma exceção à proibição da censura prévia. E, por fim, o artigo 13.5 igualmente determina que

46
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011. NACIONES UNIDAS, Asemblea General. Promoción y protección del derecho a la libertad de opinión y de expresión
(discurso del ódio en línea). outubro, 2019. Disponível em: https://www.undocs.org/es/A/74/486 Acesso em: 21 maio 2020.


47
No original: “[...] cuando un Estado parte impone restricciones al ejercicio de la libertad de expresión, estas no pueden poner en peligro
el derecho propiamente dicho “ COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19:
Libertad de opinión y libertad de expresión, 2011.
48
No original: “En todos los casos en que el Estado restringe la libertad de expresión, es necessário justificar las prohibiciones y poner sus
disposiciones en estricta conformidad con el artículo 19” COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación Gene-
ral nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de expresión, 2011.
49
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 6.

418
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

a proibição da propaganda a favor da guerra, e toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que
constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência. 50
Assim como no Sistema Global, o Sistema Interamericano, especialmente por meio da jurisprudência,
considera necessário que condições sejam cumpridas para que uma restrição a esse direito seja admis-
sível no âmbito da CADH, sendo elas: legalidade, legitimidade, necessidade e proporcionalidade. Nos
estândares interamericanos, esses critérios são identificados como teste triplo ou teste tripartite,51 e,
segundo a CIDH, devem ser aplicados não apenas às legislações que as regulam, mas “[...] às decisões
e os atos administrativos, judiciais, policiais ou de qualquer índole que as materializam, ou seja, a toda
manifestação do poder estatal que incida sobre o pleno exercício da liberdade de expressão.”52 Como
visto, a explicação geral sobre as condições da legalidade, legitimidade, necessidade e proporcionali-
dade é indicada pelo CDH, no âmbito da ONU. A respeito disso, o detalhamento da CIDH esclarece que:

A jurisprudência interamericana desenvolveu um teste que consiste de três condições que devem
ser plenamente cumpridas para que uma restrição do direito à liberdade de expressão seja admis-
sível sob a Convenção Americana: Princípio da legalidade. Toda restrição à liberdade de expressão
deve ter sido prevista de forma prévia, expressa, taxativa e clara em uma lei, no sentido formal e
material. Ao existir uma proibição absoluta da censura prévia, a lei que estabelecer uma restrição à
liberdade de expressão só pode se referir à exigência de responsabilidades ulteriores. Princípio da
legitimidade. Toda restrição deve estar voltada à realização de objetivos imperiosos autorizados
pela Convenção Americana, voltados à proteção dos direitos dos demais e à proteção da segu-
rança nacional, da ordem pública, da saúde pública ou da moral pública. Princípio da necessidade
e proporcionalidade. Uma restrição deve ser necessária em uma sociedade democrática para a
realização dos fins imperiosos buscados; estritamente proporcional à finalidade buscada; e idônea
para alcançar o objetivo imperioso que quer realizar. O teste da necessidade se aplica de forma
estrita e exigente, requerendo uma demonstração de que existe uma necessidade imperiosa ou
absoluta de introduzir restrições. 53 (grifo nosso).

Nesse sentido, considerando a legalidade, as normas jurídicas que sejam vagas ou ambíguas, e que assim
abrem margem para discricionariedade às autoridades não são consideradas adequadas à CADH. Isso
porque há aumento de risco de arbitrariedades que, na prática, configurem censura prévia ou responsa-
bilidades desproporcionais a exercícios legítimos do direito à liberdade de expressão. No âmbito penal,

50
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.


51
Os requisitos da Corte Interamericana para a aplicação de responsabilidades ulteriores ao exercício da liberdade de expressão já foi con-
templado nos seguintes documentos, podendo ser por meio dos mesmos aprofundado: ”La colegiación obligatoria de periodistas (arts.
13 y 29 Convención Americana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-5/85 de 13 de noviembre de 1985. Serie A No. 5; Caso
Herrera Ulloa Vs. Costa Rica. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 2 de julio de 2004. Serie C No. 107;
Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 22 de noviembre de 2005. Serie C No. 135; Caso Kimel Vs.
Argentina. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 2 de mayo de 2008. Serie C No. 177; Caso Usón Ramírez Vs. Venezuela. Excepción
Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 20 de noviembre de 2009. Serie C No. 207; Caso Fontevecchia y D’Amico Vs. Ar-
gentina. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de noviembre de 2011. Serie C No. 238; Caso Mémoli Vs. Argentina. Excepciones
Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 22 de agosto de 2013. Serie C No. 265; Caso Lagos del Campo Vs. Perú. Excep-
ciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2017. Serie C No. 34; Caso Álvarez Ramos Vs. Venezuela.
Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 30 de agosto de 2019. Serie C No. 380; Caso Urrutia Laubreaux Vs. Chi-
le. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 27 de agosto de 2020. Serie C No. 409; Caso Pueblos Indígenas
Maya Kaqchikel de Sumpango y otros Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de octubre de 2021. Serie C No. 440;
e Caso Palacio Urrutia y otros Vs. Ecuador. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 24 de noviembre de 2021. Serie C No. 446.”
52
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 22.
53
CENTER FOR INTERNACIONAL MEDIA ASSISTANCE; COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH); ORGANIZA-
ÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO) Padrões internacionais de liberdade de expres-
são: Guia para operadores de justiça na América Latina. 2020. Disponível em: https://www.cima.ned.org/wpcontent/uploads/2018/12/
CIMA_LatAm-Legal-FrameworksGuide_Portuguese_web-150ppi.pdf. Acesso em: 05 jun. 2020.

419
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ou seja, nos casos de restrições à liberdade de expressão por normas penais, a tipificação do delito
deve ser profundamente comprometido com a legalidade de forma expressa, precisa, taxativa e prévia,
considerando que esse meio é mais restritivo e severo no estabelecimento de responsabilidades. 54
Já em relação à legitimidade, é compreendido que os estados devem interpretar, com limites, o
conteúdo dos objetivos para fundamentar uma restrição da liberdade de expressão em casos concretos.
Por exemplo, a “proteção dos direitos dos outros” deve considerar os direitos humanos em harmoni-
zação, sempre considerando os seus exercícios respectivos. 55 No mais, antinomias também se afastam
do sentido da proteção da liberdade de expressão, não sendo considerado legítimo que “invocar a
proteção da liberdade de expressão ou da liberdade de informação como um objetivo que justifique,
por sua vez, restringir a liberdade de expressão ou de informação.”56 De outro lado, a compreensão
de “ordem pública”, deve ser interpretado de forma estritamente adequada à democracia, exigindo o
máxima circulação possível de informações, opiniões, notícias e ideias. 57
Por fim, a necessidade e a proporcionalidade compreendem que deve estabelecer de forma clara o
propósito legítimo da restrição, não devendo restringir além do indispensável para garantir o pleno
exercício e alcance do direito à liberdade de expressão. Por isso, é necessário pensar e estabelecer o
meio restritivo ao direito à liberdade de expressão e menos gravoso disponível, evitando exercícios
abusivos e resultados autoritários. 58 No mais, a OEA ainda indicou que a proporcionalidade, em espe-
cial, deve observar:

Segundo a Corte Interamericana, para estabelecer a proporcionalidade de uma restrição quando


se restringe a liberdade de expressão com o objetivo de preservar outros direitos, devem-se avaliar
três fatores: (i) o grau de prejuízo para o direito contrário (grave, intermediário, moderado); (ii) a
importância de satisfazer o direito contrário; e (iii) se a satisfação do direito contrário justifica a
restrição da liberdade de expressão. Não há respostas a priori ou fórmulas de aplicação geral nesse
âmbito; o resultado da ponderação variará em cada caso, privilegiando em alguns casos a liberdade
de expressão, e em outros o direito contrário. Se a responsabilidade ulterior aplicada a um caso
concreto termina sendo desproporcional ou não se ajusta ao interesse da justiça, há uma violação
do artigo 13.2 da Convenção Americana. 59

Além disso, no caso Tristán Donoso Vs. Panamá há o registro pela Corte IDH de que o contexto das
expressões deve ser analisado junto com essas condições para a avaliação de possíveis restrições legí-
timas, inclusive pelo poder judiciário dos Estados. Assim, a Corte IDH afirma que, junto com a conside-
ração do contexto em que a manifestação foi proferida, sejam também levadas em conta circunstâncias
específicas do fato para determinar a necessidade de uma responsabilização penal ou civil.60 Outro
ponto relevante e que consta nesse caso, assim como em outros já julgados pela Corte IDH, é que por

54
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
55
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
56
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 26.


57
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
58
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
59
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 29
60
OEA. Caso Tristán Donoso Vs. Panamá. Sentença de 27 de janeiro de 2009. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articu-
los/seriec_193_esp.pdf. Acesso em: 30 jul. 2021.

420
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

mais que a responsabilização penal seja mais grave, responsabilizações civis elevadas podem ser “[...]
mais intimidantes ou inibidoras para o exercício da liberdade de expressão que uma sanção penal [...]”61
porque potencialmente geram efeitos de autocensura, inclusive para outros indivíduos.
Alguns exemplos de análises da Corte IDH sobre a aplicação do teste triplo ou tripartite, ou seja, sobre
a verificação das condições para responsabilidades ulteriores que sejam compatíveis com a CADH,
podem auxiliar esse entendimento.
Primeiro, no caso Tristán Donoso Vs. Panamá, Santander Tristán Donoso, advogado, foi condenado pela
jurisdição interna do Panamá pelo crime de calúnia em razão de manifestações contra o Procurador
Geral da Nação veiculadas em uma coletiva de imprensa. Em seu discurso, Tristán Donoso afirmava
que esse funcionário gravou e divulgou suas comunicações privadas para terceiros. Na análise da Corte
IDH sobre o teste triplo e tripartite, foi considerado que apesar da condição da legalidade e legitimi-
dade estarem presentes – o tipo penal estava formalmente previsto na legislação de forma direta e
delimitada, e a CADH indica a possibilidade de proteção da reputação de terceiros – a condição da
necessidade e proporcionalidade restavam ausentes. Isso porque a fala de Tristán Donoso foi sobre
fatos com maior interesse público em razão da condição de funcionário público do Procurador Geral
da Nação, que permite maiores críticas e riscos de interferências a sua honra pela atuação pública.
Nesse sentido, esse foi um dos argumentos que sustentaram a condenação do estado do Panamá pela
violação do direito à liberdade de expressão de Tristán Donoso.62
Segundo, no caso Usón Ramírez vs. Venezuela, Franciso Usón Ramírez expressou opiniões e críticas
sobre a atuação da Força Armada Nacional em um programa de televisão, e foi condenado pela juris-
dição interna da Venezuela pelo crime de injúria contra a referida instituição. De acordo com a Corte
IDH, a determinação de responsabilidades ulteriores não foi legítima e não cumpria com as exigências
obrigatórias. Dentre os fundamentos, a Corte IDH entendeu que o critério da legalidade não havia
sido cumprido porque a norma penal pelo qual Usón Ramírez foi condenado não possuía uma clara
definição da conduta e era vaga e ambígua, o que abre margem para discricionariedades e possíveis
interpretações de restrição indevida da liberdade de expressão. Por isso, a imposição da limitação foi
incompatível com a disposição do artigo 13 da CADH violando o direito à liberdade de expressão, assim,
demandando a condenação do Estado.63
Nesse sentido, a CIDH indica que são limitações incompatíveis com a CADH: a) restrições que confi-
gurem censura prévia direta ou indireta. Ou seja, medidas que exerçam controle preventivo ou prévio
de conteúdos e do exercício do direito à liberdade de expressão, já que a determinação é de que as
responsabilidades, como dito, sejam ulteriores; b) restrições que produzem efeitos discriminatórios
ou discriminem e perpetuem preconceitos; c) restrições indiretas, que correspondem à disposição do
artigo 13.3 da CADH e serão detalhadas oportunamente. De outro lado, e pontuando de forma resu-
mida o que foi aqui registrado, são restrições compatíveis com a CADH: a) aquelas que atendem o
princípio democrático, isto é, que cumpram os propósitos e exigências de uma sociedade democrática
e suas instituições; b) aquelas que respeitem o teste triplo ou tripartite, sendo previstas em legislações
de forma precisa, atendam aos objetivos da CADH e sejam necessárias e proporcionais.


61
No original: “[...] más intimidante e inhibidor para el ejercicio de la libertad de expresión que una sanción penal [...]” OEA. Caso Tristán
Donoso Vs. Panamá. Sentença de 27 de janeiro de 2009. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_193_esp.
pdf. Acesso em: 30 jul. 2021.
62
OEA. Caso Tristán Donoso Vs. Panamá. Sentença de 27 de janeiro de 2009. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articu-
los/seriec_193_esp.pdf. Acesso em: 30 jul. 2021.
63
OEA. Caso Usón Ramírez vs. Venezuela. Sentença de 20 de novembro de 2009. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articu-
los/seriec_207_esp.pdf. Acesso em: 19 jul 2021.

421
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

5. DISCURSO DE ÓDIO

De acordo com diretrizes internacionais do Sistema Global e Interamericano, as manifestações de ódio


apresentaram considerável aumento nos últimos anos no contexto mundial, principalmente em razão
da ampliação da comunicação por meio da internet. Os fluxos migratórios, as crises de economias
nacionais, o alcance transnacional da liberdade de expressão e das comunicações, o terrorismo são
alguns dos fatores considerados como capazes de aumentar a tendência de estigma, práticas exclu-
dentes e discriminatórias contra grupos sociais minoritários. De modo geral, os discursos de ódio mani-
festam conteúdos depreciativos racistas, machistas, anti-semitas, xenofóbicos, LGBTIQIA+fóbicos, e
são dirigidos contra uma coletividade ou uma pessoa em razão de sua identificação a um grupo social,
ou seja, pelo reconhecimento social em termos de raça, gênero, orientação sexual, religião, nacionali-
dade, entre outros.64
Assim, no direito internacional dos direitos humanos, o discurso de ódio é um fenômeno regulado
por diferentes normativas internacionais soft law e hard law, ainda que não haja um conceito jurí-
dico universalmente aceito para o termo discurso de ódio. Como formas de comunicação ou outras
condutas expressivas, essas manifestações são interpretadas principalmente à luz do direito à liber-
dade de expressão e das possíveis restrições legítimas ao seu exercício, além do direito à igualdade
e não discriminação.65 De acordo com os Sistemas de Proteção Global e Interamericano de Direitos
Humanos, os artigos 19 e 20 do PIDCP e o artigo 13 da CADH incidem sobre um discurso de ódio a
depender do contexto e de diferentes circunstâncias que podem envolver expressões.66
No âmbito do Sistema Global, os discursos de ódio têm sido compreendidos como diferentes formas
de comunicação que insultam ou incitam discriminação, hostilidade e violência contra grupos sociais
minoritários ou seus integrantes, com base em fatores de identidade67. A United Nations Strategy and

64
ONU. Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations Field Presences.
2020. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20on%20Hate%20
Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020. ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICA-
NOS. Las expresiones de ódio y la Convención Americana sobre Derechos Humanos. Capítulo VII. 2004. Disponível em: https://
www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/odio/expreisones%20de%20odio%20informe%20anual%202004-2.pdf. Acesso em: 03
mar. 2020. ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Informe Anual de la
Relatoria Especial para la Libertad de Expresión, 2015. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/
informeanual2015rele.Pdf. Acesso em: 10 jul 2021.
65
ONU. Strategy and plan of action on hate speech. 2019. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/
UN%20Strategy%20and%20Plan%20of%20Action%20on%20Hate%20Speech%2018%20June%20SYNOPSIS.pdf. Acesso em: 05 jun.
2020. WEBER, Anne. Manual on hate speech. Council of Europe Publishing, 2009. Disponível em: http://icm.sk/subory/Manual_on_
hate_speech.pdf. Acesso em: 30 jun. 2019. ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Relatoría Especial para la Libertad
de Expresión. Informe Anual de la Relatoria Especial para la Libertad de Expresión, 2015. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/
expresion/docs/informes/anuales/informeanual2015rele.Pdf. Acesso em: 10 jul 2021.
66
ONU. Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations Field Presences.
2020. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20on%20Hate%20
Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020. ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICA-
NOS. Las expresiones de ódio y la Convención Americana sobre Derechos Humanos. Capítulo VII. 2004. Disponível em: https://
www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/odio/expreisones%20de%20odio%20informe%20anual%202004-2.pdf. Acesso em: 03
mar. 2020ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Informe Anual de la
Relatoria Especial para la Libertad de Expresión, 2015. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/
informeanual2015rele.Pdf. Acesso em: 10 jul 2021.


67
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Promoción y protección del derecho a la libertad de opinión y de expresión (discurso
del ódio en línea). outubro, 2019. Disponível em: https://www.undocs.org/es/A/74/486. Acesso em: 21 maio 2020. ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS. Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations Field
Presences. 2020. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20on%20
Hate%20Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.

422
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Plan of Action on Hate Speech (Estratégia e Plano de Ação das Nações Unidas sobre Discurso de Ódio),
de 2019, define o termo:

[...] qualquer forma de comunicação de palavra, por escrito ou por comportamento, que seja um
ataque ou utilize linguagem pejorativa ou discriminatória em relação a uma pessoa ou um grupo
pelo fato de serem quem são ou, em outras palavras, em razão de sua religião, origem étnica,
nacionalidade, raça, cor, ascendência, gênero ou outro fator de identidade. (tradução nossa)68

O posterior detalhamento da Estratégia, a United Nations Strategy and Plan of Action on Hate
Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations Field Presences, de 2020, indica
que as formas de comunicação podem abranger imagens, símbolos, desenhos, condutas, e veicula-
ções offline e online. Já os ataques pejorativos ou discriminatórios correspondem a comunicações
intolerantes, preconceituosas e depreciativas sobre um grupo social, que é alvo do discurso, ou de um
de seus integrantes. Por isso, discursos de ódio são articulados com base em fatores de identidade,
havendo uma conexão da fala com os critérios proibidos de discriminação, em lista não exaustiva. Além
disso, o Sistema Global igualmente orienta uma atenção especial a grupos sociais em situação de
vulnerabilidade histórica, que incluem discriminação, marginalização econômica, política, e conflitos
sociais prolongados.69
Isso deixa claro que, para configuração de um discurso de ódio, um dos requisitos é a expressão ser
dirigida contra indivíduos com base em uma característica de identificação a grupo social, ou ao grupo
social como um todo. No Informe sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e
Expressão de 2019, foi inclusive esclarecido que apesar do artigo 20 do PIDCP indicar apenas os fatores
raça, nacionalidade e religião, a proibição da apologia ao ódio que constitua incitação se aplica a outras
categorias de identidade, como gênero, orientação sexual, condição de migrante ou refugiado, opinião
política, condição econômica. Ou seja, todas protegidas de forma ampla pelo DIDH no âmbito da igual-
dade e não-discriminação. 70
Em relação aos possíveis enfrentamentos jurídicos a essas manifestações com base nos artigos 19 e
20 do PIDCP, os instrumentos internacionais soft law do Sistema Global tem proposto a consideração
de três níveis de gravidade para os discursos de ódio. Isso constou nos Informes para a Proteção da
Liberdade de Opinião e Expressão dos anos de 2011 e 2012, 71 e foi reafirmado em documentos poste-
riores, como o Rabat Plan of Action on the prohibition of advocacy of national, racial or religious hatred

68
“[...] any kind of communication in speech, writing or behaviour, that attacks or uses pejorative or discriminatory language with reference
to a person or a group on the basis of who they are, in other words, based on their religion, ethnicity, nationality, race, colour, descent,
gender or other identity factor.” ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Strategy and plan of action on hate speech. 2019. Disponível
em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20Plan%20of%20Action%20on%20Hate%20
Speech%2018%20June%20SYNOPSIS.pdf. Acesso em: 05 jun. 2020. p. 2.
69
ONU. United Nations Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations
Field Presences. 2020. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20
on%20Hate%20Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.
70
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Promoción y protección del derecho a la libertad de opinión y de expresión (discurso
del ódio en línea). outubro, 2019. Disponível em: https://www.undocs.org/es/A/74/486 Acesso em: 21 maio 2020.


71
NACIONES UNIDAS, Asamblea General. Promoción y protección del derecho a la libertad de opinión y de expresión. agosto, 2011.
Disponível em: https://undocs.org/sp/A/66/290. Acesso em: 02 jun. 2020; NACIONES UNIDAS, Asamblea General. Promoción y Protec-
ción del derecho a la libertad de opinión y de expresión. setembro, 2012. Disponível em: https://undocs.org/es/A/67/357. Acesso em: 30
maio 2020.

423
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

that constitutes incitement to discrimination, hostility or violence (Plano de Ação de Rabat), 72 de 2013 e
recentemente, na Estratégia de Plano de Ação contra o Discurso de Ódio e seu Detalhamento, 73 de 2020.
Os três níveis de gravidade se dividem em superior, intermediário e inferior. No nível superior estão
as formas mais severas de discursos de ódio e que constituem proibições expressas, como a previsão
do artigo 20.2 do PIDCP, que proíbe a apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua
incitação à discriminação, hostilidade e violência. 74 Na classificação superior também são incluídas a
incitação pública e direta de cometer genocídio, prevista no artigo 3º da Convenção para a Prevenção e
Repressão do Genocídio, e toda a difusão de ideias com base na superioridade ou ódio racial, incitação
à discriminação racial, e todos os atos de violência ou incitação com base em raça, cor e origem étnica,
prevista no artigo 4º da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. 75 Para
discursos de ódio graves e que se enquadrem nessas hipóteses, a orientação é que os estados cumpram
a determinação de proibição e que a responsabilização jurídica ocorra no âmbito penal. 76
Já no nível intermediário estão as formas de discursos de ódio menos severas, que podem ser restrin-
gidas pelos estados para proteger os direitos de outros indivíduos, a exemplo de ameaças de violência
ou assédio, reputação, ordem, segurança e saúde públicas, conforme a disposição do artigo 19.3 do
PIDCP. Para discursos de ódio intermediários, que não atinjam os requisitos dispostos no artigo 20.2
do PIDCP, mas justifiquem enfrentamentos, a orientação é que a responsabilização jurídica ocorra nos
âmbitos civil ou administrativo. E, por fim, há o nível inferior, que compreende as formas menos severas
de expressões intolerantes, que não estão sujeitas a restrições e fazem parte do pluralismo de ideias dos
sistemas democráticos, como expressões grosseiras, ofensivas e insultos de menor potencial ofensivo, a
depender das circunstâncias de contexto. 77
Isso indica que os estândares internacionais do Sistema Global não direcionam um mesmo enfrenta-
mento jurídico e idêntica tomada de medidas pelos Estados para todas as expressões de discurso de

72
ONU. Assembleia Geral. The Rabat Plan of Action on the prohibition of advocacy of national, racial or religious hatred that cons-
titutes incitement to discrimination, hostility or violence. janeiro 2013. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Opi-
nion/SeminarRabat/.pdf. Acesso em: 18 maio 2020.
73
ONU. United Nations Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations
Field Presences. 2020. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20
on%20Hate%20Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.

ONU. United Nations Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations
74

Field Presences. 2020. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20


on%20Hate%20Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.
75
ONU, Assembleia Geral. Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio. Nova Iorque, 1951. Disponível em: https://www.
oas.org/dil/port/1948%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20a%20Preven%C3%A7%C3%A3o%20e%20Puni%C3%A7%-
C3%A3o%20do%20Crime%20de%20Genoc%C3%ADdio.pdf.Acesso em: 02 mar. 2020. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, As-
sembleia Geral. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Nova York, dez. 1965.
Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139390por.pdf.Acesso em: 21 out. 2020.
76
ONU. Assembleia Geral. The Rabat Plan of Action on the prohibition of advocacy of national, racial or religious hatred that cons-
titutes incitement to discrimination, hostility or violence. janeiro 2013. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/
Opinion/SeminarRabat/.pdf. Acesso em: 18 maio 2020. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Strategy and Plan of
Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations Field Presences. 2020. Disponível em: https://
www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20on%20Hate%20Speech_Guidance%20on%20
Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.
77
ONU. Assembleia Geral. The Rabat Plan of Action on the prohibition of advocacy of national, racial or religious hatred that cons-
titutes incitement to discrimination, hostility or violence. janeiro 2013. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/
Opinion/SeminarRabat/.pdf. Acesso em: 18 maio 2020. ONU. United Nations Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed
Guidance on Implementation for United Nations Field Presences. 2020. Disponível em:https://www.un.org/en/genocideprevention/
documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20on%20Hate%20Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Aces-
so em: 01 nov. 2020.

424
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

ódio. De acordo com as orientações internacionais do Sistema Global, o termo ódio que está expresso
no artigo 20.2 do PIDCP faz parte da tipificação que proíbe a apologia ao ódio que constitua incitação
à discriminação, hostilidade e violência. Por isso, são considerados proibidos e se enquadram no artigo
20.2 do PIDCP os discursos de ódio mais severos e que de fato configurem uma incitação, que implica
um vínculo considerável entre a expressão e o risco de que ocorra uma das três consequências: discri-
minação, hostilidade ou violência. 78 Entretanto, essa especificidade não impede medidas propositivas
e responsabilizações jurídicas civis e administrativas a outras expressões que também caracterizem
discurso de ódio e se enquadrem nas previsões do artigo 19.3 do PIDCP. 79
Para auxiliar a identificação de discursos de ódio graves e proibidos e melhor definir cada um dos
elementos do artigo 20.2 do PIDCP, o Informe para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade
de Opinião e Expressão da ONU, de 2012, listou os seguintes conceitos do The Camden Principles
on Freedom of Expression and Equality, formulado pela Article 1980 sobre a liberdade de expressão
e questões relativas à igualdade,81 e indicados pelo Escritório Regional para a América do Sul do Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH):

a) O ‘ódio’ é um estado de espírito que se caracteriza por emoções intensas e irracionais de


opróbio, inimizade e aversão ao grupo; b) A ‘apologia’ é o apoio e promoção explícitos, inten-
cionais, públicos e ativos de ódio ao grupo; c) A ‘incitação’ se refere às declarações sobre um
grupo nacional, racial ou religioso que constituem um risco iminente de discriminação, hostilidade
ou violência contra as pessoas pertencentes ao grupo; d) Por ‘discriminação’ se entende toda a
distinção, exclusão ou restrição por motivos de raça, cor, ascendência, origem nacional ou étnica,
nacionalidade, gênero, orientação sexual, idioma, religião, opinião política ou de outra índole,
idade, situação econômica, patrimônio, estado civil, incapacidade, ou por qualquer outra condição
que tenha por objetivo ou resultado menosprezar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício,
em igualdade de condições, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nas esferas
política, econômica, social, cultural, civil e em qualquer outra esfera da vida pública; e) A ‘hostili-
dade’ é uma manifestação de ódio mais além de um mero estado de ânimo. Como sublinhou um
pesquisador nos seminários regionais sobre a proibição da incitação, esse conceito tem recebido
escassa atenção na jurisprudência e requer mais debates; f) A ‘violência’ é o uso da força física ou
do poder contra outra pessoa, ou contra um grupo ou comunidade, que cause ou tenha muitas

78
ONU, Assembleia Geral. Promoción y protección del derecho a la libertad de opinión y de expresión. agosto, 2011. Disponível em:
https://undocs.org/sp/A/66/290. Acesso em: 02 jun. 2020; NACIONES UNIDAS, Asamblea General. Promoción y Protección del derecho
a la libertad de opinión y de expresión. setembro, 2012. Disponível em: https://undocs.org/es/A/67/357. Acesso em: 30 maio 2020.ONU.
United Nations Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations Field
Presences. 2020. Disponível em:https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20on%20
Hate%20Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.
79
ONU. United Nations Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations
Field Presences. 2020. Disponível em:https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20
on%20Hate%20Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.
80
A Artigo 19 (em inglês Article 19), é uma organização não-governamental de direitos humanos, que conta com escritórios em nove países
e tem como principal missão atuar na defesa e promoção do direito à liberdade de expressão e acesso à informação. ARTIGO 19. Sobre a
Artigo 19. 2021. Disponível em: https://artigo19.org/sobre/. Acesso em: 20 fev. 2021.


81
ARTICLE 19. Global Campaign for Free Expression. The Camden Principles on Freedom of Expression and Equality. 2009. Disponível
em: https://www.article19.org/data/files/pdfs/standards/the-camden-principles-on-freedom-of-expressionand-equality.pdf. Acesso em:
25 jan. 2021.

425
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

probabilidades de causar lesões, morte, danos psicológicos, transtornos do desenvolvimento ou


privações82. (grifo nosso).

Essas definições têm sido reiteradas por instrumentos internacionais recentes no âmbito do Sistema
Global,83 juntamente com a preocupação sobre como interpretar a disposição do artigo 20.2 do PIDCP
e, assim, identificar discursos que constituam uma incitação à discriminação, hostilidade ou violência.
O Plano de Ação de Rabat, elaborado em 2013, é um dos principais mecanismos jurídicos soft law
que oferece elementos para identificar discursos de ódio graves, que se enquadrem no artigo 20.2 do
PIDCP, considerando a necessária proteção do direito à liberdade de expressão e o caráter excepcional
da proibição da incitação ao ódio. Para tanto, o documento sugere o six-part threshold test (teste de seis
fatores), isto é, a utilização e aplicação de critérios como: contexto, falante, intenção, conteúdo e forma,
extensão do ato do discurso e probabilidade, incluindo a iminência.84
Nesse sentido, o Plano de Ação de Rabat recomenda que os estados e suas instituições judiciais apli-
quem o teste de seis fatores nos casos concretos de discurso de ódio, para avaliar a possível configu-
ração de incitação. Em complementação, o documento recomenda que os Estados garantam todas as
formas de reparação dos grupos sociais ou indivíduos atingidos, sendo: a) os enfrentamentos no âmbito
penal aplicados em situações estritamente justificáveis, restritas e graves, que atinjam os requisitos do
teste de seis fatores; b) os enfrentamentos no âmbito civil aplicados às expressões que não caracteri-
zarem a presença satisfatória destes elementos, na proporção do dano ou da gravidade da expressão,
de acordo com o artigo 19.3 do PIDCP.85 O teste de seis fatores e outros conteúdos do Plano de Ação
de Rabat têm sido indicados e complementados em documentos internacionais recentes do Sistema
Global, como a Estratégia de Plano de Ação contra o Discurso de Ódio e seu Detalhamento,86 de 2020.


82
No original: “a) El ‘odio’ es un estado de ánimo que se caracteriza por emociones intensas e irracionales de oprobio, enemistad y aversión
hacia el grupo al que van dirigidas; b) La ‘apología’ es el apoyo y la promoción explícitos, intencionales, públicos y activos del odio hacia
un grupo; c) La ‘incitación’ se refiere a las declaraciones sobre un grupo nacional, racial o religioso que constituyen un riesgo inminente
de discriminación, hostilidad o violencia contra las personas pertenecientes a dicho grupo; d) Por ‘discriminación’ se entiende toda dis-
tinción, exclusión o restricción por motivos de raza, color, ascendencia, origen nacional o étnico, nacionalidad, género, orientación sexual,
idioma, religión, opinión política o de otra índole, edad, situación económica, patrimonio, estado civil, discapacidad, o por cualquier otra
condición que tenga por objeto o resultado menoscabar o anular el reconocimiento, goce o ejercicio, en igualdad de condiciones, de to-
dos los derechos humanos y libertades fundamentales en las esferas política, económica, social, cultural, civil y em cualquier outra esfera
de la vida pública; e) La ‘hostilidad’ es una manifestación del odio más allá de un mero estado de ánimo. Como subrayó un experto en los
seminarios regionales sobre la prohibición de la incitación, este concepto ha recibido escasa atención en la jurisprudencia y requiere más
debates; f) La ‘violencia’ es el uso de la fuerza física o del poder contra otra persona, o contra un grupo o comunidad, que cause o tenga
muchas probabilidades de causar lesiones, muerte, daños psicológicos, trastornos del desarrollo o privaciones.” NACIONES UNIDAS,
Asamblea General. Promoción y Protección del derecho a la libertad de opinión y de expresión. setembro, 2012. Disponível em:
https://undocs.org/es/A/67/357. Acesso em: 30 mai, 2020. p. 13-14.
83
ONU. United Nations Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations
Field Presences. 2020. Disponível em:https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20
on%20Hate%20Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.
84
ONU. Assembleia Geral. The Rabat Plan of Action on the prohibition of advocacy of national, racial or religious hatred that cons-
titutes incitement to discrimination, hostility or violence. janeiro 2013. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Opi-
nion/SeminarRabat/.pdf. Acesso em: 18 maio 2020.
85
ONU. Assembleia Geral. The Rabat Plan of Action on the prohibition of advocacy of national, racial or religious hatred that cons-
titutes incitement to discrimination, hostility or violence. janeiro, 2013. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/
Opinion/SeminarRabat/Rabat_draft. Acesso em: 18 abr. 2020.
86
ONU. United Nations Strategy and Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations
Field Presences. 2020. Disponível em: https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20
on%20Hate%20Speech_Guidance%20on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.

426
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Nessa última, há a referência de uma série de questionamentos e variáveis a cada um dos fatores, a fim
de auxiliar a sua verificação aplicada a uma situação concreta.87
Por fim, cabe registrar que a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da ONU já tem abordado
as normas de direitos humanos aplicáveis à liberdade de expressão no âmbito das novas tecnologias e
da internet, o que inclui as dinâmicas dos discursos de ódio online. De acordo com o Informe para a
Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão de 2019, o Relator Especial avaliou
a regulação dos discursos de ódio online pelas empresas de mídias sociais. Nesse sentido, o Plano de
Ação de Rabat e o teste de seis fatores foram indicados como parâmetro para que as políticas regulató-
rias das empresas de mídias sociais definam o que é incitação, de forma precisa e clara, e considerado
suficiente para avaliar conteúdos online que devem ser restringidos por meio das políticas de regu-
lação de conteúdo.88
Já no âmbito do SIDH, a CIDH também reafirma que não há um conceito jurídico unânime para definir
discurso de ódio89. Ao tratar sobre o tema no documento internacional Las expresiones de ódio y la
Convención Americana sobre Derechos Humanos, de 2004, a CIDH trata dessas expressões como “[...]
o discurso destinado a intimidar, oprimir ou incitar ao ódio ou à violência contra uma pessoa ou grupo
com base em raça, religião, nacionalidade, gênero, orientação sexual, deficiência ou outra caracterís-
tica de grupo.”90 Em complementação, no Informe Anual da Relatoria Especial para a Liberdade de
Expressão de 2015, foi referida uma definição construída pela UNESCO no estudo Countering online
hate speech, de 2015,91 que compreende esses discursos como:

[...] as expressões a favor da incitação de fazer dano (particularmente a discriminação, hostilidade


e violência), com base na identificação da vítima como pertencente a determinado grupo social ou
demográfico. Pode incluir, entre outros, discursos que incitam, ameaçam ou motivam a cometer
atos de violência. Não obstante, para alguns o conceito se estende também às expressões que
alimentam um ambiente de prejuízo e intolerância no entendimento de que tal ambiente pode
incentivar a discriminação, hostilidade e ataques violentos dirigidos a certas pessoas.92

87
Para conferir as complementações trazidas a cada um dos critérios do teste de seis fatores, consultar: ONU. United Nations Strategy and
Plan of Action on Hate Speech: Detailed Guidance on Implementation for United Nations Field Presences. 2020. Disponível em:
https://www.un.org/en/genocideprevention/documents/UN%20Strategy%20and%20PoA%20on%20Hate%20Speech_Guidance%20
on%20Addressing%20in%20field.pdf. Acesso em: 01 nov. 2020.
88
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Promoción y protección del derecho a la libertad de opinion y de expression (discurso
del odio en linea). outubro, 2019. Disponível em: https://www.undocs.org/es/A/74/486. Acesso em: 21 maio 2020.
89
Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Informe Anual de la Relatoria Es-
pecial para la Libertad de Expresión. 2015. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/informeanual-
2015rele.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021.
90
No original: “[...] el discurso destinado a intimidar, oprimir o incitar al odio o la violencia contra una persona o grupo en base a su raza,
religión, nacionalidad, género, orientación sexual, discapacidad u otra característica grupal.” ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AME-
RICANOS (OEA). Las expresiones de ódio y la Convención Americana sobre Derechos Humanos. Capítulo VII. 2004. Disponível em:
https://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/odio/expreisones%20de%20odio%20informe%20anual%202004-2.pdf. Acesso
em: 03 mar. 2020. p. 1.


91
ONU EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION (UNESCO). Countering online hate speech. France: UNESCO,
2015. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233231. Acesso em: 04 ago. 2020.
92
No original: “[…] las expresiones a favor de la incitación a hacer daño (particularmente a la discriminación, hostilidad o violencia) con base
en la identificación de la víctima como perteneciente a determinado grupo social o demográfico. Puede incluir, entre otros, discursos que
incitan, amenazan o motivan a cometer actos de violencia. No obstante, para algunos el concepto se extiende también a las expresiones
que alimentan un ambiente de prejuicio y intolerancia en el entendido de que tal ambiente puede incentivar la discriminación, hostilidad
y ataques violentos dirigidos a ciertas personas.” ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS. Comisión Interamericana de Dere-
chos Humanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Informe Anual de la Relatoria Especial para la Libertad de Expresión.
2015. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/informeanual2015rele.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021. p.
375.

427
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Em grande similaridade com as orientações internacionais da Sistema Global, a CIDH indica que de
acordo com o artigo 13.5 da CADH, os Estados estão “[...] obrigados a proibir o discurso de ódio em
circunstâncias limitadas, isto é, quando o discurso constitua incitação à violência ou qualquer outra
ação ilegal similar contra qualquer pessoa ou grupo de pessoas,”93 fundada na raça, cor, religião, idioma,
origem nacional, entre outros. Nesse sentido, as diretrizes e obrigações interamericanas aos Estados
também são no sentido de proibir os discursos de ódio mais graves, que configurem uma incitação
a violência, discriminação, hostilidade. Além disso, assim como na redação do artigo 20 do PIDCP, o
artigo 13.5 da CADH menciona apenas os fatores nacionalidade, raça e religião. Porém, a CIDH escla-
receu no Informe Anual da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão de 2015 que essa proibição
se aplica igualmente a outros fatores de identidade, como orientação sexual e gênero94, por força dos
princípios gerais da interpretação dos tratados, tendo o caso Atala Riffo e hijas vs. Chile contribuído
significativamente para tanto.95
De outro lado, de acordo com a disposição do artigo 13.2 da CADH, os Estados podem estabelecer
responsabilidades ulteriores civis ou administrativas para expressão de discursos de ódio que não
constituam incitação à discriminação, hostilidade e violência. Nesse sentido, mesmo que não atinjam
os critérios específicos da disposição do artigo 13.5, discursos de ódio podem exigir enfrentamentos
jurídicos civis ou administrativos, a depender das circunstâncias do fato e respeitando os critérios da
legalidade, legitimidade, necessidade e proporcionalidade para as restrições legítimas ao exercício do
direito à liberdade de expressão, já referidas.96 Isso se justifica para “[...] garantir os direitos à dignidade e
não discriminação de um grupo participar da sociedade, incluindo as pessoas LGBTI.”97
A CIDH, ainda, já referiu os diferentes instrumentos internacionais soft law do Sistema Global para
auxiliar a identificar discursos de ódio que configuram incitação, como o Plano de Ação de Rabat e o
teste de seis fatores. Contudo, a fim de melhor enquadrar manifestações de ódio na previsão do artigo
13.5 da CADH, a própria CIDH refere que é necessário ter em conta: a) a prova atual, certa e objetiva de
que a pessoa não estava simplesmente manifestando uma opinião, ainda que dura, injusta ou perturba-
dora; b) que o emissor do discurso possuía intenção de promover alguma das circunstâncias do artigo
13.5 da CADH, assim como a capacidade de obter êxito nesse objetivo; c) que a expressão de ódio
comporte um risco de dano contra as pessoas que pertencem aos grupos atingidos. Entretanto, como

93
No original: “[...] sólo están obligados a prohibir el discurso de odio en circunstancias limitadas, esto es, cuando el discurso constituya
incitación a la violencia o cualquier otra acción ilegal similar contra cualquier persona o grupo de personas.” ORGANIZACIÓN DE LOS ES-
TADOS AMERICANOS (OEA). Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Informe
Anual de la Relatoria Especial para la Libertad de Expresión. 2015. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/
anuales/informeanual2015rele.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021.
94
OEA. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Informe Anual de la Relatoria
Especial para la Libertad de Expresión. 2015. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/informea-
nual2015rele.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021.
95
No caso Atala Riffo e hijas vs. Chile, foi reconhecido que os critérios proibidos de discriminação são exemplificativos e não taxativos, e por
isso é necessário considerar também gênero e orientação sexual nas categorias protegidas pela CADH contra todas as formas de discri-
minação, em interpretação evolutiva. Além disso, a menção da discriminação estrutural e histórica no caso auxiliou a Corte IDH a registrar
que as minorias sexuais têm sofrido práticas discriminatórias associados à persistência da reprodução de estereótipos negativos e circula-
ção do preconceito. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Atala Riffo
e hijas vs. Chile. Sentença de 24 de fevereiro de 2012. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_193_esp.pdf.
Acesso em: 15 maio 2021.
96
OEA. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Informe Anual de la Relatoria
Especial para la Libertad de Expresión. 2015. Disponível em:http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/informea-
nual2015rele.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021.


97
No original: “[...] garantizar los derechos a la dignidad y no discriminación de un grupo particular de la sociedad, incluyendo las personas
LGBTI.” ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoría Especial
para la Libertad de Expresión. Informe Anual de la Relatoria Especial para la Libertad de Expresión. 2015. Disponível em:http://www.
oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/informeanual2015rele.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021. p. 5.

428
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

dito, quando na situação concreta de discurso de ódio não for possível verificar todos esses elementos
do artigo 13.5 da CADH, é possível que as expressões sejam enfrentadas juridicamente por meio do
artigo 13.2 da CADH, estando sujeito a responsabilidades posteriores, no âmbito civil ou administrativo,
ou, ainda, a recursos como o direito à retificação ou réplica.
Recentemente, no caso Azul Rojas Marín y outra vs. Perú, a Corte IDH argumentou sobre a relação
entre a violência física e psicológica com os discursos de ódio. No caso, Azul Rojas Marín, atualmente
identificada como mulher, foi detida a torturado pela polícia peruana em 2008, momento em que se
identificava como um homem gay, de forma arbitrária, ilegal e discriminatória, ocasião em que sofreu
violência física, psicológica e sexual pelos agentes estatais. Segundo a Corte IDH, os atos de violência e
maus tratos foram realizados com fins discriminatórios e preconceituosos, ou seja, motivados pelo fato
de Rojas Marín ser uma pessoa LGBTI. Isso porque: a) a modalidade empregada para a violência sexual
foi anal, o que transmite uma mensagem simbólica de autoridade pela vítima não cumprir padrões esta-
belecidos pela masculinidade; b) os policiais expressaram insultos, gestos e comentários discriminató-
rios e estereotipados durante os atos, com referência a identidade sexual e de gênero de Rojas Marín.98
Por isso, a Corte IDH enquadrou o fato como um hate crime, isto é, um crime de ódio, “[...] porque é
claro que a agressão à vítima esteve motivada na sua orientação sexual, ou seja, este delito não somente
lesionou bens jurídicos de Azul Rojas Marín, mas também foi uma mensagem a todas as pessoas LGBTI
como ameaça à liberdade e dignidade desse grupo social.”99 Considerando que os crimes de ódio não
se confundem com os discursos de ódio, mas podem estar relacionados em casos concretos, a Corte
IDH esclareceu que os discursos de ódio alimentam violências e práticas discriminatórias:

A violência contra as pessoas LGBTI tem um fim simbólico, a vítima é escolhida com o propósito
de comunicar uma mensagem de exclusão ou subordinação. Sobre esse ponto, a Corte tem regis-
trado que a violência exercida por razões discriminatórias tem por efeito ou propósito impedir ou
anular o reconhecimento, gozo ou exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais da
pessoa sujeita a tal discriminação, independentemente se essa pessoa se identificar ou não com
uma determinada categoria. Essa violência, alimentada por discursos de ódio, pode dar lugar a
crimes de ódio.100

O caso Vicky Hernández y otras vs. Honduras igualmente complementa o tema, tendo o Caso Azul
Rojas Marín sido citado em relação ao entendimento de hate crime, dos discursos de ódio, preconceito
e discriminação que reiterados podem motivar esses atos e da violência contra a população LGBTI, de
modo geral. Vicky Hernández, mulher trans e defensora de direitos, foi morta em 2009 em um contexto
de violência e discriminação contra pessoas LGBTI em Honduras, caracterizada pela alta incidência de
atos cometidos pela força pública aliada ao contexto do golpe de estado, ocorrido no mesmo ano. Em

98
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Azul Rojas Marín y otra vs. Perú. Sentença de 12 de março de 2020. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_193_esp.pdf. Acesso em: 15 maio 2021.
99
No original: “[...] pues es claro que la agresión a la víctima estuvo motivada en su orientación sexual, o sea que, este delito no solo lesionó
bienes jurídicos de Azul Rojas Marín, sino que también fue un mensaje a todas las personas LGBTI, como amenaza a la libertad y dignidad
de todo este grupo social.” OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Azul Rojas Marín y otra vs. Perú. Sentença de 12 de
março de 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_193_esp.pdf. Acesso em: 15 maio 2021.
100
No original: “La violencia contra las personas LGBTI tiene un fin simbólico, la víctima es elegida con el propósito de comunicar un mensaje
de exclusión o de subordinación. Sobre este punto, la Corte há señalado que la violencia ejercida por razones discriminatorias tiene como
efecto o propósito el de impedir o anular el reconocimiento, goce o ejercicio de los derechos humanos y libertades fundamentales de la
persona objeto de dicha discriminación, independientemente de si dicha persona se auto-identifica o no con una determinada categoría.
Esta violencia, alimentada por discursos de odio, puede dar lugar a crímenes de ódio”. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS
(OEA). Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Azul Rojas Marín y otra vs. Perú. Sentença de 12 de março de 2020. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_193_esp.pdf. Acesso em: 15 maio 2021. p. 27.

429
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

razão disso, foi configurada responsabilidade direta do estado pela morte da vítima e suposta violência
por preconceito com base na sua identidade e expressão de gênero.101
Vale registrar, ainda, que a CIDH também reafirma como proibidos e não protegidos pelo direito à
liberdade de expressão os seguintes conteúdos: a) a incitação pública e direta ao genocídio, prevista
no artigo 3º da Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio, assim como no âmbito do
Sistema Global; b) a pornografia infantil, proibida em conformidade ao artigo 34.c da Convenção sobre
os Direitos da Criança e pelo Convênio nº 812 da OIT, em conjunto com o artigo 19 da CADH.102
Por fim, tanto o Sistema Global quanto o SIDH sustentam que além das obrigações no âmbito legisla-
tivo e jurídico, os Estados devem adotar medidas político-propositivas e preventivas contra os discursos
de ódio. Isso porque o discurso de ódio é, em si mesmo, um componente prejudicial à democracia,
ao pluralismo e à garantia da dignidade humana e do direito à igualdade e não-discriminação. Essas
outras iniciativas demandam um enfoque multidisciplinar, articulado entre diferentes atores sociais e
contando com a participação democrática de grupos sociais minoritários, os potenciais alvos dessas
manifestações, em cooperação.103
Assim, é possível verificar que os discursos de ódio, no marco normativo internacional global e interame-
ricano, podem constituir abusos ao exercício do direito à liberdade de expressão, uma vez enquadrados
nas previsões dos artigos 19 e 20 do PIDCP e 13.2 e 13.5 da CADH. O direito à liberdade de expressão
e a proibição de incitação ao ódio não são incompatíveis. Ambos se reforçam de forma mútua, sendo
a própria liberdade de expressão uma das ferramentas para que os estereótipos negativos e práticas
discriminatórias sejam desconstruídas e enfrentadas juridicamente.

6. PROIBIÇÃO DA CENSURA PRÉVIA E RESTRIÇÕES INDIRETAS

No âmbito do Sistema Global, a proteção e garantia do direito à liberdade de expressão no PIDCP não
admite censuras ou limitações ilegítimas, principalmente em relação aos meios de comunicação.104 Já
no âmbito do SIDH, conforme referido, o artigo 13.2 da CADH proíbe expressamente a censura prévia.
De acordo com a CIDH, a censura prévia pode ser entendida como o controle antecipado da difusão de
uma expressão, que impede tanto a expressão de uma pessoa quanto o recebimento das ideias, opiniões
ou informações pela sociedade. Isso é contrário à democracia e significa uma supressão radical da liber-
dade de expressão, que viola as dimensões individual e social ou coletiva desse direito.105 De acordo com
o argumento da Corte IDH no caso Palamara Iribarne vs. Chile, a censura prévia ocorre quando:


101
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Vicky Hernández y otras vs. Honduras. Sentença de 26 de março de 2021.
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_422_esp.pdf. Acesso em: 30 junho 2022.
102
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
103
OEA. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Informe Anual de la Relatoria
Especial para la Libertad de Expresión. 2015. Disponível em:http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/informea-
nual2015rele.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021. NACIONES UNIDAS, Asamblea General. Promoción y protección del derecho a la libertad
de opinión y de expresión. agosto, 2011. Disponível em: https://undocs.org/sp/A/66/290. Acesso em: 02 jun. 2020; NACIONES UNIDAS,
Asamblea General. Promoción y Protección del derecho a la libertad de opinión y de expresión. setembro, 2012. Disponível em:
https://undocs.org/es/A/67/357. Acesso em: 30 maio 2020.
104
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011.
105
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.

430
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

[...] por meio do poder público, criam-se meios para impedir de forma prévia a livre circulação
de informações, ideias, opiniões ou notícias, por qualquer tipo de procedimento que condicione
a expressão ou a difusão de informações sob controle do estado, por exemplo, por meio da
proibição de publicações ou da apreensão das mesmas, ou qualquer outro procedimento orien-
tado ao mesmo fim.106

A Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da CIDH igualmente dispõe no princípio 7


que “[...] condicionamentos prévios, tais como de veracidade, oportunidade ou imparcialidade por parte
dos Estados, são incompatíveis com o direito à liberdade de expressão reconhecido nos instrumentos
internacionais.”107 Segundo a CIDH, são exemplos de censura prévia a apreensão de livros, ou a proi-
bição judicial de publicação e divulgação, a apreensão de materiais impressos, a proibição para funcio-
nários públicos de manifestação de críticas a instituições, censura prévia cinematográfica ou proibição
de exibição de filmes em cinemas, entre outros.108 A proibição à censura prévia é uma restrição direta,
ilegítima e grave ao exercício do direito à liberdade de expressão.
Entretanto, ainda no âmbito do Sistema Interamericano, o artigo 13.4 da CADH, prevê uma exceção
para essa proibição, que é a regulação prévia do acesso a espetáculos públicos, para a proteção moral da
infância e da adolescência.109 Dessa forma, é possível que os Estados submetam espetáculos públicos
a mecanismos de classificação indicativa e informativa, desde que o fim esteja vinculado à tutela da
criança e do adolescente.
Um dos casos mais importantes já julgados sobre censura prévia pela Corte IDH é o “La última tenta-
ción de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile. Nesse caso, autoridades judiciais chilenas proibiram
a exibição do filme “A última tentação de Cristo”, atendendo a pedido de um grupo de pessoas que
argumentavam a ofensa da obra à imagem de Jesus Cristo e da Igreja Católica. Isso ocorreu com base
na normativa constitucional chilena de 1980, que permitia um sistema de censura para a exibição e
publicidade da produção cinematográfica, juntamente com oportunidades para tanto promovidas por
outras iniciativas públicas. A Corte IDH sustentou que a censura imposta ao filme não foi estabelecida
no marco das restrições legítimas da CADH, já que se fundamentou na suposta ofensa à figura de Jesus
Cristo e que isso afetava aos que peticionaram à justiça, aos cristãos e outros fiéis. Assim, a condenação
do Chile pela violação ao direito à liberdade de expressão, previsto no artigo 13 da CADH, ocorreu tanto
pela existência formal de norma constitucional que estabelecia a censura prévia, quanto pelas inicia-
tivas materiais de proibição do filme.110
Já no caso Palamara Iribarne vs. Chile, já referido, a Corte IDH estabeleceu que ocorreram vários atos
que compuseram a censura prévia. Dentre eles, o impedimento da publicação e divulgação de livro
escrito por Palarama Iribarne, considerando que a obra já estava apta para impressão e distribuição

106
No original: “[...] cuando, por medio del poder público se establecen medios para impedir la libre circulación de información, ideas, opinio-
nes o noticias. Ejemplos son la censura previa, el secuestro o la prohibición de publicaciones y, en general, todos aquellos procedimientos
que condicionan la expresión o la difusión de información al control del Estado.” ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA).
Caso Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
seriec_135_esp.pdf. Acesso em: 03 jun. 2021. p. 57.
107
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. 16 a 27 de outubro de
2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm. Acesso em: 02 jun. 2021.
108
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
109
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Caso “La Última Tentación
de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile. Sentença de 05 de fevereiro de 2001. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/Seriec_73_esp.pdf. Acesso em: 03 jun. 2021.

OEA. Caso “La Última Tentación de Cristo” (Olmedo Bustos y otros) vs. Chile. Sentença de 05 de fevereiro de 2001. Disponível em:
110

https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_73_esp.pdf. Acesso em: 03 jun. 2021.

431
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

comercial, a determinação por ordem judicial de excluir o arquivo da obra do computador pessoal de
Palamara Iribarne, apreensão dos livros que foram adquiridos por outras pessoas, entre outros.111
Além das restrições diretas, de acordo com a CIDH e com a previsão do artigo 13.3 da CADH, são
igualmente proibidas as restrições indiretas à liberdade de expressão, isto é, limitações ao exercício
desse direito que ocorrem de forma sutil, gerando danos menos visíveis. O artigo 13.3 da CADH prevê
alguns exemplos exemplificativos e não taxativos, como o abuso de controles oficiais ou particulares de
papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de
informação.112 Assim, é possível que restrições indiretas ocorram por outros meios, o que está previsto
também no princípio 5 da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da CIDH.113
A CIDH ainda reforça que as restrições indiretas podem ocorrer por medidas estatais e pela atuação de
particulares. No primeiro caso, a CIDH indica como exemplos de intervenções estatais que constituem
meios indiretos: a) a exigência da associação obrigatória de jornalistas; b) processamentos e condena-
ções penais contra jornalistas, sob o argumento de lesão à honra de funcionários públicos, conside-
rando o efeito intimidador que isso pode gerar para a sociedade e outros jornalistas; c) o uso arbitrário
de recursos de regulação, pelos Estados, contra meios de comunicação, ou para revogar a nacionali-
dade de pessoas que possuem ações ou exercem funções importantes em meios de comunicação que
criticam o governo e autoridades públicas,114 a exemplo do ocorrido no caso Ivcher Bronstein vs. Perú.
Segundo a Corte IDH, Baruch Ivcher Bronstein era acionista majoritário de um canal de televisão, que
transmitia denúncias sobre possíveis torturas cometidas por membros do exército peruano e outros
assuntos de interesse público. Baruch Ivcher Bronstein sofreu investidas de silenciamento, tendo a Corte
IDH considerado que a revogação de sua nacionalidade, pela jurisdição peruana, foi um meio indireto
de restrição de sua liberdade de expressão, com a finalidade de reprimir o jornalismo investigativo.115
Além disso, a CIDH indica que o ajuizamento de processos contra pessoas, jornalistas e comunicadores
sociais que investigam e publicam conteúdos sobre assuntos de interesse público inibem o debate
público e geram o efeito de autocensura. Isso porque há uma “[...] ameaça de ser processado penal-
mente por expressões críticas sobre assuntos de interesse público,” 116 que impõe uma intimidação à
sociedade. Assim, a CIDH complementa que os meios indiretos por autoridades estatais podem estar
presentes junto com restrições à liberdade de expressão contrárias aos requisitos de limitações legí-
timas, ou seja, em respeito aqueles previstos no artigo 13.2 da CADH.
Já as restrições indiretas ocorridas pela atuação de particulares correspondem aos controles exercidos
por monopólios ou oligopólios de propriedade dos meios de comunicação, e que produzam o mesmo
resultado de limitação da liberdade de expressão.117 Além da previsão do artigo 13.3 da CADH, o princípio

OEA. Caso Palamara Iribarne v. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
111

articulos/seriec_135_esp.pdf. Acesso em: 03 jun. 2021.


112
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
113
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. 16 a 27 de outubro de
2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm. Acesso em: 02 jun. 2021.
114
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
115
OEA. Caso Ivcher Bronstein vs. Perú. Sentença de 06 de fevereiro de 2001. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
Seriec_74_esp.pdf. Acesso em: 03 jun. 2021.
116
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 54.
117
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.

432
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

12 da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da CIDH reforça a adoção de medidas


efetivas para evitar uma concentração indevida da propriedade nos meios de difusão, reafirmando
orientações interamericanas sobre o pluralismo e a promoção da diversidade na regulamentação dos
meios de comunicação e radiodifusão.118 Isso é também necessário para garantir responsabilidade
democrática dos veículos de comunicação, devendo ser prezada a liberdade editorial e garantia à
operação independentemente do governo.119
De acordo com a CIDH, quando o Estado permite controles particulares que violem efetivamente esse
direito, também é possível haver responsabilizações perante a jurisdição internacional, desde que seja
“[...] demonstrada a violação da obrigação de garantia que se depreende do marco jurídico,”120 isto é,
não assegurando a proteção e garantia efetiva do direito à liberdade de expressão.
Em sentido similar, o Sistema Global registra, por meio da Observação Geral nº 34 do CDH da ONU, que
as legislações internas dos Estados que regulam os meios de comunicação devem ser compatíveis com
as limitações legítimas do artigo 19.3 do PIDCP.121 Assim, os estândares internacionais globais também
compreendem que a proteção da liberdade de expressão é incompatível com restrições diretas e indi-
retas ilegítimas, a exemplo da censura e controle restrito privado dos meios de comunicação.

7. A PROTEÇÃO DE JORNALISTAS E DOS


MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Tanto o Sistema Global quanto o SIDH reconhecem a importância do jornalismo e dos meios de comu-
nicação para as sociedades livres e democráticas. O jornalismo possui um papel vital no funcionamento
da democracia porque desempenha a função de informar o meio social e contribuir com o debate e
opinião públicas, sob diferentes interpretações e comprometido com a pluralidade de ideias e posi-
ções políticas.122
De acordo com a CIDH, “[...] uma imprensa independente e crítica é um elemento fundamental para
a vigência das demais liberdades que integram o sistema democrático.”123 Igualmente, o CDH da
ONU ressalta a imprescindibilidade do jornalismo para reunir e analisar informações sobre diferentes
situações políticas, econômicas, sociais e culturais que envolvem a proteção ou violação de direitos
humanos.124 Nesse sentido, o protagonismo dos meios de comunicação e do exercício profissional dos

118
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. 16 a 27 de outubro de
2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm. Acesso em: 02 jun. 2021.
119
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. 16 a 27 de outubro de
2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm. Acesso em: 02 jun. 2021.
120
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 54.


121
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011.
122
ONU. Asemblea General. Informe del Relator Especial sobre la Promoción y Protección del Derecho a la Libertad de Opión y Ex-
presión (la protección de los periodistas y la libertad de los medios de prensa). junho, 2012. Disponível em: https://undocs.org/es/A/
HRC/20/17. Acesso em: 04 jul. 2021. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
123
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. p. 58.
124
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011.

433
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

jornalistas se conecta com a dimensão individual e social ou coletiva do direito à liberdade de expressão,
concretizando a necessidade de que as sociedades estejam bem-informadas a partir de uma pluralidade
de fontes, e que haja ampla circulação de notícias e informações sobre assuntos de interesse público.125
No âmbito do SIDH, o trabalho jornalístico, da comunicação social e outras atividades de imprensa são
entendidas como atividades com relação direta e entrelaçada entre o direito à liberdade de expressão,
diferente de outras profissões. Segundo a Opinião Consultiva nº 85, o jornalismo é uma manifestação
primordial e principal da liberdade de expressão e, por isso, não pode entendida apenas como uma
prestação de um serviço ao público.126 Em razão dessa vinculação, os estândares interamericanos
compreendem que: a) a exigência de títulos para o exercício do jornalismo é considerada uma restrição
ilegítima do direito à liberdade de expressão, o que está disposto no princípio 6 da Declaração de Prin-
cípios sobre Liberdade de Expressão da CIDH;127 b) pela liberdade de expressão ser inerente a toda a
pessoa, não deve ser exigido licença ou inscrição de jornalistas em alguma associação sindical; c) os
credenciamentos de jornalistas apenas são apropriados em razão de uma necessidade e para propor-
cionar acesso privilegiado a determinados eventos, lugares ou situações.128 Já em relação aos meios de
comunicação, de forma especial, as diretrizes do Sistema Global e Interamericano determinam que
uma imprensa livre e sem interferências também são ferramentas para assegurar o direito à liberdade
de expressão e o gozo de outros direitos humanos reconhecidos na CADH e no PIDCP. Assim como
pela atividade jornalística, os meios de comunicação como um todo propiciam o conhecimento da
sociedade sobre assuntos de interesse público e a formação da opinião pública.129
Como dito, a Observação Geral nº 34 do CDH da ONU sustenta a necessidade de que a diversidade e a
independência pautem a composição da imprensa e dos meios de comunicação, principalmente consi-
derando as particularidades de minorias étnicas e linguísticas. Além disso, que os Estados se atentem às
novas tecnologias e recursos informacionais, adequando e promovendo como possível essas diretrizes
de igual forma.130 A CIDH igualmente refere que a garantia máxima do pluralismo e da diversidade
nos meios de comunicação devem ocorrer, inclusive, para assegurar condições estruturais de exercício
desse direito de forma equitativa.131 No caso Granier vs. Venezuela, a Corte IDH afirmou que a plurali-
dade dos meios de informação é importante como meio para priorizar o equilíbrio na participação, sem
discriminações.132

125
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. NACIONES UNIDAS. Asemblea General. Informe del Relator Especial sobre la Pro-
moción y Protección del Derecho a la Libertad de Opión y Expresión (la protección de los periodistas y la libertad de los medios
de prensa). junho, 2012. Disponível em: https://undocs.org/es/A/HRC/20/17. Acesso em: 04 jul. 2021.
126
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinión Consultiva OC-5/85. 1985.
127
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. 16 a 27 de outubro de
2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm. Acesso em: 02 jun. 2021.
128
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Violência contra jornalistas e
funcionários de meios de comunicação: padrões interamericanos e práticas nacionais de prevenção, proteção e realização da
justiça. 2013. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a
Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
129
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para
a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
130
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011.


131
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.
132
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Granier vs. Venezuela. Sentença de 12 de junho de 2015. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_293_esp.pdf. Acesso em: 15 maio 2021.

434
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Nesse sentido, a respeito à diversidade nos meios de comunicação e proibição da discriminação já


foi tratado no Caso Pueblos Indígenas Maya Kaqchikel de Sumpango y otros vs. Guatemala. No caso,
a Corte analisou a violação do direito à liberdade de expressão de povos indígenas operadores de
rádios comunitárias na Guatemala em função do marco regulatório relativo ao espectro radioelétrico
naquele país. Também foi estabelecida uma relação intrínseca entre o direito à liberdade de expressão,
os direitos culturais – especialmente de participação na vida cultural – e a proibição de discriminação
dos povos indígenas. Ainda, a Corte concluiu que a persecução penal de povos indígenas que operam
rádios comunitárias sem autorização estatal consiste em uma restrição ilegítima do seu direito à liber-
dade de expressão.133

7.1. Violências e as Obrigações dos Estados na Proteção dos Jornalistas


e dos Meios de Comunicação

As violências contra jornalistas e os meios de comunicação são inúmeras e constantes não apenas no
Brasil, mas em todo o contexto mundial. De acordo com a UNESCO, 845 jornalistas foram assassinados
em todo o mundo entre os anos de 2007 e 2016.134 A América Latina reúne uma alta incidência dessas e
outras práticas hostis. Além das formas fatais de violência e que são igualmente a máxima materialização
da censura, jornalistas também sofrem torturas, ameaças, intimidação, ataques, violências verbais e
simbólicas, sequestro, detenções arbitrárias e ilegais. Isso não ocorre apenas em situações de conflitos,
mas no cotidiano do exercício da atividade jornalística. As mulheres jornalistas, ainda, persistem sendo
mais vulneráveis à discriminação e violência de gênero, sexual no exercício da atividade jornalística,135
convivendo com estereótipos negativos e sub-representação.
Em relação às mulheres jornalistas, por exemplo, no caso Caso Bedoya Lima y otra Vs. Colômbia a
Corte destacou que, devido ao risco específico enfrentado por mulheres jornalistas, os estados devem
utilizar uma abordagem material para adotar medidas de proteção para jornalistas, que leve em conta as
considerações de gênero, realizar uma análise de risco e implementar as devidas medidas de proteção
que considerem o referido risco. No caso, a Sra. Bedoya foi interceptada, sequestrada e submetida a
inúmeras agressões físicas e verbais, durante a prestação de serviço jornalístico, em maio de 2000.
Considerando violado o direito à liberdade de expressão na sua dupla dimensão, a Corte reiterou a
geração do efeito intimidador que fazia com que o público em geral perdesse vozes e pontos de vista
relevantes e, em particular, vozes e pontos de vista de mulheres. Nesse sentido, isso aprofundava a
disparidade de gênero no jornalismo e atacava o pluralismo como elemento essencial da liberdade de
pensamento e expressão e da democracia.136


133
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Pueblos Indígenas Maya Kaqchikel de Sumpango y otros vs. Guatemala.
Sentença de 06 de outubro de 2021. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_440_esp.pdf. Acesso em: 30 maio
2022.
134
CENTER FOR INTERNACIONAL MEDIA ASSISTANCE; COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS; ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Padrões internacionais de liberdade de expressão: Guia
para operadores de justiça na América Latina. 2020.
135
OEA. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoria Especial para la Libertad de Expresión. Mujeres periodistas y libertad
de expresión. 2018. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial
para a Liberdade de Expressão. Violência contra jornalistas e funcionários de meios de comunicação: padrões interamericanos e
práticas nacionais de prevenção, proteção e realização da justiça. 2013. NACIONES UNIDAS. Asemblea General. Informe del Relator
Especial sobre la Promoción y Protección del Derecho a la Libertad de Opión y Expresión (la protección de los periodistas y la
libertad de los medios de prensa). junho, 2012. Disponível em: https://undocs.org/es/A/HRC/20/17. Acesso em: 04 jul. 2021.
136
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Bedoya Lima y otra Vs. Colombia. Sentença de 26 de agosto de 2021. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_431_esp.pdf. Acesso em: 30 maio 2022.

435
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Segundo as diretrizes do Sistema Global e Interamericano, o propósito das violências contra jornalistas
é o silenciamento da expressão e, por consequência, da difusão de informações, conteúdos e opiniões
à sociedade. Assim, violências no cotidiano da atividade jornalística configuram violações à liberdade de
expressão137 e, como dito, geram efeitos de intimidação e autocensura. Por isso, estão bastante relacio-
nadas com as hipóteses de restrições ilegítimas diretas e indiretas do exercício desse direito, e com as
proteções especiais destinadas aos discursos e críticas sobre funcionários públicos, políticos e assuntos
de interesse público. Segundo a Corte IDH, “[...] o exercício jornalístico só pode acontecer livremente
quando as pessoas que o realizam não são vítimas de ameaças ou de agressões físicas, psíquicas ou
morais, ou de outros atos de hostilidade.”138
Ao contrário disso, os estados possuem obrigações de prevenir, proteger e promover a justiça e os
direitos humanos de jornalistas diante do marco normativo internacional. No âmbito do Sistema
Global, a Observação Geral nº 34 do CDH da ONU estabelece que as medidas adotadas pelos Estados
para proteger jornalistas devem ser preventivas, eficazes, respeitar as determinações do PIDCP e serem
ativamente investigadas pelas instituições e jurisdição internas, garantido a devida reparação às vítimas
ou seus representantes. Além disso, o Informe sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de
Opinião e Expressão de 2012, que tratou especialmente da proteção de jornalistas e da liberdade de
expressão, determinou aos estados obrigações, a exemplo de: a) não promulgar legislações que crimi-
nalizem e limitem de forma indevida a liberdade de expressão de jornalistas; b) condenar publicamente
agressões e violências contra jornalistas; c) adequar a regulação interna que recai sobre os meios de
comunicação às normas e estândares internacionais.139
Já no âmbito do SIDH, a CIDH e Corte IDH indicam de igual forma que as violências contra jornalistas
são incompatíveis com o artigo 13 da CADH e com proteções de outros direitos humanos, tendo vasta
jurisprudência sobre o tema.140 Assim como indicado no Sistema Global, isso exige dos estados, a título
de obrigações preventivas, o rechaço público por autoridades e agentes influentes à violência contra
jornalistas e seus perpetradores. Além disso, o respeito da reserva de fontes de informação e outros
documentos profissionais e pessoais de jornalistas, e, ainda, a coleta de dados sobre os temas, a fim
de promover políticas públicas. Já nas obrigações de proteger, são apontadas o estabelecimento de
programas de proteção para atenção jornalistas vítimas de violência, identificando riscos e caracterís-
ticas de contexto que os originam.141

137
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Violência contra jornalistas e
funcionários de meios de comunicação: padrões interamericanos e práticas nacionais de prevenção, proteção e realização da
justiça. 2013. NACIONES UNIDAS. Asemblea General. Informe del Relator Especial sobre la Promoción y Protección del Derecho a
la Libertad de Opión y Expresión (la protección de los periodistas y la libertad de los medios de prensa). junho, 2012. Disponível em:
https://undocs.org/es/A/HRC/20/17. Acesso em: 04 jul. 2021.
138
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Violência contra jornalistas e
funcionários de meios de comunicação: padrões interamericanos e práticas nacionais de prevenção, proteção e realização da
justiça. 2013. p. 1.
139
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011. NACIONES UNIDAS. Asemblea General. Informe del Relator Especial sobre la Promoción y Protección del Derecho
a la Libertad de Opión y Expresión (la protección de los periodistas y la libertad de los medios de prensa). junho, 2012. Disponível
em: https://undocs.org/es/A/HRC/20/17. Acesso em: 04 jul. 2021.
140
De acordo com a CIDH, são casos importantes em relação à violência contra jornalistas: Caso Kimmel vs. Argentina, Caso Ríos y otros vs.
Venezuela, Perozo y otros vs. Venezuela. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.


141
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Violência contra jornalistas e
funcionários de meios de comunicação: padrões interamericanos e práticas nacionais de prevenção, proteção e realização da
justiça. 2013. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a
Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano sobre o direito à liberdade de expressão, 2014.

436
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Por fim, nas obrigações de promover a justiça e os direitos humanos, é igualmente orientado no âmbito
do SIDH que os Estados adotem um marco legislativo que respeite as normas internacionais de direitos
humanos. Assim como orientado no Sistema Global, os estândares interamericanos argumentam
que as legislações criminais de desacato, injúria, calúnia e difamação são incompatíveis com a CADH
e frequentemente são ameaças à liberdade de expressão, principalmente de jornalistas e possíveis
persecuções penais. Além disso, e igualmente de acordo com o princípio 9 da Declaração de Princípios
sobre Liberdade de Expressão da CIDH, há a recomendação de que os Estados cumpram com um
prazo razoável nas investigações e reparações aos jornalistas violentados e suas famílias, facilitando a
participação de ambos nos processos judiciais e eliminando obstáculos à reparação.142

8. ACESSO À INFORMAÇÃO, DESINFORMAÇÃO E FAKE NEWS

O direito à liberdade de expressão igualmente protege o acesso à informação, que consiste na garantia
do acesso, por todas as pessoas, a informações e registros arquivadas em instituições públicas, o que
está previsto igualmente no princípio 3 da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão da
CIDH. Além disso, se estende igualmente aos meios de comunicação terem acesso à informação sobre
assuntos de interesse público e, de acordo com as diretrizes globais e interamericanas, todas as auto-
ridades públicas são incluídas na prestação do direito de acesso à informação, a exemplo dos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário e órgãos administrativos relacionados. A importância do acesso à
informação pública se justifica por ser um elemento essencial na construção da cidadania e na tomada
de decisões, pelos indivíduos, que sejam bem informadas e claras.143
No âmbito do SIDH, ter acesso à informação é a regra geral. Nesse sentido, no caso Gomes Lund y otros
(Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, a Corte IDH argumentou que o Estado brasileiro violou o direito à
liberdade de expressão ao ter negado o compartilhamento de informações sobre os desaparecimentos
forçados dos membros da Guerrilha do Araguaia, ocorrida durante a ditadura civil-militar como reivin-
dicação política e democrática. A Corte IDH estabeleceu a impossibilidade de retenção de informações
com base na confidencialidade, justificada por motivos de segurança nacional, em situações de acesso
à informação relativas a violações de direitos humanos. Além disso, esclareceu que as informações
devem ser prestadas aos interessados sem exigências de explicação ou motivações pelo interesse em
obtê-las.144 Disso decorre o princípio orientador da máxima publicidade, que significa a necessidade
dos estados em maximizarem as informações públicas e, nas circunstâncias de eventuais restrições às
divulgações, oferecem explicações suficientes para tanto.
Em sentido similar, no caso Claude Reyes y otros vs. Chile, a Corte IDH determinou a violação do Estado
chileno ao direito à liberdade de expressão, no âmbito do acesso à informação, porque as instituições
públicas chilenas não cumpriram com interesse e justificativa adequados para negarem o acesso de
informações públicas para as vítimas. Assim, a Corte IDH determinou que para que a garantia desse
direito seja efetivo, “[...] é necessário que a legislação e a gestão estatais sejam pautadas pelos princípios

142
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano
sobre o direito à liberdade de expressão, 2014. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de Direitos
Humanos. Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão. 16 a 27 de outubro de 2020. Disponível em: https://www.cidh.oas.
org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm. Acesso em: 02 jun. 2021.
143
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de ex-
presión, 2011. CENTER FOR INTERNACIONAL MEDIA ASSISTANCE; COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH);
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Padrões internacionais de liberdade
de expressão: Guia para operadores de justiça na América Latina. 2020.
144
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund y otros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. Sentença de 24 de
novembro de 2020. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_esp.pdf. Acesso em: 01 ago. 2021.

437
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

da boa fé e da máxima divulgação”145, sendo o princípio orientador da boa-fé aquele que orienta que as
atuações públicas sejam direcionadas a satisfazer, de forma efetiva, a acessibilidade das informações,
com explicações claras e satisfatórias sobre eventuais motivos para a impossibilidade de prestá-las.146
Além disso, no caso Claude Reyes y otros vs. Chile a Corte IDH ressaltou que apesar do direito de acesso
à informação também não ser absoluto, e estar submetido às disposições do artigo 13.2 da CADH, todas
as eventuais limitações devem ser condizentes com as sociedades democráticas, adequadas, legítimas
e proporcionais. Isso significa que as possibilidades de sigilo às informações públicas devem ter fins
legítimos e serem orientadas observando que: a) é necessário demonstrar que a divulgação da infor-
mação efetivamente ameace ou gere um prejuízo para o objetivo que legitima a restrição; b) comprovar
que o possível dano é mais considerável que o interesse público em obter a informação, devendo a
limitação estar relacionada com a temporalidade ou outras circunstâncias da eventual restrição.147
No âmbito do Sistema Global, é direcionado aos Estados que tomem as medidas possíveis e cabíveis
para garantir a todas as pessoas o acesso rápido, fácil e seguro a tais informações e elaborem legisla-
ções sobre a liberdade de informação, que é igualmente protegida no âmbito do PIDCP.148 Além disso,
as diretrizes globais têm emitido preocupações com as crescentes desinformações e seu potencial para
manipular a população, obter lucros econômicos e fragilizar os sistemas democráticos, juntamente
com o direito à liberdade de expressão.149
Segundo o Informe sobre a Promoção e Proteção do Direito á Liberdade de Opinião e Expressão de
2021 da ONU, a desinformação não é nova, mas seus contornos e transformações pelas novas tecno-
logias modificam seus impactos e possibilidades de disseminação e consequências, que se intersec-
cionam com contextos de crises políticas, sociais e econômicas. Além disso, a “[...] desinformação é
politicamente polarizante, impede que as pessoas exerçam verdadeiramente seus direitos humanos e
destrói sua confiança nos governos e instituições.”150
No mesmo Informe, a ONU indica que não há uma definição jurídica universalmente aceita para a
desinformação, assim como as respostas e enfrentamentos a essa problemática são complexos. Apesar
disso, indica que existem evidências seguras de que mais informação, informações públicas bem
geridas, meios de comunicação e jornalismo independentes, regulação das mídias sociais com base
em normas e estândares de direitos humanos e, ainda, a proteção de dados pessoais são ferramentas
imprescindíveis no enfrentamento à desinformação. Em relação ao marco jurídico internacional global,
o Sistema Global determina que responsabilizações jurídicas e outras medidas estejam baseadas nos

145
No original: “[...] es necesario que la legislación y la gestión estatales se rijan por los principios de buena fe y de máxima divulgación”. OR-
GANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund y otros (Guerrilha
do Araguaia) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2020. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_esp.
pdf. Acesso em: 01 ago. 2021.
146
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011.


147
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Claude Reyes y otros vs. Chile. Sentença de 19 de setembro de 2006. Disponível
em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_151_esp.pdf. Acesso em: 01 ago. 2021.
148
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Observación General nº 34. Artículo 19: Libertad de opinión y libertad de
expresión, 2011.
149
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la Relatora Especial sobre la promoción y protección del derecho a la liber-
tad de opinión y de expresión, Irene Khan (la desinformación y la libertad de opinión y de expresión). 13 de abril de 2021. Disponível
em: https://undocs.org/es/A/HRC/47/25. Acesso em: 01 jun. 2021.
150
No original: “La desinformación es políticamente polarizante, impide que las personas ejerzan verdaderamente sus derechos humanos y
destruye su confianza en los Gobiernos e instituciones.” ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la Relatora Especial
sobre la promoción y protección del derecho a la libertad de opinión y de expresión, Irene Khan (la desinformación y la libertad
de opinión y de expresión). 13 de abril de 2021. Disponível em: https://undocs.org/es/A/HRC/47/25. Acesso em: 01 jun. 2021. p. 2.

438
DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

critérios do artigo 19 do PIDCP, e atendam a legalidade, legitimidade, proporcionalidade e necessidade.


Nesse sentido, é considerado extremamente importante que as legislações internas dos Estados que
regulem a desinformação ou as tipificadas “notícias falsas” cumpram com os critérios de legalidade e
precisão nas tipificações legais.151
No âmbito do SIDH há a mesma preocupação com a desinformação e problemáticas daí decorrentes,
como as notícias falsas também conhecidas popularmente por fake news. O tema tem sido trabalhado
em Informes e do Sistema Interamericano, a exemplo dos Informes Anuais da Relatoria Especial para
Liberdade de Expressão de 2017 e 2018, que ressaltam a preocupação sobre como essas práticas geram
desinformação, e são implementadas com o propósito de confundir a população, interferindo dire-
tamente no direito do público de buscar, receber e transmitir informações e ideias. Além disso, sobre
como as legislações internas dos Estados que regulam notícias falsas são utilizadas para reprimir e
silenciar críticas aos governos.152
Com base nesses e outros contornos de complexos enfrentamentos, o DIDH emitiu a Declaração
Conjunta sobre Liberdade de Expressão e “Notícias Falsas” (“Fake News”), Desinformação e Propaganda
em 2017. A Declaração oferece uma série de orientações sobre os temas, merecendo destaque para
aquelas que dizem respeito às obrigações dos Estados na proteção do direito à liberdade de expressão
e na tomada de medidas para assegurar os direitos humanos que sejam, como dito, legítimas de acordo
com as normas internacionais. A própria Declaração registra que a desinformação pode contribuir ou
prejudicar diretamente grupos sociais e causar danos a indivíduos, já que “[...] algumas modalidades
de desinformação e propaganda poderiam danificar a reputação e afetar a privacidade de pessoas, ou
instigar a violência, a discriminação ou a hostilidade contra grupos identificáveis da sociedade.”153
Assim, a Declaração indica que: a) as proibições gerais de difusão de notícias falsas ou fake news são
incompatíveis com os estândares internacionais sobre restrições legítimas do exercício da liberdade
de expressão. Nesse sentido, as regulações devem ser claras, seguras e com critérios bem delimitados;
b) os Estados devem assegurar os meios de comunicação independentes, atuando na proteção dos
jornalistas e adotando medidas para promoção da diversidade nesses meios; c) é necessário que os
Estados promovam medidas de educação e alfabetização midiática para a sociedade civil, além de atuar
para conter os efeitos negativos da desinformação com base na proteção dos direitos humanos e na
promoção da igualdade e não-discriminação.154

151
ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la Relatora Especial sobre la promoción y protección del derecho a la liber-
tad de opinión y de expresión, Irene Khan (la desinformación y la libertad de opinión y de expresión). 13 de abril de 2021. Disponível
em: https://undocs.org/es/A/HRC/47/25. Acesso em: 01 jun. 2021.
152
OEA. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Informe de la Relatoría Especial
para la Libertad de Expresión. 2017 e 2018. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/docs/anual/2017/docs/AnexoRELE.pdf. Acesso em:
15 abr. 2021.
153
No original: “[...] algunas modalidades de desinformación y propaganda podrían dañar la reputación y afectar la privacidad de personas,
o instigar la violencia, la discriminación o la hostilidad hacia grupos identificables de la sociedad.”ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS
AMERICANOS (OEA). Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Declaración
Conjunta Sobre Libertad De Expresión Y “Noticias Falsas” (“Fake News”), Desinformación Y Propaganda. 2017. Disponível em:
http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=1056&lID=2. Acesso em: 14 abr. 2021.
154
OEA. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión. Declaración Conjunta Sobre
Libertad De Expresión Y “Noticias Falsas” (“Fake News), Desinformación Y Propaganda. 2017. Disponível em: http://www.oas.org/es/
cidh/expresion/showarticle.asp?artID=1056&lID=2. Acesso em: 14 abr. 2021.

439
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

DIREITO À LIBERDADE DE
REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

Marcelo Andrade de Azambuja

1. INTRODUÇÃO

As liberdades de reunião e de associação são reconhecidas como direitos individuais exercidos coleti-
vamente na persecução de fins lícitos e pacíficos. Com fundamento na liberdade de reunião, pessoas
podem sair às ruas para denunciar a corrupção de agentes estatais ou trabalhadores podem cruzar os
braços em greve por melhores salários e condições de trabalho. Por sua vez, a liberdade de associação
fundamenta a constituição de organizações da sociedade civil para o exercício de atividades comple-
mentares às estatais nas áreas de saúde, educação e assistência social ou, ainda, a constituição de
movimentos sociais em defesa dos direitos humanos de grupos especialmente vulneráveis como traba-
lhadores, mulheres, afrodescendentes, indígenas e LGBTQIA+. Por isso, essas liberdades são vinculadas
à participação política e à existência e atuação da sociedade civil frente ao Estado e ao Mercado.
A importância das liberdades de reunião e associação é reconhecida nacional e internacionalmente.
Como já sustentou o STF brasileiro, “a liberdade de reunião e de associação para fins lícitos constitui uma
das mais importantes conquistas para a civilização, enquanto fundamento das modernas democracias
políticas”.1 No mesmo sentido, o CDH afirmou que as liberdades de reunião e associação permitem que
indivíduos se expressem coletivamente e constituem o fundamento de um sistema de governo parti-
cipativo baseado na democracia, nos direitos humanos, no Estado de Direito e no pluralismo. 2 Em seu
turno, a CIDH ressaltou que essas liberdades garantem e protegem a expressão pública de opiniões,
a demanda pela garantia de direitos sociais, culturais e ambientais e a afirmação de grupos historica-
mente discriminados, exercendo um papel central na defesa da democracia e dos direitos humanos. 3
No Brasil, as liberdades de reunião e de associação foram garantidas por todas as Constituições repu-
blicanas: 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. A Constituição de 1891, em seu artigo 72, §2º, estabelecia
que “[a] todos é licito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a
polícia senão para manter a ordem pública”. Esse texto foi mantido com mínimas alterações de redação
e sentido nas Constituições que se seguiram. A CRFB/88, artigo 5º, incisos XVI a XXI, garante a liberdade
de todos para se reunirem “pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independente-
mente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo
local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”, bem como a liberdade de todos
para “associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”.


1
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.969-4 Distrito Federal. Relator Min. Ricardo Lewandowski, J.
28-6-2007. Tribunal Pleno. DJ de 31-8-2007. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=484308.
Acesso em 20 set. 2021
2
ONU. Human Rights Committee. General comment No. 37 (2020) on the right of peaceful assembly (article 21). ccpr/c/gc/37. 17
September 2020, par. 1
3
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión de la Comisión Interamericana
de Derechos Humanos. Protesta y Derechos Humanos: estándares sobre los derechos involucrados en la protesta social y las obligacio-
nes que deben guiar la respuesta estatal. OEA/Ser.L/V/II/CIDH/RELE/INF.22/19. Septiembre 2019, p. 1, par. 17

440
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

Além disso, o Estado brasileiro assumiu obrigações em relação às liberdades de reunião e associação
perante a comunidade internacional pela assinatura, ratificação e promulgação de tratados de direitos
humanos. Parte desses tratados são ligados à ONU e ao então chamado “Sistema Universal de Direitos
Humanos”, tais como a DUDH, o PIDCP, o PIDESC, a CERD, a CEDAW, a CDC e a CIDPD. Outra parte
dos tratados é ligada à OEA e ao SIDH, tais como a DADDH, a CADH e a Convenção Interamericana
para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres.
Nos termos do direito e da jurisprudência brasileiros, as normas constitucionais sobre direitos são
complementadas por normas internacionais. A CRFB/88, artigo 5º, §2º, estabelece que os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais. Além disso, o STF acordou no julgamento do HC n. 87.585, do RE n. 349.703
e do RE n. 466.343 que os tratados sobre direitos humanos que não alcançaram aprovação qualificada
no Congresso Nacional serão incorporados com hierarquia infraconstitucional, mas supralegal. Nesse
sentido, importante salientar que dentre os tratados sobre direitos humanos que abordam as liberdades
de reunião e associação, apenas a CIDPD foi incorporado com quórum qualificado e possui hierarquia
constitucional, sendo atribuída aos demais hierarquia supralegal.
As normas sobre as liberdades de reunião e associação têm seu sentido determinado pelas manifes-
tações de órgãos judiciais e quasi judiciais e pela doutrina nacional e internacional. Esse trabalho deve
obedecer ao princípio pro persona,4 o qual impõe que a interpretação dos direitos humanos seja sempre
aquela mais favorável ao indivíduo, e o exercício do controle de convencionalidade, 5 de maneira que os
agentes estatais devem adequar seus atos e decisões ao conteúdo das normas e ao sentido atribuído a
elas pelos órgãos internacionais competentes.
Neste capítulo, pretende-se contribuir para a determinação desse sentido a partir da análise das
normas constitucionais e internacionais que estabelecem obrigações ao Estado brasileiro, bem como
da análise das manifestações do STF, da Relatoria Especial sobre os Direitos de Liberdade de Reunião
e a Associação Pacíficas da ONU, do CDH da ONU, da CIDH e da Corte IDH como seus principais
intérpretes. Destaca-se que por recorte de investigação não foram analisadas normas que não vinculam
diretamente o Estado brasileiro, como as do Comitê de Liberdade Sindical da ONU, as dos Sistemas
Europeu e Africanos de proteção dos direitos humanos ou as normas Constitucionais estrangeiras e as
manifestações de seus respectivos intérpretes jurisprudenciais e doutrinários, ainda que se reconheça
a relevância da cross fertilization.

4
KRSTICEVIC, Viviana. La protección de los derechos económicos, sociales y culturales en el sistema interamericano. In: YAMIN, Alicia.
Derechos Económicos, Sociales y Culturales en América Latina. Del invento a la herramienta. México D.F: Plaza y Valdés, 2006, p. 175;
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume II. Porto Alegre: Sergio An-
tonio Fabris Editor, 1999, p. 38; SHELTON, Dinah. The Oxford Handbook of International Human Rights Law [Online]. Oxford: Oxford
University Press, 2013, p. 7-9
5
GARCÍA RAMÍREZ, Sergio. Control de convencionalidad. Ciencia Jurídica. Departamento de Derecho. División de Derecho, Política y
Gobierno, Universidad de Guanajuato - Año 5, No. 9, 2016, p. 131-138; AZAMBUJA, Marcelo Andrade de. Estândares interamericanos sobre
direitos humanos e seu uso como fundamento em pedidos formulados pelo Poder Judiciário. Gazeta da Norma. vol. 1, n. 7, 2021, p. 21-23;
AZAMBUJA, Marcelo Andrade de. Estândares interamericanos e o exercício do controle de convencionalidade pelo Poder Legislativo.
Gazeta da Norma. vol. 1, n. 12, 2021, p. 9-13; CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso Tibi vs. Ecuador. Voto con-
currente razonado del Juez Sergio García Ramírez en relación con la sentencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 7 de
septiembre de 2004, párr. 3

441
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2. 2 PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

2.1.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos

Artigo 20
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

2.1.2. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

Artigo 21
O direito de reunião pacífica será reconhecido. O exercício desse direito estará sujeito apenas às restri-
ções previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da
segurança nacional, da segurança ou da ordem pública, ou para proteger a saúde ou a moral pública ou
os direitos e as liberdades das demais pessoas.
Artigo 22
1. Toda pessoa terá o direito de associar-se livremente a outras, inclusive o direito de construir sindicatos
e de a eles filiar-se, para a proteção de seus interesses.
2. O exercício desse direito estará sujeito apenas às restrições previstas em lei e que se façam neces-
sárias, em uma sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança e da ordem
públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas. O
presente artigo não impedirá que se submeta a restrições legais o exercício desse direito por membros
das forças armadas e da polícia.
3. Nenhuma das disposições do presente artigo permitirá que Estados Partes da Convenção de 1948
da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical,
venham a adotar medidas legislativas que restrinjam ou aplicar a lei de maneira a restringir as garantias
previstas na referida Convenção.

2.1.3. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Artigo 8
1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir:
a) O direito de toda pessoa de fundar com outras, sindicatos e de filiar-se ao sindicato de escolha,
sujeitando-se unicamente aos estatutos da organização interessada, com o objetivo de promover e
de proteger seus interesses econômicos e sociais. O exercício desse direito só poderá ser objeto das
restrições previstas em lei e que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da
segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger os direitos e as liberdades alheias;
b) O direito dos sindicatos de formar federações ou confederações nacionais e o direito destas de
formar organizações sindicais internacionais ou de filiar-se às mesmas.

442
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

c) O direito dos sindicatos de exercer livremente suas atividades, sem quaisquer limitações além daquelas
previstas em lei e que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da segurança
nacional ou da ordem pública, ou para proteger os direitos e as liberdades das demais pessoas:
d) O direito de greve, exercido de conformidade com as leis de cada país.
2. O presente artigo não impedirá que se submeta a restrições legais o exercício desses direitos pelos
membros das forças armadas, da política ou da administração pública.
3. Nenhuma das disposições do presente artigo permitirá que os Estados Partes da Convenção de 1948
da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical,
venham a adotar medidas legislativas que restrinjam - ou a aplicar a lei de maneira a restringir as garan-
tias previstas na referida Convenção.

2.1.4. Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de


Discriminação Racial

Artigo V
De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, Os Estados Partes compro-
metem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito de
cada uma à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica,
principalmente no gozo dos seguintes direitos:
d) Outros direitos civis, principalmente, [...]
ix) direito à liberdade de reunião e de associação pacífica;

2.1.5. Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher

Artigo 7
Os Estados-Partes tomarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a
mulher na vida política e pública do país e, em particular, garantirão, em igualdade de condições com
os homens, o direito a: [...]
c) Participar em organizações e associações não-governamentais que se ocupem da vida pública e
política do país.

2.1.6. Convenção sobre os Direitos da Criança

Artigo 15
1. Os Estados Partes reconhecem os direitos da criança à liberdade de associação e à liberdade de
realizar reuniões pacíficas.
2. Não serão impostas restrições ao exercício desses direitos, a não ser as estabelecidas em confor-
midade com a lei e que sejam necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança
nacional ou pública, da ordem pública, da proteção à saúde e à moral públicas ou da proteção aos
direitos e liberdades dos demais.

443
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2.1.7. Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

Artigo 29
Participação na vida política e pública
Os Estados Partes garantirão às pessoas com deficiência direitos políticos e oportunidade de exercê-los
em condições de igualdade com as demais pessoas, e deverão: [...]
b) Promover ativamente um ambiente em que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e
plenamente na condução das questões públicas, sem discriminação e em igualdade de oportunidades
com as demais pessoas, e encorajar sua participação nas questões públicas, mediante:
i) Participação em organizações não-governamentais relacionadas com a vida pública e política do país,
bem como em atividades e administração de partidos políticos;
ii) Formação de organizações para representar pessoas com deficiência em níveis internacional,
regional, nacional e local, bem como a filiação de pessoas com deficiência a tais organizações.

2.1.8. Carta da Organização dos Estados Americanos

ARTIGO 45
Os Estados membros, convencidos de que o Homem somente pode alcançar a plena realização de
suas aspirações dentro de uma ordem social justa, acompanhada de desenvolvimento econômico e de
verdadeira paz, convêm em envidar os seus maiores esforços na aplicação dos seguintes princípios e
mecanismos: [...]
c) Os empregadores e os trabalhadores, tanto rurais como urbanos, têm o direito de se associarem
livremente para a defesa e promoção de seus interesses, inclusive o direito de negociação coletiva e o
de greve por parte dos trabalhadores, o reconhecimento da personalidade jurídica das associações e a
proteção de sua liberdade e independência, tudo de acordo com a respectiva legislação; [...]
g) O reconhecimento da importância da contribuição das organizações tais como os sindicatos, as
cooperativas e as associações culturais, profissionais, de negócios, vicinais e comunais para a vida da
sociedade e para o processo de desenvolvimento;

2.1.9. Declaração Americana sobre os Direitos e Deveres do Homem

Artigo XXI
Toda pessoa tem o direito de se reunir pacificamente com outras, em manifestação pública, ou em
assembleia transitória, em relação com seus interesses comuns, de qualquer natureza que sejam.
Artigo XXII
Toda pessoa tem o direito de se associar com outras a fim de promover, exercer e proteger os seus
interesses legítimos, de ordem política, econômica, religiosa, social, cultural, profissional, sindical ou de
qualquer outra natureza.

444
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

2.1.10. Convenção Americana sobre Direitos Humanos

Artigo 15
É reconhecido o direito de reunião pacífica e sem armas. O exercício de tal direito só pode estar sujeito
às restrições previstas pela lei e que sejam necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da
segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas
ou os direitos e liberdades das demais pessoas.
Artigo 16
1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos,
econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza.
2. O exercício de tal direito só pode estar sujeito às restrições previstas pela lei que sejam necessárias,
numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas,
ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas.
3. O disposto neste artigo não impede a imposição de restrições legais, e mesmo a privação do exercício
do direito de associação, aos membros das forças armadas e da polícia.

2.1.11. Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria


de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

Artigo 8 Direitos Sindicais


1. Os Estados-Partes garantirão:
a) o direito dos trabalhadores de organizar sindicatos e de filiar-se ao de sua escolha, para proteger e
promover seus interesses. Como projeção deste direito, os Estados-Partes permitirão aos sindicatos
formar federações e confederações nacionais e associar-se às já existentes, bem como formar organi-
zações sindicais internacionais e associar-se à de sua escolha. Os Estados-Partes também permitirão
que os sindicatos, federações e confederações funcionem livremente;
b) o direito de greve.
2. O exercício dos direitos enunciados acima só pode estar sujeito às limitações e restrições previstas
pela lei, que sejam próprias de uma sociedade democráticas e necessárias para salvaguardar a ordem
pública e proteger a saúde ou a moral públicas, e os direitos ou liberdades dos demais. Os membros
das forças armadas e da polícia, bem como de outros serviços públicos essenciais, estarão sujeitos às
limitações e restrições impostas pela lei.
3. Ninguém poderá ser obrigado a pertencer a sindicato.

2.1.12. Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência


contra as Mulheres

Artigo 4
Toda mulher tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos
humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos
direitos humanos. Estes direitos abrangem, entre outros: [...]
h) direito de livre associação;

445
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

j) direito a ter igualdade de acesso às funções públicas de seu pais e a participar nos assuntos públicos,
inclusive na tomada de decisões.

2.2. Normativa interna brasileira

2.2.1. Constituição Federal

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-
rança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independente-
mente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo
local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo
vedada a interferência estatal em seu funcionamento;
XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por
decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;
XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;
XXI - as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar
seus filiados judicial ou extrajudicialmente;
Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
I - a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no
órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;
II - é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de cate-
goria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou
empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município;
III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive
em questões judiciais ou administrativas;
IV - a assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descon-
tada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, indepen-
dentemente da contribuição prevista em lei;
V - ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato;
VI - é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho;
VII - o aposentado filiado tem direito a votar e ser votado nas organizações sindicais;
VIII - é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de
direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato,
salvo se cometer falta grave nos termos da lei.

446
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

Parágrafo único. As disposições deste artigo aplicam-se à organização de sindicatos rurais e de colônias
de pescadores, atendidas as condições que a lei estabelecer.
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania
nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e
observados os seguintes preceitos:
I - caráter nacional;
II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de
subordinação a estes;
III - prestação de contas à Justiça Eleitoral;
IV - funcionamento parlamentar de acordo com a lei.
§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e
funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias.
§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e
funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obri-
gatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal,
devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.
§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras
sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e
funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majori-
tárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as
candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer
normas de disciplina e fidelidade partidária.

3. LIBERDADE DE REUNIÃO

A liberdade de reunião pode ser definida como a prerrogativa de pessoas se unirem umas às outras em
espaço e tempo determinados para a persecução de fins lícitos e pacíficos sem a necessidade de auto-
rização prévia. É direito civil e político de meio que permite o exercício das liberdades de pensamento,
expressão e associação e o direito à participação política, sendo fundamento jurídico para a realização
de assembleias, greves ou manifestações em defesa de interesses próprios, alheios ou difusos frente
a tomadores de decisões públicos e privados. Dessa forma, o respeito e a garantia da liberdade de
reunião permitem o intercâmbio pacífico de ideias, diminuem tensões entre grupos políticos opostos e
promovem a paz, fortalecendo uma sociedade plural e democrática.
Nesse sentido, o STF já sustentou de forma eloquente que “[n]ão há direito sem respeito às liberdades.
Não há pluralismo na unanimidade, pelo que contrapor-se ao diferente e à livre manifestação de todas
as formas de aprender e manifestar a sua compreensão de mundo é algemar as liberdades, destruir o
direito e exterminar a democracia”.6 Por sua vez, o CDH da ONU7 afirmou que o exercício da liberdade
de reunião em conjunto com outros direitos possui um papel crítico no avanço de ideias e aspiração

6
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 548 - Distrito Federal. Relatora Min.
Cármen Lúcia, J. 15/05/2020. Plenário. DJ de 08-06-2020, p. 8-9. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc-
TP=TP&docID=752896813. Acesso em 20 set. 2021


7
ONU. Human Rights Committee. General comment No. 37 (2020) on the right of peaceful assembly (article 21). ccpr/c/gc/37. 17
September 2020, par. 1

447
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

de objetivos de forma pública, propiciando espaços inclusivos e participativos para expor discordân-
cias e encontrar soluções. Nesse sentido, tanto mais importante a proteção das liberdades em nossa
região americana que, nas palavras da CIDH,8 continua sendo cenário de repressão, produto de uma
concepção arraigada que considera a mobilização cidadã como uma forma de alteração da ordem
pública e ameaça às instituições democráticas.
A CRFB/88, artigo 5º, inciso XVI, estabelece que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas,
em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra
reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autori-
dade competente”.
O Estado brasileiro também assumiu obrigações específicas em relação à liberdade de reunião pela
assinatura, ratificação e promulgação de normas de direito internacional. No âmbito do Sistema
Universal de Direitos Humanos, a DUDH, artigo 20.1, e o PIDCP, artigo 21, estabelecem a liberdade
de “reunião pacífica”, este último estabelecendo que a essa liberdade se aplicam apenas às restrições
“previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da segu-
rança nacional, da segurança ou da ordem pública, ou para proteger a saúde ou a moral pública ou os
direitos e as liberdades das demais pessoas”. Já no âmbito do SIDH, a DADDH, artigo XXI, e a CADH,
artigo 15, igualmente estabelecem o direito à liberdade de “reunião pacífica”, esta última estabelecendo
que a essa liberdade se aplicam apenas às restrições previstas pela lei e que sejam “necessárias, numa
sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou
para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas”.
Além disso, o Estado brasileiro assumiu obrigações específicas e afirmativas sobre o exercício à liber-
dade de reunião em relação a grupos especialmente vulneráveis. No âmbito do Sistema Universal,
o PIDESC, artigo 8.1.c, estabelece direito ao livre exercício de trabalhadores e sindicatos, incluindo o
exercício de greve nos termos das leis nacionais; a ICERD, artigo V, estabelece o direito à liberdade de
reunião sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica; a CEDAW, artigo 7, estabelece
o direito à participação em organizações e associações não-governamentais que se ocupem da vida
pública e política do país em igualdade de condições com os homens; a CDC, artigo 15, estabelece o
direito de realizar reuniões pacíficas; por fim, a CIDPD, artigo 29, estabelece o direito à participação
efetiva e plena na condução das questões públicas sem discriminação e em igualdade de oportuni-
dades com as demais pessoas.
Nesse mesmo sentido, no âmbito do Sistema Interamericano, a Carta da Organização dos Estados
Americanos, artigo 45, garante aos trabalhadores rurais e urbanos o direito de se associarem livremente
para a defesa e promoção de seus interesses, inclusive o direito de negociação coletiva e o de greve
por parte dos trabalhadores, o reconhecimento da personalidade jurídica das associações e a proteção
de sua liberdade e independência, tudo de acordo com a respectiva legislação; e a Convenção Intera-
mericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres, artigo 4.j, estabelece que
todas as mulheres tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos
humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos
direitos humanos, incluindo, o direito a participar nos assuntos públicos de seu país.


8
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión de la Comisión Interamericana
de Derechos Humanos. Protesta y Derechos Humanos: estándares sobre los derechos involucrados en la protesta social y las obligacio-
nes que deben guiar la respuesta estatal. OEA/Ser.L/V/II/CIDH/RELE/INF.22/19. Septiembre 2019, p. 1

448
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

Em esforço doutrinário, Mello9 sustenta a identificação de cinco elementos sobre o direito de reunião.
O primeiro elemento é o pessoal. Esse direito é individual mas só pode ser exercido de maneira coletiva,
eis que é logicamente impossível a realização de uma reunião por uma pessoa somente. O segundo
elemento é o temporal. A liberdade de reunião é exercida por tempo determinado. Ainda que pessoas
realizem uma reunião que se estenda por dias ou sequência de reuniões para manifestação pública
de suas ideias e defesa de seus interesses, essas serão autônomas e descontínuas entre si. O terceiro
elemento é a finalidade. Esse direito somente abrange a reunião de pessoas conscientes e orientadas
para um fim determinado, não abrangendo pessoas que se reúnem ao acaso em uma praça ou no
mercado por exemplo. O quarto elemento é o espacial. A liberdade de reunião é garantida em ambientes
públicos ou privados de forma estática ou dinâmica, sendo exemplos os encontros de uma organização
da sociedade civil dentro de sua sede ou a realização de uma marcha de protesto em avenida pública.
O quinto e último elemento é o formal. Esse direito é exercido de forma organizada, sob as ordens de
uma direção ainda que precária.
Por sua vez, Branco10 destaca a ilicitude e a violência como elementos que descaracterizam a conduta
enquanto reunião e afastam a sua proteção pelas normas constitucionais e internacionais. Ainda que
não seja mencionada por parte das normas, a licitude dos fins é exigência lógica, eis que aquilo que é
proibido ao indivíduo sozinho não pode ser permitido aos indivíduos em meio a reunião. Já a exigência
de não-violência, pode ser apresentada como desdobramento da exigência de licitude, eis que não é
dado aos indivíduos praticar violência imotivada para atingir seus objetivos. Para que uma reunião seja
caracterizada como violenta, não é necessário que sejam praticados atos de violência propriamente
ditos, bastando que sejam incitados ou que seus participantes portem armas, entendidas aqui em
sentido amplo, incluindo armas de fogo, armas brancas ou instrumentos que poderiam causar danos
desvirtuados de finalidades. Entretanto, qualquer restrição ao direito deve obedecer aos requisitos
normativos e ser executada de forma necessária, adequada e proporcional. Não basta que alguns
integrantes de uma reunião ou manifestação pratiquem atos de violência, para autorizar intervenção
estatal que lhe imponha fim por completo.
Como se viu, a liberdade de reunião é garantida pela CRFB/88 e por distintos tratados dos Sistemas
Universal e Interamericano de proteção de direitos humanos assinados, promulgados e ratificados pelo
Brasil. Essas normas internas e internacionais estabelecem, conjuntamente, obrigações de respeito e
garantia ao Estado brasileiro, além de prerrogativas de restrição nos termos legais de forma necessária,
adequada e proporcional. O sentido dessas normas é determinado pelas manifestações de órgãos judi-
ciais e quasi judiciais e pela doutrina nacional e internacional que obedecem ao princípio pro persona11

9
MELLO, Celso de. O Direito Constitucional de Reunião. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. v.
12, n. 54, p. 19-23, set./out., 1978, p. 23; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
187 - Distrito Federal. Relator Min. Celso de Melo, J. 15-6-2011. Tribunal Pleno. DJE de 29-5-2014, p. 17. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5956195. Acesso em 20 set. 2021
10
BRANCO, Paulo Gonet. Comentário ao artigo 5º, incisos XVI a XXI. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.;
STRECK Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva: Almedina, 2013. p. 641
11
KRSTICEVIC, Viviana. La protección de los derechos económicos, sociales y culturales en el sistema interamericano. In: YAMIN, Alicia.
Derechos Económicos, Sociales y Culturales en América Latina. Del invento a la herramienta. México D.F: Plaza y Valdés, 2006, p. 175;
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume II. Porto Alegre: Sergio An-
tonio Fabris Editor, 1999, p. 38; SHELTON, Dinah. The Oxford Handbook of International Human Rights Law [Online]. Oxford: Oxford
University Press, 2013, p. 7-9

449
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

e a regras específicas de competência, subsidiariedade e controle de convencionalidade.12 Nesse


sentido, as normas determinam obrigações de respeito e garantia da forma mais ampla e favorável
aos indivíduos, ao mesmo tempo em que determinam as prerrogativas de restrição mais limitadas e
desfavoráveis aos indivíduos. Nos tópicos a seguir, aborda-se o sentido corrente dessas obrigações e
prerrogativas estatais.

3.1. Obrigações Estatais de respeito e garantia

O Estado brasileiro deve respeitar a liberdade de reunião dos indivíduos para organizar, divulgar, unir-
se, permanecer ou deixar reuniões com fins lícitos e pacíficos em território sob sua jurisdição. Nesse
sentido, o STF já afirmou que “o respeito aos direitos e às liberdades é o coração do Estado de Direito’’.
O respeito à exposição do livre pensamento por particulares ou, mais ainda, por agentes estatais é da
dinâmica da democracia”.13 Os agentes estatais não podem se valer de verniz de legalidade para agir
em seu próprio proveito econômico ou em discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou
qualquer condição e restringir a liberdade de reunião e manifestação.
A obrigação de respeito à liberdade de reunião foi abordada no julgamento da ADPF n. 548,14 quando
o STF analisou a Lei 9.504/97 e decisões da justiça eleitoral que autorizaram a realização de buscas
e apreensões, assim como o ingresso e interrupção de aulas, palestras, debates ou atos congêneres
em aprovação ou reprovação a candidatos das eleições de 2018, além de promover a inquirição de
docentes, discentes e de outros cidadãos em universidades públicas e privadas do país. O Tribunal
entendeu que esses dispositivos somente têm interpretação válida quando adequados e compatíveis
com todas as formas de liberdade de manifestação da liberdade de pensamento, de expressão e de
reunião. Por unanimidade, o STF declarou nulas as decisões da justiça eleitoral e a interpretação da Lei
n. 9.504/97 que permita a incursão de agentes públicos em universidades públicas e privadas para a
restrição da liberdade de manifestação.
Ainda, o STF analisou em sede cautelar na ADPF n. 722 15 atos do Ministério da Justiça e Segurança
Pública que promoviam a investigação sigilosa sobre um grupo de 579 servidores federais e estaduais
de segurança identificados como integrantes do ‘movimento antifascismo’ e professores universitários
em suposta atenção ao interesse nacional e ao interesse do Presidente da República. O STF sustentou
que as atividades estatais de inteligência são submetidas à observância irrestrita dos direitos e garantias


12
GARCÍA RAMÍREZ, Sergio. Control de convencionalidad. Ciencia Jurídica. Departamento de Derecho. División de Derecho, Política y
Gobierno, Universidad de Guanajuato - Año 5, No. 9, 2016, p. 131-138; AZAMBUJA, Marcelo Andrade de. Estândares interamericanos sobre
direitos humanos e seu uso como fundamento em pedidos formulados pelo Poder Judiciário. Gazeta da Norma. vol. 1, n. 7, 2021, p. 21-23;
AZAMBUJA, Marcelo Andrade de. Estândares interamericanos e o exercício do controle de convencionalidade pelo Poder Legislativo.
Gazeta da Norma. vol. 1, n. 12, 2021, p. 9-13; CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso Tibi vs. Ecuador. Voto con-
currente razonado del Juez Sergio García Ramírez en relación con la sentencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 7 de
septiembre de 2004, párr. 3; BROWNLIE, Ian. Principles of public international law. 7th edition. New York: Oxford University Press Inc.,
2008, p. 579
13
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 548 - Distrito Federal. Relatora Min.
Cármen Lúcia, J. 15/05/2020. Plenário. DJ de 08-06-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&-
docID=752896813. Acesso em 20 set. 2021
14
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 548 - Distrito Federal. Relatora Min.
Cármen Lúcia, J. 15/05/2020. Plenário. DJ de 08-06-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&-
docID=752896813. Acesso em 20 set. 2021
15
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 722 - Distrito Federal. Relatora Min.
Cármen Lúcia, J. 20-8-2020. Plenário. DJE de 22-10-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&-
docID=754179572. Acesso em 20 set. 2021

450
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

individuais, à fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do
Estado e que o uso da máquina estatal para a coleta de informações de servidores com postura política
contrária ao governo caracteriza desvio de finalidade. Ainda, sustentou que a mera insegurança decor-
rente do efeito de saber que está sendo monitorado, bem como a ameaça de sofrer sanções, constitui
efeito inibidor e prejudicial ao pleno exercício da liberdade de reunião e manifestação.16 Nesse sentido,
o STF deferiu o pedido de medida cautelar para suspender os atos estatais de investigação contra os
servidores públicos e professores universitários “antifascistas”.
O sentido da liberdade de reunião e as obrigações de respeito e garantia por parte do Estado são encon-
tradas na jurisprudência recente do CDH da ONU. Em Elena Popova vs. Rússia,17 o Comitê analisou o
caso de manifestante que foi detida por agentes policiais sob suspeita de organizar e participar de mani-
festação pública de oposição ao Presidente Vladimir Putin sem autorização do Estado. O Estado russo
atribuiu à denunciante pena pecuniária administrativa, considerando violação à Lei n. 54-F de 2004 que
exigia notificação às autoridades estatais com antecedência mínima de 10 dias sobre a realização de
reuniões, manifestações, procissões e piquetes. Em análise de mérito, o Comitê sustentou que, apesar
de os atos dos agentes estatais estarem de acordo com o direito interno russo, impunham restrições
ilegítimas em uma sociedade democrática. Um sistema de notificações prévias pode ser importante
para conduzir de forma adequada manifestações, mas não pode se tornar um fim em si mesmo, espe-
cialmente, em função de manifestações espontâneas que, por sua própria natureza, não podem ser
submetidas à notificação prévia. Dessa forma, o Comitê entendeu que o Estado russo violou o direito
de reunião da denunciante ao prendê-la e condená-la ao pagamento de pena pecuniária administrativa.
A Corte IDH também se manifestou sobre o sentido da liberdade de reunião no caso López Lone e outros
vs. Honduras.18 A Corte IDH analisou o caso de magistrados que participavam da “Asociación Jueces por
la Democracia” e foram submetidos a processos disciplinares por se manifestarem de diversas formas
contra o golpe de Estado que destituiu Manuel Zelaya em junho de 2009. Em sua análise de mérito, a
Corte IDH sustentou que o direito de reunião e manifestação pública e pacífica abarca tanto reuniões
privadas, quanto reuniões em via públicas, estáticas ou com movimento e é uma das maneiras mais
acessíveis de exercer o direito à liberdade de expressão por meio do qual se pode reclamar a proteção
de outros direitos. Nesse sentido, sustentou que uma pessoa não pode ser sancionada pela participação
de manifestação que não sabia ser proibida sempre e quando não cometa atos reprováveis durante ela.
Dessa forma, a Corte IDH condenou o Estado pela violação ao direito de reunião de parte das vítimas
ao submetê-las a processos e sancioná-las por participar de manifestações.
Em outro tema, o Estado deve respeitar a liberdade dos indivíduos para escolher o local, o momento e o
modo de expressão de suas reuniões. A Constituição de 1988, artigo 5º, inciso XVI, remete à liberdade de
reunião “independente de autorização”, sendo apenas exigido “aviso prévio à autoridade competente”.
Todavia, essa exigência tem o condão apenas de permitir que sejam adotadas as medidas necessárias
para que não frustre reunião previamente agendada para o mesmo horário e local, não sendo permitido
ao Estado exigir a solicitação de autorização para a realização de manifestações.
Os indivíduos são livres para formular a melhor estratégia para se fazer ver e ouvir pelo seu público-alvo
e, assim, conquistar seus objetivos. Podem escolher a reunião em ambientes fechados e privados para

16
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 722 - Distrito Federal. Relatora Min.
Cármen Lúcia, J. 20-8-2020. Plenário. DJE de 22-10-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&-
docID=754179572. Acesso em 20 set. 2021


17
ONU. Human Rights Committee. Elena Popova v. the Russian Federation. Views adopted by the Committee under article 5 (4) of the
Optional Protocol, concerning communication No. 2217/2012. Communication No. 2217/2012. CCPR/C/122/D/2217/2012.18 May 2018, par.
2.1-2.9, 7.1-10
18
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso López Lone y otros Vs. Honduras. Excepción Preliminar, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 5 de octubre de 2015. Serie C No. 302, par. 1, 160, 164, 167-170

451
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

o diálogo entre integrantes de um coletivo estudantil ou para a realização de uma assembleia eleitoral
de membros de uma organização da sociedade civil de defesa dos direitos humanos. Ainda, e apenas a
título de exemplos e sem pretensão de exaustão, os indivíduos podem escolher ocupar praças e marchar
por avenidas públicas, entoando palavras de ordem para denunciar a corrupção de agentes públicos ou
privados, ou ainda podem escolher cruzar os braços em greve diante de fábrica para exigência sindical
de melhores condições de trabalho. O distúrbio da vida cotidiana não é suficiente para descaracterizar
uma reunião e deve ser tolerado sempre que não ofereça carga desproporcional ao restante da popu-
lação no contexto de uma sociedade plural e democrática. Uma manifestação que não é vista ou ouvida
se esvazia de sentido e torna a liberdade de reunião ineficazes.
A obrigação de respeito à liberdade dos indivíduos para fazer escolhas em relação à reunião foi abordada
no julgamento da ADI n. 1.969,19 quando o STF analisou a constitucionalidade do Decreto n. 20.098/99. O
referido Decreto, artigo 1º, estabelece que “[f]ica vedada a realização de manifestações públicas, com a
utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios
e Praça do Buriti e vias adjacentes”. De maneira semelhante, na ADI n. 5.852, 20 o STF analisou o Decreto
n. 14.827/17 expedido pelo Governador do Estado do Mato Grosso do Sul que restringia a realização de
reuniões e manifestações na área do “Parque dos Poderes” que concentra organização político-admi-
nistrativa do Estado. O Decreto 14.827/17 vedava práticas que acarretassem a perturbação aos servidores
e autoridades públicas, ao acesso ao serviço público pela população em geral, ao trânsito de veículos e
pessoas, bem como a degradação ou prejuízo ao meio ambiente, tal qual a utilização de equipamentos
de produção ou amplificação de sons, a queima de morteiros ou fogos de artifício, a instalação de
placas ou tapumes entre outros. O STF julgou procedentes ambas as ações, sustentando que a proi-
bição de carros, aparelhos e objetos sonoros em espaços públicos da capital nacional emudeceria a
manifestação e tornaria ineficaz o exercício das liberdades de reunião e expressão.
A seu tempo, no RE n. 806.339, 21 o STF analisou com repercussão geral a exigência constitucional de
aviso prévio à autoridade competente como pressuposto para o legítimo exercício da liberdade de
reunião em locais públicos. Tratava-se de caso de formalização de interdito proibitório pela União
para inviabilizar a manifestação de entidades sindicais que interrompia trecho da BR-101 no município
de Propriá (SE). Em suas considerações, o STF avaliou que em uma sociedade democrática, o espaço
público não é apenas um lugar de circulação, mas também de participação, pelo que há um custo
módico na convivência democrática e é em relação a ele que eventual restrição a tão relevante direito
deve ser estimada. Então, o STF julgou procedente o recurso, sustentando que as manifestações pací-
ficas gozam de presunção de legalidade e que sua notificação às autoridades públicas não precisa ser
pessoal ou registrada e”é satisfeita com a veiculação de informação que permita ao poder público zelar
para que seu exercício se dê de forma pacífica ou para que não frustre outra reunião no mesmo local.”22

19
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.969-4 - Distrito Federal. Relator Min. Ricardo Lewan-
dowski, J. 28-6-2007. Tribunal Pleno. DJE de 31-8-2007. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&do-
cID=484308. Acesso em 20 set. 2021
20
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.852 - Mato Grosso do Sul. Relator Min. Dias Toffoli, J.
24-08-2020. Plenário. DJE de 26-11-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754492192.
Acesso em 20 set. 2021


21
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 806.339 - Sergipe. Relator Min. Marco Aurélio. Red. do acórdão. Min. Edson
Fachin, J. 14-12-2020. Plenário. Informativo 1.003. Tema 855. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=-
TP&docID=754492192. Acesso em 20 set. 2021
22
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 722 - Distrito Federal. Relatora Min.
Cármen Lúcia, J. 20-8-2020. Plenário. DJE de 22-10-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&-
docID=754179572. Acesso em 20 set. 2021

452
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

O CDH da ONU também registra em sua jurisprudência a exigência de autorização como violatória à
plena liberdade de reunião. Em Vladimir Malei vs. Belarus, 23 o Comitê analisou o caso de Vladimir que
apresentou às autoridades estatais solicitação para organizar piquete próximo à entrada principal do
centro cultural do município Malorita a fim de chamar a atenção sobre a ausência de eleições demo-
cráticas em Belarus. O Estado negou o pedido do denunciante sob fundamento de que não é permi-
tido organizar eventos massivos a uma distância menor de cinquenta metros de instituições públicas,
incluindo instituições administrativas e executivas locais. Em análise de mérito, o Comitê sustentou que
a liberdade de reunião é essencial para a manifestação das opiniões de um indivíduo e indispensável
a uma sociedade democrática. Nesse sentido, sustentou que a liberdade de reunião inclui a possibili-
dade de organização e participação em reuniões pacíficas estacionárias (como um piquete) em locais
públicos e à vista de seu público-alvo. Ainda, sustentou que, qualquer restrição estatal deve se dar, de
acordo com a lei e no interesse da segurança nacional, da segurança e da ordem públicas, ou para
proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas. Dessa forma,
o Comitê entendeu que o Estado belarusso violou o direito de reunião do denunciante ao negar sua
solicitação para organizar um piquete.
Já em Bakhytzhan Toregozhina vs. Cazaquistão, 24 o Comitê analisou o caso de cidadã que apresentou
às autoridades estatais solicitação para organização de manifestação sobre o a violência contra mani-
festantes em frente ao Palácio da República em Zhanaozen. O Estado negou o pedido para realização
da manifestação em um lugar principal e nos vinte e nove lugares alternativos, sustentando que mani-
festações de natureza social e política deveriam ser realizadas em local específico. Em sua análise de
mérito, o Comitê sustentou que a liberdade de reunião inclui a possibilidade de organização e partici-
pação em reuniões pacíficas em qualquer lugar público que se tenha acesso, como praças ou ruas, à
vista de seu público-alvo e que os Estados não podem impor a realização de manifestações de qualquer
natureza política ou social apenas em lugares remotos, desde onde seja impossível capturar a atenção
do público-alvo. O Comitê ainda sustentou que o exercício da liberdade de reunião pode afetar o gozo
de outras liberdades, como a de circulação, o que deve ser tolerado sempre que não implicar em carga
desproporcional. Dessa forma, o Comitê entendeu que o Estado cazaque violou o direito de reunião da
denunciante ao negar sua solicitação para organizar uma manifestação.
Em outro tema ainda, o Estado tem a obrigação de adotar medidas que facilitem ou mesmo que
tornem possível o exercício da liberdade de reunião. Para facilitar o exercício da liberdade de reunião
e manifestação de um grupo que marcha em avenida pública, os agentes estatais podem determinar
sua escolta e desviar o trânsito de pessoas e veículos. No mesmo sentido, a notícia pública de uma
grande assembleia em praça pública pode motivar agentes estatais a instalarem lixeiras e banheiros
químicos para seus participantes. Por sua vez, o risco de violência contra a manifestação de grupos
especialmente vulneráveis como mulheres, indígenas, afrodescendentes ou LGBTQIA+ pode exigir o
destacamento de agentes de segurança pública para garantia de sua proteção. Da mesma forma, os
agentes estatais devem investigar, julgar e sancionar agentes privados que por campanha de difamação
e calúnia, ameaças, agressões ou inibam o exercício da liberdade de reunião e manifestação.

23
ONU. Human Rights Committee. Vladimir Malei v. Belarus. Views adopted by the Committee under article 5 (4) of the Optional Pro-
tocol, concerning communication No. 2404/2014. Communication No. 2404/2014. CCPR/C/129/D/2404/2014. 4 March 2021, par. 2.1-2.4,
9.1-12
24
ONU. Human Rights Committee. Bakhytzhan Toregozhina v. Kazakhstan. Views adopted by the Committee under article 5 (4) of the
Optional Protocol, concerning communication No. 2503/2014. Communication No. 2404/2014. CCPR/C/129/D/2503/2014. 10 March 2021,
par. 2.1-2.7, 8.1-11

453
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3.2. Prerrogativas Estatais de restrição

A liberdade de reunião não é absoluta ou ilimitada e pode ser restringida pelo Estado. A CRFB/88, artigo
5º, inciso XVI, estabelece de forma implícita a prerrogativa de restrição à liberdade de reunião caso não
seja “lícita” ou “pacífica”. A Constituição é seguida pelas normas do Sistema Universal, PIDCP, artigo
21.1, e do Sistema Interamericano, CADH, artigo 15, artigo que acrescentam ao rol de prerrogativas de
restrição aquelas que se façam “necessárias em uma sociedade democrática no interesse da segu-
rança nacional, da segurança ou da ordem públicas ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os
direitos e as liberdades das demais pessoas”.
O Estado só pode adotar medidas de restrição como ultima ratio, quando seus agentes adotarão
medidas necessárias, adequadas e proporcionais em atenção ao bem jurídico que se pretende proteger
e ao risco de dano que se observa. As restrições devem levar em consideração as necessidades de uma
sociedade democrática e o equilíbrio entre os interesses e direitos que estão opostos em um ambiente
plural. Assim, ao invés de proibir uma marcha de determinado grupo político em avenida pública os
agentes estatais devem adotar medidas que harmonizem sua realização com a liberdade de ir e vir
do restante da população local, como a manutenção de uma pista livre ou o diálogo com a direção do
grupo para alteração do dia, horário ou itinerário previstos. Também, deve-se compatibilizar a liberdade
de reunião de grupo que realiza manifestação em praça pública com os cuidados para diminuir a propa-
gação de uma pandemia que pode afetar o direito da população à vida, à integridade pessoal e à saúde.
Sobre a restrição desproporcional da liberdade de reunião, é interessante citar novamente as ADI’s ns.
1.96925 e 5.85226. As ações diziam respeito ao Decreto n. 20.098/99 e ao Decreto n. 14.827/17, respecti-
vamente, que impunham restrições sobre a ocupação de espaços públicos e o uso de equipamentos
sonoros à liberdade de reunião. Em suas considerações, o STF sustentou que as restrições eram desne-
cessárias, inadequadas e desproporcionais, opondo-se à vontade constitucional que é a permissão a
todos cidadãos para que se reúnam pacificamente para fins lícitos e expressem suas opiniões livre-
mente. Nesse sentido, primeiro, as normas inviabilizam concretamente a utilização de local público
como espaço de deliberação ou manifestação e concedem “verdadeira carta branca para a restrição do
uso do bem público com base em juízo de conveniência e oportunidade das autoridades”27; segundo,
as normas estabelecem restrições desproporcionalmente gravosas à liberdade, quando com a mesma
finalidade se poderia estabelecer como a realização de interdições parciais das vias porventura afetadas
e/ou o redirecionamento do trânsito, a fiscalização sobre a poluição sonora efetivamente produzida, “a
comunicação prévia aos servidores quanto à existência de manifestação a ser realizada na localidade,
a apreensão dos materiais efetivamente perigosos ou nocivos ao meio ambiente e, em último caso, a
dispersão de manifestações violentas ou irrazoáveis”. 28

25
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.969-4 - Distrito Federal. Relator Min. Ricardo Lewan-
dowski, J. 28-6-2007. Tribunal Pleno. DJE de 31-8-2007. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&do-
cID=484308. Acesso em 20 set. 2021
26
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.852 - Mato Grosso do Sul. Relator Min. Dias Toffoli, J.
24-08-2020. Plenário. DJE de 26-11-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754492192.
Acesso em 20 set. 2021


27
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.852 - Mato Grosso do Sul. Relator Min. Dias Toffoli, J.
24-08-2020. Plenário. DJE de 26-11-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754492192.
Acesso em 20 set. 2021
28
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.852 - Mato Grosso do Sul. Relator Min. Dias Toffoli, J.
24-08-2020. Plenário. DJE de 26-11-2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754492192.
Acesso em 20 set. 2021

454
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

Ainda, é interessante citar a ADPF n. 187. 29 Nesse caso, o STF analisou o CP e seu uso como fundamento
para limitar as liberdades de reunião e manifestação sobre a descriminalização do uso de drogas no país.
O CP, artigo 287, caput, apresenta como tipo penal “[f]azer, publicamente, apologia de fato criminoso
ou de autor de crime”. De forma semelhante, no julgamento da ADI n. 4274 DF, 30 o STF analisou a Lei n.
11.343/2006 e seu uso como fundamento para limitar as liberdades de reunião e manifestação sobre a
descriminalização do uso de drogas no país. A referida Lei em seu artigo 33, §2º, apresenta como tipo
penal “[i]nduzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”. No contexto de ambos os casos,
os referidos dispositivos vinham sendo utilizados como fundamento para a proibição judicial de mani-
festações coletivas em favor da descriminalização do uso de entorpecentes. Em suas considerações
sobre o mérito, o STF sustentou que a liberdade de reunião, sendo um direito de caráter instrumental
à liberdade de pensamento e de expressão, não pode ser objeto de censura prévia em uma sociedade
plural e democrática. Para o STF, “a polícia não tem o direito de intervir em reuniões pacíficas e lícitas,
em que não haja lesão ou perturbação da ordem pública. Não pode proibi-las ou limitá-las, apenas a
faculdade de vigiá-las, para, até mesmo garantir-lhes a sua própria realização” 31. Então, o STF julgou a
procedência de ambas as ações, sustentando a existência de diferença entre o debate sobre a crimina-
lização de uma conduta, a incitação à conduta delitiva e a conduta em si.
A restrição ilegal e desproporcional da liberdade de reunião de indivíduos também é encontrada na juris-
prudência recente do CDH da ONU. No caso Evelio Ramón Giménez v. Paraguai, 32 o Comitê analisou o
caso de liderança campesina que participou ao lado de centenas de outros manifestantes de ocupação
de imóvel rural privado em manifestação contra o fechamento do único hospital da região. Evelio foi
investigado, julgado e condenado pelas autoridades paraguaias, dentre outras penas, a não participar
de reuniões com mais de três pessoas por dois anos. Em suas considerações, o Comitê entendeu que
a liberdade de reunião é essencial em uma sociedade democrática e que os organizadores de uma
reunião têm o direito de escolher quem participará dela e o local em que ela ocorrerá em vista de
seu público-alvo. Dessa forma, o Comitê condenou o Estado paraguaio, sustentando que a pena de
abstenção de participar em reuniões com mais de três pessoas pelo período de dois anos atribuída ao
denunciante era ilegal, desnecessária e desproporcional.
Já em Adelaida Kim vs. Uzbequistão, 33 o Comitê analisou o caso de Adelaida que, ao lado de outros
dez indivíduos, se manifestou pacificamente contra a arbitrariedade no trabalho de agentes estatais de
segurança pública no país. Mais tarde, no mesmo dia da manifestação, todos seus participantes foram
presos por agentes de segurança em diferentes locais por desobedecer e resistir às ordens legais de
policiais e violar a ordem pública ao participar de evento que não foi autorizado pelas autoridades. Em
suas considerações, o Comitê sustentou que a liberdade de reunião é um direito humano fundamental

29
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 - Distrito Federal. Relator Min. Celso
de Melo, J. 15-6-2011. Tribunal Pleno. DJE de 29-5-2014. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
cID=5956195. Acesso em 20 set. 2021
30
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.274 - Distrito Federal. Relator Min. Ayres Brito J. 23-11-2011.
Plenário. DJE de 2-5-2012 Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1955301. Acesso em 20
set. 2021


31
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 187 - Distrito Federal. Relator Min. Celso
de Melo, J. 15-6-2011. Tribunal Pleno. DJE de 29-5-2014, p.21. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&-
docID=5956195. Acesso em: 20 set. 2021.
32
ONU. Human Rights Committee. Evelio Ramón Giménez (represented by Hugo Valiente, Ximena López Giménez, Base Investiga-
ciones Sociales (BaseIS) and the Paraguayan Human Rights Coordinating Committee (CODEHUPY)) v. Paraguay. Views adopted
by the Committee under article 5 (4) of the Optional Protocol, concerning communication No. 2372/2014. Communication No. 2372/2014.
CCPR/C/123/D/2372/2014. 26 September 2018, par. 2.1-2.12, 8.1-11
33
ONU. Human Rights Committee. Adelaida Kim v. Uzbekistan. Views adopted by the Committee under article 5 (4) of the Optional Pro-
tocol, concerning communication No. 2175/2012. Communication No. 2175/2012. CCPR/C/122/D/2175/2012. 29 August 2018, par. 2.1-2.7,
13.1-16

455
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

essencial para manifestação de visões e opiniões e indispensável em uma sociedade democrática.


Nesse sentido, qualquer restrição ao exercício dessa liberdade só pode ser permitida de acordo com as
restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da
segurança nacional, da segurança ou da ordem pública, ou para proteger a saúde ou a moral pública ou
os direitos e as liberdades das demais pessoas. Ainda assim, quando um Estado impuser restrições com
o objetivo de conciliar a liberdade de reunião com os interesses comuns mencionados, deverá fazê-lo
guiado pelo objetivo de facilitar o exercício dessa liberdade e não de limitá-la de forma desnecessária
ou desproporcional. Dessa forma, o Comitê condenou o Estado uzbeque, sustentando violação ilegal
à liberdade de reunião.
Ainda nesse tema, é interessante citar os Princípios Básicos sobre a utilização da força e das armas
de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei adotados pelo Oitavo Congresso das
Nações Unidas para a prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes. 34 De modo geral, o docu-
mento estabelece que os agentes estatais evitem tanto quanto possível o uso da força ou de armas
de fogo. Quando seu uso se mostrar inevitável, deverão fazer uso da força com moderação, de forma
proporcional à gravidade da infração e ao objetivo legítimo a alcançar; minimizar os danos e as lesões,
respeitando e preservando a vida humana; assegurar a prestação de assistência e cuidados médicos às
pessoas feridas ou afetadas tão rapidamente quanto possível; e assegurar a comunicação da ocorrência
à família ou pessoas próximas da pessoa ferida ou afetada tão rapidamente quanto possível. Conside-
rando que reuniões e manifestações lícitas pacíficas são um direito, não devem ser alvo de ações de
restrição pelo uso da força ou por armas de fogo. Em relação às reuniões e manifestações ilegais ou
violentas, o documento estabelece que sua dispersão deve ser garantida com o uso mínimo e estrita-
mente necessário da força e de armas de fogo.
Além disso, é importante fazer referência ao Comentário Geral n. 37 do CDH sobre a liberdade de
reunião pacífica. 35 Nesse documento, o Comitê estabelece o sentido de cada um dos elementos
presentes no artigo 21 do PIDCP que autorizam a restrição de uma reunião ou manifestação. Por restri-
ções necessárias “em uma sociedade democrática”, se deve entender aquelas necessárias e proporcio-
nais no contexto do Estado de Direito, da pluralidade política e dos direitos humanos. Os “interesses
de segurança nacional” implicam em restrições necessárias à preservação da capacidade estatal de
proteger a existência da nação, a integridade de seu território ou independência política contra ameaça
verossímil ou uso da força. Por “segurança pública”, entende-se ameaça de grave dano à vida, segurança
pessoal de pessoas ou propriedades. Já por “ordem pública”, entende-se o respeito à soma das regras
que asseguram o funcionamento da sociedade, incluindo os direitos humanos. Em relação ao risco à
“saúde pública” se mencionam os casos em que existe o risco de exposição a doenças infectoconta-
giosas. Ainda, a proteção da “moral” deve ser entendida de forma ampla em uma sociedade plural e
não de forma restrita e derivada de única tradição social, filosófica ou religiosa. Por fim, o respeito à
liberdade e direito das outras pessoas diz respeito aos casos em que não se pode acomodar as pertur-
bações esperadas e seja atribuída carga desproporcional às pessoas alheias à reunião ou manifestação.
A Corte IDH também registra em sua jurisprudência estândares sobre a restrição ilegal e despropor-
cional à liberdade de reunião e manifestação. Em Mulheres vítimas de tortura sexual em Atenco vs.
México, 36 a Corte IDH analisa o caso de onze mulheres que foram ilegalmente detidas, torturadas e


34
ONU. United Nations Humans Rights Office of the High Commissioner. Basic Principles on the Use of Force and Firearms by Law
Enforcement Officials. Adopted by the Eighth United Nations Congress on the Prevention of Crime and the Treatment of Offenders,
Havana, Cuba, 27 August to 7 September 1990. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/useofforceandfirear-
ms.aspx. Acesso em 20 set. 2021
35
ONU. Human Rights Committee. General comment No. 37 (2020) on the right of peaceful assembly (article 21). ccpr/c/gc/37. 17
September 2020, par. 8, 21-23, 33-34, 36-69
36
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Mujeres Víctimas de Tortura Sexual en Atenco Vs. México. Excepción
Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2018. Serie C No. 371, par. 1, 56-149, 171-176

456
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

detidas no contexto de manifestações públicas contra a arbitrariedade e violência de agentes esta-


tais. Em suas considerações, a Corte IDH reconheceu que em sua obrigação de garantir a segurança e
manter a ordem pública dentro de seu território, o Estado tem a prerrogativa de utilizar a força de forma
legítima. Contudo, o uso da força deve ser: legal, estando previsto dentro de um marco normativo que
explicite a forma de atuação e orientado a um objetivo legítimo; absolutamente necessário, limitan-
do-se à inexistência ou indisponibilidade de outros meios para tutelar a vida e a integridade da pessoa
ou situação que se pretende proteger; e proporcional, de forma progressiva em atenção à cooperação,
resistência ou agressão oferecidas pelo sujeito com o qual se interage. Nesse contexto, a Corte IDH
destacou que o uso ilegal e desproporcional de violência contra os participantes de manifestação por
agentes estatais tem graves efeitos inibitórios sobre futuras manifestações, chilling effect, deixando os
indivíduos de se manifestar para se resguardar desses abusos. Em conclusão, a Corte IDH condenou o
Estado mexicano pela violação à liberdade de reunião de parte das vítimas.
A CIDH também se manifestou sobre a restrição desproporcional da liberdade de reunião e mani-
festação em seu relatório de mérito sobre o caso Antônio Tavares vs. Brasil. 37 Nesse relatório, a CIDH
analisa a repressão violenta de agentes estatais à marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra, que resultou na lesão de 185 manifestantes e na morte de Antônio. Em suas considerações, a
CIDH sustentou que o direito ao protesto pacífico permite às pessoas e a diversos grupos da sociedade
expressar demandas, dissentir e reclamar respeito do governo à sua situação particular e o acesso aos
direitos políticos e aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Nesse sentido, reiterou que
sua restrição por agentes estatais por meio do uso da força deve ser considerada como último recurso
para impedir um fato de maior gravidade do que o provocado pela repressão em si, devendo satisfazer
critérios de legalidade, absoluta necessidade e proporcionalidade. Dessa forma, a CIDH concluiu pela
violação do direito à liberdade de reunião e recomendou ao Estado brasileiro a adoção de medidas de
reparação integral. O caso foi enviado recentemente à Corte IDH, mas ainda aguarda julgamento.

4. LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO

A liberdade de associação pode ser definida como a prerrogativa de pessoas se unirem umas às outras
em espaço determinado e tempo contínuo sob uma direção comum para a persecução de fins lícitos e
pacíficos sem a necessidade de autorização. É um direito civil e político de meio que permite o exercício
de outras liberdades, como a de pensamento, de expressão e a participação política, sendo fundamento
para a constituição de movimentos sociais, coletivos estudantis, associações de defesa dos direitos
humanos, organizações religiosas, sindicatos, partidos e cooperativas. Então, o respeito e a garantia da
liberdade de associação permitem a união de esforços para a persecução de fins complexos que seriam
impossíveis ao indivíduo e que não se confundem com os fins do Estado e do Mercado, fortalecendo a
democracia e o Estado de Direito.
A CRFB/88, artigo 5º, incisos XVII a XXI, estabelece que é plena a liberdade de associação para fins
lícitos, vedada a de caráter paramilitar e que ninguém poderá ser compelido a se associar ou a perma-
necer associado. O texto constitucional ainda estabelece que a criação de associações independe de
autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento e que essas só poderão ter
suas atividades suspensas ou ser compulsoriamente dissolvidas por decisão judicial com trânsito em
julgado. Também estabelece que quando expressamente autorizadas as entidades associativas têm
legitimidade para representar seus filiados extrajudicial ou judicialmente. Em artigos independentes, o
texto constitucional aborda a formação e a liberdade de atuação de associações profissionais ou sindi-
cais e partidos políticos, todos sob o princípio da liberdade geral.


37
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Informe No. 6/20. Caso 12.727. Fondo. Antonio Tavares Pererira y otros. Brasil. 3
de marzo de 2020, par. 27-53, 69-74

457
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O Estado brasileiro também assumiu obrigações específicas em relação à liberdade de associação


pela assinatura, ratificação e promulgação de normas de direito internacional. No âmbito do Sistema
Universal de Direitos Humanos, a DUDH, artigos 20.1 e 20.2, e o PIDCP, artigos 22.1 e 22.2, estabelecem
a liberdade de todas as pessoas de se associarem-se livremente a outras. Já no âmbito do SIDH, a Carta
da Organização dos Estados Americanos, artigo 45, reconhece a importância da união de esforços
humanos para a plena realização de suas aspirações dentro de uma ordem social justa, acompanhada
de desenvolvimento econômico e de verdadeira paz, inclusive pela criação de associações pelos traba-
lhadores urbanos e rurais, de cooperativas, de associações culturais, de negócios, vicinais e comunais
e sua livre atuação. Por sua vez, a DADDH, artigo XXII, e a CADH, artigo 16, estabelecem a liberdade
de associação para fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais,
desportivos ou de qualquer natureza.
Novamente, o Estado brasileiro assumiu obrigações específicas e afirmativas sobre o exercício à
liberdade de associação por grupos especialmente vulneráveis. No âmbito do Sistema Universal, o
PIDESC, artigo 8.1, estabelece a liberdade para a fundação de sindicatos com o objetivo de promover
e de proteger seus interesses econômicos e sociais. Ainda, estabelece a liberdade de atuação dessas
entidades sindicais, incluindo o direito de greve. Por sua vez, a ICERD, artigo V.d.ix, estabelece a proi-
bição e a eliminação de discriminação racial em todas as suas formas e a garantia do direito de cada
pessoa à igualdade perante a lei, sem distinção de racial, de cor ou de origem nacional ou étnica, prin-
cipalmente no gozo dos direitos civis e, especialmente, do direito à liberdade de reunião e associação
pacíficas. A CEDAW, artigo 7, estabelece a adoção de medidas apropriadas para a eliminação da discri-
minação contra a mulher na vida política e pública do país e, em particular, a garantia de participação
em organizações e associações não-governamentais que se ocupem da vida pública e política do país
em igualdade de condições com os homens. A CDC, artigo 15.1, estabelece às crianças a liberdade de
associação. A CIDPD, artigo 29, estabelece às pessoas com deficiência o direito de participação na vida
política e pública, especialmente, pela participação em organizações não-governamentais relacionadas
com a vida pública e política do país e pela formação de organizações para representar pessoas com
deficiência em níveis internacional, regional, nacional e local, bem como a filiação de pessoas com
deficiência a tais organizações.
Nesse mesmo sentido, a Carta da Organização dos Estados Americanos, artigo 45.c, reconhece aos
trabalhadores, tanto rurais como urbanos, o direito de se associarem livremente para a defesa e
promoção de seus interesses, inclusive o direito de negociação coletiva e o de greve por parte dos traba-
lhadores, o reconhecimento da personalidade jurídica das associações e a proteção de sua liberdade e
independência, tudo de acordo com a respectiva legislação. Ainda, o Protocolo Adicional à CADH em
Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, artigo 8, estabelece o direito dos trabalhadores de
organizar sindicatos e de filiar-se ao de sua escolha, para proteger e promover seus interesses. Então, a
Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres, artigo
4.j, estabelece que todas as mulheres têm direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de
todos os direitos humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacio-
nais relativos aos direitos humanos, incluindo, o direito a participar nos assuntos públicos de seu país.
Em analogia ao esforço doutrinário de Mello, 38 é possível sustentar a identificação de cinco elementos
sobre o direito de associação. O primeiro elemento é o pessoal, a liberdade de associação também é
exercício por indivíduos de forma coletiva. Esse elemento inclui as prerrogativas de criar e dissolver
associações e com elas estabelecer relações, seja ingressar, não-ingressar, permanecer ou abandonar. O
segundo elemento é o temporal, principal distinção entre a reunião e a associação, aquela é temporária


38
MELLO, Celso de. O Direito Constitucional de Reunião. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. v.
12, n. 54, p. 19-23, set./out., 1978, p. 23; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
187 - Distrito Federal. Relator Min. Celso de Melo, J. 15-6-2011. Tribunal Pleno. DJE de 29-5-2014, p. 17. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5956195. Acesso em 20 set. 2021

458
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

e descontínua, enquanto essa se estende no tempo de forma contínua. Ainda que as pessoas realizem
reuniões e atividades descontínuas entre si, a associação persiste e se estende no tempo unindo-as.
O terceiro elemento é o fim, o objetivo único ou múltiplo que identifica as pessoas que se associam.
O quarto elemento é espacial, ou seja, o vínculo da associação a um determinado território, seja um
bairro, um município, um estado, um país, ou o mundo inteiro, sobre o qual são desenvolvidas suas
atividades. O quinto e último elemento é o formal, ou seja, a organização e direção entre as pessoas que
se associam, que, ao contrário da reunião, deve ser permanente e complexa o suficiente para o desen-
volvimento de suas atividades. Novamente, os fins ilícitos e violentos ou paramilitares são elementos
negativos que afastam a proteção desse direito.
Como se viu, a liberdade de associação também é garantida pela CRFB/88 e por distintos tratados dos
Sistemas Universal e Interamericano de proteção de direitos humanos assinados, promulgados e ratifi-
cados pelo Brasil. Essas normas internas e internacionais estabelecem, conjuntamente, obrigações de
respeito e garantia ao Estado brasileiro, além de prerrogativas de restrição nos termos legais de forma
necessária, adequada e proporcional. O sentido dessas normas é determinado pelas manifestações de
órgãos judiciais e quasi judiciais e pela doutrina nacional e internacional que obedecem ao princípio pro
persona39 e a regras específicas de competência, subsidiariedade e controle de convencionalidade40.
Nesse sentido, as normas determinam obrigações de respeito e garantia da forma mais ampla e favorá-
veis aos indivíduos ao mesmo tempo em que determinam as prerrogativas de restrição mais limitadas
e desfavoráveis aos indivíduos. Nos tópicos a seguir, aborda-se o sentido corrente dessas obrigações e
prerrogativas estatais.

4.1. Obrigações Estatais de respeito e garantia

O Estado brasileiro deve respeitar a liberdade dos indivíduos para constituir, manter ou dissolver asso-
ciações com fins lícitos e pacíficos em território sob sua jurisdição, bem como a liberdade dos indiví-
duos para estabelecer relações com essas associações. A obrigação de respeito é estendida tanto às
associações estabelecidas entre os indivíduos de maneira informal, quanto às associações formais, com
registro público que dá origem à personalidade jurídica. Coletivamente, os indivíduos são livres para
criar, manter ou dissolver associações informais ou formais. Individualmente, são livres para estabelecer
as relações que desejar com associações, passando a integrá-las, nelas permanecer, ou a elas aban-
donar, sem que o Estado intervenha de forma a lhe obrigar, constranger, limitar ou violentar.
Em respeito à liberdade de associação, os agentes estatais devem se abster de conceder “benefícios” ou
“privilégios” apenas aos indivíduos que se associam especificamente a determinada associação e não


39
KRSTICEVIC, Viviana. La protección de los derechos económicos, sociales y culturales en el sistema interamericano. In: YAMIN, Alicia.
Derechos Económicos, Sociales y Culturales en América Latina. Del invento a la herramienta. México D.F: Plaza y Valdés, 2006, p. 175;
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Volume II. Porto Alegre: Sergio An-
tonio Fabris Editor, 1999, p. 38; SHELTON, Dinah. The Oxford Handbook of International Human Rights Law [Online]. Oxford: Oxford
University Press, 2013, p. 7-9
40
GARCÍA RAMÍREZ, Sergio. Control de convencionalidad. Ciencia Jurídica. Departamento de Derecho. División de Derecho, Política y
Gobierno, Universidad de Guanajuato - Año 5, No. 9, 2016, p. 131-138; AZAMBUJA, Marcelo Andrade de. Estândares interamericanos sobre
direitos humanos e seu uso como fundamento em pedidos formulados pelo Poder Judiciário. Gazeta da Norma. vol. 1, n. 7, 2021, p. 21-23;
AZAMBUJA, Marcelo Andrade de. Estândares interamericanos e o exercício do controle de convencionalidade pelo Poder Legislativo. Ga-
zeta da Norma. vol. 1, n. 12, 2021, p. 9-13; Corte IDH, Caso Tibi vs. Ecuador. Voto concurrente razonado del Juez Sergio García Ramírez en
relación con la sentencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 7 de septiembre de 2004, párr. 3; BROWNLIE, Ian. Principles
of public international law. 7th edition. New York: Oxford University Press Inc., 2008, p. 579

459
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

aos demais. Nesse sentido, importante citar o julgamento da ADI n. 1.65541 pelo STF. Nesse caso, o STF
analisou a Lei Estadual 357/97 que estabelecia isenção da incidência do imposto sobre a propriedade de
veículos automotores aos proprietários de veículos especialmente destinados à exploração dos serviços
de transporte escolar no Estado do Amapá devidamente regularizados junto à Cooperativa de Trans-
portes Escolares do Município de Macapá (COOTEM). Em suas considerações, o STF sustentou que
o texto constitucional garante a liberdade de associação de forma que ninguém pode ser compelido
a se associar ou a permanecer associado e que não pode o Estado, ainda que de forma indireta, pela
concessão de determinado privilégio a quem se associe e/ou permaneça associado a uma determi-
nada cooperativa. Dessa forma, o STF julgou procedente a ação ao sustentar que o dispositivo feria a
liberdade de associação ao vincular a concessão à associação a determinada cooperativa de forma que
aqueles que já participam da Cooperativa ficam compelidos a nela permanecer enquanto os que a ela
não são e queiram usufruir do favor fiscal, ficam obrigados a filiar-se à entidade.
Ainda sobre a violação da liberdade de associação de forma indireta, é essencial citar o julgamento
da ADI n. 346442 pelo STF. Nesse caso, o STF analisou a Lei 70.779/03, que estabelecia obrigação a
pescadores profissionais artesanais a se associarem à Colônia de Pescadores da sua região para que
pudessem fazer jus ao seguro-desemprego durante o período de defeso. Em suas considerações, o
STF sustentou que o texto constitucional garante a liberdade de associação tanto em sua dimensão
positiva, o direito de se associar e formar associações, quanto em sua dimensão negativa, o direito
de não se associar ou de não permanecer associados. Nesse sentido, é suficiente para a violação dos
aludidos princípios que o pescador artesanal seja apenas indiretamente compelido a filiar-se à colônia
de pescadores, sendo explícita a gravidade da consequência da não-filiação eis que o recebimento do
seguro-desemprego é imprescindível a sua subsistência. Dessa forma, o STF julgou procedente a ação
ao sustentar que o dispositivo fere a liberdade de associação de forma indireta.
No mesmo sentido, o RE n. 795.46743 com reconhecimento de repercussão geral estabeleceu sentido
à liberdade dos indivíduos em não se associarem. Nesse caso, o STF analisou a exigência de registro na
Ordem dos Músicos do Brasil e o consequente pagamento de anuidades para poderem exercer a ativi-
dade de musicistas. Em suas considerações, o STF sustentou que a atividade de musicista é manifestação
artística protegida pela garantia da liberdade de expressão, sendo incompatível a exigência de inscrição
no conselho profissional. Então, o STF consolidou entendimento já manifestado em sua jurisprudência
(RE 414.426, RE 635.023-ED, e RE 555.320-AgR) de que nem todos os ofícios ou profissões podem ser
condicionados ao cumprimento de condições legais para o seu exercício. Sendo a regra a liberdade,
apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode ser exigida inscrição em conselho de
fiscalização profissional. Dessa forma, julgou procedente o recurso pela não exigência de inscrição.
Por sua vez, o CDH da ONU também estabelece parâmetros para o respeito à liberdade de associação.
Em Khairullo Saidov vs. Tajiquistão, 44 o Comitê analisou o caso de proeminente político tajique que foi
ameaçado e detido imediatamente após anunciar suas intenções de formar um partido político e, ao


41
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.655-5 - Amapá. Relator Min. Maurício Corrêa, J. 3-3-2004.
Tribunal Pleno. DJE de 02-04-2004,. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266713>.
Acesso em 20 set. 2021
42
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.464-2 - Distrito Federal. Relator Min. Menezes Direito,
J. 29-10-2008. Tribunal Pleno. DJE de 06-03-2009. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&do-
cID=579488>. Acesso em 20 set. 2021
43
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 795.467 - São Paulo. Relator Min. Teori Zavascki.
J. 05-06-2014. Tribunal Pleno. DJE de 24-06-2014. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
cID=6242682>. Acesso em 20 set. 2021
44
ONU. Human Rights Committee. Khairullo Saidov v. Tajikistan. Views adopted by the Committee under article 5 (4) of the Optional
Protocol, concerning communication No. 2680/2015. Communication No. 2680/2015. CCPR/C/122/D/2680/2015.20 September 2018, par.
2.1-2.8, 9.1-12

460
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

final, foi efetivamente proibido de criar esse partido. Em suas considerações, o Comitê sustentou que a
existência e funcionamento de associações que promovam pacificamente ideias não necessariamente
favoráveis ao governo ou à maioria da população é uma das bases de uma sociedade democrática,
pelo que qualquer restrição à liberdade de associação deve observar a lei e ser necessária em uma
sociedade democrática no interesse da segurança nacional, da segurança e da ordem públicas, ou para
proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas. Nesse sentido, o
Estado deve demonstrar que a proibição de qualquer associação é necessária para reverter perigo real,
e não apenas hipotético, à segurança nacional e à ordem democrática e que medidas menos intrusivas
são insuficientes para atingir esse propósito. Dessa forma, o Comitê condenou o Estado tajique pela
violação da liberdade de associação da vítima ao proibir a criação de um novo partido.
A Corte IDH também possui jurisprudência sobre a liberdade dos indivíduos para constituir e estabe-
lecer relações com associações. Na Opinião Consultiva 27/202145 solicitada pela CIDH, a Corte IDH se
manifestou sobre direitos à liberdade sindical, de negociação coletiva e greve e suas relação com outros
direitos com perspectiva de gênero. A Corte IDH destacou que vem entendendo a liberdade sindical no
âmbito da liberdade de associação incluindo tanto a possibilidade de construir organizações e colocar
em prática ações orientadas aos fins coletivos sem a intervenção estatal ilegal, quanto a possibilidade
de cada indivíduo se associar ou não se associar sem constrangimentos. Nesse ínterim, a Corte IDH
destacou que esse direito não se esgota no reconhecimento teórico do direito de formar grupos, mas
compreende o direito de exercer coletivamente essa liberdade.
Já na Opinião Consultiva 5/8546 solicitada pelo Estado da Costa Rica, a Corte IDH se manifestou sobre
a convencionalidade da exigência de vínculo com conselho profissional para o exercício da profissão de
jornalista, em geral, e de repórter, em especial. Em suas considerações, a Corte IDH reconheceu que a
organização de profissionais em conselhos constitui um meio de regulação e controle da fé pública e da
ética através da atuação desses mesmos conselhos, como acontece com profissionais no exercício da
medicina ou do direito. Entretanto, sustenta que o direito à liberdade de expressão garante a liberdade
para buscar, receber e difundir informações de forma oral, escrita ou pela imprensa e que o conjunto
dessas garantias encerra as atividades de profissionais no exercício do jornalismo. Então, não se poderia
obstar o exercício do jornalismo sem vínculo ao conselho profissional sob pena de violação do direito
à liberdade de expressão. Dessa forma, a Corte IDH concluiu que as razões de ordem pública que são
válidas para justificar o vínculo obrigatório a conselho profissional de outras profissões não podem ser
invocadas em relação ao jornalismo.
Em Huilca Tecse v. Peru, 47 a Corte IDH analisou o caso de execução extrajudicial de líder sindical que
exercia a função de Secretário Geral da Confederação Geral do Trabalhadores do Peru por membros de
esquadrão da morte vinculados ao Serviço de Inteligência do Exército do Peru. Em suas considerações,
a Corte IDH sustentou que a liberdade de associação inclui a prerrogativa de se associar livremente com
outras pessoas sem intervenção das autoridades públicas que impeçam, limitem ou desnaturalizem o
exercício dessa liberdade. Ainda, estabeleceu que essa liberdade não se esgota com o reconhecimento
teórico, mas se estende ao direito de adotar qualquer meio para exercer essa liberdade. Nesse contexto,

45
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Derechos a la libertad sindical, negociación colectiva y huelga, y su relación
con otros derechos, con perspectiva de género (interpretación y alcance de los artículos 13, 15, 16, 24, 25 y 26, en relación con los
artículos 1.1 y 2 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, de los artículos 3, 6, 7 y 8 del Protocolo de San Salvador,
de los artículos 2, 3, 4, 5 y 6 de la Convención de Belem do Pará, de los artículos 34, 44 y 45 de la Carta de la Organización de los
Estados Americanos, y de los artículos II, IV, XIV, XXI y XXII de la Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre).
Opinión Consultiva OC-27/21 de 5 de mayo de 2021. Serie A No. 27.
46
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. La colegiación obligatoria de periodistas (Arts. 13 y 29 Convención Ameri-
cana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-5/85 de 13 de noviembre de 1985. Serie A No. 5


47
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Huilca Tecse Vs. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 3 de
marzo de 2005. Serie C No. 121, par. 60, 69-73

461
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

a execução extrajudicial de um indivíduo não apenas restringe a liberdade de associação desse, mas a
liberdade de um grupo de se associar sem temor. Dessa forma, a Corte IDH condenou o Estado peruano
ao sustentar que o exercício legítimo de Pedro Huilca Tecse da liberdade de associação no contexto
sindical implicou em represália fatal por agentes do Estado, amedrontando a limitando a liberdade de
associação de outros trabalhadores peruanos.
Em outro tema, o Estado brasileiro é obrigado a respeitar a liberdade dos indivíduos para realizarem
atividades lícitas e pacíficas. Essa liberdade inclui a adoção de forma de organização coletiva e a eleição
de representantes para que atuem perante entidades públicas ou privadas de forma extrajudicial ou
judicial. A liberdade de associação serve de fundamento para a realização de objetivos em áreas como
saúde, educação ou assistência social, ou ainda, para a defesa dos direitos humanos de grupos especial-
mente vulneráveis, como mulheres, indígenas, afrodescendentes, crianças, pessoas com deficiências e
LGBTQIA+. Esses são objetivos complexos que requerem a organização de esforços dos indivíduos a
partir de estruturas sociais igualmente complexas, que podem incluir a divisão dos indivíduos em coor-
denações, secretarias ou células com atribuições específicas. Além disso, são objetivos que só podem
ser atingidos mediante a inserção em uma malha social complexa e o diálogo a partir de representantes
eleitos com entidades públicas e privadas por via extrajudicial ou judicial. Por fim, os indivíduos podem
decidir registrar ou não suas associações de forma pública para que lhes seja reconhecida a personali-
dade jurídica e para que possam realizar determinados atos civis conforme regras infraconstitucionais.
Sobre a liberdade de associação como fundamento para a realização de atividades lícitas e não
violentas por organizações da sociedade civil, é importante citar o julgamento do HC 106.80848 pelo
STF. Nesse caso, o STF analisou o CPM e sua utilização como fundamento para a prisão do Presidente
da Associação dos Praças do Exército Brasileiro (APEB) por suposta prática dos crimes de incitação à
desobediência, e de publicação de crítica indevida. O referido Código, nos artigos 155 e 166, tipifica
a incitação à desobediência, à indisciplina ou à prática de crime militar, bem como a publicação por
militar ou assemelhado, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu
superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo. O acusado supos-
tamente teria publicado textos e distribuído panfletos onde tecia críticas ao excesso de jornadas de
trabalho, aos entraves ao tratamento de saúde fora do aquartelamento, aos valores recebidos a título
de salário pelos soldados e a arbitrariedade e o abuso de autoridade de oficiais do exército. Em suas
considerações, o STF sustentou que os indivíduos se associam para serem ouvidos, concretizando o
ideário da democracia participativa, e que uma associação que deva pedir licença para criticar situações
de arbitrariedade teria sua atuação completamente esvaziada. Dessa forma, o STF entendeu que as
condutas não se subsumiam aos tipos penais e concedeu a ordem em favor do réu.
Ainda, o estabelecimento de formas jurídicas específicas para que associações possam perseguir deter-
minados fins pode ser encontrado no julgamento da ADI 1.194 pelo STF. Nesse caso, o STF abordou a
liberdade de associação como possível óbice à regra de unicidade sindical pátria em conflito entre dois
sindicatos de trabalhadores temporários e serviços terceirizados do Estado de São Paulo. A CRFB/88
estabelece no artigo 5°, incisos XVII e XX, a liberdade de associação para fins lícitos e pacíficos e a
liberdade para não se associar ou permanecer associado, enquanto no artigo 8°, caput e inciso II, esta-
belecem a liberdade sindical e veda a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau,
representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida
pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município.
Em suas considerações, o STF defende que não se deve confundir a liberdade de associação com a
criação de sindicato em função das opções feitas pelo legislador pátrio e a unicidade sindical.


48
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 106.808 - Rio Grande do Norte. Relator Min. Gilmar Mendes, J. 09-04-2013. Segunda
Turma. DJE de 24-04-2013. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3684450. Acesso em 20
set. 2021

462
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

Já o estabelecimento de regras específicas para o registro de associações e sua relação com a liberdade
de associação foi abordado no julgamento da ADI 1.19449 pelo STF. Nesse caso, o STF analisou a Lei
8.906/94 e sua utilização como fundamento para obrigatoriedade de visto de profissionais da advocacia
para o registro de atos e contratos constitutivos de pessoas jurídicas como possibilidade de violação à
liberdade de associação. A referida Lei, artigo 1°, §2°, estabelece que os atos e contratos constitutivos
de pessoas jurídicas, sob pena de nulidade, só podem ser admitidos a registro, nos órgãos competentes,
quando visados por advogados. Em suas considerações, o STF sustentou que a liberdade de associação
e a não-interferência estatal em seu funcionamento não importam na proibição de qualquer dispositivo
infraconstitucional que verse sobre requisitos de sua constituição. Nesse sentido, a liberdade no regime
democrático somente pode ser entendida como faculdade de agir sob o império da lei e, por isso, a de
reunir-se em associação implica a desobediência aos pressupostos de sua criação. Dessa forma, o STF
indeferiu a ação para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo.
Por sua vez, o CDH da ONU registrou em sua jurisprudência a restrição ilegal do registro de associação
e da eleição de seus representantes em Vladimir Romanovsky vs. Belarus. 50 O Comitê analisou o caso
de cidadão que participou com outras 29 pessoas da assembleia que decidiu pela constituição de asso-
ciação para a representação de 270 aposentados de diferentes regiões do país chamada Elderlies. O
Ministério da Justiça Nacional recusou o registro da associação, indicando que a assembleia carecia de
legitimidade e consequentemente todas suas decisões, incluindo a decisão de constituir a associação,
eram legalmente nulas. A negativa se deu também porque parte dos representantes eleitos não estava
presente na referida assembleia, mesmo que isso tenha se dado por questões relacionadas à saúde,
que tivessem consentido previamente com a eleição e que tivessem participado das assembleias que
se seguiram. Em suas considerações, o Comitê sustentou que a existência e funcionamento de asso-
ciações que promovam pacificamente ideias não necessariamente favoráveis ao governo ou à maioria
da população é uma das bases de uma sociedade democrática, pelo que qualquer restrição à liberdade
de associação deve observar a lei e ser necessária em uma sociedade democrática no interesse da
segurança nacional, da segurança e da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou
os direitos e liberdades das demais pessoas. Dessa forma, o Comitê condenou o Estado pela violação
da liberdade de associação da vítima ao negar registro à associação.
A seu tempo, a Corte IDH registra em sua jurisprudência casos de violação da liberdade de associação
pelo tipo de atividade desenvolvida por seus membros. No caso Lagos del Campo vs. Peru, 51 a Corte IDH
analisou a relação entre a violação do direito à estabilidade laboral de representantes dos trabalhadores
e trabalhadoras e a violação do direito à liberdade de associação. O senhor Alfredo Lagos del Campo
foi despedido injustamente logo após se manifestar contra a ingerência dos empregadores nas elei-
ções e atividades representativas. Em suas razões, a Corte IDH sustentou que a liberdade de associação
inclui tanto o direito dos indivíduos se associarem e exercerem livremente os meios adequados para
atingir seus interesses, quanto o direito dos integrantes de um grupo de alcançar determinados fins em
conjunto para o benefício dos mesmos. Dessa forma, a Corte IDH sustentou que a associação com fins
sindicais possui um caráter dual, uma vez que a violação dos direitos do indivíduo representante implica
na violação dos direitos da coletividade representada.

49
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.194-4 - Distrito Federal. Relator Min. Maurício Correa,
J. 20-05-2009. Tribunal Pleno. DJE de 11-09-2009. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&do-
cID=602352. Acesso em 20 set. 2021
50
ONU. Human Rights Committee. Vladimir Romanovsky v. Belarus. Communication No. 2011/2010. Views adopted by the Committee at
its 115th session (19 October-6 November 2015. CCPR/C/115/D/2011/2010. 7 December, 2015, par. 2.1-2.5, 7.1-10


51
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Lagos del Campo Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparacio-
nes y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2017. Serie C No. 340, par. 162

463
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Ainda, a Corte IDH analisou situação semelhante no caso García e Familiares vs. Guatemala. 52 Eduardo
Fernando García era uma liderança estudantil e sindical que foi vítima de desaparecimento forçado
por parte de agentes estatais. Em suas razões, a Corte IDH avaliou que a violação dos direitos à vida
e à integridade pessoal com o objetivo de impedir o exercício legítimo da liberdade de associação,
implica em uma violação autônoma dessa. Ainda, caracterizou a liberdade sindical como uma forma de
liberdade de associação, que apenas pode ser considerada plenamente efetiva se os indivíduos podem
decidir como exercê-la livre de constrangimentos ou violências.
Já em Baena Ricardo e outros v. Panamá, 53 a Corte IDH analisou a Lei n. 25/90 e sua utilização como
fundamento para a exoneração de 270 servidores públicos que participaram de associações profissio-
nais e de manifestações por melhores condições de trabalho. A referida Lei, em seu artigo 1º, autoriza a
exoneração de servidores públicos que tivessem organizado ou que organizassem manifestações ou que
dirigissem ou participassem de organizações sindicais ou associações de servidores públicos que aten-
tassem contra a Democracia e a Ordem Constitucional. Em suas considerações, a Corte IDH analisou
a liberdade de associação em matéria sindical como a faculdade de constituir organizações sindicais
e colocar em curso sua estrutura interna e atividades sem a intervenção das autoridades públicas que
limite, altere ou desnaturalize o exercício desse direito. Dessa forma, a Corte IDH condenou o Estado ao
sustentar que esse violou a liberdade de associação das vítimas ao exonerá-las em função do exercício
de suas atividades, bem como pela tomada de fundos financeiros sindicais e a invasão das sedes das
organizações às quais estavam associadas.
Em outro tema ainda, o Estado tem a obrigação de adotar medidas que facilitem ou mesmo que tornem
possível o exercício da liberdade de associação. Nesse sentido, deve estabelecer leis claras e cartórios
para o registro de atas de assembleias e estatutos das associações que assim desejarem, ademais de
se abster da cobrança de taxas desproporcionalmente onerosas ou da estipulação de procedimentos
desproporcionalmente burocráticos que impeçam ou embaracem o exercício dessa liberdade. Além
disso, o Estado pode firmar contratos para a cooperação com associações no desenvolvimento de
atividades de relevante interesse público, como saúde, educação e assistência social, garantindo a
transferência de recursos ou a isenção do pagamento de tributos no contexto dessas atividades. Ainda,
o Estado pode reconhecer de forma ampla e intercultural a legitimidade de associações não registradas
para a defesa dos interesses de seus membros extrajudicial ou judicialmente. 54 Por fim, os agentes esta-
tais devem investigar, julgar e sancionar agentes privados que, por campanha de difamação e calúnia,
ameaças, agressões, inibam o exercício da liberdade de associação.

4.2. Prerrogativas Estatais de restrição

A liberdade de associação também não é absoluta ou ilimitada e pode ser restrita pelo Estado. A
CRFB/88, artigo 5º, inciso XVII, estabelece a prerrogativa de restrição à liberdade de associação caso
não seja “lícita” ou assuma “caráter paramilitar” e, inciso XIX, estabelece que as associações só poderão
ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se,
no primeiro caso, decisão transitada em julgado. A Constituição é seguida pelas normas do Sistema
Universal, pelo PIDCCP, artigo 22.1, e pelo PIDESC, artigo 8.1, bem como do SIDH, pela CADH, artigo

52
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso García y familiares Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sen-
tencia de 29 noviembre de 2012 Serie C No. 258. par. 115-122
53
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Baena Ricardo y otros Vs. Panamá. Fondo, Reparaciones y Costas. Sen-
tencia de 2 de febrero de 2001. Serie C No. 72, par. 146
54
BRAGATO, Fernanda Frizzo; AZAMBUJA, Marcelo Andrade de. O STF reconheceu a legitimidade da APIB para propor uma ADPF: por
que isso é tão importante? Empório do Direito, 27 jul. 2020. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-stf-reconheceu-a-
-legitimidde-da-apib-para-propor-uma-adpf-por-que-isso-e-tao-importante. Acesso em: 26 out. 2022.

464
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

16.2, e pelo Protocolo Adicional à CADH em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, artigo
8.2, que acrescentam ao rol de prerrogativas de restrição as “necessárias em uma sociedade democrá-
tica no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas ou para proteger a saúde
ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas”.
O Estado brasileiro pode adotar medidas de restrição como ultima ratio, quando seus agentes adotarão
medidas necessárias, adequadas e proporcionais em atenção ao bem jurídico que se pretende proteger
e ao risco de dano que se observa. As restrições devem levar em consideração as necessidades de uma
sociedade democrática e o equilíbrio entre os interesses e direitos que estão opostos em um ambiente
plural. Assim, não é dado aos agentes estatais estabelecer constante estado de vigília em relação a asso-
ciações, seus membros e suas atividades, bem como intervir ou obstar o exercício dessa liberdade sem
justificativa fundamentada na lei e em provas concretas. Entretanto, a garantia de liberdade para um
indivíduo se associar não implica automaticamente na liberdade para a coletividade buscar quaisquer
objetivos ou praticar quaisquer atos. Como regra geral, aquilo que é vedado ao indivíduo, também é
vedado à associação.
Nesse sentido, importante tornar a citar o julgamento da ADPF 72255 pelo STF. Nesse caso, o STF
analisou atos do MJSP que promoviam a investigação sigilosa sobre um grupo de 579 servidores federais
e estaduais de segurança identificados como integrantes do ‘movimento antifascismo’ e professores
universitários em suposta atenção ao interesse nacional e ao interesse do Presidente da República. Em
suas considerações, o STF sustentou que as atividades estatais de inteligência são submetidas à obser-
vância irrestrita dos direitos e garantias individuais, à fidelidade às instituições e aos princípios éticos
que regem os interesses e a segurança do Estado e que o uso da máquina estatal para a colheita de
informações de servidores com postura política contrária ao governo caracteriza desvio de finalidade.
Ainda, sustentou que a mera insegurança decorrente do efeito de saber que está sendo monitorado,
bem como a ameaça de sofrer sanções, constitui efeito inibidor e prejudicial ao pleno exercício da
liberdade de reunião e manifestação. Ainda, sustentou que a mera insegurança decorrente do efeito
de saber que está sendo monitorado, bem como a ameaça de sofrer sanções, constitui efeito inibidor
e prejudicial ao pleno exercício da liberdade de associação. Nesse sentido, o STF deferiu o pedido de
medida cautelar para suspender os atos estatais de investigação contra os servidores públicos e profes-
sores universitários “antifascistas”.
Por sua vez, a restrição da liberdade de associação por violação à direito de indivíduo é enfrentada na
jurisprudência do STF no julgamento de dois casos representativos. No julgamento do RE n. 158.215, 56
o STF analisou violação ao direito à ampla defesa no contexto da liberdade de associação e, especifi-
camente, de cooperativa. No caso em tela, dois cooperados foram excluídos do quadro de cooperativa
em caráter punitivo por debate exaltado sem que lhes fosse oportunizada processualmente a ampla
defesa e o exercício do contraditório. O STF julgou procedente o recurso ao sustentar que a exaltação
de ânimos não é suficiente para afastar a incidência da ampla defesa nos processos em geral e que
cabia à cooperativa dar aos acusados a oportunidade de se defenderem e não os excluir sumaria-
mente do seu quadro.

55
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamento 722 - Distrito Fe-
deral. Relatora Min. Cármen Lúcia, J. 20-08-2020. Tribunal Pleno. DJE de 22-10-2020. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/
leitura/o-stf-reconheceu-a-legitimidde-da-apib-para-propor-uma-adpf-por-que-isso-e-tao-importante. Acesso em: 26 out. 2022.
56
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no. 158215-4 - Rio Grande do Sul. Relator Min. Marco Aurélio, J. 30-04-1996.
Segunda Turma. DJ de 07-06-1996. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=212594. Acesso
em 20 set. 2021

465
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Já no julgamento do RE n. 201.819, 57 o STF analisou a violação ao direito à ampla defesa no contexto


da liberdade de associação. No caso em tela, a União Brasileira de Compositores designou comissão
especial para apuração de eventuais infrações estatutárias por um de seus associados que terminou
por determinar sua expulsão sem que lhe fosse garantido o direito à ampla defesa. Em suas consi-
derações, o STF sustentou que os direitos fundamentais servem de limite à autonomia privada das
associações. Também sustentou que as associações privadas que exercem função predominante em
âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/
ou social integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasi-
leira de Compositores integra a estrutura do ECAD e assume posição privilegiada para determinar a
extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. Dessa forma, o STF julgou proce-
dente o recurso ao sustentar que a expulsão de associados sem garantia da ampla defesa e do contra-
ditório impedem o recebimento de benefícios financeiros relativos aos direitos autorais relativos e à
execução de suas obras.
O CDH da ONU também registra em sua jurisprudência situações de restrição ilegal e desproporcional
da liberdade de associação. No caso Natalya Pinchuk vs. Belarus58 o Comitê analisou o caso dos funda-
dores da associação Human Rights Centre Viasna. O Ministério da Justiça recusou o registro da asso-
ciação, indicando que o estatuto da associação listava apenas seus objetivos principais, o que implicava
que a associação poderia se engajar em atividades não listadas no estatuto; que o estatuto indicava
que o principal objetivo da associação era “defender direitos e liberdades individuais, com base na
DUDH e na Constituição da República de Belarus”, quando a legislação local permite que associações
civis defendam apenas o interesse de seus próprios membros; entre outros de natureza burocrática e
técnica. Após negar o requerimento por três vezes, o Estado belarense investigou, julgou e sancionou
um dos fundadores por exercer atividades em nome da associação sem registro, incluindo manter conta
bancária em seu nome em benefício da associação e do financiamento de suas atividades. Em suas
considerações, o Comitê sustentou que a existência e funcionamento de associações que promovam
pacificamente ideias não necessariamente favoráveis ao governo ou à maioria da população é uma
das bases de uma sociedade democrática, pelo que qualquer restrição à liberdade de associação deve
observar a lei e ser necessária em uma sociedade democrática no interesse da segurança nacional, da
segurança e da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades
das demais pessoas. Nesse caso, a negativa de registro da associação ensejou a atuação de seus funda-
dores de forma ilegal no território belarense pelo que não poderiam ser condenados ou sancionados.
Dessa forma, o Comitê condenou o Estado belarense por violação de liberdade de associação ao negar
registro à associação e julgar e condenar parte de seus fundadores sem justa causa.
No mesmo sentido, a jurisprudência da Corte IDH registra casos de violação da liberdade de asso-
ciação por sua restrição ilegal e desproporcional. Em Escaleras Mejía e outros vs. Honduras, 59 a Corte
IDH analisou o caso de execução extrajudicial de defensor do meio ambiente e dos direitos humanos
em função de sua oposição à instalação de uma indústria de extração de azeite de palma africana às
margens do rio Tocoa, que terminaria por ser contaminado por resíduos tóxicos. Em seu raciocínio, a
Corte IDH sustentou que a liberdade de associação pode ser desfrutada apenas em contexto em que
se garanta plenamente os direitos humanos, especialmente o direito à vida e à integridade pessoal.
Nesse sentido, os Estados possuem obrigações diferenciadas em relação a pessoas defensoras do meio


57
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no. 201.819-8 - Rio de Janeiro. Relatora Min. Ellen Gracie. Rel. para o acór-
dão: Min. Gilmar Mendes. J. 11-10-2005. Segunda Turma. DJ de 27.10.2006. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=388784. Acesso em 20 set. 2021
58
ONU. Human Rights Committee. Natalya Pinchuk v. Belarus. Communication No. 2165/2012. Views adopted by the Committee at its
112th session (7–31 October 2014). CCPR/C/112/D/2165/2012. 17 November 2014, par. 2.1-3.11, 8.1-11
59
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Escaleras Mejía v. Honduras. Sentencia de 26 de septiembre de 2018.
Serie C No. 361, par. 62-70

466
DIREITO À LIBERDADE DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

ambiente e dos direitos humanos, devendo não restringir e, ao contrário, adotar medidas para garantir
sua organização para a defesa de interesses em prol de toda a sociedade.
Já em Escher e outros vs. Brasil,60 a Corte IDH analisou o caso de lideranças do MST que foram subme-
tidas à interceptação e monitoramento ilegal de suas linhas telefônicas por agentes de segurança
estatais com autorização judicial. Em suas considerações, a Corte IDH sustentou que os indivíduos
possuem a liberdade de se associar com finalidade de buscar a realização comum de um fim lícito sem a
intervenção estatal que possa limitá-la ou maculá-la. Reconheceu que a restrição dessa liberdade pode
ser realizada de forma legal, orientada a fim legítimo e necessária em uma sociedade democrática, mas
entendeu que a restrição consubstanciada pelas interceptações telefônicas das lideranças sob premissa
de investigação de prática delitiva, além de não observar o rito legal, estava, sim, orientada a monitorar
as atividades do MST. Dessa forma, a Corte IDH condenou o Estado brasileiro pela violação da liberdade
de associação das vítimas.
Finalmente, em Cantoral Huamani e García Santa Cruz vs. Peru,61 a Corte IDH analisou os fatos rela-
cionados ao sequestro, tortura e execução extrajudicial de Saúl Isaac Cantoral e Consuelo Trinidad
García Santa Cruz, mineradores e reconhecidas lideranças sindicais para desmotivar as manifestações
sociais no país. Em suas considerações, a Corte IDH sustentou que os indivíduos possuem a liberdade
de se associar com finalidade de buscar a realização comum de um fim lícito sem a intervenção estatal
que possa desnaturalizá-la. Nesse sentido, sustenta que dessa liberdade derivam obrigações estatais
positivas de prevenir atentados, proteger quem a exerce e investigar sua violação, mesmo em relação
a particulares, sob pena de sujeitar os indivíduos ao temor da violência e diminuir sua capacidade de
organização e defesa de seus interesses. Dessa forma, a Corte IDH condenou o Estado peruano pela
violação da liberdade de associação das vítimas.

60
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Escher y otros Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones
y Costas. Sentencia de 6 de julio de 2009. Serie C No. 200, par. 1, 165-180


61
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Cantoral Huamaní y García Santa Cruz Vs. Perú. Excepción Preliminar,
Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 10 de julio de 2007. Serie C No. 167, par. 141-149

467
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

DIREITO À LIBERDADE E À
SEGURANÇA PESSOAL

Guilherme Carneiro de Rezende

1. INTRODUÇÃO

O pós-Segunda Grande Guerra Mundial constituiu ambiente fecundo à consagração e positivação dos
direitos humanos, notadamente em decorrência de todas as barbáries perpetradas durante o holocausto.
Estes direitos podem ser compreendidos como um processo, principalmente porque tem como uma
de suas características a historicidade, é dizer, advém de uma reafirmação, em contexto de incontáveis
violações, até que se conceba a quadra atual de sua tutela pelos documentos internacionais e, ainda,
no plano doméstico. A autenticidade desta afirmação evidencia-se no preâmbulo da DUDH, que reme-
mora os “atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade.”
No catálogo destes direitos humanos estão o direito à liberdade e à segurança pessoal, consagrados na
DUDH, no PICDP e na DADH.
A liberdade constitui direito humano de destacada importância. O direito de deambular livremente
encontra-se consagrado em documentos internacionais, que a ele se referem quando tratam generica-
mente da liberdade, como também ao fazer menção ao direito de locomoção dentro das fronteiras do
Estado, nos termos dos artigos 13, da DUDH e do artigo 22.1, da CADH. No plano interno, a Constituição
Federal anuncia o aludido direito já no caput do artigo 5º.
Ela não se encerra na liberdade de locomoção, abrangendo também a de manifestação do pensa-
mento, de consciência e de crença, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comu-
nicação etc. Sublinha-se, inclusive, que “Sin embargo, la Corte IDH le ha dado un contenido amplio,
que se asocia también a la posibilidad de autodeterminación”.1 A exaustiva proteção da liberdade vai ao
encontro da própria razão de ser das obrigações negativas, típicas dos direitos de primeira geração ou
dimensão, que buscam estabelecer uma abstenção estatal.
Mais de perto, no que toca à liberdade de locomoção, é intuitivo que a imposição de restrições ao seu
pleno exercício somente pode ocorrer de forma excepcional, até por conta dos tantos pontos de inter-
secção que se vislumbra entre este direito e os demais direitos humanos. Para confirmar a veracidade
desta proposição, basta que se imagine o direito à vida: a sua exata compreensão há que ser feita à luz
da dignidade da pessoa humana e dos demais direitos humanos. Não há como conceber o direito a uma
vida digna, a não ser conjugado com pleno exercício das liberdades individuais.
A liberdade vem tratada em documentos internacionais juntamente com a segurança, e esta, muitas
das vezes, é associada ao uso da prisão, como se a privação da liberdade fosse a pedra de toque na
salvaguarda da regularidade do tráfego das relações jurídicas. Um paradoxo aparentemente insupe-
rável, pois diante de eventual ameaça ou lesão a bens jurídicos, que conduz à insegurança, a restrição
da liberdade – direito humano ombreado pela segurança – emerge como principal alternativa. A Corte


1
CORTE IDH. Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. N. 8: Liberdade Personal. San José,
C.R.: Corte IDH, 2020. p. 4.

468
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

IDH já consignou que “a proteção da liberdade protege tanto a liberdade física das pessoas como sua
segurança pessoal, em uma situação em que a ausência de garantias pode subverter a regra de direito
e privar os detidos de proteção legal.”2
Fato é que a segurança, aqui compreendida não na acepção reducionista de se custodiar um trans-
gressor, constitui direito humano. Os tratados internacionais de direitos humanos asseguram uma
plêiade de direitos, demandando por vezes uma atuação estatal no sentido de promovê-los e prote-
gê-los, seja por meio da implementação de condições, seja pela criação de obstáculos destinados à
sua salvaguarda. É nesta medida que se vislumbra um ponto de convergência entre o direito penal e os
direitos humanos, buscando uma adequada proteção destes, os direitos humanos, por meio da crimi-
nalização de condutas que atentem contra os bens e interesses mais importantes. A missão estatal não
se exaure em criar tipos penais, senão também em investigar, processar e punir violações de direitos
humanos, como forma de protegê-los.
Abordaremos nos tópicos subsequentes, primeiro os desdobramentos do direito à liberdade, sob a
antagônica perspectiva das restrições impostas à prisão, à luz do relatório da CIDH sobre o uso da prisão
preventiva nas Américas, e, em seguida, trataremos do direito à segurança, abordando os mandados de
criminalização, que constituem graves problemas apontados pelo SIDH em relação ao Brasil.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos

Artigo 3
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

2.2. Convenção Americana de Direitos Humanos

Artigo 7. Direito à liberdade pessoal


1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.
2.Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente
fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.
3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.
4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem
demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela.
5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra auto-
ridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo
razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.  Sua liberdade pode ser
condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.


2
CORTE IDH. Caso Suares Rosero vs. Equador. Presidente Antônio A. Cançado Trindade. Sentença de 12 de novembro de 1997. Disponível
em: BRASIL. Jurisprudência Interamericana de Direitos Humanos: Direito à Liberdade Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.

469
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de
que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a
prisão ou a detenção forem ilegais.  Nos Estados Partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir
ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim
de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. 
O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.
7. Ninguém deve ser detido por dívidas.  Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária
competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.

2.3. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

ARTIGO 9
1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém poderá ser preso ou encarce-
rado arbitrariamente. Ninguém poderá ser privado de liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e
em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.
2. Qualquer pessoa, ao ser presa, deverá ser informada das razões da prisão e notificada, sem demora,
das acusações formuladas contra ela.
3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem
demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o
direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas
que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada
a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do
processo e, se necessário for, para a execução da sentença.
4. Qualquer pessoa que seja privada de sua liberdade por prisão ou encarceramento terá o direito de
recorrer a um tribunal para que este decida sobre a legislação de seu encarceramento e ordene sua
soltura, caso a prisão tenha sido ilegal.
5. Qualquer pessoa vítima de prisão ou encarceramento ilegais terá direito à repartição.

3. LIBERDADE VERSUS PRISÃO

Apesar das menções que serão feitas ao longo do presente capítulo à prisão ilegal, o SIDH a ela se
refere como detenção ilegal e arbitrária, por força da redação do artigo 7.3, da CADH (Ninguém
pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários), conforme se extrai da apresentação,
pela CIDH, do caso Jorge Marcial Tzompaxtle Teciple e outros à Corte IDH. Alega-se que houve uma
detenção indevida das vítimas em uma rodovia entre as cidades de Veracruz e Cidade do México, pois
feita sem mandado judicial e sem a evidência de uma situação de flagrante delito. Não obstante as
irregularidades já apontadas, que causaram dano à privacidade dos ofendidos, eles também não foram
informados sobre as razões de sua custódia, tampouco apresentadas à autoridade judicial em prazo
razoável. 3 Paralelamente, a CIDH e o Escritório Regional do Alto Comissário das Nações Unidas para
os Direitos Humanos para a América Central e República Dominicana pediram o fim das detenções
arbitrárias de todas as pessoas detidas desde o início da crise na Nicarágua, em abril de 2018. Aduzem


3
A CIDH apresenta caso sobre o México perante a Corte Interamericana. Organização dos Estados Americanos, [s.l.], 01 jun. 2021. Centro
de Mídia. Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/141.asp. Acesso em: 10 set. 2021.

470
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

que os detidos não tiveram a chance de contatar sua família, tampouco a representação legal à sua
escolha.4 No mesmo sentido, a Corte IDH, ao julgar o caso Barreto Leiva vs. Venezuela, reconheceu a
detenção arbitrária de Barreto Leiva, pois feita sem motivação, asseverando que a restrição da liberdade
pessoal deve se basear em indícios suficientes de autoria delitiva. 5
O primeiro caso em que a Corte6 analisou a questão da privação da liberdade foi o caso Velásquez
Rodrígues, que se trata de situação de desaparecimento forçado, ocasião em que se estabeleceu que o
sequestro e privação de liberdade arbitrária infringe o artigo 7º, da CADH. No caso Gangaram Panday,
a Corte consignou que ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento por causas e
métodos que, ainda que qualificados legais, possam ser reputados incompatíveis com o respeito aos
direitos fundamentais do indivíduo. Por sua vez, no caso Chaparro Álvarez, estipulou-se a necessidade
de examinar a compatibilidade da detenção com a CADH, a idoneidade da medida, sua necessidade e
proporcionalidade. A arbitrariedade pode decorrer de abuso de poder, com o propósito de interrogar,
torturar e executar impunemente a vítima, conforme caso Juan Humberto Sánchez, Maritza Urrutiam,
Masacre de Mapiripán. 7
A detenção assume, como se nota, os contornos da ilegalidade ou arbitrariedade, quando realizada ao
arrepio dos preceitos convencionais e dos estândares da Corte IDH, bem assim quando desrespeitados
os direitos mínimos do custodiado. O Caderno de Jurisprudência da Corte IDH sublinha que, quanto à
arbitrariedade, “ha aplicado este concepto a casos de prisión preventiva, cuando ésta no se encuentra
justificada en parámetros de razonabilidad”.8
No caso Acosta Martínez, reconhecido pelo Estado Argentino, como situação paradigmática de perse-
guição e estigmatização do grupo afrondescendente, além de evidenciar a violência policial ocorrida
durante a década de 1990 naquele país, a Corte IDH sustentou que a liberdade e a segurança pessoal
constituem garantias contra a detenção e o encarceramento ilegal ou arbitrário, consignando que:

Si bien el Estado tiene el derecho y la obligación de garantizar su seguridad y mantener el orden


público, su poder no es ilimitado, pues tiene el deber de aplicar en todo momento procedimientos
conformes a Derecho y respetuosos de los derechos fundamentales, a todo individuo que se
encuentre bajo su jurisdicción.9

Registrou-se que o incorreto proceder dos agentes estatais em sua interação com as pessoas que deve
proteger, representa uma ameaça ao direito à liberdade, a qual, quando violada, gera risco de violação
de outros direitos, como a integridade pessoal e à vida.
A CADH admite hipóteses de suspensão de garantias, conforme se extrai do artigo 27, em caso de
guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do

4
NICARAGUA: CIDH e ACNUDH pedem o fim das detenções arbitrárias e a libertação de todas as pessoas detidas desde o início da crise.
Organização dos Estados Americanos, [s.l.], 09 jul. 2021. Centro de Mídia. Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsForm/?File=/
pt/cidh/prensa/notas/2021/171.asp. Acesso em: 10 set. 2021.
5
CORTE IDH. Caso Barreto Leiva vs. Venezuela. Presidente Diego Garcia Sayán. Sentença de 17 de novembro de 2009. Disponível em:
BRASIL. Jurisprudência Interamericana de Direitos Humanos: Direito à Liberdade Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.
6
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Análisis de la jurisprudência de la Corte Interamericana de Derechos Huma-
nos em Materia de Integridad Personal y Privación de Liberdade. San José, C. R.: Corte IDH, 2010. p. 32.


7
Idem. Ibdem. p. 40.
8
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Huma-
nos. Liberdade Personal. San José, C.R.: Corte IDH, 2020. p. 16.
9
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Acosta martinez vs. Argentina. Presidenta Elizabeth Odio Benito. Sentença
de 31 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_410_esp.pdf. Acesso em: 13 de maio de
2022.

471
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Estado Parte, desde que pelo tempo estritamente limitado às exigências e que tais disposições não
sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem
discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social. São
insuscetíveis de suspensão, segundo o aludido diploma, o direito ao reconhecimento da personalidade
jurídica, à vida, à integridade pessoal, a proibição da escravidão e servidão, os princípios da legalidade e
retroatividade, a liberdade de consciência e religião, a proteção da família, o direito ao nome, os direitos
das criança, da nacionalidade e direitos políticos. Nota-se, portanto, que em situações excepcionais a
liberdade pode sofrer restrições.
Afora as hipóteses de suspensão de garantias, justificadas pelo regime de exceção, ex vi do artigo 27.1,
a CADH admite a imposição de restrições à liberdade pessoal, porém exige que sejam observadas as
balizas propostas no artigo 7. A Corte IDH já consignou, por exemplo, que a prisão há que ser comuni-
cada à autoridade competente, que o custodiado não pode ficar incomunicável, tampouco segregado
cautelarmente por período de tempo desarrazoado, e, por fim, que se deve assegurar à pessoa presa o
acesso às garantias judiciais internas.10
Na OC 8/87, a CIDH consignou que admite, em caso de guerra, perigo público ou outra emergência
que ameace a independência ou a segurança do Estado, que o direito à liberdade pessoal fique transi-
toriamente suspenso, podendo o Executivo dispor da prisão temporária. Registrou, por outro lado, que
“nem sob uma situação de emergência, o habeas corpus pode ser suspenso ou deixado sem efeito,”
pois tem a finalidade de colocar a pessoa detida sob disposição da Autoridade Judiciária, salvaguardan-
do-a de práticas ilegais.
Assim, em que pese a possibilidade de suspensão de determinados direitos, como por exemplo o direito
à liberdade, a Comissão reafirmou que não se pode limitar a garantia judicial - é dizer, o acesso ao
Judiciário -, ferramenta por vezes indispensável à proteção de tais direitos.

27. Como já mencionado, em condições de grave emergência, é lícito suspender temporaria-


mente certos direitos e liberdades cujo exercício pleno, em condições de normalidade, deve ser
respeitado e garantido pelo Estado. Porém, como nem todos eles admitem essas suspensões
transitórias, é necessário que também subsistam “as garantias judiciais indispensáveis para a sua
proteção”. O artigo 27.2 não vincula essas garantias judiciais a nenhuma disposição individualizada
da Convenção, o que indica que o fundamental é que os referidos procedimentos judiciais sejam
indispensáveis para garantir esses direitos.11

A prisão, no direito brasileiro, é admitida nalgumas hipóteses: como pena, resultante da aplicação do
direito material (penal) ao caso concreto, pressupondo trânsito em julgado da decisão condenatória;
como medida cautelar de natureza pessoal, ocorrida ainda no curso da persecução penal; e no âmbito
cível, exclusivamente reservada aos casos do devedor de alimentos, consoante artigo 528, do Código
de Processo Penal Brasileiro.
Em 2008, o STF afastou a possibilidade da prisão civil do depositário infiel, no emblemático julgamento
do RE 349.703, de relatoria do Min. Gilmar Mendes,12 resultando, ulteriormente na edição da súmula
vinculante 25, com a seguinte redação: “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a
modalidade do depósito.” Emblemático porque nele, o Min. Gilmar Mendes propôs uma revisão crítica

10
CORTE IDH. Caso Suares Rosero vs. Equador. Presidente Antônio A. Cançado Trindade. Sentença de 12 de novembro de 1997. Disponível
em: BRASIL. Jurisprudência Interamericana de Direitos Humanos: Direito à Liberdade Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.


11
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinião Consultiva 8/87: O Habeas Corpus sob a suspensão de Garantias.
[2020?]. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_08_esp.pdf. Acesso em: 13 de maio de 2022.
12
BRASIL. Recurso Extraordinário 349703: Prisão civil do depositário infiel em face dos tratados internacionais de direitos humanos: In-
terpretação da parte final do inciso LXVII do Art. 5o da Constituição Brasileira de 1988 [...]. Rio Grande do Sul: Supremo Tribunal Federal,
2008. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur87952/false. Acesso em: 6 fev. 2021.

472
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

da jurisprudência do STF, que acolhia a tese de que os tratados internacionais de direitos humanos
tinham status de lei ordinária, passando a sustentar o status supralegal dos mesmos, posição esta que
foi reafirmada noutros julgados.
Abordaremos em seguida as duas primeiras modalidades de prisão, que desafiaram enfrentamento
por parte do SIDH.

3.1. A pena de prisão

O Estado centralizou em si o poder-dever de punir, criminalizando a conduta de exercício arbitrário


das próprias razões, conforme se vê do artigo 345, do CP. Assim, para garantir o tráfego das relações
jurídicas, ele criou tipos penais, com uma estrutura básica de proibir condutas e cominar sanções para
quem incorresse nas situações por ele previstas. Este mesmo Estado, por intermédio do Poder Judi-
ciário, foi incumbido de aplicar o direito ao caso concreto.
A pena por excelência no Direito Penal é a pena de prisão, concebida como ferramenta de reprovação
e prevenção do crime, consoante artigo 59, do CP. Greco rememora que

Todo grupo social sempre possuiu regras que importavam na punição daquele que praticava fatos
que eram contrários a seus interesses. Era uma questão de sobrevivência do próprio grupo ter
algum tipo de punição que tivesse o condão de impedir comportamentos que colocavam em risco
a sua existência. 13

A prisão cunhada de prisão pena, decorre da atividade judicante de aplicar o direito material ao caso
concreto. Assim, após o devido processo legal, garantidos o contraditório e a ampla defesa, caberá ao
magistrado formar a sua convicção e decidir se o acusado será condenado ou absolvido.
A decisão proferida pelo julgador pode ser objeto de recursos, levando a que os Tribunais reapre-
ciem a matéria, até que, esgotados os recursos, a decisão transite em julgado, iniciando-se, pois, o
cumprimento da sanção.
Não é demais lembrar que, em apreço ao princípio da presunção ou estado de inocência, o STF, após
longa discussão, sedimentou o entendimento de que a execução da pena somente pode ocorrer após
o trânsito em julgado da decisão condenatória

PENA – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE.


Surge constitucional o artigo 283 do CPP, a condicionar o início do cumprimento da pena ao trân-
sito em julgado da sentença penal condenatória, considerado o alcance da garantia versada no
artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, no que direciona a apurar para, selada a culpa em
virtude de título precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da sanção, a qual não
admite forma provisória.14

O responsável por uma prática criminosa permanece detentor de direitos e deveres. A ele se impõem
restrições, como a privação da liberdade, a qual, entretanto, há que ser feita em absoluto respeito à
dignidade da pessoa humana. Tanto assim, que a Constituição elenca uma série de direitos da pessoa
privada de liberdade, como o respeito à integridade física e moral, o direito à presidiária de que perma-

13
GRECO, Rogério. Sistema prisional: colapso atual e soluções alternativas. 3 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016. p. 83/84.
14
BRASIL. ADC 44: PENA – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE.[...]. Brasília: Supremo
Tribunal Federal, 2019. Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344949163&ext=.pdf. Acesso em: 09 ago.
2021.

473
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

neça com seus filhos durante o período de amamentação etc, e a legislação infraconstitucional minu-
dencia a forma de execução desta pena, por meio da Lei de Execução Penal, a Lei 7.210, de 1984.15
O próprio constituinte trouxe balizas às penas, vedando as (penas) de morte, salvo em caso de guerra
declarada, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e as penas cruéis. O constituinte
também consagrou o direito à individualização da pena, admitindo a possibilidade de adoção de outras
modalidades de reprimenda a exemplo do perdimento de bens, da multa, da prestação social alterna-
tiva e da suspensão ou interdição de direitos.
Na linha destas disposições constitucionais, o legislador ordinário consagrou a possibilidade de que as
penas privativas de liberdade fossem substituídas pelas penas restritivas de direito (artigo 44), desde
que a) a pena fixada não seja superior a quatro anos, b) o crime não tenha sido praticado com o atributo
negativo da violência ou grave ameaça, c) não seja o réu reincidente em crime doloso e d) a culpabili-
dade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as
circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
Não obstante, o Código Penal contempla também a possibilidade de suspensão condicional da pena
não superior a dois anos (artigo 77), desde que a) o condenado não seja reincidente em crime doloso
e  b) a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os
motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício.
Existem ainda institutos que tem por objetivo a busca de uma solução consensuada no âmbito do
processo penal, evitando, assim, a formação de um título condenatório, e, por conseguinte, a caracte-
rização da reincidência, uma das grandes responsáveis por levar ao cárcere milhares de pessoas. Este
dado é perceptível porque a substituição da pena privativa de liberdade e a suspensão condicional da
pena somente podem ser oferecidas aos acusados primários.
Em 1995, a Lei 9.099, a alcunhada Lei dos Juizados Especiais, trouxe a previsão da transação penal e da
suspensão condicional do processo, cujo objetivo era justamente o de evitar o processo, mediante a
celebração de um acordo entre o Ministério Público e o autor do fato. A primeira delas, a transação,
destina-se às infrações de menor potencial ofensivo, é dizer, crimes cuja pena mínima seja inferior a
dois anos e as contravenções penais, e a segunda, a suspensão, aos crimes cuja pena mínima fosse
inferior a um ano.
O adimplemento integral do acordo enseja a extinção da punibilidade, sem a assunção de culpa e sem
a formação de um título condenatório, preservando a primariedade do agente, que, acaso novamente
incorra na prática de crime, não trará consigo o atributo da reincidência.
Paralelamente, a norma em questão passou a exigir a representação para o processamento dos crimes
de lesão corporal leve e lesão corporal culposa, infrações cuja ofensa ao bem jurídico tutelado, ou era
diminuta, ou decorria de uma conduta culposa, e que, por questões de política criminal, faziam pres-
cindível a atuação do Estado.
Outro grande avanço da legislação foi a eliminação da prisão em flagrante, e de sorte da fiança, ao autor
do fato (de infração de menor potencial ofensivo), que após a lavratura do termo for imediatamente
encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer.
Com o mesmo propósito que inspirou o legislador de 1995, em 2017, o Conselho Nacional do Ministério
Público editou a Resolução 181, instituindo o acordo de não persecução penal, que ampliou sobrema-
neira a possibilidade de solução acordada, evitando-se a formação do título condenatório, abrangendo,


15
Ver capítulo sobre direito à integridade pessoal que, dentre outros temas, discute os tratamentos desumanos, degradantes e cruéis, uma
violação de direitos humanos largamente cometida pelos Estados durante a execução das penas de prisão ou durante a prisão preventiva.

474
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

desta feita, os crimes cuja pena mínima fosse inferior a quatro anos, desde que não cometido com
violência ou grave ameaça, cumpridas as condições estipuladas.
Traz-se à colação trecho da justificativa endossada à elaboração da citada Resolução 181, notadamente
no trecho em que aborda os efeitos decorrentes da reincidência e a situação carcerária no Brasil:

Considerando, por fim, a exigência de soluções alternativas no Processo Penal que proporcionem
celeridade na resolução dos casos menos graves, priorização dos recursos financeiros e humanos
do Ministério Público e do Poder Judiciário para processamento e julgamento dos casos mais
graves e minoração dos efeitos deletérios de uma sentença penal condenatória aos acusados
em geral, que teriam mais uma chance de evitar uma condenação judicial, reduzindo os
efeitos sociais prejudiciais da pena e desafogando os estabelecimentos prisionais (...) 16

Há, como se nota, um nítido movimento de descarcerização, por meio das soluções acordadas, que
evitam a aplicação da pena privativa de liberdade e, ainda, a caracterização da reincidência.
Em 2019, a Lei 13.964, o Pacote Anticrime, introduziu o aludido acordo de não persecução na legislação
brasileira, no artigo 28-A, do CPP.
Importante sinalar, demais disso, a significativa alteração de tratamento dada pela legislação ao usuário
de drogas. Na sistemática da Lei 6.368, de 1976, ele era punido com uma pena de detenção de seis
meses a dois anos e o pagamento de vinte a cinquenta dias multa. A Lei 11.343, de 2006, Lei de Drogas,
buscou inovar no tratamento da matéria, despenalizando a conduta, ao prever como sanção ao usuário
apenas medidas restritivas de direito, como advertência, prestação de serviços à comunidade e medida
educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
A jurisprudência tem avançado ainda no sentido de não considerar a condenação pretérita pelo crime
de tráfico de drogas como apta a gerar a reincidência, como se vê do REsp 1672.654-SP:

[...] E, em face dos questionamentos acerca da proporcionalidade do direito penal para o controle
do consumo de drogas em prejuízo de outras medidas de natureza extrapenal relacionadas às
políticas de redução de danos, eventualmente até mais severas para a contenção do consumo do
que aquelas previstas atualmente, o prévio apenamento por porte de droga para consumo próprio,
nos termos do artigo 28 da Lei de Drogas, não deve constituir causa geradora de reincidência.17

(REsp 1672654/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em
21/08/2018, DJe 30/08/2018)
Conquanto a matéria não seja ainda tratada exclusivamente na senda do direito sanitário, há que reco-
nhecer o inegável avanço no sentido de evitar o encarceramento do usuário de drogas, que, com sua
conduta, não afeta bem jurídico alheio, senão a sua própria saúde. Falta alteridade à conduta, pressu-
posto indispensável à atuação do braço extremo do direito penal.
A novel legislação também consagrou a impossibilidade da imposição da prisão em flagrante ao autor
do fato, que deverá ser imediatamente encaminhado ao juízo competente, ou, na falta deste, assumir o
compromisso de a ele comparecer.

16
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Resolução 181. 2017. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Reso-
lucoes/Resoluo-181-1.pdf. Acesso em: 09 ago. 2021.


17
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Dcl no REsp 1672654/SP. RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECEN-
TES. [...]. RECORRENTE:MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. RECORRIDO :LUIZ GUSTAVO DOS SANTOS FERREIRA.
Relator(a): Ministra LAURITA VAZ. Publicado em 30/08/2018. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcor-
dao?num_registro=201701226657&dt_publicacao=30/08/2018. Acesso em: 09 ago. 2021.

475
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Há que se rememorar, de acordo com as estatísticas de encarceramento apresentadas pelo Departa-


mento Penitenciário Nacional em 201718 (último encontrado com as informações sistematizadas em
compilado, por fonte oficial), que a população carcerária brasileira era composta, àquela época, em sua
maioria por jovens entre 18 e 24 anos (29,95%), pardos (46,27%), de baixa escolaridade (30% tinham
apenas o ensino fundamental incompleto), e que 30% dos presos estavam nesta condição pelo seu
envolvimento com crimes da Lei de Drogas, a lei 11.343/2006.
Estes dados, reforçam uma preocupação levantada pelo Ministro Barroso em seu voto no RE 635.6591920,
que conclamou um olhar diferente ao problema das drogas na perspectiva brasileira, que deveria esta-
belecer como prioridade,

[...] impedir que as cadeias fiquem entupidas de jovens pobres e primários, pequenos traficantes,
que entram com baixa periculosidade e na prisão começam a cursar a escola do crime, unin-
do-se a quadrilhas e facções. Há um genocídio brasileiro de jovens pobres e negros, imersos na
violência desse sistema. 21

A realidade, nos dizeres do Ministro, revela o fracasso da política atual, que gera um ciclo de violência
que se retroalimenta: o mercado ilícito, a violência gerada por disputas territoriais e econômicas ligadas
ao tráfico, a prisão, o retorno ao convívio social, o regresso à criminalidade etc.
Os dados demonstram, ainda, o alto custo da utilização do Estado Penal com a repressão do tráfico,
conjugado com a informação levantada pelo Ministro, de que houve vertiginoso aumento das taxas de
encarceramento desde a edição da Lei, em 2006, passando de 9% a 27%.
Não se está aqui, obviamente, a propor a revogação da Lei de Drogas. Reconhecemos, inclusive, a exis-
tência de um mandado de criminalização em relação ao tráfico (e não à posse para consumo pessoal),
consoante anela o artigo 5º, XLIII, da CF, e a necessidade de uma repressão adequada deste tipo de
criminalidade, porém há que se repensar a política de enfrentamento do tema, orientada pela própria
eficiência do Direito Penal.
As informações coletadas revelam, porém, o quanto se dispende de energia e recursos na punição
destas e de outras infrações, deixando-se de lado violações nefastas aos direitos humanos.
A constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para consumo próprio está sub judice junto
ao STF, tendo sido reconhecida a sua repercussão geral, conforme RE 635.659/SP, já referido. 22
Considerando a importância do direito à liberdade pessoal, pressuposto ao exercício de grande parte
dos demais direitos humanos, reclama-se, por um lado, que a constrição da liberdade de locomoção se
dê em hipóteses excepcionais, e, por outro, que nestas situações, a integridade física, moral e psíquica
do custodiado seja devidamente respeitada, até porque que o Estado assume a posição de garante em
relação às violências sofridas por presos que se encontram sob sua custódia, podendo ser responsabili-
zado em caso de violação de seus direitos elementares.

18
Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil. Acesso em: 15 abr. 2021.
19
CONSULTOR JURÍDICO. RE 635659: Descriminação do porte de drogas para consumo próprio. [2020?]. Disponível em: https://www.
conjur.com.br/dl/leia-anotacoes-ministro-barroso-voto.pdf. Acesso em: 15 abr. 2021.
20
TEMA 506: Tipicidade do porte de droga para consumo pessoal. Supremo Tribunal Federal, [2019?]. Disponível em: https://portal.stf.jus.
br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4034145&numeroProcesso=635659&classeProcesso=RE&nume-
roTema=506. Acesso em: 15 abr. 2021.


21
CONSULTOR JURÍDICO. RE 635659: Descriminação do porte de drogas para consumo próprio. [2020?]. Disponível em: https://www.
conjur.com.br/dl/leia-anotacoes-ministro-barroso-voto.pdf. Acesso em: 15 abr. 2021.
22
RE 635659 RG/SP. Supremo Tribunal Federal, 2012. Disponível em https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/repercussao-geral3421/
false. Acesso em: 09 ago. 2021.

476
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

O que se nota, entretanto, é que o sistema prisional no âmbito das Américas encontra-se, de um modo
geral, superlotado, e, pior, sucateado, sem condições de oferecer o mínimo de dignidade aos seus
internos, e à margem das políticas governamentais, o que vulnera tanto o direito à liberdade, quanto,
em última instância, a integridade dos presos e de seus familiares. E sem que cumpra propósito algum,
senão o retribuir o mal, pelo mal causado.
Percebe-se um tímido esforço legislativo no sentido de implementar uma política que, não menos
austera, retira da pena de prisão o protagonismo, enquanto figura central do direito penal. Diz-se não
menos austera, pois as soluções alternativas, como as penas restritivas de direito – que também inter-
ferem nas liberdades individuais, porém em menor escala –, caso tratadas com a devida seriedade na
fase executória, podem surtir o mesmo efeito dissuasório que a pena privativa de liberdade.
Tímido, pois a inflação legislativa, impulsionada pelo clamor popular, ainda constitui verdadeiro entrave,
a menos no Brasil, para que se busque um direito penal equilibrado. Neste sentido:

No âmbito do direito penal e processual penal, por exemplo, fala-se em expansão das leis penais
e no surgimento de um direito penal simbólico correlato. Isso porque, a insuficiência dos meios
estatais para conter os problemas advindos da violência e da criminalidade são argumentos pres-
supostos para uma intensa atividade legislativa no sentido da construção de tipos penais voltados
para proteção de bens jurídicos que escapam ao núcleo daqueles bens classicamente aparados
pela tutela penal. Assim se segue um avanço de um processo criminalizador em relação a um
grande número de condutas para cumprir apenas um efeito meramente ‘simbólico’. 23

No particular caso da Lei 11.343/06, é possível notar que o legislador cominou penas restritivas de
direitos ao usuário de drogas e proibiu a sua prisão em flagrante delito, o que representou um grande
avanço em termos de política criminal, porém manteve sob o jugo do direito penal o enfrentamento do
problema, que poderia ter sido transferido ao direito sanitário ou administrativo.

3.1.1. A situação carcerária no Brasil, o estado inconstitucional de coisas (ADPF 347) e a


contagem em dobro do período de reclusão (RHC 136.961, do STJ)

O Cadastro Nacional de Presos, do Conselho Nacional de Justiça, datado de 2018 (último disponível), 24
informa que do total de presos no país, 600.669, 0,11% são presos civis; 0,15% são pessoas cumprindo
medida de segurança na modalidade internação; e 99,74% são pessoas presas em processo de natureza
penal. Do total dos presos de natureza penal, 24,72 % estão em execução provisória, e 35,15 %, em
execução definitiva. Este mesmo levantamento indica os tipos penais mais recorrentes imputados às
pessoas privadas de liberdade: roubo 27,58%; tráfico de drogas 24,74%, homicídio 11,27%, furto 8,63%;
posse, porte, disparo e comércio de arma de fogo ilegal 4,88 %; estupro 3,34%, receptação 2,31%; Esta-
tuto da Criança e do Adolescente 2,11%; Crimes contra a fé pública 1,46%; Crimes contra administração
pública 1,46% e associação criminosa 1,38%. 25

23
OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão judicial e o conceito de princípio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 75.
24
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP. Cadastro Nacional de Presos. Brasília-
-DF, CNJ, 2018. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/08/bnmp.pdf. Acesso em: 15 abr. 2021.
25
PRESOS em unidades prisionais no Brasil. Departamento Penitenciário Nacional, 2019. Disponível em: https://app.powerbi.com/
view?r=eyJrIjoiZWI2MmJmMzYtODA2MC00YmZiLWI4M2ItNDU2ZmIyZjFjZGQ0IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNm-
Ny05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 15 abr. 2021.

477
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Em 2009, após requerimento do Deputado Domingos Dutra, a Câmara dos Deputados criou uma
Comissão Parlamentar de Inquérito2627 com a finalidade de investigar a realidade do Sistema Carce-
rário Brasileiro, com destaque para a superlotação dos presídios, custos sociais e econômicos desses
estabelecimentos, a permanência de encarcerados que já cumpriram a pena, a violência dentro das
instituições do sistema carcerário, corrupção, crime organizado e suas ramificações nos presídios e
buscar soluções para o efetivo cumprimento da Lei de Execução Penal.
Essa investigação resultou num relatório de mais de 600 páginas, que trouxe um diagnóstico sobre a
realidade carcerária brasileira, apontando diversas violações aos direitos dos presos.
A CPI denuncia a falta de assistência material, indicando que “a maioria dos estabelecimentos penais
não oferece aos presos condições mínimas para que vivam adequadamente”28. Essa precariedade na
assistência produz reflexos no processo de ressocialização do indivíduo, não o preparando de modo
adequado para o seu retorno ao convívio social. Denuncia-se medo, repressão, tortura e violência, que
interferem não apenas na vida do preso, como também na de seus familiares, que são atingidos refle-
xamente por terem um ente querido ali alocado, em condições subumanas. Aponta que as acomoda-
ções são precárias, estando os presos amontados em celas sem a garantia de uma higiene adequada.
Apurou-se que “em muitos deles (dos estabelecimentos penais inspecionados), os presos não tem
acesso a água e, quando o têm, o Estado não lhes disponibiliza água corrente e de boa qualidade.”29
O relatório indica que nalguns estabelecimentos o Estado não fornece itens de higiene pessoal, que
noutros o esgoto corre a céu aberto pelos pátios etc, que há mau cheiro, proliferação de moscas,
baratas e outros insetos. Sobre a alimentação, constatou-se presos comendo em sacos plásticos, com
a própria mão e refeições mau preparadas e a elevado custo, estando tudo a indicar a ocorrência de
esquemas de corrupção. Percebeu-se a ausência de assistência médica, o inadequado controle de
presos com doenças infectocontagiosas e que em 2007, apenas 20% dos presos estavam cobertos
pelas equipes de saúde.
A equipe integrante da CPI apurou, em relação à assistência farmacêutica, que as unidades prisionais
não fornecem medicamentos aos seus internos e que basicamente “os mesmos remédios são utilizados
em todos os tratamentos das mais variadas doenças.”30 Falta assistência odontológica, psicológica, jurí-
dica e social. A assistência ao egresso é verdadeira utopia. Falta água potável. Em algumas unidades os
presos somente poderiam consumir água se pagassem um valor mensal. Noutra, o consumo diário de
água era limitado.
A superlotação é outro grave problema que assola o cárcere brasileiro, dela advindo, segundo relatório
da CPI, insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. O rela-
tório sublinha que

26
C MARA DOS DEPUTADOS. Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara, 2009. 620 p. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/relatorio-cpi-sistema-carcerario.pdf. Acesso em: 09 ago. 2021.


27
Consta do relatório, “Motivos da criação da CPI: Rebeliões, motins freqüentes com destruição de unidades prisionais; violência entre
encarcerados, com corpos mutilados e cenas exibidas pela mídia; óbitos não explicados no interior dos estabelecimentos; denúncias de
torturas e maus-tratos; presas vítimas de abusos sexuais; crianças encarceradas; corrupção de agentes públicos; superlotação; reinci-
dência elevada; organizações criminosas controlando a massa carcerária, infernizando a sociedade civil e encurralando governos; custos
elevados de manutenção de presos; falta de assistência jurídica e descumprimento da Lei de Execução Penal, motivaram o Deputado
Domingos Dutra a requerer a criação da CPI sobre o sistema carcerário brasileiro”. (p. 41)
28
C MARA DOS DEPUTADOS. Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara, 2009. 620 p. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/relatorio-cpi-sistema-carcerario.pdf. Acesso em: 09 ago. 2021. p. 189.
29
Idem. Ibdem. p. 194.
30
Idem. Ibdem. p. 210.

478
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

Assim vivem os presos no Brasil. Assim são os estabelecimentos penais brasileiros na sua grande
maioria. Assim é que as autoridades brasileiras cuidam dos seus presos pobres. E é assim que as
autoridades colocam, todo santo dia, feras humanas jogadas na rua para conviver com a sociedade. 31

Como se nota, o sistema carcerário se transmuda num ambiente de vitimização, que na linha do que
sustenta Almeida, vulnerabiliza pessoas privadas de liberdade. Afirma o autor que “Origina-se, assim,
uma inversão de sujeitos, pois aquele que antes figurava enquanto sujeito ativo do ato delituoso passa
a se tornar vítima do sistema prisional”. 32
Assim, o transgressor da norma passa da condição de criminoso para a condição de vítima, desvelan-
do-se a desumanidade das prisões no Brasil. O custodiado é alçado a uma subcategoria de cidadão, que,
além de privado de sua liberdade e de seus direitos políticos – efeitos da sentença penal condenatória
com trânsito em julgado – experimenta também a privação de sua dignidade, à míngua de condições
mínimas para exercício de seus direitos básicos.
No julgamento do caso Lópes Álvarez vs. Honduras, ao tratar da prova constante dos autos, a Corte
IDH asseverou que a vítima (Lópes Álvarez) teve a sua dignidade e integridade pessoal afetadas com a
conduta do Estado, já que

[...] esteve privado de liberdade durante seis anos e quatro meses nos centros penitenciários de
Tela e Támara, tempo em que permaneceu detido juntamente com condenados, sendo ele preso
provisório, em condições carcerárias de superlotação e insalubridade. Foi proibido de falar seu
idioma materno. Além disso, recebeu maus-tratos físicos no momento de sua detenção, durante
o período em que permaneceu no Departamento de Investigação Criminal e esteve longe de
sua família (pars. 54.12, 54.14, 54.47, 54.48 e 54.49 supra), o que afetou sua dignidade e integridade
pessoal e lhe causou danos imateriais. 33

No caso Instituto de Reeducação do Menor vs. Paraguai, em que se questionavam as condições em que
os reclusos do Instituto “Panchito Lopez”, no Paraguai, eram submetidos, em razão da superlotação,
condições insalubres, instalações precárias, sem assistência médica e alimentação adequada, a Corte
IDH reiterou que

(...) en ningún momento existieron en el Instituto las condiciones para que los internos privados de
libertad pudieran desarrollar su vida de manera digna, sino más bien a éstos se los hizo vivir perma-
nentemente en condiciones inhumanas y degradantes, exponiéndolos a un clima de violencia,
inseguridad, abusos, corrupción, desconfianza y promiscuidad, donde se imponía la ley del más
fuerte con todas sus consecuencias. (§170)34

Não obstante, ficou registrado que o Estado assume o “labor de garante” na relação de sujeição do
Estado - adulto/criança privado de liberdade, por não ter tomado as medidas necessárias e suficientes
para garantir condições de vida dignas a todos os internos.


31
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições
Câmara, 2009. 620 p. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/relatorio-cpi-sistema-carcerario.pdf. Acesso em: 09 ago. 2021. p. 246.
32
ALMEIDA, Bruno Rotta. Prisão e desumanidade no Brasil: uma crítica baseada na história do presente. Revista da Faculdade de Direito
- Universidade Federal de Minas Gerais, v. 74, p. 43-64, 2019. p. 46.
33
CORTE IDH. Caso Lópes Álvarez vs. Honduras. Presidente Sergio García Ramírez. Sentença de 1º de fevereiro de 2006. Disponível em:
BRASIL. Jurisprudência Interamericana de Direitos Humanos. Direito à Liberdade Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.
34
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso “Instituto de Reeducación del Menor” Vs. Paraguay. 2004. Presidente
Sergio García Ramírez. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_112_esp.pdf. Acesso em: 13 de maio de 2022.

479
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3.1.2. O Estado Inconstitucional de Coisas do sistema penitenciário nacional

Em 2015, o PSOL - Partido Socialismo e Liberdade propôs ADPF, objetivando, dentre outras, a decla-
ração do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro e a adoção de providências,
sob o argumento de que as prisões brasileiras são, em geral, verdadeiros infernos dantescos, com celas
superlotadas, imundas e insalubres etc.
Ao apreciar a medida cautelar vindicada, o então Min. Marco Aurélio proferiu decisão assim ementada:

CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE


DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de
descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias
no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES
DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS
ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente
quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estrutu-
rais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natu-
reza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser carateri-
zado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS
– CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público
direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA –
OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do
Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a
realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso
perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão. 35

Nela, o Ministro reconheceu a grave situação dos presídios brasileiros, asseverando que as penas priva-
tivas de liberdade aplicadas nestas condições se convertem em penas cruéis e desumanas, circunstância
que vulnera tratados internacionais (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção
contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção
Americana de Direitos Humanos) e direitos fundamentais, ex vi da dignidade da pessoa humana, a proi-
bição de tortura e de tratamento desumano e degradante, a vedação de penas cruéis etc.
Ponderou que os cárceres brasileiros não servem à ressocialização de presos, contribuindo ao aumento
da criminalidade, “transformando pequenos delinquentes em ‘monstros do crime’”.
Em destacada passagem, o ex-Ministro lembrou que os presos tratam de uma minoria, e que constitui
medida impopular o direcionamento de atenção a eles:

É difícil imaginar candidatos que tenham como bandeira de campanha a defesa da dignidade dos
presos. A rejeição popular faz com que a matéria relativa à melhoria do sistema prisional enfrente
o que os cientistas políticos chamam de “ponto cego legislativo” (legislative blindspot): o debate
parlamentar não a alcança. Legisladores e governantes temem os custos políticos decorrentes da
escolha por esse caminho, acarretando a incapacidade da democracia parlamentar e dos governos
popularmente eleitos de resolver graves problemas de direitos fundamentais. A história possui
vários exemplos de agentes políticos haverem acionado cortes constitucionais, visando encontrar
soluções a casos moralmente controvertidos e impopulares e, assim, evitar choques com a opinião
púbica. Os poderes majoritários apostam no perfil contramajoritário das cortes constitucionais
ou supremas: condenadas judicialmente a atuar, autoridades públicas se escudam no Estado de


35
ARGUIÇÃO de Descumprimento de Preceito Fundamental 347. Supremo Tribunal Federal, 2015. Disponível em: https://jurisprudencia.
stf.jus.br/pages/search/sjur339101/false. Acesso em: 8 fev. 2021

480
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

Direito e no consectário dever de observar ordens judiciais para implementar aquilo que teriam
feito voluntariamente se não temessem custos políticos. 36

E conclui, arrematando que

Em síntese, a solução das graves violações de direitos fundamentais dos presos, decorrentes da
falência do sistema prisional, presentes políticas públicas ineficientes e de resultados indesejados,
não consegue avançar nas arenas políticas ante a condição dos presos, de grupo social minoritário,
impopular e marginalizado. Nesse cenário de bloqueios políticos insuperáveis, fracasso de repre-
sentação, pontos cegos legislativos e temores de custos políticos, a intervenção do Supremo, na
medida correta e suficiente, não pode sofrer qualquer objeção de natureza democrática. 37

A ação ainda se encontra pendente de julgamento.

3.1.3. A contagem em dobro do período de recolhimento ao cárcere

Em junho do ano de 2021, no julgamento do RHC 136.961, 38 o STJ, em julgamento emblemático deter-
minou fosse contado em dobro o período em que um custodiado esteve preso no Instituto Penal
Plácido de Sá Carvalho, no Complexo Penitenciário Bangu, no estado do Rio de Janeiro.
O Tribunal decidiu pelo cômputo diferenciado da pena, por conta das condições degradantes do esta-
belecimento prisional, que já teria sido alvo de inspeções realizadas pela Corte IDH, que inclusive culmi-
naram na edição de Resolução por parte da Corte, 39 proibindo o ingresso de novos presos na unidade e
determinou o cômputo em dobro de cada dia de prisão de liberdade cumprido no local.

3.2. A prisão cautelar

A prisão pode ainda ser decretada antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, caso em que
será denominada cautelar, processual ou provisória. A própria nomenclatura atribuída a esta forma de
constrição já sinala que ela tem natureza efêmera, até porque não se baseia num juízo de culpabilidade,
senão de cautelaridade. Não há um título condenatório definitivo, aliás a formação da culpa ainda está
em curso, motivo pelo qual deve ser demonstrada a necessidade da medida, sempre excepcional. No
caso Suárez Rosero vs. Equador, a Corte IDH consignou que:
Aliás, no caso Suárez Rosero vs. Equador, a Corte IDH consignou que

Esta Corte considera que ao princípio da presunção de inocência subjaz o propósito das garantias
judiciais, ao afirmar que uma pessoa é inocente até que sua culpabilidade seja demonstrada. Do
disposto no artigo 8.2 da Convenção deriva a obrigação estatal de não restringir a liberdade do

36
ARGUIÇÃO de Descumprimento de Preceito Fundamental 347. Supremo Tribunal Federal, 2015. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.
jus.br/pages/search/sjur339101/false. Acesso em: 8 fev. 2021.


37
ARGUIÇÃO de Descumprimento de Preceito Fundamental 347. Supremo Tribunal Federal, 2015. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.
jus.br/pages/search/sjur339101/false. Acesso em: 8 fev. 2021.
38
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no Recurso em Habeas Corpus nº 136961 - RJ (2020/0284469-3). 2021. Disponível em: https://
processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=128758418&num_registro=202002844693&-
data=20210621&tipo=5&formato=PDF. Acesso em: 09 ago. 2021.
39
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Medidas provisórias a respeito do Brasil: Assunto do Instituto Penal Plácido de
Sá Carvalho. 2018. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/placido_se_03_por.pdf. Acesso em: 13 de maio de 2022. “4. O
Estado deverá arbitrar os meios para que, no prazo de seis meses a contar da presente decisão, se compute em dobro cada dia de privação
de liberdade cumprido no IPPSC, para todas as pessoas ali alojadas, que não sejam acusadas de crimes contra a vida ou a integridade física,
ou de crimes sexuais, ou não tenham sido por eles condenadas, nos termos dos Considerandos 115 a 130 da presente resolução.”

481
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

detido além dos limites estritamente necessários para assegurar que não impedirá o desenvolvi-
mento eficiente das investigações e que não evitará a ação da justiça, pois a prisão preventiva é
uma medida cautelar, não punitiva. (§77)40

Nesta modalidade provisória, o ordenamento jurídico brasileiro consagra as prisões em flagrante,


preventiva e temporária. A primeira delas, o flagrante, contempla situações em que o indivíduo está
cometendo o crime, acabou de cometê-lo, foi perseguido após a sua prática ou foi encontrado após
a prática em situação que o faça presumir ser autor do crime. Tem por escopo primordial evitar,
quando possível, a consumação do crime, reunir elementos de autoria e materialidade para subsidiar a
persecução penal, e evitar a fuga do envolvido. A segunda, a preventiva, está prevista nos artigos 312 e
seguintes do CPP e objetiva garantir a ordem pública, ou econômica, a instrução do feito, a aplicação da
lei penal, a execução das medidas cautelares diversas da prisão e o cumprimento de medidas protetivas.
Por fim, a provisória, prevista na Lei 7.960, de 1989, destina-se às hipóteses em que imprescindível para
as investigações ou quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários
para o esclarecimento de sua identidade, reservando-se a um número restrito de crimes.
O devido processo legal reclama a imposição mínima de restrições aos direitos humanos no curso do
processo, tanto assim que a prisão constitui a ultima ratio, consoante anela o §6º, do artigo 282, do CPP:

A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra
medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra
medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso
concreto, de forma individualizada. 

Neste mesmo sentido está a jurisprudência da Corte IDH:

A prisão preventiva está limitada pelos princípios de legalidade, presunção de inocência, neces-
sidade e proporcionalidade, indispensáveis em uma sociedade democrática. Constitui a medida
mais severa que se pode impor ao acusado e, por isso, deve-se aplicar excepcionalmente. A regra
deve ser a liberdade do processado enquanto se decide sobre sua responsabilidade criminal.41

Aliás, em 2011, o legislador brasileiro implementou uma microrreforma no CPP, por força da Lei 12.403,
de 2011, consagrando ao lado da prisão outras nove medidas cautelares, conforme artigos 319 e 320,
deixando evidenciada a excepcionalidade da detenção.
Quanto ao flagrante, ele exaure as suas finalidades tão logo capturado o agente, de sorte que a sua
manutenção somente se justifica se ele for convertido em prisão preventiva. Aliás, a providência deve
ser adotada pelo magistrado, em sede de audiência de custódia, na forma do artigo 310, com redação
dada pela Lei 13.964. No caso Cabrera García y Montiel Flores vs. Mexico, a Corte IDH sublinhou que

[...] el control judicial inmediato es una medida tendiente a evitar la arbitrariedad o ilegalidad
de las detenciones, tomando en cuenta que en un Estado de Derecho corresponde al juzgador
garantizar los derechos del detenido, autorizar la adopción de medidas cautelares o de coerción
cuando sea estrictamente necesario y procurar, en general, que se trate al inculpado de manera
consecuente con la presunción de inocencia.42

40
CORTE IDH. Caso Suares Rosero vs. Equador. Presidente Antônio A. Cançado Trindade. Sentença de 12 de novembro de 1997. Disponível
em: BRASIL. Jurisprudência Interamericana de Direitos Humanos: Direito à Liberdade Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.


41
CORTE IDH. Caso Lópes Álvarez vs. Honduras. Presidente Sergio García Ramírez. Sentença de 1º de fevereiro de 2006. Disponível em:
BRASIL. Jurisprudência Interamericana de Direitos Humanos: Direito à Liberdade Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.
42
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Cabrera García y Montiel Flores Vs. México. 2010. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_220_esp.pdf. Acesso em: 13 maio 2022.

482
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

Além de comunicar a prisão à Autoridade Judiciária competente, cabe ao Delegado de Polícia comu-
nicar ao preso os motivos da prisão e os responsáveis pela sua condução, expedindo a nota de culpa,
comunicar a custódia ao Ministério Público, à família do preso ou à pessoa por ele indicada.
A Lei 13.257, de 2016, o Estatuto da Primeira Infância, introduziu novidade ao CPP, consignando que
no auto de prisão em flagrante, documento que formaliza a prisão, deve constar a informação sobre
a existência de filhos e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável
pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa, evitando-se com que estes, vulneráveis, fiquem
desguarnecidos dos cuidados necessários ao seu bom e sadio desenvolvimento.
Outra situação, não menos importante, versa sobre a implementação, no direito brasileiro, da audiência
de custódia, decorrente da obrigação de imediata apresentação do indivíduo preso à Autoridade Judi-
ciária ou autorizada por lei a exercer funções judiciais (conforme artigo 7.2, da CADH). Sobre o tema, a
Corte IDH já consignou que

87. Em conformidade com o artigo 7.5 da Convenção e com os princípios de controle judicial e
imediação processual, a pessoa detida ou retida deve ser levada, sem demora, perante um juiz ou
autoridade judicial competente. Isso é essencial para a proteção do direito à liberdade pessoal e de
outros direitos, como a vida e a integridade pessoal. O simples conhecimento judicial de que uma
pessoa está detida não satisfaz essa garantia; o detido deve comparecer pessoalmente e prestar
declaração perante o juiz ou autoridade competente.

88. A imediata revisão judicial da detenção tem particular relevância quando se aplica a capturas infra-
ganti (par. 64 supra), e garantir os direitos do detido é um dever do Estado.43
Ela foi regulamentada no plano interno, por meio da Resolução 213, de 2015, do Conselho Nacional de
Justiça, justificada, entre outros, pelo disposto no artigo 7.2 da CADH, e artigo 2.1, da Convenção Contra
Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
O que se nota é que há um grande lapso temporal entre a promulgação dos documentos internacionais
referidos e a sua efetiva implementação (e regulamentação) no direito doméstico. A CADH data de 22
de novembro de 1969, 44 enquanto a Convenção Contra Tortura foi adotada pela Resolução 39/46, da
Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1984.45
A realização da audiência de custódia já havia sido reclamada por meio da Arguição de Descumpri-
mento de Preceito Fundamental 347, 46e decidida cautelarmente pelo Min. Marco Aurélio, que em seu
voto fez o seguinte registro:

O segundo pleito concerne à audiência de custódia, instrumento ao qual o ministro Ricardo


Lewandowski, como Presidente do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, vem dando atenção
especial, buscando torná-lo realidade concreta, no Judiciário, em diferentes unidades federativas
e combatendo a cultura do encarceramento. A imposição da realização de audiências de custódia
há de ser estendida a todo o Poder Judiciário do país. A medida está prevista nos artigos 9.3 do
Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, já
internalizados no Brasil, o que lhes confere hierarquia legal. A providência conduzirá, de início, à
redução da superlotação carcerária, além de implicar diminuição considerável dos gastos com a


43
CORTE IDH. Caso Lópes Álvarez vs. Honduras. Presidente Sergio García Ramírez. Sentença de 1º de fevereiro de 2006. Disponível em:
BRASIL. Jurisprudência Interamericana de Direitos Humanos: Direito à Liberdade Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.
44
Promulgada no Brasil pelo Decreto 678, de 6 de novembro de 1992.
45
Promulgada no Brasil pelo Decreto 40, de 15 fev. 1991.
46
ARGUIÇÃO de Descumprimento de Preceito Fundamental 347. Supremo Tribunal Federal, 2015. Disponível em: https://jurisprudencia.
stf.jus.br/pages/search/sjur339101/false. Acesso em: 8 fev. 2021.

483
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

custódia cautelar – o custo médio mensal individual seria, aproximadamente, de R$ 2.000,00. A


pretensão também merece acolhimento.

Sublinhe-se que, após a edição de ato pelo CNJ, os Tribunais de Justiça Brasil afora regulamentaram o
aludido ato processual, com pequenas adaptações para ajustá-lo à realidade local, tendo a Associação
dos Delegados de Polícia do Brasil proposto ação direta de inconstitucionalidade contra o ato emanado
do Tribunal de São Paulo.47 Aqui foi reafirmado o caráter supralegal dos tratados internacionais sobre
direitos humanos, valendo destaque trecho do voto do Min. Fux, relator:

Tratados e convenções internacionais com conteúdo de direitos humanos, uma vez ratificados e
internalizados, ao mesmo passo em que criam diretamente direitos para os indivíduos, operam a
supressão de efeitos de outros atos estatais infraconstitucionais que se contrapõem à sua plena
efetivação. [...]

Destarte, também o item 5 do artigo 7º da referida convenção deve ser tido por norma supralegal,
sendo imperioso passar em revista a legislação ordinária à luz do seu conteúdo normativo.
Impende destacar que a positivação da audiência de custódia em lei no direito brasileiro somente
ocorreu em 2020, por força do alcunhado Pacote Anticrime, lei 13.964, de 2019, que deu nova redação
ao artigo 310, do CPP.
A renitência do Estado brasileiro a se submeter ao Direito Internacional se verifica igualmente no que
toca à autoridade das decisões emanadas da CorteIDH.
As prisões preventiva e temporária, demandam, para a sua decretação, a existência do fumus comissi
delicti, consubstanciado em provas da existência do crime e indícios suficientes de autoria, e do
periculum libertatis, que se ancora em pressupostos específicos previstos na legislação de regência,
baseados na necessidade da medida.
Uma observação importante é que a prisão deve, em todo caso, atender ao critério da homogeneidade,
não podendo ser medida mais gravosa do que aquela que será ou seria imposta ao investigado ao cabo
do processo, em caso de condenação. Não faria sentido que o juiz decretasse a prisão preventiva no
curso do processo para, após o devido processo legal, em reconhecendo a procedência da pretensão
punitiva estatal, fixar o regime inicial de pena como sendo o aberto. Por isso a previsão contida no artigo
313, do CPP, que exige, na maior parte dos casos, seja o crime doloso, punido com pena privativa de
liberdade máxima superior a quatro anos ou que o agente seja reincidente, bem assim aos crimes mais
graves – com altas penas cominadas –, como no caso a prisão temporária. A este respeito, veja como já
decidiu a Corte IDH:

A legitimidade da prisão preventiva não provém apenas da permissão legal para aplicá-la em deter-
minadas hipóteses gerais. A adoção dessa medida cautelar requer um juízo de proporcionalidade
entre esta, os elementos de convicção para proferi-la e os fatos que se investigam. Se não há
proporcionalidade, a medida será arbitrária.48

A prisão preventiva não pode servir ao desiderato de antecipar o cumprimento da pena, tampouco
ser decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento da denúncia,
conforme §2º, do artigo 313, do CPP.


47
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5240/SP. Ação direta de inconstitucionalidade. provimento
conjunto 03/2015 do tribunal de justiça de São Paulo. Audiência de custódia. [...]. Requerente: Associação dos Delegados de Polícia do Bra-
sil - ADEPOL-BRASIL. Relator: Min. Fux, julgada em 20 de agosto de 2015, publicada em: 01 fev. 2016. Disponível em: https://jurisprudencia.
stf.jus.br/pages/search/sjur336549/false. Acesso em: 8 fev. 2021.
48
ARGUIÇÃO de Descumprimento de Preceito Fundamental 347. Supremo Tribunal Federal, 2015. Disponível em: https://jurisprudencia.
stf.jus.br/pages/search/sjur339101/false. Acesso em: 8 fev. 2021.

484
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

A lei não fixou prazo máximo de duração da prisão preventiva. Os tribunais tem adotando como parâ-
metro para aferição de eventual excesso, a razoabilidade, como se vê do aresto abaixo, emanado do STJ:

[...]

2. A aferição da violação à garantia constitucional da duração razoável do processo, por excesso


de prazo para a formação da culpa, não resulta de um critério matemático, ao contrário, reclama
um juízo de razoabilidade, no qual devem ser sopesados não só o tempo da prisão provisória, mas
também as peculiaridades da causa, bem como quaisquer fatores que possam influir na trami-
tação da ação penal.

3. No caso, o alegado constrangimento por excesso de prazo - o paciente se encontra preso desde
março de 2015 - não se configura, pois se trata de feito de alta complexidade, no qual se apuram
as condutas de 31 denunciados, membros de sofisticada associação criminosa, desbaratada no
âmbito da “Operação Borborema” e responsável pelo transporte e distribuição interestadual de
drogas na região nordeste do país, com a qual foram apreendidos 25kg de pasta-base de cocaína,
71kg de cocaína e 61kg de maconha.

4. Recomenda-se, contudo, que o juízo processante atue com extrema diligência e imprima celeri-
dade ao feito, que exigiu a expedição de inúmeras cartas precatórias, inclusive quanto ao paciente,
mas que, no momento, já se encontra desmembrado em relação a ele.

5. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegado, com recomendação ao


Juízo de origem de julgamento célere do processo.

(HC 387.599/PB, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em
27/06/2017, DJe 01/08/2017)

Em interessante precedente, o STJ reconheceu a legitimidade da responsabilização do estado em


decorrência da manutenção de um investigado em cárcere pelo prazo de treze anos, sem que a inves-
tigação correlata fosse concluída. A reflexão proposta foi no sentido de que o requerente teria experi-
mentado a “morte em vida” em decorrência da ilegítima supressão de sua liberdade, integridade moral
e física, e de sua inteireza humana:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR


DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DECORRENTE DE
ATOS PRATICADOS PELO PODER JUDICIÁRIO. MANUTENÇÃO DE CIDADÃO EM CÁRCERE
POR APROXIMADAMENTE TREZE ANOS (DE 27/09/1985 A 25/08/1998) À MINGUA DE CONDE-
NAÇÃO EM PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE OU PROCEDIMENTO CRIMINAL, QUE JUSTIFI-
CASSE O DETIMENTO EM CADEIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO. ATENTADO À
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

1. Ação de indenização ajuizada em face do Estado, objetivando o recebimento de indenização


por danos materiais e morais decorrentes da ilegal manutenção do autor em cárcere por quase
13 (treze) anos ininterruptos, de 27/09/1985 a 25/08/1998, em cadeia do Sistema Penitenciário
Estadual, onde contraiu doença pulmonar grave (tuberculose), além de ter perdido a visão dos
dois olhos durante uma rebelião.

2. A Constituição da República Federativa do Brasil, de índole pós-positivista e fundamento de


todo o ordenamento jurídico expressa como vontade popular que a República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, consti-
tui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da
pessoa humana como instrumento realizador de seu ideário de construção de uma sociedade
justa e solidária.

485
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3. Consectariamente, a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurí-


dico, por isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva operar
a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido normativo-constitucional, que suscita a
reflexão axiológica do resultado judicial.

4. Direitos fundamentais emergentes desse comando maior erigido à categoria de princípio e de


norma superior estão enunciados no art. 5.º da Carta Magna, e dentre outros, os que interessam o
caso sub judice destacam-se: XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
(...) LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV -
ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes,
em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório
e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (...) LVII - ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (...) LXI - ninguém será preso
senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária compe-
tente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; (...)
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI - ninguém será
levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

5. A plêiade dessas garantias revela inequívoca transgressão aos mais comezinhos deveres esta-
tais, consistente em manter-se, sem o devido processo legal, um ser humano por quase 13 (treze)
anos consecutivos preso, por força de inquérito policial inconcluso, sendo certo que, em razão do
encarceramento ilegal, contraiu o autor doenças, como a tuberculose, e a cegueira.

6. Inequívoca a responsabilidade estatal, quer à luz da legislação infraconstitucional (art. 159 do


Código Civil vigente à época da demanda) quer à luz do art. 37 da CF/1988, escorreita a impu-
tação dos danos materiais e morais cumulados, cuja juridicidade é atestada por esta Eg. Corte
(Súmula 37/STJ)

7. Nada obstante, o Eg. Superior Tribunal de Justiça invade a seara da fixação do dano moral para
ajustá-lo à sua ratio essendi, qual a da exemplariedade e da solidariedade, considerando os consec-
tários econômicos, as potencialidades da vítima, etc, para que a indenização não resulte em soma
desproporcional.

8. In casu, foi conferida ao autor a indenização de R$ 156.000,00 (cento e cinqüenta e seis mil
reais) de danos materiais e R$ 1.844.000,00 (um milhão, oitocentos e quarenta e quatro mil reais)
de danos morais.

9. Fixada a gravidade do fato, a indenização imaterial revela-se justa, tanto mais que o processo
revela o mais grave atentado à dignidade humana, revelado através da via judicial.

10. Deveras, a dignidade humana retrata-se, na visão Kantiana, na autodeterminação; na vontade


livre daqueles que usufruem de uma vivência sadia. É de se indagar, qual a aptidão de um cidadão
para o exercício de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi uma “morte em vida”, que se
caracterizou pela supressão ilegítima de sua liberdade, de sua integridade moral e física e de sua
inteireza humana?

11. Anote-se, ademais, retratar a lide um dos mais expressivos atentados aos direitos fundamentais
da pessoa humana. Sob esse enfoque temos assentado que “a exigibilidade a qualquer tempo dos
consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento
da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Decla-
ração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que ‘todos os homens
nascem livres e iguais em dignidade e direitos’. Deflui da Constituição federal que a dignidade da
pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no
seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa

486
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e


o direito processual”. (REsp 612.108/PR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJ 03.11.2004) 12.
Recurso Especial desprovido.49

No caso Bayarri vs. Argentina, a Corte IDH reconheceu, com base no artigo 7.5, da CADH, que a
detenção de uma pessoa deve ser submetida sem demora à revisão judicial, com vistas a evitar poten-
ciais arbitrariedades e ilegalidades, e que esta revisão deve ser feita sem demora, para que se garanta o
cumprimento da lei e o gozo dos direitos do custodiado, tendo em vista a sua especial vulnerabilidade.
O senhor Bayarri foi detido em 18 de novembro de 1991, em 20 de dezembro foi expedida a ordem de
sua prisão, a sentença judicial condenatória foi proferida em 6 de agosto de 2001, e posteriormente
reformada em 1º de junho de 2004. O processo se estendeu por aproximadamente 13 anos, durante os
quais o acusado permaneceu preso preventivamente.
A Corte considerou que a duração da prisão não apenas ultrapassou o limite máximo legal estabelecido,
mas foi excessiva em todos os aspectos, asseverando que “(...) não considera razoável que a suposta
vítima tenha permanecido 13 anos privado da liberdade à espera de uma decisão judicial definitiva para
seu caso, a qual finalmente o absolveu das acusações a ele imputadas.”
Situação similar foi verificada no caso Acosta Alderón vs. Ecuador, 50 em que o investigado, de naciona-
lidade colombiana, foi preso no Equador em novembro de 1989, pelo seu suposto envolvimento com o
tráfico de drogas. A sentença condenatória foi prolatada 6 anos e 8 meses mais tarde, período em que o
acusado permaneceu preso. Na hipótese, a Corte IDH reconheceu, dentre outros, a violação do direito
à presunção de inocência, pois o réu teria sido condenado apenas com base na declaração policial,
sem a comprovação técnica de que o material apreendido se tratava, realmente, de droga. Veja-se,
porém, que a detenção do acusado se arrastou por mais de meia década sem uma solução definitiva
da contenda criminal.
Diferentemente, em relação à prisão temporária, a lei fixou prazo máximo de duração, sendo de
cinco dias prorrogável por mais cinco, ou trinta dias, prorrogável por mais trinta, em se tratando de
crime hediondo.
A Lei 13.964/19 implementou a necessidade de que o decreto prisional fosse reavaliado a cada noventa
dias, sob pena de ilegalidade, conforme se extrai do parágrafo único, do artigo 316, do CPP. O STF
entretanto, ao visitar o tema, fixou a seguinte tese:

A inobservância da reavaliação prevista no parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo


Penal (CPP), com a redação dada pela Lei 13.964/2019, após o prazo legal de 90 (dias), não implica
a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a
legalidade e a atualidade de seus fundamentos. 51

49
AÇÃO Direta de Inconstitucionalidade 5240/SP. Supremo Tribunal Federal, 2015. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/
search/sjur336549/false. Acesso em: 8 fev. 2021.
50
CORTE IDH. Caso Lópes Álvarez vs. Honduras. Presidente Sergio García Ramírez. Sentença de 1º de fevereiro de 2006. Disponível em:
BRASIL. Jurisprudência Interamericana de Direitos Humanos: Direito à Liberdade Pessoal. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.
51
SL 1395 MC-Ref / SP. Supremo Tribunal Federal, 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur439615/false.
Acesso em: 09 ago. 2021.

487
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3.2.1. O relatório sobre uso da prisão preventiva nas Américas

Em 2013, a CIDH publicou um relatório sobre uso da prisão preventiva nas Américas, 52 apontando que
“a aplicação arbitrária e ilegal da prisão preventiva é um problema crônico em muitos países da região.”
A CIDH sublinhou que o uso excessivo da detenção preventiva é contrário ao Estado democrático de
direito, que consagra a presunção de inocência, destacando que o uso indiscriminado e prolongado da
prisão produz o aumento da população carcerária, com seríssimos impactos negativos.
Ela expediu uma série de recomendações, a) de caráter geral relativas às políticas de Estado, b) de apli-
cação de outras medidas cautelares diferentes da prisão, c) quanto a fixação de um marco legal e apli-
cação da prisão preventiva, d) de melhoria das condições de detenção, e) de propiciar a defesa técnica
ao acusado, f) de garantia de independência e imparcialidade das autoridades judiciais encarregadas
de adotar decisões em relação à aplicação da prisão, e g) de manutenção de registros e estatísticas.
Já em 2017, a CIDH lançou relatório sobre medidas destinadas a reduzir o uso da prisão preventiva
nas Américas, realizando um balanço sobre as providências adotadas pelos Estados e reconheceu
os esforços despendidos pelos Estados no sentido de cumprir as recomendações, reduzindo o uso
da prisão preventiva. Sublinhou, entretanto, que a preocupação persiste e que continuam existindo
grandes desafios.
A legislação brasileira foi substancialmente aprimorada com o objetivo de se adequar aos estândares
de direitos humanos apresentados pela CIDH, havendo, a menos em tese, uma certa simetria entre a
proposta engendrada no multicitado relatório e as disposições do CPP.
A liberdade constitui direito humano, havendo de ser respeitada e garantida pelo Estado, sob pena
de responsabilização no plano internacional. Ela, entretanto, pode sofrer limitações, desde que obser-
vadas as balizas mínimas estipuladas pelos documentos internacionais, sob pena de converter-se em
detenção arbitrária, havendo um longo caminho a se percorrer para que o Brasil possa implementar na
integralidade todas as diretrizes propostas, embora se reconheçam avanços significativos.

4. A SEGURANÇA PÚBLICA

A segurança pública é garantida pela existência de um marco legislativo apto a proteger a contento os
bens e direitos indispensáveis ao gozo de uma vida digna, aliado à atuação das instâncias de controle,
no sentido de investigar, processar e punir os responsáveis pela violação de direitos humanos.
O relatório de situação dos direitos humanos no Brasil, da CIDH, de 2021, 53 dedica um capítulo inteiro
a tratar da segurança cidadã. Nele, a CIDH registra uma piora nos indicadores de segurança e dados
sobre violência desde o último relatório, de 1997, o que implica afetação de outros direitos humanos,
como o direito à vida, a integridade e a liberdade pessoal.
A Comissão observou também que a violência é seletiva e tende a atingir mais alguns segmentos
sociais que sofrem discriminação estrutural e ficam expostos à violência estrutural interseccional, nota-
damente com base em características étnico-raciais e socioeconômicas.
A CIDH manteve a recomendação para que o Estado garanta o direito à segurança aos seus cidadãos,
especialmente aos grupos historicamente expostos à discriminação estrutural, de acordo com os parâ-


52
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório sobre o uso da prisão preventiva nas Américas: Introdução e
recomendações. [2020?]. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/ppl/pdfs/relatorio-pp-2013-pt.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021.
53
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Situação dos direitos humanos no Brasil. 2021. Disponível em: http://www.
oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 26 out. 2022, p. 132.

488
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

metros adotados no âmbito do sistema interamericano. Dessa forma, a CIDH instou o Brasil a projetar
e colocar em operação planos e programas de prevenção social, comunitária e situacional, visando
enfrentar os fatores que favorecem a reprodução de comportamentos violentos na sociedade, em
particular. Adicionalmente, urge-se treinar as forças policiais para o uso adequado da força letal dentro
da estrutura e dos padrões internacionais, especialmente os Princípios Básicos das Nações Unidas
sobre o Uso da Força e Armas de Fogo por Autoridades Policiais.

4.1. O Direito Penal (e Processual Penal) como Ferramenta de Tutela


dos Direitos Humanos

A análise da relação mantida entre o Direito penal e os direitos humanos não pode prescindir de uma
incursão a respeito do princípio ou postulado da proporcionalidade, em suas duas facetas: a da proi-
bição de excesso e a da proibição da proteção deficiente.
Neste tópico destacaremos a atuação do Estado na tutela dos direitos fundamentais, e, por conse-
guinte, dos direitos humanos, resgatando o contexto histórico de surgimento dos direitos humanos e a
sua evolução, do Estado Liberal até o Welfare State, que promoveu sensível alteração no papel por ele
desempenhado na proteção de direitos: da postura abstencionista à postura promocional (e protetiva).
Buscaremos nos ater exclusivamente à utilização do postulado como fundamento e diretriz à atuação
estatal pela via do Direito penal, na tutela dos direitos humanos, sem adentrar temas como a distinção
entre regras e princípios etc.
Quer se conceba o Direito penal como instrumento destinado à proteção de bens jurídicos, 54 quer
como ferramenta apta a reafirmar a vigência da norma, 55 o fato é que ele não é autorrealizável, depen-
dendo, para tanto, do processo penal.
Isso obviamente não lhe retira a importância, tampouco a autonomia enquanto ciência jurídica, porém
a aplicação das ferramentas de coerção por ele estruturadas, demanda prévio desenrolar de um
processo, no qual são exercidos direitos e faculdades.
Tiedemann assevera que

É apenas no processo penal que o Direito penal material é realmente aplicado, ou seja, é somente
nele que é imposta a consequência jurídica cominada, isto é, a ‘pena’. O processo penal, ante ao
cumprimento desta função, pode ser qualificado como ‘dinâmico’ em relação ao Direito penal que
é mais ‘estático’. 56


54
Neste sentido afirma Roxin, que “a finalidade do direito penal é a proteção de bens jurídicos” (Fundamentos político-criminais e dogmá-
ticos do direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, IBCCRIM, p. 34. v. 112, 2015.), acrescendo que “A ciência do
Direito penal alemão do pós-guerra tentou limitar o poder de intervenção jurídico-penal na teoria do bem jurídico. A ideia principal foi que
o Direito penal deve proteger somente bens jurídicos concretos, e não convicções políticas ou morais, doutrinas religiosas, concepções
ideológicas do mundo ou simples sentimento.” (ROXIN, , Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito penal. 2. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 14).
55
Roxin aponta a existência de outra função, que não a proteção de bens jurídicos, a exemplo do que sustenta Jakobs: “[...] a função do
Direito penal é a confirmação da vigência da norma, e não a proteção de bens jurídicos” (ROXIN, , Claus. A proteção de bens jurídicos
como função do Direito penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 15). Jackobs, em seu Direito penal do Inimigo, assevera
que “A pena é coação [...]. Em primeiro lugar, a coação é portadora de um significado, portadora da resposta ao fato: o fato, como ato de
uma pessoa racional, significa algo, significa uma desautorização da norma, um ataque a sua vigência, e a pena também significa algo;
significa que a afirmação do autor é irrelevante e que a norma segue vigente sem modificações, mantendo-se, portanto, a configuração
da sociedade.” (JACKOBS, G. Direito penal do Inimigo. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 22).
56
ARTZ, Gunter; TIEDEMANN, Klaus; ROXIN, Claus. op. cit. p. 146.

489
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Assim, de nada adianta a existência de um sistema penal estruturado em bases sólidas, sem que o
processo penal correlato seja eficaz, capaz de garantir-lhe a adequada aplicação.
A lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico precisa ser devidamente apurada e processada, para
que o Direito penal se realize em sua plenitude. E veja-se que, por realizar o Direito penal, não se está
aqui a propor a indiscriminada aplicação da pena corporal. Ele se realiza quando, de modo adequado e
tempestivo, responsabiliza o infrator, tanto pela via da solução negociada (institutos da transação penal,
suspensão condicional ou acordo de não persecução penal), quanto pela via do full trial, aplicando a
pena cominada ao delito, seja ela privativa de liberdade, restritiva de direitos, ou pena de multa.
Nada de exageros. Não se pretende que o processo abdique de resguardar os direitos do acusado. Assim,
ao mesmo tempo em que a justiça criminal serve como uma ferramenta de proteção ao indivíduo, que,
a partir da codificação de uma série de normas que orientam o devido processo legal, evitando abusos
por parte do Estado-acusação e do Estado-juiz, ela serve também à implementação do direito material,
sendo bastante adequada a ilustração apresentada por Fischer e Pereira ao afirmar a sua dupla função
(da justiça criminal) “de servir como escudo e como espada dos direitos fundamentais.”57
Aliás, no plano internacional, a CADH dedica um artigo inteiro a tratar das garantias judiciais (artigo 8º),
não sendo diferente no âmbito interno. Há toda uma plêiade de normas destinada a regrar o exercício
destas garantias, sistematizadas no CPP. O processo não pode, entretanto, conduzir à inefetividade do
direito material. Não pode desguarnecer a vítima de uma proteção adequada, ou ainda “é imperiosa a
disposição de um mecanismo processual que possibilite o esclarecimento dos fatos e a punição dos
responsáveis, em última análise, que concretize a tutela judicial das vítimas.”58
Não custa lembrar que a vítima também é sujeito de direitos, sujeito de direitos humanos. Ele também
tem aviltado um direito seu: o bem jurídico que o Direito penal busca proteger. E este bem jurídico,
muitas das vezes, se materializa num direito humano.
A propósito afirma Roxin que

[...] podem-se definir os bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias
para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na socie-
dade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos. 59

Como se pode observar, o aludido penalista calca o conceito de bem jurídico e, por conseguinte, a
missão do Direito penal, nos direitos humanos e civis. O escólio de Pulido vem ao encontro desta asser-
tiva, ecoando que “toda lei penal representa uma medida que o Estado adota para proteger os direitos
fundamentais e os demais bens jurídicos que a Constituição ordena sejam otimizados”.60
Aqui se percebe um ponto de convergência entre o direito penal e os direitos humanos. Os direitos
humanos não se prestam única e exclusivamente a resguardar o indivíduo da atuação do Estado. Não
representam sempre uma abstenção (um não fazer), mas reclamam, também, um agir estatal (um
fazer), que objetiva a proteção de direitos.
No caso Ximenes Lopes vs. Brasil, a Corte IDH após traçar importantes considerações acerca do direito
à vida, asseverou que “os Estados têm a obrigação de garantir a criação das condições necessárias para


57
FISCHER, Douglas; PEREIRA, Frederico Valdez. op. cit. p. 18.
58
Id. Ibidem. p. 107.
59
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 18-19.
60
PULIDO, Carlos Bernal. O princípio da proporcionalidade da legislação penal. In: PULIDO, Carlos Bernal. O direito dos direitos: escritos
sobre a aplicação dos direitos fundamentais. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 120.

490
DIREITO À LIBERDADE E À SEGURANÇA PESSOAL

que não se produzam violações a este direito inalienável”, sublinhando que eles têm o dever de estabe-
lecer “um marco normativo adequado que dissuada qualquer ameaça ao direito à vida”. (§125).
Ao tratar do princípio da proporcionalidade, Pulido ensina que

[...] o legislador penal não somente pode vulnerar os direitos fundamentais por um excesso de
severidade de suas medidas (por exemplo, a vulneração do direito de liberdade por causa de uma
pena exagerada), senão também porque a severidade de suas previsões não chegue a oferecer
uma proteção suficiente aos direitos e demais bens constitucionais que ordenam.61

Ramos chega a afirmar que se trata da faceta punitiva dos direitos humanos, “que ordena aos Estados
que tipifiquem e punam criminalmente os autores de violações de direitos humanos.” 62
A Constituição Federal e, de igual modo, tratados internacionais, nem sempre outorgam direitos, sendo
que, nalguns casos, determinam a criminalização de condutas. Estes comandos expressos de crimina-
lização decorrem naturalmente da magnitude do bem envolvido, evidenciando a feição objetiva dos
direitos humanos.
Assim, o Estado, no exercício de suas funções, não se obriga apenas a abster-se de condutas, com
o propósito de resguardar direitos e liberdades individuais, mas também de atuar positivamente, no
sentido de evitar agressões provenientes de terceiros.
Para alcançar este propósito existe uma ampla gama de alternativas à sua disposição, podendo ele se
valer dos mais variados ramos do direito, como civil, o administrativo e inclusive o direito penal. Por
vezes, o legislador ordinário dispõe de liberdade de conformação, porém nalgumas situações existe
uma vinculação à utilização do Direito penal, por meio da obrigação de criminalização de condutas.
Importante lembrar que não é apenas o Estado que constitui responsável pela violação de direitos,
senão também os particulares, donde surge ao Estado o dever de proteção. E é nesta perspectiva que
se supera ideia de uma leitura dimensionada à compreensão da proporcionalidade exclusivamente
como destinada a refrear excessos. Streck sublinha que

Como se sabe, a Constituição determina – explícita ou implicitamente – que a proteção de direitos


fundamentais deve ser feita de duas formas: a uma, protege o cidadão frente ao Estado; a duas,
através do Estado – e inclusive através do direito punitivo – uma vez que o cidadão tem o direito de
ver seus direitos fundamentais protegidos, em face da violência de outros indivíduos.63

Como se percebe, os direitos humanos não raro impõem limitações à atuação do Estado, buscando
refrear a sua atuação prepotente. Por outro lado, estes direitos impõem também deveres de proteção.
Assim, os Tratados Internacionais, ao enumerar direitos, criam para o Estado uma obrigação de
protegê-los, proteção esta que muitas das vezes demanda a atuação do direito penal, mediante tipifi-
cação de condutas.
A este propósito Feldens sinala que “a teoria dos deveres de proteção (de direitos fundamentais),
quando reconduzida ao plano dos direitos humanos, encontra sua formulação congênere na doutrina
das obrigações positivas (positive obligations)”. Ele recorda que as obrigações positivas se desdobram
nos planos substantivo e procedimental, impondo que o Estado elabore uma legislação adequada,

61
Id. Ibidem. p. 111.
62
RAMOS, Andre de Carvalho. Mandados de criminalização no direito internacional dos direitos humanos: novos paradigmas da proteção
das vítimas de violações de direitos humanos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 62. p. 9, set. 2006.
63
STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: supe-
rando o ideário liberal-individualista-clássico. Revista do Ministério Público, Porto Alegre/RS, v. 1, n.53, p. 243, 2004.

491
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

capaz de desencorajar a prática de atos que vulnerem os direitos fundamentais, e, não obstante, por
meio de uma atuação efetiva (positiva), investigue fatos e imponha sanção aos responsáveis. E adverte
o autor que, neste mister, não pode o Estado intervir ou se abster de intervir desmesuradamente, orien-
tando-se pelo critério da proporcionalidade.64
A garantia da segurança pressupõe, pois, uma atuação comissiva do estado, no sentido de implementar
um marco normativo adequado à tutela de direitos, muitas das vezes valendo-se do Direito Penal, e,
igualmente, da pena privativa da liberdade. Mas não se esgota no aprimoramento da legislação, senão
também com a implementação de mecanismos para aparelhar e garantir o adequado funcionamento
das instâncias, com a finalidade de investigar, processar e punir as violações de direitos humanos.
Tratam-se de estândares de direitos humanos propostos nos tratados internacionais e na jurispru-
dência da Corte IDH.
Por óbvio que no exercício desta atividade,

[...] independentemente da gravidade de certas ações e a culpa dos autores de determinados


crimes, não é aceitável que o poder possa ser exercido sem qualquer limite ou que o Estado posa
recorrer a todos os meios para atingir os seus objetivos, sem estar sujeito a lei ou moralidade.65

Não se pode esquecer que o cumprimento da pena privativa de liberdade, etapa ulterior de responsabi-
lização do infrator, não pode ocorrer em franco descompasso com as normas insertas nos documentos
internacionais, sob pena de incremento da violência, como aliás, sinala Barcellos:

A violência urbana é um fenômeno complexo e multicausal. Não é o caso de discorrer sobre essas
causas e nem sobre a importância de cada uma delas. O que se pretende registrar é apenas que há
indícios consistentes de que o tratamento desumano conferido aos presos pelo sistema prisional
brasileiro acaba por contribuir para o incremento da criminalidade e da violência urbana.66

Ou como bem sublinhou o Ministro Barroso em seu voto na ADPF 347: “Não estamos apenas cuidando
de direitos fundamentais de uma minoria; estamos cuidando de um fenômeno que é retroalimentador
da criminalidade e da violência que hoje em dia, em grau elevado, apavora a sociedade brasileira”.

64
FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal. A constituição penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2012. E-book.


65
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório sobre o uso da prisão preventiva nas Américas. [2020?]. Dispo-
nível em: https://www.oas.org/pt/cidh/ppl/pdfs/relatorio-pp-2013-pt.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021. p. 57.
66
BARCELLOS, Ana Paula de. Violência urbana, condições das prisões e dignidade humana. Revista de Direito Administrativo da FGV, v.
254, p. 39-65, maio 2010. p. 57.

492
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO,


TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

Rafael Selicani Teixeira

1. INTRODUÇÃO

A proteção em face do trabalho escravo, forçado ou da servidão é uma preocupação atual da socie-
dade em todas as regiões do globo. A facilidade de locomoção e processos migratórios cada vez
mais acentuados, provocam fenômenos de fragilização de pessoas que muitas vezes acabam sendo
cooptadas, sequestradas ou induzidas à situação de trabalho forçado, à servidão ou à condição seme-
lhante à de escravo.
Atualmente, o trabalho forçado está presente de alguma forma em todos os continentes e em todos os
tipos de economias. Existem casos de trabalhos forçados sistemáticos em partes do sul da Ásia, servidão
por dívidas que afetam populações indígenas em partes da América Latina e ainda práticas análogas
à escravidão em algumas partes da África. O trabalho doméstico, por exemplo, muitas vezes constitui
uma armadilha que submete os trabalhadores ao trabalho forçado, permanecendo em seus locais de
trabalho mediante ameaças e violência. A migração constitui outra situação que expõe a vulnerabili-
dade desses grupos de pessoas que são expostas ao tráfico de pessoas e, posteriormente, a situações
de servidão e trabalho forçado nos locais de destino.1 Na Europa e América do Norte, cresce o número
de mulheres e crianças vítimas do tráfico de pessoas para exploração sexual e exploração do trabalho. 2
No caso do Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) concluiu que, além da
migração interna e internacional, as violações dos direitos humanos no campo e a situação das pessoas
que moram nas ruas, expõem e acentuam a vulnerabilidade no aliciamento para fins de tráfico de
pessoas e trabalho escravo. 3
Segundo relatório da OIT de 2005, pelo menos 12,3 milhões de pessoas, em todo mundo, são vítimas
de trabalho forçado (nos termos das Convenções 29 e 105 da OIT), sendo 9,8 milhões explorados por
agentes privados e 2,5 milhões são forçados ao trabalho por grupos militares rebeldes ou pelo próprio
Estado. De acordo com o relatório, a exploração econômica é o fim mais comum, com aproximada-
mente 7.810.000 pessoas, enquanto a exploração sexual comercial é responsável por aproximada-
mente 1.390.000.4
No ano de 2014, a OIT fez novo estudo na qual constatou a existência de 21 milhões de pessoas, dentre
homens, mulheres e crianças em situação de trabalho forçado, traficadas, mantidas em servidão por
dívida ou de trabalho em condições análogas à de escravo. O relatório apresentado causa mais perple-


1
Para maiores informações sobre trabalhadores migrantes, ver capítulo correspondente nesta obra.
2
OIT. Eradication of forced labour. Genebra, 2007. Disponível em: https://www.ilo.org/ilc/WCMS_089199/lang--en/index.htm. Acesso em:
01 maio 2021. p. 12.
3
CORTEIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21. 2021. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/relato-
rios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 13 maio 2021. p. 52.
4
OIT. Aliança global contra trabalho forçado. Genebra, 2005. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/publicacoes/WCMS_227553/
lang--pt/index.htm. Acesso em: 01 maio 2021. p. 11-13.

493
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

xidade ao concluir que o trabalho forçado, na economia privada, 5 gerou por volta de US$ 150 bilhões
de lucro por ano, sendo que em torno de US$ 99 bilhões tem origem na exploração sexual de natu-
reza comercial. 6
Posteriormente, no ano 2017, a OIT apresentou novos números confirmando uma tendência cres-
cente: aproximadamente 40 milhões de pessoas foram vítimas de escravidão moderna, sendo que 25
milhões de pessoas estavam submetidas a trabalhos forçados e 15 milhões em casamentos forçados.
Tais números se mostram ainda mais preocupantes quando é feito o corte de gênero: 71% do total de
vítimas era do gênero feminino. 7
No Brasil, a Lista Suja, que é o cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a
condições análogas à de escravo, atualizada em maio de 2021, continha 90 nomes.8 Outro dado que
impressiona: de 1995 até 2021 foram encontrados pela Inspeção do Trabalho um total de 56.021 traba-
lhadores em condições análogas à de escravo.9
Os dados acima apresentados são suficientes para a conclusão de que a escravização de pessoas não é
um fenômeno de um passado colonial distante e nem tampouco existente apenas em regiões pobres
ou subdesenvolvidas. Os números demonstram que o trabalho forçado, a escravização e a servidão
estão presentes tanto em países com alta desigualdade social e índice de desenvolvimento baixo, como
em países desenvolvidos e considerados de primeiro mundo.10

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

2.1.1. Declaração Universal de Direitos Humanos (ONU, 1948)11

Artigo 4

5
Não foi levado em conta o trabalho forçado exigido pelos Estados.
6
OIT. Profits and proverty: the economics of forced labour. Genebra, 2014. Disponível em: https://www.ilo.org/public/libdoc/
ilo/2014/485559.pdf. Acesso em: 01 maio 2021. p. 13.
7
OIT. Global estimates of modern slavery: Forced labour and forced marriage. Genebra, 2017. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/
groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 01 maio 2021. p. 5.
8
MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Secretaria do Trabalho. Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições
análogas à de escravo. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/secretaria-de-
-trabalho/inspecao/areas-de-atuacao/cadastro_de_empregadores.pdf. Acesso em: 14 maio 2021
9
MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Secretaria do Trabalho. Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Dispo-
nível em: https://sit.trabalho.gov.br/radar. Acesso em: 14 maio 2021.
10
Segundo o estudo da OIT Global estimates of modern slavery, cerca de 3,6 milhões de vítimas de escravização moderna se encontram no
continente europeu e na Àsia Central, o que corresponde a 9% do total. No continente americano, o número cai para cerca de 1 milhão e
950 mil pessoas, correspondendo a 5% do total. OIT. Global estimates of modern slavery: Forced labour and forced marriage. Genebra,
2017. p. 27. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf.
Acesso em: 01 maio 2021.
11
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, 1948. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-09/por.pdf.
Acesso em: 01 maio 2021.

494
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos
em todas as suas formas.

2.1.2. Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA, 1969)12

Artigo 6. Proibição da escravidão e da servidão


1. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e
o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se
prescreve, para certos delitos, pena privativa da liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta
disposição não pode ser interpretada no sentido de que proíbe o cumprimento da dita pena, imposta
por juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade nem a capacidade
física e intelectual do recluso.
3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo:
a. os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou
resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser
executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os executarem não
devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado;
b. o serviço militar e, nos países onde se admite a isenção por motivos de consciência, o serviço nacional
que a lei estabelecer em lugar daquele;
c. O serviço imposto em casos de perigo ou calamidade que ameace a existência ou o bem-estar
da comunidade; e
d. O trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais.


12
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos. Costa Rica, 1969. Disponível em: https://
www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 22 mar. 2021.

495
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2.1.3.  Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966)13

Artigo 8
1. Ninguém poderá ser submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, em todos as suas
formas, ficam proibidos.
2. Ninguém poderá ser submetido à servidão.
3. a) Ninguém poderá ser obrigado a executar trabalhos forçados ou obrigatórios;
b) A alínea a) do presente parágrafo não poderá ser interpretada no sentido de proibir, nos países em
que certos crimes sejam punidos com prisão e trabalhos forçados, o cumprimento de uma pena de
trabalhos forçados, imposta por um tribunal competente;
c) Para os efeitos do presente parágrafo, não serão considerados “trabalhos forçados ou obrigatórios”:
i) qualquer trabalho ou serviço, não previsto na alínea b) normalmente exigido de um individuo que
tenha sido encarcerado em cumprimento de decisão judicial ou que, tendo sido objeto de tal decisão,
ache-se em liberdade condicional;
ii) qualquer serviço de caráter militar e, nos países em que se admite a isenção por motivo de cons-
ciência, qualquer serviço nacional que a lei venha a exigir daqueles que se oponham ao serviço militar
por motivo de consciência;
iii) qualquer serviço exigido em casos de emergência ou de calamidade que ameacem o
bem-estar da comunidade;
iv) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais.

2.1.4. Convenção sobre a escravidão (ONU, 1926)14

Para os fins da Presente Convenção, fica entendido que:


1º A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente,
os atributos do direito de propriedade;
2º O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou sessão de um indivíduo com
o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um escravo com o propósito de vendê-lo ou
trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de um escravo adquirido para ser vendido ou
trocado; assim como em geral todo ato de comércio ou de transportes de escravos.

13
ONU. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Genebra, 1966. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20
Internacional%20sobre%20Direitos%20Civis%20e%20Políticos.pdf. Acesso em: 22 mar. 2021.

ONU. Convention Relative a l’esclavage. Genebra, 1926. Disponível em: https://dl.wdl.org/11573/service/11573.pdf. Acesso em: 16 maio
14

2021.

496
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

2.1.5. A Convenção Suplementar sobre a abolição da escravidão, do tráfico de escravos


e das instituições e práticas análogas à escravidão (ONU, 1956)15

Artigo 1º
Cada um dos Estados Partes a presente Convenção tomará todas as medidas, legislativas e de outra
natureza que sejam viáveis e necessárias, para obter progressivamente logo que possível a abolição
completa ou o abandono das instituições e práticas seguintes onde quer ainda subsistam, enqua-
dram-se ou não na definição de escravidão que figura no artigo primeiro da Convenção sobre a escra-
vidão assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926:
a) A servidão por dividas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja
comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o
qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação
de dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida;
b) a servidão isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um
acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa,
contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição.
c) Toda instituição ou prática em virtude da qual:
I, Uma mulher é, sem que tenha o direito de recusa prometida ou dada em casamento, mediante remu-
neração em dinheiro ou espécie entregue a seus país, tutor, família ou a qualquer outra pessoa ou
grupo de pessoas;
II, O marido de uma mulher, a família ou o clã deste tem o direito de cedê-la a um terceiro, a
título oneroso ou não;
III - A mulher pode, por morte do marido ser transmitida por sucessão a outra pessoa;
d) Toda instituição ou prática em virtude da qual uma criança ou um adolescente de menos de dezoito
anos é entregue, quer por seu pais ou um deles, quer por seu tutor, a um terceiro, mediante remune-
ração ou sem ela, com o fim da exploração da pessoa ou do trabalho da referida criança ou adolescente.
Artigo 7º
Para os fins da presente Convenção
a) “Escravidão”, tal como foi definida na Convenção sobre a Escravidão de 1926, é o estado ou a condição
de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou parte dos poderes atribuídos ao direito de proprie-
dade e “escravo” é o indivíduo em tal estado ou condição;
b) “Pessoa de condição servil” é a que se encontra no estado ou condição que resulta de alguma das
instituições ou práticas mencionadas no artigo primeiro da presente Convenção;
c) “Tráfico de escravos” significa e compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão de uma pessoa
com a intenção de escravizá-lo; todo ato de um escravo para vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão
por venda ou troca, de uma pessoa adquirida para ser vendida ou trocada, assim como, em geral todo
ato de comércio ou transporte de escravos, seja qual for o meio de transporte empregado.

15
ONU. Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfego de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas
à Escravatura. Genebra, 1956. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1966/D58563.html. Acesso em: 22 mar.
2021.

497
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2.1.6. Convenção 29 sobre trabalho forçado ou obrigatório (OIT, 1930)16

Artigo 2
1. Para os fins da presente convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ designará todo
trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não
se ofereceu de espontânea vontade.
2. Entretanto, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ não compreenderá, para os fins da
presente convenção:
a) qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude das leis sobre o serviço militar obrigatório e que só
compreenda trabalhos de caráter puramente militar;
b) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais dos cidadãos de um país
plenamente autônomo;
c) qualquer trabalho ou serviço exigido de um indivíduo como consequência de condenação pronun-
ciada por decisão judiciária, contanto, que, esse trabalho ou serviço seja executado sob a fiscalização
e o controle das autoridades públicas e que dito indivíduo não seja posto à disposição de particulares,
companhias ou pessoas privadas;
d) qualquer trabalho ou serviço exigido nos casos de força maior, isto é, em caso de guerra, de sinistro ou
ameaças de sinistro, tais como incêndios, inundações, fome, tremores de terra, epidemias, e epizootias,
invasões de animais, de insetos ou de parasitas vegetais daninhos e em geral todas as circunstâncias
que ponham em perigo a vida ou as condições normais de existência de toda ou de parte da população;
e) pequenos trabalhos de uma comunidade, isto é, trabalhos executados no interesse direto da cole-
tividade pelos membros desta, trabalhos que, como tais, podem ser considerados obrigações cívicas
normais dos membros da coletividade, contanto, que a própria população ou seus representantes
diretos tenham o direito de se pronunciar sobre a necessidade desse trabalho.

2.1.7. Convenção 105 sobre abolição do trabalho forçado (OIT, 1957)17

Art. 1 — Qualquer Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente


convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, e a não recorrer ao mesmo
sob forma alguma:
a) como medida de coerção, ou de educação política ou como sanção dirigida a pessoas que tenham
ou exprimam certas opiniões políticas, ou manifestem sua oposição ideológica à ordem política, social
ou econômica estabelecida;
b) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico;
c) como medida de disciplina de trabalho;
d) como punição por participação em greves;
e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.

16
Ratificada pelo Brasil em 1957, e promulgada por meio do Decreto 41.721. Recentemente, o Decreto 41.721/57 foi revogado pelo Decreto
10.088/2019, o qual consolidou os atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a promulgação de conven-
ções e recomendações da OIT ratificadas pelo Brasil e em vigor.

OIT. Convenção 105. Genebra. 1957. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235195/lang--pt/index.htm. Acesso


17

em: 22 mar. 2021.

498
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

2.1.8. Recomendação 203 sobre o trabalho forçado - medidas complemen-


tares (OIT, 2014)18

5. 1) Deveriam dedicar esforços específicos para identificar e liberar as vítimas de trabalho


forçado ou obrigatório.
2) Deveriam proporcionar medidas de proteção às vítimas de trabalho forçado ou obrigatório. Estas
medidas não deveriam condicionar a vontade da vítima de colaborar no âmbito de um procedimento
penal ou de outro tipo.
3) Poderão adotar medidas para encorajar as vítimas a cooperar com o objetivo de identificar e punir os
autores das infrações (tradução nossa).19

2.1.9. Convenção 182 sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação
Imediata para sua Eliminação (OIT, 1999)20

Artigo 3º
Para os fins desta Convenção, a expressão as piores formas de trabalho infantil compreende:
a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, comovenda e tráfico de crianças,
sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou obri-
gatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados.

2.1.10. Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo


à proteção das Vítimas de conflitos armados não-internacionais (Protocolo II - 1977)21

ARTIGO 4
Garantias Fundamentais
1. Todas as pessoas que não participem diretamente das hostilidades, ou que tenham deixado de parti-
cipar delas, estejam ou não privadas de liberdade, têm direito a que se respeitem sua pessoa, sua honra,
suas convicções e suas práticas religiosas. Serão tratadas com humanidade em todas as circunstâncias,
sem qualquer distinção de caráter desfavorável. É proibido ordenar que não haja sobreviventes.
2. Sem prejuízo do caráter geral das disposições precedentes são e permanecerão proibidos em qual-
quer tempo ou lugar, a respeito das pessoas a que se refere o parágrafo 1:

18
OIT. Recomendación sobre el trabajo forzoso. Genebra, 2014. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEX-
PUB:12100:0::NO::P12100_INSTRUMENT_ID:3174688.Acesso em: 22 mar. 2021.
19
“1) Deberían dedicarse esfuerzos específicos para identificar y liberar a las víctimas de trabajo forzoso u obligatorio. 2) Deberían propor-
cionarse medidas de protección a las víctimas de trabajo forzoso u obligatorio. Estas medidas no deberían supeditarse a la voluntad de
la víctima de colaborar en el marco de un procedimiento penal o de otro tipo. 3) Podrán adoptarse medidas para alentar a las víctimas a
cooperar a fin de identificar y castigar a los autores de las infracciones.” OIT (OIT). Recomendación sobre el trabajo forzoso (medidas
complementarias). Genebra, 2014. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_INS-
TRUMENT_ID:3174688. Acesso em: 16 maio 2021.
20
OIT. Convenção 182. Genebra, 1999. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236696/lang--pt/index.htm. Acesso
em: 01 jun. 2022.


21
Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo à proteção das Vítimas de conflitos armados
não-internacionais (Protocolo II). Genebra, 1977. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0849.htm.
Acesso em: 01 jun. 2022.

499
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

a) os atentados contra a vida, a saúde e a integridade física ou mental das pessoas, em particular homi-
cídio e os tratamentos cruéis, tais como a tortura e as mutilações ou toda a forma de punição corporal;
b) os castigos coletivos;
c) tomada de reféns;
d) os atos de terrorismo;
e) os atentados contra a dignidade pessoal, em especial os tratamentos humilhantes e degradantes, a
violação, a prostituição forçada e qualquer forma de atentado ao pudor;
f) escravidão e o tráfico de escravos em todas as suas formas;
g) a pilhagem;
h) as ameaças de realizar os atos mencionados.

2.1.11. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a


mulher (ONU, 1979)22

Artigo 6º
Os Estados-Partes tomarão todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para suprimir
todas as formas de tráfico de mulheres e exploração da prostituição da mulher.

2.1.12. Convenção sobre os direitos das crianças (ONU, 1989)23

Artigo 35
Os Estados Partes tomarão todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que
sejam necessárias para impedir o sequestro, a venda ou o tráfico de crianças para qualquer fim ou
sob qualquer forma.

2.1.13. Estatuto de Roma (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998)24

Artigo 7
Crimes contra a Humanidade
Para os fins do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade” qualquer um dos
seguintes atos quando praticados como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma
população civil e com conhecimento de tal ataque:
[...]
c) Escravidão;

22
ONU. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Genebra, 1979. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm. Acesso em: 22 mar. 2021.
23
ONU. Convenção sobre os direitos das crianças. Genebra, 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/
d99710.htm. Acesso em: 22 mar. 2021.
24
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. Estatuto de Roma. Roma, 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/
d4388.htm. Acesso em: 01 jun. 2022.

500
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

[...]
2. Para efeitos do parágrafo 1o:
c) Por “escravidão” entende-se o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um
conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício
desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças;
2. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crimes de guerra”:
a) As violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos
seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra
que for pertinente:
xxii) Cometer atos de violação, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como defi-
nida na alínea f) do parágrafo 2o do artigo 7o, esterilização à força e qualquer outra forma de violência
sexual que constitua também um desrespeito grave às Convenções de Genebra;

2.1.14. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado


Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em
Especial Mulheres e Crianças (ONU, 2003)25

Artigo 3º
Para efeitos do presente Protocolo:
a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento
ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao
rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autori-
dade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição
de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou
práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;
b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração
descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um
dos meios referidos na alínea a);
c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para
fins de exploração serão considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos
meios referidos da alínea a) do presente Artigo;
d) O termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.

3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA NORMATIVA INTERNACIONAL

O primeiro documento internacional a mencionar a escravização de pessoas foi o Tratado de Paris,


de 1814, que reconheceu a necessidade de uma cooperação internacional no combate ao tráfico de
escravos. Posteriormente, no ano de 1815, o Tratado de Viena condenou expressamente referida prática.

ONU. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Re-
25

pressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Genebra, 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm. Acesso em: 22 mar. 2021.

501
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Ainda no final do século XIX, precisamente em 1890, foi reconhecido o direito dos Estados partes proce-
derem buscas e captura em alto mar de traficantes de escravos.
Mais de 30 anos depois, a Convenção sobre a escravidão, acordo entre os membros da Liga da Nações
(organização anterior à Organização das Nações Unidas), assinado no ano de 1926 e, posteriormente,
ampliado por um protocolo em 195326, obrigou os signatários a eliminar a escravidão, o comércio de
escravos e o trabalho forçado em seus territórios.
A Declaração Universal de Direitos Humanos, assinada pelos países partes da ONU, em 1948, em seu
artigo 4º, previu a proibição da escravidão, servidão e o tráfico de escravos. Contudo, apenas em 1956,
os Estados partes da ONU adotariam texto específico quanto ao tema: a Convenção Suplementar sobre
a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura.
Paralelamente, a OIT buscou também adotar medidas para proteção das pessoas em face do trabalho
forçado ou obrigatório. Por meio da Convenção 29, assinada em 1930, houve a pactuação sobre a proi-
bição do trabalho forçado, prevendo a obrigação de supressão do trabalho forçado ou obrigatório no
prazo mais curto possível.
A OIT ainda adotou, em 1957, a Convenção 105, que trata da abolição do trabalho forçado27, reforçando
a supressão do trabalho forçado ou obrigatório, principalmente como medida de coerção, de educação
política, mobilização com fins econômicos, disciplina de trabalho, punição por participação em greves
ou discriminação racial, social, nacional ou religiosa.
Em 1966, foi aprovado na ONU, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP)28 que, em
seu artigo 8º, prevê a proibição da escravidão, do tráfico de escravos e da servidão, sob qualquer forma.
A CADH também prevê, no artigo 6º, a proibição da escravidão e da servidão, bem como do trabalho
forçado ou obrigatório.
Em relação às mulheres e crianças, a ONU possui convenções com previsões próprias e específicas:
a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, de 1979 e a
Convenção sobre os direitos das crianças, assinada em 1989. No caso das mulheres a ênfase da proteção
se dá quanto à prostituição sexual, e para as crianças, a previsão visa coibir o sequestro, a venda ou o
tráfico de menores.
No ano de 2003, os Estados Partes da ONU adotaram o Protocolo Adicional à Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico
de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.
Por fim, no ano de 2014, a OIT adotou a Recomendação 203 sobre o trabalho forçado (medidas comple-
mentares à Convenção 29), na qual é reafirmado que as medidas de prevenção e de proteção e as ações
judiciais e de reparação, como por exemplo indenizações e readaptações, são necessárias para alcançar
a supressão efetiva do trabalho forçado ou obrigatório.
As declarações, pactos, convenções, recomendações internacionais acima referidas, bem como os
variados estudos, relatórios, documentos produzidos pelas organizações e comissões internacionais

26
A Convenção sobre a escravidão foi promulgada no Brasil em 1966, por meio do Decreto 58.563, juntamente com o Protocolo de 1953 e
com a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfego de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escrava-
tura de 1956.


27
Ratificada pelo Brasil em 1965 e promulgada por meio do Decreto 58.822/66. Recentemente, o Decreto 58.822/66 também foi revogado
pelo Decreto 10.088/2019, o qual consolidou os atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a promulgação
de convenções e recomendações da OIT ratificadas pelo Brasil e em vigor.
28
Promulgada no Brasil em 1992, por meio do Decreto 592.

502
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

não apresentam conceitos de forma uniforme e sistematizada, de modo que a evolução histórica das
relações sociais também exigiu a alteração e adaptação de determinados termos relacionados à escra-
vidão, servidão e trabalho forçado. Termos como escravidão moderna, exploração privada do trabalho
forçado, exploração do trabalho sexual forçado de mulheres, exploração comercial do trabalho sexual
de crianças, trabalho forçado exigido pelo Estado, casamento forçado, tráfico de pessoas, práticas
análogas à escravidão, servidão por dívidas, entre outros, demonstram a amplitude das violações à
liberdade e autonomia humana, principalmente quando relacionado ao trabalho.
Portanto, a apresentação de tais conceitos será feita por meio da distinção dos três conceitos princi-
pais expressamente previstos no artigo 6º da Convenção Americana de Direitos Humanos: escravidão,
servidão e trabalho forçado, sendo que dentro do tópico de cada um deles, serão abordadas as variadas
espécies e situações relacionadas.

4. ESCRAVIDÃO

O conceito de escravidão, não obstante o seu amplo uso histórico, foi continuamente sendo atualizado
em virtude da própria transformação das relações sociais de exploração. A escravidão mudou suas
formas e adaptou-se à evolução do desenvolvimento econômico, apresentando-se em um mesmo
espaço-tempo com múltiplas faces, pois os trabalhos, condições de vida e aflições dos escravizados
também eram variados. 29 A escravidão moderna não corresponde mais à exata ideia de escravidão exis-
tente no passado antigo e também no período colonial. Atualmente, a escravidão, servidão e trabalhos
forçados são fenômenos globais que se apresentam das mais variadas formas e características, tendo
como centro a impossibilidade de ruptura do vínculo de trabalho pelo trabalhador.
O artigo 1º da Convenção da ONU de 1929 sobre a escravidão prevê os conceitos de escravidão e de
tráfico de escravos. A escravidão é definida como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se
exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade” enquanto o tráfico de escravos
compreende todo ato de comércio ou de transporte de escravos. O referido dispositivo ainda distingue
três espécies de tráfico de escravos: a captura, aquisição ou sessão de um indivíduo com o propósito de
escravizá-lo; a aquisição com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; a sessão, por meio de venda ou troca
de um escravo adquirido para ser vendido ou trocado.
É interessante notar que em nenhum momento a Convenção de 1929 faz menção à pessoa escravi-
zada, a necessidade de assistência médica ou econômica, possibilidade de retorno a sua terra natal,
ou qualquer outro tipo de ajuda humanitária. O artigo 5º, de forma genérica prevê que “o recurso ao
trabalho forçado ou obrigatório pode ter graves consequências”, sem especificar quais seriam tais
consequências ou como poderiam ser corrigidas. É evidente que nesse momento, “as Altas Partes”,
como eram chamados os Estados acordantes, não tinham a mínima preocupação com o escravizado,
sendo o enfoque principal a necessidade econômica do fim da escravidão e do tráfico de escravos.
Segundo estudo da ONU de 2002, a escravidão tradicional era descrita como a redução da pessoa
à condição de semovente, sendo, portanto, tratada pelos seus proprietários como bens. 30 Contudo,
diante da evolução das práticas de escravização, nas quais não se identifica o controle absoluto sobre
a pessoa, é evidente que os elementos de controle e propriedade são acompanhados da ameaça e da


29
Durante a história humana se observou inúmeras formas de escravidão ou trabalho forçado, como por exemplo, a escravidão existente
na Antiguidade (impérios babilônico, egípcio, persa, nas cidades gregas e no império romano), as relações de servidão na Idade Média,
bem como a escravização de pessoas negras e indígenas que ocorreu no início da modernidade, entre os séculos XIV e XX com mais
intensidade.
30
ONU. La Abolición de la Esclavitud y sus Formas contemporáneas. Genebra, 2002. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/
Publications/slaverysp.pdf. Acesso em: 01 maio. 2021.

503
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

violência, que se tornam essenciais para a identificação da escravidão moderna. Deste modo, é impor-
tante a análise do grau de restrição do direito de liberdade da pessoa, bem como o grau de autonomia
e controle sobre seus próprios bens e, por fim, não basta que haja consentimento na contratação do
trabalho, mas que este se dê com devido conhecimento e plena compreensão da natureza da relação
entre as partes. 31
No âmbito da Corte Interamericana de Direito Humanos (Corte IDH), o último relatório de fevereiro de
2021 esclarece que o conceito de trabalho escravo ou análogo à escravidão não se limita à manutenção
de uma função de propriedade sobre uma determinada pessoa ou grupo, mas está relacionado com
a presença de dois elementos centrais: o estado ou condição do indivíduo e o exercício de poder ou
controle sobre a pessoa escravizada a ponto de anular a personalidade da vítima32.
Em recente sentença proferida no caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil33, a Corte IDH enumerou oito
elementos para avaliar a manifestação dos atributos do direito de propriedade34:
● restrição ou controle da autonomia individual;
● perda ou restrição da liberdade de locomoção;
● obtenção de lucro por parte do agressor;
● ausência de consentimento ou de livre arbítrio da vítima, ou sua impossibilidade ou irrelevância
diante de ameaça do uso de violência ou outras formas de coerção, do medo, do engano, ou
de falsas promessas;
● uso de violência física ou psicológica;
● vulnerabilidade da vítima;
● detenção ou cativeiro; e
● exploração.
Tais elementos demonstram a tentativa da Corte IDH em traçar parâmetros mais atuais e amplos para
identificação da escravidão moderna, confirmando uma tendência tanto da ONU, quanto da OIT. 35
Um conceito importante e que tem estreita relação não só com a escravidão, mas também com o
trabalho forçado e a servidão é o de tráfico de pessoas, que pode ser entendido como o recrutamento,
transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, utilizando-se de ameaça ou força ou qual-

ONU. La Abolición de la Esclavitud y sus Formas contemporáneas. Genebra, 2002. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/
31

Publications/slaverysp.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.


32
CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21. 2021, p. 53. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/relato-
rios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.
33
Na década de 90, a propriedade pecuária Fazenda Brasil Verde contratou 128 trabalhadores rurais para a execução de diversos trabalhos
em Sapucaia, no sul do estado do Pará. As vítimas foram atraídas de diversas cidades do norte e nordeste do país pela promessa de traba-
lho. Contudo, acabaram sendo submetidos a condições degradantes de trabalho, com jornadas exaustivas, e eram impedidos de deixar a
fazenda em razão de dívidas contraídas. Em outubro de 2016, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado Brasileiro
por não ter adotado medidas efetivas que impedissem a submissão de seres humanos a esse tipo de prática. Determinou a reabertura das
investigações, para identificar, processar e punir os responsáveis, além da indenização das vítimas em cinco milhões de dólares.
34
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de
outubro de 2016, p 71. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_esp.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.
35
A Corte Europeia de Direitos Humanos analisou pela primeira vez o fenômeno da escravidão no caso Siliadin vs. França (n. 73316/01), com
sentença proferida em 26 de julho de 2005. Outro julgamento importante se deu no Caso Rantsev vs. Chipre e Russia (n. 25965/04), com
sentença proferida em 07 de janeiro de 2010, na qual a Corte Europeia reconhece a existência de diferentes formas de escravidão.

504
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

quer outra espécie de coerção, abdução, fraude, engano, abuso de poder ou posição de vulnerabilidade,
ou ainda se utilizando de pagamentos ou benefícios que visam obter o consentimento de uma pessoa
para ter controle sobre outra pessoa, com objetivo de explorá-la. A exploração poderá ser na forma da
exploração sexual, de trabalho ou serviços forçados, da escravidão ou práticas similares à escravidão ou
a remoção de órgãos. 36
Segundo a OIT, o tráfico de pessoas se caracteriza pelo transporte de pessoas internacionalmente
ou mesmo dentro de um mesmo território com o objetivo de trabalhar ou para exploração sexual. A
escravidão baseada na descendência pode ser considerada como a forma tradicional de escravidão. As
vítimas são consideradas propriedades ou são discriminadas devido a características pessoais e inatas,
como etnia, religião, ou pertencimento a um grupo minoritário e nasceram já escravas, pois sua classe,
família ou grupo já estava escravizado. 37
Uma espécie de escravidão que merece atenção específica nos dias de hoje é a escravidão sexual, tipi-
ficada no Estatuto da Corte Penal Internacional38, que a classifica no artigo 8º, 2, XXII como crime de
guerra quando cometido durante um conflito armado. 39
A então Comissão de Direitos Humanos da ONU, por meio da Subcomissão de Prevenção de Discri-
minações e Proteção das Minorias, produziu um relatório sobre as Formas Contemporâneas de
Escravidão, em 1998, no qual destaca que escravidão também caracterizaria violação da disponibili-
dade sexual mediante violação, considerada como um dos atributos de propriedade, mencionado no
artigo 1º da Convenção da ONU sobre a escravidão de 1929. O fato de que uma pessoa não tenha sido
comprada, vendida ou trocada, não invalida a caracterização da escravidão. Por fim, o relatório esclarece
que na definição de escravidão estão implícitas a limitação da autonomia, da liberdade de circulação
e o poder de decidir questões relativas a sua própria atividade sexual, de modo que o conceito especí-
fico da escravidão sexual abarcaria situações de casamento forçado, servidão doméstica que implicaria
em atividades sexuais forçadas, incluído o estupro, além de também se referir as situações de pros-
tituição forçada.40
Ainda com relação à proteção específica das mulheres, a Convenção Suplementar sobre a abolição da
escravidão, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravidão da ONU, proíbe
prática na qual uma mulher sem o direito de recusa seja prometida ou dada em casamento, mediante
remuneração em dinheiro ou espécie entregue a seus pais, tutor, família ou a qualquer outra pessoa
ou grupo de pessoas; o marido de uma mulher, a família ou o clã deste tenha o direito de cedê-la
a um terceiro, a título oneroso ou não; e a mulher possa, por morte do marido ser transmitida por
sucessão a outra pessoa.

36
BRASIL. Decreto 5.017, de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Trans-
nacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm. Acesso em: 22 mar. 2021.

OIT. Global guidelines on the prevention of forced labour through lifelong learning and skills development approaches. Genebra,
37

2020. p. 6-9. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/---ifp_skills/documents/publication/wcms_762709.pdf.


Acesso em: 14 maio 2021.
38
O estatuto de Roma, entrou em vigor no âmbito internacional em julho de 2002, com vigência no Brasil a partir de setembro do mesmo
ano, por meio do Decreto 4.388.
39
BRASIL. Decreto 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 14 maio 2021.
40
ONU. Formas Contemporáneas de la esclavitud: La violación sistemática, la esclavitud sexual y las prácticas análogas a la esclavitud
en tiempo de conflicto armado. Genebra, 1998, p. 10-1. Disponível em: https://www.refworld.org.es/publisher,UNSUBCOM,,,4a5ca3ad2,0.
html. Acesso em: 14 maio 2021.

505
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

41
Referida prática, denominada pela OIT de casamento forçado, se refere a situações onde pessoas,
independentemente da idade, são forçadas a casar sem consentimento. A coação pode se dar por meios
físicos, emocionais, financeiros, engano por parte de familiares, marido ou qualquer outra pessoa, ou
ainda pelo uso da força, ameaça ou severa pressão.42
A Corte IDH, ao julgar o caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, apontou alguns elementos gerais que
podem ser utilizados para identificar casos de escravidão moderna: 43
● contratação mediante engano;
● transporte de pessoas com fins de explorá-las;
● abuso da situação de vulnerabilidade;
● controle ou restrição da liberdade das vítimas;
● controle sobre seus pertences pessoais;
● retenção de documentos de identidade;
● intimidação ou ameaça;
● violência física ou sexual;
● tratamentos cruéis ou humilhantes;
● salários irrisórios ou retenção salarial;
● servidão por dívidas;
● jornadas de trabalho excessivas;
● obrigação de viver no local de trabalho;
● existência de medidas que impeçam a saída de trabalhadores
● falta de consentimento para iniciar ou continuar a trabalhar;
● falta de consentimento informado quanto às condições de trabalho; e
● impossibilidade pelo trabalhador da mudança de sua condição de trabalho.
A OIT, com o objetivo de proteger as crianças de forma especial, também considera todas as formas
de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como a venda e o tráfico de crianças, a sujeição
por dívida, a servidão, o trabalho forçado ou compulsório, inclusive o recrutamento forçado ou obri-
gatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados, como espécie das piores formas de
trabalho infantil.44

ONU. Convenção Suplementar Sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à
41

Escravatura, 1966. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/oim-trafico-de-pessoas-e-crimes-conexos-legisla-


cao.pdf Acesso em: 26 out. 2022.
42
OIT. Global estimates of modern slavery: Forced labour and forced marriage. Genebra, 2017. p. 17. Disponível em: https://www.ilo.org/
wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.
43
CORTEIDH. Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, p 58. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_esp.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.
44
OIT. Convenção nº 182. Genebra, 1999. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236696/lang--pt/index.htm. Aces-
so em: 22 mar. 2021.

506
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

5. TRABALHO FORÇADO

A Organização Internacional do Trabalho, por meio da Convenção 29, assinada em 1930, buscou
também adotar medidas sobre a proibição do trabalho forçado, prevendo a obrigação de sua supressão
no prazo mais curto possível. Segundo a Convenção, o trabalho forçado ou obrigatório se caracteriza
como qualquer trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de penalidade e para o qual ele
não tenha se oferecido de espontânea vontade.
Em 2011, a OIT produziu um manual no qual descreve situações que possibilitam a identificação de
trabalho forçado na prática, enfatizando os dois conceitos que o caracterizam, conforme o conceito da
Convenção de 29: a falta de consentimento e a ameaça de penalidade.
A falta de consentimento para o trabalho seria a “rota de entrada” para o trabalho forçado e poderia se
dar das seguintes formas: nascimento/ingresso na condição de escravo ou de servidão; abdução física
ou sequestro; venda da pessoa, transferindo sua posse a outra; confinamento físico no local de trabalho,
podendo caracterizar a prisão ou cárcere privado; compulsão psicológica, em virtude de uma ameaça
plausível de penalidade no caso de descumprimento; dívida induzida (criada por falsificação de contas,
preços inflacionados, valor reduzido de bens ou serviços produzidos, cobrança de juros excessivos, entre
outros; enganar ou fazer falsas promessas acerca de tipos e termos de trabalho; retenção e não-paga-
mento de salários; e retenção de documentos de identidade ou outros valores pessoais de valor.45
Com relação à ameaça de penalidade, ou meios de manter a vítima no trabalho forçado, a OIT descreve
os seguintes casos práticos: violência física contra a vítima, seus familiares ou pessoas próximas; violência
sexual; ameaça de retaliação sobrenatural; aprisionamento ou outro confinamento físico; penalidades
financeiras; denúncia a autoridades de imigração e deportação; exclusão de emprego futuro; exclusão
da comunidade e da vida social; remoção de direitos e privilégios; privação de comida, abrigo ou outras
necessidades; transferência para condições de trabalho ainda piores; e perda de posição social.46
Porém, na Convenção 29, há expressa previsão de formas de trabalho excepcionadas da proibição de
trabalho forçado ou obrigatório. São eles: o trabalho relativo ao serviço militar obrigatório; aquele decor-
rente de obrigações cívicas normais; quando relacionado à condenação penal, desde que o recluso não
esteja à disposição de particulares; se exigido em decorrência de força maior, como guerras, catástrofes
naturais ou situações semelhantes que coloquem em risco a vida ou as condições normais de existência
da sociedade ou da população; pequenos trabalhos de uma comunidade considerados como de inte-
resse direto da coletividade e, por fim, exigido a título de imposto ou para o interesse público.
As exceções acima enumeradas somente serão admitidas quando observados os requisitos previstos no
artigo 9º: existência de interesse direto e importante da coletividade, a necessidade do trabalho deve
ser atual e presente, seja impossível a contratação de mão-de-obra voluntária e que não resulte em
ônus excessivo para a população.
É importante destacar, ainda, que a convenção expressamente proíbe a imposição de trabalho obri-
gatório ou forçado em benefício de particulares, em qualquer hipótese (artigos 4º, 5º e 6º), seja em
estabelecimentos fora da prisão, seja em oficinas localizadas dentro da própria penitenciária, de modo
que a hipótese excepcional de autorização para o trabalho forçado prisional precisa preencher três

45
OIT. Combate ao Trabalho Escravo: um manual para empregadores e empresas. Genebra, 2011, p. 13. Disponível em: https://www.ilo.
org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.
46
OIT. Combate ao Trabalho Escravo: um manual para empregadores e empresas. Genebra, 2011, p. 13. Disponível em: https://www.ilo.
org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.

507
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

requisitos: condenação em um tribunal de justiça47, supervisão e controle da autoridade pública e o


trabalho não se dar em benefício de terceiros privados48.
Em particular, no Brasil, a Constituição Federal é expressa ao vedar, no artigo 5º, inciso XLVII, alínea “c”,
a aplicação de pena de trabalho forçado. Contudo, a Lei de Execuções Penais (lei 7.210/84), prevê em
seu artigo 31, a obrigação dos condenados de trabalhar internamente conforme suas aptidões e capa-
cidades, devendo ser observada a finalidade educativa e produtiva do trabalho (art. 28). A inobservância
pelo preso da obrigação de trabalhar, resulta em falta grave. Portanto, a diferença entre o trabalho
forçado, vedado pela Constituição federal e o trabalho obrigatório previsto na LEP, é a presença do
elemento vontade: no trabalho obrigatório, o preso pode se negar a realizar o trabalho sofrendo uma
punição disciplinar, mas não pode sofrer coação física ou moral para o trabalho, sendo que no caso do
trabalho forçado, a autonomia da vontade é retirada, sendo o preso coagido física ou moralmente para
a realização do trabalho, portanto prática inconstitucional.
A Convenção 105 da OIT trata da abolição do trabalho forçado, reforçando a necessidade de supressão
do trabalho forçado ou obrigatório, principalmente como medida de coerção, de educação política,
mobilização com fins econômicos, disciplina de trabalho, punição por participação em greves ou discri-
minação racial, social, nacional ou religiosa.
Em 1998, a OIT adotou a Declaração sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho que adota
como obrigatória a observância das Convenções relacionadas, entre outros princípios, à eliminação de
todas as formas de trabalho forçado (Convenções 29 e 105), independente da ratificação pelo Membro.49
Em 2017, a OIT apresentou o estudo Global estimates of modern slavery, no qual fez uma primeira
conceituação e sistematizou os conceitos e situações relacionadas ao trabalho forçado. A escravidão
moderna seria o gênero do qual o trabalho forçado e o casamento forçado seriam espécies. O trabalho
exigido pelo Estado, a exploração do trabalho forçado e a exploração sexual de adultos e de crianças
seriam espécies de trabalho forçado. 50
Dentro da ideia de trabalho forçado imposto pelo Estado estão incluídos o trabalho exigido por auto-
ridades públicas, militares ou paramilitares, participação compulsória em obras públicas e trabalho
forçado em prisões. Resumidamente é o uso da autoridade e dos sistemas de governo para obrigar as
pessoas a trabalhar sem consentimento. 51 No Caso de las Masacres de Ituango vs. Colombia, a Corte
IDH expressamente destacou que para caracterização do trabalho forçado é necessário que o trabalho
seja executado de forma involuntária e exigido sob ameaça de punição por agente do Estado, seja por
meio de participação direta ou por sua concordância. 52
A exploração do trabalho forçado se refere ao trabalho forçado exigido por agentes privados, incluindo
o trabalho em decorrência de dívidas assumidas (bonded labour), trabalho doméstico forçado, e o
trabalho imposto no contexto da escravidão ou com vestígios de escravidão. Por fim, o documento

47
OIT. Combate ao Trabalho Escravo: um manual para empregadores e empresas. Genebra, 2011, p. 13. Disponível em: https://www.ilo.
org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.
48
OIT. Eradication of forced labour. Genebra, 2007. p. 27. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---relconf/
documents/meetingdocument/wcms_089199.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.
49
OIT. Declaração sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho. Genebra, 2017. Disponível em: https://www.ilo.org/public/
english/standards/declaration/declaration_portuguese.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.
50
OIT. Global estimates of modern slavery: Forced labour and forced marriage. Genebra, 2017. p. 17. Disponível em: https://www.ilo.org/
wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.


51
Com relação ao trabalho forçado exigido pelo Estado, ver as exceções previstas na Convenção 29 da OIT, anteriormente analisadas.
52
CORTEIDH. Caso de las Masacres de Ituango vs. Colombia, sentença de 01 de julho de 2006, p 75. Disponível em: https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_148_esp.pdf Acesso em: 01 de jun. 2022.

508
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

também apresenta a ideia do casamento forçado53, mas acrescenta ao conceito o casamento de


crianças, pois uma ou ambas as partes não deram o consentimento completo, expresso e informado. 54
Posteriormente, o documento Global guidelines on the prevention of forced labour through lifelong
learning and skills development approaches, publicado também pela OIT em 2020, confirma que a
escravidão e o trabalho forçado possuem uma tênue relação e que, frequentemente, as práticas se
confundem, reforçando a ideia de que as distinções são meramente metodológicas. O trabalho forçado
é entendido como a escravidão moderna, com o intuito de focar as condições de trabalho e vida contrá-
rias à dignidade humana que são semelhantes nos dois casos. O conceito de trabalho forçado é usado
como gênero para diferentes conceitos legais de exploração severa, incluídos o trabalho forçado em si
e o tráfico de pessoas, assim como o casamento forçado. Na maioria dos casos, as vítimas de trabalho
forçado são sujeitas a exploração abusiva e negação de direitos humanos e trabalhistas fundamentais. 55
O documento ainda traça uma linha de gradação (de cinco níveis) entre o trabalho livre em um extremo
e o trabalho forçado no outro extremo56:
● nível 1 – as condições de trabalho se encontram dentro das disposições previstas nas Conven-
ções da OIT e outras normativas nacionais e internacionais, correspondendo; considerado
como um trabalho decente;
● nível 2 - os trabalhadores são contratados para trabalhos que notadamente possuem condições
menos decentes, salários baixos, mas dentro dos limites da legislação nacional e internacional;
● nível 3 – os trabalhadores já são identificados como vítimas, pois possuem poucas informações
sobre as condições de trabalho as quais estão sendo contratados e pouca experiência e escla-
recimento quanto a realidade de discriminação, assédio e condições não razoáveis de trabalho,
como pagamento de salários abaixo do mínimo e trabalhos extraordinários sem pagamento,
caracterizando a exploração do trabalho;
● nível 4 – já considerado como um trabalho forçado, o trabalhadores são vítimas de falsa infor-
mação na contratação, podem ter os documentos confiscados durante o processo, estão
sujeitos a ameaças e represálias e tem sua vulnerabilidade explorada, havendo inclusive viola-
ções de natureza criminal e de direitos humanos;
● nível 5 - há violações de direito humanos e de direitos trabalhistas fundamentais, correspon-
dendo ao trabalho com acentuada exploração, degradante, por meio de tráfico de pessoas,
correspondendo, portanto, ao trabalho forçado.


53
Ver último parágrafo do tópico 14.5.
54
OIT. Global estimates of modern slavery: Forced labour and forced marriage. Genebra, 2017. p. 17. Disponível em: https://www.ilo.org/
wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_575479.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.
55
OIT. Global guidelines on the prevention of forced labour through lifelong learning and skills development approaches. Genebra,
2020. p 5. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/---ifp_skills/documents/publication/wcms_762709.pdf.
Acesso em: 14 maio 2021.
56
OIT. Global guidelines on the prevention of forced labour through lifelong learning and skills development approaches. Genebra,
2020. p 6. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/---ifp_skills/documents/publication/wcms_762709.pdf.
Acesso em: 14 maio 2021.

509
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Segundo o estudo, as principais formas de trabalho forçado57, são: a servidão por dívida58, o tráfico de
pessoas, a escravidão baseada na descendência59 e trabalho exigido pelo Estado.60
A conclusão é que o termo trabalho forçado é utilizado pelos relatórios internacionais de forma ampla e
variada, ora se aproximando das hipóteses de escravidão, clássicas ou modernas, e ora se aproximando
das hipóteses de servidão, o que reforça a ideia de que os conceitos são próximos e interseccionados e
a distinção entre eles se dá meramente para fins didáticos.

6. SERVIDÃO

A DUDH, em seu artigo 4º, previu a proibição da escravidão, servidão e o tráfico de escravos. Contudo,
apenas em 1956, os Estados partes da ONU adotariam a Convenção Suplementar sobre a abolição da
escravidão, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravidão, que conceitua de
forma específica duas formas de servidão: por dívidas e pela gleba.
A servidão por dívida corresponde ao estado ou condição na qual um devedor se comprometeu, em
garantia de uma dívida assumida, em prestar serviços pessoais ou de outra pessoa sobre a qual tenha
autoridade, quando não há uma valoração equitativa ou se a duração do trabalho for ilimitada e de
natureza indefinida. A servidão por gleba se refere à situação na qual a pessoa se submete, pela lei,
pelo costume ou por acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a
outra pessoa, seja de forma remunerada ou gratuita, determinados serviços, sendo impossibilitado a
mudança de sua condição.
Por sua vez, a CADH, assinada em 1969, prevê no artigo 6º a proibição da escravidão e da servidão.
Logo no item 1, há expressa proibição quanto ao tráfico de mulheres, especial preocupação que se
reflete nos dados do relatório Global Report in Trafficking in Persons, da ONU, que mostram que as
mulheres continuam sendo mais vulneráveis aos aliciadores e traficantes de pessoas (em 2018, 46% das
vítimas do tráfico de pessoas eram mulheres e 19%, crianças do sexo feminino)61. Tal realidade, exige
não só proteção legal específica, como políticas públicas nacionais eficazes de combate ao tráfico de
mulheres, que na grande maioria das vezes está ligado à exploração sexual (em 2018, cerca de 77% das
mulheres vítimas de tráfico de pessoas foram usadas na exploração sexual)62.
A servidão por dívida é uma forma muito comum de trabalho forçado, que ocorre quando o trabalhador
é de alguma forma manipulado pelo empregador ou agentes intermediários a assumir dívidas, seja por
meio de taxas, empréstimos com juros altos, penalidades, venda de alimentos ou locação de local para
moradia por preços elevados, resultando em uma situação de impossibilidade de pagamento. 63

57
OIT. Global guidelines on the prevention of forced labour through lifelong learning and skills development approaches. Genebra,
2020. p. 6-9. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/---ifp_skills/documents/publication/wcms_762709.pdf.
Acesso em: 14 maio 2021.
58
O conceito será analisado no próximo tópico.
59
Tanto o tráfico de escravos e como a escravidão por descendência foram analisados no tópico anterior.
60
O conceito de trabalho exigido pelo Estado também já foi abordado anteriormente no tópico de trabalho forçado.

ONU. Global Report in Trafficking in Persons. Nova York, 2020, p. 31. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analy-
61

sis/tip/2021/GLOTiP_2020_15jan_web.pdf. Acesso em: 22 mar. 2021.


62
ONU. Global Report in Trafficking in Persons. Nova York, 2020, p. 16. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analy-
sis/tip/2021/GLOTiP_2020_15jan_web.pdf. Acesso em: 22 mar. 2021.
63
OIT. Global guidelines on the prevention of forced labour through lifelong learning and skills development approaches. Genebra,
2020. p. 6-9. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/---ifp_skills/documents/publication/wcms_762709.pdf.
Acesso em: 14 maio 2021.

510
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

A ONU aponta que uma prática amplamente identificada em casos reportados de vítimas em neces-
sidades econômicas que são traficadas é a servidão por dívida. As vítimas são informadas antecipada-
mente que devem reembolsar despesas de viagem e moradia pagas pelos traficantes de pessoas. A
dívida aumenta com o tempo em função de taxas de juros, medicamentos e outros custos informados
pelos traficantes, como cobrança de multas se metas de trabalho não são atingidas.64
No relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil de 1997, a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos constatou que no Brasil a forma típica de servidão forçada consiste em aliciar traba-
lhadores de estados que se encontram em situação de extrema pobreza e com desemprego rural,
oferecendo-lhes salários atraentes para que se desloquem e trabalhem em outros estados. Contudo, os
trabalhadores iniciam a prestação de serviços em situações degradantes e ilegais, endividados (valores
exigidos a título de transporte e alimentação), sendo obrigados a pagar por sua moradia e alimentação
no local da prestação de serviço. A remuneração muitas vezes é menor que a prometida, de modo que
se torna impossível que eles quitem suas dívidas. O isolamento, as ameaças e violências impedem que
tais trabalhadores consigam se libertar. Em muitos casos, o resultado é a morte.65
Segundo sentença proferida pela Corte IDH no caso Fazenda Brasil Verde, os elementos caracteriza-
dores da servidão por dívidas seriam: 66
a. prestação de serviços como garantia de uma dívida, que, entretanto, não são cobrados
em seu pagamento;
b. duração ilimitada;
c. natureza indefinida dos serviços;
d. que as pessoas vivam na propriedade de prestação dos serviços;
e. controle sobre a locomoção dos trabalhadores;
f. existência de medidas que impeçam as fugas;
g. controle psicológico sobre as pessoas;
h. impossibilidade pelas vítimas de mudança de sua condição;
i. tratamento cruel e abusivo.
Por fim, a Convenção 169 da OIT67, adotada em 1989, também prevê no artigo 20, item 3, c) garantia de
que os povos indígenas e tribais não sejam submetidos contratações coercitivas, incluindo-se todas as
formas de servidão por dívidas.68

64
ONU. Global Report in Trafficking in Persons. Nova York, 2020, p. 72. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-a-
nalysis/tip/2021/GLOTiP_2020_15jan_web.pdf. Acesso em: 22 mar. 2021.
65
CIDH. Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. 1997. p. 6-9. Disponível em: https://cidh.oas.org/countryrep/brazil-
-port/Cap%207.htm#Trabalho. Acesso em: 14 maio 2021.
66
CORTEIDH. Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, p 56. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_esp.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.


67
Ratificada pelo Brasil em 2004 e promulgada por meio do Decreto 5.051. Recentemente, o Decreto 5.051/04 também foi revogado pelo
Decreto 10.088/2019, o qual consolidou os atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a promulgação de
convenções e recomendações da OIT ratificadas pelo Brasil e em vigor.
68
OIT. Convenção 169. Genebra, 1989. p. 6-9. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_emp/---ifp_skills/documents/
publication/wcms_762709.pdf. Acesso em: 14 maio 2021.

511
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

7. STATUS JURÍDICO DA PROIBIÇÃO DA ESCRAVIDÃO,


TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

As normas internacionais que proíbem a escravidão, a servidão, o trabalho forçado e as demais práticas
análogas acima analisadas são parte do direito internacional consuetudinário e do jus cogens69, de
modo que tal proteção corresponde a uma obrigação erga omnes e de cumprimento obrigatório por
parte dos Estados que são signatários de tais normas, dentre eles o Brasil. Segundo a Corte IDH, inclu-
sive não é admissível a invocação de institutos processuais como a prescrição, no intuito de afastar a
obrigação de investigar e punir tais crimes. Ainda, esclarece que há uma obrigação do Estado brasileiro
de adaptar sua legislação interna de acordo com os padrões internacionais. 70
A considerou, ainda, os crimes praticados no caso Fazenda Brasil Verde, como de caráter complexo e
pluriofensivo, ou seja, ao submeter uma pessoa à escravidão, servidão ou trabalho forçado, são violados
inúmeros direitos individuais, alguns em maior e outros e menor intensidade dependendo das circuns-
tâncias fáticas específicas de cada caso. A identificou os seguintes elementos como caracterizadores do
trabalho escravo: violação da integridade física e da liberdade pessoal das vítimas (violência e ameaças,
coerção física e psicológica, restrição de liberdade de se movimentar), tratamento indigno (condições
degradantes de moradia, alimentação e trabalho), limitação da liberdade de circulação (restrição em
razão de dívidas e do trabalho forçado exigido). 71
Por fim, vale frisar que a proibição de trabalho escravo, forçado ou servidão é norma imperativa, de
status vinculante a toda a comunidade internacional. Trata-se de um direito absoluto, sendo vedada
em qualquer situação a suspensão de sua aplicação, nos termos do artigo 4º do PIDCP e artigo 27 da
CADH, além de ser considerado crime contra a humanidade, conforme prevê o artigo 7.1, “c” e “d” do
Estatuto de Roma. 72

8. OBRIGAÇÕES POSITIVAS E NEGATIVAS DOS ESTADOS

As obrigações dos estados na proteção contra a escravidão, servidão, trabalho forçado e tráfico de
pessoas são divididas em positivas e negativas. As obrigações negativas se referem ao dever de não
violar o direito à proteção da escravidão, servidão, trabalho forçado e tráfico de pessoas pelo próprio
Estado. Por outro lado, as obrigações positivas se referem a uma garantia pelo Estado da criação das
condições necessárias à efetivação da proteção contra a escravidão, servidão, trabalho forçado e tráfico
de pessoas e, particularmente de impedir que seus agentes e terceiros particulares atentem contra esse
direito. Neste sentido, o artigo 6, item 1 da CADH além de prever que nenhuma pessoa seja submetida
à escravidão, servidão, tráfico ou trabalho escravo, exige que os Estados adotem todas as medidas apro-
priadas para impedir tais práticas e prevenir a violação do direito a não ser submetido a tais condições.
Segundo o relatório Situação dos direitos Humanos no Brasil da OEA, apesar das fiscalizações coor-
denadas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel que é composto por auditores-fiscais do trabalho,
membros do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Federal, com o apoio da Polícia

69
Normas peremptórias, imperativas do direito internacional, inderrogáveis pela vontade das partes.
70
CORTEIDH. Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, p 102. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_esp.pdf. Acesso em: 31 ago. 2021.

CORTEIDH. Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, p. 79. Disponível em: https://
71

www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_esp.pdf. Acesso em: 31 ago. 2021.


72
BRASIL. Decreto 4.388, de 2019. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 14 maio 2021.

512
PROTEÇÃO CONTRA ESCRAVIDÃO, TRABALHO FORÇADO E SERVIDÃO

Federal e da Polícia Rodoviária Federal, há um baixo nível de condenações pelo crime de exploração de
trabalho em condições análogas à de escravidão73. O relatório ainda aponta uma carência na atuação
assistencial-preventiva, pois o púnico apoio que o trabalhador tem após a libertação do trabalho em
condições análogas à de escravidão é o benefício do seguro desemprego e o encaminhamento ao
Sistema Nacional de Emprego, o que enfraquece a prevenção contra o reingresso do trabalhador
liberto nessa prática. 74
Um exemplo emblemático quanto à inobservância das obrigações do Estado é o caso Fazenda Brasil
Verde v. Brasil que, expressamente, menciona a importância de o Estado adotar medidas que desen-
corajem a demanda que alimenta a exploração do trabalho força, servidão ou escravidão, bem como,
iniciar de ofício e imediatamente uma investigação efetiva que possa identificar, julgar e punir os
responsáveis, revogar toda legislação que legalize ou tolere a escravidão e a servidão, tipificar penal-
mente as figuras da escravidão e servidão, com penas severas, realizar inspeções ou outras medidas
para identificar tais práticas e adotar medidas de proteção e assistência às vítimas75. Resumidamente,
é possível identificar, portanto, obrigações relacionadas com o poder legislativo (adequado marco
jurídico de proteção), com o poder executivo (políticas de prevenção e práticas que permitam uma
fiscalização eficiente nas denúncias) e com o poder judiciário (aplicação efetiva das leis de proteção).
A Corte IDH reconheceu que o Estado brasileiro falhou no seu dever de prevenir o ocorrido na Fazenda
Brasil Verde, pois restou comprovado que foram feitas inúmeras denúncias e que a investigação reali-
zada pela Polícia Federal não foi suficiente para identificação e punição dos envolvidos, tendo sido
reconhecida a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação do artigo 6º da CADH. Segundo a
Corte IDH, houve violação de garantias judiciais e de recursos efetivos, nos seguintes aspectos especí-
ficos: mecanismos internos de responsabilização dos envolvidos não foram conduzidos com diligência,
julgamento fora do prazo considerado razoável, punição inadequada dos responsáveis pelos fatos e
ausência de mecanismos de reparação e prevenção das violações constatadas. 76
O Ministério Público do Trabalho por sua vez, em parceria com a OIT, desenvolveu o Observatório
Digital do Trabalho Escravo no Brasil77, que reúne, de forma integrada, conteúdo de diversos bancos de
dados e relatórios governamentais sobre o trabalho forçado, escravidão e servidão. Contudo, no ano de
2019, houve uma redução do orçamento do Ministério Público do Trabalho em aproximadamente de
50%, o que obviamente resultará em dificuldades nas participações nas fiscalizações do Grupo Especial
de Fiscalização Móvel.
No âmbito legislativo, recentemente no ano de 2014, houve a reforma do art. 243 da Constituição
Federal, por meio da Emenda Constitucional nº 81, que representou um avanço no combate ao
trabalho em condição análoga à escravidão, pois autoriza a expropriação, para fins da reforma agrária
e a programas de habitação popular, de imóveis urbanos e rurais, nos quais for verificada a exploração

73
CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21. 2021, p. 54-5. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/rela-
torios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.

CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil. OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21. 2021, p. 55. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/relato-
74

rios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 13 maio 2021.


75
CORTEIDH. Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, p 82. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_esp.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.
76
CORTEIDH. Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016, p. 92-107. Disponível em:
https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_esp.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.
77
MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil. Disponível em: https://smartlabbr.org/
trabalhoescravo. Acesso em: 31 ago. 2021.

513
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

de trabalho nessas condições. Contudo, é de se destacar negativamente a Portaria nº. 1.129/2017 78, do
antigo Ministério do Trabalho que restringiu o conceito de trabalho em condição análoga à escravidão,
representando um evidente retrocesso na proteção dos trabalhadores no campo. Posteriormente, em
23 de outubro de 2017, o STF suspendeu liminarmente a Portaria 1.129/2017. Na sequência, o Ministério
do Trabalho, em dezembro de 2017, publicou a Portaria 1.293, substituindo a Portaria 1.129/17 que já
estava suspensa pelo STF. A nova portaria seguiu o entendimento atual de que é desnecessária a
restrição direta da liberdade de ir e vir para que fique configurado o trabalho escravo e ainda deixou
de exigir autorização do Ministro do Trabalho para divulgação da Lista Suja das empresas autuadas por
manter trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Por fim, recentemente em 2019, houve a polêmica edição da Medida Provisória nº 870, convertida na
Lei n. 13.844/2019, que extinguiu o Ministério do Trabalho e transferindo suas competências para outros
órgãos governamentais não especializados, como o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o
Ministério da Cidadania e o Ministério da Economia, o que dificultará a articulação e realização de polí-
ticas públicas relacionadas ao combate ao trabalho escravo. A absorção de competências relacionadas à
fiscalização e à regulação do trabalho pelo Ministério da Economia, caracteriza um evidente conflito de
interesses o que pode resultar em redução de esforços fiscalizatórios das atividades trabalhistas, fragili-
zando os mecanismos de proteção social dos trabalhadores em situação de trabalho forçado, servidão
ou condição análoga à escravidão.


78
MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Secretaria do Trabalho. Portaria nº. 1.129/2017. Dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada
exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em
fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do artigo2-C da Lei n 7998, de 11 de janeiro de1990; bem como altera dispositivos da
PIMTPS/MMIRDH Nº 4, de 11 de maio de 2016. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/
id/19356195/do1-2017-10-16-portaria-n-1-129-de-13-de-outubro-de-2017-19356171. Acesso em: 31 ago. 2021.

514
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

DIREITO À NACIONALIDADE,
CIRCULAÇÃO E
RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Marina de Almeida Rosa

1. INTRODUÇÃO

Os direitos à nacionalidade, à circulação e à residência, assim como o direito ao asilo e ao refúgio estão
diretamente vinculados à construção do Estado-Nação e de suas fronteiras no século XVIII. De forma
soberana, os Estados criaram regras para reconhecer a nacionalidade de pessoas nascidas em seu
território ou fora dele e vincularam a esse status o reconhecimento de direitos. Além disso, os Estados
passaram a utilizar a nacionalidade como critério no controle de fronteiras, permitindo o livre trânsito
daquelas que reconhecia como nacionais, mas impondo restrições à entrada das pessoas não nacionais
ou estrangeiras.1 A intensificação de fluxos migratórios no século XX, entretanto, impõe flexibilização
à soberania tradicional dos Estados que criam e recorrem a organizações internacionais e ao direito
internacional na formulação e aplicação dos direitos à nacionalidade, à circulação e à residência, assim
como o direito ao asilo e ao refúgio.
A CIDH compreende que migrante é toda pessoa que se encontra fora do Estado do qual é nacional. 2
Por sua vez, a OIM agrega que migrantes não só estão fora de seu território de nacionalidade, como
reconhece que o caráter de migrante independe da situação jurídica do indivíduo no país de destino, o
caráter de seu deslocamento, sua causa ou duração. 3
A Assembleia Geral da ONU reconhece que os migrantes se encontram em situação de vulnerabilidade
devido a que, entre outros fatores, não vivem em seu país de origem, e que encontram dificuldades
de idioma, costume, cultura, assim como dificuldades econômicas e sociais, e ainda obstáculos legais
para que possam regularizar sua situação no país em que vivem.4 A respeito, a Corte IDH reconheceu
a especial situação de vulnerabilidade em que os migrantes se encontram. Tais desigualdades estão
relacionadas com contextos locais, a questões culturais capazes de reproduzir racismo e xenofobia,
podendo alterar-se, mas, como regra, vinculam-se a situações de jure, como a desigualdade prevista

1
ROSA, Marina de Almeida. O encontro do direito internacional dos refugiados com o Sul global: uma análise do “conceito do sul” de
refugiados e de sua não aplicação pelas Nações Unidas. 2019. 220 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em
Direito público, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINO), 2019, p. 187
2
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Derechos humanos de migrantes, refugiados, apátridas, víctimas de trata
de personas y desplazados internos: Normas y Estándares del Sistema Interamericano de Derechos Humanos. [S.l.]: OEA, 2015. par. 124.
Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/movilidadhumana.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
3
INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION. Who is a migrant? Disponível em: https://www.iom.int/node/102743. Acesso em:
26 set. 2021.
4
UNITED NATIONS. 73/195 - Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration: Resolution adopted by the General Assembly
on 19 December 2019: A/RES/73/195, 11 January 2019. 2019. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/record/1660537?ln=ru. Acesso em:
26 out. 2022.

515
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

entre nacionais e não nacionais, e de fato, abrangendo desigualdades estruturais. 5 Nesse contexto,
outros organismos internacionais têm apontado para um incremento, nos últimos anos, de pessoas
em situação de mobilidade humana com especiais necessidades de proteção, como refugiados, solici-
tantes de asilo, deslocados internos, apátridas.6
A temática migratória é contemplada pelo texto constitucional brasileiro, que garante o direito à nacio-
nalidade, à circulação, ao asilo. Além disso, normas infraconstitucionais, como a Lei n. 13.445/2017 (Lei
de Migrações) e a Lei n. 9.474/1997, também buscam regular o tema no âmbito doméstico. Entretanto,
as obrigações do Estado brasileiro em relação ao tema não se esgotam nas normas de direito interno. O
direito internacional e, em especial, o direito internacional dos refugiados7 e o direito internacional dos
direitos humanos8, têm desenvolvido diferentes documentos normativos e estândares sobre o tema,
como as decisões emanadas da Corte IDH e da CIDH, e do CDH e tratados9 como o PIDCP, a CADH , a
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados e seu Proto-
colo Adicional, que obrigam os agentes brasileiros em qualquer processo de tomada de decisão, seja na
formulação e implementação de políticas públicas, seja nos diferentes âmbitos do sistema de justiça.
Desta forma, este capítulo pretende analisar os direitos à nacionalidade, à circulação e à residência, ao
asilo e ao refúgio, a partir de estândares internacionais e domésticos em matéria de direitos humanos.
Assim, em um primeiro momento, são apresentadas as disposições constitucionais sobre os direitos
analisados neste capítulo. A análise da normativa infraconstitucional é feita ao longo da análise dos
direitos. Após, apresenta-se os documentos internacionais (de hard e soft law) sobre a matéria,
incluindo tanto aqueles ratificados pelo Estado brasileiro e inseridos no ordenamento jurídico pátrio,
quanto aqueles que não foram assinados e tampouco ratificados. A respeito, é indicado em cada um
dos documentos sua capacidade de vinculação em relação ao Brasil.
Posteriormente, examina-se os direitos à nacionalidade, à circulação, à residência, ao asilo e ao refúgio,
bem como suas particularidades. Nesse sentido, a metodologia proposta parte do pressuposto de que
as normas de DIDH devem orientar as autoridades domésticas.10 Logo, apresenta-se o conceito e/ou
a previsão normativa daqueles direitos no âmbito internacional e constitucional, para somente então

5
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Condición jurídica y derechos de los migrantes indocumentados: Opinión
Consultiva OC-18/03 de 17 de septiembre de 2003. [S.l.]: OEA, 2003. par. 112-113. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Docu-
mentos/BDL/2003/2351.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
6
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Debido proceso en los procedimientos para la determinación de la condi-
ción de persona refugiada, y apátrida y el otorgamiento de protección complementaria. [S.l.]: OEA, 2020. par. 1-2. Disponível em: https://
www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/DebidoProceso-ES.pdf. Acesso em: 26 out. 2022. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
REFUGIADOS. Global trends: Forced Displacement in 2020. Copenhagen: Denmark, 2021.Disponível em: https://www.acnur.org/portu-
gues/2022/06/15/acnur-deslocamento-global-atinge-novo-recorde-e-reforca-tendencia-de-crescimento-da-ultima-decada/#:~:text=-
Principais%20dados%20do%20relat%C3%B3rio%20%E2%80%9CTend%C3%AAncias,que%20perturbaram%20a%20ordem%20
p%C3%BAblica.. Acesso em: 26 out. 2022.


7
JUBILUT, Liliana Lyra. O direito internacional dos refugiados e sua aplicação ao ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método,
2007, p. 76; LEWIS, Corinne. UNHCR and International Refugee Law: from treaties to innovation. New York: Routledge, 2012, p. 5-6.
8
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto.Tratado de direito internacional dos direitos humanos. v. 1. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Anto-
nio Fabris Editor, 2003, p. 340-341.
9
Para fins deste capítulo, o termo “tratado” designa o acordo internacional concluído por escrito entre Estados – ou entre Estados e Or-
ganizações Internacionais, ou entre Organizações Internacionais – e regido pelo Direito Internacional, que conste ou de um instrumento
único, ou de dois ou mais instrumentos conexos, independentemente de denominação específica, conforme conceituam os artigos 1.a
e 2.1.a das Convenções de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 e de 1986, respectivamente. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNI-
DAS. Vienna Convention on the law treaties: No. 18232 Multilateral. 1969. Disponível em: https://treaties.un.org/doc/publication/unts/
volume%201155/volume-1155-i-18232-english.pdf. Acesso em: 4 set. 2021; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Vienna Convention
on the law treaties between States and International Organization of between International Organizations. 1986. Disponível em:
http://legal.un.org/ilc/texts/instruments/english/conventions/1_2_1986.pdf. Acesso em: 4 set. 2021)
10
GARCÍA RAMÍREZ, Sergio. Control de convencionalidad. Ciencia Jurídica. [S.l.], v. 5, n. 9, p. 131-138, jun. 2016.

516
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

apresentar os estândares internacionais sobre o tema. Em seguida, analisa-se tanto a regulação do


direito na legislação infraconstitucional brasileira, quanto as posições do STF sobre a matéria e sua
adequação aos estândares internacionais.
Destaca-se que a autora optou por apresentar tão somente aqueles estândares internacionais que, de
algum modo, podem vincular o Estado brasileiro, como são os provenientes do sistema global e do
SIDH. Desta maneira, excluiu-se o exame dos estândares desenvolvidos no âmbito do sistema europeu
e do sistema africano de proteção dos direitos humanos, dado que esses não implicam em qualquer
vinculação aos agentes estatais brasileiros, ainda que não se desconheça a possibilidade de aplicação
deles através da técnica de cross fertilization.11

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

2.1.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos12

Artigo 9
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo 13
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.
2. Todo ser humano tem direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar.
Artigo 14
1. Todo ser humano, vítima de perseguição tem direito de procurar e de gozar de asilo em outros países.
2. Esse direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de
direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Artigo 15


11
HENNEBEL, Ludovic. Cross-Fertilization between International Human Rights Courts (Les Références Croisées Entre Les Juridictions
Internationales Des Droits De L’Homme – in French). 2006. In: MARTENS, P. et al. Le dialogue des juges. 2007. Disponível em: https://
papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1819764. Acesso em: 25 set. 2021.
12
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma norma de soft law. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal
dos Direitos Humanos: Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro de 1948.
[2020?]. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 26 set. 2021. Entretanto, e
possível observar que se tem afirmado o caráter de costume internacional da DUDH. A respeito, a Comissão Interamericana aponta para
um caráter cogente da Declaração enquanto instrumento do direito internacional consuetudinário (COMISSÃO INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS. Informe nº 44/04: Petición 2584-02. 2004. pár. 36. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2004sp/
Mexico.2584.02.htm. Acesso em: 26 set. 2021). Igualmente, a Conferência do Teerã sobre Direitos Humanos (, reconhece que a DUDH
“states a common understanding of the peoples of the world concerning the inalienable and inviolable rights of all members of the hu-
man family and constitutes an obligation for the members of the international community”, isto é, alude a um consenso da comunidade
internacional em conferir à Declaração um caráter obrigatório. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Proclamation of Teheran: Final
Act of the International Conference on Human Rights, , Teheran, 22 April to 13 May 1968, U.N. Doc. A/CONF. 32/41 at 3. 1968. Disponível
em: https://legal.un.org/avl/pdf/ha/fatchr/Final_Act_of_TehranConf.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.)

517
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade.


2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.

2.1.2. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos13

Artigo 12
1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado terá o direito de nele livremente
circular e escolher sua residência.
2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país.
3. Os direitos supracitados não poderão constituir objeto de restrições, a menos que estejam previstos
em lei e no intuito de restrições, a ordem, a saúde ou a moral pública, bem como os direito e liberdades
de demais pessoas, e que sejam compatíveis com os outros direitos reconhecidos no presente Pacto.
4. Ninguém poderá ser privado arbitrariamente do direito de entrar em seu próprio país.
Artigo 13
Um estrangeiro que se ache legalmente no território de um Estado parte do presente Pacto só poderá
dele ser expulso em decorrência de decisão adotada em conformidade com a lei e, a menos que razões
imperativas de segurança nacional a isso se oponham, terá a possibilidade de expor as razões que
militem contra sua expulsão e de ter seu caso reexaminado pelas autoridades competentes, ou por
uma ou várias pessoas especialmente designadas pelas referidas autoridades, e de fazer-se representar
com esse objetivo.
Artigo 24
3. Toda criança terá o direito de adquirir uma nacionalidade.

2.1.3. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem 14

Artigo VIII
Toda pessoa tem direito de fixar sua residência no território do Estado de que é nacional, de transitar
por ele livremente e de não abandoná-lo senão por sua própria vontade.

13
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foi ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992 e inserida no ordenamento jurídico
brasileiro pelo Decreto no. 592/1992. BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 18 set. 2021.
14
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem é uma norma de soft law. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS.
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem: Aprovada na Nona Conferência Internacional Americana. 1948. Disponível
em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.Declaracao_Americana.htm. Acesso em: 18 set. 2021. Entretanto, a Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos tem reconhecido sua relevância enquanto fonte de obrigações estatais. A respeito, veja-se: CORTE INTERA-
MERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Interpretación de la Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre en el
marco del artículo 64 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos: Opinión Consultiva OC-10/89 de 14 de julio de 1989.
1989. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/opiniones_consultivas.cfm?lang=pt. Acesso em: 26 out. 2022; CORTE INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS. Caso Lagos del Campo Vs. Perú: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 31 de
agosto de 2017. 2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_340_esp.pdf. Acesso em: 26 out. 2022; ROSA,
Marina de Almeida; BEBER, Augusto Carlos de Menezes. E se o ativismo chegar às Cortes Supranacionais?. Revista da Faculdade de
Direito (UFU). [S.l.], v. 47, p. 225-251, 2019; AZAMBUJA, Marcelo Andrade de; VIEIRA, Luciane Klein. Maya Leaders Alliance & Others V.
The Attorney General ff Belize-: um exemplo de descolonização do direito internacional dos direitos humanos. Caderno Dde Relações
Internacionais, [S.l.], v. 11, p. 347-380, 2020.

518
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Artigo XIX
Toda pessoa tem direito à nacionalidade que legalmente lhe corresponda, podendo muda-la, se assim
o desejar, pela de qualquer outro país que estiver disposto a concedê-la.

2.1.4. Convenção Americana sobre Direitos Humanos 15

Artigo 20. Direito à nacionalidade


1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade
2. Toda pessoa tem direito à nacionalidade do Estado em cujo território houver nascido, se não tiver
direito a outra.
3. A ninguém se deve privar arbitrariamente de sua nacionalidade nem do direito de mudá-la.
Artigo 22. Direito de circulação e de residência
1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado em direito de circular nele e de nele
residir em conformidade com as disposições legais.
2. Toda pessoa tem direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio.
3. O exercício dos direitos acima mencionados não pode ser restringido senão em virtude de lei, ne
medida indispensável, numa sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger
a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e
liberdade das demais pessoas.
4. O exercício dos direitos reconhecidos no inciso 1 pode também ser restringido pela lei, em zonas
determinadas, por motivo de interesse público.
5. Ninguém pode ser expulso do território do Estado do qual for nacional, nem ser privado de nele entrar.
6. O estrangeiro que se ache legalmente no território de um Estado Parte nesta Convenção só poderá
dele ser expulso em cumprimento de decisão adotada de acordo com a lei.
7. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, no caso de perseguição
por delitos políticos ou comuns conexos com políticos e de acordo com a legislação de cada Estado e
com os convênios internacionais.
8. Em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a outro país, seja ou não de origem,
onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação por causa da sua raça, nacio-
nalidade, religião, condição social ou de suas opiniões políticas.
9. É proibida a expulsão coletiva de estrangeiros.


15
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos foi ratificada pelo Brasil em 2 de setembro de 1992 e inserida no ordenamento jurídico
brasileiro pelo Decreto no. 678/1992. BRASIL. Decreto no. 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 18 set. 2021.

519
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2.1.5. Convenção concernente a certas questões relativas aos conflitos de leis


sobre nacionalidade 16

Artigo 1º
Cabe a cada Estado determinar, por meio de sua legislação, quem são seus nacionais. Esta legis-
lação deve ser aceita pelos outros Estados, desde que esteja de acordo com os tratados internacio-
nais, os costumes internacionais e os princípios de direito geralmente reconhecimentos em matéria
de nacionalidade.
Artigo 14
Uma criança cujos pais não são conhecidos tem a nacionalidade do país onde nasceu. Se a filiação da
criança for comprovada, sua nacionalidade será determinada de acordo com as regras aplicáveis nos
casos em que a filiação for reconhecida.
Presume-se que uma enjeitada, até prova em contrário, nasceu no território do Estado onde foi encontrada
Artigo 15
Quando a nacionalidade de um Estado não é adquirida de pleno direito como resultado do nascimento
no território desse Estado, uma criança lá nascida de pais sem nacionalidade, ou de nacionalidade
desconhecida, pode obter a nacionalidade desse Estado. A lei deste último fixará as condições que
estará sujeita a aquisição de sua nacionalidade nestes casos.

2.1.6. Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas 17

1 - Para efeitos da presente Convenção, o termo apátrida designará toda a pessoa que não seja conside-
rada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional.
2 - Esta Convenção não será aplicável:
i) Às pessoas que atualmente beneficiam de proteção ou assistência por parte de orga-
nismos ou agencias das Nações Unidas, que não seja o Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados, enquanto estiverem a receber essa proteção ou assistência;
ii) Às pessoas a quem as autoridades competentes do país onde tenham fixado a sua residência reco-
nheçam os direitos e obrigações inerentes à posse da nacionalidade desse país;
iii) Às pessoas sobre as quais haja razões fundadas para considerar que:
a) Cometeram um crime contra a paz, um crime de guerra ou um crime contra a Humanidade, como
definido nos instrumentos internacionais que contém disposições relativas a esses crimes
b) Cometeram um grave crime de direito comum fora do país da sua residência antes da sua admissão
no referido país;

16
A Convenção concernente a certas questões relativas aos conflitos de leis sobre nacionalidade foi ratificada pelo Brasil em 18
de setembro de 1931 e inserida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto no. 21.798/1932 BRASIL. Decreto nº 21.798, de 6 de
setembro de 1932. Promulga uma convenção e três protocolos sobre nacionalidade, firmados na Haya, a 12 de abril de 1930. Brasília,
DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21798-6-setembro-
-1932-549005-publicacaooriginal-64268-pe.html. Acesso em: 18 set. 2021.


17
A Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas foi ratificada pelo Brasil em 13 de novembro de 1996 e inserida no ordenamento jurídico
brasileiro pelo Decreto no. 4.246/2002. BRASIL. Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002. Promulga a Convenção sobre o Estatuto
dos Apátridas. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4246.htm.
Acesso em: 18 set. 2021.

520
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

c) Praticaram actos contrários aos objectivos e princípios das Nações Unidas.

2.1.7. Convenção para a redução dos casos de apatridia 18


Artigo 1
1. Todo Estado Contratante concederá sua nacionalidade a uma pessoa nascida em seu território e que
de outro modo seria apátrida. A nacionalidade será́ concedida:
(a) de pleno direito, no momento do nascimento; ou
(b) mediante requerimento apresentado à autoridade competente pelo interessado ou em seu nome,
conforme prescrito pela legislação do Estado em questão. Nos termos do disposto no parágrafo 2 deste
Artigo, nenhum requerimento poderá ser indeferido.
Todo Estado Contratante cuja legislação preveja a concessão de sua nacionalidade mediante reque-
rimento. segundo a alínea (b) deste parágrafo, poderá também conceder sua nacionalidade de pleno
direito na idade e sob as condições prescritas em sua legislação nacional.
2. Todo Estado Contratante poderá subordinar a concessão de sua nacionalidade segundo a alínea (b)
do parágrafo 1 deste Artigo a uma ou mais das seguintes condições:
(a) que o requerimento seja apresentado dentro de um período fixado pelo Estado Contratante, que
deverá começar não depois da idade de dezoito anos e terminar não antes da idade de vinte e um
anos, de modo que o interessado disponha de um ano, no mínimo, durante o qual possa apresentar o
requerimento sem ter de obter autorização judicial para fazê-lo;
(b) que o interessado tenha residido habitualmente no território do Estado Contratante por período,
fixado por este Estado, não superior a cinco anos imediatamente anteriores à apresentação do reque-
rimento nem a dez anos ao todo;
(c) que o interessado não tenha sido condenado por crime contra a segurança nacional nem tenha sido
condenado. em virtude de processo criminal, a cinco anos ou mais de prisão;
(d) que o interessado sempre tenha sido apátrida.
3. Não obstante o disposto nos parágrafos 1 (b) e 2 do presente Artigo, todo filho legítimo nascido no
território de um Estado Contratante e cuja mãe seja nacional daquele Estado, adquirirá essa nacionali-
dade no momento do nascimento se, do contrário, viesse a ser apátrida.
4. Todo Estado Contratante concederá sua nacionalidade a qualquer pessoa que do contrário seria apá-
trida e que não pôde adquirir a nacionalidade do Estado Contratante em cujo território tiver nascido
por ter passado da idade estabelecida para a apresentação de seu requerimento ou por não preencher
os requisitos de residência exigidos, se no momento do nascimento do interessado um de seus pais
possuía a nacionalidade do Estado Contratante inicialmente mencionado. Se seus pais não possuíam
a mesma nacionalidade no momento de seu nascimento, a legislação do Estado Contratante cuja
nacionalidade estiver sendo solicitada determinará se prevalecerá a condição do pai ou da mãe. Caso
seja necessário requerimento para tal nacionalidade, tal requerimento deverá ser apresentado à auto-
ridade competente pelo interessado ou em seu nome, conforme prescrito pela legislação do Estado
Contratante. Nos termos do disposto no parágrafo 5 do presente Artigo, nenhum requerimento poderá
ser indeferido.

18
A Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia foi ratificada pelo Brasil em 25 de outubro de 2007 e inserida no ordenamento jurí-
dico brasileiro pelo Decreto no. 8.501/2015. BRASIL. Decreto nº 8.501, de 18 de agosto de 2015. Promulga a Convenção para a Redução
dos Casos de Apatridia, firmada em Nova Iorque, em 30 de agosto de 1961. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/d8501.htm. Acesso em: 18 set. 2021.

521
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

5. Todo Estado Contratante poderá subordinar a concessão de sua nacionalidade, segundo o parágrafo
4 do presente Artigo, a uma ou mais das seguintes condições:
(a) que o requerimento seja apresentado antes de o interessado atingir a idade determinada pelo
Estado Contratante, a qual não poderá ser inferior a 23 anos;
(b) que o interessado tenha residido habitualmente no território do Estado Contratante por período,
fixado por este Estado, não superior a três anos;
(c) que o interessado sempre tenha sido apátrida.
Artigo 4
1. Todo Estado Contratante concederá sua nacionalidade a qualquer pessoa que não tenha nascido no
território de um Estado Contratante e que do contrário seria apátrida se no momento de seu nasci-
mento um de seus pais possuía a nacionalidade do primeiro destes Estados. Se seus pais não possuíam
a mesma nacionalidade no momento de seu nascimento, a legislação daquele Estado Contratante
determinará se prevalecerá a condição do pai ou da mãe. A nacionalidade a que se refere este Artigo
será concedida:
(a) de pleno direito, no momento do nascimento; ou
(b) mediante requerimento apresentado à autoridade competente pelo interessado ou em seu nome,
conforme prescrito pela legislação do Estado em questão. Nos termos do disposto no parágrafo 2 deste
Artigo, nenhum requerimento poderá ser indeferido.
2. Todo Estado Contratante poderá subordinar a concessão de sua nacionalidade, segundo o parágrafo
4 da presente Artigo, a uma ou mais das seguintes condições:
(a) que o requerimento seja apresentado antes de o interessado atingir a idade determinada pelo
Estado Contratante, a qual não poderá ser inferior a 23 anos;
(b) que o interessado tenha residido habitualmente no território do Estado Contratante por período,
fixado por este Estado, não superior a três anos;
(c) que o interessado não tenha sido condenado por crime contra a segurança nacional; (d) que o inte-
ressado sempre tenha sido apátrida.
Artigo 5
1. Caso a legislação de um Estado Contratante imponha a perda de nacionalidade em decorrência
de qualquer mudança no estado civil de uma pessoa, tal como casamento, dissolução da sociedade
conjugal, legitimação, reconhecimento ou adoção, tal perda será condicionada à titularidade ou aqui-
sição de outra nacionalidade.
2. Se, de acordo com a legislação de um Estado Contratante, um filho natural perder a nacionalidade
daquele Estado como conseqüência de um reconhecimento de filiação, ser-lhe-á oferecida a oportu-
nidade de recuperá-la mediante requerimento apresentado perante a autoridade competente, reque-
rimento este que não poderá ser objeto de condições mais rigorosas do que aquelas determinadas no
parágrafo 2 do Artigo 1 da presente Convenção.
Artigo 6
A mudança ou a perda da nacionalidade de um dos cônjuges, do pai ou da mãe, não acarretará a perda
da nacionalidade do outro cônjuge nem a dos filhos, a menos que já possuam ou tenham adquirido
outra nacionalidade.

522
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Artigo 7
1. (a) Se a legislação de um Estado Contratante permitir a renúncia à nacionalidade, tal renúncia só será
válida se o interessado tiver ou adquirir outra nacionalidade.
(b) A disposição da alínea (a) deste parágrafo não prevalecerá quando sua aplicação for incompatível
com os princípios enunciados nos Artigos 13 e 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, apro-
vada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
2. A pessoa que solicitar a naturalização em um pais estrangeiro, ou tenha obtido uma permissão de expa-
triação com esse fim, só perderá sua nacionalidade se adquirir a nacionalidade desse pais estrangeiro.
3. Salvo o disposto nos parágrafos 4 e 5 deste Artigo, o nacional de um Estado Contratante não poderá
perder sua nacionalidade pelo fato de abandonar o país, residir no exterior ou deixar de inscrever-se no
registro correspondente, ou por qualquer outra razão semelhante, se tal perda implicar sua apatridia.
4. Os naturalizados podem perder sua nacionalidade pelo falo de residirem em seu pais de origem
por um período que exceda o autorizado pela legislação do Estado Contratante, que não poderá ser
inferior a sete anos consecutivos, se não declararem perante as autoridades competentes sua intenção
de conservar sua nacionalidade.
5. Em caso de nacionais de um Estado Contratante nascidos fora de seu território, a legislação desse
Estado poderá subordinar a conservação da nacionalidade, a partir do ano seguinte à data em que o
interessado alcançar a maioridade, ao cumprimento do requisito de residência. naquele momento, no
território do Estado ou de inscrição no registro correspondente.
6. Salvo nos casos aos quais se refere este Artigo, uma pessoa não perderá a nacionalidade de um
Estado Contratante se tal perda puder convertê-la em apátrida, ainda que tal perda não esteja expres-
samente proibida por nenhuma outras disposições da presente Convenção.
Artigo 8
1. Os Estados Contratantes não privarão uma pessoa de sua nacionalidade se essa privação vier a
convertê-la em apátrida.
2. Não obstante o disposto no parágrafo 1 deste Artigo, uma pessoa poderá ser privada da nacionalidade
de um Estado Contratante:
(a) nos casos em que, de acordo com os parágrafos 4 e 5 do Artigo 7, uma pessoa seja passível de perder
sua nacionalidade;
(b) nos casos em que a nacionalidade tenha sido obtida por declaração falsa ou fraude.
3. Não obstante o disposto no parágrafo 1 deste Artigo, os Estados Contratantes poderão conservar o
direito de privar uma pessoa de sua nacionalidade se, no momento da assinatura, ratificação ou adesão,
especificarem que se reservam tal direito por um ou mais dos seguintes motivos, sempre que estes
estejam previstos em sua legislação nacional naquele momento:
a) quando, em condições incompatíveis com o dever de lealdade ao Estado Contratante, a pessoa:
i) apesar de proibição expressa do Estado Contratante, tiver prestado ou continuar prestando serviços
a outro Estado, tiver recebido ou continuar recebendo dinheiro de outro Estado; ou
ii) tiver se conduzido de maneira gravemente prejudicial aos interesses vitais do Estado;

523
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

b) quando a pessoa tiver prestado juramento de lealdade ou tiver feito uma declaração formal de leal-
dade a outro Estado, ou dado provas decisivas de sua determinação de repudiar a lealdade que deve ao
Estado Contratante.
4. Os Estados Contratantes só exercerão o direito de privar uma pessoa de sua nacionalidade, nas
condições definidas nos parágrafos 2 ou 3 do presente Artigo, de acordo com a lei, que assegurará ao
interessado o direito à ampla defesa perante um tribunal ou outro órgão independente.
Artigo 9
Os Estados Contratantes não poderão privar qualquer pessoa ou grupo de pessoas de sua nacionali-
dade por motivos raciais, étnicos, religiosos ou políticos.

2.1.7. Convenção sobre os Direitos das Crianças 19

Artigo 7
1. A criança deve ser registrada imediatamente após seu nascimento e, desde o momento do nasci-
mento, terá direito a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e
ser cuidada por eles.
2. Os Estados Partes devem garantir o cumprimento desses direitos, de acordo com a legislação nacional
e com as obrigações que tenham assumido em virtude dos instrumentos internacionais pertinentes,
especialmente no caso de crianças apátridas.
Artigo 8
1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança de preservar sua identidade,
inclusive a nacionalidade, o nome e as relações familiares, de acordo com a lei, sem interferência ilícitas.
2. Quando uma criança for privada ilegalmente de algum ou de todos os elementos que configuram
sua identidade, os Estados Partes deverão prestar a assistência e a proteção adequadas, visando resta-
belecer rapidamente sua identidade.
Artigo 10
1. De acordo com obrigação dos Estados Partes estipulada no parágrafo 1 do artigo 9, toda solicitação
apresentada por uma criança ou por seus pais para ingressar em um Estado Parte ou sair dele, visando
à reintegração da família, deverá ser atendida pelos Estados Partes de forma positiva, humanitária e
ágil. Os Estados Partes devem assegurar também que a apresentação de tal solicitação não acarrete
consequências adversas para os requerentes ou seus familiares.
2. A criança cujos pais residem em Estados diferentes deverá ter o direito de manter periodicamente
relações pessoais e contato direto com ambos, salvo em circunstâncias especiais. Para tanto, e de
acordo com a obrigação assumida em virtude do parágrafo 1 do artigo 9, os Estados Partes devem
respeitar o direito da criança e de seus pais de sair do país, inclusive do próprio, e de ingressar em seu
próprio país. O direito de sair de qualquer país estará sujeito exclusivamente às restrições determinadas
por lei que sejam necessárias para proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde pública ou
os costumes, ou os direitos e as liberdades de outras pessoas, e que estejam de acordo com os demais
direitos reconhecidos pela presente Convenção.


19
A Convenção sobre os Direitos das Crianças foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990 e inserida no ordenamento jurídico brasi-
leiro pelo Decreto no. 99.710/1990. BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos das
Crianças. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/
d8501.htm. Acesso em: 18 set. 2021.

524
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

2.1.8. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação


contra a Mulher 20

Artigo 9º
1. Os Estados-parte outorgarão às mulheres direitos iguais aos dos homens para adquirir, mudar ou
conservar sua nacionalidade. Garantirão, em particular, que nem o casamento com um estrangeiro,
nem a mudança de nacionalidade do marido durante o casamento modifiquem automaticamente a
nacionalidade da esposa, a convertam em apátrida ou a obriguem a adotar a nacionalidade do cônjuge.
2. Os Estados-parte outorgarão à mulher os mesmos direitos que o homem no que diz respeito à nacio-
nalidade dos filhos.

2.1.9. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalha-


dores Migrantes e dos Membros das suas Famílias21

Artigo 22º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família não podem ser objeto de medidas de
expulsão coletiva. Cada caso de expulsão será examinado e decidido individualmente.
2. Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família só podem ser expulsos do território de um
Estado Parte em cumprimento de uma decisão tomada por uma autoridade competente em confor-
midade com a lei.
3. A decisão deve ser comunicada aos interessados em uma língua que compreendam. A seu pedido,
se não for obrigatório, a decisão será comunicada por escrito e, salvo em circunstâncias excepcionais,
devidamente fundamentada. Os interessados serão informados deste direito antes de a decisão ser
tomada ou, o mais tardar, quando for tomada.
4. Salvo nos casos de uma decisão definitiva emanada de uma autoridade judicial, o interessado tem o
direito de fazer valer as razões que militam contra sua expulsão e de recorrer da decisão perante autori-
dade competente, salvo por imperativos de segurança nacional. Enquanto o seu recurso for apreciado,
tem o direito de procurar obter a suspensão da referida decisão.
5. Se uma decisão de expulsão já executada for subsequentemente anulada, a pessoa interessada tem
direito a obter uma indenização de acordo com a lei, não podendo a decisão anterior ser invocada para
impedi-lo de regressar ao Estado em causa.
6. No caso de expulsão, a pessoa interessada deve ter a possibilidade razoável, antes ou depois da
partida, de obter o pagamento de todos os salários ou prestações que lhe sejam devidos, e de cumprir
eventuais obrigações não executadas.

20
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi ratificada pelo Brasil em 1 de fevereiro o de
1984 e inserida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto no. 4.377/2002. BRASIL. Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002.
Promulga a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto no. 89.460,
de 20 de março de 1984. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/
d4377.htm. Acesso em: 18 set. 2021.


21
A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias não
foi ratificada e tampouco assinada pelo Estado brasileiro. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. International Convention on the
Protection of the Rights of All Migrant Workers and Members of Their Families: Adopted by General Assembly resolution 45/158 of
18 December 1990. 1990. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/cmw.aspx. Acesso em: 18 set. 2021.

525
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

7. Sem prejuízo de execução de uma decisão de expulsão, o trabalhador migrante ou membro de sua
família objeto desta decisão pode solicitar a admissão num Estado diferente do seu Estado de origem.
8. No caso de expulsão, as despesas ocasionadas por esta medida serão suportadas pelo trabalhador
migrante ou membro ae sua família. O interessado pode, no entanto, ser obrigado a custear as
despesas da viagem.
9. A expulsão do Estado de emprego, em si, não prejudica os direitos adquiridos, em conformidade com
a lei desse Estado, pelo trabalhador migrante ou membro da sua família.
Artigo 29º
O filho de um trabalhador migrante tem o direito a um nome, ao registo do nascimento e a
uma nacionalidade.

2.1.10. Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos22

Princípio 12
1. Todo o ser humano tem direito à liberdade e à segurança da sua pessoa. Ninguém deve ser preso ou
detido arbitrariamente.
2. A aplicação prática deste direito no seio dos deslocados pressupõe que os mesmos não devem ser
internados ou confinados a um campo. Se, em circunstâncias excepcionais, tais internamento ou confi-
namentos forem absolutamente necessários os mesmos deverão ser limitados ao período determinado
por tais circunstâncias.
3. Os deslocados internos devem ser protegidos contra a prisão e detenção discriminatória, causadas
pela sua deslocação.
4. Não se pode, de maneira nenhuma, fazer reféns dos deslocados internos.
Princípio 14
1. Todo o deslocado interno tem o direito à liberdade de movimento e a liberdade de escolher
a sua residência.
2. Todo o deslocado tem direito de circular livremente dentro e fora dos campos ou em outras instalações.
Princípio 15
1. Os deslocados internos têm:
a. o direito de procurar segurança numa outra parte do país.
b. o direito de sair do seu país;
c. o direito de procurar asilo num outro país; e
d. o direito de ser protegidos contra o regresso forçado ou a reinstalação em qualquer lugar onde a sua
vida, segurança, liberdade e/ou saúde possam ser colocados em risco.


22
Os Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos são norma de soft law. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
OS REFUGIADOS. Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos: Introdução: metras e objectivos. [2020?]. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Documentos_da_ONU/Principios_orientadores_relativos_aos_des-
locados_internos_1998.pdf. Acesso em: 18 set. 2021.

526
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

2.1.11. Declaração sobre os direitos humanos dos indivíduos que não são nacionais do
país em que vivem23

Artigo 5
1. Os estrangeiros gozarão, conforme a legislação nacional e com sujeição às obrigações internacionais
pertinentes ao Estado no qual se encontrem, em particular, dos seguintes direitos:
a) O direito à vida e à segurança pessoal; nenhum estrangeiro poderá ser arbitrariamente detido nem
preso; nenhum estrangeiro será privado de sua liberdade, salvo pelas causas estabelecidas pela lei e
conforme o procedimento estabelecido nesta.
b) O direito à proteção contra ingerências arbitrárias ou ilegais na intimidade, à família, ao lar ou à
correspondência.
c) O direito à igualdade frente aos tribunais e todos os demais órgãos e autoridades encarregados da
administração da justiça e, caso necessário, à assistência gratuita de um intérprete nas representações
penais e, quando a lei o disponha, em outras atuações.
d) O direito de escolher cônjuge, a casar-se, a fundar uma família.
e) O direito de liberdade de pensamento, de opinião, de consciência e crenças, com sujeição unica-
mente às limitações que a lei prescreva e que sejam necessárias para proteger a segurança públicas, os
direitos e liberdades fundamentais dos demais.
f) O direito a conservar seu próprio idioma, cultura e tradições.
g) O direito a transferir ao exterior seus recebimentos, economias ou outros bens monetários pessoas,
com sujeição às regulamentações monetárias internacionais.
2. À reserva das restrições prescritas pela lei e que sejam necessárias em uma sociedade democrática
para proteger a segurança nacional, a segurança pública, a ordem pública, a saúde ou a moral pública,
os direitos e liberdades dos demais, e sejam compatíveis com os demais direitos reconhecidos nos
instrumentos internacionais pertinentes, assim como com os enunciados na presente Declaração, os
estrangeiros gozarão dos seguintes direitos:
a) O direito de não sair do país.
b) O direito à liberdade de expressão.
c) O direito de reunir-se pacificamente.
d) O direito à propriedade individual ou em associações com outros, sujeitos à legislação nacional.
3. Com sujeição às disposições indicadas no “§ 2”, os estrangeiros que se tenham instalado legalmente
no território de um Estado gozarão do direito de circular livremente e escolher sua residência dentro
das fronteiras desse Estado.


23
A Declaração sobre os direitos humanos dos indivíduos que não são nacionais do país em que vivem é uma norma de soft law. ALTO CO-
MISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS. Declaration on the Human Rights of Individuals who are not nationals
of the country in which they live: Adopted by General Assembly resolution 40/144 of 13 December 1985. 1985. Disponível em: https://
www.un.org/en/genocideprevention/documents/atrocity-crimes/Doc.26_Declaration%20on%20the%20Human%20Rights%20of%20
Individuals%20who%20are%20not%20nationals.pdf. Acesso em: 18 set. 2021.

527
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

4. Com sujeição à legislação nacional e à devida autorização, será permitido que o cônjuge e os filhos
menores sob a responsabilidade de um estrangeiro que resida legalmente no território de um Estado o
acompanhem, se reúnam e permaneçam com ele.

2.1.12. Tratado sobre Direito Penal Internacional 24

Artigo 16
O asilo é inviolável para os perseguidos por delitos políticos, entretanto, o Estado de acolhida tem o
dever de impedir que os asilados realizem, em seu território, atos que coloquem em risco a paz pública
da Nação contra a qual delinquiram.
Artigo 17
O reo de delitos comuns que asilar-se em uma legação deverá ser entregue pelo chefe dela às autoridades
locais, prévia gestão do Ministério de Relações Exteriores, quando no efetuar-se espontaneamente.
Tal asilo será respeitado com relação aos perseguidos por delitos políticos, entretanto o chefe da
legação está obrigado a levar, imediatamente, ao conhecimento do Governo do Estado ante o qual
está acredita, quem poderá exigir que o perseguido seja posto fora do território nacional dentro do
prazo mais breve possível.
O chefe da legação poderá exigir, por sua vez, as garantias necessárias para que o refugiado sai do
território nacional respeitando-se a inviolabilidade de sua pessoa.
O mesmo princípio se observará a respeito de asilados em navios de guerra despachados em
águas territoriais.

2.1.13. Convenção sobre Asilo Territorial 25

Artigo I
Todo Estado tem direito, no exercício de sua soberania, de admitir dentro de seu território as pessoas
que julgar conveniente, sem que, pelo exercício desse direito, nenhum outro Estado possa fazer
qualquer reclamação.
Artigo III
Nenhum Estado é obrigado a entregar a outro Estado ou a expulsar de seu território pessoas perse-
guidas por motivos ou delitos políticos.
Artigo IV
A extradição não se aplica, quando se trate de pessoas que, segundo a classificação do Estado suplicado,
sejam perseguidas por delitos políticos ou delitos comuns cometidos com fins políticos, nem quando a
extradição f8r solicitada obedecendo a motivos predominantemente políticos.

24
O Tratado sobre Direito Penal Internacional não foi ratificado pelo Estado brasileiro. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS.
Tratado sobre derecho penal internacional: Firmado en Montevideo, el 23 de enero de 1889, en el Primer Congreso Sudamericano de
Derecho Internacional Privado, artigo 16. 1889. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/docs/tratado_sobre_derecho_penal_interna-
cional_montevideo_1889.pdf. Acesso em: 11 set. 2021 (Tradução nossa).
25
A Convenção sobre Asilo Territorial foi ratificada pelo Brasil em 14 de janeiro de 1965 e inserida no ordenamento jurídico brasileiro pelo
Decreto no. 55.929/1965. BRASIL. Decreto nº 55.929, de 19 de abril de 1965. Promulga a Convenção sobre Asilo Territorial. Brasília, DF:
Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/d55929.htm. Acesso em: 18 set.
2021.

528
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Artigo VIII
Nenhum Estado tem o direito de pedir a outro Estado que restrinja aos asilados ou refugiados políticos
a liberdade de reunião ou associação que a legislação interna deste reconheça a todos os estrangeiros
dentro do seu território, salvo se tais reuniões ou associações tiverem por objetivo promover o emprego
da forca ou da violência contra o governo do Estado suplicante.
Artigo IX
A pedido do Estado interessado, o país que concedeu refúgio ou asilo procederá à vigilância ou ao
internamento, em distância prudente de suas fronteiras, dos refugiados ou asilados políticos que forem
dirigentes notários de um movimento subversivo, assim como daqueles sobre os quais existam provas
de que se dispõem a incorporar-se no mesmo movimento.
A determinação da distância prudente das fronteiras, para os efeitos de internamento, dependerá do
critério das autoridades do Estado suplicado.
As despesas de toda espécie exigidas pelo internamento de asilados e refugiados políticos correrão por
conta do Estado que o solicitar.

2.1.14. Convenção sobre Asilo Diplomático 26

Artigo I
O asilo outorgado em legações, navios de guerra e acampamentos ou aeronaves militares, a pessoas
perseguidas por motivos ou delitos políticos, será respeitado pelo Estado territorial, de acordo com as
disposições desta Convenção.
Para os fins desta Convenção, legação é a sede de toda missão diplomática ordinária, a residência dos
chefes de missão, e os locais por eles destinados para esse efeito, quando o número de asilados exceder
a capacidade normal dos edifícios.
Os navios de guerra ou aeronaves militares, que se encontrarem provisoriamente em estaleiros, arse-
nais ou oficinas para serem reparados, não podem constituir recinto de asilo.
Artigo II
Todo Estado tem o direito de conceder asilo, mas não se acha obrigado a concedê-lo, nem a
declarar por que o nega.
Artigo III
Não é lícito conceder asilo a pessoas que, na ocasião em que o solicitem, tenham sido acusadas de
delitos comuns, processadas ou condenadas por esse motivo pelos tribunais ordinários compe-
tentes, sem haverem cumprido as penas respectivas; nem a desertores das forças de terra, mar e ar,
salvo quando os fatos que motivarem o pedido de asilo, seja qual for o caso, apresentem claramente
caráter político.
As pessoas mencionadas no parágrafo precedente, que se refugiarem em lugar apropriado para servir
de asilo, deverão ser convidados a retirar-se, ou, conforme o caso, ser entregues ao governo local, o qual
não poderá julgá-las por delitos políticos anteriores ao momento da entrega.


26
A Convenção sobre Asilo Diplomático foi ratificada pelo Brasil em 25 de junho de 1957 e inserida no ordenamento jurídico brasileiro
pelo Decreto no. 42.628/1957. BRASIL. Decreto nº 46.628, de 13 de novembro de 1957. Promulga sobre Asilo Diplomático, assinada em
Caracas a 28 de março de 1984. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1950-1969/D42628.htm. Acesso em: 18 set. 2021.

529
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Artigo IV
Compete ao Estado asilante a classificação da natureza do delito ou dos motivos da perseguição.
Artigo V
O asilo só poderá ser concedido em casos de urgência e pelo tempo estritamente indispensável para
que o asilado deixe o país com as garantias concedidas pelo governo do Estado territorial, a fim de não
correrem perigo sua vida, sua liberdade ou sua integridade pessoal, ou para que de outra maneira o
asilado seja posto em segurança.
Artigo XII
Concedido o asilo, o Estado asilante pode pedir a saída do asilado para território estrangeiro, sendo o
Estado territorial obrigado a conceder imediatamente, salvo caso de força maior, as garantias necessá-
rias a que se refere o Artigo V e o correspondente salvo-conduto.
Artigo XX
O asilo diplomático não estará sujeito à reciprocidade. Toda pessoa, seja qual for sua nacionalidade,
pode estar sob proteção.

2.1.15. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados – 1951 27

Artigo 1º - Definição do termo “refugiado”


A. Para os fins da presente Convenção, o termo “refugiado” se aplicará a qualquer pessoa:
1) Que foi considerada refugiada nos termos dos Ajustes de 12 de maio de 1926 e de 30 de junho de
1928, ou das Convenções de 28 de outubro de 1933 e de 10 de fevereiro de 1938 e do Protocolo de 14 de
setembro de 1939, ou ainda da Constituição da Organização Internacional dos Refugiados;
As decisões de inabilitação tomadas pela Organização Internacional dos Refugiados durante o período
do seu mandato, não constituem obstáculo a que a qualidade de refugiados seja reconhecida a pessoas
que preencham as condições previstas no parágrafo 2 da presente seção;
2) Que, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser
perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra
fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da
proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua
residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor,
não quer voltar a ele.
No caso de uma pessoa que tem mais de uma nacionalidade, a expressão “do país de sua nacionalidade”
se refere a cada um dos países dos quais ela é nacional. Uma pessoa que, sem razão válida fundada
sobre um temor justificado, não se houver valido da proteção de um dos países de que é nacional, não
será considerada privada da proteção do país de sua nacionalidade.
B. 1) Para os fins da presente Convenção, as palavras “acontecimentos ocorridos antes de 1o de janeiro
de 1951”, do art. 1o, seção A, poderão ser compreendidas no sentido de ou


27
A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados foi ratificada pelo Brasil em 15 de novembro de 1960 e inserida no ordenamento jurídico
brasileiro pelo Decreto no. 50.215/1961. BRASIL. Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961. Promulga a Convenção relativa ao Estatuto
dos Refugiados concluída em Genebra, em 28 de julho de 1951. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/d50215.htm. Acesso em: 18 set. 2021.

530
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

a) “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa”; ou


b) “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa ou alhures”;
2) Qualquer Estado Contratante que adotou a fórmula a)poderá em qualquer momento estender as
suas obrigações adotando a fórmula b) por meio de uma notificação dirigida ao Secretário-Geral das
Nações Unidas.
C. Esta Convenção cessará, nos casos abaixo, de ser aplicável a qualquer pessoa compreendida nos
termos da seção A, acima:
1) se ela voltou a valer-se da proteção do país de que é nacional; ou
2) se havendo perdido a nacionalidade, ela a recuperou voluntariamente; ou
3) se adquiriu nova nacionalidade e goza da proteção do país cuja nacionalidade adquiriu; ou
4) se se estabeleceu de novo, voluntariamente, no país que abandonou ou fora do qual permaneceu por
medo de ser perseguido; ou
5) se, por terem deixado de existir as circunstâncias em conseqüência das quais foi reconhecida como
refugiada, ela não pode mais continuar a recusar valer-se da proteção do país de que é nacional;
Contanto, porém, que as disposições do presente parágrafo não se apliquem a um refugiado incluído
nos termos do parágrafo 1 da seção A do presente artigo que pode invocar, para recusar valer-se da
proteção do país de que é nacional, razões imperiosas resultantes de perseguições anteriores;
6) tratando-se de pessoa que não tem nacionalidade, se, por terem deixado de existir as circunstâncias
em conseqüência das quais foi reconhecida como refugiada, ela está em condições de voltar ao país no
qual tinha sua residência habitual;
Contanto, porém, que as disposições do presente parágrafo não se apliquem a um refugiado incluído
nos termos do parágrafo 1 da seção A do presente artigo que pode invocar, para recusar voltar ao país
no qual tinha sua residência habitual, razões imperiosas resultantes de perseguições anteriores.
D. Esta Convenção não será aplicável às pessoas que atualmente se beneficiam de uma proteção ou
assistência da parte de um organismo ou de uma instituição da Nações Unidas que não o Alto Comis-
sário da Nações Unidas para refugiados.
Quando esta proteção ou assistência houver cessado, por qualquer razão, sem que a sorte dessas
pessoas tenha sido definitivamente resolvida de acordo com as resoluções a ela relativas adotadas
pela Assembléia Geral das Nações Unidas, essas pessoas se beneficiarão de pleno direito do regime
desta Convenção.
E. Esta Convenção não será aplicável a uma pessoa considerada pelas autoridades competentes do país
no qual esta pessoa instalou sua residência como tendo os direitos e as obrigações relacionados com a
posse da nacionalidade desse país.
F. As disposições desta Convenção não serão aplicáveis às pessoas a respeito das quais houver razões
sérias para pensar que:
a) elas cometeram um crime contra a paz, um crime de guerra ou um crime contra a humanidade, no
sentido dos instrumentos internacionais elaborados para prever tais crimes;
b) elas cometeram um crime grave de direito comum fora do país de refúgio antes de serem nele
admitidas como refugiados;

531
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

c) elas se tornaram culpadas de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas.
Artigo 26 - Liberdade de movimento
Cada Estado Contratante dará aos refugiados que se encontrem no seu território o direito de nele
escolher o local de sua residência e de nele circular, livremente, com as reservas instituídas pela regula-
mentação aplicável aos estrangeiros em geral nas mesmas circunstâncias.
Artigo 28 - Documentos de viagem
1. Os Estados Contratantes entregarão aos refugiados que residam regularmente no seu território
documentos de viagem destinados a permitir-lhes viajar fora desse território, a menos que a isto se
oponham razões imperiosas de segurança nacional ou de ordem pública; as disposições do Anexo a
esta Convenção se aplicarão a esses documentos. Os Estados Contratantes poderão entregar tal docu-
mento de viagem a qualquer outro refugiado que se encontre no seu território; darão atenção especial
aos casos de refugiados que se encontre em seu território e que não estejam em condições de obter
um documento de viagem do país de sua residência regular.
2. Os documentos de viagem entregues nos termos de acordos internacionais anteriores pelas Partes
nesses acordos serão reconhecidos pelos Estados Contratantes, e tratados como se houvessem sido
entregues aos refugiados em virtude do presente artigo.
Artigo 31 - Refugiados em situação irregular no país de refúgio
1. Os Estados Contratantes não aplicarão sanções penais em virtude da sua entrada ou permanência
irregulares, aos refugiados que, chegando diretamente do território no qual sua vida ou sua liberdade
estava ameaçada no sentido previsto pelo art. 1o, cheguem ou se encontrem no seu território sem auto-
rização, contanto que se apresentem sem demora às autoridades e lhes exponham razões aceitáveis
para a sua entrada ou presença irregulares.
2. Os Estados Contratantes não aplicarão aos deslocamentos de tais refugiados outras restrições que
não as necessárias; essas restrições serão aplicadas somente enquanto o estatuto desses refugiados no
país de refúgio não houver sido regularizado ou eles não houverem obtido admissão em outro país. À
vista desta última admissão os Estados Contratantes concederão a esses refugiados um prazo razoável,
assim como todas as facilidades necessárias.
Artigo 32 - Expulsão
1. Os Estados Contratantes não expulsarão um refugiado que se encontre regularmente no seu terri-
tório senão por motivos de segurança nacional ou de ordem pública.
2. A expulsão desse refugiado somente ocorrerá em virtude de decisão proferida conforme o processo
previsto por lei. A não ser que a isso se oponham razões imperiosas de segurança nacional, o refugiado
deverá ter permissão de fornecer provas que o justifiquem, de apresentar um recurso e de se fazer
representar para esse fim perante uma autoridade competente ou perante uma ou várias pessoas espe-
cialmente designadas pela autoridade competente.
3. Os Estados Contratantes concederão a tal refugiado um prazo razoável para procurar obter admissão
legal em outro país. Os Estados Contratantes podem aplicar, durante esse prazo, a medida de ordem
interna que julgarem oportuna.
Artigo 33 - Proibição de expulsão ou de rechaço
1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as
fronteiras dos territórios em que a sua vida

532
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo
social a que pertence ou das suas opiniões políticas.
2. O benefício da presente disposição não poderá, todavia, ser invocado por um refugiado que por
motivos sérios seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontre ou que,
tendo sido condenado definitivamente por crime ou delito particularmente grave, constitui ameaça
para a comunidade do referido país.
Artigo 34 - Naturalização
Os Estados Contratantes facilitarão, na medida do possível, a assimilação e a naturalização dos refu-
giados. Esforçar-se-ão notadamente para acelerar o processo de naturalização e reduzir, na medida do
possível, as taxas e despesas desse processo.

2.1.16. Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos Refugiados – 1967 28

Artigo 1
Disposições Gerais
§1. Os Estados Membros no presente Protocolo comprometer-se-ão a aplicar os artigos 2 a 34, inclusive,
da Convenção aos refugiados, definidos a seguir.
§2. Para os fins do presente Protocolo, o termo «refugiado», salvo no que diz respeito à aplicação do §3
do presente artigo, significa qualquer pessoa que se enquadre na definição dada no artigo primeiro da
Convenção, como se as palavras «em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1o de janeiro
de 1951 e...» e as palavras «...como conseqüência de tais acontecimentos» não figurassem do §2 da seção
A do artigo primeiro.
O presente Protocolo será aplicado pelos Estados Membros sem nenhuma limitação geográfica; entre-
tanto, as declarações já feitas em virtude da alínea “a” do §1 da seção B do artigo1 da Convenção apli-
car-se-ão, também, no regime do presente Protocolo, a menos que as obrigações do Estado declarante
tenham sido ampliadas de conformidade com o §2 da seção B do artigo 1 da Convenção.

2.1.17. Declaração de Cartagena – 1984 29

Terceira
Reiterar que, face à experiência adquirida pela afluência em massa de refugiados na América Central,
se toma necessário encarar a extensão do conceito de refugiado tendo em conta, no que é pertinente,
e de acordo com as características da situação existente na região, o previsto na Convenção da OUA
(artigo 1., parágrafo 2) e a doutrina utilizada nos relatórios da Comissão Interamericana dos Direitos
Humanos. Deste modo, a definição ou o conceito de refugiado recomendável para sua utilização na
região é o que, além de conter os elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere
também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança


28
O Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados foi ratificada pelo Brasil em 7 de abril de 1972 o e inserido no ordenamento jurídico brasileiro
pelo Decreto no. 70.946/1972. BRASIL. Decreto nº 70.946, de 7 de agosto de 1972. Promulga o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugia-
dos. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D70946.htm.
Acesso em: 18 set. 2021.
29
Por se tratar de uma declaração, este instrumento não foi ratificado pelo Estado brasileiro. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS
PARA REFUGIADOS. Declaração de Cartagena: Conclusões e recomendações. [2020?]. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/
Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf. Acesso em: 18 set. 2021.

533
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos
internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado
gravemente a ordem pública.
Quinta
Reiterar a importância e a significação do princípio de non-refoulement (incluindo a proibição da
rejeição nas fronteiras), como pedra angular da proteção internacional dos refugiados. Este princípio
imperativo respeitante aos refugiados, deve reconhecer-se e respeitar-se no estado atual do direito
internacional, como um princípio de jus cogens.

2.1.18. Convenção Interamericana contra o Terrorismo 30

Artigo 12
Denegação da condição de refugiado 
Cada Estado Parte adotará as medidas cabíveis, em conformidade com as disposições pertinentes do
direito interno e internacional, para assegurar que não se reconheça a condição de refugiado a pessoas
com relação às quais haja motivos fundados para considerar que cometeram um delito estabelecido
nos instrumentos internacionais enumerados no Artigo 2 desta Convenção. 
Artigo 13 - Denegação de asilo  
Cada Estado Parte adotará as medidas cabíveis, em conformidade com as disposições pertinentes do
direito interno e internacional, a fim de assegurar que não se conceda asilo a pessoas com relação às
quais existam motivos fundados para se considerar que cometeram um delito estabelecido nos instru-
mentos internacionais enumerados no Artigo 2 desta Convenção

2.1.19. Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura 31

Artigo 11
Os Estados Partes tomarão as medidas necessárias para conceder a extradição de toda pessoa acusada
de delito de tortura ou condenada por esse delito, de conformidade com suas legislações nacionais
sobre extradição e suas obrigações internacionais nessa matéria.
Artigo 13
O delito a que se refere o artigo 2 será considerado incluído entre os delitos que são motivo de extra-
dição em todo tratado de extradição celebrado entre Estados Partes. Os Estados Partes comprome-
tem-se a incluir o delito de tortura como caso de extradição em todo tratado de extradição que cele-
brarem entre si no futuro.

30
A Convenção Interamericana contra o Terrorismo foi ratificada pelo Brasil em 25 de outubro de 2005 e inserida no ordenamento jurídico
brasileiro pelo Decreto no. 5.639/2005. BRASIL. Decreto nº 5.639, de 26 de dezembro de 2005. Promulga a Convenção Interamericana
contra o Terrorismo assinada em Barbados, em 3 de junho de 2002. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5639.htm. Acesso em: 18 set. 2021.


31
A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura foi ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989 e inserida no ordenamento
jurídico brasileiro pelo Decreto no. 98.386/1989. BRASIL. Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989. Promulga a Convenção In-
teramericana para Prevenir e Punir a Tortura. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto/1980-1989/D98386.htm. Acesso em: 18 set. 2021.

534
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Todo Estado Parte que sujeitar a extradição à existência de um tratado poderá, se receber de outro
Estado Parte, com o qual não tiver tratado, uma solicitação de extradição, considerar esta Convenção
como a base jurídica necessária para a extradição referente ao delito de tortura. A extradição estará
sujeita às demais condições exigíveis pelo direito do Estado requerido.
Os Estados Partes que não sujeitarem a extradição à existência de um tratado reconhecerão esses
delitos como casos de extradição entre eles, respeitando as condições exigidas pelo direito do
Estado requerido.
Não se concederá a extradição nem se procederá à devolução da pessoa requerida quando houver
suspeita fundada de que corre perigo sua vida, de que será submetida à tortura, tratamento cruel, desu-
mano ou degradante, ou de que será julgada por tribunais de exceção ou ad hoc, no Estado requerente.
Artigo 14
Quando um Estado Parte não conceder a extradição, submeterá o caso às suas autoridades compe-
tentes, como se o delito houvesse sido cometido no âmbito de sua jurisdição, para fins de investigação
e, quando for cabível, de ação penal, de conformidade com sua legislação nacional. A decisão tomada
por essas autoridades será comunicada ao Estado que houver solicitado a extradição.
Artigo 15
Nada do disposto nesta Convenção poderá ser interpretado como limitação do direito de asilo, quando
for cabível, nem como modificação das obrigações dos Estados Partes em matéria de extradição.

2.1.20. Convenção contra a Tortura e Outros Tratamento ou Penas Cruéis, Desumanos


ou Degradantes 32

Artigo 3º
1. Nenhum Estado Parte procederá à expulsão, devolução ou extradição de uma pessoa para outro Estado
quando houver razões substanciais para crer que a mesma corre perigo de ali ser submetida a tortura.
2. A fim de determinar a existência de tais razões, as autoridades competentes levarão em conta todas
as considerações pertinentes, inclusive, quando for o caso, a existência, no Estado em questão, de um
quadro de violações sistemáticas, graves e maciças de direitos humanos.
Artigo 8º
1. Os crimes a que se refere o Artigo 4° serão considerados como extraditáveis em qualquer tratado de
extradição existente entre os Estados Partes. Os Estados Partes obrigar-se-ão a incluir tais crimes como
extraditáveis em todo tratado de extradição que vierem a concluir entre si.
2. Se um Estado Parte que condiciona a extradição à existência de tratado de receber um pedido de
extradição por parte do outro Estado Parte com o qual não mantém tratado de extradição, poderá
considerar a presente Convenção com base legal para a extradição com respeito a tais crimes. A extra-
dição sujeitar-se-á às outras condições estabelecidas pela lei do Estado que receber a solicitação.


32
A Convenção contra a Tortura e Outros Tratamento ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes foi ratificada pelo Brasil em 28 de
setembro de 1989 e inserida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto no. 40/1991. BRASIL. Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de
1991. Promulga a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamento ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Brasília, DF: Presidên-
cia da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm. Acesso em: 18 set. 2021.

535
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3. Os Estado Partes que não condicionam a extradição à existência de um tratado reconhecerão,


entre si, tais crimes como extraditáveis, dentro das condições estabelecidas pela lei do Estado que
receber a solicitação.
4. O crime será considerado, para o fim de extradição entre os Estados Partes, como se tivesse ocorrido
não apenas no lugar em que ocorreu, mas também nos territórios dos Estados chamados a estabele-
cerem sua jurisdição, de acordo com o parágrafo 1 do Artigo 5º.

2.1.21. Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, rela-


tivo à proteção das pessoas vítimas de conflitos armados sem carácter internacional
(Protocolo II) 33

Artigo 17 – Proibição dos Deslocamentos forçados de civis


1. Não se poderá ordenar o deslocamento da população civil por razões relacionadas com o conflito,
a não ser que assim o exijam a segurança dos civis ou razões militares imperiosas. Caso esse deslo-
camento deva ser efetuado serão tomadas todas as medidas possíveis para que a população civil seja
acolhida em condições satisfatórias de alojamento, salubridade, higiene, segurança e alimentação.
2. Os civis não poderão ser forçados a abandonar seu próprio território por razões relacionadas
com o conflito.

2.2. Normativa interna brasileira

2.2.1. Constituição Federal

Artigo 4º
A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
X – concessão de asilo político
Artigo 5
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos seguintes termos:
XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos
da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
LI – nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes
da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins,
na forma da lei;
LII – não será concedida a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião;


33
O Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra foi ratificado pelo Brasil em 5 de maio de 1992 e inserida no ordenamento jurídico
brasileiro pelo Decreto no. 849/1993. BRASIL. Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993. Promulga os Protocolos I e II de 1977 adicionais
às Convenções de Genebra de 1949, adotados em 10 de junho de 1977 pela Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvol-
vimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0849.htm. Acesso em: 18 set. 2021.

536
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Artigo 12
São brasileiros:
I - natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não
estejam a serviço de seu país;
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a
serviço da República Federativa do Brasil;
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em
repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em
qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira; 
II - naturalizados:
a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de
língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;
b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de
quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira. 
§ 1º Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasi-
leiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta Constituição.
§ 2º A lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos
previstos nesta Constituição.
§ 3º São privativos de brasileiro nato os cargos:
I - de Presidente e Vice-Presidente da República;
II - de Presidente da Câmara dos Deputados;
III - de Presidente do Senado Federal;
IV - de Ministro do Supremo Tribunal Federal;
V - da carreira diplomática;
VI - de oficial das Forças Armadas.
VII - de Ministro de Estado da Defesa.
§ 4º - Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que:
I - tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao
interesse nacional;
II - adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos:
a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira;   
b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em estado estran-
geiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis; 

537
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3. DIREITO À NACIONALIDADE

3.1. Alcance do direito à nacionalidade, limites e


prerrogativas dos Estados

A nacionalidade consiste no vínculo jurídico-político que estabelece um elo entre um indivíduo e um


Estado. 34 A Corte Internacional de Justiça (CIJ) no julgamento do caso Nottebohm - Liechtestein v.
Guatemala reconheceu que a nacionalidade é o vínculo genuíno que um indivíduo possui em relação
a determinado Estado. Desta forma, nacionalidade seria “o vínculo legal que tem sua base em um fato
social de enraizamento, uma conexão genuína de existência e sentimentos, junto com a existência de
deveres e direitos recíprocos, podendo esta ser reconhecida por lei ou por ato e autoridade. 35
Nesse contexto, embora o DIDH estabeleça que os Estados são responsáveis por todos os indivíduos
sujeitos a sua jurisdição, sejam eles seus nacionais, sejam eles estrangeiros, o direito internacional clás-
sico e o direito constitucional têm conferido aos Estados ampla soberania para legislar sobre a nacio-
nalidade de seus indivíduos. Desta forma, apenas o Estado pode estabelecer os critérios pelos quais
alguém se torna “seu” nacional. 36
Não obstante, o direito internacional consolidou que a atribuição de nacionalidade não é um tema
regulado exclusivamente pelo direito interno, podendo ser “revisado” pelos demais Estados quando
afetar tratados e costumes internacionais. Assim, a Corte Permanente de Justiça Internacional ao posi-
cionar-se sobre a Opinião Consultiva sobre Nationality Decress Issued in Tunis and Marocco afirmou
que o “domínio reservado”, isto é, a competência absoluta dos Estados em matéria de nacionalidade
está limitada por suas obrigações internacionais. 37
No mesmo sentido, a Corte IDH tem consolidado que os Estados possuem prerrogativas de sua política
migratória, 38 do controle e do ingresso a seus territórios, 39 assim como da elaboração de normas relacio-
nadas com a concessão de nacionalidade.40 Contudo, devem adequar tais políticas de modo que elas
sejam compatíveis com suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.41

34
REIS, Rossana Rocha. Soberania, direitos humanos e migrações internacionais. Revista brasileira de ciências sociais, São Paulo, v. 19. n.
55, p, 150-163, 2004.
35
INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Nottebohm case (Liechtenstein v. Guatemala): Merits. Julgado em 6 abr. 1955. 1955. pár. 23.
Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/18/018-19550406-JUD-01-00-EN.pdf Acesso em: 4 set. 2021.
36
BROWNLIE, Ian. Principles of International Law. 6 ed. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 373.
37
PERMANENT COURT OF INTERNATIONAL JUSTICE. Advisory Opinion No. 4: File F. c. V. Docket II. 1. Julgado em 7 febr. 1923. 1923. p.
23-24. Disponível em: https://www.refworld.org/cases,PCIJ,44e5c9fc4.html. Acesso em: 4 set. 2021.
38
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Vélez Loor Vs. Panamá: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. [S.l.]: OEA, 2010. par. 97. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_218_esp2.pdf. Acesso em: 26 out.
2022.
39
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Propuesta de modificación a la Constitución Política de Costa Rica relaciona-
da con la naturalización: Opinión Consultiva OC-4/84 de 19 de enero de 1984. [S.l.]: OEA, 1984. par. 39. Disponível em: https://adsdataba-
se.ohchr.org/IssueLibrary/CIDH_Opini%C3%B3n%20Consultiva_OC%204-84.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
40
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Vélez Loor Vs. Panamá: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. [S.l.]: OEA, 2010. par. 100. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_218_esp2.pdf. Acesso em: 26 out.
2022.


41
INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS. Migration and International Human Rights Law. [S.l.]: [s.n.], 2014, p. 50.

538
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Com efeito, diferentes normas (hard e soft law) de DIDH reconhecem o direito à nacionalidade, reco-
nhecendo não só o direito de todo o indivíduo a ter uma nacionalidade, como o direito a não ser privado
dela.42 Previsto em documentos como a DUDH (artigo 15), a DADDH (artigo XIX), o PIDCP e a CADH
(artigo 20), o direito à nacionalidade abrange o direito a adquirir uma nacionalidade, o direito a não ser
privado arbitrariamente de uma nacionalidade e o direito a alterar de nacionalidade.43
Conforme estabelecido pela Corte IDH no Caso de las niñas Yean y Bosico vs. República Dominicana,
o direito à nacionalidade possui um duplo aspecto, abrange tanto o direito a ter uma nacionalidade,
quanto o direito do indivíduo a não ser privado dela. Tal aspecto se relaciona ao fato de que a nacio-
nalidade é fator que sustenta uma gama de direitos políticos e civis. Dessa forma, os Estados têm a
obrigação positiva de proteger os indivíduos de não serem privados de sua nacionalidade de forma
arbitrária.44 Isto porque, o direito à nacionalidade representa o elo jurídico entre uma pessoa e um
estado, sendo condição indispensável para o exercício de determinados direitos, vinculando-se ao
reconhecimento da personalidade jurídica de um indivíduo, 45 e sendo sua violação uma hipótese de
violação continuada de direitos humanos.

3.2. Hipóteses de aquisição e de perda de nacionalidade

A prática dos Estados demonstra que, em regra, eles exercem sua prerrogativa para legislar em
matéria de nacionalidade seguindo determinados critérios. Assim, partem de uma concepção clássica
de que a nacionalidade pode ser originária (primária ou atribuída) ou derivada (secundária, adqui-
rida ou de eleição).
A nacionalidade originária é aquela atribuída ao indivíduo ao nascer, sendo, portanto, involuntária e
diretamente relacionada aos critérios de jus solis e/ou jus sanguinis, cabendo aos Estados a compe-
tência para estabelecer qual ou quais critérios utilizarão. Nos casos de nacionalidade baseada no critério
de jus solis, leva-se em conta o local do nascimento dos indivíduos para determinação de sua naciona-
lidade; enquanto na hipótese de nacionalidade baseada no jus sanguinis, considera-se tão somente a
nacionalidade dos pais à época do nascimento do sujeito para defini-la.
A DUDH (artigo 15) expressa o direito de toda a pessoa à nacionalidade. Entretanto, não indica as obriga-
ções que os Estados devem adotar para garantir esse direito. Por outro lado, a CADH (artigo 20.2), reco-
nhece a obrigação dos Estados de adotar o critério do ius solis para garantir o direito à nacionalidade.
O artigo 12 da CRFB/88 estabelece hipóteses exaustivas e taxativas de aquisição de nacionalidade origi-
nária, reconhecendo a aplicação tanto do critério jus solis, quanto do jus sanguinis. Na hipótese de
aplicação do ius solis, são considerados brasileiros natos aqueles que nascem em território nacional,
independentemente da nacionalidade de seus pais, salvo se o nascido em território brasileiro é filho de
pais estrangeiros e qualquer um deles se encontrar a serviço de seu país de origem. Por outro lado, ao
aplicar o ius sanguinis, o texto constitucional reconhece como brasileiros natos os filhos de brasileiro(a)


42
WEISSBRODT, David; COLLINS, Clay. The Human Rights of Stateless Personas. Human Rights Quarterly, Baltimore, v. 28, n. 1, p. 245-276,
2006. p. 245-246.
43
O’DONNELL, Daniel. Derecho Internacional de los Derechos Humanos: normativa, jurisprudencia y doctrina de los Sistemas Universal
e Interamericano. 2 ed. México, D.F.: Tribunal Superior de Justicia del Distrito Federal, 2012, p. 599-600.
44
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de las niñas Yean y Bosico Vs. República Dominicana: Sentencia de 8 de
septiembre de 2005. [S.l.]: OEA, 2005. par. 139. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_130_esp.pdf. Acesso
em: 26 out. 2022.
45
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de las niñas Yean y Bosico Vs. República Dominicana: Sentencia de 8 de
septiembre de 2005. [S.l.]: OEA, 2005. par. 167. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_130_esp.pdf. Acesso
em: 26 out. 2022.

539
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

nascido no exterior cujos pais estão a serviço do Brasil, e os filhos de brasileiro(a) nascido no exterior
que seja registrado em repartição brasileira competente, ou que passe a residir no Brasil e opte após a
maioridade pela nacionalidade brasileira.
Por sua vez, a nacionalidade derivada é verificada somente após o nascimento e, em determinados
casos, é considerada uma escolha do indivíduo, podendo ser realizada por meio de processos de natu-
ralização, 46 ou por outros meios legalmente previstos, como, por exemplo, casamentos.47
O reconhecimento da nacionalidade por meio de um processo de naturalização confere ao indivíduo
a condição de nacional, porém não exige que o Estado lhe garanta os mesmos direitos garantidos ao
nacional “nato”, podendo, assim, estabelecer diferenças em relação ao acesso a cargos públicos, 48
como é o caso do artigo 12, § 3º, da CRFB/88. Nesse sentido, a Corte IDH reconheceu em sua Opinião
Consultiva no. 4/84 que os Estados têm a faculdade de estabelecer as condições e procedimentos para
a aquisição da nacionalidade derivada, como o conhecimento de seu idioma, história, valores.49
A segunda parte do artigo 12 da CRFB/88 segue os estândares referidos e reconhece duas hipóteses
de naturalização. A primeira reconhece a possibilidade de os originários de países lusófonos que apre-
sentem idoneidade moral adquirirem a nacionalidade brasileira após um ano de residência ininterrupta
no Brasil; enquanto a segunda se aplica a estrangeiros não lusófonos e lhes exige residência ininterrupta
de quinze anos no país e que não tenham condenação penal. Complementarmente, a Lei n. 13.445/17
(Lei de Migrações)50 reconhece quatro hipóteses de naturalização: ordinária, extraordinária, especial e
ou provisória, enquanto o Decreto n. 9.199/17 (que regulamentou a Lei de Migrações), 51 estabelece o
procedimento de naturalização, estabelecendo que sua concessão é competência exclusiva o Minis-
tério da Justiça e Segurança Pública.

3.3. Privação da nacionalidade e o fenômeno da apatridia

3.3.1. Apatridia

Embora o DIDH reconheça que a nacionalidade é um direito humano, a mesma pode ser perdida
por ação deliberada do Estado de origem ou, ainda, pela existência de conflitos positivo e negativo

46
ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento; CASSELA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público. 20 ed. São Paulo:
Saraiva, 2012; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção para a redução dos casos apatridia. 1961. art. 1. Disponível em: https://
www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_para_a_Reducao_dos_Casos_de_Apatridia_de_1961.pdf. Acesso em:
4 set. 2021.
47
O’DONNELL, Daniel. Derecho Internacional de los Derechos Humanos: normativa, jurisprudencia y doctrina de los Sistemas Universal
e Interamericano. 2 ed. México, D.F.: Tribunal Superior de Justicia del Distrito Federal, 2012, p. 601.
48
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de las niñas Yean y Bosico Vs. República Dominicana: Sentencia de 8
de septiembre de 2005. [S.l.]: OEA, 2005. par. 165, 166. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_130_esp.pdf.
Acesso em: 26 out. 2022.
49
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Propuesta de modificación a la Constitución Política de Costa Rica relacio-
nada con la naturalización: Opinión Consultiva OC-4/84 de 19 de enero de 1984. [S.l.]: OEA, 1984. par. 36, 42, 48. Disponível em: https://
www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_04_esp.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
50
BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em: 4 set. 2021.
51
BRASIL. Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017. Regulamenta a Lei no. 13.445, de 24 de maio de 2017, que institui a Lei de
Migração. artigos 218 a 246. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2017/decreto/d9199.htm. Acesso em: 4 set. 2021.

540
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

de nacionalidade. 52 O primeiro ocorre quando há a cumulação de dois ou mais critérios de nacionali-


dade originária e que culminam na possibilidade de uma pessoa possuir mais de uma nacionalidade;53
enquanto o segundo resulta na ausência de nacionalidade, conhecido como “apatridia”.
De acordo com a definição estabelecia na Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1951, é
considerada apátrida “toda pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua
legislação, como seu nacional.” 54 Segundo o ACNUR, a apatridia decorre de diferentes razões,
incluindo discriminação contra grupos étnicos e religiosos, discriminação baseada no gênero, conflitos
armados, surgimento de novos Estados e sucessão de Estados até então existentes, conflitos entre
normas domésticas55.
Para a Corte IDH, a apatridia é uma condição de extrema vulnerabilidade, devendo os Estados identi-
ficá-la, preveni-la e reduzi-la, assim como proteger a pessoa apátrida. 56 Sobre o tema, o CDH da ONU,
em sua Observação Geral no. 17 sobre o artigo 24 do Pacto de Direitos Civis e Políticos, manifestou que
os Estados devem adotar medias de cooperação entre eles a fim de erradicar a apatridia. 57
Tanto o PIDCP (artigo 24), quanto a CADH (artigo 20.2) indicam que o critério de ius solis deve ser apli-
cado àqueles e àquelas que nascem em determinado Estado na hipótese de que não tenham direito à
nacionalidade decorrente do ius sanguinis. Complementarmente, a Convenção para Reduzir os Casos
de Apatridia, obriga os Estados parte a permitir a aquisição da nacionalidade por jus solis e por jus
sanguinis àquelas pessoas que de outro modo seriam apátridas. Logo, seria possível afirmar que esses
tratados estabelecem quais seriam as obrigações dos Estados para garantir o direito à nacionalidade.
Desta forma, a Corte IDH manifestou no Caso de las niñas Yean y Bosico vs, República Dominicana,
que os Estados têm a obrigação de não adotar normas e práticas, relativas ao reconhecimento da nacio-
nalidade, que favoreçam a apatridia. 58 Conforme indicado no caso Personas Dominicanas e Haitianas
expulsadas Vs. República Dominicana, o “nascimento” de um indivíduo é o momento que os Estados
devem implementar medidas para garantir o direito à nacionalidade erradicar a apatridia. 59 Isto é, a
condição do nascimento em determinado Estado é a única que deve ser demonstrada para a aquisição

52
PEREIRA, Gustavo Oliveira de Lima. A pátria dos sem pátria: direitos humanos & alteridade. Porto Alegre: Ed. UniRitter, 2011, p. 47.
53
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
54
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre o estatuto dos apátridas. 1954. art. 1. Disponível em: https://www.acnur.org/
fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_sobre_o_Estatuto_dos_Apatridas_de_1954.pdf. Acesso em 4 set. 2021, art. 1
55
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. Statelessness Around the World. [2020?]. Disponível em: https://
www.unhcr.org/en-us/statelessness-around-the-world.html. Acesso em: 4 set. 2021.
56
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Derechos y garantías de niñas y niños en el contexto de la migración y/o en
necesidad de protección internacional: Opinión Consultiva OC-21/14 de 19 de agosto de 2014. [S.l.]: OEA, 2014. par. 94. Disponível em:
https://www.acnur.org/5b6ca2644.pdf. Acesso em: 26 out. 2022; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de las niñas
Yean y Bosico Vs. República Dominicana: Sentencia de 8 de septiembre de 2005. [S.l.]: OEA, 2005. par. 142. Disponível em:https://www.
corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_130_esp.pdf. Acesso em: 26 out. 2022; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.
Caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Dominicana: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. [S.l.]: OEA, 2014. par. 257. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_282_esp.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.


57
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. CCPR General Comment Nº 17: Article 14 (Rights of the chil): Adopted at the Thirty-fifth session
of the Human Rights Committee, on 7 April 1989. 1989. par. 8. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/45139b464.html. Acesso em:
26 out. 2022.
58
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de las niñas Yean y Bosico Vs. República Dominicana: Sentencia de 8 de
septiembre de 2005. [S.l.]: OEA, 2005. par. 142. Disponível em:https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_130_esp.pdf. Acesso
em: 26 out. 2022.
59
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Domini-
cana: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. [S.l.]: OEA, 2014. par. 258. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_282_esp.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.

541
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

de nacionalidade, em relação às pessoas que não teriam direito a outra nacionalidade.60 Logo, quando
não há certeza de que a criança nascida no território de um Estado tem ou terá direito à nacionali-
dade por via de ius sanguinis, o Estado onde ela nasceu tem o dever de conceder a nacionalidade, para
evitar a apatridia.61
No Brasil, em 1994, a Emenda Constitucional no. 362 alterou a redação do artigo 12, I, c, da Constituição
estabelecendo que eram brasileiros natos: “os nascidos no estrangeiro, de pai ou mãe brasileira, desde
que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionali-
dade brasileira.” Essa redação permitiu que os filhos de brasileiro ou brasileira nascidos em um Estado
que adotasse o critério de jus sanguini e não fossem ao Brasil e optassem pela nacionalidade brasileira,
fossem apátridas.63 O tema foi resolvido com a promulgação da Emenda Constitucional no. 54/2007,64
que criou hipóteses para aquisição de naturalidade originária brasileira aos filhos de pais brasileiros
nascidos no exterior. Assim, adequou-se o texto constitucional aos tratados de direitos humanos
voltados à erradicação da apatridia.
No âmbito infraconstitucional, o artigo 26 da Lei de Migrações e o artigo 96 do Decreto no. 9.199/17
estabelecem o procedimento para o reconhecimento da condição de apátrida, bem como um processo
simplificado de naturalização. Além de reconhecer os direitos e garantias previstos na Convenção sobre
o Estatuto dos Apátridas e na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, tais normas estabelecem
um processo de reconhecimento da condição de apatridia voltado a identificar se o solicitante é consi-
derado nacional por algum Estado e permite que o apátrida solicite a naturalização brasileira e, caso
assim não deseje, lhe permite residir de forma definitiva no território nacional.65 Em 2018, as irmãs Maha
e Souad Mamo foram as primeiras pessoas a terem a condição de apátridas reconhecida pelo governo
brasileiro, bem como sua posterior naturalização em conformidade com a Lei de Migrações.66 Poste-
riormente, em 2020, o STF reconheceu novo caso de apatridia de Andrimana Buyoya Habizumana. No

60
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de las niñas Yean y Bosico Vs. República Dominicana: Sentencia de 8 de
septiembre de 2005. [S.l.]: OEA, 2005. par. 156. Disponível em:https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_130_esp.pdf. Acesso
em: 26 out. 2022.; CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs.
República Dominicana: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. [S.l.]: OEA, 2014. par. 260. Disponível em: https://cortei-
dh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_282_esp.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
61
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Domini-
cana: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. [S.l.]: OEA, 2014. par. 261. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_282_esp.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
62
BRASIL. Emenda constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103,
104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A,
e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
emendas/emc/emc45.htm. Acesso em: 4 set. 2021.
63
SANT’ANNA, Luma Goularte; ROSSO, Maria Fernanda Pereira. Brasileirinhos apátridas: o caso dos filhos de brasileiros nascidos no
exterior. Revista de Direito Brasileira, Florianópolis, v.1, n.1, p. 453-467, 2011.
64
BRASIL. Emenda constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103,
104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A,
e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
emendas/emc/emc45.htm. Acesso em: 4 set. 2021.
65
BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em: 4 set. 2021; BRASIL. Decreto nº 9.199, de 20 de no-
vembro de 2017. Regulamenta a Lei no. 13.445, de 24 de maio de 2017, que institui a Lei de Migração. Brasília, DF: Presidência da República,
[2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9199.htm. Acesso em: 4 set. 2021.
66
BRASIL. Portaria da SNJ nº 290, de 27 de setembro de 2018. 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-con-
tent-1538659939.43/anexos/portaria-souad-mamo.pdf. Acesso em: 4 set. 2021; BRASIL. Portaria da SNJ nº 289, de 27 de setembro de 2018.
2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1538659939.43/anexos/portaria-maha-mamo.pdf.. Acesso
em: 4 set. 2021.

542
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

âmbito do Recurso Extraordinário no. 844.744/RN, o STF afirmou que ante a ausência de documentação
comprobatória de nacionalidade configura-se a hipótese de “apatridia imprópria”.67

3.3.2. Hipóteses de privação de nacionalidade

Por outro lado, deve-se destacar que os Estados têm a prerrogativa de privar um indivíduo de sua
nacionalidade, desde que observadas as disposições internacionais sobre o tema. A respeito, a DUDH,
a DADDH e a CADH determinam que a privação da nacionalidade não pode ser executada de forma
arbitrária, e, em especial, a CADH prevê que o direito à nacionalidade não pode ser suspenso em estado
de emergência. A Convenção para redução dos casos de Apatridia estabelece que um Estado não pode
privar um indivíduo de sua nacionalidade se essa privação levar à apatridia.
No caso Ivcher Brontein vs. Peru, a Corte IDH consolidou que a perda de nacionalidade por motivos não
previstos na legislação interna viola o direito à nacionalidade.68 Por sua vez, a CIDH já se posicionou no
sentido de que a perda de nacionalidade fundamentada no fato de o nacional sair de seu país de origem
ocasiona uma grave violação não só ao direito de residência, como ao direito de circulação e trânsito.69
Já o CDH estabeleceu em sua Observação Geral no. 27, que a privação da nacionalidade pode implicar
a privação de entrar e sair do país70.
Com efeito, a CRFB/88 estabelece duas hipóteses de perda de nacionalidade brasileira em seu artigo
12, § 4º. A primeira diz respeito ao cancelamento de naturalização, por sentença judicial, em virtude de
atividade nociva ao interesse nacional; já a segunda reconhece que perderá a nacionalidade aquele
indivíduo que adquirir outra nacionalidade, o que alcança tanto brasileiros natos quanto naturalizados,
salvo na hipótese de reconhecimento de outra nacionalidade originária ou de imposição de naturali-
zação, por lei estrangeira como condição de permanência no território estrangeiro ou para exercício de
direitos civis.
A respeito, a Primeira Turma do STF julgou o mandado de segurança - MS 33.864 e, por maioria, reco-
nheceu a perda da nacionalidade de brasileira nata, em razão de procedimento administrativo regular
que lhe conferiu nacionalidade estadunidense. No caso, o STF afirmou que a perda de nacionalidade
abrange não só brasileiros naturalizados, como natos, reconheceu que a impetrante não necessitava
naturalizar-se estadunidense para ter reconhecido seus direitos e tampouco a naturalização decorreu
de forma originária por meio de seu casamento com um nacional estadunidense. O caso se tornou
paradigmático, pois trata-se da primeira brasileira nata extraditada do país. Em seu voo divergente,
o Ministro Edson Fachin apontou que a perda da nacionalidade brasileira resultaria na extradição da
impetrante, que era acusada de crime de homicídio nos Estados Unidos da América, o que, para ele,
contraria i artigo 5º , LI, a Constituição, o que foi refutado pelo Relator, Ministro Luis Roberto Barroso,

BRASIL. Recurso Extraordinário 844.744 Rio Grande do Norte. 2001. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.
67

asp?id=15343252314&ext=.pdf. Acesso em: 9 maio 2022.


68
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ivcher Bronstein Vs. Perú: Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de
febrero de 2001. [S.l.]: OEA, 2001. par. 95-97. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_74_esp.pdf. Acesso em:
26 out. 2022.
69
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. La situación de los derechos humanos en Cuba: Septimo Informe. OEA/
Ser.L/V/II.91. [S.l.]: OEA, 1983. par. 42. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Cuba2020-es.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
70
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. CCPR General Comment No. 27: Article 12 (Freedom of Movement): Adopted at the Six-
ty-seventh session of the Human Rights Committee, on 2 November 1999. 1999. par. 21. Disponível em: https://www.refworld.org/pdfi-
d/45139c394.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.

543
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

que afirmou que como a impetrante perdera a nacionalidade brasileira no momento em que se natura-
lizou estadunidense, não havia restrições de que fora extraditada. 71
Em 24 de junho de 2021, o Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição no. 6, de 2018,
que altera o artigo 12 da Constituição para suprimir a perda de nacionalidade em razão da mera natu-
ralização, além de incluir exceção para situações de apatridia e acrescentar a possibilidade de a pessoa
requerer a perda da própria nacionalidade. 72 A proposta de Emenda foi enviada à Câmara dos Depu-
tados onde tramita sob o número 16/21 e aguarda parecer da Relatora na Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania. 73 Embora a PEC n. 6/2018 busque suprimir a perda da nacionalidade brasileira em
razão da mera naturalização, é possível observar que não há disposições transitórias no texto aprovado
pelo Senado, que menciona que a PEC entraria em vigor na data de sua publicação.

4. DIREITO À CIRCULAÇÃO E À RESIDÊNCIA

4.1. Alcance dos direitos à circulação e à residência, limites e


prerrogativas dos Estados

A DUDH (artigos 9 e 13), o PIDCP (artigo 24), a DADDH (artigo VIII) e a CADH (artigo 22) reconhecem
o direito de todo indivíduo de escolher sua residência, circular pelo país em que se encontra. Por outro
lado, é possível observar que a CRFB/88 (artigo 5, XV) reconhece de forma reflexa e bastante restrita
o direito à “locomover-se” no território nacional, bem como de nele permanecer, sem fazer alusão
expressa à garantia de escolher e estabelecer residência no país.
Os direitos à circulação e à residência garantem que toda a pessoa pode circular livremente no território
do país onde vive, e que tem o direito de estabelecer sua residência onde queira. Segundo a Observação
Geral no. 27 do CDH, trata-se de condição indispensável para o livre desenvolvimento do indivíduo. 74 Tal
posição foi reiterada pela Corte IDH em distintas oportunidades. 75
Esses direitos não são garantias universais aplicadas a qualquer pessoa que se encontre no território de
um Estado, senão apenas àquelas que se encontram legalmente nesse território. Como regra, todos os
nacionais têm direito a livremente circular e estabelecer sua residência no Estado de sua nacionalidade.
De acordo com a Observação Geral no. 15 do CDH, o direito à circulação e à residência não se restringe
ao país de nacionalidade do indivíduo, podendo contemplar outras categorias de residentes de longo

BRASIL. Mandado de segurança 33.864. 2016. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-


71

cID=11685796. Acesso em: 4 set. 2021.


72
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição no. 6, de 2018. 2018. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/
materia/133306. Acesso em: 4 set. 2021.
73
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição. PEC 16/2021 (Fase 1 – CD) e seus apensados. [2020?]. Disponível em: https://www.camara.
leg.br/propostas-legislativas/2288318. Acesso em: 4 set. 2021.
74
ONU. CCPR General Comment No. 27: Article 12 (Freedom of Movement): Adopted at the Sixty-seventh session of the Human Rights
Committee, on 2 November 1999. 1999. par. 1. Disponível em: https://www.refworld.org/pdfid/45139c394.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
75
CORTE IDH. Caso de las Masacres de Ituango Vs. Colombia: Sentencia de 1 de julio de 2006. [S.l.]: OEA, 2006. par. 206; CORTE IDH.
Caso V.R.P., V.P.C. y otros Vs. Nicaragua: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. [S.l.]: OEA, 2018. par. 309; CORTE
IDH. Caso Vélez Restrepo y Familiares Vs. Colombia: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. 2012. par. 220; CORTE IDH.
Caso Gudiel Álvarez (Diario Militar) Vs. Guatemala: Fondo Reparaciones y Costas. 2012. par. 304.

544
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

prazo em país estrangeiro. 76 Por outro lado, os Estados têm a prerrogativa de decidir quem pode
ingressar em seu território, não sendo direito dos estrangeiros ingressar no território de um Estado. 77
Assim, seria possível afirmar que o direito à circulação e à residência abrange o direito a permanecer
legalmente em um país, o direito de decidir onde fixar sua residência dentro desse território, tendo
reflexos distintos em relação a nacionais e a não nacionais. Desde uma perspectiva mais ampla, seria
ainda possível afirmar que tais direitos asseguram o direito de um indivíduo de não ser expulso do
país onde reside.
O CDH, em sua Observação Geral no. 27, estabeleceu que o direito à liberdade de residência e de
circulação se aplica à totalidade do território de um Estado, não sendo possível aos Estados federados
proibir a entrada e permanência em uma parte específica de seu território. Ademais, esses direitos não
são condicionados às razões que levam um indivíduo a estabelecer residência em determinado local. 78
Desta forma, quando um indivíduo se encontrar no território de um Estado federado, como é o caso do
Brasil, não pode ele ser proibido de ingressar em determinada região, como, por exemplo, em determi-
nado estado da federação.
Os direitos à liberdade de circulação e de residência não são absolutos, de modo que uma vez que um
indivíduo se encontre no território de um Estado, é possível que se restrinja tais direitos. A respeito, a
CIDH reconhece que o exercício dos direitos à circulação e a residência somente pode ser restringido
em virtude de lei, quando se tratar de medida indispensável em uma sociedade democrática, para
prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem pública, a
moral, a saúde pública ou os direitos e liberdades dos outros. 79
Por sua vez, a Corte IDH no Caso Ricardo Canese vs. Paraguai endossou a posição da CIDH e afirmou
que somente pode-se restringir os direitos à liberdade de circulação e de residência se observada a
legalidade e a proporcionalidade da medida, sendo obrigatório que se cumpra com: (a) legalidade da
medida; (b) legitimidade dos propósitos buscados com a restrição; (c) necessidade e proporcionali-
dade; e (d) respeito ao conteúdo essencial do direito.80 Em igual sentido, o CDH reconheceu que para
que se restrinja a liberdade de circulação, é necessário que: (a) a restrição seja adequada a tal propósito;
(b) seja necessária ou indispensável; (c) seja proporcional.81
A CIDH reconheceu que o Brasil violou o direito à circulação no caso Antonio Tavares Pereira e outros,
cujo decisão definitiva encontra-se pendente perante a Corte IDH. De acordo com a CIDH, a uso de
violência por parte da força pública para evitar uma marcha realizada no marco do exercício dos direitos
à liberdade de expressão e reunião, viola o direito à circulação, pois o uso da força pública não foi
proporcional nos termos dos requisitos necessários para restringir tal direito.82

76
ONU. CCPR General Comment Nº 15: The Position of Aliens Under the Covenant: dopted at the Twenty-seventh session of the Human
Rights Committee, on 11 April 1986. 1986. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/45139acfc.html. Acesso em: 26 out. 2022.
77
ONU. CCPR General Comment Nº 15: The Position of Aliens Under the Covenant: Adopted at the Twenty-seventh session of the Human
Rights Committee, on 11 April 1986. 1986. par. 5. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/45139acfc.html. Acesso em: 26 out. 2022.
78
ONU. CCPR General Comment Nº 27: Article 12 (Freedom of Movement): Adopted at the Sixty-seventh session of the Human Rights
Committee, on 2 November 1999. 1999. par. 5 e 7. Disponível em: https://www.refworld.org/pdfid/45139c394.pdf. Acesso em: 26 out. 2022.
79
CIDH. Informe sobre la situación de los derechos humanos em Chile. 1985. par. 5.
80
CORTE IDH. Caso Ricardo Canese Vs. Paraguay: Fondo, Reparaciones y Costas. 2004. par. 125, 124.
81
ONU. CCPR General Comment Nº 27: Article 12 (Freedom of Movement). 1999. par. 14.
82
CIDH. Informe No. 6/20: Caso 12.727. 2020. par. 70-77.

545
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

4.2. Direito de sair do país e de possuir documento de viagem

De acordo com a DUDH, com o PIDCP e com a CADH, o direito à circulação abrange também o direito
de o indivíduo sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio. No Brasil, a CRFB/88 garante
aos indivíduos o direito de entrar, permanecer e sair do país, e a Lei no. 13.445 estabelece nos artigos 5 a
22 os documentos de viagens aceitos em território nacional e os requisitos e as hipóteses de concessão
de passaporte e visto brasileiros.
O CDH se posicionou em sua Observação Geral no. 12, indicando que o direito à liberdade de sair do
território de um Estado não pode depender de nenhuma finalidade concreta ou do prazo que o indi-
víduo decida permanecer fora do país.83 Entretanto, o mesmo Comitê reconhece que existem algumas
restrições ao direito de sair do país que devem ser consideradas válidas para o DIDH. Por exemplo,
afirmou no caso Peltonen v. Finlândia que a restrição de sair do país imposta a nacionais que não
cumpriram o serviço militar obrigatório deve ser considerada válida.84 Ainda, no caso González del Rio
v. Peru concluiu que a existência de uma ação penal pendente também pode impedir o indivíduo de
sair do país, desde que justificada a impossibilidade de sair do país. 85 Por sua vez, a Corte IDH, no caso
Ricardo Canese vs. Paraguai afirmou que o direito a sair do país pode ser restringido quando observado
os requisitos de legalidade, necessidade e proporcionalidade.86
A Corte IDH também estabeleceu no caso Ricardo Canese vs. Paraguai que para que um Estado torne
efetivo o direito a sair do país, é necessário que facilite a obtenção de documentos de viagens.87 Desta-
ca-se que o CDH voltou a manifestar-se sobre o tema em sua Observação Geral no. 27, quando afirmou
que o direito a sair do país não só impõe aos Estados a obrigação de outorgar documentos de viagem,
mas eliminar os entraves burocráticos a sua concessão, o que pode incluir a exigência do pagamento
de taxas elevadas, exigência de certificados e declarações desnecessários, a falta de informação clara
sobre os trâmites burocráticos.88

4.3. Direito a não ser submetido a deslocamento forçado


dentro do Estado

Segundo os Princípios Orientadores do Deslocamento Interno das Nações Unidas, se entende como
“deslocado interno”, a pessoa ou o grupo de pessoas que tenha sido forçada ou obrigada a escapar ou
fugir de seu lar ou de seu local de residência habitual, em particular para evitar os efeitos de conflitos
armados, de situações de violência generalizada, de violações de direitos humanos, e que não tenham
cruzado uma fronteira estatal internacionalmente reconhecida.89 Ainda, segundo a Corte IDH, existem
casos de deslocados internos que se enquadram como “deslocados intraurbanos”, isto é, pessoas que

83
ONU. CCPR General Comment Nº 27: Article 12 (Freedom of Movement). 1999. par. 8.
84
ONU. Peltonen v. Finland: Communication Nº 492/1992. 1994.
85
ONU. Gonzáles del Río: Communication Nº 263/1987. 1992.
86
CORTE IDH. Caso Ricardo Canese Vs. Paraguay: Fondo, Reparaciones y Costas. 2004. par. 116.


87
CORTE IDH. Caso Ricardo Canese Vs. Paraguay: Fondo, Reparaciones y Costas. 2004. par. 116.
88
ONU. CCPR General Comment Nº 27: Article 12 (Freedom of Movement): Adopted at the Sixty-seventh session of the Human Rights
Committee, on 2 November 1999. 1999. par. 17.
89
ACNUR. Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos: Introdução: metras e objectivos. [2020?]. Disponível em: https://
www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Documentos_da_ONU/Principios_orientadores_relativos_aos_desloca-
dos_internos_1998.pdf. Acesso em: 18 set. 2021.

546
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

são deslocadas forçadas dentro de sua própria cidade.90 Desta maneira, os deslocados internos diferen-
ciam-se dos refugiados e dos solicitantes de refúgio, pois não cruzaram a fronteira do Estado.
Os Princípios reconhecem a proteção de todo o ser humano contra o deslocamento arbitrário, proibindo
deslocamentos internos baseados em políticas de apartheid, limpeza étnica, em situações de conflito
armado, ou como castigo coletivo, bem como deslocamentos em massa decorrentes de projetos de
desenvolvimento que não estejam justificados pelo interesse público, ou mesmo em caso de desastres,
salvo se o deslocamento for necessário para garantir a segurança e a saúde dos indivíduos deslocados.91
Ainda, estabelecem que previamente à decisão de deslocamento de pessoas, as autoridades compe-
tentes tenham considerado todas as alternativas possíveis, sendo o deslocamento admitido somente
quando nenhuma alternativa for viável em situações de emergência, devendo ser autorizado por auto-
ridade competente e garantido o direito ao recurso contra a decisão que determinou o deslocamento.
Por outro lado, também proíbe o deslocamento quando esse possa violar os direitos à vida, à dignidade,
à liberdade e a segurança dos afetados.92
Entretanto, deve-se destacar que os princípios não constituem norma vinculante, dado que não apro-
vados por um órgão político das Nações Unidas93 ou ditados no âmbito do Conselho de Segurança da
ONU. Assim, sua relevância tem sido reconhecida a partir de sua capacidade para servir de parâmetro
interpretativo.94
Complementarmente, o Protocolo Adicional II dos Convênios de Genebra de 1949 proíbe que o
Estado ordene o deslocamento de populações civis por razões de conflitos armados internos, salvo
se necessário para garantir sua segurança ou por questões militares imperativas. Nesses casos, o
deslocamento apenas pode ser determinado se forem garantidas todas as medidas possíveis para que
a população civil possa ser acolhida em condições satisfatórias de alojamento, salubridade, higiene,
segurança e alimentação.
É possível observar a particular relação existente entre o direito à circulação e à residência e o deslo-
camento forçado. O CDH sedimentou que o direito à residência inclui a proteção contra toda a forma
de deslocamento interno, salvo nas hipóteses em que o deslocamento cumpra com os requisitos de
legalidade e necessidade.95 Nesse sentido, a Corte IDH consolidou96 que os direitos à circulação e à
residência podem ser violados por restrições de fato, como em casos de deslocamentos forçados.

90
CORTE IDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. 2016. pár. 85; MORAES, Ana Luisa
Zago de. O caso Yarce: criminalização de defensoras de direitos humanos e deslocamento forçado intraurbano à luz dos estandares de
proteção do sistema interamericano. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, n. 326, p. 2241-2245, 2020.

ACNUR. Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos: Introdução: metras e objectivos. [2020?]. princípio 6. Disponível
91

em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Documentos_da_ONU/Principios_orientadores_relativos_aos_
deslocados_internos_1998.pdf. Acesso em: 18 set. 2021.
92
ACNUR. Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos. Introdução: metras e objectivos. [2020?]. princípio 8. Disponível
em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Documentos_da_ONU/Principios_orientadores_relativos_aos_
deslocados_internos_1998.pdf. Acesso em: 18 set. 2021.
93
O’DONNELL, Daniel. Derecho Internacional de los Derechos Humanos: normativa, jurisprudencia y doctrina de los Sistemas Universal
e Interamericano. 2 ed. México D.F.: Tribunal Superior de Justicia del Distrito Federal, 2012, p. 633.
94
CIDH. Tercer Informe sobre la Situación de los Derechos Humanos en Colombia. 2001. par. 10; O’DONNELL, Daniel. Derecho Inter-
nacional de los Derechos Humanos: normativa, jurisprudencia y doctrina de los Sistemas Universal e Interamericano. 2 ed. México D.F.:
Tribunal Superior de Justicia del Distrito Federal, 2012, p. 633-634.
95
ONU. CCPR General Comment Nº 27: Article 12 (Freedom of Movement): Adopted at the Sixty-seventh session of the Human Rights
Committee, on 2 November 1999. 1999. par. 5 e 7.
96
CORTE IDH. Caso Defensor de Derechos Humanos y otros Vs. Guatemala: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
2014. par. 119-120; CORTE IDH. Caso de la Masacre de Mapiripán vs. Colombia. 2005. par. 187-188; CORTE IDH. Caso de las Masacres de
Ituango vs. Colombia. 2006. par. 208-209.

547
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Ademais, a Corte IDH considera que o deslocamento forçado é uma violação continuada e múltipla
de direitos humanos, que viola não só o direito à circulação e à residência, mas o direito à vida digna,
à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à associação, à proteção familiar, entre outros.97 Na mesma
toada, a atual Relatora Especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos dos deslocados internos,
senhora Cecilia Jimenez-Damary, afirmou que os efeitos do deslocamento no desfrute dos direitos
humanos são amplos, iniciando pelo direito à liberdade de circulação e residência, já que quando a
pessoa se vê obrigada a deslocar-se, perdem seus lares, podendo ser privadas de seus meios de vida, de
sua residência, modo de alimentação, prioridade.98
De acordo com a Corte IDH, as pessoas em situação de deslocamento forçado apresentam particular
vulnerabilidade.99 Especificamente em relação a comunidades tradicionais, a Corte IDH consolidou
no Caso de la Comunidad Moiwana vs. Suriname que a impossibilidade de seus membros de honrar
adequadamente seus entes queridos implicava em uma “separação forçada”.100
Ademais, o direito à circulação e residência impõe aos Estados o dever de assegurar que as pessoas
submetidas a deslocamento interno tenham as condições necessárias para regressar a seu local de
residência habitual ou garantir seu reassentamento em outra localidade de seu território.101 Isto implica
que os Estados devem proteger os direitos das pessoas deslocadas adotando medidas de prevenção,
realizar investigações dos atos que implicaram o deslocamento, além de que deve garantir a partici-
pação das pessoas deslocadas no planejamento e na gestão de seu regresso ou reintegração.102
De acordo com a Relatora Especial das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos dos Deslocados
Internos, as instituições nacionais de direitos humanos possuem importante papel na prevenção de
deslocamentos internos. A respeito, indica que tendo em vista que essas instituições têm o trabalho
fundamental de promoção e proteção dos direitos humanos, devem estabelecer sistemas específicos
de prevenção muito antes de que se realize o deslocamento, como, por exemplo, facilitar o acesso à
justiça de pessoas deslocadas, fortalecer a coesão social.103

97
CORTE IDH. Caso de la Comunidad Moiwana vs. Surinam: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. 2005. par. 108;
CORTE IDH. Caso de las Masacres de Río Negro vs. Guatemala: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. 2012. par. 178;
CORTE IDH. Caso de la “Masacre de Mapiripán” vs. Colombia. 2005. par. 175, 177, 178 e 186; CORTE IDH. Caso de las Masacres de Ituan-
go vs. Colombia. 2006. par. 212, 234; CORTE IDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.
2016. par. 246-248, 275; CORTE IDH. Caso Chitay Nech y otros vs. Guatemala: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
2010. par. 161-163; CORTE IDH. Caso de las Comunidades Afrodescendientes Desplazadas de la Cuenca del Río Cacarica (Operación
Génesis) Vs. Colombia: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. 2013. par. 325; CORTE IDH. Caso Miembros de la
Aldea Chichupac y comunidades vecinas del Municipio de Rabinal Vs. Guatemala: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. 2016. par. 173.
98
ONU. International displacement and the role of international human rights institutions: Report of the Special Rapporteur on the
rights of internally displaced persons. 2019. par. 13.
99
CORTE IDH. Caso de las Masacres de Ituango vs. Colombia. 2006. par. 212.
100
CORTE IDH. Caso de la Comunidad Moiwana vs. Surinam: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. 2005. par. 93.
101
CORTE IDH. Asunto Pueblo Indígena Kankuamo respecto de Colombia: Medidas Provisionales. Resolución de la Corte Interamericana
de Derechos Humanos de 5 de julio de 2004. 2004.
102
CORTE IDH. Caso Chitay Nech y otros vs. Guatemala: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. 2010. par. 149; CORTE
IDH. Caso Masacres de el Mozote y lugares aledaños vs. El Salvador: Fondo, Reparaciones y Costas. 2012. par. 188; CORTE IDH. Caso
de las Comunidades Afrodescendientes Desplazadas de la Cuenca del Río Cacarica (Operación Génesis) Vs. Colombia: Excepciones
Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. 2013. par. 220; CORTE IDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia: Excepción Preliminar, Fondo,
Reparaciones y Costas. 2016. par. 224.
103
ONU. International displacement and the role of international human rights institutions: Report of the Special Rapporteur on the
rights of internally displaced persons. 2019. par. 14, 16, 20.

548
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

4.4. Direito a não ser submetido a exílio forçado

No âmbito do SIDH, a DADDH (artigo VIII) garante o direito de toda pessoa a fixar sua residência no
território do qual é nacional, de transitar livremente nele e de não o abandonar salvo se for sua vontade.
Complementarmente, a CADH (artigo 22) estabelece a proteção do direito de circulação e residência,
garantindo ao indivíduo permanecer e residir legalmente em um país, sem dele ser objeto de interfe-
rências ilegais.104
Nesse sentido, a CIDH reconhece que milhões de pessoas são obrigadas a fugir ou abandonar seus
lares e seus países de origem devido a situações de violência perpetradas pelas ditaduras na região.105
A CIDH abordou o tema de “abandono” do território contra a vontade de um indivíduo desde a pers-
pectiva do exílio, pela primeira vez no Caso Hopílito Solari Yrigoyen vs. Argentina, quando estabeleceu
que o fato de um indivíduo abandonar sua pátria com proibição de regresso devido à falta de garantia
de sua integridade ou segurança, implica uma violação ao seu direito à residência e à circulação.106
Por sua vez, a Corte IDH reconheceu que o direito à circulação e residência foi violado no Caso Valle
Jaramillo y otros vs. Colombia e no Caso Defensor de Derechos Humanos y otros vs. Guatemala em
prejuízo de pessoas que foram forçadas a exilar-se, “sem poder ou sem querer retornar a seu lar devido
a um fundado temor de perseguição”,107 além de reconhecer o impacto social, familiar e econômico que
o exílio provoca a essas pessoas.108
Por outra parte, por se tratar de violação ao direito à circulação e à residência, a Corte IDH reconheceu
que o exílio forçado impacta nas esferas social, familiar e econômica das pessoas. E afirmou que,
também nesses casos, os Estados têm a obrigação de proteger os direitos das pessoas deslocadas não
só adotando medidas de prevenção ao deslocamento, mas prover as condições necessárias para faci-
litar o retorno voluntário, digno e seguro ao país de origem109.

4.5. Expulsão de não nacionais

4.5.1. Definições

Os tratados de direitos humanos reconhecem o direito de todo o estrangeiro que se encontre legal-
mente no território de um Estado a não ser expulso do mesmo sem que haja um devido processo.110
Isso confere aos Estados a prerrogativa de, em conformidade com as garantias do devido processo

104
CORTE IDH. Caso Valle Jaramillo y otros Vs. Colombia: Fondo, Reparaciones y Costas. 2008. par. 138.
105
CIDH. Derechos humanos de migrantes, refugiados, apátridas, víctimas de trata de personas y desplazados internos: Normas y
estándares del Sistema Interamericano de Derechos Humanos. 2015. par. 77.
106
CIDH. Resolución nº 18/78: Caso 2088. 1978.
107
Corte IDH. Caso Valle Jaramillo y otros Vs. Colombia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 27 de noviembre de 2008. Serie C
No. 192, pars. 140, 141, 144; Corte IDH. Caso Defensor de Derechos Humanos y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de agosto de 2014. Serie C No. 283, par. 165
108
CORTE IDH. Caso Valle Jaramillo y otros Vs. Colombia: Fondo, Reparaciones y Costas. 2008. par. 141; CORTE IDH. Caso Defensor de
Derechos Humanos y otros Vs. Guatemala: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. 2014. par. 165.
109
CORTE IDH. Caso Defensor de Derechos Humanos y otros Vs. Guatemala: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
2014. par. 167.


110
O’DONNELL, Daniel. Derecho Internacional de los Derechos Humanos: normativa, jurisprudencia y doctrina de los Sistemas Uni-
versal e Interamericano. 2 ed. México D.F.: Tribunal Superior de Justicia del Distrito Federal, 2012, p. 626-627.

549
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

legal, estabelecer hipóteses de saída obrigatória de um estrangeiro de seu território. A respeito, a


Corte IDH consolidou na Opinião Consultiva no. 18/03, que os Estados possam estabelecer sua política
migratória, determinando as regras de ingresso, permanência e saída de migrantes de seu território,
tai políticas devem ser desenhadas e executadas levando em consideração o respeito e a garantia aos
direitos humanos.111 Posteriormente, a Corte IDH reafirmou esse entendimento nos casos Vélez Loor vs.
Panamá112 e Personas dominicanas y haitianas expulsadas vs. República Dominicana.113
No Brasil, existem as seguintes hipóteses de saída compulsória de um estrangeiro do território nacional:
a extradição, a expulsão, a entrega, a repatriação e a deportação.
A extradição é medida requerida por autoridade estrangeira voltada à retirada de não nacionais do
território nacional, com o fim de que ela seja entregue à justiça do país solicitante.
Por outra parte, a expulsão, estabelecida nos artigos 54 e 58 da Lei de Migrações, é aplicada aos indiví-
duos que possuem condenação penal em prática de crimes de competência do TPI, e de crimes dolosos
passíveis de penas privativas de liberdade. A expulsão é uma medida de caráter sancionatório, logo,
requer um processo administrativo no qual é prevista a participação da DPU, na ausência de defensor
constituído. Além disso, o indivíduo expulso somente poderá retornar o país quando for revogado o
ato de sua expulsão por autoridade competente, ou quando houver o decurso do prazo da expulsão ou
ainda quando houver um pedido de reconsideração da expulsão.
Nesse sentido, o artigo 102 reconhece que a entrega constitui a medida jurídica pela qual um Estado
entrega um indivíduo de sua nacionalidade para que possa ser processado, julgado e eventualmente
condenado pelo TPI. A respeito, o TPI, no caso The Prosecutor v. Omar Hassan Ahmad Al Bashir estabe-
leceu que os Estados têm a obrigação de cooperar com o tribunal através da prisão e entrega não só de
condenados pelo tribunal, como também daqueles que são acusados.114
A repatriação, prevista no 49 da Lei de Migrações, é uma medida administrativa que consiste na devo-
lução do indivíduo que está impedido de ingressar no território nacional devido a uma das causas esta-
belecidas no artigo 45 da Lei de Migrações. Trata-se de medida identificada no momento da entrada do
migrante no território brasileiro.
Por fim, conforme os artigos 50, 51 e 53 da Lei de Migrações, a deportação é uma medida administrativa
adotada pela autoridade migratória com o objetivo de retirar do território brasileiro um estrangeiro cuja
entrada ou permanência no país se tornou irregular, ressalvada a possibilidade de o indivíduo regularizar
sua situação. Trata-se de ato discricionário que exige processo administrativo em conformidade com
a Lei de Migrações. A deportação de um indivíduo não impede seu retorno ao país uma vez sanada
a irregularidade.
A respeito da regulação e aplicação da deportação, destaca-se a atuação premiada da Defensoria
Pública da União e do Ministério Público Federal, em 2021, no Prêmio “Sentenças - Acesso à Justiça de
Pessoas Migrantes Sujeitas à Proteção Internacionais”, organizado pela CIDH, ACNUR, Cruz Vermelha,


111
CORTE IDH. Condición jurídica y derechos de los migrantes indocumentados. 2003. par. 168-196.
112
CORTE IDH. Caso Vélez Loor Vs. Panamá: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. 2010. par. 97.
113
CORTE IDH. Caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Dominicana: Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. 2014. par. 350.
114
INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Situation in Darfur, Sudan in the case of The Prosecutor v. Omar Hassan Ahmad Al Bashir:
Decision on the non-compliance by the Republic of Djibouti with the request to arrest and surrender Omar Al-Bashir to the Court and
referring the matter to the United Nations Security Council and the Assembly of the State Parties to the Rome Statute. 2016; INTERNA-
TIONAL CRIMINAL COURT. Situation in Darfur, Sudan in the case of The Prosecutor v. Omar Hassan Ahmad Al Bashir: Decision on
the non-compliance by the Republic of Uganda with the request to arrest and surrender Omar Al-Bashir to the Court and referring the
matter to the United Nations Security Council and the Assembly of State Parties to the Rome Statute. 2016.

550
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, ONG Sin Fronteras. A premiação
decorreu de Ação Civil Pública proposta em conjunto pelas duas instituições junto à Justiça Federal da
1a Região, onde questionavam a deportação em massa de migrantes venezuelanos indocumentados
que se encontravam em um abrigo. Esses migrantes seriam deportados devido a sua condição de
indocumentados. A atuação da DPU e do MPF resultou em decisão favorável do TRF1 que impediu a
deportação em massa.115

4.5.2. O procedimento de expulsão de estrangeiros

Segundo o CDH, em sua Observação Geral no. 15, é fundamental que se exija que quaisquer dos proce-
dimentos que tenham como objetivo a saída obrigatória de um estrangeiro de um país sejam realizados
em conformidade com a lei. Tal exigência busca impedir expulsões arbitrárias e evitar expulsões em
massa, sendo necessário que se analise caso a caso, as circunstâncias que podem levar um indivíduo a
ser expulso de um país.116
Desta maneira, os Estados devem observar as seguintes garantias para proceder à expulsão de um
estrangeiro: (a) somente pode-se expulsar um estrangeiro em cumprimento de decisão adotada
conforme a lei; (b) deve ser facultado ao estrangeiro a possibilidade de expor as razões contrárias a sua
expulsão, submeter seu caso à revisão de autoridade competente e ser representado no processo de
expulsão.117 Complementarmente, a Comissão de Direito Internacional da ONU afirmou que aos estran-
geiros em situação de expulsão, deve-se conferir as seguintes garantias: (a) condições de detenção
adequadas durante o procedimento; (b) apresentar razões contra sua expulsão; (c) assistência consular;
(d) direito a ser representado perante autoridade competente; (e) direito a contar com assistência
gratuita de intérprete; e (f) direito a ser notificado da decisão de expulsão e recorrê-la.118 Há, assim, uma
clara relação entre o direito a permanecer no país e não ser expulso e os direitos às garantias judiciais
e à proteção judicial.
Especificamente em relação aos processos de extradição, a CRFB/88 veda a extradição de brasileiro,
salvo naturalizado em razão de prática de crime cometido antes da naturalização, além de vedar a
concessão de extradição de estrangeiro por crime político e de opinião. Nos termos do artigo 102, g,
da Constituição, os pedidos de extradição formulados ao Estado brasileiro são analisados pelo STF e o
procedimento da extradição é regulado pela Lei de Migrações.
Em 2009, no julgamento da Extradição no. 1.008, o STF reconheceu ser de sua competência a auto-
rização da extradição, mas determinou que caberia ao Poder Executivo, na pessoa do Presidente da
República, a decisão sobre a execução do ato de extradição.119 O tema voltou a ser objeto de debate em
2016, quando a Primeira Turma do STF ao julgar o MS 33.864 reconheceu que é permitida a extradição
de “ex brasileiro” que perdeu sua nacionalidade brasileira por meio da aquisição de outra nacionalidade
por via derivada.120

115
Sobre o tema, veja-se: DELFIM, Rodrigo Borges. Ação no Brasil contra deportação de venezuelanos é reconhecida em premiação interna-
cional. Migra Mundo, [s. l.], 24 nov. 2021. Disponível em: https://migramundo.com/acao-no-brasil-contra-deportacao-de-venezuelanos-e-
-reconhecida-em-premiacao-internacional/.
116
ONU. CCPR General Comment Nº 15: The Position of Aliens Under the Covenant. 1986.

ONU. CCPR General Comment Nº 15: The Position of Aliens Under the Covenant. 1986. par. 9.
117

118
INTERNATIONAL LAW COMMISSION. Draft Articles of the expulsion of aliens. 2014. artigos 19 e 26.
119
BRASIL. Extradição no. 1008/CB - Colômbia. 2007. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur89927/false. Acesso
em: 4 set. 2021.
120
BRASIL. Mandado de segurança 33.864 Distrito Federal. 2016. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc-
TP=TP&docID=11685796. Acesso em: 4 set. 2021.

551
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Por outra parte, a jurisprudência do sistema interamericano consolidou que o direito à circulação e
residência proíbe a expulsão de qualquer estrangeiro a outro país, seja ou não o de origem, no qual seu
direito à vida e à liberdade estejam em risco de violação devido à sua raça, nacionalidade, religião, grupo
social ou opinião política.121 Nesse sentido, a Corte IDH consignou no Caso Wong Ho Wing vs. Peru que
a obrigação de garantia do direito à vida e à integridade, assim como o princípio de não devolução ante
risco de tortura se aplica em todas as possíveis modalidades de devolução de uma pessoa, inclusive nas
hipóteses de extradição.122 Assim, estabeleceu que nos casos em que o indivíduo alega que, na hipótese
de ser expulso, ou extraditado, será submetido a tratamentos contrários aos seus direitos à vida e à
integridade, é necessário que o Estado de acolhida garanta tais direitos e evite que sejam produzidos
danos irreparáveis.123
Posteriormente, ao examinar a Opinião Consultiva no. 25/18, a Corte IDH afirmou que o princípio do
non refoulement (e, consequentemente, a ideia de não devolução de estrangeiros que se encontram
em risco) pode abarcar diversas condutas estatais, como a deportação, extradição, expulsão, rechaço
na fronteira, não admissão, interceptação em águas internacionais ou mesmo “entrega”. Desta forma, é
exigível de qualquer pessoa não nacional que busque proteção internacional.124
Ademais, para Corte IDH, os Estados estão proibidos de promover expulsões coletivas de estrangei-
ros.125 Em igual sentido, o Comitê das Nações Unidas sobre Eliminação da Discriminação Racial, em sua
Recomendação Geral no. 30, indicou que os Estados devem implementar as medidas necessárias para
garantir que os indivíduos não sejam objeto de expulsão coletiva, sobretudo, quanto não há garantias
suficientes para analisar a condição individual de cada uma das pessoas afetadas.126 Para cumprir com
tal obrigação, os Estados devem estabelecer processos de expulsão ou deportação que sejam indivi-
duais, de maneira que seja possível avaliar as circunstâncias pessoais de cada sujeito.127
Finalmente, deve-se destacar no âmbito do direito internacional uma “obrigação” dos Estados em
extraditar ou julgar indivíduos que tenham cometidos graves crimes de lesa humanidade. O princípio
aut dedera aut judicare determina que um Estado que tem em seu território um indivíduo que cometeu
crime de interesse internacional, deve extraditá-lo para outro Estado capaz de julgá-lo, ou adotar as
medidas necessárias para processá-lo e julgá-lo em sua jurisdição.128 O tema vincula-se diretamente
com o princípio da jurisdição universal, que confere competência judicial para que um Estado julgue
um “core crimes” (genocídio, crime contra a humanidade, crime de guerra e crime de agressão) inde-
pendentemente da nacionalidade do infrator ou do local do delito.129


121
CORTE IDH. Caso Familia Pacheco Tineo Vs. Bolivia: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. 2013. par. 134; CORTE
IDH. Caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Dominicana: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparacio-
nes y Costas. 2014. par. 361.
122
CORTE IDH. Caso Wong Ho Wing Vs. Perú: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. 2015. par. 130.
123
CORTE IDH. Caso Wong Ho Wing Vs. Perú: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. 2015. par. 142.
124
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 190, 192.
125
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 155.
126
ONU. General Recommendation XXX on Discrimination Against Non Citizens. 2005. par. 26.
127
CORTE IDH. Caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Dominicana: Excepciones Preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. 2014. par. 381.
128
ASSIOUNI, M. Cherif; WISE, Edward M. The Duty to Extradite or Prosecute in Internacional Law. Martinus Nijhoff: Dordrecth, 1995, p. 3.
129
GILBERT, Geoff. Aspects of Extradition Law. Martinus Nijhoff: Dordrecth: 1991, p. 159

552
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

A Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, ratificada pelo Brasil em 1989 e promulgada em 1991,
estabelece que os crimes de tortura são causas de extradição. Além disso, reconhece que o crime será
considerado, para fins de extradição, como se tivesse ocorrido não apenas no local do fato, mas quando
ocorrido nos territórios sob a jurisdição do Estado extraditando, ou a bordo de navio ou aeronave regis-
trada nesse Estado, quando o suposto autor ou a vítima for seu nacional.130
A Comissão de Direito Internacional da ONU adotou o aut dedera aut judicare como regra através
dos “Draft Code of Crimes against the Peace and Security of Mankind”, afirmando que os Estados
têm a obrigação de deter indivíduo que esteja em seu território e que seja acusado de cometer crimes
graves, além de assegurar que o mesmo seja processado por suas autoridades, ou por autoridades de
outro Estado.131 Nesse sentido, a CIJ consolidou a aplicação do aut dedera aut judicare no julgamento
do caso Bélgica vs. Senegal – Obrigação de extraditar ou julgar, afirmando que o Estado que não
adotar os meios necessários para processar e julgar um indivíduo acusado de cometer graves crimes,
deve extraditá-lo.132
O STF tem decidido de forma contrária ao aut dedera aut judicare sobre a extradição de indivíduos
acusados de crimes contra a humanidade. Nos pedidos de extradição no. 974/2009133, 1150/2001134,
1278/2012135, 1299/2013136 e 1362/2016,137 o Tribunal, por maioria de votos concluiu que esses crimes já
teriam prescrito em conformidade com a legislação brasileira, motivo pelo qual indeferiu os pedidos de
extradição formulados.

5. DIREITO AO ASILO E AO REFÚGIO

A proteção de pessoas perseguidas no país de sua nacionalidade ou de residência tem sido tradicio-
nalmente avaliada no DIDH a partir do “direito ao asilo”, 138 de modo a abranger não só o direito ao
asilo propriamente dito, como também o direito ao refúgio.139 Entretanto, observa-se que mesmo
que compartam da mesma premissa, o direito ao asilo stricto sensu é mais restrito do que o direito ao

130
BRASIL Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1990-1994/d0040.htm. Acesso em: 16 set. 2021.

ONU. Draft Code of Crimes against the Peace and Security of Mankind. 1996. at para. 50. Disponível em: https://legal.un.org/ilc/texts/
131

instruments/english/draft_articles/7_4_1996.pdf. Acesso em: 11 set. 2021.


132
INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Questions relating to the obligation to prosecute or extradite. (Belgiu, v. Senegal). 2012.
Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/144/144-20120720-JUD-01-00-EN.pdf. Acesso em: 11 set. 2021.
133
BRASIL. Extradição nº 974/ República Argentina. 2009. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur170288/false.
Acesso em: 4 set. 2021.
134
BRASIL. Extradição nº 1150/ República Argentina. 2011. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur193812/false.
Acesso em: 4 set. 2021.
135
BRASIL. Extradição nº 1278/DF – Distrito Federal. 2012. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur215897/false.
Acesso em: 4 set. 2021.
136
BRASIL. Extradição nº 1299/DF – Distrito Federal. 2013. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur193812/false.
Acesso em: 4 set. 2021.
137
BRASIL. Extradição nº 1362. 2016. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur372796/false. Acesso em: 4 set. 2021.
138
JUBILUT, Liliana Lyra. O direito internacional dos refugiados e sua aplicação ao ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método,
2007, p. 36.
139
ROSA, Marina de Almeida. O encontro do direito internacional dos refugiados com o Sul global: uma análise do “conceito do sul” de
refugiados e de sua não aplicação pelas Nações Unidas. 2019. 220 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em
Direito público, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Porto Alegre, 2019.

553
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

refúgio, pois restringe-se, em regra, àquelas pessoas que são perseguidas por razões políticas, sendo
desenhado para caso particulares, enquanto o refúgio apresenta outras causas para sua concessão.140
Para a Corte IDH, a expressão “direito ao asilo” abrange a totalidade da proteção internacional das
pessoas forçadas a fugir de seu país de nacionalidade ou de residência habitual, abrangendo não só
o direito ao asilo territorial e o asilo diplomático, como também o direito ao refúgio141. Por outra parte,
observa-se que o direito ao asilo não se encontra garantido no Pacto de Direitos Civis e Políticos.
A Corte IDH destacou na Opinião Consultiva no. 25/18 que toda a pessoa que sofre perseguição tem
direito de buscar e receber asilo.142 Ademais, afirmou que o direito ao asilo impõe aos Estados a obri-
gação de permitir a entrada em seu território, e garantir o acesso ao procedimento para a determinação
da condição de asilado ou de refugiado.143 Desta maneira, a proteção relativa ao asilo ou ao refúgio deve
ser outorgada sempre que os indivíduos cumpram com os requisitos estabelecidos.144
Conforme se observa da jurisprudência interamericana, o direito de buscar e receber asilo deve ser
compreendido em conjunto com as garantias judiciais e a proteção judicial, de modo que se garanta ao
solicitante que ele seja ouvido pelo Estado.145 Logo, para que o direito ao asilo tenha efeitos, é necessário
que o Estado de acolhida permita que as pessoas possam solicitar o direito ao asilo ou o reconheci-
mento do status de refugiado, razão pela qual essas pessoas não podem ser rechaçadas na fronteira ou
devolvidas sem uma análise adequada ou individualizada de seus pedidos.146

5.1. Direito ao asilo territorial e ao asilo diplomático

O reconhecimento do direito ao asilo “stricto sensu” é uma das principais contribuições latino-ameri-
canas para o direito internacional. Trata-se de uma figura jurídica criada nas Américas e que, posterior-
mente, foi aplicada com fins de “universalidade.”147 A figura do “asilo” originou-se em 1889 no Primeiro
Congresso Sul-Americano de Direito Internacional Privado, no qual foi elaborado o Tratado sobre
Direito Internacional Penal, que reconheceu a inviolabilidade do asilo, de modo que os Estados não

140
ARBOLEDA, Eduardo. La Declaración de Cartagena de 1984 y sus semejanzas con la Convención de la Organización de la Unidad Africana
de 1969: una perspectiva comparativa. In: NAMIHAS, Sandra (Coord.). Derecho internacional de los refugiados. Lima: Fondo Editorial,
2001, p. 81-91, p. 82-83.


141
Corte IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección (in-
terpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). Opinión Consultiva OC-25/18 de 30 de mayo de 2018. Serie A No. 25, par. 65, 66, 67
142
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 120.
143
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 122.
144
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 123.
145
CORTE IDH. Caso Familia Pacheco Tineo Vs. Bolivia: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. 2013. par. 154.
146
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 122.
147
JUBILUT, Liliana Lyra. O direito internacional dos refugiados e sua aplicação ao ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método,
2007, p. 38-39.

554
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

poderiam entregar os perseguidos políticos que buscavam proteção em seu território, salvo se tivesse
cometido crimes comuns.148
Em 1928, foi adotada a Convenção sobre o Asilo (Convenção de La Habana) que reafirmou que o asilo
estava vinculado à existência de perseguição de um indivíduo por delitos políticos, mas limitou sua
concessão a casos de urgência. Entretanto, reconhecia como uma prerrogativa estatal conferir “asilo.”149
Tal convenção foi modificada pela Convenção sobre Asilo Político de 1933, que estabeleceu que cabe
ao Estado a prerrogativa de determinar o que é qualificado como “delito político” , além de reconhecer
seu caráter humanitário e definir que o reconhecimento do asilo independente de reciprocidade.150
Nesse sentido, ampliou-se a prerrogativa estatal de definir quais indivíduos poderiam ser contem-
plados pelo asilo.
Posteriormente, em 1939 foi elaborado o Tratado sobre Asilo e Refúgio Político de Montevidéu (Tratado
de Montevideo), que estabeleceu que o asilo poderia ser conferido não só aos indivíduos que ingres-
savam no território de um Estado, mas que poderia ser exercido em sua modalidade “diplomática”
(quando o indivíduo ingressa em embaixadas, legações, navios de guerra, acampamentos ou aviões
militares) e “em território estrangeiro”. Em ambos os casos o asilo apenas poderia ser conferido àqueles
que não tivessem sido condenados por crimes comuns por tribunais ordinários.151
Em 1954, no âmbito da X Conferência Interamericana foram estabelecidas as diferenças entre asilo
diplomático e asilo territorial. O primeiro, previsto na Convenção sobre Asilo Diplomático de 1954 é
concedido fora do território dos Estados de acolhida, desde que o perseguido político lhe solicite em
suas embaixadas, legações, navios de guerra, acampamentos ou aviões militares152. O segundo, reco-
nhecido pela Convenção sobre Asilo Territorial de 1954, é aquele conferido no território do Estado de
acolhida.153 Ambos os tratados estabelecem que o asilo é uma prerrogativa estatal, de maneira que
nenhum Estado é obrigado a concedê-lo.
Por outra parte, o artigo XXVII da DADDH, e o artigo 22.7 da CADH, reconhecem o asilo enquanto
direito. A respeito, a Corte IDH definiu que o asilo territorial consiste na proteção conferida por um
Estado em seu território a pessoas nacionais ou residentes habituais de outro Estado em que são perse-
guidas por motivos políticos, suas crenças, opiniões ou filiação política ou por atos que podem ser
considerados como delitos políticos ou conexos. Já o asilo diplomático consiste na proteção que um
Estado confere em suas legações, navios de guerra, aeronaves militares ou acampamentos, a mesma
pessoa.154 Por sua vez, a CIDH estabeleceu que o direito ao asilo não implica qualquer garantia de que

148
OEA. Tratado sobre derecho penal internacional. 1889. artigo 16. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/docs/tratado_sobre_de-
recho_penal_internacional_montevideo_1889.pdf. Acesso em: 11 set. 2021.
149
ACNUR. Convención sobre Asilo. 1928. artigo 2. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2002/0609.pdf?fi-
le=fileadmin/Documentos/BDL/2002/0609. Acesso em: 11 set. 2021.
150
OEA. Convención sobre Asilo Politico (A-37). 1933. artigo 3. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/tratados_multilaterales_inte-
ramericanos_A-37_asilo_politico.asp. Acesso em: 11 set. 2021.
151
OEA. Tratado sobre asilo y refugio político de Montevideo de 1939. 1939. artigos 2 e 11. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/
docs/Tratado_sobre_Asilo_y_Refugio_Politico_Montevideo_1939.pdf. Acesso em: 11 set. 2021.
152
OEA. Convenção sobre asilo diplomático. [2020?]. Artigos I e II. Disponível em: http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-46.
htm. Acesso em: 11 set. 2021.
153
OEA. Convención sobre asilo territorial. [2020?]. Artigo I. Disponível em: http://www.oas.org/juridico/spanish/tratados/a-47.html. Acesso
em: 11 set. 2021.
154
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 67.

555
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

o mesmo será outorgado, pois é necessário que o solicitante preencha os requisitos estabelecidos na
legislação interna e nos documentos internacionais.155
Nesse contexto, a CIJ, no julgamento do caso Haya de la Torre (Colombia Vs. Peru) de 1951, reconheceu a
existência de um costume regional latino-americano à concessão de asilo territorial e diplomático, pois,
na região, a prática conforma os requisitos de prática reiterada e opinio iuris.156 Em sentido contrário,
a Corte IDH, no exame da Opinião Consultiva no. 25/18, de 2018, afirmou que o asilo diplomático não
é um costume regional, e que ele não está reconhecido nos tratados de direitos humanos da região
americana como direito humano. Nesse sentido, afirmou que o artigo 22.7 da CADH e o artigo XXVII
da DADDH não contemplam o direito ao asilo diplomático, e que, no âmbito interamericano, o direito
a buscar e a receber asilo constitui o direito a buscar e receber proteção internacional, em território
estrangeiro. Desta forma, afirmou que a concessão de asilo diplomático deve ser regida por tratados
interestatais e pela legislação interna.157
No Brasil, o asilo está reconhecido no artigo 4º da CRFB/88, e é complementarmente regulado pelos
artigos 27 a 29 da Lei de Migrações, que reconhecem a discricionariedade do Estado na concessão do
asilo territorial (político) e diplomático. O artigo 29 da Lei de Migrações destaca que o Estado brasileiro
não concederá asilo aos indivíduos que tenham cometido crimes previstos no Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional. Tal redação encontra-se em consonância com o entendimento da Corte
IDH consagrado na Opinião Consultiva no. 25/18, em que a Corte afirmou que o asilo político não pode
ser utilizado como mecanismo para favorecer e assegurar a impunidade de casos graves de violação de
direitos humanos.158
A respeito, a Convenção Interamericana contra o Terrorismo, ratificada e promulgada em 2005 pelo
Estado brasileiro, estabelece que os Estados devem adotar as medidas necessárias para não conferir
asilo aos indivíduos acusados de delitos estabelecidos na Convenção para a Repressão do Apodera-
mento Ilícito de Aeronaves; Convenção para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação
Civil; Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra Pessoas que Gozam de Proteção
Internacional, Inclusive Agentes Diplomáticos; Convenção Internacional contra a Tomada de Reféns;
Convenção sobre a Proteção Física dos Materiais Nucleares; Protocolo para a Repressão de Atos Ilícitos
de Violência nos Aeroportos que Prestem Serviços à Aviação Civil Internacional, complementar à
Convenção para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil; Convenção para a
Supressão de Atos Ilegais contra a Segurança da Navegação Marítima; Protocolo para a Supressão de
Atos Ilícitos contra a Segurança das Plataformas Fixas Situadas na Plataforma Continental; Convenção
Internacional para a Supressão de Atentados Terroristas a Bomba; Convenção Internacional para a
Supressão do Financiamento do Terrorismo. 
Embora os Estados não estejam obrigados a conferir o asilo, possuem obrigações relativas a esse
direito. Por exemplo, devem garantir o devido processo no marco dos processos de solicitação de asilo,

155
CIDH. Informe sobre la situación de los derechos humanos de los solicitantes de asilo em el marco de sistema canadiense de
determinación de la condición de refugiado. 2000. par. 60; CIDH. Informe no. 51/96: Decisión de la Comisión en cuanto al mérito del
caso 10.675. Estados Unidos: [s.n.], 1997. par. 151.
156
INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Haya de la Torre Case (Colombia v. Peru): Reports of judgments, advisor opinions and orders.
1951. Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/14/014-19510613-JUD-01-00-EN.pdf. Acesso em: 11 set. 2021.


157
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 133, 156, 163.
158
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 91.

556
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

não rechaçar o solicitante na fronteira, não penalizar ou sancionar por ingresso ou presença irregular o
solicitante de asilo, brindar acesso a direitos em igualdade de condições.159
Especificamente em relação ao direito de crianças buscar e receber asilo, a Corte IDH consolidou na
Opinião Consultiva 21/14, que os Estados devem: (a) permitir que a criança possa peticionar o asilo
ou mesmo o refúgio, de maneira que não podem ser rechaçados da fronteira sem que se realize
uma análise adequada e individualizada de seu pedido e que sejam aplicadas as devidas garantias no
processo respectivo; (b) outorgar a proteção internacional quando a criança preencher os requisitos
exigidos, estendendo tal reconhecimento aos outros membros de sua família, em atenção ao princípio
da unidade familiar; (c) garantir que os procedimentos e processos para determinar a condição de
asilado levem em contra o interesse superior do menor estabelecido no corpus iuris internacional para
a proteção de crianças e adolescentes160.

5.2. Direito ao refúgio

5.2.1. Definição de refugiado

O refúgio, enquanto instituto jurídico do direito internacional, tem sua origem relacionada ao surgi-
mento dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos.161 Nesse cenário, diferentes orga-
nizações internacionais e tratados buscaram regulamentar a definição de refugiado.162 Assim, após uma
série de experiências,163 foi criado em 1950 o ACNUR, um órgão subsidiário da Assembleia Geral das
Nações Unidas, que tem por objetivo fornecer orientação, supervisão e controle no tema relativo aos
refugiados, e cujas principais funções são prestar proteção internacional a refugiados e buscar soluções
permanentes para os problemas relacionados a eles164.
Em 1951, foi proposta a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Convenção de 1951 ou Estatuto
dos Refugiados), que definiu como “refugiado” aqueles indivíduos que, devido aos eventos havidos
antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa, refugiaram-se temendo perseguições por motivo de raça,
religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.165 Ou seja, o texto do Estatuto dos Refugiados
estabeleceu uma restrição geográfica e temporal para que alguém fosse reconhecido como refugiado
à luz dos critérios por ele estabelecidos.

159
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos). 2018. par. 99; CIDH. Debido processo en los procedimentos para la determinacion de la condición de persona refugia-
da, y apátrida y el otorgamiento de protección compelementaria. 2020.
160
CORTE IDH. Derechos y garantías de niñas y niños en el contexto de la migración y/o en necesidad de protección internacional.
2014. par. 81, 246-249.


161
HATHAWAY, James C. The law of refugee status. 1st Edition. [recurso eletrônico]. New York: Cambridge University Press, 2005, p. 75, 83.
162
HOLBORN, Louise W. The Legal Status of Political Refugees. The American Journal of International Law. v. 32, n. 4, p. 680-703,
1938; HATHAWAY, James C. The law of refugee status. 1 ed. New York: Cambridge University Press, 2005. p. 81-83; JUBILUT, Liliana Lyra.
O direito internacional dos refugiados e sua aplicação ao ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método, 2007. p. 76; LEWIS,
Corinne. UNHCR and International Refugee Law: from treaties to innovation. New York: Routledge, 2012, p. 5-6.
163
A respeito, veja-se: ANDRADE, José H. Fischel de. Direito internacional dos refugiados: evolução histórica (1921-1952). Rio de Janeiro:
Renovar, 1996.
164
LEWIS, Corinne. UNHCR and International Refugee Law: from treaties to innovation. New York: Routledge, 2012. p. 13-22.
165
HATHAWAY, James C. The law of refugee status. 1st Edition. New York: Cambridge University Press, 2005. p. 97.

557
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A Convenção de 1951 reconheceu, dentre outros, que os Estados devem assegurar o direito à não
discriminação, à liberdade religiosa aos refugiados, vedando que a eles seja conferido um tratamento
menos favorável do que o previsto em outros instrumentos de proteção. Ademais, consagrou o prin-
cípio do non refoulment, determinando que “[o]s Estados Contratantes não expulsarão um refugiado
que se encontre regularmente no seu território senão por motivos de segurança nacional ou de
ordem pública.”166
A definição de refugiado do Estatuto dos Refugiados foi ampliada em 1967 por meio do Protocolo
Adicional à Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Protocolo Adicional de 1967). O Protocolo
Adicional de 1967 eliminou as limitações temporais e geográficas da Convenção de 1951, passando a
definir como refugiado aquele indivíduo que se refugia temendo perseguições por motivo de raça,
religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.167
Ainda, é possível observar a existência de iniciativas regionais que propiciam outras definições de
refugiado. A primeira, originada no âmbito da Organização da Unidade Africana foi a Convenção da
OUA que rege os Aspectos Específicos dos Problemas de Refúgio na África,168 que reconhece como
refugiado, além daqueles contemplados pelo Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo Adicional, os
indivíduos obrigados a deixar o seu lugar de residência habitual devido a quatro novas causas, a saber:
agressão, ocupação externa, dominação estrangeira, ou eventos que venham a perturbar a ordem
pública e tornem a residência em dado local impossível.169
No âmbito americano, foi adotada a Declaração de Cartagena em 1984, a qual além de reconhecer as
definições de refugiado estabelecidas na Convenção de 1951 e no Protocolo Adicional de 1967, ampliou
o conceito, definindo como refugiado que tenha fugido de seu país de origem por ameaças decorrentes
de violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação maciça de direitos humanos
ou outras circunstâncias que perturbem a ordem pública. A Declaração é um instrumento pioneiro
no reconhecimento de direitos econômicos, sociais e culturais não só aos refugiados, mas também
aos asilados e aos deslocados internos.170 Além disso, consagrou o princípio do non refoulement como
norma de jus cogens, impossibilitando, em qualquer hipótese, o retorno compulsório daquele a quem
foi concedido o status de refugiado, e exortou os Estados da região a ratificar a Convenção Americana.171

166
BRASIL. Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961. Promulga a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados concluída em Ge-
nebra, em 28 de julho de 1951. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1950-1969/d50215.htm. Acesso em: 18 set. 2021, artigo 32.
167
HATHAWAY, James C. The law of refugee status. 1 ed. New York: Cambridge University Press, 2005. p. 111.
168
O referido documento não vincula o Estado brasileiro.
169
ACNUR. OUA Convention governing the specific aspects of refugee problems in Africa: Adopted by the Assembly of Heads of State
and Government at its Sixth Ordinary Session. Addis-Ababa, 10 september 1969. 1969. Disponível em: https://www.unhcr.org/about-us/
background/45dc1a682/oau-convention-governing-specific-aspects-refugee-problems-africa-adopted.html. Acesso em: 14 set. 2021.
170
MURILLO GONZÁLEZ, Juan Carlos. El derecho de asilo y la protección de refugiados en el continente americano: contribuciones y
desarrollos regionales. 2008. p. 419-437. p. 425. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/docs/publicaciones_digital_XXXV_curso_de-
recho_internacional_2008_Juan_Carlos_Murillo_Gonzalez_2.pdf. Acesso em: 14 set. 2021; ACNUR. Declaração de Cartagena: Conclusões
e recomendações. [1984?]. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacio-
nais/Declaracao_de_Cartagena.pdf. Acesso em: 18 set. 2021.


171
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Volume I. 2 ed. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2003. p. 406.

558
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

A Assembleia Geral da OEA e a Corte IDH consolidaram que embora a Declaração de Cartagena não
possua força cogente, por se tratar de uma declaração, ela foi respaldada desde 1985 e os Estados da
região aplicam o conteúdo desse tratado aos refugiados que se encontrem em seu território.172-173
No Brasil, é adotado um conceito “amplo de refugiado”. A Lei no. 9.474/1997 estabelece que será conhe-
cido como refugiado o indivíduo que devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça,
religião, nacionalidade, grupo social, opiniões políticas ou devido à grave e generalizada violação de
direitos humanos, seja obrigado a deixar seu país de nacionalidade ou de residência habitual e não
possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país.174
Em especial, é possível observar que a partir de 2010, com o fluxo massivo de haitianos ao Brasil, e,
posteriormente, em 2013, o país conferiu um novo status a migrantes que fugiam de seu território, mas
não eram reconhecidos como refugiados, por meio do “visto de acolhida humanitária”, atualmente
regulado pela Resolução no. 97/2012 do CNIg175 e pelas Resoluções no. 31 e 33 do CONARE.176 Posterior-
mente, com o advento da Lei de Migrações, a mesma reconheceu um caráter humanitário ao refúgio.
Entretanto, o Decreto no. 9.199/17 omitiu o tema da concessão de vistos humanitários. Nesse sentido,
o que se tem observado são medidas de caráter discricionário por parte do Ministério de Relações
Exteriores, do Ministério da Justiça e Segurança Pública em que se confere “visto humanitário” a certos
grupos de indivíduos, como o caso, em 2021, dos afegãos.177
A Corte IDH afirmou na Opinião Consultiva no. 21/14 que a definição de refugiado é tradicionalmente
interpretada desde experiências de pessoas adultas maiores de 18 anos. Logo, indicou que crianças
e adolescentes também são titulares de solicitar e receber refúgio e, em relação a elas, os Estados
possuem obrigações específicas, levando em conta o princípio da especial proteção do menor.178

172
De acordo com o ACNUR, os países que incorporaram a definição de “refúgio” prevista na Declaração de Cartagena, foram: Argentina,
Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Peru e Uruguai.
173
OEA. Situación jurídica de los asilados, refugiados y personas desplazadas en el continente americano: Resolución AG/RES. 774
(XV-O/85), aprobada en la tercera sesión plenaria, celebrada el 9 de diciembre de 1985, punto resolutivo tercero. 1985; CORTE IDH. Dere-
chos y garantías de niñas y niños en el contexto de la migración y/o en necesidad de protección internacional: Opinión Consultiva
OC-21/14 de 19 de agosto de 2014. 2014. par. 76.

BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determi-
174

na outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm.
Acesso em: 12 set. 2021.
175
BRASIL. Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2011. Dispõe sobre a concessão do visto permanente previsto no art. 16 da Lei
nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais do Haiti. (Alterada pelas Resoluções Normativas nº 102/2013, 106/2013, 113/2014, 117/2015 e RN
123/2016). [2011?]. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/component/k2/item/10498-resolucao-normativa-n-97-de-12-de-
-janeiro-de-2011. Acesso em: 13 set. 2021.
176
BRASIL. Resolução Normativa nº 31, de 13 de novembro de 2019. Altera a Resolução Normativa no 18, de 30 de abril de 2014, do Comitê
Nacional para os Refugiados - Conare, que estabelece os procedimentos aplicáveis ao pedido e à tramitação da solicitação de reconhe-
cimento da condição de refugiado e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 44, 11 fev. 2020. Disponível em:
https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/refugio/anexos/RESOLUONORMATIVAN31DE13DENOVEMBRODE2019RESOLUO-
NORMATIVAN31DE13DENOVEMBRODE2019DOUImprensaNacional.pdf. Acesso em: 13 set. 2021; BRASIL. Resolução Normativa nº 33,
de 13 de novembro de 2020. Altera a Resolução Normativa nº 18, de 30 de abril de 2014, e revoga as Resoluções Normativas nº 22, 24 e 32,
todas do Comitê Nacional para os Refugiados – Conare. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 128, 03 dez. 2020. Disponível em:
https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-normativa-n-33-de-20-de-novembro-de-2020-291812840. Acesso em: 13 set. 2021.
177
BRASIL. Portaria Interministerial nº 24, de 3 de setembro de 2021. Dispõe sobre a concessão do visto temporário e da autorização de
residência para fins de acolhida humanitária para nacionais afegãos, apátridas e pessoas afetadas pela situação de grave ou iminente
instabilidade institucional, de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário no Afeganistão. Diário Oficial
da União: seção 1, Brasília, DF, p. 147, 08 nov. 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-interministerial-n-24-de-3-de-
-setembro-de-2021-343300675. Acesso em: 13 set. 2021.
178
CORTE IDH. Derechos y garantías de niñas y niños en el contexto de la migración y/o en necesidad de protección internacional:
Opinión Consultiva OC-21/14 de 19 de agosto de 2014. 2014. par. 80.

559
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Complementarmente, o CDC em sua Observação Geral no. 6 reconheceu a necessidade de a definição


de “refugiado” ser interpretada à luz de critérios como idade e gênero.179
Entretanto, não apenas crianças e adolescentes não são contemplados desde uma definição mais estrita
de refúgio. É possível observar que as prerrogativas do refúgio não levam em consideração aspectos de
gênero, que impactam mulheres, como violência doméstica,180 ou que estão atrelados à orientação
sexual e à identidade de gênero e que afetam a população LGBTQIA+, como violência, encarceramento,
penas de morte.181 Tampouco se tem observado o reconhecimento expresso de pessoas que fogem por
questões ambientais como “refugiados”. Logo, é possível afirmar que o conceito de refugiado é restrito
e não contempla todos os fenômenos que provocam a “fuga” de pessoas para outros territórios.182
De todo modo, independente do tratado e da definição que se adote, para que um indivíduo seja consi-
derado como refugiado, é necessário que preencha os requisitos estabelecidos na Convenção de 1951
ou no Protocolo Adicional de 1967. Compete, portanto, ao Estado de acolhida reconhecer um indivíduo,
ou não, como refugiado.
No Caso Familia Pacheco Tineo vs. Bolívia, a Corte IDH, ao aplicar as disposições do Estatuto do Refu-
giado, levando em conta o artigo 29 da CADH, afirmou que o reconhecimento da condição de refu-
giado de um indivíduo não tem caráter constitutivo, mas declaratório, de modo que ninguém adquiriria
a “condição de refugiado em virtude do reconhecimento, senão que se reconhece tal condição pelo
fato de ser refugiado.”183 Entretanto, existem hipóteses em que os Estados estão autorizados a negar a
condição de refugiado a pessoas que, embora cumpram com os requisitos, não são consideradas “mere-
cedoras” da proteção. De acordo com o ACNUR, o artigo 1.f da Convenção de 1951 tem como finalidade
evitar que pessoas responsáveis por atrocidade de delitos graves sejam consideradas refugiadas.184

5.2.2. O procedimento para o reconhecimento do status de refugiado

O Estatuto dos Refugiados e o Protocolo Adicional de 1967 não estabelecem um procedimento a ser
seguido para o reconhecimento de um indivíduo como refugiado. Trata-se de um exame realizado pelas
autoridades de um Estado para determinar se a pessoa que apresentou um pedido de reconhecimento
da condição de refugiado, ou expressou de alguma maneira a necessidade de ser reconhecido como
tal, pode ser reconhecida como refugiada. Tal análise deve levar em conta a definição de refugiado
aplicada pelo Estado,185 em conformidade com tratados por ele ratificados e sua legislação doméstica.

179
ONU. General comment Nº 6 (2005) – Treatment of unaccompanied and separated children outside their country of origin: Adop-
ted at the Thirty-ninth session, 17 May – 3 June 2005. 2005. par. 59.
180
ROSA, Marina de Almeida; VIGNOL, Claudia Pesano. O refúgio é para todas? Uma análise da vulnerabilidade da mulher refugiada e da
adequação do instituto à condição da mulher. In: GUERRA, Sidney. et al (org.). Migrações internacionais: enfrentamentos locais, regio-
nais e globais. Curitiba, Instituto Memória, 2019, p. 284-321.


181
BAGGIO, Roberta Caminero; HASS, Emilie de; NASCIMENTO, Daniel Braga. Migration due to sexual orientation and gender identity.
Revista do Direito. Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 15, 2017, p. 58-67.
182
CHIMNI, B. S. International Refugee Law: A Reader. New Delhi: Sage Publications, 2000. p. 2; ROSA, Marina de Almeida. O encontro
do direito internacional dos refugiados com o Sul global: uma análise do “conceito do sul” de refugiados e de sua não aplicação pelas
Nações Unidas. 2019. 220 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito público, Universidade do Vale do
Rio dos Sinos (UNISINO), Porto Alegre, 2019.
183
CORTE IDH. Caso Familia Pacheco Tineo Vs. Bolivia: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 25 de
noviembre de 2013. 2013. par. 144-145.
184
ACNUR. Guidelines on International Protection: Application of the Exclusion Clauses: Article 1F of the 1951 Convention relating to the
Status of Refugees: HCR/GIP/03/05 4 September 2003. 2003. par. 2.
185
ACNUR. La determinación del estatuto de refugiado, ¿cómo identificar a un refugiado?: Módulo autoformativo Nº 2, 1 de septiem-
bre de 2005. 2005. p. 10.

560
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Os Estados têm adotado procedimentos internos para o reconhecimento da condição de refugiado,


embora possam delegar ao ACNUR a prerrogativa de determinar a condição de refugiado de alguém
dentro de seu território. O Comitê Executivo do ACNUR reconheceu a relevância de os Estados estabele-
cerem procedimentos justos e eficazes, em conformidade com a Convenção de 1951 e com o Protocolo
Adicional de 1967 para os procedimentos de identificação e reconhecimento do status de refugiado.186
O procedimento para determinação da condição de refugiado deve: (a) estar orientado pelos princípios
da não discriminação e do devido processo legal, por meio de procedimentos previsíveis, coerentes
e objetivos;187 (b) garantir ao solicitante as facilidades necessárias, incluindo os serviço de intérprete,
assessoria e representação legal; (c) ser examinado com objetividade, por autoridade competente e
identificada; (d) fundamentar as decisões sobre o reconhecimento do status; (d) proteger os dados do
solicitante, levando em conta a confidencialidade dessas informações; (e) permitir a possibilidade de
recurso ante decisão denegatória, o qual deve ser resolvido em prazo razoável, e ter efeitos suspensivos
para permitir que o solicitante permaneça no país até a decisão final.188
No Brasil, o procedimento para a determinação da condição de refugiado está regulado pela Lei no.
9.474/1997, que reconhece como causa para tal reconhecimento as seguintes: fundados temores de
perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, grave e
generalizada violação de direitos humanos. Além disso, a referida legislação prevê que o CONARE
como órgão competente para analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da
condição de refugiado. Trata-se de procedimento administrativo, que prevê a possiblidade de recursos,
na hipótese de decisão negativa sobre o reconhecimento do status de refugiado.189
Embora as solicitações de reconhecimento da condição de refugiado sejam reguladas, em regra, por
procedimentos internos dos Estados, e, em grande maioria, ocorram a partir da avaliação individual
do solicitante, existem casos excepcionais em que se torna impossível a determinação da condição
de refugiado, de modo que as autoridades locais optam pela “determinação coletiva” da condição de
refugiado.190 Nessa hipótese, ocorre o chamado reconhecimento prima facie da condição de refugiado,
sendo possível a revisão da condição.191 Recentemente, o Estado brasileiro reconheceu a condição de
refugiado “em bloco” a 7.786 venezuelanos.192 Embora a decisão indique os processos de cada um dos
solicitantes, seria possível afirmar que houve a determinação coletiva de refugiados venezuelanos.
A respeito, a Corte IDH afirmou no Caso Familia Pacheco Tineo vs. Bolívia que o reconhecimento
da condição de refugiado protege o indivíduo para além das fronteiras do Estado que concedeu tal
proteção. Isso significa que na hipótese de o refugiado cruzar a fronteira e viajar a outro país, o Estado

186
COMITÉ EJECUTIVO DEL ALTO COMISIONADO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS REFUGIADOS. Conclusiones Adoptadas por
el Comité Ejecutivo para la Protección Internacional de Refugiados: Nº 71 (XLIV): Conclusión general sonre la protecci’ón internacio-
nal. 1993. par. 1.
187
CORTE IDH. Caso Familia Pacheco Tineo Vs. Bolivia: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 25 de
noviembre de 2013. 2013. par. 157.
188
CORTE IDH. Caso Familia Pacheco Tineo Vs. Bolivia: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 25 de no-
viembre de 2013. 2013. par. 159; CIDH. Debido processo en los procedimentos para la determinacion de la condición de persona refugiada,
y apátrida y el otorgamiento de protección compelementaria: OEA/Ser.L/V/II. 2020.
189
BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e de-
termina outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2010?]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.
htm. Acesso em: 13 set. 2021.
190
ACNUR. Guidelines on International Protection Nº 11: Prima Facie Recognition of Refugee Status: HCR/GIP/15/11. 2015. par. 4.

ACNUR. Guidelines on International Protection Nº 11: Prima Facie Recognition of Refugee Status: HCR/GIP/15/11. 2015. par. 4 e 18.
191

192
BRASIL. Despacho. Publicação de decisão do Comitê Nacional para os Refugiados - Conare que decidiu pelo Reconhecimento da Condi-
ção de Refugiado. Publicado em: 15/09/2020. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 69, 15 set. 2020. Disponível em: https://www.
in.gov.br/en/web/dou/-/despacho-277428758. Acesso em: 15 set. 2021.

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O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

no qual ele se encontrar deve levar em conta seu status antes de adotar qualquer medida de caráter
migratório a seu respeito.193

5.2.3. O princípio do non refoulement

O princípio do non refoulement foi consagrado pelo Estatuto dos Refugiados e estabelece que nenhum
Estado poderá expulsar ou devolver um refugiado para um território onde sua vida ou liberdade esteja
em perigo em razão de sua raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. Trata-se de
garantia de não devolução que não é aplicada nos casos em que o refugiado é considera um “perigo”
para a segurança do Estado em que se encontra, ou, quando o refugiado é condenado definitivamente
por crime ou delito particularmente grave para o referido país. O non refoulement foi reafirmado pelo
Protocolo Adicional de 1967.
Por sua vez, o Comitê Executivo do ACNUR, reconheceu em sua Conclusão no. 9 – sobre o escopo e
conteúdo do princípio do non refoulement, que a garantia de não devolução possui importância funda-
mental, devendo ser garantido tanto nas fronteiras, quanto dentro do território de um Estado. Ademais,
indica que o non refoulment abrange tanto os refugiados, quanto os solicitantes de refúgio194.
O CDH reconhece o non refoulement como prerrogativa dos não nacionais frente à possibilidade de os
Estados estabelecerem restrições ao direito à liberdade de circulação. Não obstante, o referido órgão
tem reconhecido a possibilidade de devolução nos casos em que os indivíduos são acusados de cometer
crimes que colocam em risco a segurança nacional, desde que julgados por autoridades competentes e
garantidos seus direitos ao devido processo judicial e às garantias judiciais.195 De maneira mais ampla, a
Corte IDH afirmou que o non refoulement é um componente do direito a buscar e receber asilo, sendo
uma obrigação estatal não devolver, de nenhum modo, uma pessoa a um território no qual ela sofra
risco de perseguição.196
Ademais, em sentido contrário a outros sistemas de proteção de direitos humanos,197 a Corte IDH
tem interpretado o princípio no non refoulement de maneira mais protetiva e abrangente do que seu
reconhecimento no Direito Internacional dos Refugiados. No Caso Familia Pacheco Tineo vs. Bolivia,
a Corte IDH estabeleceu que no âmbito do SIDH o princípio da não devolução possui sentido mais
amplo devido à complementariedade das normas de Direito Internacional dos Refugiados e do DIDH.
Para a Corte IDH, a proibição de devolução é uma “pedra angular” da proteção internacional de
refugiados e asilados, além de ser uma norma de direito consuetudinário que deriva da proibição da
prática de tortura.198

193
CORTE IDH. Caso Familia Pacheco Tineo Vs. Bolivia: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 25 de
noviembre de 2013. 2013. par. 150.
194
ACNUR. The scope and content of the principle of non-refoulement: Opinion. 2001. Disponível em: https://www.unhcr.org/protec-
tion/globalconsult/3b33574d1/scope-content-principle-non-refoulement-opinion.html. Acesso em: 18 set. 2021.
195
ONU. Celepli v. Sweden: CCPR/C/51/D/456/1991. 1994. p. 9.2; UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS COMMITTREE. Samira Karker v. Fran-
ce: CCPR/C/70/D/833/1998. 2000. par. 9.2.
196
CORTE IDH. La institución del asilo y su reconocimiento como derecho humano en el Sistema Interamericano de Protección
(interpretación y alcance de los artículos 5, 22.7 y 22.8, en relación con el artículo 1.1 de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos): Opinión Consultiva OC-25/18 de 30 de mayo de 2018. 2018. par. 173, 179.


197
Sobre a posição do sistema europeu de direitos humanos, veja-se: ROSA, Marina de Almeida. A concessão de asilo e os obstáculos à expul-
são de migrantes na Corte Europeia de Direitos Humanos a partir do caso Sufi and Elmi v. United Kingdom. In: SQUEFF, Tatiana Cardoso
(org). Asilo político: discussões teóricas e casos emblemáticos. Londrina: Thoth, 2021, p. 341-366.
198
CORTE IDH. Caso Familia Pacheco Tineo Vs. Bolivia: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 25 de
noviembre de 2013. 2013. par. 151.

562
DIREITO À NACIONALIDADE, CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA, ASILO E REFÚGIO

Com isso, a Corte IDH reconheceu que o non refoulement possui caráter de norma imperativa de
direito internacional, isto é, uma norma de jus cogens,199 que vincula a todos os Estados independente
de terem ratificados tratados que garantam a não devolução e que não pode ser derrogada. Tal inter-
pretação difere da Convenção de 1951 que reconhece exceções ao princípio da não devolução. 200 No
Caso Wong Ho Wing vs. Peru a Corte IDH apontou a relação direta que há entre a não devolução e o
direito à integridade pessoal, estabelecendo que, uma análise conjunta entre as obrigações erga omnes
de respeitar e garantir os direitos humanos e o artigo 5 da CADH (direito à integridade), permitiria
concluir que o Estado não deve deportar, devolver, expulsar, extraditar ou remover de qualquer outro
modo uma pessoa que esteja em sua jurisdição a outro Estado, ou mesmo a um terceiro Estado que não
seja seguro, quando há presunção de que essa pessoa está em perigo de ser submetida a tortura, tratos
cruéis, desumanos ou degradantes. 201
Desta forma, quando uma pessoa alegue ante um Estado o risco de uma possível devolução, as autori-
dades estatais devem entrevistar a pessoa e realizar uma avaliação prévia ou preliminar para confirmar
os eventuais riscos de uma devolução. 202 Assim, ao examinar o princípio do non refoulment frente à
possibilidade de riscos aos direitos à vida e à integridade, a Corte IDH afirmou que tal risco deve ser real
(possuir uma consequência previsível), devendo o Estado entrevistar a pessoa, realizar um exame indi-
vidualizado a fim de verificar e avaliar se a pessoa corre riscos no país para onde será enviada. 203 Entre-
tanto, para que se reconheça o risco real no país de destino, não se deve restringir o exame da situação
às condições gerais de direitos humanos daquele Estado, mas é preciso demonstrar que as circunstân-
cias da pessoa que se quer extraditar ou devolver lhe expõem a um risco real, previsível e pessoal. 204
No Brasil, o STF tem garantido a aplicação do princípio do non refoulement. Por exemplo, na Extradição
no. 1.170, negou o pedido do Estado Argentino de extradição de indivíduo reconhecido como refugiado
com base na não devolução, já que o mesmo não teria praticado ilícitos capazes de expulsá-lo do terri-
tório nacional. A decisão fundamentou-se na Lei n. 9.474/1997 que estabelece que o reconhecimento
de um indivíduo como refugiado obsta a extradição baseada nos fatos que fundamentam o pedido
de refúgio. Ainda, a referida lei estabelece que somente podem ser expulsos os refugiados que aten-
tarem contra a segurança nacional ou contra a ordem pública, em concordância com o Estatuto de
1951. Logo, diferentemente da premissa do sistema interamericano, o Estado brasileiro não reconhece
o non refoulement como norma de jus cogens, na medida em que a legislação brasileira prevê hipó-
teses de devolução nos casos em que o refugiado ou solicitante de refúgio atentar contra a segurança
nacional ou contra a ordem pública. Dessa forma, a legislação brasileira está adequada ao Estatuto de
1951, mas não ao SIDH.
A nível interno, também cabe destacar a decisão monocrática no Agravo em Recurso Especial AREsp
1520729 AM/2019, que tramitou perante o Superior Tribunal de Justiça sobre um pedido de devolução

199
CORTE IDH. Caso Familia Pacheco Tineo Vs. Bolivia: Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 25 de
noviembre de 2013. 2013. par. 151.
200
A respeito, veja-se: CANTO, Bruno Voesch do; ROSA, Marina de Almeida. O direito internacional dos refugiados e o princípio do non-re-
foulement: a possibilidade de seu reconhecimento como norma de jus cogens a partir dos sistemas europeu e interamericano de direitos
humanos. E-CIVITAS (BELO HORIZONTE), v. 14, p. 168-206, 2021.


201
CORTE IDH. Caso Wong Ho Wing Vs. Perú: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 30 de junio de 2015. 2015.
par. 127.
202
CORTE IDH. Caso Wong Ho Wing Vs. Perú: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 30 de junio de 2015. 2015,
par. 129.
203
CORTE IDH. Caso Wong Ho Wing Vs. Perú: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 30 de junio de 2015. 2015.
par. 155-156.
204
CORTE IDH. Caso Wong Ho Wing Vs. Perú: Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas: Sentencia de 30 de junio de 2015. 2015.
par. 169, 173.

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O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

feito pelo Estado da Colômbia. No caso, tratou-se de pedido de devolução de indivíduo que, na infância
fora criança-soldado205 e que, posteriormente, tornou-se refugiado no Brasil. A partir disso, e aplicando
a Lei no. 9.474/97, o Ministro Sérgio Kukina reconheceu em decisão monocrática que o Poder Judiciário
não possui competência para determinar a condição de refugiado de um indivíduo, já que esta é do
CONARE; que não tendo o indivíduo sido processado e julgado em seu país ou no Brasil por quaisquer
crimes, não é possível determinar sua expulsão do Brasil; e que ao se reconhecer a condição de refu-
giado no caso, estava implícito que o retorno daquela pessoa ao seu país de origem ou de residência é
impossível devido a ameaças a sua vida. 206


205
Sobre o tema, veja-se: ROSA, Marina de Almeida; BORGES, Murilo. Crianças e adolescentes recrutadas pelo Estado e o Sistema Interame-
ricano: uma análise do caso Vargas Areco vs. Paraguai. Cadernos Eletrônicos Direito Internacional sem Fronteiras, v. 3, p. 1-22, 2021.
206
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial: AREsp 1520729 AM 2019/0163650-7. Brasília, 1 ago. 2019. Disponível
em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/875878910/agravo-em-recurso-especial-aresp-1520729-am-2019-0163650-7. Acesso em: 7
maio 2022.

564
DIREITOS POLÍTICOS

DIREITOS POLÍTICOS

Breno de Azevedo Barros

Breno Baía Magalhães

1. INTRODUÇÃO

Em formulação clássica de nossa literatura, Carvalho1 afirma que a cidadania desdobra-se em direitos
civis, políticos e sociais. Quanto ao gozo efetivo desses direitos, o cidadão pleno goza dos três; os cida-
dãos incompletos, de alguns, e o não-cidadão de nenhum.
Direitos civis são os direitos clássicos de liberdade (propriedade, igualdade, liberdade de pensamento
etc.), ou seja, elementos políticos que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e importantes
para impor limites ao exercício do poder político da sociedade civil capitalista. A base desses direitos é
a liberdade individual.
Direitos políticos, por sua vez, dizem respeito à participação do cidadão no governo do Estado, o que
inclui as prerrogativas de votar e ser votado. Em função de seu vínculo direto com a nacionalidade
e com o exercício de decisões políticas que impactam o destino da comunidade, 2 os direitos polí-
ticos não se estendem a todas as pessoas igualmente. É possível, no entanto, titularizar direitos civis
desacompanhados dos políticos (como as crianças e estrangeiros), mas o contrário é inviável. Votar
sem ter a liberdade de se expressar e de se organizar em torno de causas e ideais esvazia o conteúdo
dos direitos políticos, servindo, nessas hipóteses, tão somente como garantia formal apta a justificar
governos tirânicos em detrimento da efetiva representação dos cidadãos. A essência dos direitos polí-
ticos é o autogoverno.
Direitos sociais, por fim, garantem a participação das pessoas na riqueza coletiva social (educação,
trabalho, saúde, etc). Em tese, independem de ambos os direitos expostos anteriormente e, quando
estes se são inefetivos na prática, as garantias sociais tendem a ser arbitrárias. Os direitos sociais
reduzem as desigualdades produzidas pelo capitalismo e garantem um mínimo de bem-estar social. A
ideia central que ampara os direitos sociais é a da justiça social.
A construção teórica recente mais difundida sobre a cidadania é a de TA Marshall, 3 para quem o ideal de
cidadania plena surgiu na Inglaterra de maneira lenta e gradual. Em um primeiro momento, os direitos
civis foram conquistados no século XVIII por meio das revoluções burguesas. Posteriormente, no século
XIX, surgiram os direitos políticos e, por fim, os direitos sociais foram conquistados no início do século
XX. De acordo com Marshall, esse sequenciamento não é apenas um capricho cronológico, mas um
desenvolvimento lógico e necessário. Com base nos direitos civis, todas as camadas sociais inglesas
reivindicaram o direito de participar do governo de seu país. A participação e inclusão políticas propi-
ciaram a criação do Partido Trabalhista, responsável pela introdução dos direitos sociais por meio dos
seus membros eleitos ao Parlamento.


1
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 09-10.
2
VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 537.
3
MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

565
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O desenvolvimento sequencial nos sugere que a cidadania é um fenômeno histórico de grupos sociais
subordinados que lutam pela constante ampliação de suas esferas de direitos. 4 O ideal move as expe-
riências políticas nacionais, cujos caminhos em direção à cidadania plena podem ser distintos, além de
nem sempre seguirem a trajetória observada por Marshall na Inglaterra. No Brasil, por exemplo, obser-
vamos as seguintes características: 1) uma maior ênfase nos direitos sociais, em detrimento de todos os
demais, estabelecidos e franqueados por uma burocracia estatal que coopta para si o conflito social;
2) sequenciamento de desenvolvimento dos direitos inverso à experiência inglesa, contando com a
precedência dos temporal dos sociais e 3) direitos políticos concedidos de forma ampla, tardiamente,
após a CRFB/88, desacompanhados da concretização de direitos civis básicos de forma igualitária. A
inversão lógica dessa sequência de desenvolvimento de direitos afetou a natureza de nossa cidadania.
Essa cidadania de baixa intensidade, 5 fruto da legalidade truncada forjada pela inversão no desenvol-
vimento dos direitos civis, políticos e sociais, acaba por gerar classes hierarquizadas de cidadãos. No
Brasil, Carvalho,6 por exemplo, as subdivide da seguinte forma: 1) cidadão doutor: cujos privilégios e
direitos são assegurados pelo poder do direito, o que os coloca acima das leis – são, geralmente, brancos
ricos e bem-educados. Seus vínculos político-sociais facilitam a aplicação da lei a seu favor; 2) cidadão
simples: sujeitos aos rigores e benefícios da lei, são compostos pela classe média modesta – brancos ou
negros. Não são conhecedores da exata noção de seus direitos e estão à mercê dos agentes policiais
e 3) cidadão de terceira classe: população marginal das cidades, invariavelmente, pardos e pretos com
pouca ou nenhuma escolaridade.
O conhecimento dos padrões internacionais sobre direitos políticos, dessa forma, é medida essencial
para que possamos contornar os problemas ocasionados por nossa cidadania truncada e de baixa
reatividade política. O presente capítulo, portanto, pretende expor os principais padrões de direitos
humanos produzidos por todos os sistemas internacionais de proteção de direitos humanos, com maior
destaque aos mecanismos da ONU e da OEA, representados, respectivamente, pelo PIDCP (1966) e
pela CADH (1969), com vistas à empoderar os cidadãos de terceira classe e os simples em relação aos
seus direitos de participação efetiva na condução da política nacional.
O enfoque na exposição privilegiou os padrões internacionais que consideramos serem mais perti-
nentes ao caso da cidadania brasileira de baixa intensidade, com base em informações que possam
servir de fundamento de pesquisa para o operador ou operadora do direito em sua prática cotidiana. A
escolha dessa abordagem justifica, por fim, a estipulação de tópicos especiais apresentados na segunda
metade do artigo.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos Internacionais

2.1.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos

Artigo XXI

4
VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 537.
5
O’DONNELL, Guillermo. Poliarquias e a (in)efetividade da lei na América Latina. Novos estudos, São Paulo, v. 51, p. 37-61, jul., 1998.
6
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 215-216.

566
DIREITOS POLÍTICOS

1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de
representantes livremente escolhidos.
2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições
periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a
liberdade de voto.

2.1.2. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem

ARTIGO XX
Toda pessoa, legalmente capacitada, tem o direito de tomar parte no governo do seu país, quer direta-
mente, quer através de seus representantes, e de participar de eleições, que se processarão por voto
secreto, de uma maneira legítima, periódica e livre.

2.1.3. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

Artigo 25
Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas
no artigo 2 e sem restrições infundadas:
a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livre-
mente escolhidos;
b) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e iguali-
tário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores;
c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.

2.1.4. Convenção Americana sobre Direitos Humanos

Artigo 23
1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:
a) de participar da direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes
livremente eleitos;
b) de votar e se eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por
voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e
c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.
2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades e a que se refere o inciso anterior, exclusi-
vamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental,
ou condenação, por juiz competente, em processo penal.

567
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3. OS DIREITOS POLÍTICOS NO SISTEMA UNIVERSAL

Para que haja o gozo completo da participação popular na vida pública, a comunicação livre de ideias
sobre questões políticas entre cidadãos, candidatos e representantes eleitos é essencial. Isto implica
uma imprensa livre e que outros meios de mídia possam manifestar-se sem censura e longe de limites
desarrazoados para que informem ao público. Dessa forma, os direitos políticos previstos nas declara-
ções mais básicas de Direitos Humanos requerem o gozo completo da liberdade de expressão, 7 o direito
de associação livre e o direito de engajamento político, individual ou coletivo (por meio de partidos
políticos, por exemplo).8
O direito de votar em uma democracia deve incluir o direito (ou opção) de não exercê-lo. Portanto,
ainda que um ordenamento jurídico estipule o comparecimento obrigatório em cabines de votação, o
voto como livre expressão da manifestação política em um candidato ou em uma pauta política ideoló-
gica não pode ser obrigatório.9
O artigo 25 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) garante direitos de parti-
cipação política aos cidadãos de seus Estados-partes. Enquanto o item (a) oferece uma formulação
genérica deste direito e garantias de responsabilidade democrática por parte dos Estados, os itens (b)
e (c) dizem respeito a aspectos específicos da participação política, tais como o direito de votar e de ser
eleito. O tratado não define o que seria cidadania, para fins de gozo desses direitos políticos, mas proíbe
a adoção de critérios discriminatórios no momento de sua atribuição legal. Dessa forma, o direito cons-
titucional dos Estados-parte não está proibido de conferir tais direitos à não-cidadãos, desde que o
façam seguindo a regra antidiscriminatória.10
É possível sugerir, a partir de leitura do Comentário Geral nº 25 do CDH,11 que o pacto não impõe aos
Estados nenhum sistema de governo particular, desde que o regime opere como uma Democracia,12 13 o
que inclui sistemas parlamentares, presidencialistas, unicamerais, bicamerais, Estados estruturados em
forma de federações ou não, etc.14 Por essa razão, uma Monarquia que estabeleça um modelo de sepa-
ração de poderes não contradiz, em si, os termos do tratado, pois não há um direito humano a eleger

7
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso López Lone y otros Vs. Honduras. Excepción Preliminar, Fondo, Repara-
ciones y Costas. Sentencia de 5 de octubre de 2015. Serie C No. 302., § 160; Caso Cepeda Vargas Vs. Colombia. Excepciones Preliminares,
Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26 de mayo de 2010. Serie C No. 2134. § 172.
8
JAYAWICKRAMA, Nihal. The Judicial Application Of Human Rights Law: National, Regional and International Jurisprudence. Cambrid-
ge University Press: Cambridge, 2003, p. 793.
9
X v. Germany, European Commission, Application 2728/66, (1967) 10 Yearbook 336. A extinta comissão europeia concedeu a um cidadão
Austríaco o direito de depositar um voto em branco ou rasurado na urna.
10
Concluding Observations on Russia (2009) UN doc CCPR/C/RUS/CO/6, § 9 (O Estado Parte deve tomar todas as medidas necessárias
para regularizar a situação dos apátridas em seu território, concedendo-lhes o direito de residência permanente e a possibilidade de
adquirir a cidadania russa) (tradução livre). O Comitê de Direitos Humanos (CDH) considera que a distinção entre brasileiros nascidos no
Brasil e cidadãos brasileiros naturalizados como critério de acesso a determinados cargos na vida pública, prevista no artigo 12 (3) da Cons-
tituição de 1988, é incompatível com os artigos 2 e 25 do Pacto e deve ser tratado em conformidade a ele pelo Estado Parte. Concluding
Observations of the Human Rights Committee, Brazil, U.N. Doc. A/51/40, (1996), § 333.
11
ONU Human Rights Committee (HRC), CCPR General Comment No. 25:, 12 July 1996, CPR/C/21/Rev.1/Add.7.
12
CG nº 25, § 1 (Artigo 25 está no cerne do governo democrático baseado no consentimento das pessoas e em conformidade com os
princípios do Pacto).
13
Caso López Lone y otros Vs. Honduras. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 5 de octubre de 2015. Serie
C No. 302., § 149 y ss; Caso Chitay Nech y otros Vs. Guatemala. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25
de mayo de 2010. Serie C No. 212, §107 .
14
JOSEPH, Sarah; Melissa CASTAN. The international covenant on civil and political rights: cases, materials, and commentary, 3ª ed.
Oxford University Press: Oxford. 2013, p. 731.

568
DIREITOS POLÍTICOS

um chefe de Estado ou de ser eleito para este cargo.15 Da mesma forma, as disposições do Pacto são
compatíveis com numerosos sistemas eleitorais, como o de representação proporcional, majoritária,
sistemas de colégio eleitoral etc.16
O Comitê de Direitos Humanos (CDH) afirma que o direito ao voto obriga os Estados a cumprir
com medidas positivas,17 tais como a superação de obstáculos para o registro de pessoas que moram
em lugares remotos ou que estejam em situação de rua, para que nenhuma delas seja impedida de
exercer seus direitos.18 Ademais disso, a fim de assegurar o livre exercício da participação política, os
Estados deverão atuar ativamente na produção de materiais de educação, conscientização e que se
certifique de que sejam acessíveis a pessoas com deficiência ou de baixa escolaridade.19 Os Estados
têm o dever de tomar medidas que garantam a natureza secreta do voto durante as eleições, seja na
forma de prevenção de coerções, seja na proteção contra interferências arbitrárias durante o voto. A
segurança dos locais de votação deve ser garantida, bem como a dos candidatos e pessoas relacionadas
ao processo eleitoral, 20 21 e a contagem dos votos deverá ser feita na presença dos candidatos ou de
seus agentes. Mecanismos de auditagem e submissão à revisão judicial devem estar franqueados aos
eleitores e aos candidatos. 22
O exercício do direito de participar da condução dos assuntos públicos deve ser interpretado dentro
da moldura dos sistemas jurídicos e constitucionais dos Estados, os quais se incumbirão de oferecer
as respectivas modalidades de participação. Todavia, os Estados não estão obrigados a garantir que
qualquer grupo diretamente afetado na condução de determinado assunto, pequeno ou grande, tenha
um direito incondicional de escolher as modalidades dessa participação. O Canadá, por exemplo,
não violou o Direito Humano político do povo Mikmaq pelo fato de eles não terem sido convidados,
enquanto grupo, às conferências constitucionais sobre assuntos relativos ao autogoverno aborígene. 23
Representantes de outras comunidades participaram desses debates na condição de convidados, como
cortesia, mas a Constituição previa tão somente a participação de 10 delegados eleitos popularmente.
No entanto, mais recentemente, o CDH tem indicado que minorias políticas, especialmente popula-
ções tradicionais e povos originários, têm direito de participação direta nas decisões que podem afetar
diretamente sua cultura tradicional. Na opinião do Comitê, a legitimidade de medidas que compro-
metam, substancialmente, ou interfiram nas atividades econômicas culturalmente significativas para
uma minoria ou comunidade indígena depende da averiguação da oportunidade desfrutada pelos
membros da comunidade em questão para participar do processo de tomada de decisão em relação

15
Mazon Costa v. Spain, Comm. 1745/2007, U.N. Doc. A/63/40, Vol. II, at 500 (HRC 2008) § 3.2 (Embora o artigo 25, parágrafo (a), aluda à
eleição de representantes e o parágrafo (b) da mesma disposição, embora garanta o direito de voto e de ser eleito em eleições periódicas
genuínas, não concede o direito de eleger um chefe de Estado ou para ser eleito para tal cargo) (tradução livre).
16
CG nº 25, § 21 (Embora o Pacto não imponha qualquer sistema eleitoral em particular, qualquer sistema que opere num Estado-Parte deve
ser compatível com os direitos protegidos pelo Artigo 25 e deve garantir e dar efeito à livre expressão da vontade dos eleitores).


17
JOSEPH; CASTAN, op. cit, p. 741.
18
CG nº 25, § 11 (Quando o registro de eleitores é requerido, este deve ser facilitado, não devendo ser impostos obstáculos a tal registro. Se
os requisitos de residência se aplicam ao registro, eles devem ser razoáveis e não devem ser impostos de forma a excluir os sem-teto do
direito de voto).
19
CG nº 25, § 12 (Informações e materiais sobre votação devem estar disponíveis em idiomas de minorias. Devem adotar métodos especí-
ficos, como fotografias e símbolos, para garantir que os eleitores analfabetos tenham informações adequadas sobre as quais vão basear
sua escolha de voto).
20
Caso Pacheco León y otros Vs. Honduras. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de noviembre 2017. Serie C No. 34., § 158
21
No Brasil, a proteção aos candidatos à Chefia do Poder Executivo é garantida pela Lei Federal 7.474/1986.
22
CG nº 25, § 9-12.
23
Marshall v Canada, Communication 205/1986, UN Doc CCPR/C/43/D/205/1986 (1991), § 5.5.

569
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

a essas medidas, e se eles continuarão a beneficiar-se de sua economia tradicional. Essa participação
deve ser efetiva, o que não se resume a mera consulta, mas ao exercício livre, prévio e informado do
consenso de seus membros. 24
O CDH postula que o direito ao voto não é absoluto e está sujeito a limitações razoáveis desde que não
impliquem limitações discriminatórias entre cidadãos. Dessa forma, é aceitável limitar tais direitos com
base na idade dos eleitores, mas não, por exemplo, com base em eventual deficiência física, capaci-
dades físicas, na falta de exigências literárias25 ou educacionais e filiação partidária.
O CDH expressou preocupação com os requisitos estabelecidos pelos Estados que exigem o domínio
de idioma para que as pessoas possam candidatar-se às eleições, uma vez que tais critérios podem
limitar a participação política de minorias linguísticas, principalmente de povos tradicionais e originá-
rios. No entanto, o Direito Internacional dos Direitos Humanos ainda não criou parâmetros seguros
e suficientes para a defesa de um direito humano linguístico autônomo baseado na não-discrimi-
nação política, o qual seja dotado de forma e substância suficientes a ponto de obrigar os Estados
a adotarem várias línguas ou dialetos como medidas para o funcionamento de seus órgãos políticos
representativos. 26
Para o CDH, uma limitação que se apresenta como irrazoável é a exigência de filiação partidária geral
prévia, ou a um partido em especial, para que uma pessoa concorra a eleições. 27 Esse direito não impede
que procedimentos sejam criados para determinar a perda de mandatos e limites aos gastos financeiros
com candidaturas, 28 desde que baseados em critérios objetivos e razoáveis. Em um caso controverso, o
CDH não considerou que a expulsão religiosamente motivada de um cientólogo de um partido cristão
fosse uma violação de seu direito humano a participar de um partido político, uma vez que os direitos
de associação dos membros do partido seriam mais importantes e preponderantes nesta contenda. 29
Joseph e Castan30 questionam se essa mesma decisão teria sido tomada caso a religião do reclamante
fosse mais difundida socialmente.

24
Poma Poma v.Peru, Comm. 1457/2006, U.N. Doc. CCPR/C/95/D/1457/2006 (HRC 2009), § 7.6.
25
Na decisão do caso Ignatane, o Comitê de Direitos Humanos concluiu que critérios pouco objetivos e a submissão a procedimento
rigoroso ad hoc para aferição de domínio linguístico com vistas à candidatura de membro de minoria linguística violou o PIDCP. No caso,
o Estado criou procedimento ad hoc em 97 que resultou na reprovação da candidata, fato que contrariava certificação anterior fornecida
pelo Estado em 93, o qual atestou o domínio do idioma nacional por pessoa pertencente à minoria linguística russa e que pretendia
apresentar-se como candidata a cargo eletivo. O comitê afirmou que o Estado não estabeleceu, legislativamente, índices de proficiência
na língua para fins de candidaturas a cargos políticos, mas apenas um programa de certificação geral, portanto, uma exigência mais rigo-
rosa estabelecida anos depois da concessão de certificação casuisticamente configurava uma atitude discriminatória. Ignatane v. Latvia
(Communication No. 884/1999 Latvia. 31/07/2001. CCPR/C/72/D/884/1999). O CDH, anos depois, considerou bem-vinda a mudança na
legislação da Latvia que removeu o requisito linguístico para candidatos a cargos públicos. Report of the HRC (1 October 2004) UN Doc
A/59/ 40, § 65.
26
MOWBRAY, Jacqueline. Linguistic justice: international law and language policy. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 171-178.


27
CG nº 25, § 17 (direito das pessoas de se candidatarem a eleições não deve ser limitado de forma excessiva à exigência de que candidatos
sejam membros de partidos ou de partidos específicos).
28
O Comitê tem externado preocupação com os elevados custos das campanhas para se garantir um cargo eletivo nos EUA, pois eles
acabam servindo de barreiras para candidaturas mais populares (1995) UN doc CCPR/C/79/Add.50, § 24.
29
Arenz v. Germany, Comm. 1138/2002, U.N. Doc. A/59/40, Vol. II, at 548 (HRC 2004). Embora o Comitê não tenha considerado admissível
o requerimento de partido e de seu líder, os quais veiculavam, por meio telefônico, conteúdos propagandísticos de conteúdo antissemita
para atrair membros, fato que ensejou a aplicação de multa ao partido e a prisão de seu líder, o órgão da ONU, a respeito da atuação políti-
ca do Partido e de seu líder, afirmou que: “As opiniões que o Sr. T. procura disseminar através do sistema telefônico constituem claramente
a defesa do ódio racial ou religioso que o Canadá tem a obrigação, nos termos do artigo 20 (2) do Pacto, de proibir”. RT and WG Party v
Canada, Admissibility, UN Doc CCPR/C/18/D/104/1981, Communication No 104/1981, IHRL 2545 (UNHRC 1983), HRC 1983. Portanto, há
uma limitação justificada ao discurso político ideológico que propagandeia ideias odiosas.
30
JOSEPH; CASTAN, op. cit, p. 732.

570
DIREITOS POLÍTICOS

O CDH não considera uma violação ao pacto a suspensão temporária, enquanto durar a segregação, de
pessoas encarceradas. 31 No entanto, violam direitos humanos as legislações que oferecem limitações
amplas e genéricas desse direito a qualquer pessoa sentenciada ao aprisionamento, pois nesses casos
não há a demonstração de argumentos sobre como as restrições atenderiam ao critério da razoabili-
dade. 32 O CDH considerou desarrazoado um banimento genérico de 15 anos, por exemplo. 33
Por fim, não houve violação de direitos humanos quando do banimento de partidos políticos de cunho
fascista, uma vez que podem representar uma ameaça à ordem pública e à segurança nacional vindas
da extrema-direita. 34 A criação de cotas ou medidas afirmativas de discriminação positiva para a garantia
de representatividade de grupos em desvantagem devem ser promovidas, uma vez que essa categoria
de regras também cumpre com as prescrições sobre não-discriminação do pacto. 35

4. OS DIREITOS POLÍTICOS NO SISTEMA INTERAMERICANO

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) afirma que a democracia representativa
é determinante para o sistema regional erigido pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(CADH) e os direitos políticos nela encartados propiciam seu fortalecimento, bem como o do plura-
lismo político. Dessa forma, no sistema interamericano, há uma ligação íntima entre democracia repre-
sentativa e direitos políticos, uma vez que os últimos são elementos essenciais da primeira36. Na opinião
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o conceito de democracia representativa
baseia-se no princípio de que o povo é o titular da soberania política e, no exercício dessa soberania,
é capaz de eleger seus representantes para o exercício do poder político. Estes representantes são,
igualmente, eleitos pelos cidadãos para aplicar medidas políticas específicas, o que, por sua vez, implica
que tenha havido um amplo debate público sobre a natureza das políticas a serem concretizadas.


31
CG nº 25, § 14 (Se a condenação por delito for uma base para suspender o direito de voto, o período de tal suspensão deve ser proporcio-
nal ao delito e à sentença. As pessoas privadas de liberdade, mas que não tenham sido condenadas, não devem ser excluídas do exercício
do direito de voto).
32
Yevdokimov and Rezano v Russia (1410/05), §§ 4.4 e 7.5. A Corte Europeia de Direitos Humanos adota posição semelhante. Cf. Hirst
v. the United Kingdom (no. 2) [GC], 2005, § 71 (O Artigo 3 do Protocolo nº 1, que consagra a capacidade do indivíduo de influenciar a
composição do poder legislativo, não exclui, portanto, que as restrições aos direitos eleitorais possam ser impostas a um indivíduo que,
por exemplo, tenha abusado gravemente de uma posição pública ou cuja conduta tenha ameaçado minar o Estado de Direito ou as bases
democráticas. A severa medida de privação de direitos não deve, no entanto, ser tomada de ânimo leve e o princípio da proporcionalidade
exige uma relação discernível e suficiente entre a sanção e a conduta e as circunstâncias do indivíduo em causa. O Tribunal registra a este
respeito a recomendação da Comissão de Veneza de que a retirada dos direitos políticos só deve ser efetuada por decisão judicial expres-
sa (...). Como em outros contextos, um tribunal independente, aplicando um procedimento contraditório, fornece uma forte proteção
contra a arbitrariedade).
33
Touron v Uruguay, Communication 32/1978, UN Doc CCPR/C/12/D/32/1978, (1981), § 11.
34
M.A. v. Italy, Communication No. 117/1981 (21 September 1981), U.N. Doc. Supp. No. 40 (A/39/40) at 190 (1984).
35
Concluding observations, CCPR, India, (1998) UN doc CCPR/C/79/Add.81, § 11.
36
Caso Castañeda Gutman Vs. México. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de agosto de 2008. Serie
C No. 184, § 141-142. A Corte Europeia de Direitos Humanos defende uma posição semelhante: “De acordo com o Preâmbulo da Conven-
ção, os direitos humanos e as liberdades fundamentais são mais bem mantidos por ‘uma democracia política eficaz’”. Mathieu-Mohin
and Clerfayt v. Belgium, Março de 1987, App No 9267/81, § 47.

571
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A Carta Democrática Interamericana da OEA (2001) não oferece uma definição estrita de democracia
representativa, muito embora contemple seus elementos essenciais e componentes fundamentais:37

Artigo 3. São elementos essenciais da democracia representativa, entre outros, o respeito aos
direitos humanos e às liberdades fundamentais, o acesso ao poder e seu exercício com sujeição
ao Estado de Direito, a celebração de eleições periódicas, livres, justas e baseadas no sufrágio
universal e secreto como expressão da soberania do povo, o regime pluralista de partidos e orga-
nizações políticas, e a separação e independência dos poderes públicos.

Artigo 4. São componentes fundamentais do exercício da democracia a transparência das


atividades governamentais, a probidade, a responsabilidade dos governos na gestão pública, o
respeito dos direitos sociais e a liberdade de expressão e de imprensa. A subordinação constitu-
cional de todas as instituições do Estado à autoridade civil legalmente constituída e o respeito ao
Estado de Direito por todas as instituições e setores da sociedade são igualmente fundamentais
para a democracia. 38

As justas exigências da democracia devem orientar a interpretação da CADH, particularmente, daquelas


disposições relacionadas à preservação e funcionamento das instituições democráticas. 39 Não obstante
a Corte IDH e a CIDH tenham identificado a relação simbiótica entre direitos humanos e democracia,
a Corte IDH não considera que o “Direito à Democracia” possa figurar como uma violação autônoma
a ser sustentada perante sua jurisdição contenciosa, porquanto tal direito deve operar, tão somente,
como vetor interpretativo das obrigações decorrentes da CADH.40
Para a Corte IDH, os direitos políticos referem-se à pessoa como cidadão, ou seja, como titular do
processo de tomada de decisões sobre assuntos públicos; como eleitor, por meio do voto, ou como
servidor público.41 Dessa forma, os direitos políticos andam de mãos dadas com outros direitos, os quais
precisam ser garantidos para a sua livre fruição. Como exemplos de direitos de apoio aos políticos,
citam-se os relativos à liberdade de expressão (art. 13), de associação (art. 16) e de reunião (art. 15).42
O Estado está obrigado a criar as condições e os mecanismos necessários para que os direitos políticos
possam ser efetivamente exercidos, desde que respeitados os princípios da igualdade e não discrimi-

37
Em sentido semelhante, vale a pena conferir a definição da CIDH: “A ideia de democracia representativa leva a que as principais decisões
sejam tomadas por representantes democraticamente eleitos, com o contrapeso de que, se essas decisões não são aprovadas ou endos-
sadas pelas pessoas, pode puni-los sem reeleição. A própria ideia dos autores do constitucionalismo moderno vem buscando soluções
para os abusos de representantes, para evitar que os legisladores confundam com as leis. Daí eleições democráticas, para que as pessoas,
por sua própria vontade, possam escolher representantes com os quais se identificam e evitar trair a sua confiança com a punição de
não reeleição. Portanto, um verdadeiro sistema de democracia representativa é aquele que se esforça em partir da confiança do povo na
designação de seus líderes e também por manter constantemente vivo, como exige a estrutura real da confiança ou de fidúcia, de modo
que as pessoas se reconheçam sempre como detentores do poder e único beneficiário de suas atuações. Esta confiança se estende nos
sistemas presidencialistas, à nomeação direta dos membros do legislativo e do Presidente da República”. Informe nº 137/99, Caso 11.863
(Andrés Aylwin Azócar y Otros v. Chile), 27 de diciembre de 1999, §§ 62-63.
38
OEA. Carta democrática intermaericana, 2001. Disponível em: http://www.oas.org/OASpage/port/Documents/Democractic_Charter.
htm#:~:text=S%C3%A3o%20elementos%20essenciais%20da%20democracia,e%20secreto%20como%20express%C3%A3o%20da.
Acesso em: 27 out. 2022.
39
Opinión Consultiva OC-5/85 de 13 de noviembre de 1985. Serie A No. 5, § 44.
40
Caso Apitz Barbera y otros (“Corte Primera de lo Contencioso Administrativo”) Vs. Venezuela. Excepción Preliminar, Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentencia de 5 de agosto de 2008. Serie C No. 182, §§ 222-223.


41
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS Caso Castañeda Gutman Vs. México. Excepciones Preliminares, Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentencia de 6 de agosto de 2008. Serie C No. 184, § 145.
42
Informe nº 137/99, Caso 11.863 (Andrés Aylwin Azócar y Otros v. Chile), 27 de diciembre de 1999, § 38. Em sentido semelhante, Cf. o CG da
CDH n º 25, § 8 (Os cidadãos também participam da condução dos assuntos públicos exercendo influência por meio do debate público e
do diálogo com seus representantes ou através de sua capacidade de se organizar. Esta participação é apoiada pela garantia da liberdade
de expressão, reunião e associação).

572
DIREITOS POLÍTICOS

nação.43 Essa perspectiva positiva da obrigação estatal pode ser extraída da expressão convencional
“oportunidades”44 (art. 23.1 da CADH). O exercício dos direitos de votar e de ser eleito são expressões,
respectivamente, das dimensões individual e social da participação política, as quais incluem atividades
amplas e diversas a serem realizadas individualmente ou por meio de medidas coletivas organizadas,
todas visando ao propósito de intervir na designação dos governantes ou de quem esteja encarregado
de tomar decisões sobre assuntos públicos.45
Nesse sentido, o direito ao voto é um dos elementos essenciais para a existência da democracia e uma
das formas de participação política. Os Estados devem garantir que os cidadãos possam eleger livre-
mente e em condições de igualdade seus representantes. A participação política mediante o direito
a ser eleito pressupõe que os cidadãos possam postular-se como candidatos em condições de igual-
dade e que possam acompanhar os cargos públicos sujeitos à eleição, caso logrem obter a quanti-
dade necessária de votos para tanto. Por fim, o direito de ter acesso às funções públicas em condições
gerais de igualdade protege o acesso a uma forma direta de participação no desenho, implementação,
desenvolvimento e execução das diretivas políticas estatais por meio de funções públicas, sejam elas
estabelecidas por meio de eleição popular, por nomeação ou designação.
Esses três conjuntos de direitos implicam a criação de prestações concretas sobre o processo eleitoral
(eleições periódicas46 e autênticas) e sobre o sufrágio (universal, igualitário, secreto e que reflita a livre
expressão popular), mas não a ponto de obrigar os Estados a adotarem um sistema eleitoral específico.
A CADH, portanto, limita-se a estabelecer determinados padrões, dentro dos quais os Estados podem
legitimamente regular os direitos e deveres políticos de seus cidadãos.47
Portanto, condicionar candidatura ao pleito nacional à prévia filiação partidária, em princípio, não carac-
teriza violação de um Direito Humano político. Ou seja, um sistema eleitoral que demande do candidato
filiação partidária não é, em si mesma, uma restrição desproporcional, quando comparada, por exemplo,
ao grau de liberdade experimentado pelos candidatos em sistemas que permitem candidaturas avulsas
para disputar eleições majoritárias, em razão da difusão do tradicional modelo de filiação partidária
obrigatória na região americana. Por essa razão, ambos os modelos são compatíveis com a CADH.48
O estabelecimento de requisitos para o exercício de tais direitos não constitui, per se, uma restrição
indevida, desde que atenda à proporcionalidade, legalidade e necessidade. A lei formal, que dever

43
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Yatama Vs. Nicaragua. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones
y Costas. Sentencia de 23 de junio de 2005. Serie C No. 127, § 195; Caso
​​ Cuya Lavy y otros Vs. Perú. Excepciones preliminares, Fondo,
Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de septiembre de 2021, § 159.
44
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso San Miguel Sosa y otras Vs. Venezuela. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 8 de febrero de 2018. Serie C No. 348, § 111.
45
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Yatama Vs. Nicaragua. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 23 de junio de 2005. Serie C No. 127, § 196-200.
46
O direito de ser eleito e a obrigação estatal de estabelecer processos eleitorais periódicos impedem a identificação de um Direito Huma-
no à reeleições indefinidas ou a mandatos por tempo indefinido para chefes de Estado. De acordo com a Corte IDH, a perpetuação de
uma pessoa no exercício de funções públicas acarreta o risco de que o povo deixe de ser devidamente representado pelos seus eleitos e
de que o sistema de governo se assemelhe mais a uma autocracia do que a uma democracia. Ademais, a proibição também visa garantir
que diferentes partidos políticos ou correntes ideológicas possam chegar ao poder. O pluralismo político previsto na Carta Democrática
da OEA assegura o direito das minorias de propor ideias e projetos alternativos, bem como oportuniza sua eleição por meio da alternância
no poder. Opinión Consultiva OC-28/21 de 7 de junio de 2021. Serie A No. 28, §72 -78.


47
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Castañeda Gutman Vs. México. Excepciones Preliminares, Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentencia de 6 de agosto de 2008. Serie C No. 184, § 149. Essa já era a posição da CIDH sobre o tema, conferir: Informe
N° 98/03. Caso 11.204. (Statehood Solidarity Committee v Estados Unidos), 29 De Diciembre de 2003, §88. No mesmo sentido no Sistema
Europeu de Direitos Humanos, conferir: Matthews v. the United Kingdom [GC], 1999, § 64.
48
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Castañeda Gutman Vs. México. Excepciones Preliminares, Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentencia de 6 de agosto de 2008. Serie C No. 184, § 200.

573
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ser precisa e clara, pode estabelecer requisitos para o exercício desses direitos. Essas leis internas não
podem criar mecanismos que dificultem o exercício dos direitos políticos das pessoas para que elas
participem efetivamente da condução pública estatal, ou que tornem ilusória sua participação.
A Corte IDH tem desenvolvido uma interpretação literal do termo “exclusivamente” previsto na CADH
(art. 23.2) para fins de avaliação da legitimidade das restrições propostas pelos Estados-partes aos
direitos políticos, no intuito de garantir que não haja perseguições e arbítrios à oposição política.49
Nessa esteira, por exemplo, a Corte considera que as sanções de demissão e inabilitação (ou inelegi-
bilidade) de funcionários públicos eleitos democraticamente veiculadas por autoridade administrativa
disciplinar são restrições aos direitos políticos não incluídas entre os critérios permitidos pela CADH.
Portanto, essas medidas restritivas de natureza administrativa são incompatíveis, não apenas com o
sentido literal do artigo 23.2 da Convenção, mas, também, com o objeto e a finalidade desse instru-
mento internacional. 50
A Corte IDH, refinando sua posição exposta acima sobre filiação partidária obrigatória, decidiu que a
CADH não estipula que todos os cidadãos só possam exercer o direito a candidatarem-se caso estejam
filiados a partidos políticos, uma vez que essa não é a única maneira de as pessoas organizarem-se poli-
ticamente. Modelos alternativos devem ser franqueados aos grupos que, em razão de suas tradições e
ordenamentos especiais objeto de proteção estatal, poderiam ficar de fora da participação de tomada
de decisão política.
No caso de comunidades originárias e tradicionais, os Estados precisam levar em consideração a difi-
culdade de elas se organizarem institucionalmente em partidos políticos com base em critérios alheios
à sua tradição cultural e social. Com efeito, os Estados precisam justificar essa limitação à participação
política dessas comunidades com base em um propósito útil e oportuno que a torne necessária para
satisfazer a um interesse público imperativo, do contrário, essa limitação configurar-se-á uma exigência
impeditiva do exercício pleno do direito a ser eleito titularizado pelas populações tradicionais. 51 Em
síntese, exigir a filiação partidária de uma pessoa ou forçar a criação de um modelo partidário a um
grupo minoritário será uma violação à CADH se a exigência criar uma situação de discriminação em
face de grupos excluídos do processo político em razão de suas tradições culturais. 52
Ainda no campo das limitações aos direitos políticos, os Estados têm de levar em consideração o fato de
o texto do tratado demandar que as restrições judiciais a essa categoria de direitos devam ser impostas
por um “juiz competente” e decorrentes de uma “condenação” em um “processo penal”. Nessa esteira,
a Corte IDH condenou o Estado Venezuelano por ter inabilitado a vítima para o exercício de cargos

49
A CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS já havia desenvolvido esse tipo de interpretação, ao sustentar que as limitações
aos direitos políticos comporiam um rol numerus clausus, de modo que qualquer outra causa que limitasse o exercício dos direitos de
igual participação política consagrados na Convenção seria contrária e, portanto, violadora das obrigações internacionais do Estado de-
correntes do referido instrumento. Informe nº 137/99, Caso 11.863 (Andrés Aylwin Azócar y Otros v. Chile), 27 de diciembre de 1999, § 101.
50
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Petro Urrego Vs. Colombia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 8 de julio de 2020. Serie C No. 406, § 98.
51
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Yatama Vs. Nicaragua. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia de 23 de junio de 2005. Serie C No. 127§§ 212-224. Este caso surgiu a partir da adoção da Lei Eleitoral n. 331 em janeiro de
2000 pela Nicarágua, que proibia a participação de associações populares de subscrição nas eleições. Somente era permitida a participa-
ção no processo eleitoral, portanto, de organizações partidárias formais. Em março de 2000, a organização indígena Yapti Tasba Masraka
Nanih Takanka Asla (YATAMA) tentou obter autorização para ser reconhecida como um partido político regional. No entanto, apesar dos
vários apelos, o pedido foi negado. Isso fez com que o grupo YATAMA não participasse das eleições de novembro de 2000 (BACK, 2016,
p. 170-171).
52
BURGORGUE-LARSEN, Laurence; TORRES, Amaya. The Inter-American Court of Human Rights: Case Law and Commentary. New
York: Oxford University Press, 2011, p. 602.

574
DIREITOS POLÍTICOS

públicos com base em decisão proferida por órgão administrativo. 53 Essa interpretação foi reforçada em
julgado54 no qual a Corte pode esclarecer que a CADH: “não permite que nenhum órgão administrativo
aplique uma sanção que implique uma restrição (...) a uma pessoa por sua má conduta social (...) para o
exercício dos direitos políticos de eleger e ser eleito”. Baseada nessa premissa, uma restrição aos direitos
políticos só pode ser conduzida “por ato jurisdicional (sentença) do juiz competente no processo penal
correspondente”. 55

5. A (IN)CONVENCIONALIDADE DA LEI DA FICHA LIMPA

Com vistas a combater a eleição de políticos que já tivessem sofrido condenações criminais ainda não
transitadas em julgado, e para complementar o § 9 do art. 14 da CRFB/88, 56 o qual demanda a análise
da vida pregressa do candidato para fins de aferir sua elegibilidade, a Lei Complementar 135/10, popu-
larmente conhecida como “lei da ficha limpa” impôs uma série de restrições ao exercício do direito
político passivo de eleger-se. Não obstante a integralidade da lei tenha sido declarada constitucional
pelo STF nas ADCs 29 e 30 em 2012, a compatibilidade da suspensão dos direitos políticos no caso das
pessoas que eventualmente foram excluídos do exercício de suas profissões por meio de decisão de
órgão profissional competente em decorrência de infração ético-profissional e/ou no caso das demis-
sões de servidores públicos levadas a cabo por processo administrativo (art. 1º, I, m e o da LC 64/90)
permaneceu como um ponto de disputa nos meios jurídicos e acadêmicos.
O relator do caso, Min. Luiz Fux, reforçou que os dispositivos da LC acima mencionados não violavam
a Constituição por dois motivos: em ambas as hipóteses as decisões terão sido tomadas por órgãos
colegiados, sob o manto do contraditório e ampla defesa; e, por fim, ambas as decisões administrativas,
de primeiro e segundo graus, estariam sujeitas à suspensão judicial posterior. 57
Entretanto, como visto acima, a Corte IDH, em dois precedentes, decidiu que restrições relativas à
inabilitação para eleger-se deverão decorrer, necessariamente, de sentença proferida por órgão do
Poder Judiciário competente no bojo de condenação criminal. Importante notar, no entanto, que há um
espaço para o refinamento do argumento interamericano, uma vez que, em ambos os casos julgados
pela Corte IDH (López Mendoza e Petro Urrego), as vítimas estavam ocupando cargos públicos quando
sofreram as restrições indevidas decorrentes de sanções administrativas, o que explica porque a corte
trata da “destituição” e “inabilitação” quase como situações análogas e prejudiciais. Ou seja, a cons-
trução jurisprudencial corrente da Corte de São José daria margem para sustentarmos que a restrição

53
Caso López Mendoza Vs. Venezuela. Fondo Reparaciones y Costas. Sentencia de 1 de septiembre de 2011. Serie C No. 233, § 104-109. Em
voto concorrente neste caso, o Juiz García-Sayán afirmou que: “compartilho e subscrevo o que o Tribunal estabeleceu quanto ao fato de
que, através do exercício desse poder sancionatório administrativo, o direito ao sufrágio passivo não pode ser afetado e que esta função
está reservada a uma autoridade judicial, tendo em conta a dimensão do direito afetado” (tradução livre).
54
Muito embora não tenha uma posição muito clara sobre o tema, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou como violadora de
Direitos Humanos as restrições judicialmente impostas ao direito de votar livremente quando estivessem pendentes procedimentos
sobre questões relativas à falência de empresas, pois, nessas ocasiões, não haveria questionamentos necessários quanto a manifestação
de ações fraudulentas ou baseadas na má-fé da pessoa implicada judicialmente (Albanese v. Italy, App no 77924/01, § 54, 23 March 2006).
55
Petro Urrego Vs. Colombia. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 8 de julio de 2020. Serie C No. 406,
§ 96.
56
Art. 14, § 9º - Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade
administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das elei-
ções contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.


57
A mesma lógica foi aplicada aos indivíduos excluídos do exercício profissional por decisão do órgão ou conselho profissional
competente. Além de, em regra, as decisões serem colegiadas, restou expressamente consignado em lei que apenas as exclusões
por infração ético-profissional poderão ensejar a inelegibilidade e que, em qualquer caso, o Poder Judiciário poderá suspender
ou anular a decisão. Trecho do voto do Ministro Luiz Fux na ADC 29 (DJe 16/02/2012, Pleno).

575
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

decorrente de atos administrativos aos direitos políticos seria legítima para pessoas que não estivessem
ocupando, por exemplo, no momento da decisão, cargos eletivos. 58
Por outro lado, a Corte IDH fez questão de enfraquecer essa interpretação ao ressaltar que as restrições
legítimas aos direitos políticos trazidas pela CADH e submetidas a eventual teste de proporcionalidade,
são, exclusivamente e literalmente, aquelas que estão previstas em seu texto. O critério interpretativo
textual esposado pela Corte justificar-se-ia por conta do objeto e finalidade do art. 23.2, os quais esti-
pulam que os critérios para a limitação desses direitos devem ser claros e objetivos, uma vez que eles
não poderão servir de empecilho para o exercício da oposição política ou como incentivo para perse-
guições políticas.
A defesa de uma interpretação literal das limitações convencionalmente autorizadas dos direitos polí-
ticos defendida pela Corte IDH difere da postura da Corte EDH, que aposta na tese das “limitações
implícitas” (implied limitations), porquanto o Primeiro Protocolo à Convenção Europeia de Direitos
Humanos não estabelece nenhuma hipótese de restrição em seu texto, mas, ao mesmo tempo, a
corte europeia parte do pressuposto de que nenhum direito humano seria absoluto. 59 Dessa forma, os
Estados disporiam de ampla margem de apreciação e estariam livres para invocar um objetivo legítimo
para justificar uma restrição, desde que compatível com o princípio do Estado de Direito, com os obje-
tivos gerais da Convenção Europeia, com a proporcionalidade e, desde que ela não tenha afetado o
direito à livre expressão do povo, de acordo com as circunstâncias particulares de um determinado caso
e da cultura política e desenvolvimento social de um país.60
Em sua defesa, o Estado Colombiano argumentou que o combate à corrupção seria um objetivo legí-
timo a ser atingido pela restrição ao direito de eleger-se. De mais a mais, seguiu o Estado, ainda que a
decisão não decorresse de sentença judicial criminal, no caso López, o julgamento administrativo fora
realizado por órgão incompetente e parcial.61 A Corte IDH não respondeu, diretamente, ao argumento
sobre a identificação do combate à corrupção como um objetivo legítimo, mas é possível inferir de seu
silêncio que ela não considera ser possível inserir restrições adicionais aos direitos políticos baseadas
em sanções administrativas fundamentadas no combate à corrupção, uma vez que esse meio não
estaria previsto no corpo do tratado como uma restrição legítima ou autorizada, não obstante motivada
por um objetivo/fim legítimo. A solução que compatibiliza, proporcionalmente, meio e fim para a Corte
IDH, ao que nos parece, seria tipificar os atos administrativos de corrupção como crimes em legislação
própria e submeter a perda de direitos políticos ao julgamento de um órgão do Poder Judiciário.
André Ramos62 discorda da leitura feita no parágrafo anterior, quando mantém sua convicção sobre a
convencionalidade da Lei da Ficha Limpa, apesar das decisões do sistema interamernicano, com base
nos seguintes argumentos:
a. o ideal da boa governança, retratado na análise de vida pregressa, é um importante meio
para limitar o direito ao sufrágio passivo da pessoa envolvida em práticas contrárias ao bom
agir público. A restrição seria uma garantia da democracia material, uma vez que resguar-
daria o processo político de decisões tomadas com intenções espúrias;

58
Uma vez que, nas hipóteses de destituição e inabilitação analisadas, a Corte IDH argumenta que essa é uma violação não apenas dos
direitos da vítima, mas também de seus eleitores. Petro Urrego Vs. Colombia, § 96.
59
HARRIS, David John; O’BOYLE, Michael; WARBRICK, Colin. Law of the European Convention On Human Rights. 2ª ed. Oxford: Oxford
University Press, 2009, p. 713.
60
Mathieu-Mohin and Clerfayt v. Belgium, 1987, § 52 e Ždanoka v. Latvia [GC], 2006, §§ 103-104 and 115
61
Petro Urrego Vs. Colombia, § 87.
62
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva. 2019, p. 911-913.

576
DIREITOS POLÍTICOS

b. o precedente do caso López Mendoza deve ser lido a partir do voto concorrente do Juiz
da Corte IDH, Gárcia-Sayan, segundo o qual, o termo “exclusivamente” não acarretaria
a “fixação de uma lista taxativa de causa de inelegibilidade” e que a expressão “processo
penal” não exclui processos de natureza civil;
c. a lei brasileira não faz discriminações quanto à posição ideológica das pessoas e o acesso à
justiça estará sempre à disposição do candidato ou candidata para a eventual suspensão da
decisão administrativa.
Sem embargo da respeitada opinião do autor, aguerrido defensor dos Direitos Humanos, não nos
parece ser possível sustentar que seus argumentos cumpram com o determinado pelas mais recentes
decisões da Corte IDH. O argumento do acesso à justiça, por exemplo, depende da efetiva mobilização
do Poder Judiciário após a restrição aos direitos feitos pela via administrativa, a qual pode não ocorrer em
determinado caso. Ainda que, hipoteticamente, haja a eventual ratificação da suspensão administrativa
dos direitos por parte do órgão Judiciário competente, esse fato não é suficiente para alterar a qualidade
não-judiciária da restrição emanada de processo administrativo não criminal. Por fim, não obstante o
combate à corrupção seja um objetivo governamental legítimo, a restrição administrativa aos direitos
políticos não se caracteriza como medida de limitação textualmente prevista e autorizada pela CADH.
A incompatibilidade dessa restrição legislativa brasileira com o parâmetro interamericano tem
sido apontada pela doutrina nacional,63 mas esse entendimento encontra forte resistência no judi-
ciário nacional.64

6. A POSSIBILIDADE DE CANDIDATURAS AVULSAS NO BRASIL

A cultura política nacional, hierarquizada, estática, patrimonialista e que favorece elites econômicas,
abre pouco espaço para a participação ativa da sociedade na tomada de decisões políticas relevantes.
As manifestações populares ocorridas entre 2013 e 2016 podem ser lidas como o grito de um povo em
busca de sua efetiva representação. A ânsia popular, em contrapartida, tem dado azo ao surgimento
de candidatos “outsiders”,65 cujas características principais são a sua desvinculação das elites políticas
nacionais e regionais tradicionais e seu afastamento da desgastada lógica partidária de conchavos e
concessões não ideológicas.
Não por acaso, a possibilidade de candidaturas avulsas serem apresentadas aos eleitores, ou seja,
aquelas que independem de filiação partidária prévia, voltou ao campo do debate público, não obstante
sua expressa proibição constitucional (art. 14, § 3º, V). Não obstante o texto constitucional vedar candi-
daturas de pessoas não filiadas a partidos políticos,66 o STF considerou que o tema possui repercussão
geral e está em vias de decidir sobre o tema (RE 1.238.853/RJ, Relator Luís Roberto Barroso).


63
Para essa discussão, consultar Ferreira (2015) e Júnior e Dos Santos (2015).
64
O TRE/SP afastou o argumento de que a Lei da Ficha Limpa viola o art. 23.2 da CADH e o precedente da Corte IDH Caso López Mendoza
vs. Venezuela (2011) (Recurso Eleitoral 946-81.2012.6.26.0401 e Recurso Eleitoral 430-16.2012.6.26.0125). O TSE, por sua vez, afastou,
expressamente, aquele precedente interamericano sugerindo que as restrições em tela aos direitos não decorrerem de lei, mas da própria
Constituição e, como a CADH possui status supralegal e não supraconstitucional, não seria possível cumprir com o determinado pela
corte interamericana (AgR-RO nº 471-53/SC.2014).
65
As aspas se justificam pelo fato de que, via de regra, essas pessoas, supostamente, de fora pertencerem às velhas elites políticas e par-
tidárias. O grande exemplo atual no Brasil é o Presidente Jair Bolsonaro, político profissional do baixo clero da Câmara por mais de duas
décadas, que ganhou destaque nacional por conta de suas manifestações disruptivas e de seu perfil folclórico.
66
RAMOS, op. cit., p. 891.

577
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O CG nº 25 do CDH parece abrir uma brecha interpretativa a ser explorada por aquelas pessoas que
acreditam que condicionar a candidatura à filiação partidária seria uma violação aos Direitos Humanos.
De acordo com o CDH, “O direito das pessoas de se candidatarem a eleições não deve ser limitado
de forma excessiva à exigência de que candidatos sejam membros de partidos ou de partidos especí-
ficos”.67 Especialistas no tema indicam que controvérsias políticas no seio do Comitê impediram uma
redação mais clara sobre o tema, muito embora houvesse uma tendência de rejeição de filiação parti-
dária obrigatória para eleições proporcionais.68
Sem embargo da redação truncada, o trecho impede que haja obrigatoriedade de filiação ou indicação
partidária feita de forma desproporcional e discriminatória. Dessa forma, e de acordo com especia-
listas, a melhor forma de interpretar o trecho é a seguinte: o pacto protege a existência de candidaturas
avulsas, onde quer que elas estejam previstas, mas não necessariamente condena outros modelos de
sistema eleitoral.69-70
O SIDH, com base em Castañeda Gutman, foi claro ao sugerir que os Estados dispõem de margem de
apreciação para decidir qual sistema eleitoral adotar, ou seja, sobre como irão transformar votos em
mandatos. Portanto, ambos os modelos de candidatura são legítimos sob a CADH.
A Corte IDH, entretanto, não deixou de tecer comentários específicos sobre a fraseologia do CG nº
25 do CDH, a qual, de acordo com a leitura feita pela corte regional americana, referia-se à obrigação
estatal de não limitar, de forma excessiva (ênfase nossa), o exercício do direito a eleger-se quando
impuserem que os candidatos sejam membros de partidos ou que pertençam a certos partidos para
exercer o direito de ser eleito. Estas situações fáticas seriam diferentes da hipótese de inscrição exclu-
siva pelos partidos dos candidatos. 71
No caso Castañeda Gutman, a norma contestada não estabelecia como requisito legal a filiação ou ser
membro de um partido político para o registo de uma candidatura, o que fazia com que os partidos polí-
ticos pudessem solicitar o registro de candidaturas de pessoas não filiadas ou de candidatos externos.
Não por outra razão, ao analisar a proporcionalidade da medida, a Corte IDH pontuou que a vítima
poderia, entre outras coisas, filiar-se à partido político e tentar emplacar uma indicação interna para
participar como candidato ou ser candidato externo de um partido. 72 No Brasil, é vedada pela CRFB/88
e pela legislação eleitoral a hipótese de encampação à candidatura de pessoa não filiada, uma vez que
é exigida a filiação partidária do candidato há, pelo menos, seis meses antes das eleições (art. 9º da Lei
nº 9.504/1997).
A Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, lançando mão da truncada frase extraída do CG nº
25 do CDH em Tanganyika Law Society e Legal and Human Rights Center v. Tanzania (2013), declarou
que o governo da Tanzânia violou a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos ao proibir candi-

67
GC nº 25, § 17.
68
NEUMAN, Gerald. Standing Alone or Together: The Human Rights Committee’s Decision in AP v Russian Federation. In.: Brems, Eva;
DESMET, Ellen (eds). Integrated Human Rights in Practice: Rewriting Human Rights Decisions, 2017, p. 78.
69
EVATT, E. The Human Rights Committe’s general comment on Article 25. In.: ANDO, Nisuke (org.). Towards Implementing Universal
Human Rights. Martinus Nijhoff Publishers: Leiden, 2004, p. 188-189.
70
Por essa razão, o CDH reconhece que podem ser estabelecidos critérios diferenciados para uma candidatura avulsa, quando comparada
a uma subvencionada por um partido político (CG nº 25, §17 - Se um candidato é obrigado a ter um número mínimo de apoiantes, este
requisito deve ser razoável e não agir como uma barreira à candidatura).


71
Castañeda Gutman, § 164. (A Corte observa que este aspecto do Comentário Geral nº 25 se refere à obrigação de não limitar excessi-
vamente os candidatos a serem membros de partidos ou pertencerem a determinados partidos para exercer esses direitos. Esta é uma
suposição de fato diferente do registro exclusivo pelos partidos dos candidatos). Tradução livre.
72
Castañeda Gutman, § 202.

578
DIREITOS POLÍTICOS

datos independentes de participar das eleições presidenciais, parlamentares e do governo local. 73 A


Corte africana observou que a Corte IDH declarou que a restrição analisada em Castañeda Gutman
passara no teste da proporcionalidade, exatamente porque facultava à vítima a possibilidade de ter
sua candidatura encampada por um partido, sem que precisasse, obrigatoriamente, filiar-se a ele. No
caso africano, os cidadãos tanzanianos só poderiam alcançar cargos públicos eletivos sendo membros
e patrocinados por partidos políticos - não havia outra opção disponível. 74
O CDH não chegou a pronunciar-se, especificamente, sobre o ponto, mas em A.P. v. Russia (2013) deixou
de admitir uma queixa de pessoa que teve seu registro de candidatura negado por não estar filiada a
partido político. O Comitê considerou que o requerente não demonstrou que o Estado o proibiu de
criar seu próprio partido, com base em linha ideológica específica, junto de outras pessoas, além de
a queixa não ter apresentado informações suficientes para que o órgão aferisse o efetivo descumpri-
mento de preceitos do PIDCP. 75
Ao analisar essa decisão, Neuman76 pontua que o CDH poderia ter tomado posições mais inteligíveis,
nada obstante prudentes, entre outras, a que mais nos interessa é a seguinte: determinar que a indi-
cação ou filiação partidária para a disputa de eleições proporcionais não viola direitos humanos per se,
o que se poderia aferir com base na investigação das práticas comparativas, a história cultural e política
do país, os objetivos que pretende atingir com a restrição e levando em consideração a incerteza sobre
o tema nas cortes regionais.
A investigação cultural e histórica sugerida pela Corte EDH para aferir a legitimidade das limitações
implícitas aos direitos fundamentais é importante para a análise desse tema no Brasil, uma vez que a
restrição precisa passar no teste da proporcionalidade. Alguns pontos, ademais, são dignos de nota:
1. O modelo de funcionamento de nosso presidencialismo demanda do governo de turno a
formação de uma coalizão de apoio às propostas do chefe do executivo no Congresso, o que
faz com que a proliferação de candidatos desvinculados de legendas torne mais custosa e frágil
a estruturação desse apoio congressual ao governo;
2. As mais recentes reformas eleitorais (2015 e 2017) têm privilegiado um modelo de baixa frag-
mentação partidária e de reforço dos grandes partidos, com vistas a corrigir problemas que
levaram à estagnação política do segundo mandato de Dilma Rousseff. A inserção de candi-
daturas avulsas nos pleitos proporcionais pode dificultar a concretização desses objetivos polí-
ticos constitucionais legítimos;
3. Se as candidaturas avulsas forem inseridas em nosso ordenamento por meio de decisão judicial,
ela dependerá de quais requisitos para seu registro? Elas valerão, igualmente, para os pleitos
majoritários e proporcionais? O que o TSE fará com milhares de candidaturas avulsas para a
presidência da república, por exemplo? Será exigido dos candidatos avulsos a apresentação
prévia de votos mínimos para a submissão de viabilidade do seu registro?

73
Onde toda a liberdade se, mesmo para escolher um representante de sua escolha, alguém seja obrigado a escolher apenas entre pessoas
patrocinadas por partidos políticos, por mais inadequadas que essas pessoas possam ser? Na medida em que a referida disposição reserva
ao cidadão o direito de participar, diretamente, ou por meio de representantes no governo, qualquer lei que exija que o cidadão faça parte
de um partido político antes que ele possa se tornar um candidato às eleições parlamentares presidenciais ou do governo local é uma
barreira desnecessária que nega ao cidadão o direito de participação direta e constitui uma violação (tradução livre). Tanganyika Law
Society and The Legal and Human Rights Centre v Tanzania, Merits, Application no 009/2011, Application no 011/2011, IHRL 2117 (ACHPR
2011), (2013) 33 HRLJ 18, 14th June 2013, § 109.


74
Tanganyika Law Society and The Legal and Human Rights Centre v Tanzania, § 107.3
75
A.P. v. The Russian Federation, Communication No. 1857/2008 (May 10, 2013), §§ 10.7 e 11
76
NEUMAN, op. cit., p. 85.

579
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

4. O voto do brasileiro já é personalista e baseado nas capacidades retóricas e de persuasão do


candidato, independentemente de sua vinculação partidária, cujas plataformas políticas são,
tradicionalmente e historicamente, frágeis. Dessa forma, seria uma violação ao Direito Humano
à livre expressão e associação a filiação à partido político para disputas eleitorais se, em verdade,
eles sequer apresentam uma plataforma ideológica forte ou acentuada, vide a massa amorfa
representada pelos partidos que compõem o “Centrão”? 77

7. A PROTEÇÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS E DE


PARTICIPAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS

Não obstante o discurso do DIDH que sublinha a importância do direito à não-discriminação para o
gozo efetivo de uma vida digna, nem sempre os Estados inserem em seus ordenamentos uma noção de
cidadania capaz de concretizar um direito de diferenciação legítimo que garanta aos povos originários
um campo de atuação político pleno, sem que, para isso, tenham de abandonar suas tradições. 78 O
reconhecimento constitucional recente de sua organização social e de suas representações coletivas
abriu espaço para as diversas culturas de povos originários e organizações tradicionais se estruturarem,
uma vez que inexiste uma única e ampla “cultura indígena”. 79
Dessa forma, não obstante o importante processo de reconhecimento de direitos relativos à autonomia
e autodeterminação dos povos indígenas pela CRFB/88,80 seu potencial emancipatório pode ser limi-
tado por dilemas jurídicos típicos de uma legislação de inspiração neocolonialista.81
O Estatuto do índio, de inspiração integracionista e assimilacionista, indica que é o indígena que deve
ser integrado à “civilização”, empreendendo pouco ou nenhum esforço para sugerir o caminho oposto.82
Dessa forma, para essa legislação, os indígenas estão isolados, em vias ou já integrados à “comunhão
nacional”. A imposição dessa organização jurídica arbitrária, formalizada, imbuída de viés etnocêntrico
e colonizadora, ignora a existência de organizações jurídicas e políticas dentro dos povos indígenas.83
Nesse sentido, a noção de “pessoa indígena” é construída a partir da cultura, dependente do corpo
social do qual fazem parte. Formalmente, esse conceito de pessoa não se iguala à categoria liberal do
indivíduo que é cidadão, cujo vínculo político nacional se perfaz por meio da comungação de elementos

77
De acordo com Marcos Nobre, o Centrão é um bloco político que surgiu como reação dos grupos conservadores que integravam o
Congresso Nacional, sob a liderança do PMDB, às transformações progressistas que vinham ocorrendo no período da elaboração da
Constituição de 1988. É, atualmente, identificado como um bloco suprapartidário sem viés ideológico claro, porém cujo apoio demons-
trou ser essencial à governabilidade no período pós-1988. Esse apoio é condicionado a que as suas forças políticas estejam representadas
no governo que esteja no poder. NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo,
Companhia das Letras, 2013.
78
BELTRÃO, Jane Felipe; OLIVEIRA, Assis da Costa. Povos Indígenas e Cidadania: inscrições constitucionais como marcadores sociais da
diferença na América Latina. Revista de Antropologia (USP. Impresso), v. 53, 2010, p. 716.
79
DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Direito e povos indígenas no Brasil. In: AVRITZER, Leonardo. (Org.). Dimensões políticas da
justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 391.
80
Educação em nível de ensino fundamental de caráter bilíngue e intercultural aos povos indígenas (art. 210, §2º). Protege manifestações
das culturas indígenas (art. 215, §1°). Reconhece aos povos indígenas a organização social, costumes, línguas e direitos originários sobre
terras que tradicionalmente ocupam (art. 231, caput). Direito à consulta aos povos indígenas para autorização de aproveitamento de
recursos hídricos, energéticos e minerais situados em seus territórios (art. 231, §3º). Capacidade civil plena e legitimidade ativa individual
e coletiva para ingressar em juízo. (art. 232). Adaptado de Beltrão e Oliveira (2010, p. 719).


81
BELTRÃO; OLIVEIRA, op. cit., p. 720.
82
DANTAS, op. cit., p. 389.
83
Ibidem, p. 384.

580
DIREITOS POLÍTICOS

de homogeneidade, identidade, aspirações comuns, etc.84 O questionamento que fazemos, com tudo
isso posto, é o seguinte: a CRFB/88 reconhece as diversas formações sociais das populações tradicio-
nais para fins de sua representação política ou impõe a elas, sob o pretexto da igualdade universalizante,
as mesmas obrigações para o exercício do voto e de ser eleito?
Há poucos anos atrás, o TSE (Res. n° 20.806/01), reforçando o ideal de cidadania tutelada e condicio-
nada dos povos indígenas, obrigou aos membros do sexo masculino e “integrados” a apresentação de
certificado de quitação de suas obrigações militares, para fins de alistamento eleitoral. Em seu voto,
o Min. Garcia Vieira (PA nº 18.391/01), afirmou que “não existindo, no ordenamento jurídico, hipótese
discriminativa para cumprimento da exigência legal de comprovação, quando do alistamento elei-
toral, de quitação das obrigações militares”, os “indígenas integrados” não poderiam ser excluídos da
incidência legal.
Anos depois, em 2015, a exigência judicial limitada ao indígena integrado foi derrubada pelo próprio TSE
sob a justificativa de que essa divisão feita pelo Estatuto do índio não fora recepcionada pela CRFB/8885.
Portanto, se de um lado foi possível atribuir, em 2015, direitos políticos ativos a todos os membros de
uma população indígena, todos ainda estariam submetidos, indistintamente, à legislação eleitoral para
alistamento e registro de sua eventual candidatura.
Para o exercício do direito ao voto de pessoas indígenas, restaram dispensadas a fluência do idioma
português (Res. nº 23.274/2010), dispensa de multas quando houver alistamento extemporâneo (Res
21.538/03) e a facultatividade do alistamento eleitoral quando atingida a idade de 18 anos (PA nº
180.681/11), ainda sendo requerida a certidão de quitação de suas obrigações militares (PA nº 191.930/15).
A legislação brasileira não garante a candidatura avulsa de indígenas e não há o reconhecimento das
articulações organizacionais próprias desses povos como forma de representação política nas institui-
ções políticas formais.
No direito brasileiro é possível identificar, portanto, uma contradição entre a consagração normativa de
uma ampla rede de recepção da alteridade dos povos indígenas e a manutenção de restrições jurídicas
impermeáveis ao reconhecimento da diversidade cultural, uma vez que subordinam a obtenção de
postos políticos e de participação ativa na vida política a regras universalizantes para todos os candi-
datos. Tomando por base o conceito de Marshall de cidadania, nossa legislação eleitoral requer dos
povos indígenas que renunciem a sua cultura e práticas organizacionais para que se tornem “indígenas
cidadãos” iguais em direitos aos “cidadãos nacionais”.86
Este ponto já foi destacado por relatores especiais para assuntos indígenas do CDH em 2009 e 2016,
ao atestarem que os povos indígenas brasileiros, como um todo, estão em desvantagem em termos de
acesso ao poder político em relação à maioria do restante da sociedade.87 O CDH tem demonstrado
igual preocupação com o baixo nível de participação de mulheres, afro-brasileiros e povos indígenas
nos assuntos públicos e com sua presença desproporcionalmente limitada na vida política e judicial do

84
Idem. Descolonialidade e direitos humanos dos povos indígenas. Revista de Educação Pública, [S. l.], v. 23, n. 53/1, 2014, p. 352.
85
Ac. de 10.2.2015 no PA nº 191.930, rel. Min. João Otávio de Noronha (Tendo em conta a desinfluência da classificação conferida ao indígena
para esta justiça especializada e a garantia constitucional relativamente a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições
(...), será solicitado, na hipótese de requerer alistamento eleitoral, documento hábil obtido na unidade do serviço militar do qual se infira
sua regularidade com as obrigações correspondentes, seja pela prestação, dispensa, isenção ou quaisquer outros motivos admitidos pela
legislação de regência da matéria, em conjunto ou não com o do órgão competente de assistência que comprove a condição de indígena,
ambos estranhos à órbita de atuação da justiça eleitoral).
86
Ibidem, p. 355.


87
Report on the situation of indigenous peoples in Brazil. A/HRC/12/34/Add.2, UN, 26 Aug. 2009, § 9 e Report of the Special Rappor-
teur on the Rights of Indigenous Peoples on her mission to Brazil. A/HRC/33/42/Add.1, UN, 8 Aug. 2016. § 59.

581
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Estado, tendo recomendado ao Brasil que tome as medidas apropriadas para assegurar a participação
efetiva política desses grupos minoritários.88
Julgada no início de julho de 2020, a ADPF 709, de relatoria do Min. Luís Roberto Barroso, pode repre-
sentar um importante marco para o exercício de uma jurisdição constitucional plural, para além de
oferecer subsídio importante para justificar a criação de instituições heterogêneas para que indígenas
possam exercer seus direitos políticos.
A ação fora proposta, em litisconsórcio ativo, por articulação indígena não estruturada na forma de
pessoa jurídica de direito privado e não ligada à FUNAI, a APIB.89 A APIB, em aliança com partidos
políticos, propôs a ação visando a tutela dos direitos fundamentais dos povos indígenas relativos ao
combate à COVID-19, especialmente, em razão do elevado risco de contaminação e mortalidade nas
terras tradicionalmente ocupadas.
O STF, revisando jurisprudência tradicional sobre a legitimidade para a proposição de ações no controle
abstrato de constitucionalidade, reconheceu a legitimidade ativa da APIB para atuar perante a justiça
constitucional. É muito provável que a Corte tenha identificado, no caso, uma exceção específica para
acolher a demanda dos povos tradicionais, porquanto em sua fundamentação, o disposto no art. 232
da CRFB/88, que garante às organizações indígenas a representação judicial e direta de seus direitos
e interesses, serviu de base para a alteração jurisprudencial. Os Ministros utilizaram esse dispositivo
constitucional específico para justificar a atuação da APIB na jurisdição constitucional, sem que ela
cumprisse com os requisitos clássicos exigidos no art. 103 da CRFB/88 e na jurisprudência da Corte para
a propositura de uma ADPF.
Ainda estamos, portanto, distantes da construção de uma cidadania indígena, que reconheça o exercício
dos direitos de diferenciação e não discriminação previstos constitucionalmente, e que sirva para asse-
gurar a esses povos direito de participação democrática nos processos institucionais, seja pela criação
de novos canais institucionais ou pela heterogeneização de instituições existentes, para a construção
simétrica das relações sociais entre eles mesmos e para com o Estado brasileiro90. No entanto, a ADPF
709 pode ser utilizada como incentivo para que outros institutos sejam heterogeneizados para permitir
que populações indígenas se insiram mais diretamente no processo de tomada de decisões políticas.

8. O DIREITO AO VOTO DAS PESSOAS ENCARCERADAS

As restrições ao exercício de direitos políticos de pessoas submetidas a processo criminal é uma questão
controversa, suscetível de tratamentos diversos a depender do Estado. O CDH, por exemplo, considera
viável a suspensão de direitos políticos de pessoas condenadas criminalmente, no entanto, alerta que as
pessoas privadas de liberdade, mas que ainda não foram condenadas, não devem ser excluídas do exer-


88
Consideration of reports submitted by States parties under article 40 of the Covenant: International Covenant on Civil and
Political Rights: concluding observations of the Human Rights Committee: Brazil, CCPR/C/BRA/CO/2, 2005, § 10.
89
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é uma organização que representa nacionalmente os povos indígenas. De acordo com
o art. 4º do seu regimento, ela é composta pelas seguintes organizações regionais: (i) Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do
Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); (ii) Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB); (iii)
Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL); (iv) Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-SUDESTE); (v) Conselho do
Povo Terena; (vi) Aty Guasu Kaiowá Guarani; e (vii) Comissão Guarani Yvyrupa.
90
DANTAS, op. cit., p. 357.

582
DIREITOS POLÍTICOS

cício do direito de votar.91 Destaca-se ainda que existem países, tais como Panamá, Bolívia, Porto Rico
e a Costa Rica onde não existem restrições ao exercício de direitos políticos, ainda que tenha ocorrido
condenação transitada em julgado.92
No âmbito do DIDH, a decisão da Corte EDH, em Hirst vs. Reino Unido93 ainda é o mais importante
precedente sobre o tema. Naquele caso, cidadão do Reino Unido que foi mantido isolado do convívio
social por conta de questões de desordem de personalidade capazes de trazer risco à sociedade,
mesmo após finalizado o período de sua condenação, teve negado seu pedido de participar das elei-
ções de seu país.
Sobre o ponto, a Corte EDH decidiu que, muito embora tenha reconhecido ampla margem de apre-
ciação aos Estados no sentido de criar limites implícitos aos direitos políticos, a lei contestada de 1983
do Reino Unido impunha uma restrição geral a todos os presos condenados à prisão. A normativa
aplicava-se automaticamente a esses prisioneiros, independentemente da duração da pena e da natu-
reza ou gravidade da infração e das circunstâncias individuais. Para a corte de Estrasburgo, esse tipo
de restrição geral, automática e indiscriminada a um direito da Convenção estaria fora de qualquer
margem aceitável de apreciação, por mais ampla que essa margem pudesse ser, e, portanto, a medida
seria incompatível com o Artigo 3 do Protocolo Nº. 1.
Durante o julgado, a corte europeia reconheceu que a situação estava bem melhor do que antes, com
a aprovação de lei em 2000, que autorizou o voto de presos preventivos. Em síntese, se somarmos o
estipulado pelo CDH ao decidido pela Corte EDH, é possível sugerir que: a vedação abstrata, gené-
rica e infundada do direito ao voto de pessoas encarceradas viola seus Direitos Humanos políticos,
no entanto, esse direito pode ser limitado, desde que atinja a um fim justo, previsto em lei, que haja
proporção entre a ofensa e a restrição do direito e que limites temporais razoáveis sejam empregados,
quando for o caso. A Corte IDH ainda não dispõe de decisão específica sobre o tema.
A jurisprudência do STF sobre a temática da suspensão dos direitos políticos decorrente de sentença
penal condenatória talvez mereça reparos, uma vez que, muito embora nossa Suprema Corte não crie
uma limitação abrangente para todas as pessoas encarceradas (vide abaixo o caso dos presos provi-
sórios), ela estabelece uma vedação ampla e abstrata a toda e qualquer pessoa condenada por uma
infração criminal transitada em julgado, independentemente da modalidade do crime (culposa ou
dolosa) ou da sua gravidade (menor potencial ofensivo, violentos e contravenções),94 uma vez que a
referida suspensão é um efeito automático da sentença, ou seja, não cabe a análise da individualização
da pena ou de gradação judicial.95


91
CG nº 25, § 14. No mesmo sentido: “Os Estados não devem excluir as pessoas em prisão preventiva de exercer o direito de voto, como
corolário do direito de ser presumida inocente até que seja provada a sua culpa de acordo com a lei”. Human Rights Council Report of
the Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights: Draft guidelines for States on the effective implmentation of the
right to participate in public affairs, A/HRC/39/28 (UN Draft Guidelines), § 41.
92
PUGGINA, Rodrigo Tönniges. O Direito de Voto dos Presos. Revista Sociologia Jurídica, Rio de Janeiro, n. 03, jul/dez 2006.
Disponível em: https://www.google.com/url?q=https://sociologiajuridica.net/o-direito-de-voto-dos-presos/%23:~:text%-
3DOs%2520presos%2520s%25C3%25A3o%252C%2520sim%252C%2520cidad%25C3%25A3os,pr%25C3%25B3pria%2520
do%2520que%2520o%2520voto.%26text%3DNossa%2520Constitui%25C3%25A7%25C3%25A3o%2520Federal%252C%2520lo-
go%2520em,dignidade%2520da%2520pessoa%2520humana%2520(art&sa=D&source=docs&ust=1666890731337570&usg=AOv-
Vaw3BED6nZHMOF8_mliGsNzg3. Acesso em: 27 out. 2022.
93
Hirst v United Kingdom (74025/01) (2005) 155 N.L.J. 1551 (ECHR) (Grand Chamber).
94
Ver o Julgado em Repercussão Geral do STF no RE 601.182/MG (2019): “A regra de suspensão dos direitos políticos prevista no art. 15, III, é
autoaplicável, pois trata-se de consequência imediata da sentença penal condenatória transitada em julgado. 2. A autoaplicação indepen-
de da natureza da pena imposta. 3. A opção do legislador constituinte foi no sentido de que os condenados criminalmente, com trânsito
em julgado, enquanto durar os efeitos da sentença condenatória, não exerçam os seus direitos políticos.
95
RAMOS, op. cit., p. 915.

583
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O Escritório do ACNUDH, em guia para os Estados sobre eleições livres, estipulou que os Estados não
devem impor proibições gerais automáticas ao direito de voto de pessoas que cumpram ou tenham
cumprido uma pena privativa de liberdade, que não levem em consideração a natureza e a gravidade da
infração penal ou a duração da pena.96
No Brasil, as restrições aos direitos políticos decorrem das causas do art. 15 da CRFB/88,97 entre elas, a
de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. Por conta das falhas no
controle do sistema penal e da negligência das instituições, a suspensão dos direitos políticos daqueles
condenados cujos processos encontram-se com o trânsito em julgado, estende-se, infelizmente, igual-
mente aos presos provisórios. O Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil de 2007, realizado pelo
Programa para a América Latina da International Women’s Health Coalition e o CLADEM, apontou essa
como uma das mais graves omissões à cidadania das mulheres encarceradas.
A Resolução nº 23.219/2010 do TSE representou importante movimentação no sentido de estabelece-
rem-se os meios necessários para a instalação de seções eleitorais especiais em estabelecimentos penais
e em unidades de internação de adolescentes, a fim de que os presos provisórios e os adolescentes
internados tivessem assegurado o direito ao voto. O ato normativo, em verdade, reforça determinação
que já poderia ter sido extraída, sem embargo de sua timidez, da Resolução do TSE nº 20.105/1998 que
tratava dos atos preparatórios, recepção de votos e garantias eleitorais para as eleições de 1998.98
Logo após a constituinte, já era notória a preocupação com a garantia do exercício dos direitos polí-
ticos dos encarcerados, como é reforçado pelo art. 63 da Resolução nº 14/1994 do Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária99. A Resolução apenas formalizou e reforçou a previsão já incluída,
também, no Código Eleitoral100 datado de 1965, promulgado ainda durante o regime militar. A Lei de
Execução Penal 7.210/84 em seu art. 3º, igualmente, fortalece essa prerrogativa de exercício de direitos.
Apesar das previsões legais, o cenário pouco se alterou nas eleições subsequentes. Nas eleições muni-
cipais de 2020, fortemente afetadas pela pandemia de COVID-19, observou-se um índice ínfimo de
participação de presos provisórios, chegando a apenas 1% da população total desse tipo de encarce-
rados101. Ainda que a situação de calamidade pública tenha contribuído para esse número, a tendência
dos anos anteriores não era muito diferente.102

96
ONU. Human Rights Council Report of the Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights: Draft guidelines
for States on the effective implmentation of the right to participate in public affairs, A/HRC/39/28 (UN Draft Guidelines), § 42.
97
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I - cancelamento da naturalização por
sentença transitada em julgado; II - incapacidade civil absoluta; III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus
efeitos; IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V - improbidade administra-
tiva, nos termos do art. 37, § 4º.
98
Art. 5º Deverão ser instaladas Seções nas vilas e povoados, assim como nos estabelecimentos de internação coletiva, onde haja, pelo
menos, cinqüenta eleitores (Código Eleitoral, art. 136, caput).
99
Art. 63. São assegurados os direitos políticos ao preso que não está sujeito aos efeitos da condenação criminal transitada em julgado.
100
Art. 136. Deverão ser instaladas seções nas vilas e povoados, assim como nos estabelecimentos de internação coletiva, inclusive para cegos
e nos leprosários onde haja, pelo menos, 50 (cinquenta) eleitores.
101
SIEMSEN, Pedro. A eleição atrás das grades: mesmo tendo direito a voto, 99% dos presos provisórios no Brasil não votaram em 2020.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 7 jun. 2021. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/eleicao-atras-das-grades/. Acesso em: 15 de maio
de 2021.
102
PRESOS provisórios poderão votar em 220 seções eleitorais em 21 estados e no DF. Tribunal Superior Eleitoral, Brasília/DF, 7 out. 2018.
Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Outubro/faltam-19-dias-presos-provisorios-poderao-votar-em-220-se-
coes-eleitorais-em-21-estados-e-no-df-1. Acesso em: 15 de maio de 2021.

584
DIREITOS POLÍTICOS

9. OS DIREITOS POLÍTICOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

A garantia do exercício dos direitos políticos das pessoas com deficiência foi objeto de importantes
normas do Direito Internacional, com destaque para a Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (CIDPD).103 Após sua incorporação ao sistema legal brasileiro em 2009, a
Convenção influenciou a redação do art. 76 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Lei 13.146/2015.
O estabelecimento dessas previsões visa ao atingimento de três objetivos principais: a garantia de
adaptações necessárias para o processo eleitoral e para franquear a concorrência igualitária no ato
da votação; outrossim, para assegurar a acessibilidade para o exercício de função ou cargo público e,
por fim, estimular a formação de um ambiente que favoreça essa participação, voltada ao incentivo da
atividade pública.
Em Chinchilla Sandoval y otros vs. Guatemala104 a Corte IDH foi instada a manifestar-se sobre a negli-
gência do Estado da Guatemala na guarda e garantia ao exercício dos direitos mínimos à cidadania das
pessoas com deficiência. Nesse caso, a acessibilidade à pessoa com deficiência foi ressaltada como
elemento essencial à garantia dessa qualidade de direitos. Por essa razão, é obrigação dos Estados
zelar pela inclusão das pessoas com deficiência por meio da igualdade de condições, oportunidades
e participação em todas as esferas da sociedade, a fim de garantir o desmantelamento das limitações
normativas ou fáticas.
Portanto, é necessário que os Estados promovam práticas de inclusão e que adotem medidas de dife-
renciação positiva para remover essas barreiras. O direito à acessibilidade, na perspectiva da deficiência,
inclui o dever de adaptação do ambiente em que a pessoa com qualquer limitação possa funcionar e
gozar da maior independência possível, a fim de participar plenamente de todos os aspectos da vida.
No Brasil, a Resolução nº 23.381/2012 do TSE determina a realização das adaptações necessárias para a
garantia de acessibilidade às instalações onde ocorram os processos eleitorais, inclusive com a possibi-
lidade de solicitação para que as pessoas com deficiência votem em seções especiais.
Ponto controvertido e de extensa abordagem pela comunidade internacional versa sobre a perda da
capacidade jurídica das pessoas com deficiência e o exercício dos direitos políticos. Em Strobye And
Rosenlind v Denmark, a Corte EDH decidiu no sentido contrário à garantia de duas pessoas com
deficiência que buscavam recuperar seus direitos de participar das eleições de seu país, após terem
perdido sua capacidade jurídica. Assim, entendeu como um fim legítimo do Estado limitar o direito
ao voto das pessoas que não detenham as habilidades mentais requeridas pela legislação.105 Além de

103
Artigo. 29 - Os Estados Partes garantirão às pessoas com defi- ciência direitos políticos e oportunidade de exercê -los em condições de
igualdade com as demais pes- soas, e deverão: a) Assegurar que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e plenamente na
vida política e pública, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, diretamente ou por meio de representantes livremente
escolhidos, incluindo o direito e a oportunidade de votarem e serem vo- tadas, mediante, entre outros: i) Garantia de que os procedimen-
tos, instalações e materiais e equipamentos para votação serão apropriados, acessíveis e de fácil compreensão e uso; ii) Proteção do direi-
to das pessoas com deficiência ao voto secreto em eleições e plebiscitos, sem intimidação, e a candidatar-se nas eleições, efetivamente
ocupar cargos eletivos e desempenhar quaisquer funções públicas em todos os níveis de governo, usando novas tecnologias assistivas,
quando apropriado; iii) Garantia da livre expressão de vontade das pessoas com deficiência como eleitores e, para tanto, sempre que
necessário e a seu pedido, permissão para que elas sejam auxiliadas na votação por uma pessoa de sua escolha; b) Promover ativamen-
te um ambiente em que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e plenamente na condução das questões públicas, sem
discriminação e em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e encorajar sua participação nas questões públicas, mediante:
i) Participação em organizações não governamentais relacionadas com a vida pública e política do país, bem como em atividades e admi-
nistração de partidos políticos; ii) Formação de organizações para repre- sentar pessoas com deficiência em níveis internacional, regional,
nacional e local, bem como a filiação de pessoas com deficiência a tais organizações.
104
Cfr. Chinchilla Sandoval Vs. Guatemala. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 29 de febrero de 2016, Serie
C No. 312, §§ 208, 214 e 215.
105
Strobye And Rosenlind v Denmark: ECHR, App 25802/18, 2021, § 97.

585
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ser medida proporcional, já que demandava uma rigorosa avaliação sobre as faculdades mentais da
pessoa combinada com sua interdição judicialmente imposta, a medida não chegava a afetar nem 1 %
dos adultos com idade legal para votar na Dinamarca106. A Corte EDH, ao não reconhecer a existência
de um consenso europeu sobre o tema, reconheceu, no entanto, que não estava seguindo, à risca, as
estipulações sugeridas pelo sistema ONU para a Dinamarca sobre o tema.
A decisão aplicou um teste mais rigoroso para aferir a limitação do direito político de pessoas com
deficiência do que aquele estipulado anteriormente em Alajos Kiss v Hungary. 107 De acordo com a
legislação nacional húngara, qualquer forma de tutela levava, automaticamente, à privação de direitos
políticos, sem que houvesse uma avaliação judicial individualizada da situação da pessoa. A Corte Euro-
peia disse, naquela ocasião, não poder aceitar que uma proibição absoluta de votar imposta a qualquer
pessoa sob tutela parcial, independentemente de suas faculdades efetivas, caia dentro de uma margem
aceitável de apreciação. Além disso, se uma restrição aos direitos fundamentais se aplica a um grupo
particularmente vulnerável da sociedade, que sofreu considerável discriminação no passado, como os
deficientes mentais, então a margem de apreciação do Estado é substancialmente mais estreita e este
deve fornecer razões muito importantes para as restrições em questão.
A vítima, no caso em apreço, perdeu o seu direito de voto em consequência da imposição de uma
restrição automática e geral ao direito político daquelas pessoas sob tutela parcial. A Corte concluiu,
portanto, que a supressão indiscriminada do direito de voto, sem avaliação judicial individualizada e
unicamente baseada na deficiência mental de quem requer tutela parcial, não pode ser considerada
compatível com os fundamentos legítimos de restrição do direito de voto. Uma pena que a Corte EDH
tenha se afastado desse precedente mais protetivo.
Seis pessoas que sofriam de “deficiência intelectual” e foram colocados sob tutela parcial ou total, por
força de decisão judicial, recorreram ao Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência alegando
violações ao art. 29 da respectiva Convenção. Como consequência automática da sua colocação sob
tutela, os nomes dos autores foram apagados do registo eleitoral, uma vez que, de acordo com a lei
local, as pessoas sob tutela parcial ou total, não têm direito ao voto.
Em decisão que lhes foi favorável, o Comitê apontou que o Artigo 29 da CIDPD não prevê qualquer
restrição razoável, nem permite qualquer exceção para qualquer grupo de pessoas com deficiência.
Portanto, a exclusão do direito de voto com base em uma deficiência psicossocial ou intelectual perce-
bida ou real, incluindo eventual restrição de acordo com uma avaliação individualizada, constitui discri-
minação com base na deficiência, na acepção do artigo 2 daquela Convenção. Portanto, pessoas que
estejam sob tutela ou curadoria devem ter seus direitos políticos assegurados.108
Em 2015, o Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência expressou, em suas Observações finais
sobre o relatório inicial do Brasil, grande preocupação sobre a garantia de voto às pessoas sob inter-
dição em nosso país.109

106
Strobye And Rosenlind v Denmark, §§101-102.


107
Alajos Kiss v. Hungary, Application no. 38832/06, 20 May 2010.
108
Bujdosó et al v. Hungary (CRPD/C/10/D/4/2011), § 9.4.
109
52. O Comitê está preocupado que as pessoas com deficiência sob interdição sejam discriminadas em relação a seu direito de voto. O
Comitê também está preocupado que muitos locais de votação não sejam acessíveis para pessoas com deficiência, e que as informações
de voto não sejam oferecidas em todos os formatos acessíveis; 53. O Comitê, relembrando sua visão no comunicado No. 4/2011 (Zsolt Bu-
jdosó e cinco outros v. Hungria) de que as restrições legislativas sobre o direito de voto das pessoas com deficiência cuja capacidade legal
tenha sido restringida nos termos de tutela ferem o artigo 29 da Convenção, insta o Estado a remover as restrições legais e imediatamente
restaurar o direito de voto para as pessoas privadas de capacidade jurídica através da interdição. O Comitê recomenda ao Estado Parte
que intensifique seus esforços para garantir que os procedimentos e materiais de votação sejam plenamente acessíveis para pessoas com
deficiência. (tradução livre).Committee on the Rights of Persons with Disabilities Concluding observations on the initial report of
Brazil. RPD/C/BRA/CO/1 (29 September 2015).

586
DIREITOS POLÍTICOS

Tão somente após a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência houve a alteração do
art. 3º do Código Civil de 2002, com a exclusão dos incisos II e III110, segundo Roseno:111 “acabou por
criar situação segundo a qual pessoas privadas de manifestar sua vontade, em razão de terem afetado
o discernimento, sejam reconhecidas como eleitoralmente aptas.”. Porém, o autor destaca que esse
direito diz respeito tão somente à capacidade eleitoral ativa, permanecendo a vedação ao curatelados
ao direito de exercer mandatos eletivos, por força do art. 85 § 1º do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

110
Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: (...) II – os que, por enfermidade ou deficiência mental,
não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua
vontade.


111
ROSENO, Marcelo. Estatuto da Pessoa com Deficiência e exercício dos direitos políticos: elementos para uma abordagem garantista. Re-
vista Jurídica da Presidência, v. 18, n. 116, 2017, p. 571.

587
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

DIREITO AO RECONHECIMENTO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA

Luana Marina dos Santos

Gabriela Milani Pinheiro

1. INTRODUÇÃO

A personalidade jurídica é o direito que todo o indivíduo possui de ser reconhecido, em qualquer parte,
como sujeito titular de direitos e deveres, bem como ser capaz de exercer estes direitos a partir de
sua titularidade. Trata-se de garantia inerente à condição humana, que se estabelece pelo reconheci-
mento do indivíduo como ente dentro da sociedade, titular de uma identidade jurídica própria.1 Este
direito representa a mesma noção de “sujeito de direitos” e o que determina a sua “existência efetiva”
perante a sociedade. 2
O reconhecimento de tal direito é garantia de proteção legal, bem como a segurança jurídica de qual-
quer indivíduo para que possa exercer seus direitos civis e fundamentais, exigir a proteção ou a ação do
Estado e, ainda, ser sujeito de obrigações perante ele: é o que determina a existência do indivíduo como
ser dotado de direitos e deveres, podendo, a partir disso, reivindicá-los diante de qualquer situação,
inclusive de vulnerabilidade. Desse modo, reconhecer a personalidade jurídica é atribuir a toda pessoa
a capacidade de ser titular de direitos e obrigações, possibilitando seu exercício de forma imediata,
efetiva, sem que se imponham condições para tanto. 3
O direito à personalidade jurídica está intimamente ligado aos direitos civis e políticos que todo ser
humano tem, tanto na esfera econômica, quanto na esfera social. O seu reconhecimento remete à
ideia de que todo ser humano tem o direito de se submeter ao devido processo legal, sem a supressão
de qualquer garantia. Este direito se aplica, inclusive, como resguardo de futuras violações de direitos
humanos dentro do processo legal.
No tocante a sua abrangência, o direito de reconhecimento à personalidade jurídica se estende de
forma indistinta a todo ser humano, bem como impõe ao Estado o dever de garantir seu exercício de
forma livre e plena, isto porque seu fundamento está intimamente ligado aos princípios da igualdade e
não discriminação. Trata-se, portanto, de direito reconhecido e garantido individualmente, a partir de
condições e possibilidades que devem ser garantidas pelos Estados. É o que se traduz das palavras de
Ingo W. Sarlet, ao afirmar que “o ser humano é como tal reconhecido independentemente das suas


1
O’DONNELL, Daniel. Derecho Internacional de los Derechos Humanos: normativa, jurisprudencia y doctrina de los Sistemas Universal
e Interamericano. Mexico: Tribunal Superior de Justicia del Districto Federal, 2012.
2
ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos
Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso em: 11
maio 2019.
3
SUAREZ LOPEZ, Beatriz Eugenia; FUENTES CONTRERAS, Édgar Hernán. Derecho al reconocimiento de la personalidad jurídica. Concep-
to y desarrollo en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Prolegómenos, Bogotá, v. 18, n. 36, p. 65-80, Julho
2015. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-182X2015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso
em: 01 maio 2019.

588
DIREITO AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

relações sociais, já que a capacidade jurídica (a competência de ser sujeito de direitos) é igual em e para
todas as pessoas.”4
Nesse aspecto, a proteção ao direito da personalidade jurídica se dá, principalmente, a partir da obri-
gação dos Estados de reconhecer, na totalidade de seus membros, os direitos e deveres que estes
possuem, sendo, portanto, responsáveis por assegurar e garantir que toda e qualquer pessoa tenha
reconhecido seu status como indivíduo perante a sociedade, efetivando meios e condições jurídicas
para o exercício de seus direitos. 5
A personalidade jurídica representa um parâmetro que indica a titularidade de direitos exercida por
uma determinada pessoa que, se violada, torna o indivíduo vulnerável diante do Estado e da sociedade.
Desse modo, o Estado se torna obrigado a garantir às pessoas em situação de vulnerabilidade, margina-
lização e discriminação, as condições legais e administrativas que assegurem o exercício desse direito.
O reconhecimento da personalidade jurídica implica a necessária identificação do indivíduo pelo
Estado, a fim de que este possa, efetivamente, reconhecer a sua existência, dando-lhe capacidade/
possibilidade para exercer e reivindicar seus direitos, bem como demandá-los na esfera jurisdicional.
Não se trata apenas da proteção, na medida em que o respeito à titularidade de direitos e deveres
também é imprescindível no âmbito individual, principalmente no que diz respeito ao direito de reco-
nhecimento da personalidade jurídica. Isso porque, vislumbra-se o exercício subjetivo dos direitos e
da plena existência do indivíduo perante a sociedade, de forma que a privação ao seu exercício fere
diretamente o princípio da dignidade humana. Nesse sentido é o entendimento expresso pela Corte
IDH na Opinião Consultiva n.º 24, que trata sobre a identidade de gênero e não discriminação de casais
do mesmo sexo, ao mencionar que:

A falta de reconhecimento da personalidade jurídica prejudica a dignidade humana, uma vez


que nega absolutamente sua condição de sujeito de direitos e torna a pessoa vulnerável à não
observância dos seus direitos pelo Estado ou por indivíduos. Da mesma forma, sua falta de reco-
nhecimento supõe ignorar a possibilidade de ser titular de direitos, o que acarreta a impossibili-
dade efetiva de exercício pessoal e direto dos direitos subjetivos, além de assumir plenamente as
obrigações legais e praticar outros atos de caráter pessoal ou patrimonial.6

Portanto, a personalidade jurídica é a aptidão genérica para adquirir direito subjetivo, devendo ser reco-
nhecida a todo o ser humano independente da consciência ou vontade do indivíduo. Assim, ao tutelar
a personalidade jurídica de seus membros, o Estado passa a reconhecer a existência de cada indivíduo
dentro do seu âmbito jurídico, civil e político, bem como a possibilitar a efetivação de tal reconheci-
mento na aplicação e garantia de outros direitos fundamentais.
A Corte IDH7 já afirmou que este direito não se limita apenas à capacidade da pessoa humana de
ingressar no judiciário e ser titular de direitos e obrigações, mas inclui também a possibilidade de que
todo ser humano possua, por simples fato de existir e independentemente da sua condição, certos

4
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais: Na constituição Federal de 1988, 2010. p. 43-44.
5
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Identidade de gênero, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo
sexo. Opinión Consultiva OC-24/17 de 24 de novembro de 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.
pdf. Acesso em: 12 maio 2019.
6
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Identidade de gênero, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo
sexo. Opinión Consultiva OC-24/17 de 24 de novembro de 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.
pdf. Acesso em: 12 maio 2019.


7
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Identidade de gênero, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo
sexo. Opinión Consultiva OC-24/17 de 24 de novembro de 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.
pdf. Acesso em 12 maio 2019.

589
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

atributos que constituem a essência da sua personalidade jurídica e da sua individualidade como
sujeito de direito.
A importância da proteção desse direito decorre da necessidade de impedir que qualquer pessoa seja
mantida ou permaneça, perante os Estados e a sociedade, em uma situação de indeterminação jurídica,
sem que possua um vínculo jurídico que possibilite meios de usufruir qualquer de seus direitos.8 O reco-
nhecimento deste, por sua vez, evita que o indivíduo permaneça em uma situação de vulnerabilidade
em relação ao Estado e a sociedade, mas seja reconhecido no seu status de cidadão como um todo, em
especial, no que diz respeito a sua capacidade de ser titular de direitos.
A personalidade jurídica também é pressuposto para viabilizar a efetivação do direito ao devido
processo legal, não bastando o reconhecimento ao exercício dos direitos, mas, também, subsiste o
dever de fornecer meios e condições necessárias para o seu exercício. Assim, reconhecendo a perso-
nalidade jurídica de seus membros, os Estados garantem que, ao sofrerem violações de direitos, os
indivíduos não permaneçam em um limbo jurisdicional sem que possam exigir os direitos inerentes a
sua condição humana.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

2.1.1. Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem

Artigo XVII. Toda pessoa tem direito a ser reconhecida, seja onde for, como pessoa com direitos e obri-
gações, e a gozar dos direitos civis fundamentais.

2.1.2. Convenção Americana de Direitos Humanos9

Artigo 3. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

2.1.3. Declaração Universal de Direitos Humanos

Artigo 6. Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua perso-
nalidade jurídica


8
SUAREZ LOPEZ, Beatriz Eugenia; FUENTES CONTRERAS, Édgar Hernán. Derecho al reconocimiento de la personalidad jurídica. Concep-
to y desarrollo en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Prolegómenos, Bogotá, v. 18, n. 36, p. 65-80, Julho
2015. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-182X2015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso
em: 01 maio 2019.
9
Destaca-se, no entanto, que o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica durante o processo de redação da Convenção Ame-
ricana sobre Direitos Humanos “não foi objeto de maior discussão”, uma vez que, durante o processo de criação desta convenção, Chile
e Equador apenas insistiram que a composição deste direito correspondesse a mesma redação dada pelo Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos. Porém, é importante destacar também que “a CIDH, no anteprojeto de Convenção, considerou que se tratava de um
direito humano substantivo e de grande importância”. In: ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE,
Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso em: 11 maio 2019. p. 101.

590
DIREITO AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

2.1.4. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

Artigo 16. Toda pessoa terá direito, em qualquer lugar, ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

2.1.5. Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalha-


dores Migrantes e dos Membros das suas Famílias

Artigo 24. Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família têm direito ao reconhecimento da
sua personalidade jurídica, em todos os lugares.

2.1.6. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

Artigo 12: Reconhecimento igual perante a lei. 1.Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com defi-
ciência têm o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei. 2.Os Estados
Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de
condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.  3.Os Estados Partes tomarão medidas
apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício
de sua capacidade legal.  

2.1.7. Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos10

Artigo 5º. Todo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reco-
nhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem,
nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes são proibidos.

2.2. Normativa interna brasileira

2.2.1. Constituição Federal

No que diz respeito ao direito brasileiro, não há, expressamente, nenhum artigo que trate de forma
direta da incidência da tutela do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica. No entanto,
tendo em vista que este direito alicerça a proteção ao exercício da plena existência do indivíduo perante
a sociedade e que, inclusive, se coaduna com o devido processo legal de forma a englobar a própria
noção de personalidade e capacidade civil dos indivíduos, pode-se concluir que o direito ao reconhe-
cimento à personalidade jurídica se encontra amparado, indiretamente, nos seguintes dispositivos da
Constituição Federal:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
II - a cidadania;


10
No que diz respeito à previsão contida na Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos, cumpre observar que “alguns autores
consideram que o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica deve ser considerado como a primeira expressão de dignidade do
ser humano” enquanto que o reconhecimento como sujeito de direitos lhe confere a existência plena na sociedade. In: ADREU, Federico.
Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos Humanos: Comenta-
rio. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso em: 11 maio 2019. p. 101.

591
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

III - a dignidade da pessoa humana;


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-
rança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

3. TITULARIDADE DO DIREITO À PERSONALIDADE JURÍDICA

O direito ao reconhecimento da personalidade jurídica tem como titular a pessoa natural, individual-
mente considerada, o que significa dizer, nos termos do Art. 1º da CADH, que todo ser humano é sujeito
deste direito. Portanto, sua tutela está limitada aos indivíduos, não abrangendo pessoas jurídicas.11 A
mesma regra é adotada pelo PIDCP, ao passo que faz referência ao “indivíduo” e ao “ser humano”,
tratando-se, portanto, de regra geral no direito internacional.12
No caso Bámaca v. Guatemala, a Corte IDH apontou as implicações desse direito nos seguintes termos:

O referido preceito deve ser interpretado à luz do disposto no artigo XVII da Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem, que estabelece textualmente: “Toda pessoa tem o direito de
ser reconhecê-lo em qualquer lugar como sujeito de direitos e obrigações, e gozar dos direitos
civis fundamentais. O direito ao reconhecimento da personalidade jurídica implica a capacidade
de ser titular de direitos (capacidade de gozo) e deveres; a violação desse reconhecimento implica
ignorar em termos absolutos a possibilidade de ser titular desses direitos e deveres A partir do
momento em que Jorge e sua família decidiram que não queriam permanecer na Fazenda Espe-
rança e foram surpreendidos com ameaças a mão armada, sob argumento de que não poderiam
sair de lá sem quitarem duas dívidas, restou consumada a ofensa ao artigo 24 da Convenção
Americana de Direitos Humanos.”13

Esse direito está relacionado à questão do reconhecimento da pessoa no mundo do Direito ou, ainda
mais, ao reconhecimento da obrigatoriedade estatal na defesa dos direitos da pessoa natural.
Para que seja considerada sua existência em relação aos Estados e à sociedade, o indivíduo deve ser
dotado de identidade, conceito que abarca o conjunto de características e atributos que permitem a
identificação e a individualização da pessoa na sociedade.14 Ademais, o reconhecimento da identidade
das pessoas viabiliza o exercício dos direitos ao nome, à nacionalidade, à inscrição no registro civil, às
relações familiares, entre outros direitos reconhecidos nos instrumentos internacionais.15 As garantias


11
ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos
Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso em: 11
maio 2019.
12
ONU. Pacto internacional sobre direitos civis e políticos. Adotado e proclamado pela XXI Sessão da Assembléia-Geral das Nações
Unidas, em 16 de dezembro de 1966. Brasília, DF: UNICEF. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/pacto-internacional-sobre-direi-
tos-civis-e-pol%C3%ADticos. Acesso em: 12 maio 2019.
13
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, caso Bámaca (Fondo), párr. 179 (2000).
14
SUAREZ LOPEZ, Beatriz Eugenia; FUENTES CONTRERAS, Édgar Hernán. Derecho al reconocimiento de la personalidad jurídica. Concep-
to y desarrollo en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Prolegómenos, Bogotá, v. 18, n. 36, p. 65-80, Julho
2015. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-182X2015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso
em: 01 maio 2019.
15
OEA. Programa interamericano para el registro civil universal y “derecho a la identidad”. AG/RES. 2362 (XXXVIII-O/08) Aprobada en
la cuarta sesión plenaria, celebrada el 3 de junio de 2008. Disponível em: http://www.oas.org/sap/docs/puica/RES_2362_ProgramaIntera-
mericano_s.pdf. Acesso em 12 maio 2019.

592
DIREITO AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

do direito à identidade e à personalidade jurídica estão constantemente associadas, visto que a iden-
tificação plena e legal da existência da pessoa é condição para efetivar o exercício dos direitos civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais.16
No caso Gelman vs. Uruguai, que trata de desaparecimento forçado da vítima María Claudia García
de Gelman, bem como a omissão da real identidade da vítima María Macarena Gelman García Irure-
tagoyena por parte de agentes estatais uruguaios e argentinos no marco da “Operação Condor”, a
Corte IDH teve oportunidade de fixar importante estândar sobre o tema. No caso, as vítimas alegaram
que, quando do nascimento de María Macarena Gelman García Iruretagoyena, sua mãe biológica era
mantida em cativeiro em decorrência de desaparecimento forçado, sendo ilegitimamente entregue
pelos agentes estatais a outra família, de forma que permaneceu sem saber sua real origem, filiação,
nome e identidade. Assim, a Corte entendeu que ao omitir a identidade da vítima, o Estado infringiu a
violação ao direito de personalidade jurídica, e afirmou que:

A situação de um menor de idade cuja identidade familiar foi alterada ilegalmente e causada pelo
desaparecimento forçado de um de seus pais, como é o caso de María Macarena Gelman, apenas
cessa quando a verdade sobre sua identidade for revelada por qualquer meio e quando forem
garantidas à vítima as possibilidades jurídicas e fáticas de recuperar sua verdadeira identidade e,
em todo caso, o vínculo familiar com as consequências jurídicas pertinentes. Assim, o Estado não
garantiu seu direito à personalidade jurídica, em violação do artigo 3 da Convenção.17

Nisso, é evidente a importância do reconhecimento do direito à identidade no seu aspecto mais subje-
tivo, a fim de proporcionar ao indivíduo a plena possibilidade de exercício da sua personalidade jurídica,
a partir da sua esfera íntima de compreensão.
Da mesma forma, a Corte IDH identificou violação ao reconhecimento da personalidade jurídica em
relação à omissão do direito à identidade, ao analisar e julgar o caso Crianças Contreras e outros vs. El
Salvador, no qual as vítimas demandaram a responsabilização do Estado em decorrência do desapare-
cimento forçado de seis crianças, Gregoria Herminia, Serapio Cristian e Julia Inés Contreras, Ana Julia
e Carmelina Mejía Ramírez e José Rubén Rivera Rivera, no contexto de operações militares, durante o
conflito armado em El Salvador, durante os anos de 1981 e 1983.
No caso, o Estado não esclareceu o desaparecimento das seis crianças, tampouco a devida responsa-
bilização dos agentes perpetradores da violação. A privação à liberdade e a recusa das autoridades em
prestar informações ou esclarecer as famílias quanto ao paradeiro das vítimas, configurou evidente
ofensa ao reconhecimento de suas personalidades jurídicas, visto que o Estado acabou por omitir a real
identidade das crianças, alterando-as, como precisamente pronunciou a Corte:

Desse modo, o desaparecimento forçado também pressupõe a violação do direito ao reconheci-


mento da personalidade jurídica estabelecido no artigo 3 da Convenção Americana, dado que esse
desaparecimento implica não somente uma das mais graves formas de subtração de uma pessoa
de todo âmbito do ordenamento jurídico, mas também busca negar sua existência e deixá-la em
uma espécie de limbo ou situação de indeterminação jurídica perante a sociedade e o Estado,
ainda mais quando a identidade tenha sido alterada ilegalmente.18

16
OEA. Programa interamericano para el registro civil universal y “derecho a la identidad”. AG/RES. 2362 (XXXVIII-O/08) Aprobada en la
cuarta sesión plenaria, celebrada el 3 de junio de 2008. Disponível em: http://www.oas.org/sap/docs/puica/RES_2362_ProgramaInterame-
ricano_s.pdf. Acesso em 18 dez. 2018.


17
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Gelman vs. Uruguai. Sentencia de 24 de febrero de 2011. Serie C No.
221, párr. 131
18
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Contreras y otros Vs. El Salvador. Sentencia de 31 de agosto de 2011.
Serie C No. 232, párr. 88.

593
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Para além das questões relativas ao direito à identidade, um dos elementos essenciais do desapareci-
mento forçado é o de impedir o exercício dos direitos e obrigações dos quais o indivíduo é titular, o que,
da mesma forma, é característica evidente da violação ao reconhecimento do direito à personalidade
jurídica do sujeito.19
Ainda quanto ao nexo entre direito à identidade e personalidade jurídica, questões relativas ao reco-
nhecimento de identidade de gênero abrangem a discussão do direito ao nome e ao registro civil,
como instrumentos essenciais para o devido reconhecimento do direito à personalidade jurídica. Nesse
sentido, o 3º Princípio de Yogyakarta, documento elaborado pela Comissão Internacional de Juristas
e o Serviço Internacional de Direitos Humanos, a fim de desenvolver um conjunto de princípios jurí-
dicos internacionais sobre a aplicação da legislação internacional às violações de direitos humanos com
base na orientação sexual e identidade de gênero, traz a necessidade do reconhecimento de qualquer
pessoa perante a lei com respeito à identidade decorrente da sua autocompreensão, ao afirmar que:

Toda pessoa tem o direito de ser reconhecida, em qualquer lugar, como pessoa perante a lei. As
pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero diversas devem gozar de capacidade jurí-
dica em todos os aspectos da vida. A orientação sexual e identidade de gênero autodefinidas por
cada pessoa constituem parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de
sua autodeterminação, dignidade e liberdade (...). 20

Também, nesse sentido, a Corte IDH manifestou na Opinião Consultiva 24/2017 que “as pessoas em
sua diversidade de orientações sexuais, identidades e expressões de gênero devem poder desfrutar
de sua capacidade jurídica em todos os aspectos da vida”, e complementa afirmando a existência de
“uma estreita relação entre, por um lado, o reconhecimento da personalidade jurídica e, por outro, os
atributos legais inerentes à pessoa humana que a distinguem, identificam e singularizam.”21 Tal entendi-
mento foi expressamente aplicado pela Corte IDH na decisão proferida junto ao Caso Vicky Hernández
y otras vs. Honduras, que levou à condenação do Estado pela violação ao direito de reconhecimento da
personalidade jurídica de uma mulher transsexual. 22
Para assegurar a identidade, bem como o reconhecimento da existência de um sujeito perante o Estado
e a sociedade – em especial na esfera jurídica – e, principalmente, o reconhecimento da titularidade
de seus direitos, também é necessária a garantia dos direitos ao nome e ao seu registro civil. É o que
entendeu a Corte IDH no Caso Crianças Yean e Bosico vs. República Dominicana, ao afirmar que:

a negativa a inscrever as crianças Dilcia e Violeta no Registro Civil por parte de funcionários domi-
nicanos ocasionou sua exclusão da ordem jurídica e institucional do Estado, já que durante mais
de quatro anos nem Dilcia nem Violeta possuíam uma certidão de nascimento, documento legal

19
SUAREZ LOPEZ, Beatriz Eugenia; FUENTES CONTRERAS, Édgar Hernán. Derecho al reconocimiento de la personalidad jurídica.
Concepto y desarrollo en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Prolegómenos, Bogotá, v. 18, n. 36, p. 65-
80, Julho 2015. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-182X2015000200005&lng=en&nrm=iso.
Acesso em: 01 maio. 2019.
20
COMISSÃO INTERNACIONAL DE JURISTAS E O SERVIÇO INTERNACIONAL DE JURISTAS E O SERVIÇO INTERNACIONAL DE DIREITOS
HUMANOS. Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identi-
dade de gênero. Yogyacarta, 2007. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf. Acesso em: 12
maio 2019.


21
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Identidade de gênero, e igualdad y no discriminación a parejas del mismo
sexo. Opinión Consultiva OC-24/17 de 24 de novembro de 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.
pdf. Acesso em: 12 maio 2019.
22
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Vicky Hernández y otras Vs. Honduras. Sentencia de 26 de marzo de
2021. Serie C n.º 422. párr. 111-125.

594
DIREITO AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

reconhecido pela República Dominicana como prova de sua identidade, e, por isso, não estavam
reconhecidas perante a lei, o que constituiu uma violação ao artigo 3 da Convenção Americana23.

Também, nesse contexto, o CDH24 reconheceu a importância do registro de nascimentos, incluindo o


registro tardio e a emissão de certidões de nascimento, como forma de estabelecer um registro oficial
da existência de uma pessoa e o reconhecimento de sua personalidade jurídica, levando em conta que
pessoas não registradas são vulneráveis à falta de proteção e que o registro do nascimento de uma
pessoa é um passo essencial para a promoção e proteção de todos os seus direitos humanos e proteção
contra a violência, exploração e abuso.
Ainda sobre a devida emissão do registro civil para a garantia da efetividade do direito ao reconheci-
mento à personalidade jurídica, a Corte IDH, 25 ao analisar a situação de diversos membros da comuni-
dade indígena Sawhoyamaxa, que nunca tiveram uma certidão de nascimento expedida, entendeu que
os mesmos permaneceram em um limbo jurídico em que, embora tivessem nascido e morrido no Para-
guai, a sua existência e identidade nunca foram legalmente reconhecidas, ou seja, não tinham perso-
nalidade jurídica. Nesse caso, a Corte IDH entendeu que a obrigação do Estado de garantir o direito à
personalidade jurídica a grupos em situação de vulnerabildiade tem um aspecto especial, pois deve se
dar em atenção ao princípio da igualdade e não discriminação. Da mesma forma, na decisão proferida
no caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai, a Corte IDH entendeu que a emissão do
registro de identidade é garantia do direito de personalidade jurídica que, por sua vez, “representa uma
parâmetro para determinar se uma pessoa é titular ou não dos direitos em questão, e se os pode exercer
[...]”26, sendo obrigação do Estado dispor de mecanismos que garantam seu pleno exercício.
Assim, o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica terá, necessariamente, implicações em
esferas relativas ao direito de identidade, nome e registro civil, visto que para que um indivíduo seja
reconhecido perante a lei ou perante um sistema jurídico, deve ser-lhe assegurado o reconhecimento
da sua existência como ente individualmente considerado, em todos os seus aspectos, perante os
Estados e a sociedade, sendo tais compreensões indivisíveis.
O direito de personalidade jurídica foi empregado para além da esfera individual, tutelando o direito de
grupos, no caso do Povo Saramaka vs. Suriname, em que a Corte IDH reconheceu o direito à persona-
lidade jurídica de uma comunidade como um todo. 27 A Corte analisou a possibilidade de reconhecer o
direito à personalidade jurídica ao Povo Saramaka, sob o risco de torna a comunidade “[...] inelegíveis
para receber um título comunal de propriedade sobre suas terras na qualidade de comunidade tribal
conforme o direito interno e de ter acesso igualitário à proteção judicial de seu direito de propriedade”,
bem como de utilizar dos recursos legais efetivos disponíveis para proteger seus membros contra atos
que violem o direito de uso e gozo da propriedade comunal. A Corte declarou que o povo Saramaka
pode definir-se como um grupo tribal, distinto nos aspectos sociais, culturais, econômicos da comuni-
dade nacional, e com relação particular de respeito com seu território ancestral, cujos membros gozam
e exercem certos direitos, como o direito à propriedade, em uma maneira coletiva característica. Verifi-

23
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso de las niñas Yean y Bosico Vs. República Dominicana. Sentencia de 23
de noviembre de 2006. Serie C No. 156, párr. 113.
24
ONU. Inscripción de los nacimientos y derecho de todo ser humano al reconocimiento en todas partes de su personalidad jurídi-
ca. Nova Iorque, 2013. Disponível em https://digitallibrary.un.org/record/747757?ln=en. Acesso em: 12 maio 2019.
25
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Comunidad Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguay. Sentencia de 29 de mar-
zo de 2006. Serie C No. 146, párr. 192.
26
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai. Sentença de 24 de
Agosto de 2010. Série C, nº 146. párr. 249.


27
ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos
Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso em: 11
maio 2019.

595
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ca-se que a decisão da Corte IDH, ao reconhecer a comunidade Saramaka como um todo. não retira ou
nega o reconhecimento de cada membro individual da comunidade como detentor de personalidade
jurídica própria no âmbito os seus direitos subjetivos, contudo, no que diz respeito à propriedade, bem
como aos seus costumes, os membros individualmente considerados não representam a comunidade
em seu conjunto. 28
A decisão proferida pela Corte IDH quanto ao reconhecimento da personalidade jurídica dos povos
indígenas e tribais na sua coletividade voltou à pauta no caso dos Povos Kaliña e Lokono vs. Suriname, 29
com sentença proferida em 2015, frente à manutenção da violação e descumprimento das medidas
aplicadas ao Suriname no caso Saramaka. Em que pese o caso paradigma que orientou o entendimento
da Corte e determinou medidas de reparação, o Estado do Suriname não adotou em seu ordenamento
jurídico mecanismos legais de garantia ao reconhecimento da personalidade jurídica dos grupos indí-
genas e tribais na proteção de seu direito de propriedade coletiva. Assim, diante da contínua omissão,
a Corte IDH entendeu incontroversa a violação ao Art. 3 da Convenção em relação ao Art. 2 da mesma.
Ainda, no caso específico dos Povos Kaliña e Lokono, a Corte IDH decidiu pela a violação do direito à
personalidade jurídica coletiva em relação aos Art. 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), 21 (direito à
propriedade privada) e 25 (proteção judicial) da Convenção, diante da falta de mecanismos legislativos,
administrativos e de garantia do reconhecimento da personalidade jurídica no acesso à justiça como
comunidade etnicamente distinta, para proteção da propriedade coletiva. Assim, a violação ao reco-
nhecimento da personalidade jurídica no âmbito coletivo postulado pelos grupos indígenas nos casos
mencionados demonstra a extensão de sua análise e aplicação, visto que não havendo em primeiro
plano o reconhecimento da personalidade jurídica da comunidade como um todo para postular a titu-
laridade da propriedade, não há possibilidade de se garantir os demais direitos inerentes. A personali-
dade jurídica, portanto, é direito cujo reconhecimento denota a possibilidade para a garantia de demais
direitos previstos na convenção.
Disso conclui-se que o direito de reconhecimento à personalidade jurídica é direito humano que será
vislumbrado tanto na esfera individual quanto coletiva, em casos específicos em que a garantia subje-
tiva da sua efetividade não poderá ser reconhecida apenas a um ente representante, mas a um grupo
de pessoas, de forma a respeitar suas tradições e compreensões de existência.

4. ALCANCE DA PROTEÇÃO NORMATIVA

Historicamente, o reconhecimento ao direito à personalidade jurídica tem, como fonte inicial, um


conceito provindo do direito civil, mais precisamente, o direito à personalidade. A personalidade, por
sua vez, é tida como um atributo inerente ao ser humano, que não requer o preenchimento de qual-
quer requisito e que tampouco depende do conhecimento ou da vontade do próprio ser humano. No
mesmo sentido, a personalidade jurídica surge com o intuito de alicerçar este entendimento, tendo
como pressuposto base o fato de que a personalidade jurídica é qualidade própria à condição humana.
Nesta perspectiva, Cançado Trindade assinala que:

a personalidade jurídica internacional do ser humano cristalizou-se como um limite ao poder


arbitrário do estado. Os direitos humanos liberaram a concepção do direito subjetivo das amarras
do positivismo jurídico. Se, por um lado, o status legal da personalidade jurídica internacional
do ser humano contribuiu para instrumentalizar a reivindicação dos direitos da pessoa humana,


28
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Saramaka vs. Suriname. Sentencia de 28 de novembro de 2007. C No. 185,
párr. 77.
29
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Povos Kaliña e Lokono Vs. Suriname. Sentencia de 25 de noviembre de
2015.

596
DIREITO AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

emanando do Direito Internacional, - por outro lado, o corpus juris dos direitos humanos universais
proporcionou à personalidade jurídica do indivíduo uma dimensão muito mais ampla, não mais
condicionada ao direito emanado do poder público estatal”. 30

Ainda que alguns autores considerem que o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica
tenha sido tratado de maneira muito vaga pelos instrumentos internacionais, é importante identificar
que o reconhecimento desta garantia representa, de maneira significativa, um aumento na proteção
de direitos inerentes aos indivíduos, principalmente no que tange ao direito de todo ser humano de
desfrutar e gozar de outras garantias que já estejam devidamente positivadas.
O direito à personalidade jurídica, ao ser reconhecido, assume, por si só, uma espécie de proteção
capaz de abarcar não somente a capacidade legal de todos indivíduos acessarem e gozarem de seus
direitos, mas, também, um direito que se destina a salvaguardar a própria integridade física dos sujeitos.
A escravidão e as medidas do regime nazista que, à época, negaram o reconhecimento da personali-
dade jurídica a determinados indivíduos, constituíram razão de ser para que este direito viesse a ser
tutelado e, consequentemente, consagrado como um direito fundamental a todos os seres humanos.
Assim, pode-se concluir que o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica foi desenvolvido em
estreita colaboração com os princípios de igualdade e não-discriminação.
Assinala-se, ainda, que a natureza do direito fundamental do reconhecimento da personalidade jurídica
possui caráter inderrogável e intangível. Isso quer dizer que a tutela deste direito não pode ser suspensa,
nem mesmo em caso de guerra, de perigo público, ou de qualquer outra emergência que a ameace a
independência ou a seguridade dos Estados. Esta proteção pode ser observada no artigo 27 31 da CADH
e, também, no artigo 432 do PIDCP, por exemplo.
Como observado por Cançado Trindade, o direito à personalidade jurídica se manifesta “como cate-
goria jurídica no mundo do direito, como expressão unitária da aptidão da pessoa humana para ser

30
TRINDADE apud ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana
sobre Derechos Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. p. 102. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/ta-
blas/30237.pdf. Acesso em: 11 maio 2019.


31
Artigo 27. Suspensão de garantias: 1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou se-
gurança do Estado Parte, este poderá adotar disposições que, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências da situação,
suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais
obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma,
religião ou origem social. 2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados seguintes artigos: 3 (Direito ao
reconhecimento da personalidade jurídica); 4 (Direito à vida); 5 (Direito à integridade pessoal); 6 (Proibição da escravidão e servidão); 9
(Princípio da legalidade e da retroatividade); 12 (Liberdade de consciência e de religião); 17 (Proteção da família); 18 (Direito ao nome);
19 (Direitos da criança); 20 (Direito à nacionalidade) e 23 (Direitos políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais
direitos. 3. Todo Estado Parte que fizer uso do direito de suspensão deverá informar imediatamente os outros Estados Partes na presente
Convenção, por intermédio do Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos, das disposições cuja aplicação haja suspendido,
dos motivos determinantes da suspensão e da data em que haja dado por terminada tal suspensão. COMISSÃO INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS (CIDH). Convenção americana sobre os direitos humanos: assinada na Conferência Especializada Interamerica-
na sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Washington: CIDH, c2015. Disponível em: https://www.cidh.
oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 13 maio 2019.
32
Artigo 4: 1. Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente, os Estados Partes do
presente Pacto podem adotar, na estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as obrigações decorrentes do presente
Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional e
não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. 2. A disposição precedente
não autoriza qualquer suspensão dos artigos 6, 7, 8 (parágrafos 1 e 2) 11, 15, 16, e 18. 3. Os Estados Partes do presente Pacto que fizerem uso
do direito de suspensão devem comunicar imediatamente aos outros Estados Partes do presente Pacto, por intermédio do Secretário-
-Geral da Organização das Nações Unidas, as disposições que tenham suspendido, bem como os motivos de tal suspensão. Os Estados
partes deverão fazer uma nova comunicação, igualmente por intermédio do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, na data
em que terminar tal suspensão. NAÇÕES UNIDAS. Pacto internacional sobre direitos civis e políticos. Adotado e proclamado pela XXI
Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966. Brasília, DF: UNICEF, [2019?]. Disponível em: https://www.
unicef.org/brazil/pacto-internacional-sobre-direitos-civis-e-pol%C3%ADticos. Acesso em: 13 maio 2019.

597
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

titular de direitos e deveres na esfera do comportamento e das relações humanas reguladas.”33 É


importante observar que este direito, justamente por estar intimamente ligado com outros princípios
fundamentais, pressupõe que o seu gozo deva ser igual para todas as pessoas, porém, é importante
ressaltar que o reconhecimento da personalidade jurídica pode ter um escopo diferente em relação a
determinados indivíduos.
Isso porque, ainda que o direito à personalidade jurídica tenha o intuito de abarcar a todos os sujeitos, é
importante salientar que a lei limita o exercício deste direito para determinados indivíduos, uma vez que
nem todas as pessoas são necessariamente idênticas em termos de natureza ou extensão de garantias.
Desta forma, considerando que o direito à personalidade jurídica está, também, intimamente ligado ao
direito de capacidade, é importante lembrar que, aqueles que não possuem capacidade civil plena, seja
em relação à idade ou a capacidade mental, ainda que estejam sob o manto da personalidade jurídica,
não conseguem exercer plenamente este exercício no que diz respeito à capacidade civil, pois estão
sujeitos à autorização e/ou representação do responsável ou curador. Neste sentido:

Uma primeira categoria de sujeitos são os menores de 18 anos e pessoas com deficiências mentais.
A este respeito, o Tribunal tem especificado que não há “discriminação com base na idade ou
status social nos casos em que a lei limita o exercício da capacidade civil, que, por serem menores
ou não gozar de saúde mental, não estão em condições para exercê-la sem risco de seu próprio
patrimônio”. Além disso, a Corte Interamericana afirmou que “a maioridade implica a possibilidade
de pleno exercício de direitos, também conhecidos como capacidade de ação. Isso significa que
a pessoa pode exercer pessoalmente e diretamente seus direitos subjetivos, bem como assumir
plenamente obrigações legais e realizar outros atos de natureza pessoal ou patrimonial. Nem todo
mundo tem essa capacidade: as crianças não têm essa capacidade em grande medida. Os incapa-
citados estão sujeitos à autoridade parental, ou, na sua falta, à tutela ou representação. Mas todos
são sujeitos de direitos, titulares de direitos inalienáveis e inerentes à pessoa humana. 34

Todavia, o Comitê sobre Direitos das pessoas com deficiência da ONU afirmou que o direito ao igual
reconhecimento da pessoa perante a lei implica que a capacidade jurídica é um atributo universal
inerente a todas as pessoas devido à sua condição humana e deve ser defendido para pessoas com
deficiência em igualdade de condições com os outros. 35
Já o CDH, 36 ao interpretar o artigo 16 do PIDCP, entendeu que a personalidade jurídica é particular-
mente pertinente no que diz respeito aos direitos das mulheres. Conforme as observações do CDH,
“este direito não pode ser restringido em razão do estado civil ou por outra causa discriminatória da
capacidade das mulheres para exercer o direito de propriedade, entrar em um contrato, ou para exercer
outros direitos civis”. Além disso, o comitê, ao tratar deste assunto, também observou que “a mulher
não pode ser tratada como um objeto que se entrega a sua família junto com a propriedade do marido
defunto”. Assim, à mulher deve ser reconhecida capacidade jurídica idêntica à do homem, tendo o


33
TRINDADE apud ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana
sobre Derechos Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. p. 103. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/ta-
blas/30237.pdf. Acesso em: 11 maio 2019.
34
ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos
Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. p. 106. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso
em: 13 maio 2019.
35
ONU. Observación general sobre el artículo 12: igual reconocimiento como persona ante la ley. Aprobada en la 11ª sesión del Co-
mité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, celebrada el 11 de abril de 2014. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/
record/767049/files/CRPD_C_PRY_CO_1-ES.pdf?download=1. Acesso em 13 maio 2019.
36
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. Observación general núm. 28: La igualdad de derechos entre hombres y mujeres. Aprobada en
la 68º período de sesiones, celebrada en 2000. Disponível em: https://conf-dts1.unog.ch/1%20SPA/Tradutek/Derechos_hum_Base/
CCPR/00_2_obs_grales_Cte%20DerHum%20%5BCCPR%5D.html#GEN28. Acesso em 13 maio 2019.

598
DIREITO AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

reconhecimento de sua personalidade jurídica conforme o princípio da igualdade, tal como prevê a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher em seu artigo 15.
O direito à personalidade jurídica também se aplica de maneira diversa aos estrangeiros, uma vez que
a aplicação desta proteção pode ter seu alcance diferenciado no que tange ao direito de circulação e
residência aos migrantes que estejam legalmente identificados no país onde se encontram e aqueles
que não possuam determinada autorização. No entanto, cabe assinalar que, ainda que haja tratamento
diferenciado, este não poderá infringir “o respeito da dignidade humana e deve garantir o devido
processo legal, independentemente do status migratório do povo.”37
O direito à nacionalidade também está estreitamente relacionado ao direito à personalidade jurídica.
Essa foi ressaltada pela Corte IDH nos seguintes termos: “o direito à nacionalidade, como elo jurídico
entre pessoa e Estado, é condição para o exercício de certos direitos. 38” Considera-se, nesse sentido,
que o direito à nacionalidade implica ao Estado o dever de “fornecer ao indivíduo um mínimo de
proteção legal no conjunto de relacionamentos, de modo a proteger contra a privação arbitrária de sua
nacionalidade e, portanto, todos os seus direitos políticos e civis baseados neste.”39
Em relação à estreita ligação com o direito à nacionalidade, cumpre dizer que a Declaração Americana
estabelece que seus artigos devem aplicar-se e interpretar-se independentemente de sua nacionali-
dade, tanto contra o Estado de sua nacionalidade, quanto contra qualquer outro estado pelo qual este
instrumento se constitua como fonte de obrigações. Nesse sentido:

Este princípio básico é baseado por sua vez na premissa essencial de que a proteção dos direitos
humanos deriva dos atributos da pessoa humana e em virtude do fato de que é um ser humano
e não como um cidadão de um Estado particular. Este princípio é expressamente reconhecido no
preâmbulo da Declaração Americana, que afirma que “os Estados americanos tem reconhecido
que os direitos essenciais do homem não derivam do direto de ser nacional de um determinado
Estado, mas tem como base os atributos da pessoa humana”. Outras disposições da Declaração
Americana refletem de forma análoga esse postulado básico, incluindo nomeadamente o artigo
2, que prevê que os direitos e deveres previstos na Declaração se aplicam a todas as pessoas
“independentemente de raça, sexo, idioma, credo ou qualquer outro” e o artigo XVII, que prevê
especificamente o direito de todas as pessoas “a serem reconhecidas em qualquer lugar como
sujeitos de direitos e obrigações e a gozar de direitos civis fundamentais. ”40 

O caso que versa sobre as pessoas haitianas e de origem haitiana expulsas da República Dominicana,
julgado pela Corte IDH em 12 de julho de 2012, 41 também ilustra a estreita ligação entre o direito de
identidade, nacionalidade e a tutela do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica. A Repú-
blica Dominicana efetuou expulsões de haitianos e dominicanos de ascendência haitiana independen-

37
ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos
Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. p. 106. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso
em: 11 maio 2019.
38
ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos
Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. p. 111. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso
em: 11 maio 2019.
39
ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos
Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. p. 111. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso
em: 11 maio 2019.
40
ADREU, Federico. Derechos Civiles y Políticos. In: STEINER, Christian; URIBE, Patricia (ed.). Convención Americana sobre Derechos
Humanos: Comentario. Bogotá: Konrad Adenauer Stiftung, 2014. p. 111. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/30237.pdf. Acesso
em: 11 maio 2019.


41
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Dominicana.
Sentencia de 28 de agosto de 2014. Serie C No. 282, párrs. 1, 2, 165, 171, 231.

599
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

temente do status migratório dessas pessoas no país, sem que estas decisões tenham sido tomadas
mediante um procedimento prévio de averiguação. Durante a detenção arbitrária e expulsão, as vítimas
não tiveram a oportunidade de apresentar documentação, e, nos casos em que foi apresentada, esta
foi destruída pelos oficiais dominicanos, impedindo as vítimas de comprovarem sua existência física e
sua personalidade jurídica. Além disso, houve impedimentos para conceder a nacionalidade às pessoas
de origem haitiana nascidas em território dominicano, apesar de o Estado adotar o princípio de ius
soli. Uma das principais dificuldades enfrentadas pelas crianças de ascendência haitiana, no momento
em que conseguem sua nacionalidade dominicana, é obter uma certidão de seu nascimento em um
Cartório de Registro Civil em território dominicano.
A Corte IDH reconheceu a violação, pelo estado dominicano, do artigo 3 da CADH, eis que “a perso-
nalidade jurídica implica a capacidade de ser titular de direitos (capacidade e usufruto) e de deveres”42 ,
portanto, é dever do Estado “respeitar e procurar os meios e condições jurídicas para que o direito ao
reconhecimento da personalidade jurídica possa ser exercido livre e plenamente por seus titulares.”43
Além disso, a Corte estabeleceu que “uma pessoa apátrida, ex definitione, não possui personalidade
jurídica reconhecida, já que não estabeleceu um vínculo jurídico-político com nenhum Estado”44,
razão pela qual, a nacionalidade do agente se coaduna e deve ser garantida para que o indivíduo possa
exercer, efetivamente, sua personalidade jurídica perante os entes estatais.45
A Corte IDH determinou que o Estado adotasse determinadas medidas reparatórias, como o recebi-
mento de documentação necessária para comprovar sua identidade e nacionalidade dominicana dos
agentes, bem como as medidas necessárias para deixar sem efeito toda norma, de qualquer natureza,
seja ela constitucional, legal, regulamentar ou administrativa, assim como toda prática, ou decisão, ou
interpretação, que estabeleça ou tenha como efeito que a estadia irregular de indivíduos estrangeiros
motive a negação de sua nacionalidade.

5. DESAPARECIMENTO FORÇADO E VIOLAÇÃO


DA PERSONALIDADE JURÍDICA

A violação ao reconhecimento do direito à personalidade jurídica também se materializa em casos que


versem sobre o desaparecimento forçado de indivíduos. A partir da análise de jurisprudências e casos
levados à Corte IDH, é justamente “no tratamento dos eventos de desaparecimento forçado, onde se
pode observar, pela quantidade de sentenças encontradas, uma formulação progressiva e evolutiva do
direito consagrado no artigo 3 da Convenção Americana de Direitos Humanos”.46 Isso porque, em casos
de desaparecimento forçado, ocorre uma série de violações à segurança legal do indivíduo, resultando
em uma subtração da proteção de lei, o que impede que a vítima exerça seu direito de personalidade

42
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Dominicana.
Sentencia de 28 de agosto de 2014. Serie C No. 282, párr. 265
43
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Dominicana.
Sentencia de 28 de agosto de 2014. Serie C No. 282, párr. 265
44
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso de las niñas Yean y Bosico Vs. República Dominicana. Sentencia de 23
de noviembre de 2006. Serie C No. 156, párr. 178.
45
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Personas dominicanas y haitianas expulsadas Vs. República Dominicana.
Sentencia de 28 de agosto de 2014. Serie C No. 282, párr. 265.
46
SUAREZ LOPEZ, Beatriz Eugenia; FUENTES CONTRERAS, Édgar Hernán. Derecho al reconocimiento de la personalidad jurídica.
Concepto y desarrollo en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Prolegómenos, Bogotá, v. 18, n. 36, p. 65-
80, Julho 2015. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-182X2015000200005&lng=en&nrm=iso.
Acesso em: 01 maio 2019. p. 72.

600
DIREITO AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

jurídica perante o Estado. Nestes casos, além de o sujeito desaparecido não poder continuar gozando
e exercendo seus direitos, seu desaparecimento acaba por negar sua própria existência, ocasionando
uma espécie de limbo ou situação de indeterminação legal perante a sociedade e o Estado.
O caso “Masacres de río negro vs. Guatemala”, que tratou da destruição da comunidade maia do Rio
Negro, mediante uma série de massacres executados pelo exército da Guatemala e por membros das
patrulhas de Defesa Civil entre os anos 1980 e 1982, a Corte IDH constatou “perseguição e remoção de
seus membros, e subsequentes violações contra sobreviventes, incluindo falha em investigar os fatos
acima mencionados”. A Corte assinalou que o desaparecimento forçado das vítimas ocasionou grave
destruição do tecido social daquela sociedade, causada pela impossibilidade do devido enterro em
razão da ausência de identificação dos corpos.47
Além disso, a Corte considerou que o desaparecimento das vítimas ocasionou sua exclusão da ordem
jurídica e institucional do Estado, “com o propósito de criar um vácuo legal e impedir que essas pessoas
exerçam seus direitos”, o que, consequentemente, acabou por violar, diretamente, o direito à persona-
lidade jurídica destes indivíduos. No que diz respeito à personalidade jurídica, especificamente, a Corte
IDH entendeu que, nos casos que versem sobre desaparecimento forçado, este tipo de ação,

tendo em conta a natureza múltipla e complexa desta grave violação dos direitos humanos, pode
levar a uma violação específica do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, uma vez
que a consequência da recusa em reconhecer a privação de liberdade ou de paradeiro da pessoa é,
em juntamente com os outros elementos do desaparecimento, a “remoção da proteção da lei” ou
a violação da segurança pessoal e legal do indivíduo que impede diretamente o reconhecimento
da personalidade jurídica.48

Neste tocante, a Corte estabeleceu que, para que haja um reconhecimento concreto do direito à
personalidade jurídica é imperioso que se reconheçam as pessoas, em qualquer parte “como sujeito de
direitos e obrigações, e que podem gozar dos direitos civis fundamentais, o que implica a capacidade
de ser titular de direitos (capacidade e gozo) e deveres”. Assim, caso haja violação da proteção deste
direito, se pressupõe “ignorar em termos absolutos a possibilidade de ser titular de direitos e deveres
civis e fundamentais.” Dessa maneira, compreende-se que a pessoa desaparecida não logra êxito em
continuar gozando e exercendo outros direitos, uma vez que o desaparecimento dos agentes solidifica
não somente uma das formas mais graves de exclusão do sujeito de todo o ordenamento jurídico “mas
também negam sua própria existência e a deixam em uma espécie de limbo ou situação de indetermi-
nação legal perante a sociedade e o Estado”. 49
No Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, 50 que trata da responsabilidade
do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre
membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses, entre os anos de 1972 e 1975, com o objetivo
de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964–1985), os atos do
Estado configuraram violação do direito à personalidade jurídica dos sujeitos desaparecidos. Isso porque
o governo militar impôs silêncio absoluto sobre os acontecimentos do Araguaia, proibiu a imprensa de
divulgar notícias sobre o tema, enquanto o Exército negava a existência do movimento, de modo que


47
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Masacres de Río Negro Vs. Guatemala. Sentencia de 04 de setembro
de 2012. Serie C No. 250, párr. 2.
48
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Masacres de Río Negro Vs. Guatemala. Sentencia de 04 de setembro
de 2012. Serie C No. 250, párrs. 109, 118, 119.
49
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Masacres de Río Negro Vs. Guatemala. Sentencia de 04 de setembro
de 2012. Serie C No. 250.
50
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença
de 24 de novembro de 2010. Serie C No. 219.

601
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

as vítimas caíram ao esquecimento, não tendo, sequer, seus nomes divulgados aos seus familiares. Para
a Corte IDH, o desaparecimento forçado constitui uma violação múltipla de vários direitos protegidos
pela Convenção Americana, que coloca a vítima em um estado de completa desproteção e acarreta
outras violações conexas, sendo especialmente grave quando faz parte de um padrão sistemático ou
prática aplicada ou tolerada pelo Estado.
No que diz respeito à ausência de proteção do direito à personalidade jurídica, a Corte concluiu que o
desaparecimento forçado também implica a vulneração deste direito, uma vez que o desaparecimento
implica não somente uma das mais graves formas de subtração de uma pessoa de todo o âmbito do
ordenamento jurídico, mas também a negação da sua existência, deixando-a em uma espécie de limbo
ou situação de indeterminação jurídica perante a sociedade e o Estado.
Acerca da violação do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica vinculado ao desapareci-
mento forçado de pessoas, o caso “Anzualdo Castro vs. Peru”, também comporta este mesmo entendi-
mento. No que diz respeito a este caso em específico, o desaparecimento forçado de Anzualdo Castro
privou-lhe do gozo deste direito, porquanto sua execução não identificada lhe impossibilitou de exercer
seus direitos e obrigações, e a gozar de seus direitos civis fundamentais, inclusive por seus próprios
familiares após a sua morte.
Conforme a narrativa do caso, Anzualdo Castro teria sido sequestrado e levado aos sótãos do quartel
do exército, local onde fora friamente executado. O resto de seu corpo acabou sendo incinerado nos
fornos existentes no local. Conforme a CIDH, estes fatos marcam uma época caracterizada por um
“padrão de execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados e massacres atribuídos a agentes do
Estado e a grupos ligados a organizações de segurança”, favorecido por um padrão de impunidade na
investigação e julgamento deste tipo de crime. A comissão alegou que, neste caso, havia clara violação
do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, porquanto “é correto e necessário incluir na
concepção da violação múltipla de direitos humanos que dá origem a um caso de desaparecimento
forçado, a análise da violação do artigo 3 da Convenção”. A comissão embasou esta posição, explicando
que o direito à personalidade jurídica pode ser entendido como um fundamento primordial para

o desfrute de todas as liberdades básicas, e isso inclui o poder de exercer e gozar de direitos, a
capacidade de assumir obrigações e a capacidade de agir. Segundo a Comissão, o objetivo preciso
do desaparecimento forçado é eliminar essas faculdades mediante a abdução do indivíduo da
proteção que lhe é devida e operar fora do Estado de direito. 51

Assim, o Estado, ao não reconhecer que a vítima Anzualdo Castro estava sob seu controle, não pres-
tando informações concretas sobre sua condição ou paradeiro, criou um vazio jurídico através da
negação do reconhecimento da personalidade jurídica da suposta vítima.
A Corte IDH, no mesmo sentido, entendeu que havia clara violação do artigo 3 da CADH, uma vez que
para que haja efetivo reconhecimento do direito à personalidade jurídica é necessário que se reconheça
aos sujeitos, em qualquer parte, o direito de exercer seus direitos e obrigações, incluindo seus direitos
civis fundamentais. Para a Corte IDH, “o conteúdo do direito ao reconhecimento da personalidade jurí-
dica refere-se ao dever geral correlativo do Estado em obter os meios e condições legais para que esse
direito possa ser exercido livre e plenamente por seus detentores”. 52


51
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Anzualdo Castro vs. Perú. Sentencia de 22 de setembro de 2019. Serie
C No. 202, párr. 2, 56, 88, 99, 101.
52
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Anzualdo Castro vs. Perú. Sentencia de 22 de setembro de 2019. Serie
C No. 202, párr. 88.

602
DIREITO AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Em casos de desaparecimento forçado de pessoas, a personalidade jurídica não afeta somente a vítima
– o que, por si só, já configura como uma violação severa e muitas vezes irreparável, mas, também, é
capaz de afetar a terceiros, principalmente os seus familiares.
A partir do momento em que há o desaparecimento de algum indivíduo, as autoridades, em que pese
seu dever de conduzir investigações sérias e efetivas para identificar o paradeiro do indivíduo desapa-
recido, muitas vezes não o fazem, não garantindo aos desaparecidos a proteção de direitos jurídicos
básicos, o que configura, diretamente, uma grave violação ao direito da personalidade jurídica da vítima.
Desse modo, as pessoas tidas como desaparecidas acabam “necessariamente excluídas da ordem
legal e institucional do Estado”, o que significa uma negação de suas próprias existências como seres
humanos. Assim, sob este aspecto, estima-se que, em casos onde há o desaparecimento forçado de
pessoas, a vítima acaba em uma situação jurídica que a impossibilita de ser titular “ou exercer efetiva-
mente seus direitos em geral, em uma das mais graves formas de descumprimento das obrigações do
Estado de respeitar e garantir os direitos humanos”. 53


53
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Anzualdo Castro vs. Perú. Sentencia de 22 de setembro de 2019. Serie
C No. 202, párr. 99, 101.

603
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

DIREITO À PROPRIEDADE

Karina Macedo Gomes Fernandes

Giovana Lima Michelon

1. INTRODUÇÃO

O direito de propriedade surge como forma de proteção dos bens e garantias individuais em relação
à ação estatal, tendo em vista que a propriedade privada é um dos pilares da civilização ocidental.1
Assim, a propriedade é o direito que a pessoa física ou jurídica tem de usar, gozar, dispor de um bem
ou reavê-lo de quem injustamente o possua ou detenha. A ideia de propriedade, nesse sentido, está
relacionada com os seguintes direitos ou faculdades dela decorrentes:
● Direito de gozo ou fruição (jus fruendi): consiste na retirada dos frutos da coisa principal, sejam
eles frutos naturais, industriais ou civis;
● Direito de reivindicação ou retomada (rei vindicatio): abrange a prerrogativa de se ingressar
com ação judicial para obter o bem de quem injustamente o detenha ou possua;
● Direito de uso (jus utendi): consiste no direito que o proprietário tem de usar a coisa da maneira
que entender mais conveniente, sem que isso implique em modificação da sua substância,
tampouco cause danos a terceiros;
● Direito de disposição ou alienação (jus abutendi ou jus disponendi): consiste no poder de se
desfazer da coisa a título oneroso ou gratuito, abrangendo também o poder de consumi-la ou
gravá-la de ônus real (penhor, hipoteca e anticrese).
A constituição do instituto da propriedade e sua localização histórica inicia com o direito romano, com a
propriedade coletiva, que posteriormente se transformaria em propriedade individual. Seu pressuposto
era a distribuição a partir do quanto cada tribo ou família poderia produzir, ou seja, a distribuição de
terras dependia das condições e possibilidades do respectivo trabalho. 2 Sucessivamente, a preocupação
do Império Romano com a distribuição de terras levou às lutas sociais pela propriedade, com os movi-
mentos dos plebeus contra o enriquecimento dos patrícios, 3 o que demonstra a associação da proprie-
dade aos interesses políticos, sociais e econômicos de cada época.4 A tradição do conceito de proprie-
dade em Roma é de um direito individual, absoluto e perpétuo, ilimitado sob qualquer perspectiva. 5


1
PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. Propriedade privada no direito romano. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 15.
2
VIAL, Sandra Regina Martini. Propriedade da terra: análise sócio-jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 67.
3
Os plebeus necessitavam ausentar-se por longos períodos em função das guerras então recorrentes, o que não raro os submetia à con-
dição de escravos e propiciava aos patrícios a ocupação das terras vacantes dos plebeus. In: VIAL, Sandra Regina Martini. Propriedade da
terra: análise sócio-jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 67.
4
FERNANDES, Karina Macedo. Entrevista concedida a Pedro Bigolin Neto. Revista Insurgência, v.6, n.1, 2020, p.3. Disponível em: https://
periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/download/29876/25405. Acesso em: 27 out. 2022.
5
MARTINI, Sandra Regina. Propriedade da terra: análise sócio-jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 69.

604
DIREITO À PROPRIEDADE

Muito embora o conceito de propriedade se mantenha conforme suas raízes romanas, o caráter abso-
luto da propriedade passou a ser questionado na modernidade, conforme as declarações de direitos
advindas da Revolução Francesa e do movimento de independência dos Estados Unidos.6 Nesse
período, a propriedade passou a ser considerada um direito absoluto, desde que exercido em conso-
nância com os ordenamentos jurídicos de cada Estado. Ao mesmo tempo em que se constituiu em uma
garantia fundamental e absoluta de qualquer indivíduo, a propriedade individual tornou-se um trunfo
para confrontar o absolutismo que caracterizava os nascentes Estados europeus, pois limitou a ação do
Estado sobre os indivíduos.
Na obra “Segundo Tratado sobre o Governo”, John Locke dizia ser a propriedade uma extensão da
própria pessoa. 7 Além disso, a propriedade passou a ser vista como o produto do trabalho,8 daí a neces-
sidade de preservação da propriedade como forma de exercício de poder.9
Anteriormente a Locke, Thomas Hobbes entendia o direito de propriedade como resultado do próprio
contrato social, produto dos acordos individuais daqueles que, no estado de natureza, eram proprietários
comuns de todos as coisas. Pelo contrato social, o Estado então criado seria capaz de criar regras para
o convívio social e garantir o direito de propriedade individual para os membros da sociedade política:

[...] pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode
saber quais os bens de que pode gozar, e quais as ações que pode praticar, sem ser molestado
por qualquer de seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade. Porque antes
da constituição do poder soberano (conforme já foi mostrado) todos os homens tinham direito
a todas as coisas, o que necessariamente provocava a guerra. Portanto, esta propriedade, dado
que é necessária à paz e depende do poder soberano, é um ato desse poder, tendo em vista a
paz pública. [...]10

A teoria hobbesiana é influenciada pelo contexto histórico-social da Europa de guerras civis e religiosas
e do colonialismo sobre a América. Por isso, sua ênfase à saída do estado de natureza em direção a
uma organização estatal juridicamente positivada, a fim de se alcançar a paz e a segurança funda-
mentais à vida em sociedade. Pela passagem acima transcrita, Hobbes defendia que o desejo de ser
proprietário fazia com que os indivíduos pensassem ser proprietários de tudo, o que invariavelmente
provocaria a guerra.
A importância do conceito de propriedade, assim, relaciona-se à própria evolução dos indivíduos ao
estado civil: enquanto no estado de natureza, os indivíduos estariam ligados aos desejos e às paixões,
sobretudo quanto à vontade de dominar, no estado civil, por intermédio de um contrato, os indivíduos
têm suas forças individuais suprimidas pela vontade de um soberano, que tem poder sobre todos os
demais membros da sociedade. Os dois preceitos fundamentais da constituição do Estado são, para
Hobbes, a justiça e a propriedade: para suprimir o direito natural dos indivíduos se tornarem proprietá-

6
FERNANDES, Karina Macedo. Entrevista concedida a Pedro Bigolin Neto. Revista Insurgência, v.6, n.1, 2020, p.4. Disponível em: https://
periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/download/29876/25405. Acesso em: 27 out. 2022.


7
“Embora a terra e todos os seus frutos sejam propriedade comum a todos os homens, cada homem tem uma propriedade particular
em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. [...]”. LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo.
Tradução de Alex Marins. 89. ed. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 38.
8
“Parece-me pois fácil entender como o trabalho pôde, de início, dar início ao direito de propriedade sobre o que havia de comum na
natureza, [...]”. LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Tradução de Alex Marins. 89. ed. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 50.
9
“[...] Os percalços a que se expõem o exercício regular e aleatório do poder próprio do homem, de punir as transgressões dos outros,
obrigam-nos a buscar abrigo nas leis estabelecidas e no governo, e nele buscar a preservação da propriedade. [...]”. LOCKE, John. Segundo
Tratado Sobre o Governo. Tradução de Alex Marins. 89. ed. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 93.
10
HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1974, p. 114.

605
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

rios, o soberano vincula a ele a propriedade e a atribui a determinado súdito em detrimento de outrem,
assegurando, assim, a paz e a justiça social.
Jean-Jacques Rousseau foi um liberal-contratualista que também via a propriedade vinculada a um
contrato social, mas, diferentemente de Hobbes, via o contrato social como o resultado do encontro
entre as vontades subjetivas individuais e concretas dos contratantes, considerando o indivíduo como
um ser racional que coexistia racionalmente em sociedade.11 Para Rousseau, a propriedade existe em
razão da lei, que, por sua vez, é a expressão da vontade geral.
Rousseau tinha como premissa básica a ideia de que a realização dos valores fundamentais dos indi-
víduos, como a liberdade e a igualdade, dependia do contrato que, em verdade, era a renúncia das
vontades individuais de cada um em prol da comunidade e da vontade geral. Em outras palavras, as
liberdades individuais tinham como limite a força vinculante do contrato social, que estabelecia a
liberdade civil.12
Das teorias contratualistas, percebe-se que a propriedade é muito mais do que a coisa material em
si: é a base de constituição do Estado. Disso se verifica que, além dos bens que constituem o próprio
de cada indivíduo, a propriedade também diz respeito ao que mais caracteriza a pessoa no sentido
subjetivo. O sentido subjetivo da propriedade é, logo, expresso no exercício de liberdade de escolha
ou de autonomia dos indivíduos, do que decorre ser a dimensão imaterial da propriedade a base das
sociedades consideradas livres.
Hegel é quem explica a propriedade como o eixo fundamental que liga a pessoa à liberdade e ao
contrato. Para Hegel, a liberdade é o exercício da propriedade como exercício da vontade abstrata em
geral, enquanto as pessoas se relacionam como proprietárias por força do contrato.13 A propriedade
é, com isso, uma expressão da liberdade.14 No aspecto material, a vontade individual é a propriedade
privada em si mesma, uma vez que é a partir da vontade, em conluio com a representação e a perso-
nalidade, que a coisa passa a ser objeto da tomada da posse que concretiza a propriedade material.15
Diante disso, extraem-se duas conclusões primárias: a propriedade precisa do ato da tomada de posse
para ser materializada, e quem tenha posse é uma pessoa.16 A posse é, portanto, o vínculo entre a
propriedade e a pessoa, o centro do qual partem todas as disposições jurídicas e políticas no corpo
social para a filosofia hegeliana. A síntese do Estado político é, por excelência, a síntese da propriedade
fundiária e da vida familiar, concepção criticada por Karl Marx em “Crítica da filosofia do direito de
Hegel”, ao fazer uma releitura do conceito estamental de sociedade civil, que Hegel constrói a partir da
correlação dos proprietários fundiários.17


11
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato Social. Traduzido por Mário Franco de Souza. 16. ed. Presença. Lisboa: 1966, p. 19-25.
12
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato Social. Traduzido por Mário Franco de Souza. 16. ed. Presença. Lisboa: 1966, p. 29.
13
“A propriedade, cujo aspecto do ser-aí ou da exterioridade não é mais apenas uma Coisa, porém contém dentro de si o momento de uma
vontade (e, com isso, de outra vontade), vem a constituir-se pelo contrato – enquanto o processo, no qual se expõe e se medeia a con-
tradição, de eu sou e permaneço um proprietário sendo para mim, que exclui a outra vontade, na medida em que numa vontade idêntica
com a outra vontade eu deixo de ser proprietário.” In: HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural
e Ciência do Estado em Compêndio. Traduzido por Paulo Meneses et. al. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2010, p. 106.
14
HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio. Traduzido por
Paulo Meneses et. al. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2010, p. 81-82.
15
“A tomada da posse faz da matéria da Coisa minha propriedade, pois a matéria não é própria para si”. HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamen-
tais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio. Traduzido por Paulo Meneses et. al. São Leopoldo:
Editora UNISINOS, 2010, p. 89.
16
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Traduzido por Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 259.
17
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel, 1843. Traduzido por Rubens Enderle e Leonardo de Deus. 3. ed. São Paulo: Boitem-
po, 2013, p. 115-118.

606
DIREITO À PROPRIEDADE

Hegel define o estamento como o princípio em si mesmo, a relação política essencial, ancorada na
vida familiar e na propriedade da terra como base de subsistência. Diante disso, e considerando que a
propriedade era o que denominava a pessoa, cidadãos, para Hegel, eram os proprietários fundiários. A
exterioridade da pessoa é a posse da coisa, a constituição da pessoa é a propriedade.18
O contrato de propriedade, portanto, simboliza o nascimento do sujeito. Aqui reside, essencialmente, o
ponto de partida para uma leitura crítica da propriedade privada como a realizada por Marx, para quem
a propriedade deve ser coletiva, deve atingir um fim social. A propriedade, na crítica marxiana, está loca-
lizada entre o capital e o trabalho: nas sociedades capitalistas, o capital é um poder pessoal, que existe
mediante a força de trabalho do proletariado. Nesse sentido, a propriedade privada é a transformação
do capital individual, pertencente ao monopólio dos proprietários dos meios de produção. Em outras
palavras, a propriedade privada é a propriedade burguesa destinada ao indivíduo burguês.19
A perspectiva do direito à propriedade como inerente à dignidade da pessoa humana consubstan-
ciou as abordagens das declarações liberais de direitos: Magna Carta (1215); Lei de Habeas Corpus/
Bill of Rights da Inglaterra (1689); Declaração de Direitos da Virgínia e Declaração de Independência
dos Estados Unidos (1776); Declarações de Direitos do Homem e do Cidadão da França (1789)20 e dos
códigos privados e liberais que se baseiam no plano racional do discurso abstrato e especulativo e
desconsideram a materialidade das circunstâncias concretas das relações econômicas e da prática polí-
tica. Estes documentos têm como base a proteção dos interesses fundantes do capitalismo: o sujeito
proprietário e a propriedade.
No âmbito do pós-II Guerra Mundial, o direito à propriedade é previsto desde o sistema global de
proteção de direitos humanos, a partir da DUDH, de 1948, e, posteriormente, nos sistemas regionais de
proteção de direitos humanos, como veremos adiante. Em toda a normatividade, a propriedade privada


18
“Na propriedade, a pessoa se conclui junto consigo mesma. Mas a Coisa é uma Coisa abstratamente exterior, e eu nela sou abstratamente
exterior. O retorno concreto de mim a mim na exterioridade, é que eu, a infinita relação de mim a mim mesmo, sou enquanto pessoa a
repulsão minha de mim mesmo, e tenho o ser-aí de minha personalidade, no ser de outras pessoas, na minha relação a elas, e no ser-re-
conhecido por elas, o que é recíproco. [...] O lado contingente na propriedade é que eu coloque minha vontade nesta Coisa; nessa medida,
minha vontade é arbítrio, assim que posso tanto colocar como não colocar ali; e posso retirar ou não retirar. Mas, enquanto minha vontade
reside em uma Coisa, só eu mesmo posso retirá-la, e só com minha vontade pode ela passar para um outro, cuja propriedade também só
se torna com sua vontade: [é o] contrato”. HEGEL, G. W. F.. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Traduzido por Paulo
Meneses. São Paulo: Loyola, 1995, p. 284.
19
“A partir do momento em que o trabalho não possa mais ser convertido em capital, em dinheiro, em renda da terra – numa palavra, em
poder social capaz de ser monopolizado –, isto é, a partir do momento em que a propriedade individual não possa mais se converter
em sociedade burguesa, declarareis que o indivíduo está suprimido”. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo:
Boitempo, 2017, p. 34-35.
20
Inserida no contexto do sistema feudal de suserania e vassalagem, a Magna Carta foi instituída em 1215 pelo rei João Sem-Terra como
medida atenuante às hostilidades a ele dirigidas pelos barões ingleses, que buscavam o reconhecimento de seus direitos como condição
para o pagamento de impostos à Coroa. O texto foi, pois, um acordo de elites para garantir liberdades individuais, acumulação de riquezas
e proteger a nobreza do poder do monarca.. Datada de 1689, a Lei de Habeas Corpus da Inglaterra, da mesma forma, foi uma ação estra-
tégica do Parlamento para limitar o poder real, “notadamente o poder de prender os opositores políticos, sem submetê-los a processo
criminal regular”, além de uma formalização do habeas corpus, instituto preexistente à Magna Carta – e aqui começa o mito jurídico de
que os direitos subjetivos nascem das garantias processuais. A Declaração de Direitos da Virgínia e a Declaração de Independência dos
Estados Unidos, de 1776, consideradas o marco inaugural da democracia moderna, combinavam lei fundamental com representação
popular mediante poderes limitados e observância a garantias fundamentais. Voltadas à garantia dos direitos civis e individuais, essas
garantias fundamentais são as garantias da manutenção da sociedade burguesa que se formava naquele momento, “isto é, um grupo
organizado de cidadãos livres, iguais perante a lei, e cuja diferenciação interna só podia existir em função da riqueza material”. Interessante
observar que as declarações estadunidenses trazem as liberdades fundamentais como sinônimo de cidadania, essencialmente a partir da
“defesa das liberdades individuais e a submissão dos poderes governamentais ao consentimento popular [government by consent]” e da
ideia do consentimento popular enquanto “molde indispensável ao funcionamento futuro da democracia americana, uma vez admitido
o sufrágio universal”. Da mesma forma, a francesa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, foi um documento que
buscou consagrar a ideia de autonomia do indivíduo, mas que não saiu do plano da formalidade e da estrita legalidade. Nesse sentido,
as declarações liberais de direitos são eminentemente direcionadas ao individualismo e inspiradas nas teorias de Locke, Montesquieu e
Rousseau. COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 67-95.

607
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

é vista como um direito fundamental à pessoa humana, a qual, por sua vez, é reconhecidamente sujeito
de direito internacional e destinatária dos tratados sobre direitos humanos. 21
É na atribuição de uma função social à propriedade que se iniciam as limitações a este direito, da
mesma forma que seu valor jurídico passa a ser considerado. A relação entre propriedade e sujeito
torna o direito de propriedade um bem jurídico caro à pessoa humana. Muito embora não seja um
direito imprescindível à vida digna, o direito de propriedade é o direito de realização econômica, social
e cultural da pessoa. A relativização do direito de propriedade remanesce às condições de realização
dos direitos humanos, o que significa dizer que é preciso o reconhecimento das condições necessárias
para que os direitos humanos sejam realizados. Nesse sentido, o reconhecimento do caráter social dos
direitos humanos é o que viabiliza a consideração dos direitos econômicos, sociais e culturais como
parte constitutiva do conceito de direitos humanos segundo a Declaração de Viena: “Todos os direitos
humanos são universais, indivisíveis e interdependentes e estão relacionados entre si. A comunidade
internacional deve tratar os direitos humanos em forma global e de maneira justa e equitativa, em pé
de igualdade e dando a todos o mesmo peso (...).”22
O DIDH reconhece o direito de propriedade como um direito de natureza civil e fundamental da
pessoa humana por se relacionar diretamente à sua dignidade, sem deixar de considerar, entretanto,
a existência de limites, como o da sua função social e o da primazia do interesse público sobre o inte-
resse privado. Assim, veremos nos próximos pontos como a consideração da natureza civil do direito
de propriedade - e não social, econômica e cultural - reverbera na forma como ocorre a aplicação dos
instrumentos globais e regionais de direitos humanos em relação a esse direito.
Partindo-se do pressuposto que o direito internacional orienta o desenvolvimento do direito interno, 23
aqui será examinado o direito à propriedade e sua limitação principal, o atendimento à função social,
e a forma como esse direito é tratado pelos tribunais internacionais aos quais o Brasil é vinculado. Os
julgados internacionais aqui observados são prioritariamente, portanto, aqueles que podem vincular o
Estado brasileiro de algum modo, ou seja, oriundos do sistema universal e do sistema interamericano
de direitos humanos. Contudo, os julgados do sistema europeu de proteção dos direitos humanos
também são aludidos no presente capítulo por se considerar a possibilidade de uso das fontes do
direito estrangeiro na hermenêutica constitucional24.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

Os instrumentos de direito internacional dispõem sobre o direito à propriedade como um direito


humano de natureza civil e política, tanto no âmbito global quanto no âmbito regional de proteção aos
direitos humanos.


21
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito do direito internacional.
In: ANNONI, Danielle (Org.). Os novos conceitos do novo direito internacional: cidadania, democracia e direitos humanos. Rio de
Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 6.
22
ONU. II Conferência Mundial de Direitos Humanos. Viena, 1993. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1993%20Declara%-
C3%A7%C3%A3o%20e%20Programa%20de%20Ac%C3%A7%C3%A3o%20adoptado%20pela%20Confer%C3%AAncia%20Mun-
dial%20de%20Viena%20sobre%20Direitos%20Humanos%20em%20junho%20de%201993.pdf. Acesso em: 25 set. 2021.
23
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
24
GROPPI, Tania; PONTHOREAU, Marie-Claire. The use of foreign precedents by constitutional judges, 2013.

608
DIREITO À PROPRIEDADE

2.1.1. Declaração Universal de Direitos Humanos (1948)25

Artigo 17
1. Todo ser humano tem direito à propriedade, individualmente ou em sociedade com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade26.

2.1.2. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948)27

Artigo XXIII. Toda pessoa tem direito à propriedade particular correspondente às necessidades essen-
ciais de uma vida de cente, e que contribua a manter a dignidade da pessoa e do lar28.

2.1.3. Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951)29

Art. 13. Propriedade móvel e imóvel


Os Estados contratantes concederão a um refugiado um tratamento tão favorável quanto possível, e
de qualquer maneira um tratamento que não seja desfavorável do que o que é concedido, nas mesmas
circunstâncias, aos estrangeiros em geral, no que concerne à aquisição de propriedade móvel ou
imóvel e a outros direitos a ela referentes, ao aluguel e aos outros contratos relativos a propriedade
móvel ou imóvel.

2.1.4. Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965)30

Artigo V
De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, Os Estados Partes compro-
metem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a garantir o direito de

25
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma norma de soft law que foi assinada pelo Brasil em 10 de dezembro de 1948, mas não
foi ratificada pelo Estado brasileiro. Nesse sentido: BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Secretaria de Editoração e Publicações.
Direitos Humanos. Atos Internacionais e Normas Correlatas. 4. ed. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2013.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/508144/000992124.pdf. Acesso em: 25 set. 2021.
26
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: http://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direi-
tos-humanos. Acesso em: 25 set. 2021.


27
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem foi aprovada na Nona Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em
1948, a mesma na qual foi criada a Organização dos Estados Americanos (OEA), sem ratificação pelo Brasil. É norma de soft law. Nesse
sentido: BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Secretaria de Editoração e Publicações. Direitos Humanos. Atos Internacionais
e Normas Correlatas. 4. ed. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2013. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/
bdsf/bitstream/handle/id/508144/000992124.pdf. Acesso em: 25 set. 2021.
28
OEA. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. 1948. Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/b.Decla-
racao_Americana.htm. Acesso em: 02 set. 2021.
29
A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados foi ratificada pelo Brasil em 15 de abril de 1960 e inserida no ordenamento jurídico
brasileiro pelos Decretos n.º 50.215/, de 28 de janeiro de 1961 e n.º 98.602, de 19 de dezembro de 1989. BRASIL. Decreto n.º 98.602, de 19
de dezembro de 1989. Dá nova redação ao Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961 que promulgou a Convenção relativa ao Estatuto
dos Refugiados, concluída em Genebra, em 28 de julho de 1951. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/
D98602.htm#art1. Acesso em: 25 set. 2021.
30
A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial foi ratificada pelo Brasil em 27 de março de
1968 e inserida no ordenamento jurídico brasileiro pelo decreto n.º 65.810/1969. BRASIL. Decreto n.º 65.810, de 8 de dezembro de 1969.
Promulga a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D65810.html. Acesso em: 25 set. 2021

609
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

cada uma à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica,
principalmente no gozo dos seguintes direitos:
v) direito de qualquer pessoa, tanto individualmente como em conjunto, à propriedade;

2.1.5. Convenção Americana de Direitos Humanos (1969)31

Artigo 21 - Direito à propriedade privada


1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao
interesse social.
2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa,
por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.
3. Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser
reprimidas pela lei.

2.1.6. Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades


Fundamentais (1950)32

Protocolo adicional à Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Paris, 20.3.1952
(Epígrafes dos artigos acrescentadas e texto modificado nos termos das disposições do Protocolo n° 11,
a partir da entrada deste em vigor, em 1 de Novembro de 1998)
Os Governos signatários, Membros do Conselho da Europa,
Resolvidos a tomar providências apropriadas para assegurar a garantia colectiva de direitos e liberdades,
além dos que já figuram no título I da Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950 (abaixo designada “a Convenção”).
Convieram no seguinte:
Artigo 1º - Protecção da propriedade
Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado
do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos
princípios gerais do direito internacional.
As condições precedentes entendem - se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em
vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o inte-
resse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas.


31
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992 e inserida no ordenamento jurídico
brasileiro pelo Decreto no. 678/1992. BRASIL. Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/d0678.htm. Acesso em: 25 set. 2021.
32
A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, como convenção adotada no âmbito do Conselho
da Europa, não foi assinada, tampouco ratificada, pelo Brasil. CONSELHO DA EUROPA. Convenção para a Proteção dos Direitos do
Homem e das Liberdades Fundamentais. 1953. Disponível em: https://www.echr.coe.int/documents/convention_por.pdf. Acesso em: 25
set. 2021.

610
DIREITO À PROPRIEDADE

Uma declaração feita em conformidade com o presente artigo será considerada como se tivesse sido
feita em conformidade com o parágrafo 1 do artigo 56° da Convenção.

2.1.7. Convenção sobre os Trabalhadores Migrantes: Convenção 97 33

Anexo II
Recrutamento, colocação e condições de trabalho dos trabalhadores migrantes que tenham sido recru-
tados em virtude de acôrdos sôbre migrações coletivas celebrados sob contrôle governamental.
Artigo 4º
1. Todo Membro para o qual se ache em vigor êste anexo se obriga a garantir que as operações efetuadas
pelos serviços públicos de emprêgo com relação ao recrutamento, introdução e colocação dos traba-
lhadores migrantes sejam gratuitas.
2. As despesas administrativas acarretadas pelo recrutamento, introdução e colocação não deverão
ocorrer por conta do migrante.
Artigo 7 º
As medidas adotadas de acôrdo com o artigo 4o da Convenção deverá compreender, quando fôr cabível:
e) a autorização para liquidar e transferir a propriedade dos migrantes admitidos em caráter permanente.

2.1.8. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE)34

Artigo 17º - Direito de propriedade


1. Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os
utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua
propriedade, excepto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante
justa indemnização pela respectiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada
por lei na medida do necessário ao interesse geral.
2. É protegida a propriedade intelectual.

2.1.9. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra


a Mulher (1994)35

Artigo 7º


33
A Convenção n.º 97 sobre os Trabalhadores Migrantes foi ratificada pelo Brasil em 18 de junho de 1965 e incorporada ao ordenamento
jurídico brasileiro em 14 de julho de 1966. BRASIL. Decreto n.º 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados
pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do
Trabalho - OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/
Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em: 25 set. 2021.
34
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não foi assinada e ratificada pelo Estado brasileiro. UE. Carta dos Direitos Funda-
mentais da União Europeia. 2000. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf. Acesso em: 25 set. 2021.
35
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher foi ratificada pelo Brasil em 27 de novembro
de 1995 e inserida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº. 1.973/1996. BRASIL. Decreto n.º 1.973, de 1º de agosto de 1996.
Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de
junho de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/d1973.htm. Acesso em: 25 set. 2021.

611
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por
todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência
e a empenhar-se em:
d) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a
mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade
ou danifique sua propriedade;

2.1.10. Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981)36

Art. 14º
O direito de propriedade é garantido, só podendo ser afetado por necessidade pública ou no interesse
geral da coletividade, em conformidade com as disposições de normas legais apropriadas.

2.2. Normativa interna brasileira

Constituição Federal

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-
rança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será
objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei
sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

2.3. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DO DIREITO À


PROPRIEDADE PRIVADA

A proteção do direito de propriedade enquanto um direito humano é vista de maneira ampliada pelas
cortes internacionais, haja vista se tratar de um direito cuja interpretação contempla todos os bens e
valores patrimoniais relacionados ao indivíduo e, portanto, essenciais à concretização da sua dignidade.
Dos comentários gerais n.º 4 e n.º 7, feitos no âmbito do Comitê de Proteção de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC), ao desenvolvimento da jurisprudência internacional, é possível verificar
que o direito de propriedade se insere no rol de direitos econômicos e sociais com uma tendência à sua


36
A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos não foi assinada, tampouco ratificada pelo Estado brasileiro. OUA. Carta Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos. 1981. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/africa/banjul.htm. Acesso em: 25 set. 2021.

612
DIREITO À PROPRIEDADE

judicialização no rol dos direitos civis e políticos no sistema global de proteção dos direitos humanos. 37
A I Conferência Mundial de Direitos Humanos das Nações Unidas, também conhecida como Confe-
rência de Teerã, de 1968, já contribuía ao expor, no parágrafo 13 da Proclamação de Teerã, o caráter de
indivisibilidade dos direitos humanos:

13. Uma vez que os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis, é impossível a
plena realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos económicos, sociais e culturais.
O alcançar de um progresso duradouro na realização dos direitos humanos depende de políticas
de desenvolvimento económico e social acertadas e eficazes, a nível nacional e internacional;38

Tal declaração foi ratificada na II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em 1993, em
Viena. Disso se conclui que, embora o direito de propriedade não tenha sido expressamente reconhe-
cido no PIDCP e apareça sob a forma do direito social à moradia no PIDESC, 39 há uma tendência, no
âmbito global de proteção dos direitos humanos, em considerar o direito de propriedade como um
direito civil - e aqui merece destaque o reconhecimento do direito de propriedade como um direito civil
na Convenção Internacional para a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, aprovada
em 1965 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.40
No marco da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), os casos Ivcher
Bronstein Vs. Perú41 e Awas Tingni Vs. Nicaragua, 42 ambos julgados em 2001, inauguraram o início da
construção jurisprudencial sobre o Direito à Propriedade no âmbito do SIDH, o qual está albergado
no teor do artigo 21 da CADH. A Corte determinou que o artigo 21 da CADH reconhece o direito à
propriedade privada e estabelece que:
a. a pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens;
b. tal uso e gozo pode ser subordinado, por mandato de uma lei, ao interesse social;
c. que uma pessoa pode ser privada dos seus bens por razões de utilidade pública ou interesse
social, nos casos e segundo as formas estabelecidas por lei; e
d. que tal privação deve ser feita mediante o pagamento de uma justa compensação.43
No caso Ivcher Bronstein Vs. Perú, coube ao Tribunal avaliar se o Estado peruano privou a vítima de seus
bens, interferindo em seu direito legítimo de usar e usufruir destes, tendo em vista a perda da sua nacio-
nalidade. Para tanto, definiu o conceito de bens como as coisas materiais apropriadas, bem como quais-

37
A importância do reconhecimento da natureza jurídica do direito de propriedade como referente aos direitos civis e políticos ou aos di-
reitos econômicos e sociais corresponde, em um breve comentário, à priorização do atendimento a este direito pelos Estados. Enquanto
os direitos civis e políticos, como o direito à vida e à dignidade são inderrogáveis e inegociáveis, os direitos econômicos e sociais são
aqueles sobre os quais recai a reserva do possível: sendo individualmente disponíveis, têm sua proteção sujeita à disponibilidade política
e orçamentária do Estado. Cf. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, 1997;
LIMA JR., Jayme Benvenuto. Os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, 2001.
38
ONU. Proclamação de Teerã, 1968. Disponível em: https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/proclamacao_de_teerao.pdf.
Acesso em: 27 out. 2022.
39
Cf. supra.
40
Cf. supra: artigo 5°, alínea d, n° V, da Convenção Internacional para a eliminação de todas as formas de Discriminação Racial.

CORTEIDH. Caso Ivcher Bronstein Vs. Perú. Sentença de mérito, reparações e custas, de 06 de fevereiro de 2001.
41

42
CORTEIDH. Awas Tingni Vs. Nicaragua. Sentença de mérito, reparações e custas, de 31 de agosto de 2001.
43
CORTEIDH. Caso Ivcher Bronstein Vs. Perú. Sentença de mérito, reparações e custas, de 6 de fevereiro de 2001, §120. CorteIDH. Awas
Tingni Vs. Nicaragua. Sentença de mérito, reparações e custas, de 31 de agosto de 2001, §143.

613
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

quer direitos que possam fazer parte dos ativos de uma pessoa. 44 Este conceito inclui todos os móveis
e imóveis, os elementos corpóreos e incorpóreos e qualquer outro objeto imaterial suscetível de valor.
Desse modo, a Corte IDH desenvolveu um conceito amplo de propriedade privada, reforçado nos casos
Chaparro Álvarez e lapo Íñiguez Vs. Equador e Salvador Chiriboga Vs. Equador, ao determinar que
o artigo 21 abarca “o uso e gozo de bens, definidos como coisas materiais apropriadas, bem como
qualquer direito que possa fazer parte do patrimônio de uma pessoa”.45 Ainda, no caso Tibi Vs. Ecuador,
o Tribunal salientou que o artigo 21 da CADH protege o direito de propriedade nem um sentido que
inclui, entre outros, a posse de bens. Neste caso, a Corte consignou que “a posse por si só estabelece
uma presunção de propriedade a favor do possuidor e, no caso de bens móveis, é válida por título.”46
Por outra parte, os direitos adquiridos, os quais abrangem os bens incorporados ao patrimônio de uma
pessoa, também estão protegidos pelo direito à propriedade. Nesse sentido, no caso Cinco Pensio-
nistas Vs. Perú, a Corte IDH identificou uma violação ao conteúdo do artigo 21 da CADH devido à modi-
ficação arbitrária no montante das pensões das vítimas.47 Igualmente, no caso Acevedo Buendía y otros
(“Cesantes y Jubilados de la Contraloría”) Vs. Perú, houve uma afetação no patrimônio dos pensionistas
pela redução ilegal das prestações sociais, de modo que as vítimas foram impedidas de usufruir inte-
gralmente de seu direito à propriedade.48
Nessa perspectiva, os benefícios derivados da previdência social fazem parte do direito à propriedade
e devem ser protegidos contra a interferência arbitrária do Estado. A Corte IDH reiterou essa posição
recentemente nos casos Muelle Flores Vs. Perú e Asociación Nacional de Cesantes y Jubilados de la
Superintencia Nacional de Administración Tributaria (ANCEJUB-SUNAT) vs. Perú e acrescentou que
quando o titular do direito tiver efetuado aportes em um sistema contributivo, o direito de propriedade
também pode cobrir as expectativas da pessoa, desde que legítimas. 49 Salientou, ainda que os bene-
fícios da previdência social adquirem singular importância devido ao seu caráter alimentar capaz de
substituir o salário e que os direitos consolidados por meio de sentenças judiciais, envolvendo pensões
de velhice e indenizações, também devem ser protegidos. 50
Todavia, o direito à propriedade não é absoluto, sendo passível de limitações, intromissões ou interfe-
rências. Em Salvador Chiriboga Vs. Equador, o Tribunal analisou as restrições ao direito à propriedade
privada em uma sociedade democrática para verificar se a privação do uso e gozo do prédio da senhora
María Salvador Chiriboga estava de acordo com os critérios de utilidade pública, interesse social e paga-
mento de uma indenização justa. 51 Segundo a Corte IDH, qualquer interferência ao direito protegido

44
CORTEIDH. Caso Ivcher Bronstein Vs. Perú. Sentença de mérito, reparações e custas, de 06 de fevereiro de 2001, §122.
45
CORTEIDH. Caso Salvador Chiriboga Vs. Ecuador. Sentença de exceções preliminares e mérito, de 6 de maio de 2008, §55. Corte IDH.
Chaparro Álvarez y Lapo Íñiguez. Vs. Ecuador. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 6 de maio de 2008,
§174.
46
CORTEIDH. Caso Tibi Vs. Equador. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 7 de setembro de 2004, §218.
47
CORTEIDH. Caso Cinco Pensionistas Vs. Perú Sentença de mérito, reparações e custas, de 28 de fevereiro de 2003, §102.
48
CORTEIDH. Acevedo Buendía y otros (“Cesantes y Jubilados de la Contraloría”) Vs. Perú. Sentença de exceção preliminar, mérito,
reparações e custas, de 1 de julho de 2009, §88.
49
CORTEIDH. Muelle Flores Vs. Perú. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 6 de março de 2019, §212. Corte
IDH. Asociación Nacional de Cesantes y Jubilados de la Superintencia Nacional de Administración Tributaria (ANCEJUB-SUNAT)
v. Perú. Sentença de Exceções Preliminares, mérito, reparações e custas, de 21 de novembro de 2019, §193.
50
CORTEIDH. Muelle Flores Vs. Perú. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 6 de março de 2019, §214. Corte
IDH. Caso Furlan y familiares vs. Argentina. Sentença de Exceções Preliminares, mérito, reparações e custas, de 31 de agosto de 2012,
§222.

CORTEIDH. Caso Salvador Chiriboga Vs. Ecuador. Sentença de exceções preliminares e mérito, de 6 de maio de 2008, §66.
51

614
DIREITO À PROPRIEDADE

pelo artigo 21 da CADH somente é permitida para satisfazer um interesse social e quando for necessária
para a consecução de um objetivo legítimo em uma sociedade democrática.

O direito à propriedade privada deve ser entendido dentro do contexto de uma sociedade demo-
crática onde para a prevalência do bem comum e dos direitos coletivos devem existir medidas
proporcionais que garantam os direitos individuais. A função social da propriedade é um elemento
fundamental para o funcionamento da mesma, e é por isso que o Estado, a fim de garantir
outros direitos fundamentais de vital relevância para uma sociedade específica, pode limitar ou
restringir o direito à propriedade privada, respeitando sempre o conteúdo da norma do artigo 21
da Convenção e os princípios gerais do direito internacional. 52

Nesse sentido, para limitar ou restringir o direito de propriedade de alguém, é necessário a utilização
de meios proporcionais que busquem equilibrar o interesse do particular e a utilidade pública. 53 Entre-
tanto, não foi o que ocorreu no caso Palamara Iribarne Vs. Chile, quando o Estado chileno proibiu a
publicação de um livro sobre as Forças Armadas sob o pretexto de resguardar o “interesse institucional”,
justificativa incompatível com a CADH e com o interesse social. 54 Além disso, no julgamento a Corte
IDH elucidou que no amplo conceito de “bem” também estão abarcadas as obras produtos de criação
intelectual de uma pessoa. O debate sobre os objetos imóveis ou intangíveis suscetíveis de valor,
conferem proteção ao uso e fruição da obra, abrangendo aspectos materiais e imateriais. 55
Em contextos de conflitos armados, a violação ao direito à propriedade pode ocorrer associada a
destruições, invasões, despejos, entre outros. Conforme a Corte IDH, a destruição de casas com
condições básicas de habitação constitui, além de uma grande perda de natureza econômica, uma
perda das suas condições básicas de existência, o que torna particularmente grave a violação do direito
de propriedade. 56 Assim, a Corte define que a invasão, ou intrusão ilegal de forças armadas em uma
moradia/habitação, constitui uma interferência estatal abusiva e arbitrária. 57
Como regra, o titular do direito à propriedade privada é o ser humano. Contudo, em casos como Perozo
e otros Vs. Venezuela e Granier y otros (Radio Caracas Televisión) Vs. Venezuela, a Corte IDH observou
que existe a possibilidade de violação dos direitos de propriedade de certas pessoas por sua qualidade
de acionistas. 58 Nessa linha, a Opinião Consultiva 22-16, de 201659 refere que deve ser demonstrado
como o dano ou a afetação dos bens de propriedade da pessoa jurídica poderia, por sua vez, implicar
em uma afetação dos direitos dos acionistas ou sócios; adicionalmente, considera que para determinar
se houve violação do direito de propriedade dos acionistas, é necessário provar claramente o nexo entre
a violação do patrimônio da empresa ou de sua personalidade jurídica e os prejuízos a garantia e gozo
pleno dos direitos humanos do acionista.

52
CORTEIDH. Caso Salvador Chiriboga Vs. Ecuador. Sentença de exceções preliminares e mérito, de 6 de maio de 2008, §60.
53
CORTEIDH. Caso Salvador Chiriboga Vs. Ecuador. Sentença de exceções preliminares e mérito, de 6 de maio de 2008, §65.
54
CORTEIDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas, de 22 de novembro de 2005, §109.
55
CORTEIDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de mérito, reparações e custas, de 22 de novembro de 2005, §102-103.
56
CORTEIDH. Caso de las Masacres de Ituango Vs. Colombia. Sentença de 1 de julho de 2006, §182. Corte IDH. Caso Vereda La Espe-
ranza Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 31 de agosto de 2017, §240.


57
CORTEIDH. Caso Vereda La Esperanza Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 31 de agosto
de 2017, §242.
58
CORTEIDH. Perozo y otros Vs. Venezuela. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 31 de agosto de 2009,
§400. Corte IDH. Granier y otros (Radio Caracas Televisión) Vs. Venezuela Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e
custas, de 22 de junho de 2015, §338.
59
CORTEIDH. Opinião Consultiva OC 22/16 (Titularidade de direitos das pessoas jurídicas Sistema Interamericano de Direitos Humanos),
de 26 de fevereiro de 2016, §112.

615
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Especificamente, no que diz respeito ao direito dos povos indígenas, o reconhecimento da personali-
dade jurídica de organizações indígenas é uma forma, embora não a única, de assegurar que a comu-
nidade, como um todo, possa usufruir e exercer plenamente o direito de propriedade, bem como o
direito a igual proteção judicial contra qualquer violação desse direito. No caso Saramaka Vs. Suriname,
a Corte IDH consolidou seu posicionamento sobre a possibilidade de que se reconheça a personalidade
jurídica de uma comunidade indígena.60 O julgado se dirige a hipóteses nas quais a impossibilidade de
o povo ou comunidade indígenas adquirir e gozar coletivamente de personalidade jurídica pode afetar
o exercício de gozo de demais direitos, tais como o direito à titularidade coletiva das terras que tradicio-
nalmente ocupam. O caso Saramaka conectou o artigo 21 da CADH aos direitos de autodeterminação
e desenvolvimento cultural e econômico de uma comunidade indígena.61
Como parte de um processo de ampliação da proteção sobre os direitos dos povos indígenas no
sistema interamericano de proteção de direitos humanos62 , a Corte IDH se manifesta pela primeira
vez acerca da proteção dos direitos dos povos indígenas à terra em 2001, no caso Mayagna (Sumo)
Awas Tingni Vs. Nicaragua. No julgamento do caso, a Corte IDH adota os argumentos suscitados pela
CIDH e pelos peticionários para aplicar o artigo 21 da CADH no sentido que compreende os direitos
dos membros das comunidades indígenas no contexto da propriedade comunal. Assim consta no pará-
grafo 149 do julgado:

Dadas as características do presente caso, é necessário fazer algumas precisões a respeito do


conceito de propriedade nas comunidades indígenas. Entre os indígenas existe uma tradição
comunitária sobre uma forma comunal da propriedade coletiva da terra, no sentido de que o
pertencimento desta não se centra em um indivíduo, mas no grupo e sua comunidade. Os indí-
genas pelo fato de sua própria existência têm direito a viver livremente em seus próprios territórios;
a relação próxima que os indígenas mantêm com a terra deve de ser reconhecida e compreendida
como a base fundamental de suas culturas, sua vida espiritual, sua integridade e sua sobrevivência
econômica. Para as comunidades indígenas a relação com a terra não é meramente uma questão
de posse e produção, mas sim um elemento material e espiritual do qual devem gozar plena-
mente, inclusive para preservar seu legado cultural e transmiti-lo às futuras gerações.63

Nesse sentido, a Corte IDH ponderou sobre a necessidade de se considerar suficiente a posse da terra
para o reconhecimento da propriedade sobre populações indígenas que não possuem título real de
prorpeidade, determinando, consequentemente, a demarcação do território de propriedade da Comu-
nidade Awas Tigni pelo Estado, que também ficou obrigado a se abster de realizar quaisquer atos que
pudessem levar agentes do Estado ou terceiros a “prejudicar a existência, o valor, o uso ou o gozo dos
bens localizados na zona geográfica onde habitam e realizam suas atividades os membros da Comuni-
dade”64. O caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua não somente inaugurou
uma das maiores inovações definidas pela Corte IDH sobre o direito à propriedade definido no artigo
21 da CADH, como também foi o primeiro no qual um tribunal internacional de direitos humanos reco-

60
CORTEIDH. Caso del Pueblo Saramaka Vs. Surinam. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 28 de novem-
bro de 2007, §166.
61
ANTKOWIAK, Thomas M. Rights, Resources, and rhetoric: Indigenous peoples and the inter-american court. University of Pennsylvania
Journal of International Law, v. 35, n. 1, 2013, p. 159
62
ANTKOWIAK, Thomas M. Rights, Resources, and rhetoric: Indigenous peoples and the inter-american court. University of Pennsylvania
Journal of International Law, v. 35, n. 1, 2013, p. 138
63
CORTEIDH. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de mérito, reparações e custas, de 31 de
agosto de 2001, § 149.
64
CORTEIDH. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de mérito, reparações e custas, de 31 de
agosto de 2001, § 153.

616
DIREITO À PROPRIEDADE

nheceu o direito indígena à propriedade comunal, antes mesmo que o sistema africano e do sistema
europeu oferecessem interpretações análogas ao direito de propriedade.65
No caso Comunidad indígena Yakye Axa Vs. Paraguay que a Corte IDH desenvolveu de forma mais
substancial o conceito de propriedade comunal, interpretando o artigo 21 da CADH de forma evolutiva,
a partir do que determina o artigo 26 da CADH66, e integrada à Convenção n.º 169 da Organização
Internacional do Trabalho67, que assim dispõe em seu artigo 13:

1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a


importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a
sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou
utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.

2. A utilização do termo “terras” nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que
abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de
alguma outra forma.68

No caso Yakye Axa Vs. Paraguay, a Corte IDH estabelece que as definições da Convenção n.º 169 da
OIT guardam estreita relação com o direito à propriedade comunal das comunidades indígenas nos
termos da interpretação dirigida ao artigo 21 da CADH pela própria Corte IDH.69 Com base no conceito
de terras e territórios, diretamente relacionado aos direitos de propriedade sob a perspectiva comunal,
a Corte IDH ressalta o dever de reconhecimento da estreita relação dos povos indígenas com a terra,
“compreendida como a base fundamental da sua cultura, vida espiritual, integridade, sobrevivência
econômica e sua preservação e transmissão às gerações futuras”. 70
Com a ampliação da compreensão do conceito de propriedade a partir do marco da propriedade
comunal, a Corte IDH define que o artigo 21 da CADH deixa de se referir somente à propriedade
privada para abranger o uso e gozo dos bens, ressaltando que “tratados de direitos humanos são
instrumentos vivos cuja interpretação tem que se adequar à evolução dos tempos e, em particular, às
condições de vida atuais.” 71. Nesse sentido, Antikowiak alega que foi no Caso de la Comunidad Moiwana
Vs. Suriname, julgado em 2005 e cujo objeto é o massacre realizado por agentes do Estado e da milícia
do Suriname sobre a comunidade Moiwana em 1986, que a Corte IDH definiu os critérios mínimos

65
ANTKOWIAK, Thomas M. Rights, Resources, and rhetoric: Indigenous peoples and the inter-american court. University of Pennsylvania
Journal of International Law, v. 35, n. 1, 2013, p. 141-142.
66
“Artigo 26. Desenvolvimento progressivo. Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como
mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos
direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Es-
tados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios
apropriados.” BRASIL. Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto
de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso
em: 25 set. 2021.
67
CORTEIDH. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Sentença de mérito, reparações e custas, de 17 de junho de 2005, § 127
68
BRASIL. Decreto n.º 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem
sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Fede-
rativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em: 25 set.
2021.
69
CORTEIDH. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Sentença de mérito, reparações e custas, de 17 de junho de 2005, § 130.
70
CORTEIDH. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Sentença de mérito, reparações e custas, de 17 de junho de 2005, § 131.

CORTEIDH. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de mérito, reparações e custas, de 31 de
71

agosto de 2001, § 145.

617
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

para caracterização da propriedade comunal em conformidade ao artigo 21 da CADH72: é necessário


que haja demonstração de uma relação abrangente da comunidade com os seus territórios, do que
decorrem consequências significativas como o registro da propriedade sobre tais comunidades e o
reconhecimento dos direitos de propriedade sobre extensões de terra significativas e valiosas. 73
O direito à propriedade comunal indígena é reconhecido pelo SIDH sempre intrinsecamente ligado a
outros direitos essenciais para os povos indígenas, como o direito à identidade cultural, ao bem-estar,
ao livre desenvolvimento, à personalidade jurídica, de maneira que a propriedade, sozinha, não serve
como princípio dos direitos dos povos indígenas74.
Sobre o direito à propriedade de comunidades afrodescendentes, a CIDH recorda aos Estados o enten-
dimento consolidado pela Corte IDH75 sobre a necessidade de reconhecimento, garantia e proteção dos
direitos territoriais exercidos coletivamente por comunidades afrodescendentes nas Américas. 76 Reme-
mora que os Estados devem adotar todos os mecanismos institucionais necessários para conceder a
demarcação, titulação, e posse segura e pacífica dos territórios pertencentes às comunidades. Para este
propósito, os Estados signatários da CADH devem levar em consideração que os povos afrodescen-
dentes nas Américas têm assentamentos em áreas rurais, ribeirinhas e costeiras, inclusive beira-mar.
Para a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) o direito de propriedade
engloba os bens atuais e os valores patrimoniais, incluindo as prestações sociais reconhecidas na
legislação interna. 77 Nesse sentido, nos casos Conceição Mateus Vs. Portugal78 e Santos Januário Vs.
Portugal79, o Tribunal analisou a compatibilidade da diminuição dos pagamentos das pensões dos
requerentes em relação ao Artigo 1 do Protocolo No. 1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
O TEDH reconheceu que o direito à propriedade abrange as prestações sociais, todavia concluiu que
o montante a ser pago pode ser reduzido, desde que respeite o justo equilíbrio entre o interesse geral
da sociedade e a proteção dos direitos individuais da pessoa. Diante da excepcional crise econômica e
financeira enfrentada por Portugal naquele momento, o Tribunal entendeu que a redução limitada e
temporal do pagamento das pensões não representava uma carga desproporcional e excessiva a ser
suportada pelos pensionistas. Portanto, os cortes nos subsídios constituíam uma restrição razoável e
ingerência proporcional ao direito de propriedade dos requerentes.80
As decisões do TEDH demonstram que a privação de propriedade só se justifica se houver a demons-
tração de que ela ocorre em nome de utilidade pública e se estiver em harmonia com o imperativo

72
CORTEIDH. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 15 de
junho de 2005, § 86.
73
ANTKOWIAK, Thomas M. Rights, Resources, and rhetoric: Indigenous peoples and the inter-american court. University of Pennsylvania
Journal of International Law, v. 35, n. 1, 2013, p. 144-146.


74
ANTKOWIAK, Thomas M. Rights, Resources, and rhetoric: Indigenous peoples and the inter-american court. University of Pennsylvania
Journal of International Law, v. 35, n. 1, 2013, p. 160.
75
CORTEIDH. Caso de las comunidades afrodescendientes desplazadas de la cuenca del Río Cararica (Operación Génesis) Vs. Co-
lombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 20 de novembro de 2013. Corte IDH. Caso Pueblo Kaliña y
Lokono Vs. Surinam. Sentença de mérito, reparações e custas, de 25 de novembro de 2015.
76
CIDH. Derechos económicos, sociales, culturales y ambientales de las personas afrodescendientes. Washington: OEA, 2021, §225-
226.
77
BARRETO, Ireneu Cabral. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Almedina: Coimbra, 2016, p. 470-471. TEDH. Case of Stec
and Others v. The United Kingdom (Applications nos. 65731/01 and 65900/01). Sentença de 12 de abril de 2016, p. 19.
78
TEDH Caso Conceição Mateus Vs. Portugal (Application no. 62235/12). Sentença de 08 de outubro de 2013.
79
TEDH. Caso Santos Januário Vs. Portugal (Application no. no. 57725/12). Sentença de 08 de outubro de 2013.
80
TEDH. Caso Conceição Mateus Vs. Portugal (Application no. 62235/12). Sentença de 08 de outubro de 2013, §29.

618
DIREITO À PROPRIEDADE

da salvaguarda dos direitos fundamentais do indivíduo.81 Foi assim que, no caso Fredin Vs. Sweden,82
o Tribunal entendeu que a revogação do direito de extração de cascalho sem compensação, após
o decurso de dez anos, tratava-se de uma regulação do uso dos bens que não afetava o direito de
propriedade dos demandantes e se destinava a neutralizar danos ao meio ambiente, em defesa do
interesse geral da sociedade. Já no caso Elia Srl. Vs. Italy83, houve violação ao Artigo 1 do Protocolo
No. 1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, pois a interferência ao gozo pacífico do direito de
propriedade da empresa requerente, sem qualquer compensação, configurava uma carga excessiva
que perturbava a justa medida entre os interesses públicos e privados.
No caso Nekvedavičius Vs. Lituania84, que posteriormente também foi objeto de comunicação ao CDH
da ONU85, o TEDH reconheceu a violação ao direito de propriedade da vítima com base no Artigo
1 do Protocolo No. 1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. No feito, o autor ingressou com
uma ação reivindicatória para reaver a propriedade que tinha pertencido a seu genitor, repatriado na
Alemanha por volta de 1941, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Em 1948, a ex-esposa do pai do
autor, que já havia retornado à Lituânia após a dissolução do matrimônio, obteve uma decisão favorável
das autoridades da época que dava a ela a titularidade legal da propriedade. Posteriormente, sua filha
herdou as terras, pela via da sucessão, e entre 1964 e 1968 a titularidade da propriedade foi transfe-
rida a terceiros.
O ator alegou que eram ilegais a propriedade da ex-cônjuge de seu pai e a transferência da titularidade
a terceiros, e solicitou a anulação dos contratos de compra e venda, com a consequente restituição da
propriedade em seu nome. Em razão da não execução da decisão de novembro de 2001, que entendeu
que os documentos apresentados por Nekvedavičius eram suficientes para determinar o restabeleci-
mento de seus direitos de propriedade, o Tribunal Europeu determinou o pagamento de indenização a
título de danos morais somado ao valor correspondente da área de terra alvo da controvérsia. Por não
concordar com os valores arbitrados, o autor apresentou uma comunicação ao CDH da ONU visando
a restitutio in integrum dos bens de sua família, todavia foi inadmitida por não apresentar nenhuma
irregularidade no processo de adoção das decisões.
O CDH da ONU também já abordou o tema do direito à propriedade em sua jurisprudência, apesar de
inexistente a garantia do direito à propriedade no PIDCP. No caso Karel Des Fours Walderode Vs. Repú-
blica Checa,86 o autor pretendia a restituição das propriedades herdadas de seu pai que foram confis-
cadas sem qualquer indenização no final da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Em 1992, uma nova lei
entrou em vigor na República Tcheca, a qual previa a restituição das propriedades confiscadas em 1945,
desde que os requerentes tivessem cidadania tcheca no momento de ingressar com o pedido. Assim,
Des Fours Walderode, que havia tido sua cidadania tcheca confirmada em agosto de 1992, realizou a
solicitação e celebrou um contrato de restituição com os então proprietários em novembro de 1992,
tendo o registro sido aprovado no órgão responsável em março de 1993.
Em 1995, o Ministro da Agricultura da República Tcheca anulou a decisão que havia conferido a proprie-
dade à Des Fours Walderode, sob o fundamento de que o autor não preenchia o requisito de residência
permanente. Após recursos ao Supremo Tribunal de Praga, o requisito da residência foi retirado, mas


81
BARRETO, Ireneu Cabral. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Almedina: Coimbra, 2016, p. 473.
82
TEDH. Case Fredin V. Sweden (Application no. 12033/86). Sentença de 18 de fevereiro de 1991, §41.
83
TEDH. Case Elia Srl. V. Italy (Application no. 37710/97). Sentença de 6 de agosto de 2001, §80
84
TEDH. Nekvedavičius v. Lithuania (Application no. 1471/05). Sentença de 10 de dezembro de 2013.
85
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DA ONU. Nekvedavičius v. Lithuania (Comunicación núm. 2802/2016). Decisão de 9 de novembro
de 2017.
86
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DA ONU. Karel Des Fours Walderode Vs. República Checa (Comunicación núm. 747/1997). Decisão
de 30 de outubro de 2001.

619
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

uma nova condição foi introduzida exigindo a cidadania tcheca ininterrupta desde o final da Segunda
Guerra Mundial até primeiro de janeiro de 1990. Segundo o autor, a nova previsão tinha o objetivo
específico de lhe prejudicar e invalidar o acordo de restituição de propriedade celebrado em 1992, uma
vez que não cumpria com o requisito de cidadania contínua.
O Comitê remeteu-se aos casos Simunek y otros Vs. República Checa,87 Adam Vs. República Checa88 e
Blazek Vs. República Checa89 para indicar que o requisito de cidadania como condição imprescindível
para a restituição de bens previamente confiscados pelo Estado constitui uma medida desproporcional
e uma distinção arbitrária. No caso de Des Fours Walderode, o Comitê concluiu que o Estado tinha
o dever de oferecer um recurso efetivo ao demandante e garantir a restituição de sua propriedade,
bem como a devida compensação pela privação do gozo de seus bens, desde que sua restituição foi
revogada em 1995.
Já no caso P.E.E.P. Vs. Estonia,90 o CDH da ONU considerou a comunicação inadmissível e apontou,
entre as razões, o fato do direito à propriedade não estar previsto no Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos (PIDCP), não possuindo, assim, competência ratione materiae para examinar violações
específicas a esse direito. Todavia, o Comitê salientou que os bens confiscados de seus antigos proprie-
tários e o não pagamento por parte do Estado de uma indenização pelo confisco pode ensejar violação
ao PIDCP se não houver na jurisdição interna recurso que assegure o direito de pleitear a restituição da
propriedade ou se o confisco resultar de algum motivo discriminatório.

2.3.1. A função social da propriedade

O direito de propriedade tem seu conteúdo limitado pela sua função social, ou seja, o uso da proprie-
dade deve também servir aos interesses comuns da coletividade. Essa perspectiva integra o constitu-
cionalismo contemporâneo nos textos constitucionais vigentes no Brasil, na Alemanha, na Itália, na
França, em Portugal, na Espanha, no México, no Uruguai, na Argentina e no Paraguai.91 No âmbito do
DI, a função social da propriedade não somente integra o conteúdo do direito de propriedade como é
determinante para o seu reconhecimento jurídico, pelo que se observa da construção jurisprudencial
e da normativa expressa nos tratados sobre o tema: tanto no plano global quanto no plano regional, o
direito à propriedade privada é limitado ao cumprimento da sua função social - com destaque para o
reconhecimento da propriedade comunal que, em ultima ratio, é uma leitura social da propriedade.
Muito embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos não faça menção específica à função
social da propriedade no texto do artigo 17, estabelece, no artigo 29, os limites a todos os direitos e
liberdades previstos na Declaração:

2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações
determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito
dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública
e do bem-estar de uma sociedade democrática.

87
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DA ONU. Simunek y otros Vs. República Checa (Comunicación núm. 516/1992). Decisão de 19 de
julho de 1995.
88
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DA ONU. Adam Vs. República Checa (Comunicación núm. 586/1994). Decisão de 23 de julho de
1996.
89
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DA ONU. Blazek Vs. República Checa (Comunicación Nº 857/1999). Decisão de 12 de julho de 2001.
90
COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DA ONU. P.E.E.P. Vs. Estonia. Decisão de 13 de março de 2020.


91
NONES, Nelson. A função social da propriedade no âmbito do constitucionalismo contemporâneo. Revista Jurídica - CCJ/FURB. ISSN
1982-4858, v. 12, nº 24, p. 30 - 46, jul./dez. 2008.

620
DIREITO À PROPRIEDADE

Assim, cabe interpretar o direito de propriedade previsto no artigo 17 da DUDH em conjunto ao artigo
29, n. 2, no sentido de que há uma limitação legal e com a finalidade do bem-estar social92.
No âmbito regional, a CEDH determina, no artigo 1º do Protocolo n.º 1, a função social da propriedade
ao estabelecer que “ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública
e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional”. A CADH, no artigo
21, reconhece expressamente a função social da propriedade ao determinar que “a lei pode subordinar
esse uso e gozo ao interesse social”. A CAfrDH, no artigo 14°, reconhece a função social da propriedade
ao dispor que o direito de propriedade é garantido, mas pode ser afetado “por necessidade pública ou
no interesse geral da coletividade”.

2.3.2. O direito à moradia digna

O direito de propriedade também deve ser observado em conformidade com o que dizem a DUDH, o
PIDCP e o PIDESC acerca do direito de moradia, nos seguintes termos:

Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)

Artigo 25, parágrafo 1º: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e
a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os
serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle93.

Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP)

Artigo 17, parágrafo 1º: Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida
privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à
sua honra e reputação94.

Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC)

Artigo 11, parágrafo 1º: Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda
pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação,
vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de
vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito,
reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no
livre consentimento95.


92
QUADROS, Fausto de. A proteção da propriedade privada pelo direito internacional público, p. 179.
93
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: http://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-
-humanos Acesso em: 05 set. 2021.


94
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foi ratificado pelo Brasil em 24 de abril de 1992 e inserido no ordenamento jurídico
brasileiro pelo Decreto n.º 592/1992. BRASIL. Decreto n.º 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 25
set. 2021.
95
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi ratificado pelo Brasil em 24 de abril de 1992 e inserido no or-
denamento jurídico brasileiro pelo Decreto n.º 591/1992. BRASIL. Decreto n.º 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decre-
to/1990-1994/d0591.htm. Acesso em: 25 set. 2021.

621
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Para que o caráter universal dos direitos humanos se concretize nos Estados, é preciso que os tratados
sejam interpretados adequadamente. Para isso, os órgãos responsáveis por monitorar o cumprimento
dos tratados de direitos humanos das Nações Unidas elaboram comentários ou recomendações gerais.
Assim, o direito à moradia adequada tem sua interpretação sistematizada a partir do Comentário Geral
nº. 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, elaborado no sexto período de
sessões, em 1991, que faz menção à segurança jurídica da posse e prevê expressamente a proteção do
cidadão das remoções forçadas e ameaças:

Comentário Geral n. 4: Parágrafo 1 do Artigo 11 (O direito a uma moradia adequada)

[...]

6. O direito à moradia adequada se aplica a todos. Enquanto a referência a ‘si próprio e sua família’
reflete a crença a respeito dos papéis desempenhados pelo gênero de atividade econômica
comumente aceitos em 1966, quando a Convenção foi adotada, a expressão não pode ser lida hoje
implicando quaisquer limitações sobre a aplicabilidade do direito aos indivíduos ou a domicílios
chefiados por mulheres ou outros grupos. Assim, a concepção de ‘família’ deve ser entendida
em sentido amplo. Além disso, os indivíduos, assim como as famílias, têm o reconhecimento de
seu direito à habitação adequada independentemente de idade, condição econômica, grupo ou
outra pertinência a um grupo ou quaisquer outros fatores como tais. Em particular, o gozo deste
direito não deve ser sujeito a qualquer forma de discriminação, de acordo com o artigo 2, pará-
grafo 2, do Pacto.

7. Na opinião do Comitê, o direito à moradia não deve ser interpretado em sentido estrito ou restri-
tivo que o iguale, por exemplo, ao abrigo fornecido meramente como um telhado sobre cabeça ou
o considere exclusivamente como uma mercadoria. Pelo contrário, deve-se considerá-lo como o
direito de viver com segurança, paz e dignidade em algum lugar. Devendo assim ser, pelo menos
por duas razões. Em primeiro lugar, o direito à moradia está integralmente vinculado a outros
direitos humanos e aos princípios fundamentais que servem de premissa ao Pacto. Assim pois, “a
dignidade inerente à pessoa humana”, da qual os direitos contidos no Pacto derivam, requer que o
termo “moradia” seja interpretado levando em conta uma variedade de outras considerações, das
quais o mais importante é que o direito à moradia deva ser assegurado a todas as pessoas, inde-
pendentemente da sua renda ou acesso a recursos económicos. Em segundo lugar, a referência
ao parágrafo 1 do artigo 11 deve ser entendido não apenas como direito à moradia, mas à moradia
adequada. Conforme a Comissão de Assentamentos Humanos e da Estratégia Mundial para a
Moradia até o Ano 2000 reconheceram: “a moradia adequada significa (...) dispor de um lugar
onde se possa instalar provido de privacidade adequada, espaço adequado, segurança adequada,
iluminação e ventilação adequada, infraestrutura básica adequadas e localização adequada em
relação a trabalho e facilidades básicas tudo a um custo razoável”.

8. Assim, o conceito de adequação é particularmente significativo em relação ao direito à moradia,


uma vez que serve para sublinhar uma série de fatores que devem ser levados em conta quando
da avaliação se determinada forma de moradia pode ser considerada ou não como “moradia
adequada”, segundo as finalidades do Pacto. Ainda quando a adequação for determinada em parte
por fatores sociais, econômicos, culturais, climáticos, ecológicos e outros, o Comitê considera que,
assim mesmo, é possível identificar certos aspectos deste direito que devem ser levados em conta
para esta finalidade, em qualquer contexto particular. Entre esses aspectos figuram os seguintes:

(A) Segurança jurídica da posse. A posse assume uma variedade de formas, como o aluguel
(público e privado), a moradia em cooperativa, o arrendamento, a ocupação pelo próprio proprie-
tário, a moradia de emergência e assentamentos informais, incluindo a ocupação da terra ou da
propriedade. Não obstante o tipo de posse, todas as pessoas devem possuir um grau de segu-
rança de posse que lhes garanta proteção legal contra despejo forçado, assédio e qualquer tipo
de outras ameaças. Os Estados Partes devem, 259 consequentemente, tomar medidas imediatas

622
DIREITO À PROPRIEDADE

para conferir segurança jurídica da posse às pessoas e propriedades que careçam atualmente de
tal proteção, em consulta genuína às pessoas e aos grupos afetados.

(B) Disponibilidade de serviços, materiais, benefícios e infraestrutura. Uma moradia adequada


deve dispor de certos serviços essenciais para a saúde, a segurança, o conforto e nutrição. Todos
os beneficiários do direito à moradia adequada devem ter acesso sustentável aos recursos natu-
rais e comuns, à água potável, à energia para cozinhar, serviço de aquecimento e iluminação, de
saneamento e de limpeza, meios de armazenamento de alimentos, eliminação de resíduos, de
drenagem do local e serviços de emergência.

(C) Custo acessível. Os custos financeiros domésticos ou pessoais associados à moradia devem
ser de um nível tal que a realização e a satisfação de outras necessidades básicas não sejam amea-
çadas nem comprometidas. Devem ser tomadas medidas pelos Estados partes para garantir que
uma percentagem dos gastos relacionados à moradia seja, como regra, proporcional aos níveis
de renda. Os Estados partes devem criar subsídios de moradia para aqueles incapazes de obtê-la,
bem como formas e níveis diferentes de financiamento habitacional, que correspondam adequa-
damente às necessidades da moradia. De acordo com o princípio da possibilidade de custear a
moradia, os inquilinos devem ser protegidos por medidas adequadas contra níveis ou aumentos
desproporcionais do aluguel. Nas sociedades em que a matéria prima constitui a principal fonte
de materiais de construção para habitação, medidas devem ser tomadas pelos Estados partes para
assegurar a disponibilidade de tais materiais.

(D) Habitabilidade. A moradia adequada deve ser habitável, oferecendo aos seus habitantes o
espaço adequado e protegendo-os do frio, da umidade, do calor, da chuva, do vento ou de outras
ameaças à saúde, dos riscos estruturais e dos vetores de doenças. A segurança física dos ocupantes
deve ser garantida também. O Comitê encoraja os Estados Partes a aplicar de forma abrangente
os Princípios de Higiene da Moradia preparados pela OMS, que consideram a moradia o fator
ambiental que mais frequentemente associa-se às condições favoráveis à transmissão de doenças
em análises epidemiológicas, significando que, as condições inadequadas e deficientes de moradia
e de vida são invariavelmente associadas às taxas mais elevadas de mortalidade e morbidade.

(E) Acessibilidade. A moradia adequada deve ser acessível aos titulares do direito. Os grupos
desfavorecidos devem ter acesso pleno e sustentável aos recursos adequados para conseguir
uma moradia. Assim, a esses grupos desfavorecidos como os idosos, as crianças, os deficientes
físicos, os doentes terminais, indivíduos HIV positivos, as pessoas com problemas persistentes
médicos, os doentes mentais, as vítimas de desastres naturais, os grupos que vivem em área de
risco e outros grupos deve ser assegurado um certo grau de prioridade na esfera da moradia.
Tanto a legislação quanto às políticas públicas em matéria de moradia devem levar integralmente
em conta as necessidades especiais destes grupos. Em muitos Estados partes, o maior acesso à
terra por segmentos desprovidos de terra ou empobrecidos da sociedade deve constituir objetivo
central da política. Os Estados devem assumir obrigações governamentais apreciáveis destinadas
a assegurar o direito de todos a um lugar seguro para viver com paz e dignidade, incluindo o acesso
à terra como um direito.

(F) Localização. A moradia adequada deve estar em um local que permita o acesso às opções de
emprego, ao transporte, aos serviços de saúde, às escolas, às creches e a outros equipamentos
sociais. Isto porque é praticamente certo que, tanto nas grandes cidades quanto nas áreas rurais,
os custos temporais e financeiros de ir e vir do local de trabalho sobrecarregam de forma exces-
siva os orçamentos das famílias pobres. Da mesma forma, a moradia não deve ser construída em
lugares poluídos, nem na proximidade imediata às fontes de poluição que ameaçam o direito à
saúde dos habitantes.

(G) Adequação cultural. A expressão da identidade e diversidade cultural da moradia deve ser
apropriadamente assegurada na maneira como são construídas as moradias, os materiais de cons-
trução utilizados e as políticas em que se apoiam. Atividades voltadas para o desenvolvimento

623
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ou modernização na esfera da moradia deve garantir que as suas dimensões culturais não sejam
sacrificadas, e que, além disso, assegurem modernas instalações tecnológicas, entre outros. [...]96

A seguir, o comentário geral dispõe que o direito à moradia adequada não pode ser considerado
isoladamente dos demais direitos humanos contidos no PIDCP, no PIDESC e nos outros instrumentos
internacionais aplicáveis.97 Da mesma forma, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
observa que os recursos internos dos Estados devem prever, pelo menos: (a) recursos legais destinados
a prevenir despejos ou demolições; (b) procedimentos legais de indenização referente a um despejo
ilegal; (c) queixas contra ações ilegais realizadas ou apoiadas por proprietários, públicos ou privados,
em relação aos níveis de aluguel, manutenção da moradia, e discriminação racial ou outras formas
de discriminação; (d) alegações de qualquer forma de discriminação na atribuição e disponibilidade
de acesso à moradia; (e) queixas contra os proprietários sobre as condições de habitação insalubres
ou inadequadas.98
O Comitê considera, ainda, que despejos forçados são incompatíveis com as exigências do PIDESC e
só se justificariam em circunstâncias muito excepcionais e de acordo com os princípios aplicáveis do
direito internacional.99 Quanto ao dever de cooperação internacional, previsto no parágrafo 1 do artigo 11
do PIDESC, o Comitê considera que os Estados Partes do PIDESC devem “garantir que uma proporção
substancial de financiamento para consagrar e criar condições que levem a um maior número de
pessoas a acessar a moradia adequada”, enquanto instituições financeiras internacionais destinadas a
promover medidas de ajustamento estrutural devem garantir que tais medidas não comprometam o
exercício do direito à moradia adequada.100
O direito à moradia também é previsto nos seguintes tratados:

Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial

Artigo 5: De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, os Estados-


-partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas suas formas e a
garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem

96
ONU. Committe on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR). General Comment No. 04: The Right To Adequate Housing (Art. 11.1).
Geneva, 1991. Disponível em: https://www.refworld.org/pdfid/47a7079a1.pdf. Acesso em: 20 set. 2021.


97
Nesse sentido, o comentário se refere ao conceito de dignidade da pessoa humana e ao princípio da não-discriminação, considerando,
ainda, que o pleno gozo de outros direitos, como o direito à liberdade de expressão e de associação, o direito a escolher residência e o
direito de participar na tomada de decisões públicas, juntamente ao direito a não sofrer interferência arbitrária ou ilegal na vida privada,
família, moradia ou correspondência, são fundamentais à definição e à concretização do direito constitui dimensão muito importante na
definição do direito à moradia adequada.
98
ONU. Committe on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR). General Comment No. 04: The Right To Adequate Housing (Art. 11.1).
Geneva, 1991. Disponível em: https://www.refworld.org/pdfid/47a7079a1.pdf. Acesso em: 20 set. 2021.
99
O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais dedicou o Comentário Geral n.º 7 ao tema das remoções forçadas, que são defini-
das como a “retirada definitiva ou temporária de indivíduos, famílias e/ou comunidades, contra a sua vontade, das casas e/ou da terra que
ocupam, sem que estejam disponíveis ou acessíveis formas adequadas de proteção de seus direitos”, o que significa dizer que, não obs-
tante as diversas causas que possam ensejar as remoções, quando estas ocorrem de força compulsória, trazem consigo efeitos profundos
e duradouros nas vidas das pessoas envolvidas, haja vista a brutalidade e a violência que acompanham esses processos. As remoções e
os despejos forçados, quando acompanhados de violência e realizados sem o devido processo legal, causam a violação de outros direitos
humanos, como o direito à saúde, alimentação, água, trabalho e renda, educação, não submissão a tratamento cruel, desumano ou de-
gradante e à liberdade de movimento. Nesse sentido: UNITED NATIONS. Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR).
General Comment No. 7: The right to adequate housing (Art.11.1): forced evictions. Geneva, 1997. Disponível em: https://www.refworld.org/
docid/47a70799d.html. Acesso em: 20 set. 2021.
100
ONU. Committe on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR). General Comment No. 04: The Right To Adequate Housing (Art. 11.1).
Geneva, 1991. Disponível em: https://www.refworld.org/pdfid/47a7079a1.pdf. Acesso em: 20 set. 2021.

624
DIREITO À PROPRIEDADE

nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos: [...] e) direitos econômicos,
sociais e culturais, principalmente: [...] iii) direito à habitação101.

Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher

Artigo 14, 2: Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discrimi-
nação contra a mulher nas zonas rurais a fim de assegurar, em condições de igualdades entre
homens e mulheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se beneficiem, e em
particular assegurar-lhes-ão o direito a: [...] h) gozar de condições de vida adequadas, particular-
mente nas esferas da habitação, dos serviços sanitários, da eletricidade e do abastecimento de
água, do transporte e das comunicações102.

Convenção sobre os Direitos da Criança

Artigo 16, 1: Nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida parti-
cular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e
a sua reputação.

Artigo 27, 3: Os Estados-partes, de acordo com as condições nacionais e dentro de suas possi-
bilidades, adotarão medidas apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis
pela criança a tornar efetivo esse direito e, caso necessário, proporcionarão assistência material
e programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação.

Princípios das Nações Unidas para moradia e restituição de posses para refugiados e
pessoas deslocadas

Estes princípios foram desenvolvidos para apoiar todos os atores relevantes, nacionais e interna-
cionais, para tratar de assuntos jurídicos e técnicos relacionados à moradia, terra e propriedade em
situações nas quais remoções levaram a pessoas serem arbitrariamente ou ilegalmente privadas
de suas antigas casas, terras, propriedades ou locais de residência habitual103.

Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados

Artigo 21: No que concerne ao alojamento, os Estados Contratantes darão, na medida em que esta
questão seja regulada por leis ou regulamentos ou seja submetida ao controle das autoridades
públicas, aos refugiados que residam regularmente no seu território, tratamento tão favorável
quanto possível e, em todo caso, tratamento não menos favorável do que aquele que é dado, nas
mesmas circunstâncias, aos estrangeiros em geral104.

Convenção 169 da OIT

ONU. Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. 1966. Disponível em: http://www.
101

planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D65810.html. Acesso em: 25 set. 2021.


102
ONU. Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm. Acesso em: 25 set. 2021.
103
A Convenção sobre os Direitos da Criança foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990 e incorporada ao ordenamento jurídico
brasileiro em 23 de outubro de 1990, por meio do Decreto n.º 99.710/1990. BRASIL. Decreto n.º 99.710, de 21 de novembro de 1990.
Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm.
Acesso em: 25 set. 2021.
104
ONU. Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/
BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 05 set. 2021.

625
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

1. Ressalvado o disposto nos parágrafos, a seguir, do presente artigo, os povos indígenas e tribais não
deverão ser removidos das terras que ocupam. 2. Quando, excepcionalmente, a remoção e o reas-
sentamento desses povos forem considerados necessários, só poderão ser feitos com seu consen-
timento, dado livremente, e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter
esse consentimento, a remoção e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão
de procedimentos adequados estabelecidos por lei nacional, inclusive consultas públicas, quando
for o caso, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de ser efetivamente represen-
tados. 3. Sempre que possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais
assim que deixarem de existir as causas que motivaram sua remoção e reassentamento105.

Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e


Membros de suas Famílias

Artigo 43, 1: Trabalhadores migrantes devem gozar de igualdade de tratamento em relação aos
nacionais do Estado do emprego em relação ao [...] (d) Acesso à moradia, incluindo projetos de
moradia social, e proteção contra exploração em relação a aluguéis106.

Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas

Os indígenas não podem ser removidos à força de suas terras ou territórios. Nenhuma realo-
cação deve ocorrer sem o consentimento livre, prévio e informado dos indígenas afetados, deve
ser precedida de acordo sobre compensação justa e adequada e, quando possível, deve incluir a
opção de retorno107.

A proteção da propriedade sob a perspectiva da moradia adequada é feita no sistema interamericano


a partir da leitura integrada do artigo 21 com o artigo 26 da CADH. Nesse sentido, destaca-se a inter-
pretação proposta pelo Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot no voto dissidente prolatado no Caso
Yarce y otras Vs. Colombia, segundo o qual a Corte IDH reconheceu a responsabilidade do Estado da
Colômbia pelos deslocamentos forçados intraurbanos vividos por Ana Teresa Yarce, Myriam Eugenia
Rúa Figueroa, Luz Dary Ospina Bastidas, Mery del Socorro Naranjo Jiménez e Maria del Socorro
Mosquera Londoño, defensoras de direitos humanos que residiam na Comuna 13, na cidade colombiana
de Medelín, território que vivia em meio a conflitos armados entre grupos armados ilegais e o Estado;
as cinco mulheres foram obrigadas a deixar seus lares para as milícias no ano de 2002, sendo que Mery

105
A Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais foi ratificada pelo Brasil em 25 de
julho de 1992 e inserida no ordenamento jurídico brasileiro pelos Decretos n.º 5.051, de 19 de abril de 2004, e n.º 10.088, de 5 de novembro
de 2019. BRASIL. Decreto n.º 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que
dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela Repúbli-
ca Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em:
25 set. 2021.
106
Diferentemente das convenções da OIT, dentre as quais se inclui a Convenção 97 (Cf. NR. 34), o Brasil não assinou nem ratificou a
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas famílias. Trata-se
de uma norma de soft law. ONU. Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e
Membros de suas Famílias. Adotada pela Resolução 45/108 da Assembleia Geral da ONU em 18 de dezembro de 1990. Disponível em: ht-
tps://www.oas.org/dil/port/1990%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20Internacional%20sobre%20a%20Protec%C3%A7%C3%A3o%20
dos%20Direitos%20de%20Todos%20os%20Trabalhadores%20Migrantes%20e%20suas%20Fam%C3%ADlias,%20a%20resolu%-
C3%A7%C3%A3o%2045-158%20de%2018%20de%20dezembro%20de%201990.pdf. Acesso em: 25 set. 2021.


107
A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas é uma norma de soft law. ACNUR. Declaração das Nações
Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Adotada na 107ª Sessão Plenária da Assembleia Geral em 13 de setembro de 2007. Dis-
ponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Po-
vos_Indigenas.pdf. Acesso em: 25 set. 2021.
ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/
portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 05 set. 2021.

626
DIREITO À PROPRIEDADE

del Socorro Naranjo Jiménez, María del Socorro Mosquera Londoño e Ana Teresa Yarce foram arbitra-
riamente privadas de sua liberdade, em situação que culminou na morte da senhora Ana Teresa Yarce108.
Ao considerar que o direito à moradia adequada apresenta uma particularidade que até 22 de novembro
de 2016, data da setença do Caso Yarce, ainda não havia sido observada em outras decisões sobre o
debate dos direitos econômicos, sociais e culturais no SIDH, o Juiz Mac-Gregor destaca que o direito
à moradia foi aparentemente esquecido pelos próprios instrumentos normativos do SIDH, até mesmo
no Protocolo de San Salvador, que trata dos direitos econômicos, sociais e culturais na CADH109. Este
silêncio normativo e jurisprudencial leva à “legítima possibilidade interpretativa” de derivar o direito à
moradia das normas da Carta da OEA e de conectá-lo ao conteúdo do artigo 21 da CADH, sobretudo
diante das circunstâncias do trabalho de defensoras de direitos humanos e da perda da moradia nos
contextos de deslocamento forçado interno que caracterizam o caso110.
No Caso Yarce y otras Vs. Colombia, o voto dissidente do Juiz Interamericano Mac-Gregor propõe que
a Corte IDH se pronuncie sobre os direitos econômicos, sociais e culturais diante da interdepedência e
indivisibilidade dos direitos humanos, na mesma esteira do que foi decidido no caso Acevedo Buendía
y otros (“Cesantes y Jubilados de la Contorladoría”) Vs. Perú, julgado pela Corte IDH em 2009.111 Em
virtude da interdepedência e indivisibilidade dos direitos humanos, justifica-se a necessidade de se
estabelecer uma relação forte e de igual importância entre os direitos civis e políticos e os direitos
econômicos, sociais, culturais e ambientais, a fim de interpretar conjuntamente todos os direitos, consi-
derar a autonomia dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais em razão da sua essência e
de suas características peculiares, reconhecer que os direitos econômicos, sociais, culturais e ambien-
tais podem ser violados de forma autônoma - a exemplo do que ocorre com os direitos civis e políticos -,
quantificar precisamente as obrigações que devem ser cumpridas pelos Estados em matéria de direitos
econômicos, sociais, culturais e ambientais, permitir uma interpretação evolutiva do corpus juris inte-
ramericano e de maneira sistemática, sobretudo para garantir a aplicação eficaz do artigo 26 da CADH
quanto ao Protocolo de San Salvador112 , e proporcionar um fundamento mais concreto quanto aos refe-
ridos direitos e sua proteção em outros instrumentos e interpretações de organismos internacionais.113
No voto dissidente do Caso Yarce, o Juiz Mac-Gregor propõe a proteção do direito à moradia pela
Corte IDH de maneira indireta, pela conexão, essencialmente, aos direitos à vida, artigo 4 da CADH, e
à propriedade privada, artigo 21, “em cenários como as condições de vida digna das comunidades indí-
genas, o deslocamento forçado, os massacres, a invasão (domiciliar) sem ordem judicial e a destruição

108
CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005,
§§ 1 e 2.
109
CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005,
Voto Dissidente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, § 5.
110
CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005,
Voto Dissidente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, §§ 6 e 7.

CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005,
111

Voto Dissidente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, §§ 11, 12, 13 e 14.
112
Haja vista não ser o artigo 26 uma mera norma programática para os Estados-membros da CADH, “mas uma disposições que impõe à
Corte IDH derivar direitos das normas existentes na Carta da OEA, pelo que, de acordo com o caso concreto, contém direitos de natureza
econômica, social ou cultural e não meros objetivos”. CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares,
mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005, Voto Dissidente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, § 22. Por isso, não pode
o Protocolo de San Salvador ser um obstáculo à justiciabilidade de qualquer direito que possa derivas das normas contidas na Carta da
OEA, nos termos enunciados no artgo 26 da CADH. CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares,
mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005, Voto Dissidente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, § 29.
113
CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005,
Voto Dissidente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, § 15.

627
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

da propriedade”114. A proteção do direito à moradia por conexão a outros direitos, contudo, não preju-
dica o entendimento pleno da interdependência e indivisibilidade de todos os direitos humanos, sejam
civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, sem hierarquia entre eles - dentre os direitos
econômicos, sociais, culturais e ambientais consagrados nos instrumentos normativos internacionais,
o direito à moradia adquire especial relevância por ter passado despercebido, sobretudo no SIDH.115 Em
resumo, o direito à moradia, como extensão do direito à propriedade, deve ser protegido pelo sistema
interamericano em contextos de deslocamento forçado interno. Nesse sentido:

143. En suma, el derecho a la vivienda me resulta de especial preocupación en nuestro sistema de


protección de derechos humanos pues parece haber sido olvidado en el Protocolo de San Salvador
y en cierto sentido en la propia discusión y debate que se ha suscitado en torno a los derechos
sociales; sin embargo, su vinculación no ha sido del todo desapercibida en la jurisprudencia de la
Corte IDH, aunque no ha sido profundizada ni delimitada con mayor rigurosidad, ya que la protec-
ción por la vía de la conexidad con otros derechos no lo permite.116

A observância do direito humano à moradia adequada corrobora a ideia de inderrogabilidade do direito


à propriedade privada, tendo em vista a função social da propriedade, a segurança da posse sobre a
propriedade, a invisibilidade e interdependência dos direitos humanos e aplicação evolutiva dos intstru-
mentos normativos de proteção de direitos humanos. Os esforços feitos no âmbito do sistema global
de proteção dos direitos humanos são no sentido da necessária conexão do direito de propriedade aos
direitos à vida e à dignidade da pessoa humana, de modo a garantir a realização do direito à moradia
adequada e do direito de não ser despejado do seu lugar de moradia. No sistema interamericano, há um
esforço propositivo de construir uma abordagem protetiva mais eficaz, como se verifica no Caso Yarce.
Entretanto, há um longo caminho a seguir na consolidação desse direito, pelo que se observa da ação
da jurisprudência tanto no sistema global quanto no sistema regional de proteção de direitos humanos.

CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005,
114

Voto Dissidente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, § 41.


115
CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005,
Voto Dissidente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, §§ 46 e 47.
116
CORTEIDH. Caso Yarce y otras Vs. Colombia. Sentença de exceções preliminares, mérito, reparações e custas, de 15 de junho de 2005,
Voto Dissidente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, §§ 143.

628
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

DIREITOS HUMANOS COLETIVOS


DOS POVOS INDÍGENAS

Lais Nardon Martins

Dailor Sartori Junior

Gabriela da Cunha Thewes

1. INTRODUÇÃO – QUEM SÃO OS POVOS INDÍGENAS

De acordo com o último censo estatístico populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE),1 do ano de 2010, os povos indígenas no Brasil contabilizam uma população de quase 900 mil
pessoas (896.917), falantes de 274 línguas distintas e integrantes de 305 diferentes etnias, o que repre-
senta aproximadamente 0,5% (meio por cento) da população total brasileira. 2
Com base nos dados do CEPAL, 3 a população indígena da América Latina, incluindo o Brasil, é estimada
em aproximadamente 45 milhões de pessoas (44.791.456), o que corresponde a somente 8,3% das 538
milhões de pessoas (538.153.481) que formam a população total da região. Os dados também demons-
tram que a América Latina Indígena é formada por 827 diferentes Povos Indígenas, 4 cada um com
as suas cosmovisões, crenças, línguas, costumes, práticas culturais e organizações sociais, expressos
demograficamente da seguinte forma:5

Tabela 1 – Demografia dos Povos Indígenas na América Latina:

Percentual da
País População Indígena Povos Indígenas
População Indígena

Argentina 955.032 2,4% 32


Bolívia 6.216.026 62,2% 39


1
CONHEÇA o Brasil: populações indígenas. IBGE, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/
populacao/20506-indigenas.html. Acesso em: 19 mar. 2021.
2
CEPAL. Los pueblos indígenas en América Latina: Avances en el último decenio y retos pendientes para la garantía de sus derechos.
Santiago/Chile: Naciones Unidas, 2014. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/37222/S1420521_es.pdf?se-
quence=1. Acesso em: 14 abr. 2021.
3
Idem.
4
Idem.
5
Os dados do contingente populacional indígena e o percentual de sua população na Bolívia, Colômbia, El Salvador, Guatemala, Honduras,
Nicarágua e Peru são estimados. Os demais são levantados conforme censos demográficos realizados entre os anos de 2010 a 2012.
CEPAL. Los pueblos indígenas en América Latina: Avances en el último decenio y retos pendientes para la garantía de sus derechos.
Santiago/Chile: Naciones Unidas, 2014. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/37222/S1420521_es.pdf?se-
quence=1. Acesso em: 14 abr. 2021.

629
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Brasil 896.917 0,5% 305


Chile 1.805.243 11,0% 9
Colômbia 1.559.852 3,4% 102
Costa Rica 104.143 2,4% 8
El Salvador 14.408 0,2% 3
Equador 1.018.176 7,0% 34
Guatemala 5.881.009 41,0% 24
Honduras 536.541 7,0% 7
México 16.933.283 15,1% 78
Nicarágua 518.104 8,9% 9
Panamá 417.559 12,3% 8
Paraguai 112.848 1,8% 24
Peru 7.021.271 24,0% 85
Uruguai 76.452 2,4% 2
Venezuela 724.592 2,7% 57
TOTAL 44.791.456 8,3% 827

Fonte: CEPAL.
Segundo o Relatório sobre a “Situação dos Povos Indígenas do Mundo” das Nações Unidas,6 estes povos
estão presentes em todos os continentes, contabilizando aproximadamente 370 milhões de pessoas,
o que representa em torno de 5% (cinco por cento) da população mundial. Encontram-se, além da
América Latina, na Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Canadá, Índia, Região Ártica (incluindo a
Rússia e o norte da Europa), Leste e Sudeste da Ásia, países do Pacífico e África. Entretanto, os Povos
Indígenas representam 15% (quinze por cento) das pessoas consideradas pobres do planeta e, dentre as
900 milhões de pessoas em zonas rurais extremamente pobres, constituem cerca de um terço destes7.
O relatório afirma que os indicadores socioeconômicos atuais ainda são um reflexo de injustiças histó-
ricas praticadas contra estes grupos, incluindo colonização, expropriação de suas terras, territórios e
recursos, opressão e discriminação, bem como o impedimento do exercício dos seus próprios modos
de vida. Apesar da negativa do seu direito ao desenvolvimento pelos Estados coloniais e modernos,
muitos avanços vêm sendo conquistados a partir do reconhecimento internacional e nacional de seus
direitos humanos e pela busca de estratégias de desenvolvimento com base em suas próprias defini-
ções e indicadores de pobreza e bem-estar.8
Além de serem sujeitos, enquanto indivíduos ou grupos minoritários, de todos os direitos humanos
reconhecidos nacional e internacionalmente sem qualquer discriminação, os Povos Indígenas são titu-
lares de direitos coletivos diferenciados,9 dentre os quais se destacam os direitos específicos sobre as

6
DESA. State of the World’s Indigenous Peoples. New York: United Nations, 2009. v. I. Disponível em: https:/https://www.un.org/esa/
socdev/unpfii/documents/SOWIP/en/SOWIP_web.pdf. Acesso em: 14 abr. 2021.


7
Idem, p. 21.
8
Ibidem, p. 22.
9
CEPAL. Los pueblos indígenas en América Latina: Avances en el último decenio y retos pendientes para la garantía de sus derechos.
Santiago/Chile: Naciones Unidas, 2014. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/37222/S1420521_es.pdf?se-
quence=1. Acesso em: 14 abr. 2021.

630
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

terras que tradicionalmente ocupam,10 o direito à autodeterminação11 e o direito à consulta12 ou consen-


timento livre, prévio e informado acerca de medidas que possam afetar seus bens e/ou seus modos de
vida.13 Especificamente no Brasil, pode-se afirmar que os Povos Indígenas contam, atualmente, com um
amplo e protetivo marco jurídico nacional e internacional.
Existe uma relação intrínseca entre a garantia dos territórios tradicionais e o gozo efetivo de direitos
humanos, individuais ou coletivos dos povos indígenas, uma vez que os primeiros se constituem como
espaços indispensáveis à preservação e à reprodução das condições identitárias e culturais desses
grupos. No “Relatório sobre os Direitos dos Povos Indígenas e tribais sobre suas terras ancestrais e
recursos naturais”, a CIDH fez uma série de afirmações sobre a relação especial existente entre os
povos indígenas, suas terras e recursos, considerada fundamental tanto para a subsistência material
quanto para a integridade cultural destes grupos. Neste sentido, também entende que a recuperação,
o reconhecimento, a demarcação e o registro das terras são direitos essenciais dessas comunidades.14
Ainda segundo o relatório, a Corte IDH assinalou que a relação dos povos indígenas com a terra não
é uma questão de posse e produção, mas um elemento material e espiritual importante para atuais e
futuras gerações. Também afirmou que a cultura das comunidades indígenas corresponde a um modo
particular de ser, ver e agir no mundo, constituído a partir de sua estreita relação com seus territórios
tradicionais e os recursos ali presentes, e que a garantia do direito à propriedade comunal deve levar em
conta a íntima relação da terra com as tradições e expressões orais, costumes e línguas, artes e rituais,
conhecimentos e usos relacionados com a natureza, filosofia e valores das comunidades indígenas.15
As características que identificam os Povos Indígenas enquanto segmentos distintos da sociedade
nacional, sobretudo a sua relação especial com o território tradicional, demandam o desenvolvimento
de normas específicas no âmbito do direito internacional dos direitos humanos e do direito interno,
visto que desafiam inclusive as bases filosóficas e conceituais mais clássicas acerca destes temas. Assim,
o objetivo deste capítulo é analisar os direitos específicos dos Povos Indígenas, cujo conteúdo difere
dos direitos fundamentais de toda pessoa humana, além de apresentar as discussões teóricas e os
contornos jurisprudenciais mais relevantes.

2. PREVISÃO NORMATIVA

2.1. Instrumentos internacionais

Carta da ONU de 1945

Artigo 1. Os propósitos das Nações unidas são:

10
Art. 231, caput e § 1º, da Constituição Brasileira de 1988 (CF/88); art. 26 da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas
(DNUDPI); art. 13 e 14 da Convenção nº 169 da OIT; e art. XXV. 2, da Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas (DADPI).


11
Art. 3º, da DNUDPI, e art. III e XXI, da DADPI.
12
Art. 6º, da Convenção nº 169 da OIT, e § 3º, do art. 231, da CF/88.
13
Art. 6.2, da Convenção nº 169 da OIT; art. 19 e 32.2, da DNUDPI; e art. XXIII.2, XXVIII,.3 e XXIX.4 da DADPI.
14
CIDH. Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales: normas y jurisprudencia del
sistema interamericano de derechos humanos. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 56/09. 2010 (tradução nossa). p. 22. Disponível em: http://www.oas.
org/es/cidh/indigenas/docs/pdf/Tierras-Ancestrales.ESP.pdf. Acesso em: 23 mar. 2021.
15
Idem.

631
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade


de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento
da paz universal16;

Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966

ARTIGO 1º
1. Todos os povos têm direito a autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu
estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
2. Para a consecução de seus objetivos, todos os povos podem dispor livremente de suas riquezas e de
seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da cooperação econômica interna-
cional, baseada no princípio do proveito mútuo, e do Direito Internacional. Em caso algum, poderá um
povo ser privado de seus próprios meios de subsistência.
3. Os Estados Partes do Presente Pacto, inclusive aqueles que tenham a responsabilidade de administrar
territórios não-autônomos e territórios sob tutela, deverão promover o exercício do direito à autode-
terminação e respeitar esse direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas.
ARTIGO 2º
1. Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio
como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico,
até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os
meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em parti-
cular, a adoção de medidas legislativas.
2. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados e
exercerão em discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.
3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a
situação econômica nacional, poderão determinar em que garantirão os direitos econômicos reconhe-
cidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais17.

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 196618

ARTIGO 1

16
BRASIL. Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Es-
tatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização
Internacional das Nações Unidas. Rio de Janeiro, RJ: Presidência da República, 1945. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/1930-1949/d19841.htm. Acesso em: 17 abr. 2021.

BRASIL. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
17

Promulgação. Brasília, DF: Presidência da República, 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.


htm. Acesso em: 18 abr. 2021.
18
O Pacto Internacional dos Diretos Civis e Políticos, de 1966, configurou uma moldura conceitual a partir da qual se tornou possível discutir
a condição dos indígenas como povos e tornou possível alguma reivindicação no plano internacional. Bem como, em razão do Pacto Inter-
nacional dos Direitos Civis e Políticos, “em 1977 realizou-se a primeira Conferência Internacional de Organizações Não-Governamentais
(ONGs) nas Nações Unidas sobre a discriminação dos Povos Indígenas, na qual, pela primeira vez, os grupos indígenas conseguiram ser
ouvidos na reivindicação de serem designados como povos, e não mais como minoria étnica. SANTOS, José Carlos dos. A Declaração
Universal dos Direitos dos Povos Indígenas. In: SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés; BERGOLD, Raul Cezar (Orgs.). Os direitos dos
Povos Indígenas brasileiros: desafios do século XXI. Curitiba: Letra da Lei, 2013. p. 35-58. p. 42-43.

632
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

1. Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu
estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
2. Para a consecução de seus objetivos, todos os povos podem dispor livremente se suas riquezas e de
seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da cooperação econômica interna-
cional, baseada no princípio do proveito mútuo, e do Direito Internacional. Em caso algum, poderá um
povo ser privado de seus meios de subsistência.
3. Os Estados Partes do presente Pacto, inclusive aqueles que tenham a responsabilidade de administrar
territórios não-autônomos e territórios sob tutela, deverão promover o exercício do direito à autode-
terminação e respeitar esse direito, em conformidade com as disposições da Carta das Nações Unidas.
ARTIGO 2
1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que
se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente
Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição.
[...]
ARTIGO 27
Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas
minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo,
sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.19

Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indí-


genas e Tribais de 1989

Artigo 1º
1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os
distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por
seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de popula-
ções que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da
colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica,
conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental
para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.
3. A utilização do termo “povos” na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido
de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no
direito internacional.
Artigo 2º

BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação.
19

Brasília, DF: Presidência da República, 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em:
30 abr. 2021.

633
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos inte-
ressados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir
o respeito pela sua integridade.
2. Essa ação deverá incluir medidas:
a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e opor-
tunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população;
b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respei-
tando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições;
c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que
possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira
compatível com suas aspirações e formas de vida.
Artigo 3º
1. Os Povos Indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades funda-
mentais, sem obstáculos nem discriminação. As disposições desta Convenção serão aplicadas sem
discriminação aos homens e mulheres desses povos.
2. Não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole os direitos humanos e as
liberdades fundamentais dos povos interessados, inclusive os direitos contidos na presente Convenção.
Artigo 4º
1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as
instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados.
2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos expressos livremente pelos
povos interessados.
3. O gozo sem discriminação dos direitos gerais da cidadania não deverá sofrer nenhuma deterioração
como consequência dessas medidas especiais.
Artigo 5º
Ao se aplicar as disposições da presente Convenção:
a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais
próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos problemas
que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente;
b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições desses povos;
c) deverão ser adotadas, com a participação e cooperação dos povos interessados, medidas
voltadas a aliviar as dificuldades que esses povos experimentam ao enfrentarem novas condições de
vida e de trabalho.
Artigo 6º
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de
suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis de afetá-los diretamente;

634
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo
menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões
em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas
e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos
casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira
apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento
acerca das medidas propostas.
Artigo 7º
1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito
ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e
bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar,
na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses
povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvi-
mento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.
2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos inte-
ressados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento
econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas
regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria.
3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possível, sejam efetuados estudos junto aos
povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio
ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resul-
tados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das
atividades mencionadas.
4. Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e
preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam.
Artigo 14
1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras
que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas
para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente
ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais
e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e
dos agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os
povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de
propriedade e posse.
3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solu-
cionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.
Artigo 15
1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser espe-
cialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização,
administração e conservação dos recursos mencionados.

635
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter
direitos sobre outros recursos, existentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter proce-
dimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses
povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa
de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão
participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indeni-
zação equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.
Artigo 17
1. Deverão ser respeitadas as modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra entre os membros
dos povos interessados estabelecidas por esses povos.
2. Os povos interessados deverão ser consultados sempre que for considerada sua capacidade para
alienarem suas terras ou transmitirem de outra forma os seus direitos sobre essas terras para fora
de sua comunidade.
3. Dever-se-á impedir que pessoas alheias a esses povos possam se aproveitar dos costumes dos
mesmos ou do desconhecimento das leis por parte dos seus membros para se arrogarem a proprie-
dade, a posse ou o uso das terras a eles pertencentes.
Artigo 18
A lei deverá prever sanções apropriadas contra toda intrusão não autorizada nas terras dos povos inte-
ressados ou contra todo uso não autorizado das mesmas por pessoas alheias a eles, e os governos
deverão adotar medidas para impedirem tais infrações.
Artigo 20
1. Os governos deverão adotar, no âmbito da legislação nacional e em cooperação com os povos inte-
ressados, medidas especiais para garantir aos trabalhadores pertencentes a esses povos uma proteção
eficaz em matéria de contratação e condições de emprego, na medida em que não estejam protegidas
eficazmente pela legislação aplicável aos trabalhadores em geral.
2. Os governos deverão fazer o que estiver ao seu alcance para evitar qualquer discriminação entre os
trabalhadores pertencentes aos povos interessados e os demais trabalhadores, especialmente quanto a:
a) acesso ao emprego, inclusive aos empregos qualificados e às medidas de promoção e ascensão;
b) remuneração igual por trabalho de igual valor;
c) assistência médica e social, segurança e higiene no trabalho, todos os benefícios da seguridade social
e demais benefícios derivados do emprego, bem como a habitação;
d) direito de associação, direito a se dedicar livremente a todas as atividades sindicais para fins lícitos, e
direito a celebrar convênios coletivos com empregadores ou com organizações patronais.
3. As medidas adotadas deverão garantir, particularmente, que:
a) os trabalhadores pertencentes aos povos interessados, inclusive os trabalhadores sazonais, even-
tuais e migrantes empregados na agricultura ou em outras atividades, bem como os empregados por
empreiteiros de mão de obra, gozem da proteção conferida pela legislação e a prática nacionais a
outros trabalhadores dessas categorias nos mesmos setores, e sejam plenamente informados dos seus
direitos de acordo com a legislação trabalhista e dos recursos de que dispõem;

636
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

b) os trabalhadores pertencentes a esses povos não estejam submetidos a condições de trabalho peri-
gosas para sua saúde, em particular como consequência de sua exposição a pesticidas ou a outras
substâncias tóxicas;
c) os trabalhadores pertencentes a esses povos não sejam submetidos a sistemas de contratação coer-
citivos, incluindo-se todas as formas de servidão por dívidas;
d) os trabalhadores pertencentes a esses povos gozem da igualdade de oportunidade e de tratamento
para homens e mulheres no emprego e de proteção contra o acossamento sexual.
4. Dever-se-á dar especial atenção à criação de serviços adequados de inspeção do trabalho nas regiões
donde trabalhadores pertencentes aos povos interessados exerçam atividades assalariadas, a fim de
garantir o cumprimento das disposições desta parte da presente Convenção.
Artigo 22
1. Deverão ser adotadas medidas para promover a participação voluntária de membros dos povos inte-
ressados em programas de formação profissional de aplicação geral.
2. Quando os programas de formação profissional de aplicação geral existentes não atendam às neces-
sidades especiais dos povos interessados, os governos deverão assegurar, com a participação desses
povos, que sejam colocados à disposição dos mesmos programas e meios especiais de formação.
3. Esses programas especiais de formação deverão estar baseados no entorno econômico, nas condi-
ções sociais e culturais e nas necessidades concretas dos povos interessados. Todo levantamento neste
particular deverá ser realizado em cooperação com esses povos, os quais deverão ser consultados sobre
a organização e o funcionamento de tais programas. Quando for possível, esses povos deverão assumir
progressivamente a responsabilidade pela organização e o funcionamento de tais programas especiais
de formação, se assim decidirem.
Artigo 24
Os regimes de seguridade social deverão ser estendidos progressivamente aos povos interessados e
aplicados aos mesmos sem discriminação alguma.
Artigo 28
1. Sempre que for viável, dever-se-á ensinar às crianças dos povos interessados a ler e escrever na sua
própria língua indígena ou na língua mais comumente falada no grupo a que pertençam. Quando isso
não for viável, as autoridades competentes deverão efetuar consultas com esses povos com vistas a se
adotar medidas que permitam atingir esse objetivo.
2. Deverão ser adotadas medidas adequadas para assegurar que esses povos tenham a oportunidade de
chegarem a dominar a língua nacional ou uma das línguas oficiais do país.
3. Deverão ser adotadas disposições para se preservar as línguas indígenas dos povos interessados e
promover o desenvolvimento e prática das mesmas. 20

Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989

Artigo 30

BRASIL. Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem
20

sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Fe-
derativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/
Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em: 23 mar. 2021.

637
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Nos Estados Partes onde existam minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, ou pessoas de origem
indígena, não será negado a uma criança que pertença a tais minorias ou que seja indígena o direito de,
em comunidade com os demais membros de seu grupo, ter sua própria cultura, professar e praticar sua
própria religião ou utilizar seu próprio idioma21.

Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas,


Religiosas e Linguísticas de 199222

Artigo 1
1. Os Estados protegerão a existência e a identidade nacional ou étnica, cultural, religiosa e linguística das
minorias em seus respectivos territórios e promoverão as condições para a promoção dessa identidade.
2. Os Estados adotarão medidas legislativas e outras medidas apropriadas para atingir esses fins.
Artigo 2
1. Pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas (doravante designadas
como pessoas pertencentes a minorias) têm o direito de desfrutar da sua própria cultura, de professar
e praticar a sua própria religião e de usar a sua própria língua, em privado e em público, de forma livre e
sem interferência ou qualquer forma de discriminação.
2. As pessoas pertencentes a minorias têm direito a uma participação efetiva na vida cultural, religiosa,
social, econômica e pública.
3. As pessoas pertencentes a minorias têm o direito de participar efetivamente nas decisões a nível
nacional e, se for caso disso, regional, relativas à minoria a que pertencem ou às regiões em que vivam,
de forma não incompatível com a legislação nacional.
4. As pessoas pertencentes a minorias têm o direito de constituir e manter associações próprias.
5. As pessoas pertencentes a minorias têm o direito de estabelecer e manter, sem discriminação,
contatos livres e pacíficos com outros membros de seu grupo e com pessoas pertencentes a outras
minorias, bem como contatos transfronteiriços com cidadãos de outros Estados a quem estão relacio-
nados por laços nacionais ou étnicos, religiosos ou linguísticos.
Artigo 3
1. As pessoas pertencentes a minorias podem exercer os seus direitos, incluindo os enunciados na
presente Declaração, tanto individualmente como em comunidade com outros membros do seu
grupo, sem qualquer discriminação.
2. Nenhuma desvantagem resultará para qualquer pessoa pertencente a uma minoria como conse-
quência do exercício ou não exercício dos direitos enunciados na presente Declaração.

BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Brasília, DF: Presidência
21

da República, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em: 17 abr. 2021.


22
A Declaração Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas de 1992, em que pese
não trazer em seu texto especificamente a menção aos Povos Indígenas, não há como negar, de modo generalista, o entendimento de
que os Povos Indígenas são minorias étnicas, religiosas ou linguísticas em seus Estados ou num contexto mundializado. Para mais infor-
mações consultar: O’DONNELL, Daniel. Derecho Internacional de los Derechos Humanos: normativa, jurisprudencia y doctrina de los
Sistemas Universal e Interamericano. 2ª ed. Oficina en México del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos.
México: Tribunal Superior de Justicia del Distrito Federal, 2012.

638
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

Artigo 4
1. Os Estados tomarão as medidas necessárias para assegurar que as pessoas pertencentes a minorias
possam exercer plena e efetivamente todos os seus direitos humanos e liberdades fundamentais, sem
qualquer discriminação e em plena igualdade perante a lei.
2. Os Estados adotarão medidas para criar condições favoráveis para
​​ permitir que pessoas perten-
centes a minorias expressem suas características e desenvolvam sua cultura, língua, religião, tradições
e costumes, exceto quando práticas específicas violem a legislação nacional e sejam contrárias às
normas internacionais.
3. Os Estados devem tomar as medidas apropriadas para que, sempre que possível, as pessoas perten-
centes a minorias tenham oportunidades adequadas de aprender sua língua materna ou de receber
instrução em sua língua materna.
4. Os Estados devem, quando apropriado, tomar medidas no campo da educação, a fim de incentivar o
conhecimento da história, tradições, língua e cultura das minorias existentes em seu território. Pessoas
pertencentes a minorias devem ter oportunidades adequadas para obter conhecimento da socie-
dade como um todo.
5. Os Estados devem considerar medidas apropriadas para que as pessoas pertencentes a mino-
rias possam participar plenamente do progresso e do desenvolvimento econômico de seu país.
(tradução nossa)

Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007

Artigo 1
Os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos os direitos humanos
e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos e o direito internacional dos direitos humanos.
Artigo 2
Os povos e pessoas indígenas são livres e iguais a todos os demais povos e indivíduos e têm o direito
de não serem submetidos a nenhuma forma de discriminação no exercício de seus direitos, que esteja
fundada, em particular, em sua origem ou identidade indígena.
Artigo 3
Os Povos Indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente
sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.

639
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Artigo 4
Os Povos Indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao
autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos
meios para financiar suas funções autônomas.
Artigo 5
Os Povos Indígenas têm o direito de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas,
econômicas, sociais e culturais, mantendo ao mesmo tempo seu direito de participar plenamente, caso
o desejem, da vida política, econômica, social e cultural do Estado.
Artigo 7
1. Os indígenas têm direito à vida, à integridade física e mental, à liberdade e à segurança pessoal.
2. Os Povos Indígenas têm o direito coletivo de viver em liberdade, paz e segurança, como povos
distintos, e não serão submetidos a qualquer ato de genocídio ou a qualquer outro ato de violência,
incluída a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.
Artigo 14
1. Os Povos Indígenas têm o direito de estabelecer e controlar seus sistemas e instituições educativos,
que ofereçam educação em seus próprios idiomas, em consonância com seus métodos culturais de
ensino e de aprendizagem.
2. Os indígenas, em particular as crianças, têm direito a todos os níveis e formas de educação do Estado,
sem discriminação.
3. Os Estados adotarão medidas eficazes, junto com os Povos Indígenas, para que os indígenas, em
particular as crianças, inclusive as que vivem fora de suas comunidades, tenham acesso, quando
possível, à educação em sua própria cultura e em seu próprio idioma.
Artigo 17
1. Os indivíduos e Povos Indígenas têm o direito de desfrutar plenamente de todos os direitos estabele-
cidos no direito trabalhista internacional e nacional aplicável.
2. Os Estados, em consulta e cooperação com os Povos Indígenas, adotarão medidas específicas para
proteger as crianças indígenas contra a exploração econômica e contra todo trabalho que possa ser
perigoso ou interferir na educação da criança, ou que possa ser prejudicial à saúde ou ao desenvolvi-
mento físico, mental, espiritual, moral ou social da criança, tendo em conta sua especial vulnerabilidade
e a importância da educação para o pleno exercício dos seus direitos.
3. As pessoas indígenas têm o direito de não serem submetidas a condições discriminatórias de trabalho,
especialmente em matéria de emprego ou de remuneração.
Artigo 20
1. Os Povos Indígenas têm o direito de manter e desenvolver seus sistemas ou instituições políticas,
econômicas e sociais, de que lhes seja assegurado o desfrute de seus próprios meios de subsistência
e desenvolvimento e de dedicar-se livremente a todas as suas atividades econômicas, tradicionais
e de outro tipo.
2. Os Povos Indígenas privados de seus meios de subsistência e desenvolvimento têm direito a uma
reparação justa e eqüitativa.

640
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

Artigo 24
1. Os Povos Indígenas têm direito a seus medicamentos tradicionais e a manter suas práticas de saúde,
incluindo a conservação de suas plantas, animais e minerais de interesse vital do ponto de vista médico.
As pessoas indígenas têm também direito ao acesso, sem qualquer discriminação, a todos os serviços
sociais e de saúde.
2. Os indígenas têm o direito de usufruir, por igual, do mais alto nível possível de saúde física e mental.
Os Estados tomarão as medidas que forem necessárias para alcançar progressivamente a plena reali-
zação deste direito.
Artigo 38
Os Estados, em consulta e cooperação com os Povos Indígenas, adotarão as medidas apropriadas,
incluídas medidas legislativas, para alcançar os fins da presente Declaração23.

Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2016

Artigo I
1. A Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas aplica-se aos Povos Indí-
genas das Américas.
2. A autoidentificação como povo indígena será um critério fundamental para determinar a quem se
aplica a presente Declaração. Os Estados respeitarão o direito a essa autoidentificação como indígena,
de forma individual ou coletiva, conforme as práticas e instituições próprias de cada povo indígena.
Artigo II
Os Estados reconhecem e respeitam o caráter pluricultural e multilíngue dos Povos Indígenas que
fazem parte integrante de suas sociedades.
Artigo III
Os Povos Indígenas têm direito à livre determinação. Em virtude desse direito, definem livremente sua
condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
Artigo V
Plena vigência dos direitos humanos
Os povos e as pessoas indígenas têm direito ao gozo pleno de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais reconhecidos na Carta das Nações Unidas, na Carta da Organização dos Estados Ameri-
canos e no Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Artigo VI
Direitos coletivos
Os Povos Indígenas têm os direitos coletivos indispensáveis para sua existência, bem-estar e desenvol-
vimento integral como povos. Nesse sentido, os Estados reconhecem e respeitam o direito dos Povos
Indígenas à ação coletiva; a seus sistemas ou instituições jurídicos, sociais, políticos e econômicos; às

ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (107ª
23

sessão) em 13 de setembro de 2007. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Na-


coes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.

641
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

próprias culturas; a professar e praticar suas crenças espirituais; a usar suas próprias línguas e idiomas;
e a suas terras, territórios e recursos. Os Estados promoverão, com a participação plena e efetiva dos
Povos Indígenas, a coexistência harmônica dos direitos e sistemas dos grupos populacionais e culturas.
Artigo XIX
Direito à proteção do meio ambiente sadio
1. Os Povos Indígenas têm direito a viver em harmonia com a natureza e a um meio ambiente sadio,
seguro e sustentável, condições essenciais para o pleno gozo do direito à vida, a sua espiritualidade e
cosmovisão e ao bem-estar coletivo.
2. Os Povos Indígenas têm direito a conservar, restaurar e proteger o meio ambiente e ao manejo
sustentável de suas terras, territórios e recursos.
3. Os Povos Indígenas têm direito a proteção contra a introdução, abandono, dispersão, trânsito, uso
indiscriminado ou depósito de qualquer material perigoso que possa afetar negativamente as comuni-
dades, terras, territórios e recursos indígenas.
4. Os Povos Indígenas têm direito à conservação e proteção do meio ambiente e da capacidade produ-
tiva de suas terras ou territórios e recursos. Os Estados deverão estabelecer e executar programas de
assistência aos Povos Indígenas para assegurar essa conservação e proteção, sem discriminação.
Artigo XXI
Direito à autonomia ou à autogovernança
1. Os Povos Indígenas, no exercício de seu direito à livre determinação, têm direito à autonomia ou ao
autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, bem como a dispor de
meios para financiar suas funções autônomas.
2. Os Povos Indígenas têm direito a manter e desenvolver suas próprias instituições indígenas de
decisão. Têm também direito de participar da tomada de decisões nas questões que afetam seus
direitos. Poderão fazê-lo diretamente ou por meio de seus representantes, de acordo com suas próprias
normas, procedimentos e tradições. Têm ainda direito à igualdade de oportunidades de participar plena
e efetivamente, como povos, de todas as instituições e foros nacionais, e a eles ter acesso, inclusive os
órgãos deliberativos.
Artigo XXXIII
Os povos e pessoas indígenas têm direito a recursos efetivos e adequados, inclusive os recursos judi-
ciais expeditos, para a reparação de toda violação de seus direitos coletivos e individuais. Os Estados,
com a participação plena e efetiva dos Povos Indígenas, disporão os mecanismos necessários para o
exercício desse direito24.

2.2. Normativa interna brasileira

2.2.1. Constituição Federal

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

OEA. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovada pela Assembleia Geral (3ª sessão) realizada em 15 de
24

junho de 2016. Disponível em: https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.

642
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
III - autodeterminação dos povos;
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-
rança e à propriedade, nos termos seguintes:
Art. 20. São bens da União:
XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
XIV - populações indígenas;
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
XVI - autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa
e lavra de riquezas minerais;
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
XI - a disputa sobre direitos indígenas.
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica
constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem
à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o
«caput» deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União,
no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua
sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas
atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com
a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação
básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades
indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

643
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos dife-
rentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e
os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente,
as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-
-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra
das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso
Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da
lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, «ad referendum» do Congresso
Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da
soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno
imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação,
o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo,
dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que
dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra
a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em
defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

644
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS


Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promul-
gação da Constituição. 25
A Constituição Federal de 1988 representa um marco normativo de superação do regime tutelar e da
política de integração dos Povos Indígenas à comunhão nacional, e trouxe avanços em relação aos
direitos desses grupos, sobretudo os territoriais. Apesar disso, existem normas infraconstitucionais rele-
vantes, tanto anteriores, recepcionadas em parte, quanto posteriores à sua promulgação.
A Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, autorizou a instituição da Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
órgão indigenista que substituiu o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910. Os incisos do
art. 1º apresentam as suas atribuições e continuam vigentes naquilo que não conflitam com o novo
paradigma constitucional.
A Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, dispõe sobre o Estatuto do Índio, norma que veio para
regular “[...] a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito
de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”26. O
objetivo integracionista, a classificação do art. 4º entre índios “isolados”, “em vias de integração” e “inte-
grados”, além do regime tutelar do art. 7º, são temas que não foram recepcionados pela Constituição
Federal de 1988. As demais normas sobre direitos civis e políticos, registro civil, condições de trabalho,
direitos territoriais, educação, cultura e saúde, aplicação da norma penal e crimes contra os indígenas
possuem relevância e aplicação atual, desde que interpretados conforme a Constituição.
O “Estatuto das Sociedades Indígenas”, Projeto de Lei nº 2.057, apresentado na Câmara dos Deputados
em 1991, foi a tentativa de substituir o “Estatuto do Índio” como lei infraconstitucional que estabelece
os direitos específicos dos povos indígenas, a partir da mudança de perspectiva que marcou a promul-
gação da Constituição Federal de 1988. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) apresentou sua
versão do “Estatuto dos Povos Indígenas” ainda em 1991, cuja redação foi incorporada em substitutivo
ao projeto original no ano de 1994. Desde então, o PL não mais tramitou. As principais questões em
disputa à época eram a continuação ou fim do regime tutelar e a conceituação entre índio, comuni-
dade, aldeia, sociedades ou povos, sendo que o termo “povos” encontrava as maiores resistências.
Em 2009, a Comissão Nacional de Política Indigenista apresentou, através do então Ministro da Justiça,
outra proposta de “Estatuto dos Povos Indígenas”, que não avançou e obteve críticas de lideranças
indígenas pela ausência de consulta aos povos interessados, conforme disposto na Convenção nº 169
da OIT. Outra proposta legislativa foi apresentada em 2016, o Projeto de Lei do Senado nº 169, de 19
de abril de 2016. Em 14 de setembro do mesmo ano, o Conselho Nacional de Política Indigenista do
Ministério da Justiça e Cidadania solicitou a sua suspensão, novamente por ausência de consulta prévia
aos povos indígenas.
Além de trechos no Estatuto do Índio, o procedimento administrativo de demarcação de terras indí-
genas está regulado principalmente no Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996. As etapas, prazos e
divisão de competências entre FUNAI e União estão no art. 2º. Logo no caput deste artigo, o Decreto
determina que serão considerados os aspectos étnico-culturais da territorialidade indígena em detri-
mento de qualquer outro, como opinião pública, interesses econômicos ou discricionariedade do


25
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 30 abr. 2021.
26
BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Brasília, DF: Presidência da República,
1973. Disponível em: https://www.google.com/url?q=http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm&sa=D&source=docs&us-
t=1666891807686396&usg=AOvVaw1RvrqWPbuS1FxkTnZ6RUeh. Acesso em: 27 out. 2022.

645
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Poder Legislativo, pois cabe à equipe técnica coordenada por antropólogo a condução dos trabalhos de
identificação e delimitação de uma terra indígena.
O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, institui a Política Nacional de Desenvolvimento Susten-
tável dos Povos e Comunidades Tradicionais, dentre os quais se enquadram os Povos Indígenas. A
norma apresenta princípios (art. 1º), objetivos (art. 2º e 3º) e instrumentos de implementação (art. 4º),
e cita temas como exercício da cidadania, segurança alimentar, pluralidade socioambiental, econô-
mica e cultural, erradicação de todas as formas de discriminação, preservação dos direitos culturais,
garantia dos territórios e de seus recursos naturais, associativismo, acesso a políticas públicas e direitos
de participação.

3. DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO E À AUTOIDENTIFICAÇÃO

3.1. Limites conceituais do direito à autodeterminação


dos povos indígenas

As demandas concretas dos povos indígenas por direitos têm sido cada vez mais formuladas em termos
de autodeterminação, seja em relação aos territórios tradicionais, ao exercício de direitos fundamentais
culturalmente adequados ou ao funcionamento dos seus sistemas específicos de organização política
e de justiça. 27 Porém, para compreender o conteúdo e os limites conceituais do direito à autodetermi-
nação indígena, é preciso iniciar pelo estudo do direito geral à autodeterminação.
O direito geral à autodeterminação é entendido como um universo de preceitos de direitos humanos
amplamente voltados para os povos, incluindo os povos indígenas, e alicerçado na ideia de que todos
têm o mesmo direito de controlar seus próprios destinos. 28
Primeiramente afirmada como conceito histórico e político no século XIX, a autodeterminação adquiriu
relevância jurídica com sua evolução enquanto princípio basilar do direito internacional no contexto do
pós-Guerra e nos processos de descolonização do século XX. Hoje, encontra-se prevista como direito
na Carta da ONU, de 1945 (artigo 1, item 2), e nos Pactos Internacionais de 1966 (artigo 1º do PIDCP e
artigo 1º do PIDESC), além da própria Constituição brasileira de 1988 (art. 4º, III).
Quanto à sua natureza jurídica, é reconhecida como um princípio do direito internacional consuetu-
dinário, ou seja, uma prática geral aceita como lei que existe de modo independente do direito dos
tratados e, consequentemente, como jus cogens, uma norma imperativa. O conceito de normas
imperativas no direito internacional está previsto no art. 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, de 1969, promulgada no direito brasileiro pelo Decreto nº 7.030, de 2009.
Ao abordar a nulidade de tratados que conflitem com tais normas, o art. 53 da Convenção afirma que
são reconhecidas pela comunidade internacional como normas das quais nenhuma derrogação é
permitida e que só podem ser modificadas por normas de direito internacional geral da mesma natu-
reza. 29 Devido à sua origem consuetudinária e de sua importância na proteção de valores humanos


27
ANAYA, James. Indigenous Peoples in International Law. New York: Oxford University Press, 1996, p. 75.
28
Idem.
29
BRASIL. Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23
de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm. Acesso em: 30 nov. 2021.

646
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

essenciais da comunidade internacional, uma norma jus cogens exprime valores éticos que só podem
se impor com força imperativa se forem absolutos e universais. 30
Uma vez considerado um direito humano, portanto dotado de um ideal de universalidade, e não um
direito dos Estados, deve beneficiar todos os seres humanos em qualquer contexto político. Por outro
lado, o termo “povos” que acompanha os instrumentos internacionais define os beneficiários desse
direito, de modo que compreensões conceituais diversas sobre o termo acabam por restringir a extensão
de aplicação do direito a determinados grupos que assim se identificam, inclusive os povos indígenas. 31
Não há uma definição amplamente aceita de “povos”, mas geralmente os grupos assim considerados
são titulares do direito à autodeterminação. Segundo Schulte-Tenckhoff, em termos puramente forma-
listas, um “povo” possui existência legal se estiver representado na forma de um Estado nacional, e
apenas pode reivindicar direitos se tiver adquirido tal existência legal. Ainda, segundo sua definição, o
conceito deve atender a quatro critérios: população permanente, território definido, governo eficaz e
capacidade para participar de relações internacionais. 32
Já segundo Anaya, há três variantes dominantes do conceito de “povo”, cada uma delas problemática.
Na primeira, a autodeterminação só se aplicaria às populações de territórios que se encontram nas
condições do colonialismo clássico. Esta visão enfoca o regime de descolonização internacional que
resultou na criação de Estados independentes para os territórios coloniais como unidades integrais.
Na segunda, os “povos” com direito à autodeterminação incluem as populações agregadas de Estados
independentes e as dos territórios coloniais clássicos. Apenas toda a população de um estado indepen-
dente ou território colonial com direito a um estado independente é beneficiária da autodeterminação.
Por último, a terceira compreende o termo “povo” como uma geografia política alternativa definida por
esferas percebidas de coesão etnográfica e soberania territorial historicamente exercida. O problema é
que os direitos de autodeterminação afirmados no contexto de descolonização não se vinculavam aos
grupos em virtude de sua composição étnica ou soberania histórica. 33
A concepção ampla e não formalista de Anaya compreende que povos são comunidades transgera-
cionais com atributos significativos de coesão política ou cultural que procuram manter e se desen-
volver. Um povo tem ligações interculturais e outros padrões de interconexão que existem ao lado de
diversas identidades. 34
Logo, concepções de autodeterminação que não levem em conta os múltiplos padrões de associação
e interdependência humana é incompleta e, provavelmente, distorcida. Segundo Anaya, se bem
entendido, o princípio de autodeterminação, proporcional aos valores de liberdade e igualdade que
incorpora, beneficia “povos” no sentido comum do termo, em todo o espectro da complexa teia de
inter-relacionamentos da humanidade, e não apenas os povos definidos por limites soberanos exis-
tentes ou percebidos. 35
De acordo com esta concepção, os povos indígenas também possuem direito à autodeterminação.
Segundo o art. 2 da DNUDPI, tanto os povos quanto os indivíduos indígenas “[...] são livres e iguais

30
RODAS, João Grandino. Ius cogens em direito internacional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, [S. l.], v.
69, p. 125-36, 1974.Disponível em: https://www.google.com/url?q=https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66736&sa=D&source=do-
cs&ust=1666891807687923&usg=AOvVaw2FMWjgSauvA9mfSjGLHdWF. Acesso em: 27 out. 2022.


31
ANAYA, James. Indigenous Peoples in International Law. New York: Oxford University Press, 1996, p. 77.
32
SCHULTE-TENCKHOFF, Isabelle. Treaties, peoplehood, and self-determination: understanding the language of indigenous rights. In: PU-
LITANO, Elvira (ed.). Indigenous rights in the age of the UN Declaration. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
33
ANAYA, James. Indigenous Peoples in International Law. New York: Oxford University Press, 1996.
34
Idem.
35
Ibidem, p. 79.

647
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

a todos os outros povos e indivíduos e têm o direito de ser livres de qualquer tipo de discriminação
no exercício de seus direitos, em particular a baseada em sua origem ou identidade indígena”. 36 Desta
igualdade decorre o direito de existir e de ser diferente, não ser submetido a nenhum ato de genocídio
ou violência (art. 7,2 da DNUDPI) e não ser sujeito à assimilação forçada ou destruição de sua cultura
(art. 8 da DNUDPI), e o direito à autodeterminação (art. 3 da DNUDPI).
O conceito de autodeterminação indígena, portanto, encontra-se previsto no artigo 3 da DNUDPI e
também no artigo III da DADPI. De redação idêntica, afirmam que, em virtude desse direito, os povos
indígenas determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento
econômico, social e cultural. Ainda, mesmo que de modo implícito, o direito também se encontra
previsto no preâmbulo e nos artigos 1.3 e 7.1 da Convenção nº 169 da OIT. 37
No exercício da autodeterminação, os povos indígenas ainda possuem o direito à não discriminação
(art. 2, da DNUDPI; art. XII, da DADPI; art. 3º, inciso IV, da CF/88; e arts. 3.1, e 4.1 3, da Convenção nº 169
da OIT), à integridade cultural (arts. 5, 7.2, 8 e 34, da DNUDPI; arts. X e XI, da DADPI; arts 215, §1º, 216 e
231, caput, da CF/88; e art. 2.2, alínea “b”, da Convenção nº 169 da OIT38), e ao autogoverno, repercu-
tindo em direito à autonomia e a participação política (arts. 4, 18, 20.1, e 23, da DNUDPI; arts. XXI a XXIV,
da DADPI; art. 231, caput, da CF/88; e art. 1, alínea “b”, da Convenção nº 169 da OIT).
Apesar da ampla previsão normativa, o direito à autodeterminação dos povos indígenas possui alcance
conceitual mais restrito do que o direito geral à autodeterminação dos povos inscrito na Carta da ONU
e, posteriormente, nos Pactos Internacionais de 1966. Esta restrição conceitual se deve ao equívoco de
compreender a autodeterminação em termos de soberania e integridade territorial, o que também é
considerado um princípio basilar do direito internacional. Ou seja: sob esta concepção, o exercício da
autodeterminação significaria o direito a um Estado independente. 39
A correlação estabelecida entre autodeterminação e o regime de descolonização é parcialmente
responsável por esta compreensão limitadora. As prescrições de descolonização não incorporam em
si a substância do princípio de autodeterminação, ao contrário: correspondem a medidas para reme-
diar um desvio sui generis do princípio existente na condição anterior do colonialismo em sua forma
clássica. O colonialismo é uma forma de violar o direito à autodeterminação e, para reparar os danos
da empreitada colonial, a descolonização é reivindicada por meio da independência das metrópoles e,
consequentemente, na formação ou no reconhecimento de um Estado independente.40
Esta limitação conceitual foi comumente expressa em termos de dimensões interna e externa do
direito, sendo que a primeira corresponderia a assuntos absolutamente internos à organização de um
povo, como o direito à participação política, e o segundo relacionado a seu status frente a outros povos,

36
ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (107ª
sessão) em 13 de setembro de 2007. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Na-
coes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.


37
O direito também está previsto em Constituições de países latino-americanos: artigos 287 e 330 da Constituição da Colômbia, de 1991,
artigo 57 da Constituição do Equador, de 2008, e amplamente afirmada ao longo do texto da Constituição da Bolívia de 2009, com desta-
que para a sua previsão no artigo 2º e nos artigos 289 a 296, que tratam do capítulo específico da autodeterminação dos Povos Indígenas
originários campesinos da Bolívia. De forma implícita, também está previsto no art. 231 da Constituição brasileira, de 1988.
38
BRASIL. Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem
sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Fe-
derativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/
Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em: 23 mar. 2021.
39
ANAYA, James. Indigenous Peoples in International Law. New York: Oxford University Press, 1996, p. 80.
40
Idem.

648
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

como a vedação de aplicação de direito estrangeiro.41 Com observa Anaya, “[a] dicotomia interna/
externa efetivamente tem como premissa a concepção, rejeitada anteriormente, de um universo limi-
tado de ‘povos’ compreendendo esferas mutuamente exclusivas da comunidade (ou seja, Estados)”42
(tradução nossa).
A Recomendação Geral nº 21 do Comitê para Eliminação da Discriminação Racial, adotada na sua
quadragésima oitava sessão, em 1996, referiu expressamente a dicotomia interna/externa, ao diferen-
ciar o direito à autodeterminação dos povos, conforme previsto na Carta das Nações Unidas e nos
Pactos de 1966, do direito dos grupos e minorias étnicas, linguísticas ou religiosas de desfrutar sua
cultura, de professar e praticar sua religião ou de usar sua língua sem qualquer discriminação baseada
em raça, etnia, tribo, religião.43
De certo modo, a dimensão interna e mais restrita do direito à autodeterminação indígena, focada nos
aspectos culturais, políticos e econômicos, foi adotada pelos tratados internacionais específicos sobre o
tema, os quais vedam expressamente que o seu exercício possa resultar em secessão e independência
territorial dos Estados Nacionais em que tais povos se encontram localizados.
É o caso do Artigo IV da DADPI e do artigo 46 da DNUDPI, de redação semelhante, quando afirmam
que as normas dispostas nos seus textos não podem ser interpretadas no sentido de autorizar ou de
fomentar qualquer ação direcionada a desmembrar ou a reduzir, total ou parcialmente, a integridade
territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes.
A Convenção n. 169 da OIT também apresenta vedação semelhante, mas, por conta das discussões
terminológicas da época sobre o status jurídico dos povos indígenas, atém-se aos efeitos decorrentes
da utilização do termo “povos”. Deste modo, refere que sua utilização “[...] não deverá ser interpretada
no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse
termo no direito internacional.”44 Ou seja, a utilização do termo “povos” na Convenção possui sentido
restrito, étnico-cultural, e não aquele sentido formalista e conectado à soberania estatal.
Nem por isso o direito à autodeterminação dos povos indígenas é ausente de conteúdo material e de
tutelas jurídicas específicas. A restrição normativa e a diferenciação da experiência da descolonização
não devem ser impeditivas de um esforço interpretativo que concilie a plena vigência e aplicação deste
direito, consagrado pelo artigo 1 da Carta da ONU como finalidade desta Organização, com a integri-
dade territorial ou a independência política dos Estados, estabelecido pelo artigo 2.4 da Carta como
princípio das Nações Unidas.
A fim de superar as dimensões interna e externa, demasiado fenomenológicas, Anaya propõe uma
diferenciação da autodeterminação em aspectos substantivos e corretivos. O aspecto substantivo
inclui o aspecto constitutivo (a autodeterminação requer que a ordem institucional governante seja
substancialmente a criação de processos pautados pela vontade do povo, ou dos povos, governados)
e o aspecto permanente ou contínuo (a autodeterminação requer que a ordem institucional gover-


41
ANAYA, James. Indigenous Peoples in International Law. New York: Oxford University Press, 1996, p. 81.
42
“The internal/external dichotomy effectively is premised on the conception, rejected earlier, of a limited universe of ‘peoples’ comprising
mutually exclusive spheres of community (i.e., states)”. ANAYA, James. Indigenous Peoples in International Law. New York: Oxford
University Press, 1996, p. 81.
43
ONU. Human Rights Committee. General Comment 20: Article 2, Paragraph 2 (Non-Discrimination in Economic, Social and Cultural
Rights) UN Doc HRI/GEN/1/Rev.1 at 46 (2009).
44
BRASIL. Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem
sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Fe-
derativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/
Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em: 23 mar. 2021.

649
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

nante, independentemente dos processos que levem à sua criação ou alteração, seja aquela em que as
pessoas possam viver e desenvolver-se livremente em uma base contínua).45
O autogoverno é a dimensão política da autodeterminação contínua. A concepção central sobre o auto-
governo é que o governo deve funcionar de acordo com a vontade do povo governado. O autogoverno
se opõe a instituições que concentram poder desproporcional ou injustamente nas rédeas do governo,
seja a concentração centrada dentro da comunidade relevante – como em casos de regra despótica ou
racialmente discriminatória – ou fora da comunidade – como em casos de dominação estrangeira46.
O aspecto corretivo da autodeterminação é manifesto em prescrições posteriores à violação da autode-
terminação substantiva, o que varia de acordo com o contexto e beneficia apenas os grupos que foram
vítimas de tais violações. No contexto da descolonização, procedimentos que levaram à independência
estatal foram formas de afastar a aplicação forçada do direito externo que impedia o gozo da autode-
terminação substantiva.47 Como observa Anaya, os povos indígenas são grupos sujeitos a prescrições
corretivas de autodeterminação, mas isso não significa que o regime corretivo desenvolvido favoreça a
formação de novos Estados.48
Outra abordagem conceitual que se aproxima aos aspectos constitutivo e permanente de Anaya é a
subdivisão da autodeterminação indígena em um direito político e também em um direito cultural.
Ambas as dimensões asseguram direitos de titularidade coletiva e exigem tanto a abstenção de violação
como a realização de ações positivas e prestações sociais por parte do Estado.49
A dimensão política garante o direito ao autogoverno e à autonomia, o direito à manutenção das insti-
tuições políticas e jurídicas próprias e o direito à terra e aos recursos naturais tradicionalmente utili-
zados, mas em grau menor que a autonomia conferida aos Estados, ou seja, sem soberania territorial
e direito à independência. A dimensão cultural abrange o direito ao uso da língua (até mesmo como
língua oficial), o direito às práticas de caça e pesca, à música, arte e rituais (com incentivos estatais), o
direito de manter um sistema educacional próprio, atenção à saúde diferenciada, entre outros. 50
Quanto aos direitos específicos, o “Manual para defender os direitos dos Povos Indígenas e tradicio-
nais” estabelece os seguintes:

i) autonomia ou autogoverno nos assuntos internos e locais;

ii) disposição de recursos para financiar suas funções autônomas;

iii) reconhecimento formal das instituições tradicionais e de sistemas próprios de justiça;

iv) reconhecimento do direito a determinar e a elaborar as prioridades e estratégias para o desen-


volvimento de suas terras ou territórios, assim como dos recursos naturais que neles se encontram;

v) obrigatoriedade de serem consultados antes de decisões que possam afetá-los;

45
No original, “substantive aspects”, “remedial aspects”, “constitutive aspect” e “ongoing aspect”. ANAYA, James. Indigenous Peoples in
International Law. New York: Oxford University Press, 1996, p. 81.
46
Ibidem, p. 81.


47
Ibidem, p. 80.
48
Ibidem, p. 81.
49
ANAYA, James S. International Human Rights and Indigenous Peoples: the move toward the Multicultural State. Arizona Journal of Inter-
national & Comparative Law v. 21, n. 1, p. 13-61, 2004.
50
Idem.

650
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

vi) obrigatoriedade de se obter seu consentimento antes da execução de projetos ou planos de


investimento que possam causar impacto maior em seu povo;

vii) participação ativa na determinação dos programas de saúde e de habitação e nos demais
programas econômicos e sociais que os afetem;

viii) participação plena e efetiva na vida pública. 51

Magdalena Gómez também propõe um rol exemplificativo de direitos decorrentes do exercício da


autodeterminação indígena e ações positivas devidas pelos Estados:

a) exercer o direito de desenvolver suas formas específicas de organização social, cultural, polí-
tica e econômica;

b) Obter o reconhecimento dos seus sistemas normativos internos de regulação e sanção,


desde que não sejam contrários às garantias individuais e aos direitos humanos, em parti-
cular das mulheres;

c) melhor acesso à jurisdição do Estado;

d) acessar coletivamente o uso e aproveitamento dos recursos naturais, exceto aqueles cujo
domínio corresponda à nação;

e) promover o desenvolvimento dos diversos componentes de sua identidade e patrimônio cultural;

f) interagir nos diferentes níveis de representação política, governo e administração da justiça;

g) pactuar com outras comunidades, seus povos ou terceiros, a união de esforços e a coordenação
de ações para a otimização de seus recursos, a promoção de seus projetos de desenvolvimento
regional e, em geral, a promoção e defesa de seus interesses;

h) designar livremente os seus representantes, tanto comunitários como autarquias, de acordo


com as tradições de cada município;

i) promover e desenvolver suas línguas e culturas, bem como seus costumes e tradições políticas,
sociais, econômicas e culturais. 52 (tradução nossa).

O significado da autodeterminação para os povos indígenas, de acordo com Erica-Irene A Daes, deve
resultar do processo por meio do qual esses grupos possam se unir a todos os demais povos que
compõem o Estado em termos justos e mutuamente acordados, após anos de isolamento e exclusão.

51
DPLF. Manual para defender os direitos dos Povos Indígenas e tradicionais. Washington, D.C.: DPLF, 2018, p.13.
52
“a) ejercer el derecho a desarrollar sus formas específicas de organización social, cultural, política y económica; b) obtener el reconoci-
miento de sus sistemas normativos internos para la regulación y sanción en tanto no sean contrarios a las garantías individuales y a los de-
rechos humanos, en particular, los de las mujeres; c) acceder de mejor manera a la jurisdicción del Estado; d) acceder de manera colectiva
al uso y disfrute de los recursos naturales, salvo aquellos cuyo dominio corresponda a la nación; e) promover el desarrollo de los diversos
componentes de su identidad y patrimonio cultural; f) interactuar en los diferentes niveles de representación política, de gobierno y de
administración de justicia; g) concertar con otras comunidades, de sus pueblos o de otros, la unión de esfuerzos y coordinación de accio-
nes para optimización de sus recursos, el impulso de sus proyectos de desarrollo regional y, en general, para la promoción y defensa de sus
intereses; h) designar libremente a sus representantes, tanto comunitários como en los órganos de gobierno municipal, de conformidad
con las tradiciones propias de cada pueblo; i) promover y desarrollar sus lenguas y culturas, así como sus costumbres y tradiciones tanto
políticas como sociales, económicas y culturales.” GÓMEZ, Magdalena. Derecho indígena y constitucionalidad. In: KROTZ, Esteban (org.).
Antropología jurídica: perspectivas socioculturales en el estudio del derecho. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Autónoma
Metropolitana – Iztapalapa, 2002, p. 252-253.

651
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Este processo não requer a assimilação dos indivíduos, mas o reconhecimento e a incorporação de
povos distintos no tecido do Estado, em termos previamente pactuados. Segundo a autora, “[a] maioria
dos Povos Indígenas reconhece os benefícios de uma parceria dentro dos Estados existentes, em vista
de sua relação particular com a terra, tamanho pequeno, recursos limitados e vulnerabilidade” 53.
O direito à autodeterminação permite a garantia da sobrevivência dos Povos Indígenas, enquanto
povos multiétnicos e culturalmente distintos das sociedades não-indígenas, alicerçado no seu direito
à diferença. Também, a autodeterminação permite que os Povos Indígenas persigam seu bem-estar
e o direito ao futuro, conforme suas próprias cosmovisões, traduzidas em seus modos de vida e
práticas tradicionais.

3.2. Estândares nacionais e internacionais sobre Direito à


Autodeterminação

O direito à autodeterminação ou à livre determinação dos Povos Indígenas encontra dificuldades em


sua proteção efetiva, uma vez que, para muitos Estados, o reconhecimento desse direito é entendido
como uma afetação da sua integridade política e soberania territorial ou como um entrave ao desen-
volvimento econômico do país. 54
No Brasil, os casos envolvendo demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol55 e a construção da
Usina Hidrelétrica de Belo Monte56 evidenciam tais embates e a ausência de um conteúdo substantivo
do direito em relação aos povos indígenas, o que é percebido também no Poder Judiciário.
Em 2009, no julgamento da Petição nº 3.388/RR, o Supremo Tribunal Federal não apenas reconheceu
a constitucionalidade da demarcação da Terra Indígena Serra do Sol, mas também não encontrou
ofensas à soberania nacional na demarcação em área contínua e em faixa de fronteira e afastou a possi-
bilidade de a demarcação de terras indígenas ameaçar o princípio federativo e o desenvolvimento do
país, uma vez que eram argumentos centrais da ação proposta por Senadores do estado de Roraima
contra o procedimento demarcatório. Porém, sob o argumento de conciliar interesses indígenas, defesa
nacional e preservação do meio ambiente, o mesmo julgamento impôs uma série de condicionantes
para o Estado brasileiro observar nas futuras demarcações, limitando, na prática, a autonomia sobre
os territórios demarcados, além de restringir temporalmente o direito à demarcação com a tese do
“marco temporal.”57
A norma que autorizou o Governo Federal a implementar o aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte
em trecho do Rio Xingu foi questionada diversas vezes no Poder Judiciário brasileiro, e também foi

53
DAES, Erica-Irene A. An overview of the history of indigenous peoples: self-determination and the United Nations. Cambrid-
ge Review of International Affairs, v. 21, nº 1, p. 7-26, March 2008. p. 23-24. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/
full/10.1080/09557570701828386?scroll=top&needAccess=true. Acesso em: 30 abr. 2021.
54
CASTAN, Melissa. DRIP feed: the slow reconstruction of self-determination for Indigenous peoples. In: JOSEPH, Sarah; MCBETH, Adam
(ed.). Research Handbook on International Human Rights Law. Cheltenham, UK-Northampton, MA, USA: Edward Elgar Publishing,
2010. p. 492-511.
55
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 3.388 – RR, Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Brasília, DF, 19 de março de 2009. Diário da
Justiça Eletrônico. 01 jul. 2010.
56
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Reclamação 14404 – DF, Relator: Ministro Carlos Ayres Brito. Brasília, DF, 27 de
agosto de 2012. Diário da Justiça Eletrônico. 30 ago. 2012.


57
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 3.388 – RR, Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Brasília, DF, 19 de março de 2009. Diário da
Justiça Eletrônico. 01 jul. 2010.

652
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

objeto de medidas cautelares emitidas pela CIDH, 58 diante da ausência de consulta às comunidades
indígenas diretamente afetadas e de medidas concretas de proteção da vida e da integridade de povos
indígenas em isolamento voluntário na região.
Em 2007, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região acatou pedido do Ministério Público Federal do
estado do Pará, na Ação Civil Pública nº 2006.39.03.000711-9, e determinou a suspensão do licencia-
mento. Essa decisão foi derrubada pela Suspensão de Liminar nº 125, ajuizada pela Advocacia-Geral
da União, e deferida pela Ministra Ellen Gracie. Nova decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
ordenou a suspensão das obras já iniciadas, em 2012. Essa decisão foi revista mais uma vez no Supremo
Tribunal Federal, no âmbito da Reclamação Constitucional nº 14404. Nas duas oportunidades, o tribunal
corroborou o argumento de necessidade de ampliação da matriz energética nacional como condição
essencial à promoção do desenvolvimento, e do risco que a suspensão das obras acarretaria ao plane-
jamento energético nacional.
Os impactos da obra foram tão severos que, em 2015, o Ministério Público Federal do estado do Pará
a ajuizou Ação Civil Pública contra a União, a FUNAI, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Consórcio Norte Energia, responsável pela construção da
Usina de Belo Monte. A ação, de 50 volumes, é resultado de intensa investigação de quatro inquéritos
civis públicos e visa ao reconhecimento de que a implantação da usina de Belo Monte caracteriza uma
ação etnocida do Estado Brasileiro e do Consórcio Norte Energia, evidenciada pela destruição da orga-
nização social, costumes, línguas e tradições dos grupos indígenas impactados. 59
No âmbito das Nações Unidas, o Comentário Geral nº 12, do Comitê de Direitos Humanos da ONU,60
de 1984, e a Recomendação Geral nº 21, do Comitê para Eliminação da Discriminação Racial da ONU,61
de 1996, afirmam que o direito geral à autodeterminação ou à livre determinação é essencial para o
gozo de todos os direitos humanos. Em relação ao direito à autodeterminação indígena, a CIDH, em
seu informe temático sobre a situação dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas e Tribais da região
da Panamazônia, de 2019,62 também refere que a autodeterminação é uma premissa fundamental para
o exercício pleno de outros direitos humanos dos povos indígenas, tanto individuais como coletivos.
No mesmo informe, a CIDH lembrou que a Corte IDH reconheceu que o artigo 1 comum aos Pactos
de 1966 é aplicável aos povos indígenas e assegurou o direito à autodeterminação nos casos do Povo

58
CIDH.Medidas cautelares outorgadas pela CIDH no ano 2011. CIDH, 2011. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/medidas/2011.port.
htm. Acesso em: 30 nov. 2021.
59
BRASIL. Ação Civil Pública nº 00030178220154013903. Justiça Federal do Estado do Pará. 2015.
60
ONU. Human Rights Committee. General Comment 12: Article 1 (right to selfdetermination), UN Doc HRI/GEN/1/Rev.1 at 12 (13 March
1984).
61
ONU. Committee on the Elimination of Racial Discriminationº General Recommendation 21: The right to selfdetermination, UN Doc
A/51/18 Annex VIII at 125 (8 March 1996).
62
CIDH. Situación de los derechos humanos de los pueblos indígenas y tribales de la Panamazonía. Aprobado por la Comisión Inte-
ramericana de Derechos Humanos el 29 de septiembre de 2019. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Panamazo-
nia2019.pdf. Acesso em: 07 mai. 2021.

653
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Kichwa de Sarayaku Vs. Equador e do Povo Saramaka Vs. Suriname,63 ao reconhecer o direito dos povos
indígenas a prover seu desenvolvimento econômico, social e cultural e de dispor livremente de suas
riquezas e recursos naturais, a fim de assegurar sua existência e bem-estar como grupos diferenciados.64
A Corte IDH também sustentou que as regras de interpretação estabelecidas no artigo 29 (b) da CADH
a proíbem de interpretar as disposições do artigo 21 da CADH de uma forma que restrinja seu gozo e
exercício a menor grau do que o reconhecido nos Pactos da ONU. Consequentemente, o artigo 21 da
CADH inclui o direito dos membros das comunidades indígenas e tribais de determinar e desfrutar
livremente de seu próprio desenvolvimento social, econômico e cultural.65
Por fim, a CEPAL reconhece que o direito à autodeterminação dos povos indígenas não implica a
possibilidade de separatismo, senão o direito de controlar o seu próprio destino, tecendo os fios de
sua própria história, como um mecanismo garantidor de justiça, outorgando um caráter diferente na
relação com os Estados, imprescindível para o desenvolvimento e garantia de outros direitos.66

3.3. O direito à autoidentificação dos povos indígenas

Segundo a definição de José Martinez Cobo, as comunidades, os povos e as nações indígenas são
aquelas que possuem consciência de sua continuidade histórica com sociedades pré-existentes aos
Estados e fronteiras atuais e, por isso, consideram-se segmentos distintos da sociedade nacional. São
formadas por setores não dominantes da sociedade e têm a determinação de preservar, desenvolver
e transmitir a futuras gerações seus territórios ancestrais e sua identidade étnica como base de sua
existência continuada como povo, de acordo com seus próprios padrões culturais, instituições sociais


63
Importante anotar que a Comunidade Saramaka do Suriname é uma comunidade tribal, não tratando-se de Povos Indígenas, e sim de
povos ou grupos étnico-culturalmente diferenciados, para as quais há respaldo e garantia, tanto na Convenção 169 da OIT, quanto na
Jurisprudência da Corte IDH. Nesse sentido, a Corte IDH estabelece que: “ 84. Por isso, de acordo com o exposto, a Corte considera que
os membros do povo Saramaka constituem uma comunidade tribal cujas características sociais, culturais e econômicas são diferentes de
outras partes da comunidade nacional, particularmente graças à relação especial existente com seus territórios ancestrais, e porque se
regulam eles mesmos, ao menos de forma parcial, através de suas próprias normas, costumes e tradições. Consequentemente, a Corte
procederá a analisar se, e em que medida, os integrantes de povos tribais requerem certas medidas especiais que garantam o pleno exer-
cício de seus direitos.” (CORTE IDH. Caso del Pueblo Saramaka Vs. Suriname. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 28 de noviembre de 2007). Além de, “86. A Corte não encontra uma razão para se afastar desta jurisprudência no presente
caso. Por isso, este Tribunal declara que os membros do povo Saramaka devem ser considerados como uma comunidade tribal e que a
jurisprudência da Corte a respeito do direito de propriedade dos povos indígenas também é aplicável aos povos tribais em virtude de que
compartilham características sociais, culturais e econômicas distintivas, incluindo a relação especial com seus territórios ancestrais, o que
requer medidas especiais conforme o Direito Internacional dos Direitos Humanos a fim de garantir a sobrevivência física e cultural deste
povo.” (CORTE IDH. Caso del Pueblo Saramaka Vs. Suriname. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28
de noviembre de 2007). Além do mais, no Brasil o Decreto nº 6.040/2007, em seu art. 3º, inc. I, estabelece que Povos e Comunidades são
“grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam
e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;”. BRASIL. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui
a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília, DF: Presidência da República, 2007.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 30 abr. 2021. Ou seja, povos ou
grupos étnico-culturalmente diferenciados, em um conceito este que se estende para Povos Indígenas, Quilombolas, Ribeirinhos ou Bei-
radeiros, Povos e Comunidades de Terreiro, Ciganos etc. MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS. CARTILHA DIREITOS DOS POVOS
E COMUNIDADES TRADICIONAIS. Disponível em: https://bioeconomia.fea.usp.br/wp-content/uploads/2022/03/DIREITOS-DOS-PO-
VOS-E-COMUNIDADES-TRADICIONAIS.pdf. Acesso em: 01 maio 2021.
64
CIDH. Situación de los derechos humanos de los pueblos indígenas y tribales de la Panamazonía. Aprobado por la Comisión Inte-
ramericana de Derechos Humanos el 29 de septiembre de 2019. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Panamazo-
nia2019.pdf. Acesso em: 07 mai. 2021.
65
Idem.
66
Idem.

654
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

e sistemas legais.67 O indivíduo indígena é quem se considera pertencente a uma dessas comunidades
(consciência de grupo) e é por ela reconhecido como membro (aceitação pelo grupo).68
No âmbito do direito internacional, a Convenção n° 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização
Internacional do Trabalho (OIT),69 ao definir a que sujeitos suas normas se aplicam, apresenta uma
definição no artigo 1, ‘b’, que passou a ser adotada de forma consensual pelos países independentes. É
possível identificar 4 dimensões dos elementos constitutivos da definição de povo indígena neste artigo:
a. reconhecimento da identidade: refere-se ao desenvolvimento da consciência étnica e ao
sentido de pertença a um povo indígena;
b. origem comum: refere-se à existência de ancestrais comuns e alude, entre outros fatores,
à memória social e coletiva dos povos, à relação com sua história e à vigência do passado
como uma recriação e atualização permanente;
c. territorialidade: está ligada à herança ancestral e à memória coletiva dos povos, assim como
à ocupação de terras ancestrais e vínculos materiais e simbólicos que se inscrevem nela;
d. aspecto lingüístico-cultural: relaciona-se com o apego à cultura de origem, à organização
social e política, ao idioma, à cosmovisão, aos conhecimentos e aos modos de vida. 70
A origem pré-colombiana não deve ser entendida como fator genético, no sentido biológico da exis-
tência de raças; o critério deve ser a consciência de um vínculo histórico transmitido dentro do grupo.
Em relação ao critério da cultura, dever ser considerada como elemento mutável no tempo e pelas rela-
ções sociais e biológicas. Assim, a cultura é antes um reflexo ou produto da organização de cada grupo
do que condição primária ou pressuposto de identificação, ou seja, mudando a cultura não perdem os
índios a sua identidade ou diferenciação para com a sociedade nacional. 71
Assim, o critério hoje aceito é o da autoidentificação: somente a comunidade indígena pode dizer
quem é e quem não é seu membro. O direito à autoidentificação é um importante desdobramento do
exercício do direito à autodeterminação dos povos indígenas. Está no plano da autonomia dos povos
indígenas a definição, implícita na própria cultura, dos critérios de pertencimento ao grupo e, portanto,
da capacidade de reconhecer quem são seus membros.
A identidade indígena é formada por valores, práticas e instituições coletivas que integram seu
patrimônio cultural imaterial e são protegidos como direitos humanos. O direito à autoidentificação,
portanto, decorre do direito à personalidade jurídica dos povos indígenas, considerando a indispensa-
bilidade da condição de indígena para o gozo de direitos específicos. 72

67
GERSEM, Luciano Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade;
68
Martinez Cobo foi o Relator Especial da Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, e redigiu famoso estu-
do sobre o problema da discriminação contra as populações indígenas durante os anos 1972 e 1983, do qual resultou o seguinte conjunto
de ideias básicas levadas em conta pelas Nações Unidas para tratar o tema indígena. ONU. The concept of indigenous peoples (UN Doc.
E/CNº4/Sub.2/1986/7 and Add. 1-4), 200
69
OIT. Convenção n° 169 sobre Povos Indígenas e Tribais. Adotada em 27 de junho de 1989. A Convenção foi ratificada pelo Estado
Brasileiro em 19/04/2004, por meio do Decreto nº 5.051, e atualmente consolidada através do Decreto nº 10.088, de 05/11/2019.
70
CEPAL. Los pueblos indígenas en América Latina: Avances en el último decenio y retos pendientes para la garantía de sus derechos.
Santiago/Chile: Naciones Unidas, 2014. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/37222/S1420521_es.pdf?se-
quence=1. Acesso em: 14 abr. 2021, p. 38.


71
CUNHA, Manuela Carneiro da . Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 23-24.
72
PERUZZO, Pedro Pulzatto; OZI, Giulia. O direito à autoidentificação dos povos indígenas como direito fundamental. Revista Eletrônica
do Curso de Direito da UFSM, [S. l.], v. 15, n. 2, p. e34252, 2020.

655
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

No Brasil, antes da internalização da Convenção nº 169 da OIT e da promulgação da Constituição


Federal de 1988, a “veracidade” da identidade indígena de uma comunidade era determinada por laudo
antropológico, no âmbito de atuação da FUNAI, e por decisão judicial. Tanto que o Estatuto do Índio, Lei
nº 6.001, de 1973, de caráter integracionista, classificava os indígenas em isolados, em vias de integração
e integrados (art. 4º), e determinava que os indígenas e as comunidades “ainda não integrados à comu-
nhão nacional” ficariam sujeitos ao regime tutelar (art. 7º), o que somente poderia ser liberado por um
juiz a partir do atingimento dos critérios de idade mínima de 21 anos, conhecimento da língua portu-
guesa, habilitação para o exercício de “atividade útil” na comunhão nacional e razoável compreensão
dos usos e costumes da comunhão nacional (art. 9º).
Hoje, a heteroidentificação, ou seja, a definição do indivíduo e do grupo indígena por terceiros, em
geral pelo Estado ou um de seus órgãos oficiais, não encontra acolhida seja pela ciência antropológica
contemporânea seja pela legislação nacional e internacional. Do ponto de vista antropológico, é um
critério equivocado porque os termos da diferenciação de um povo ou etnia a outro são construídos
pelos próprios povos indígenas e são sensíveis e fluidos, não objetivos e quantificáveis. Portanto, não
são características apreensíveis por terceiros.
Além disso, a adoção da heteroidentificação estatal desloca o foco da investigação da constituição
interna e da história de cada grupo para as “fronteiras étnicas” e sua manutenção. Caso baseado em
uma noção estanque de cultura, criam-se tipos ideais e exclusões de comunidades inteiras do exercício
de direitos específicos que não se encaixam nos critérios estabelecidos.
Do ponto de vista jurídico-político, além de violar o direito à autodeterminação, ao patrimônio cultural
imaterial e à personalidade jurídica dos povos indígenas, a heteroidentificação é um critério geralmente
adotado em políticas assimilacionistas, já superadas pela normativa nacional e internacional, sobretudo
pela substituição da Convenção nº 107 da OIT, de 1959, pela atual Convenção nº 169, de 1989, e pela
promulgação da Constituição Federal brasileira de 1988. Os mais recentes tratados da temática indí-
gena também se afastam do paradigma assimilacionista, como a DNUDPI e a DADPI.
A adoção da heteroidentificação estatal como critério oficial também facilita o uso político e estraté-
gico do Estado na tomada de territórios tradicionais, na medida em que detém o poder de decretar a
existência ou inexistência de povos indígenas em locais de interesse para a instalação de empreendi-
mentos e grandes obras.

3.4. Estândares Internacionais sobre Direito à Autoidentificação

A CEPAL enfatiza que, para o respeito ao critério da autoidentificação no âmbito das Nações Unidas, os
representantes dos povos indígenas devem participar da tomada de decisão nas instâncias oficiais, entre
outros assuntos, sobre a própria forma de coleta de informações sobre seus povos. Em outras palavras,
o critério de autoidentificação deve prevalecer na quantificação dos povos indígenas, enquanto outros
critérios associados às demais dimensões contribuirão para sua caracterização. 73
O instrumento jurídico que inaugura a utilização do conceito de autoidentificação ou autodeclaração
no âmbito internacional é a Convenção nº 169 da OIT, de 1989, 74 dentro de uma perspectiva não assi-

73
CEPAL. Los pueblos indígenas en América Latina: avances en el último decenio y retos pendientes para la garantía de sus derechos.
Santiago/Chile: Naciones Unidas, 2014. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/37222/S1420521_es.pdf?se-
quence=1. Acesso em: 08 mai. 2021.

BRASIL. Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem
74

sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Fe-
derativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/
Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em: 23 mar. 2021.

656
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

milacionista dos povos indígenas e das populações tradicionais. Além do critério objetivo, quando um
grupo ou povo indígena satisfaz as condições previstas no artigo 1.1 e reconhece e aceita uma pessoa
como seu membro, a Convenção também apresenta o critério subjetivo, quando o indivíduo se identi-
fica a si mesmo como pertencente ao grupo ou povo indígena.
Além disso, a Convenção também reconhece no artigo 1.2 que a consciência da identidade indígena
deve ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as
disposições da Convenção, ou seja, para determinar quem são os povos indígenas.
A DNUDPI, em seu artigo 33.1, 75 também garante aos povos indígenas o direito de determinar sua própria
identidade ou composição conforme seus costumes e tradições, estabelecendo que isso não prejudica
o direito dos indígenas de obterem a cidadania dos Estados onde vivem. Já no âmbito da OEA, a DADPI,
no artigo 1.2 determina a autoidentificação como povo indígena como um critério fundamental para
determinar a quem se aplica a Declaração. Além disso, determina que os Estados respeitarão o direito
à autoidentificação indígena, seja de forma individual ou coletiva, conforme as práticas e instituições
próprias de cada povo indígena. 76
Em que pese não haver a menção direta aos povos indígenas, o Comentário Geral nº 20, 77 do Comitê
de Direitos Humanos da ONU, e a Recomendação Geral nº 32, 78 do Comitê para Eliminação da Discri-
minação Racial da ONU, ambos de 2009, expressam a importância que os respectivos tratados interna-
cionais – PIDCP e Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial – conferem à autoidentificação como critério para definição do pertencimento de um indivíduo
a um determinado grupo. Já a Recomendação Geral nº 35, do Comitê para Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 2017, 79 enfatiza que o critério da autoidentificação deve
ser observado em programas e estudos sobre formas interseccionais de violência de gênero experi-
mentada por mulheres em contextos culturais específicos, o que inclui as mulheres indígenas.
Segundo o informe temático sobre a situação dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas e Tribais
da região da Panamazônia, de 2019,80 a CIDH considera a autoidentificação como o principal critério
para o reconhecimento de um grupo humano como povo indígena, tanto na dimensão indivi-
dual como coletiva.
Esta posição também é adotada pela Corte IDH, a exemplo do caso da Comunidade Indígena Xákmok
Kásek Vs. Paraguai81, no qual a identificação coletiva de um povo ou comunidade, desde seu nome
até sua composição, supõe um fato histórico-social que faz parte de sua autonomia, podendo-se

75
ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (107ª
sessão) em 13 de setembro de 2007. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Na-
coes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.
76
OEA. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovada pela Assembleia Geral (3ª sessão) realizada em 15 de
junho de 2016. Disponível em: https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.
77
ONU. Human Rights Committee. General Comment 20: Article 2, Paragraph 2 (Non-Discrimination in Economic, Social and Cultural
Rights) UN Doc HRI/GEN/1/Rev.1 at 46 (2009).
78
ONU. Committee on the Elimination of Racial Discriminationº General Recommendation 32: The significance and scope of special
measures at the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination, UN, at 75 (2009).
79
ONU. Committee on the Elimination of All Forms of Discrimination against Womenº General Recommendation nº 35 on gender vio-
lence against women, updating General Recommendation no. 19, UN (2017).
80
CIDH. Situación de los derechos humanos de los pueblos indígenas y tribales de la Panamazonía. Aprobado por la Comisión Inte-
ramericana de Derechos Humanos el 29 de septiembre de 2019. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Panamazo-
nia2019.pdf. Acesso em: 07 mai. 2021.


81
Corte IDH. Caso de la Comunidad Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas.Sentencia de 24 de agosto de
2010, Serie C No. 214, párr. 37.

657
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

interpretar com a sua livre determinação ou autodeterminação. Por isso, “o Tribunal e o Estado devem
limitar-se a respeitar as determinações apresentadas pela Comunidade a este respeito, ou seja, a forma
como se identifica.”82
No Brasil, as previsões do art. 2º, caput, e art. 3º, §2º, da Resolução Conjunta nº 3, do Conselho Nacional
de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, de 2012, que tratam do assento de nascimento
de indígenas no Registro Civil de Pessoas Naturais, garantem a livre escolha do nome indígena com
que a pessoa se identifica, bem como o registro da etnia como sobrenome e a aldeia de sua origem ou
a de seus pais nas informações sobre naturalidade, juntamente com o município de nascimento. Isto
também vale para mudanças de nome no decorrer da vida do indígena, que pode vir a se identificar e
a ser identificado como indígena em processos identitários posteriores ao registro de nascimento.83
Sobre o tratamento penal às pessoas indígenas no Brasil, a Resolução nº 287, do Conselho Nacional
de Justiça, de 2019, garante que a identificação de um acusado ou réu indígena acontece por meio
da autodeclaração, a qual pode ser manifestada a qualquer momento do processo. Ainda, diante de
indícios que sugiram a condição indígena e o silêncio do réu ou acusado, o que pode acontecer por
processos de estigma e discriminação, a autoridade policial deve perguntar de forma clara e informar
os direitos decorrentes que protegem a sua condição.
Como consequência da autoidentificação, o processo deve agregar as garantias específicas dos indí-
genas submetidos à justiça criminal, quais sejam: (i) o direito a contar com intérprete em todas as etapas
do processo (art. 5º da Res. 287/2019); (ii) a aplicação preferencial de mecanismos de responsabilização
próprios da comunidade indígena (art. 7º da Res. 287/2019); (iii) o respeito aos costumes e tradições
na aplicação de medidas cautelares (art. 8º da Res. 287/2019); (iv) o respeito aos costumes e tradições
na aplicação de penas restritivas de direitos (art. 9º, I da Res. 287/2019); (v) a conversão da multa em
prestação de serviços à comunidade (art. 9º, II da Res. 287/2019); (vi) o cumprimento preferencial da
prestação de serviços à comunidade para a comunidade indígena (art. 9º, III da Res. 287/2019); (vii) a
aplicação do regime especial de semiliberdade previsto no art. 56 do Estatuto do Índio quando haja
condenação a pena de reclusão e de detenção (art. 10 da Res. 287/2019); e (vii) a adequação das condi-
ções de cumprimento de pena em estabelecimento penal às especificidades culturais indígenas em
matéria de visitas sociais, alimentação, assistência à saúde assistência religiosa, acesso a trabalho e
educação (art. 14 da Res. 287/2019).84

4. DIREITO À IDENTIDADE E À INTEGRIDADE CULTURAL

4.1. Cultura – base teórica e legal

A cultura pode ser entendida como o conjunto de crenças compartilhadas, costumes, valores e mani-
festações artísticas de uma sociedade, de um grupo ou de um lugar e tempo particulares; uma maneira


82
“La Corte y el Estado deben limitarse a respetar las determinaciones que en este sentido presente la Comunidad, es decir, la forma cómo
ésta se autoidentifique”. CORTE IDH. Caso de la Comunidad Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas.
Sentencia de 24 de agosto de 2010, Serie C No. 214, párr. 37.
83
CNJ. Resolução Conjunta nº 3, de 19 de abril de 2012. Dispõe sobre o assento de nascimento de indígena no Registro Civil das
Pessoas Naturais. Brasília, DF: CNJ/CNMP, 2012. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files//resolucao_conjunta/resolucao_conjun-
ta_3_19042012_25042013155653.pdf. Acesso em: 30 abr. 2021.
84
CNJ. Resolução nº 287, de 25 de junho de 2019. Estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, conde-
nadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário. Brasília,
DF: CNJ, 2019.

658
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

de pensar, comportar-se ou de trabalhar exercida em determinado lugar; ou a própria lógica através


da qual damos sentido ao mundo. De acordo com Raymonde Carroll, a cultura pode ser entendida,
metaforicamente, como o ar que respiramos, pois apesar de invisível, dependemos dela para a própria
constituição do nosso ser.85
Por outro lado, o Comentário Geral nº 21, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da
ONU considera a cultura como “[...] um conceito amplo e inclusivo que abrange todas as manifestações
da existência humana”, acrescentando que a “[...] expressão ‘vida cultural’ é uma referência explícita à
cultura como um processo vivo, histórico, dinâmico e evolutivo, com um passado, um presente e um
futuro”. O Comitê também destaca que o conceito de cultura não deve ser visto com uma série de
manifestações isoladas ou compartimentos herméticos, mas como um processo relacional e interativo
entre indivíduos e comunidades.86
Neste sentido, especificamente aos Povos Indígenas, Lúcia Fernanda Joféj-Kaingang87 conceitua que:

Segundo a UNESCO, o patrimônio cultural de um povo integra sua identidade e diversidade


cultural. Aponta nessa direção a definição cultural indígena, cuja abrangência inclui conceitos de
patrimônio material (ou tangível) e imaterial (ou intangível), aí presentes todas as manifestações
de expressão que fazem parte do universo cultural de um Povo Indígena: são nossos cantos e
danças, as formas próprias de educação, as pinturas corporais de cada Povo, as técnicas artesa-
nais herdadas dos ancestrais, inclusive a arte plumária, que traz significado e beleza aos nossos
rituais. São ainda as rezas e os conhecimentos tradicionais dos pajés, a relação de espiritualidade
que nos une aos nossos territórios tradicionais e tudo o que neles preservamos, porque são parte
integrante do nosso universo cultural, a sabedoria dos anciãos, as histórias contadas ao redor da
fogueira, as brincadeiras das crianças, as festas e os rituais e todos os aspectos que integram as
nossas formas culturais de viver e de ver o mundo.

Em relação à legislação pertinente aos povos indígenas, a integridade e a identidade cultural são direitos
previstos nos artigos 5, 7.2, 8, 31 e 34, da DNUDPI; nos artigos II, III, VI, X, XI, XIII, da DADPI; nos artigos
215, §1º, 216 e 231, caput, da CF/88; e no artigo 2.2, alínea “b”, da Convenção nº 169 da OIT.

4.2. Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas

A Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, adotada em 1972 pela Organização das Nações
Unidas para a Ciência e a Cultura (UNESCO), não apresenta um conceito, mas define em seu Artigo 1º
que o patrimônio cultural material consiste em monumentos (obras arquitetônicas, esculturas, pinturas
monumentais, etc., de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou ciência),
em conjuntos (grupos de construções isoladas ou reunidas que, por sua arquitetura, unidade ou inte-
gração à paisagem, têm valor universal excepcional sob os mesmos pontos de vista antes referidos) e
sítios (obras do homem ou conjugadas entre homem e natureza, sítios arqueológicos de valor universal
excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico).

85
“Culture is like the air we breathe - it is largely invisible and yet we are dependent on it for our very being. Culture is the logic by which we
give order to the world”. CARROLL, Raymonde. Cultural Misunderstandings: The French-American Experience 2. Chicago: The Univer-
sity of Chicago Press, 1988. (tradução nossa).
86
ONU. Committee on Economic, Social and Cultural Rights. General comment no. 21, Right of everyone to take part in cultural life (art.
15, para. 1a of the Covenant on Economic, Social and Cultural Rights). Geneva: UN, 21 Dec. 2009.


87
KAINGANG, Lúcia Fernanda Jófej. A proteção legal do patrimônio cultural dos povos indígenas no Brasil. In: ARAÚJO, Ana Valéria et al.
Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfa-
betização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. p. 122-145. p. 132.

659
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A Convenção também definiu no seu Artigo 2º que o patrimônio natural é composto por monumentos
naturais (formações físicas e biológicas ou conjuntos de formações de valor universal excepcional do
ponto de vista estético ou científico); formações geológicas e fisiográficas e as zonas estritamente
delimitadas (habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas, que sejam de valor universal excep-
cional do ponto de vista estético ou científico); e os locais de interesse natural ou zonas naturais estri-
tamente delimitadas (de valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou
da beleza natural).
Quanto ao patrimônio imaterial, a UNESCO editou em 2003 a Convenção para Salvaguarda do Patri-
mônio Cultural Imaterial, abrangendo as tradições e expressões vivas herdadas dos antepassados e
transmitidas às gerações futuras. O artigo 2 da Convenção define “patrimônio cultural imaterial” como
as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades, os grupos e,
em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural, incluindo
os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados.
Quanto às formas de expressão, o item 2 do artigo 2º cita como exemplos a) tradições e expressões orais,
incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões artísticas; c) práticas
sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e e)
técnicas artesanais tradicionais.
De acordo com a Relatora Especial das Nações Unidas no campo dos Direitos Culturais, Farida Shaheed,
em seu informe apresentado ao Comitê de Direitos Humanos em 2011, o patrimônio cultural deve
compreender os múltiplos patrimônios em que indivíduos e comunidades expressam sua humanidade,
dão sentido à sua existência e constroem suas visões de mundo.88 É por esta razão que ele não está limi-
tado apenas ao que é considerado de valor inestimável para toda humanidade, mas também abrange o
que é significativo para determinados indivíduos e comunidades.89
Também segundo o informe, o conceito de patrimônio reflete o caráter dinâmico de algo que foi desen-
volvido, construído ou criado, interpretado e reinterpretado na história, e transmitido de geração em
geração. O patrimônio cultural une o passado, o presente e o futuro, pois engloba coisas herdadas do
passado que são consideradas de tal valor ou significado hoje, que indivíduos e comunidades querem
transmiti-los para as gerações futuras.90
A importância de ter acesso ao próprio patrimônio cultural, incluindo o patrimônio linguístico, tem
sido enfatizada pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no Comentário Geral nº 21
sobre o direito de todos participarem da vida cultural. Como ressaltou o Comitê, “[...] as obrigações de
respeitar e proteger as liberdades, o patrimônio cultural e a diversidade cultural estão interligadas.”91
(tradução nossa)
O direito de participar da vida cultural implica que indivíduos e comunidades tenham acesso e desfrutem
de patrimônios culturais significativos para eles, e que sua liberdade de criar e continuamente (re)criar
patrimônio cultural e transmiti-lo para as gerações futuras deve ser protegida. Nesse sentido, conforme
o Comentário Geral nº 21, com base na igualdade e na não discriminação, as condições necessárias

88
ONU. General Assembly. Human Rights Council. Report of the UN Independent Expert in the Field of Cultural Rights, Farida Shaheed,
Access to Cultural Heritage as a Human Right, UN Doc. No. A/HRC/17/38 (Mar. 21, 2011). par. 6.
89
Ibidem, par. 7.
90
ONU. General Assembly. Human Rights Council. Report of the UN Independent Expert in the Field of Cultural Rights, Farida Shaheed,
Access to Cultural Heritage as a Human Right, UN Doc. No. A/HRC/17/38 (Mar. 21, 2011), par. 5.


91
“The obligations to respect and to protect freedoms, cultural heritage and cultural diversity are interconnected”. ONU. Committee on
Economic, Social and Cultural Rights. General comment no. 21, Right of everyone to take part in cultural life (art. 15, para. 1a of the
Covenant on Economic, Social and Cultural Rights). Geneva: UN, 21 Dec. 2009.

660
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

para a plena realização do direito de todos de participarem na vida cultural deve reunir aspectos de
disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade, adaptabilidade e adequação.92
A disponibilidade significa a presença de bens e serviços culturais abertos a todos, incluindo espaços
naturais (rios, montanhas, fauna e flora), equipamentos públicos (livrarias, museus, praças) e bens
culturais imateriais (línguas, crenças, tradições, valores), bem como o parentesco intercultural que
surge do compartilhamento de um mesmo território.93
A acessibilidade consiste na oportunidade concreta e efetiva de indivíduos e comunidades aprovei-
tarem a cultura plenamente, incluindo acesso físico e econômico sem discriminação. Também inclui
o direito de buscar, receber e compartilhar informações sobre todas as manifestações de cultura e o
acesso aos meios de expressão e de divulgação.94
A aceitabilidade implica que as leis, políticas, estratégias, programas e medidas adotadas pelo Estado
devem ser formuladas e implementadas de forma aceitável para os indivíduos e comunidades envol-
vidas, o que pode ser alcançado mediante consultas aos diretamente interessados.95
A adaptabilidade refere-se à flexibilidade e relevância das estratégias, políticas, programas e medidas
adotadas pelo Estado em qualquer área da vida cultural, as quais devem respeitar a diversidade cultural
dos indivíduos e comunidades envolvidos.96
A adequação, por fim, refere-se à realização de um direito humano específico de maneira pertinente e
adequada a um determinado contexto cultural, ou seja, respeitosa da cultura e dos direitos culturais de
indivíduos e comunidades, incluindo minorias e Povos Indígenas. O consumo alimentar, a utilização da
água, a forma como os serviços de saúde e educação são prestados são exemplos de direitos humanos
que devem ser culturalmente adequados.97
A interferência estatal no gozo da cultura deve ter uma justificativa razoável e objetiva e ser compatível
com as determinações legais, a fim de garantir a participação efetiva dos membros das minorias nas
decisões que os afetam e de limitar o impacto negativo das medidas tomadas. Isto implica mais do que
mera informação ou consulta; implica participação significativa e consentimento prévio e informado
das comunidades indígenas diretamente interessadas.
O desafio é garantir que as próprias comunidades indígenas tenham autonomia e que as questões de
herança cultural não se limitem à preservação ou salvaguarda. Em particular, os programas de patri-
mônio cultural não devem ser implementados às custas de indivíduos e comunidades que, às vezes,
para fins de preservação, têm acesso limitado a seu próprio patrimônio cultural.98

92
Idem.
93
Idem.
94
Idem.
95
Idem.
96
ONU. Committee on Economic, Social and Cultural Rights. General comment no. 21, Right of everyone to take part in cultural life (art.
15, para. 1a of the Covenant on Economic, Social and Cultural Rights). Geneva: UN, 21 Dec. 2009.

Idem.
97

98
Idem.

661
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

4.3. Estândares Internacionais

Segundo o Comentário Geral nº 23 sobre povos indígenas do Comitê para Eliminação da Discriminação
Racial da ONU, de 1997, os Estados têm o dever de reconhecer e respeitar a cultura, a história, o idioma
e os modos de vida dos povos indígenas, devendo garantir que possam exercer seu direito a praticar e
reavivar suas tradições e costumes culturais, e preservar e praticar seu idioma.99
Segundo Comentário Geral nº 21 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os Estados
também devem tomar medidas para garantir que o exercício do direito de participar da vida cultural
leve em conta os valores fortemente comunais ou que, ao menos, só possam ser expressos e gozados
de forma comunitária pelos povos indígenas, o que inclui os territórios ancestrais. Os Estados Partes
devem, portanto, tomar medidas para reconhecer e proteger os direitos dos povos indígenas a possuir,
desenvolver, controlar e usar suas terras, territórios e recursos comunitários e, onde tenham sido habi-
tados ou utilizados sem seu consentimento livre e informado, tomem as medidas necessárias para
devolver estes territórios.100
Ainda, os povos indígenas têm o direito de agir coletivamente para garantir o respeito ao seu direito de
manter, controlar, proteger e desenvolver sua herança cultural, conhecimentos tradicionais e expres-
sões culturais tradicionais, bem como as manifestações de suas ciências e tecnologias, inclusive os
recursos humanos e genéticos, sementes, medicamentos, conhecimento das propriedades da fauna e
flora, tradições orais, literatura, desenhos, esportes e jogos tradicionais e artes visuais e performáticas.
Os Estados partes devem respeitar o princípio do consentimento livre, prévio e informado dos Povos
Indígenas em todas as questões cobertas por seus direitos específicos.101
Na recomendação sobre o Povo Indígena Yanomami do Brasil, emitida em 1985,102 a CIDH invocou o
artigo 27, do PIDCP para reconhecer o direito dos grupos étnicos à proteção especial no uso de suas
próprias línguas, para a prática de sua própria religião e, em geral, para todos aqueles direitos neces-
sários à preservação de sua identidade cultural. A CIDH considerou a série de incursões nas terras
ancestrais Yanomami como uma ameaça não só ao bem-estar físico dos Yanomami, mas também a sua
cultura e tradições. O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, no caso Ominayak v. Canadá, já
citado, chegou à conclusão semelhante.103
No julgamento dos Casos da Comunidade Moiwana Vs. Suriname104 e do Povo Saramaka Vs. Suriname105,
apesar de se tratarem de comunidades consideradas tribais, foram aplicados entendimentos anteriores
da Corte com relação aos Povos Indígenas por analogia. O Caso Moiwana traz o conceito de dano
espiritual, ligado às diferentes cosmovisões dos Povos e Comunidades Tradicionais especialmente nos
rituais de despedida em caso de falecimento de seus membros e em suas particulares relações mile-
nares e ancestrais com seus territórios. Cunhado pelo Juiz Cançado-Trindade o dano espiritual expressa:

99
ONU. Committee on the Elimination of Racial Discriminationº General Recommendation 23: General Recommendation on Indigenous
Peoples, UN Doc A/52/18 Annex V at 52ª Session (1997). par. 4.
100
ONU. Committee on Economic, Social and Cultural Right. General comment no. 21, Right of everyone to take part in cultural life (E, 6,
36-37). Geneva: UN, 21 Dec. 2009.
101
Idem.
102
CIDH. Relatório 12/85, Caso nº 7615, Yanomami. Brasil, 5 de março de 1985.
103
IACHR. Chefe Bernard Ominayak e Lubicon Lake Band v. Canadá, CCPR / C / 38 / D / 167/1984, 26 de março de 1990.
104
CORTE IDH. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname. Excepciones Preliminares, Fondo, reparaciones y Costas. Sentencia de 15
de junio de 2005 Série C No. 124.
105
Ver nota de rodapé nº 70.

662
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

71. Atrevo-me a conceituá-lo como dano espiritual, como forma de dano moral agravado que
tenha implicação direta na parte mais íntima da humanidade, ou seja, seu ser interior, suas crenças
no destino da humanidade e suas relações com os mortos. O dano espiritual não é suscetível, é
claro, a compensação material, mas existem outras formas de compensação. Este é o lugar onde a
ideia é apresentada, pela primeira vez na história, até onde sei.

72. Esta nova categoria de danos, - na minha percepção - inclui o princípio da humanidade em uma
dimensão temporal, e inclui os vivos em suas relações com os mortos e não nascidos, das gerações
futuras. Este é o meu raciocínio. O princípio que a humanitas tem, de fato, uma projeção histórica
de longa data e se deve, principalmente, às culturas antigas (especialmente a da Grécia), uma vez
que foi associada, no tempo, à formação moral e espiritual do ser humano.106 (tradução nossa)

No caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai, a Corte IDH considerou que a identi-
dade cultural das crianças desta comunidade indígena foi afetada pela violação do direito à proprie-
dade comunal, visto que a incursão estatal sobre as terras da comunidade prejudicou o exercício da
língua tradicional e sobretudo os ritos de iniciação masculina e feminina, atingindo, em especial, o
desenvolvimento e a identidade das crianças. Assim, a Corte IDH advertiu que é obrigação dos Estados
promover e proteger o direito das crianças indígenas a viverem de acordo com sua própria cultura,
religião e idioma.107
Ainda, a respeito do direito de expressão cultural, no Caso Povos Indígenas Maya Kaqchikel de
Sumpango e outros Vs. Guatemala, a Corte IDH, compreendeu que:

170. Finalmente, levando em conta todo o anterior, este Tribunal considera que os atos praticados
pelo Estado em detrimento dos povos Maya Kaqchikel e Achí derivam não apenas de uma situação
de ilegalidade gerada indiretamente pelo próprio Estado, e também resultaram em um sacrifício
absoluto do direito à liberdade de expressão desses povos, com o objetivo de garantir o pleno gozo
do direito à liberdade de expressão daqueles que supostamente sofreram alguma interferência na
transmissão de suas emissoras de rádio. Portanto, a Corte considera que a referida ação penal foi
desproporcional, pois afetou excessivamente a liberdade de expressão e o direito de participar da
vida cultural dos povos Maya Kaqchikel de Sumpango e Maya Achí de San Miguel Chicaj.

171. Assim, este Tribunal considera que as incursões e apreensões de equipamentos das emissoras
de rádio Ixchel e “La Voz del Pueblo”, realizadas com base no regulamento interno da Guatemala

106
“71. Me atrevería a conceptualizarlo como un daño espiritual, como una forma agravada del daño moral que tiene una implicancia directa
en la parte más íntima del género humano, a saber, su ser interior, sus creencias en el destino de la humanidad y sus relaciones con los
muertos. El daño espiritual no es susceptible, por supuesto, de indemnización material sino que existen otras formas de compensación.
Aquí es donde se presenta la idea, por primera vez en la historia, a mi leal entender. 72. Esta nueva categoría de daño,- como lo percibo,-
comprende el principio de la humanidad en una dimensión temporal, e incluye a los vivos en sus relaciones con los muertos y a los aún no
nacidos, de las futuras generaciones. Este es mi razonamiento. El principio de humanitas tiene, de hecho, una proyección histórica de larga
data y se debe, principalmente, a las culturas antiguas (en especial, a la de Grecia) ya que se ha asociado, en el tiempo, con la formación
moral y espiritual de los seres humanos88.” CORTE IDH. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname. Excepciones Preliminares,
Fondo, reparaciones y Costas. Sentencia de 15 de junio de 2005 Série C No. 124.


107
CORTE IDH. Caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24 de agosto de
2010 Série C No. 214.

663
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

e mediante ordem judicial, constituíram ações ilegítimas e restrições ao direito à liberdade de


expressão contrária à Convenção108. (tradução nossa)

Isto significa que o Estado da Guatemala estava, ao regular o exercício da radiodifusão, gerando restri-
ções anti-convencionais ao direito de liberdade de expressão dos Povos Indígenas, no que diz respeito
à fundação e utilização dos meios de comunicação, no caso uma rádio comunitária, para difundir infor-
mações, ideias e opiniões que os afetam e gerar debates de seus interesses, afetando inclusive seu
direito de participar da vida cultural, ou seja, de seu direito de expressão cultural.

5. DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E AO BEM-ESTAR

5.1. Parâmetros para o Direito ao Desenvolvimento

De forma geral, o paradigma de desenvolvimento dos povos indígenas difere dos padrões desenvol-
vimentistas e neoliberais que têm caracterizado sociedades não indígenas no mundo atual, os quais
privilegiam aspectos de desenvolvimento meramente econômico. De acordo com Fabiana Del Popolo,
principalmente no âmbito das Nações Unidas, o conceito de desenvolvimento passou de um conceito
limitado apenas ao aspecto econômico para uma ideia de desenvolvimento como direito humano e
cooperação política.109
No caso dos povos indígenas, o paradigma de desenvolvimento deve ser norteado do ponto de vista
dos mundos indígenas, cujos discursos e conceitos alternativos podem ser exemplificados pelas noções
de sumak kawsay e qhapaj ñan (em quíchua), suma qamaña (em aimará) e ñandereco (em guarani),
ou seja, bem viver ou viver em plenitude. Estas ideias, incorporadas de forma exitosa pelos movimentos
indígenas às constituições do Equador (2008) e do Estado Plurinacional da Bolívia (2009), incluem
princípios de vida como ayni e minka (que se referem à reciprocidade, solidariedade, respeito, comple-
mentaridade, dignidade, participação coletiva, justiça social, harmonia com a mãe natureza e com a
comunidade, bem-estar coletivo e familiar).110
Os principais instrumentos de proteção aos Povos Indígenas seguem esta mudança de paradigma do
direito ao desenvolvimento, cuja previsão se encontra no preâmbulo e nos artigos 3, 20, 23 e 32, da
DNUDPI; no preâmbulo e nos artigos III, VI, XXV.3, XXVIII. 1 e 2, e XXIX, da DADPI; no artigo 231, da
CF/88; e artigo 7, 14.1 e 16.4, da Convenção nº 169 da OIT. Nesse sentido, o direito ao desenvolvimento
inclui manter e determinar suas próprias prioridades em termos políticos, econômicos, sociais e cultu-

108
“170. Por último, tomando todo lo anterior en cuenta, este Tribunal encuentra que los actos llevados a cabo por el Estado en detrimento
de los pueblos Maya Kaqchikel y Achí no solo derivaron de una situación de ilegalidad indirectamente generada por el propio Estado, sino
que también resultaron en un sacrificio absoluto del derecho a la libertad de expresión de dichos pueblos, con el propósito de asegurar el
pleno goce del derecho a la libertad de expresión de aquellos que supuestamente sufrieron alguna interferencia en la trasmisión de sus
emisoras de radio. Por ende, la Corte considera que la persecución penal de referencia fue desproporcionada, por cuanto afectó de forma
excesiva la libertad de expresión y el derecho a participar en la vida cultural de los pueblos Maya Kaqchikel de Sumpango y Maya Achí de
San Miguel Chicaj. 171. De esta forma, este Tribunal considera que los allanamientos y decomisos de equipos de las radios Ixchel y “La Voz
del Pueblo”, llevados a cabo con base en la normativa interna de Guatemala y mediante orden judicial, configuraron acciones ilegítimas y
restricciones al derecho a libertad de expresión contrarias a la Convención.” CORTE IDH. Caso Pueblos Indígenas Maya Kaqchikel de
Sumpango y otros Vs. Guatemala. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de octubre de 2021 Série C No. 440.
109
DEL POPOLO, Fabiana (ed.). Los pueblos indígenas en América (Abya Yala): desafíos para la igualdad en la diversidad, Libros de la
CEPAL, N° 151 (LC/PUB.2017/26), Santiago, Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), 2017.


110
DEL POPOLO, Fabiana (ed.). Los pueblos indígenas en América (Abya Yala): desafíos para la igualdad en la diversidad, Libros de la
CEPAL, N° 151 (LC/PUB.2017/26), Santiago, Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), 2017. p. 113-114.

664
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

rais, de acordo com sua própria visão de mundo, além de ter garantido o gozo de seus próprios meios de
subsistência e desenvolvimento e dedicar-se livremente a todas as suas atividades econômicas.
Todavia, o modelo de desenvolvimento econômico adotado por países da América Latina no cinturão
Panamazônico, como o Brasil, traz impactos profundos aos Povos Indígenas e envolvem situações que
se mantêm com o tempo e inclusive se agravam, em particular, em projetos envolvendo mineração,
infraestrutura (hidrovias ou estradas), hidrelétricas e projetos energéticos e de hidrocarbonetos.111
Exemplos de projetos desenvolvimentistas que afetaram negativamente os modos tradicionais de vida
dos Povos Indígenas Brasileiros incluem o caso da Usina de Belo Monte, que afetou os ecossistemas que
cercam o seu entorno, no Rio Xingu, e a subsistência de diversas comunidades que vivem na região,112
asfaltamento da via BR-319, que liga as cidades de Manaus e Porto Velho, e o asfaltamento da Rodovia
BR-163, que liga as cidades de Cuiabá e Santarém.113 Também, a mineração no Brasil é mais um indicador
de agravamento das afetações irreversíveis aos Povos Indígenas114.

6. DIREITO À TERRA, AO TERRITÓRIO


E AOS RECURSOS NATURAIS

6.1. Panorama geral das Terras Indígenas no Brasil

Existem hoje, no Brasil, 725 terras indígenas em diferentes fases do procedimento demarcatório, as
quais correspondem a aproximadamente 13% do território brasileiro. Dentre estas, 121 estão “em iden-
tificação” (em estudo por grupo de trabalho nomeado pela FUNAI), 43 já foram “identificadas” (com
relatório de estudo aprovado pela FUNAI), 74 foram “declaradas” via Portaria do Ministro da Justiça e 487
foram “homologadas” por Decreto da Presidência da República.115
As terras indígenas estão espalhadas por todo o território nacional, contendo a seguinte dispo-
sição por estado:116

UF Terras Área total de TIs (ha)

AC 36 2.573.801,02

AL 12 27.919,43

CIDH. Pueblos indígenas, comunidades afrodescendientes y recursos naturales: Protección de derechos humanos en el contexto
111

de actividades de extracción, explotación y desarrollo. OEA/Ser.L/V/II.Doc. 47/15, 2016.


112
CIDH. Comunicado de prensa 238/18 - CIDH culmina visita a Brasil. Washington, D.C., 12 de noviembre de 2018. Observaciones Prelimi-
nares de la Visita in loco de la CIDH a Brasil, p. 7.
113
PUC-Río. Respuesta al Cuestionario de Consulta sobre Derechos de los Pueblos Indígenas de la Panamazonía, recibida por la CIDH
el 16 de noviembre de 2018.
114
CIDH. Situación de los derechos humanos de los pueblos indígenas y tribales de la Panamazonía. Aprobado por la Comisión Inte-
ramericana de Derechos Humanos el 29 de septiembre de 2019. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Panamazo-
nia2019.pdf. Acesso em: 07 mai. 2021.
115
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL – ISA. Situação atual das Terras Indígenas. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/. Acesso em: 29
abr. 2021.
116
Idem.

665
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

UF Terras Área total de TIs (ha)

AM 164 45.800.730,73

AP 6 1.191.137,48

BA 32 326.935,20

CE 11 21.407,47

DF 1 -

ES 3 18.373,95

GO 5 37.751,59

MA 22 2.451.149,21

MG 14 125.585,22

MS 56 889.709,97

MT 79 15.044.035,63

PA 64 30.915.946,08

PB 4 33.788,63

PE 18 200.470,87

PI 0 -

PR 29 124.530,32

RJ 5 4.674,45

RN 1 -

RO 26 5.023.489,50

RR 33 10.381.053,60

RS 48 113.183,82

SC 21 81.699,79

SE 2 4.412,20

SP 33 75.053,45

TO 14 2.598.194,52

Desde 20 de setembro de 2018 não houve novos decretos e portarias relacionados à demarcação de
terras indígenas, sendo que, nos últimos oito governos, o reconhecimento destas terras ocorreu da
seguinte forma:117


117
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL – ISA. Situação jurídica das TIs no Brasil hoje. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Situa%-
C3%A7%C3%A3o_jur%C3%ADdica_das_TIs_no_Brasil_hoje. Acesso em: 29 abr. 2021.

666
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

Demarcações - Brasil

TIs Declaradas TIs Homologadas

Presidente [período] No Extensão (ha) No Extensão (ha)

Jair Bolsonaro [jan 2019 - presente] 0 0 0 0


Michel Temer [mai 2016 a abr 2018] 3 3.397.569 1 19.216
Dilma Roussef [jan 2015 a mai 2016] 15 932.665 10 1.243.549
Dilma Rousseff [jan 2011 a dez 2014] 11 1.096.007 11 2.025.406
Luiz Inácio Lula da Silva [jan
51 3.008.845 21 7.726.053
2007 a dez 2010]
Luiz Inácio Lula da Silva [jan
30 10.282.816 66 11.059.713
2003 a dez 2006]
Fernando Henrique Cardoso [jan
60 9.033.678 31 9.699.936
1999 a dez 2002]
Fernando Henrique Cardoso [jan
58 26.922.172 114 31.526.966
1995 a dez 1998]
Itamar Franco [out 92 | dez 94] 39 7.241.711 16 5.432.437
Fernando Collor [mar 90 | set 92] 58 25.794.263 112 26.405.219
José Sarney [abr 85|mar 90] 39 9.786.170 67 14.370.486

Demarcações - Amazônia legal

TIs Declaradas TIs Homologadas

Presidente [período] No Extensão (ha) No Extensão (ha)

Michel Temer [mai 2016 a abr 2018] 2 3.392.275 1 19.216


Dilma Roussef [jan 2015 a mai 2016] 10 878.462 9 1.240.776
Dilma Rousseff [jan 2011 a dez 2014] 5 964.170 11 2.025.406
Luiz Inácio Lula da Silva [jan
26 1.821.204 13 7.690.239
2007 a dez 2010]
Luiz Inácio Lula da Silva [jan
20 7.917.596 52 10.988.935
2003 a dez 2006]
Fernando Henrique Cardoso [jan
47 15.767.121 18 9.642.668
1999 a dez 2002]
Fernando Henrique Cardoso [jan
32 17.138.447 81 30.709.327
1995 a dez 1998]
Itamar Franco [out 92 | dez 94] 23 6.518.162 10 5.499.776
Fernando Collor [mar 90 | set 92] 35 23.390.618 74 25.795.019
José Sarney [abr 85|mar 90] 34 11.009.449 21 9.452.807

667
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

6.2. Conceito de Território

Para os povos indígenas, suas terras são muito mais do que o espaço utilizado para moradia ou explo-
ração econômica, sendo relevante a ideia de territorialidade. A territorialidade é o elemento essen-
cial à existência dos grupos humanos, uma vez que não é composta apenas de territórios concretos
(espaços físicos), mas também de territórios abstratos, de acordo com as peculiaridades culturais de
um grupo, tais como o idioma, religião, a forma de se apropriar dos recursos indispensáveis à sobrevi-
vência, dentre outras.118 Não é apenas um espaço, mas o lugar onde se é plenamente alguém (individual
e coletivamente).
Portanto, a noção de território para os povos indígenas não se confunde nem com a concepção de
propriedade privada do direito civil, que implica título e direito de usar, gozar, dispor e reaver a coisa,119
nem com a concepção clássica de território da ciência política, segundo a qual o território é o espaço
sobre o qual um povo determinado exerce soberania, com exceção de todas as demais formas de
exercício de poder.120
A lógica que rege a relação entre os povos e comunidades tradicionais e seus territórios é diferente da
lógica não-indígena. Segundo a primeira, fatores étnicos, laços de parentesco, redes de vizinhança e
identidades coletivas são formas de mobilização de recursos, que impedem que as terras sejam transa-
cionadas livremente como mercadorias,121 posto que “[...] a relação que estabelecem com seu território
é um construtor de identidade, talvez o mais eficaz de todos.”122
A Corte IDH afirmou que “[...] entre os indígenas existe uma tradição comunitária sobre uma forma
comunal da propriedade coletiva da terra, no sentido de que o pertencimento desta não se centra em
um indivíduo, mas no grupo e em sua comunidade.”123 Desde a sua primeira sentença sobre direitos
territoriais dos povos indígenas (caso Comunidade Mayagna [Sumo] Awas Tingi), a Corte afirma que
as comunidades indígenas têm direito a viver livremente em seus territórios, sendo que a relação
que elas mantêm com a terra deve ser “[...] reconhecida e compreendida como a base fundamental
de suas culturas, vida espiritual, integridade e sobrevivência econômica.”124 Ainda, segundo a Corte
IDH, a relação dos povos indígenas com seu território “[...] não é meramente uma questão de posse

118
RAFFESTIN, Claude. “Repères pour une théorie de la territorialité humaine” In: DUPUY, Gabriel et ali. Reseaux territoriaux. Caen: Para-
digme, 1988.
119
Fundamento no Art. 1.228, do Código Civil Brasileiro, in verbis: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito
de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”.
120
Para Paulo Bonavides, o território construiu-se como “a base geográfica do poder, o território do Estado é definido de maneira mais ou
menos uniforme pelos tratadistas. A matéria oferece, conforme veremos, poucos pontos de controvérsia, salvo aqueles ocorridos com
mais freqüência no domínio da fundamentação jurídica do vínculo do Território com o Estado. Definiu Pergolesi o território como ‘a parte
do globo terrestre na qual se acha efetivamente fixado o elemento populacional, com exclusão da soberania de qualquer outro Estado’.
Alguns autores se têm limitado todavia a dizer que o território é simplesmente o espaço dentro do qual o Estado exercita seu poder de
império (soberania).”. BONAVIDES. Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 107.


121
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faxinais e fun-
dos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008, p. 18.
122
HAESBAERT, Rogério. Concepções de território para entender a desterritorialização In: SANTOS, Miltonº Território, territórios: ensaios
sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007, pp. 43-68.
123
CORTE IDH. Caso do Povo Saramaka Vs. Suriname, sentença de 28 de novembro de 2007, Série C nº 172, parágrafo 89. Caso da Comu-
nidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua, sentença de 31 de agosto de 2001, Série C nº 79, parágrafo 149.
124
DPLF. Manual para defender os direitos dos povos indígenas e tradicionais. Disponível em: http://www.dplf.org/sites/default/files/povos_in-
digenas_web_c.pdf. Acesso em: 29 abr. 2021.

668
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

e produção, mas um elemento material e espiritual de que devem gozar plenamente, inclusive para
preservar seu legado cultural e transmiti-lo às gerações futuras.”125
Alfredo Wagner de Almeida afirma que estas territorialidades específicas, que o autor menciona como
“terras de preto”, “terras de índio’”, “terras de santo” e congêneres,126 em nada se confundem com a
noção de terra estrito senso, tampouco com noção de território no âmbito da ciência política, visto
que carregam consigo elementos identitários,127 ou seja, são noções intrínsecas à existência do próprio
grupo enquanto tal
Os grupos étnicos têm o território como elemento central de organização e de reprodução física e
cultural, sendo que eventual desterritorialização caracterizar-se-ia como potencial desencadeador de
processos de extinção (ou tentativa de) do grupo, conforme vivenciado durante a Ditadura Civil-Mi-
litar.128 Neste sentir, o entendimento jurisprudencial da Corte IDH é de que quando as comunidades
indígenas estão longe de suas terras, o direito à vida passa a ser ameaçado,129 pois ficam expostas à
pobreza e à vulnerabilidade social.130
Deste modo, a relação existente entre os povos indígenas e a terra vai muito além da concepção de
propriedade dominante na cultura ocidental, pois engloba, dentre outras coisas, as suas peculiaridades
culturais, as suas formas de sobrevivência e a sua dignidade.131

6.3. Estândares Internacionais

Além da previsão legislativa específica referente aos direitos territoriais indígenas no Sistema Interame-
ricano de Direitos Humanos (art. 231 da Constituição Federal de 1988,132 artigos 26 a 38 do Estatuto do
Índio,133 artigos 13 a 19 da Convenção nº 169 da OIT e artigos 8, 10, 25 a 30 e 32 da DNUDPI), os direitos
territoriais indígenas também são fundamentados no artigo XXIII da DADDH e no artigo 21 da CADH.
Embora os referidos artigos não tratem especificamente sobre direito territorial indígena, a jurispru-
dência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem interpretado e aplicado tais disposições

125
CORTE IDH. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua, sentença de 31 de agosto de 2001.
126
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faixinais e fun-
dos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008, p. 18.
127
Idem, p. 18.
128
Conforme descrito no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e no Relatório Figueiredo, documentos púbicos e oficiais
do Estado brasileiro.
129
PIOVESAN, Flávia. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: impacto transformador, diálogos jurisdicionais e os desafios da reforma.
Revista Direitos Emergentes na Sociedade Global, [S. l.], v. 3, n. 1, p. 76–101, 2014. Disponível em: http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-
2.2.2/index.php/REDESG/article/view/16282#.VfLs3xFVhHw. Acesso em: 8 maio 2021.
130
Axa VS Paraguai, Caso Yatama VS Nicarágua, Caso do Povo Saramana VS Suriname, Caso Chitay Nech e outros VS Guatemala, Caso da
Comunidade Indígena Xákmok Kásek VS Paraguai, Povo Indígena Kichwa de Sarayaku VS Equador. Jurisprudência da Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Justiça, Comissão de Anistia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tradução da
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/atuacao-
-internacional/sentencas-da-corte-interamericana/pdf/direitos-dos-povos-indigenas. Acesso em: 8 maio 2021.


131
RAFFESTIN, Claude. “Repères pour une théorie de la territorialité humaine” In: DUPUY, Gabriel et ali. Reseaux territoriaux. Caen: Para-
digme, 1988.
132
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [1988].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 maio 2021.
133
BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõem sobre o Estatuto do Índio. Brasília, DF: Presidência da República, [1973].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6001.htm. Acesso em 16 maio 2021.

669
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

à luz da Convenção nº 169 da OIT e da DNUDPI, ou seja, utilizam os referidos artigos para proteger
também direitos dos povos originários sobre suas terras, recursos naturais e territórios.134 Ainda segundo
a CIDH, os direitos de propriedade indígena sobre seus territórios são “[...] juridicamente equivalentes
aos direitos de propriedade privada não indígena”,135 inexistindo, portanto, motivos para a não aplicação
das disposições constantes na DADDH e na CADH.
Conforme reiterado pela CIDH e pela Corte IDH, é importante estabelecer uma especial proteção aos
direitos territoriais indígenas em razão da forte relação entre o território (e seus recursos) e a própria
existência das comunidades indígenas,136 ou seja, “[...] os Estados devem respeitar a especial relação que
os membros dos povos indígenas e tribais têm com seu território, de modo a garantir sua sobrevivência
social, cultural e econômica”137 (tradução nossa). Além disso, para a CIDH e a Corte IDH, o direito de
uso e propriedade dos territórios tradicionalmente ocupados pelas comunidades indígenas também se
trata de um costume internacional que deve ser observado138.
O SIDH reconhece, também a importância das disposições de outros tratados e resoluções inter-
nacionais, considerando útil e apropriada sua utilização para interpretar suas disposições de acordo
com a evolução do direito.139 Neste sentido, sem adentrar em casos de violações específicas, há de se
ressaltar a existência de resoluções direcionadas à restituição de territórios indígenas, bem como de
promoção de consultas prévias para a adoção e execução de projetos incidentes sobre os territórios
tradicionalmente ocupados.
A Recomendação Geral nº 23 do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, relativa aos direitos
dos povos indígenas, dispõe no parágrafo 5º que os Estados Partes devem reconhecer e proteger os
direitos dos povos indígenas de possuir, explorar, controlar e usar suas terras, territórios e recursos
comunais e, nos casos em que foram privados de suas terras e territórios tradicionalmente ocupados e
usados, sem o seu consentimento livre e informado, devem ser adotadas medidas para o seu retorno.
Somente quando, por motivos específicos, isso não for possível, o direito à restituição será substi-
tuído pelo direito à indenização justa e imediata, que, na medida do possível, deve ser em forma de
terras e territórios.140
A partir da Recomendação Geral nº 23, foram emitidas recomendações direcionadas aos Estados
Partes, as quais reforçam a proteção internacional dos direitos territoriais indígenas:

134
CIDH. Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales. Disponível em: http://cidh.org/
countryrep/TierrasIndigenas2009/Cap.I-II.htm#II.A. Acesso em: 16 maio 2021.
135
CORTE IDH. Caso do Povo Saramaka Vs. Surinam. Sentença de 28 de novembro de 2007.
136
CIDH. Informe nº 75/02, Caso 11.140, Mary y Carrie Dann (Estados Unidos), 27 de dezembro de 2002, § 128.


137
“[...] los Estados deben respetar la especial relación que los miembros de los pueblos indígenas y tribales tienen con su territorio a modo
de garantizar su supervivencia social, cultural y económica”. CORTE IDH. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs.
Nicaragua. Sentença de 31 de agosto de 2001.
138
Idem. CORTE IDH. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Suriname. Excepciones Preliminares, Fondo, reparaciones y Costas. Sentencia
de 15 de junio de 2005 Série C No. 124.
139
CORTE IDH. Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Sentença de 17 de junho de 2005.
140
“O Comitê insta especialmente os Estados Partes a reconhecer e proteger os direitos dos povos indígenas de possuir, explorar, controlar
e usar suas terras, territórios e recursos comunais e, nos casos em que tenham sido privados de suas terras e territórios, daqueles que
tradicionalmente possuiu, ocupou ou usou essas terras e territórios sem o consentimento livre e informado desses povos, que adotem
medidas para a sua devolução. Somente quando, por motivos específicos, isso não for possível, o direito à restituição será substituído pelo
direito à indenização justa e imediata, que, na medida do possível, deve ser na forma de terras e territórios” (tradução nossa). COMITÊ
PARA A ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL. Recomendação Geral nº 23. Disponível em: http://hrlibrary.umnºedu/gencomm/
Sgencom23.html. Acesso em: 16 maio 2021.

670
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

a) Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial CERD/C/65/CO/1, 10 de dezembro de


2004 - Argentina:
À luz de sua Recomendação Geral Nº XXIII, o Comitê insiste para que o Estado Parte implemente
integralmente a Convenção da OIT No. 169; adote, em consulta com os povos indígenas, uma polí-
tica geral de posse da terra e procedimentos legais eficazes para reconhecer os títulos de terra dos
povos indígenas e demarcar seus territórios; adote medidas para salvaguardar os direitos dos povos
indígenas sobre suas terras ancestrais, especialmente lugares sagrados, e indenizar os povos indígenas
pela desapropriação de suas terras; garanta o acesso à justiça, reconheça efetivamente a personalidade
jurídica dos povos indígenas e suas comunidades em seu modo de vida tradicional e respeite a espe-
cial importância da cultura e dos valores espirituais dos povos indígenas em sua relação com a terra141.
(tradução nossa)
b) Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial CERD/C/63/CO/2, 10 de dezembro de 2003 – Bolívia:
O Comitê convida o Estado Parte a implementar sistematicamente a legislação louvável que adotou
para reconhecer os direitos fundamentais dos povos indígenas e melhorar suas condições de vida.
A esse respeito, o Comitê chama a atenção do Estado Parte para sua Recomendação Geral Nº XXIII,
que, entre outras coisas, insta os Estados Partes a reconhecerem e protegerem os direitos dos povos
indígenas de possuir, explorar, controlar e usar suas terras comunais, territórios e recursos , e nos casos
em que tenham sido despojados de suas terras e territórios, dos quais eram tradicionalmente proprie-
tários, ou essas terras e territórios tenham sido ocupados ou utilizados sem o consentimento livre e
informado dessas populações, adotar medidas para que as terras e territórios sejam devolvidos a eles142.
(tradução nossa)
c) Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial CERD/C/64/CO/2, 28 de abril de 2004 – Brasil:
À luz da Recomendação Geral Nº XXIII sobre os direitos das populações indígenas, o Comitê recomenda
que o Estado Parte conclua a demarcação das terras indígenas até 2007. O Comitê também recomenda
que o Estado Parte tome medidas urgentes para reconhecer e proteger na prática o direito dos povos
indígenas de possuir, explorar, controlar e usar suas terras, territórios e recursos. A esse respeito, o
Comitê convida o Estado Parte a informar sobre a resolução de casos de conflito de interesses em


141
“A la luz de su Recomendación general Nº XXIII, el Comité insta al Estado Parte a que aplique plenamente el Convenio Nº 169 de la OIT;
adopte, en consulta con los pueblos indígenas, una política general de tenencia de la tierra y procedimientos jurídicos efectivos para
reconocer los títulos de propiedad de la tierra de los pueblos indígenas y demarcar sus territorios; adopte medidas para salvaguardar los
derechos de los indígenas sobre sus tierras ancestrales, especialmente los lugares sagrados, e indemnice a los pueblos indígenas por la
desposesión de sus tierras; garantice el acceso a la justicia, reconozca efectivamente la personalidad jurídica de los pueblos indígenas y
sus comunidades en su forma de vida tradicional y respete la importancia especial de la cultura y los valores espirituales de los pueblos
indígenas en su relación con la tierra.” Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos et al. Compilación de observaciones
finales del Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial sobre países de América Latina y el Caribe (1970-2006). Disponível em:
https://www2.ohchr.org/english/bodies/cerd/docs/CERD-concluding-obs.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.
142
“El Comité invita al Estado Parte a que aplique sistemáticamente la encomiable legislación que adoptó para reconocer los derechos
fundamentales de los pueblos indígenas y mejorar sus condiciones de vida. A este respecto, el Comité señala a la atención del Estado
Parte su Recomendación general Nº XXIII en la que, entre otras cosas, se exhorta a los Estados Partes a que reconozcan y protejan los
derechos de las poblaciones indígenas a poseer, explotar, controlar y utilizar sus tierras, territorios y recursos comunales, y en los casos en
que se les haya privado de sus tierras y territorios, de los que tradicionalmente eran dueños, o se hayan ocupado o utilizado esas tierras y
territorios sin el consentimiento libre e informado de aquellas poblaciones, que adopten medidas para que les sean devueltos las tierras y
los territorios.” Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos et al. Compilación de observaciones finales del Comité para
la Eliminación de la Discriminación Racial sobre países de América Latina y el Caribe (1970-2006). Disponível em: https://www2.ohchr.org/
english/bodies/cerd/docs/CERD-concluding-obs.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.

671
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

relação a terras e recursos indígenas, em particular aqueles em que grupos indígenas foram deslocados
de suas terras.143. (tradução nossa)
d) Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial CERD/C/60/CO/3, 20 de março 2002 – Costa Rica:
O Comitê convida o Estado Parte a continuar prestando a atenção que corresponda às necessidades
específicas desta população. Recomenda que o Estado Parte adote as medidas necessárias para que as
terras dos povos indígenas não sejam invadidas e para que sejam restituídas as que foram ocupadas por
não indígenas. [...] O Comitê recomenda que o Estado Parte intensifique seus esforços para alcançar
uma distribuição justa e equitativa da terra, levando em consideração as necessidades da população
indígena. O Comitê destaca a importância da terra para os povos indígenas e para sua identidade espiri-
tual e cultural, bem como o fato de que os povos indígenas têm um conceito diferente de uso e proprie-
dade da terra. Nesse sentido, a aprovação pela Assembleia Legislativa da Lei para o desenvolvimento
autônomo dos povos indígenas seria de grande importância144. (tradução nossa)
e) Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial CERD/C/GTM/CO/11, 21 de março de
2006 – Guatemala:
Levando em conta sua recomendação geral 23 sobre os direitos dos povos indígenas, em particular o
parágrafo 5, o Comitê insta o Estado Parte a tomar medidas que reconheçam e protejam os direitos
dos povos indígenas de possuir, explorar, controlar e usar suas terras e territórios. Nos casos em que
tenham sido privados de suas terras e territórios que tradicionalmente possuíam, ou essas terras e terri-
tórios tenham sido ocupados ou utilizados sem o consentimento livre e informado dessas populações,
o Comitê recomenda que o Estado Parte adote medidas para que essas terras sejam devolvidas a eles. O
Comitê também pede que o processo de adoção do projeto de Lei Nacional de Cadastro seja acelerado
para que as terras comunais indígenas sejam identificadas e demarcadas.145.


143
“A la luz de la Recomendación general Nº XXIII sobre los derechos de las poblaciones indígenas, el Comité recomienda que el Estado
Parte finalice la demarcación de las tierras indígenas para 2007. Asimismo, el Comité recomienda que el Estado Parte adopte medidas
urgentes para reconocer y proteger en la práctica el derecho de las poblaciones indígenas a poseer, explotar, controlar y utilizar sus tierras,
territorios y recursos. En este sentido, el Comité invita al Estado Parte a que informe sobre la solución de los casos de intereses contra-
puestos en relación con tierras y recursos indígenas, en particular aquellos en que se ha desplazado a grupos indígenas de sus tierras.” Alto
Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos et al. Compilación de observaciones finales del Comité para la Eliminación de
la Discriminación Racial sobre países de América Latina y el Caribe (1970-2006). Disponível em: https://www2.ohchr.org/english/bodies/
cerd/docs/CERD-concluding-obs.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.
144
“El Comité invita al Estado Parte a seguir prestando la atención que corresponde a las necesidades específicas de esta población. Re-
comienda que el Estado Parte adopte las medidas necesarias para que las tierras de los indígenas no sean invadidas y para que sean la
restituidas aquellas que hayan sido ocupadas por no indígenas. [...] El Comité recomienda que el Estado Parte intensifique sus esfuerzos
para lograr la distribución justa y equitativa de la tierra, teniendo en cuenta las necesidades de la población indígena. El Comité subraya
la importancia que tiene la tierra para los pueblos indígenas y para su identidad espiritual y cultural, así como el hecho de que los pueblos
indígenas tienen un concepto distinto del uso y de la propiedad de la tierra. A este respecto, revestiría gran importancia la aprobación por
parte de la Asamblea Legislativa de la Ley para el desarrollo autónomo de los pueblos indígenas”. Alto Comissário das Nações Unidas para
os Direitos Humanos et al. Compilación de observaciones finales del Comité para la Eliminación de la Discriminación Racial sobre países
de América Latina y el Caribe (1970-2006). Disponível em: https://www2.ohchr.org/english/bodies/cerd/docs/CERD-concluding-obs.pdf.
Acesso em: 16 maio 2021.
145
“Teniendo en cuenta su recomendación general 23 relativa a los derechos de los pueblos indígenas, en particular el párrafo 5, el Comité
exhorta al Estado parte a que tome medidas que reconozcan y protejan los derechos de los pueblos indígenas a poseer, explotar, controlar
y utilizar sus tierras y territorios. En los casos en que se les ha privado de sus tierras y territorios, de los que tradicionalmente eran dueños,
o se hayan ocupado o utilizado esas tierras y territorios sin el consentimiento libre e informado de aquellas poblaciones, el Comité reco-
mienda al Estado Parte que adopte medidas para que dichas tierras les sean devueltas. El Comité asimismo urge a que agilice el proceso
de adopción del proyecto de la Ley de Catastro Nacional para que se identifiquen y demarquen las tierras comunales indígenas.” Alto
Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos et al. Compilación de observaciones finales del Comité para la Eliminación de
la Discriminación Racial sobre países de América Latina y el Caribe (1970-2006). Disponível em: https://www2.ohchr.org/english/bodies/
cerd/docs/CERD-concluding-obs.pdf. Acesso em: 16 maio 2021.

672
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

Do mesmo modo, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos reconhece a suma importância da


legislação nacional e constitucional específica dos países, tendo em vista que o direito de propriedade
dos territórios tradicionais não pode ser interpretado de forma isolada, devendo levar em consideração
o conjunto do sistema jurídico interno dos países.146

7. DIREITO À PARTICIPAÇÃO E À CONSULTA

7.1. Embasamento Legal e Interpretativo

O direito à participação dos Povos Indígenas é protegido e garantido como o direito de participar da
vida política, social e cultural do Estado e da adoção de decisões que afetem os seus direitos, conforme
previsto nos artigos 5 e 18, da DNUDPI, e também amplamente previsto e garantido nos artigos VI, XXI.2
e XXIII, da DADPI, assim como no artigo 231, caput, da CF/88.
Com isso, os Povos Indígenas têm garantido legalmente o direito à participação: i) na elaboração dos
programas econômicos e sociais que lhes dizem respeito e a administrar tais programas através de
suas próprias instituições, de acordo com o artigo 23, da DNUDPI, e no artigo XXIX, da DADPI; ii) na
formulação, implementação e avaliação de planos de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis
de afetá-los diretamente, artigo 7, da Convenção nº 169 da OIT; iii) nos processos de adjudicação de
direitos sobre suas terras e territórios, art. 27, da DNUDPI; iv) na utilização, administração e conservação
dos recursos naturais, art. 15, da Convenção nº 169 da OIT.
Na normativa brasileira, a exploração de recursos naturais necessita da participação dos Povos Indí-
genas, conforme § 3º, do artigo 231, da CF/88; assim como é assegurado aos Povos Indígenas a sua
participação no processo de demarcação de suas terras, presente no § 3º, do art. 2º, do Decreto nº
1.775 de 1996, sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas;147 também,
a Lei sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos de 1997, determina que a formação do Comitê
de Bacia Hidrográfica terá a participação de representantes das comunidades indígenas ali residentes
ou com interesses na bacia em questão;148 e, ainda, a Portaria da Fundação Nacional do Índio nº
116 de 2012, em seus artigos 2º e 3º, garante a participação coletiva e/ou individual de indígenas no
processo demarcatório.149
A normativa internacional garante que no caso de decisões estatais que possam afetar os Povos Indí-
genas, a eles é garantido o direito de serem consultados, nos seguintes casos:

146
CIDH. Argumentos perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Yakye Axa v. Paraguai. Sentença de 17 de junho de 2005.

BRASIL. Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996. Dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas e
147

dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d1775.htm.
Acesso em: 30 abr. 2021.
148
BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento
de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990,
que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Brasília, DF: Presidência da República, 1997. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm#:~:text=L9433&text=LEI%20N%C2%BA%209.433%2C%20DE%208%20DE%20JANEIRO%20DE%20
1997.&text=Institui%20a%20Pol%C3%ADtica%20Nacional%20de,o%20inciso%20XIX%20do%20art.&text=1%C2%BA%20da%20
Lei%20n%C2%BA%208.001,28%20de%20dezembro%20de%201989. Acesso em: 30 abr. 2021.
149
BRASIL. Fundação Nacional do Índio. Portaria nº 116, de 14 de fevereiro de 2012. Estabelece diretrizes e critérios a serem observados
na concepção e execução das ações de demarcação de terras indígenas. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, nº 33, p. 27, 15 fev.
2012. Disponível em: https://pesquisa.inºgov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=27&data=15/02/2012. Acesso em: 30
abr. 2021.

673
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

i) antes que o Estado adote ou aplique leis ou medidas administrativas que possam afetá-los direta-
mente, conforme artigo 19, da DNUDPI, no artigo XXIII.2, da DADPI, e no artigo 6.1 da Convenção nº 169
da OIT, tais como as que buscam:
● combater preconceitos, acabar com a discriminação e promover a tolerância, a compreensão e
as boas relações entre os Povos Indígenas e todos os demais setores da sociedade;
● proteger crianças indígenas contra a exploração econômica e contra todo trabalho potencialmente
● perigoso ou que possa interferir em sua educação;
● criar programas e serviços de educação e formação profissional.150
ii) antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particular-
mente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos naturais, art. 32.2, da
DNUDPI, e no artigo XXIX, da DADPI;
iii) antes de autorizar ou empreender qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos
naturais que se encontrem nas terras em que habitam, art. 15.2, da Convenção nº 169 da OIT;
iv) antes de utilizar as terras ou territórios indígenas para atividades militares, art. 30, da DNUDPI, e no
artigo XXX.5, da DADPI.
Dentro da normativa brasileira, também se destaca o dever de consulta à comunidade indígena no
caso de indivíduo indígena suspeito ou acusado de crime, conforme preconiza o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), na Resolução nº 287, de 2019:

O indivíduo indígena suspeito ou acusado de crime pertence a um povo no qual há um sistema


sociocultural distinto daquele da sociedade envolvente. Para compreender esse sistema é neces-
sário olhar para toda a comunidade, respeitando seu direito a participar nos processos de tomada
de decisão que a afetem.

Além disso, por mais que o processo criminal se volte contra a figura do indivíduo, ele necessa-
riamente tem efeitos sobre toda a comunidade, seja pela maior estigmatização da comunidade
por conta da conduta de um membro ter sido criminalizada, seja pelos impactos financeiros para
acompanhar o andamento do processo ou mesmo pelas funções na comunidade que deixarão de
ser cumpridas caso a pessoa condenada tenha que cumprir uma pena ou uma medida cautelar.

Assim, considerando que os povos indígenas têm o direito de determinar livremente suas relações
com o Estado onde vivem e também de participar de processos que os afetem, a consulta da auto-
ridade judicial à comunidade indígena não só permite que sejam tomadas decisões mais contex-
tualizadas e bem fundamentadas, mas é um ato de respeito ao direito da comunidade como um
todo de ser ouvida. Assegurar à comunidade um papel ativo nos eventos em que ela se vê envol-
vida auxilia, ainda, na manutenção e no fortalecimento das suas instituições, culturas e práticas.

Trata-se de entender que a partir da Constituição Federal de 1988 ocorreu não só uma mudança
no paradigma epistemológico – o qual reconheceu o caráter pluriétnico do Estado e o direito dos
povos indígenas à sua organização social – mas também uma mudança metodológica, que diz
respeito ao modo pelo qual a autoridade judicial conduz os processos envolvendo pessoas indí-

DPLF. Manual para defender os direitos dos Povos Indígenas e tradicionais. Washington, D.C.: DPLF, 2018. p. 21.
150

674
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

genas. É nesse sentido que se afirma que os procedimentos criminais envolvendo réus, acusados
ou condenados indígenas devem incluir a consulta às suas comunidades.151

De acordo com Anaya, a boa-fé deve preponderar na elaboração de um acordo, pois a consulta não
pode ser simplesmente uma questão de informar as comunidades indígenas sobre as medidas que os
afetarão; pelo contrário: os processos de consulta devem ser elaborados para permitir aos Povos Indí-
genas a oportunidade genuína de influenciar as decisões que afetam seus interesses. Para tanto, são
necessárias salvaguardas processuais que levem em consideração os próprios mecanismos de tomada
de decisão dos Povos Indígenas, incluindo costumes e estruturas organizacionais.152
As normas internacionais estabelecem diretrizes sobre como devem ser realizadas as consultas aos
povos indígenas: devem ser prévias (antes de aprovar a lei, a medida administrativa, o plano de desen-
volvimento ou o projeto de exploração ou aproveitamento), livres (sem pressão ou ressalvas) e infor-
madas (sobre as consequências do projeto, plano, lei ou medida). Além disso, devem ser feitas através
de procedimentos culturalmente adequados, ou seja, levando em consideração as tradições e através
de suas instituições representativas.153
Ainda segundo Anaya, o direito internacional não exige nem permite nenhuma forma particular de
acomodação estrutural para todos os Povos Indígenas, pois a própria diversidade das culturas indígenas
impede uma fórmula padrão de consulta.154
Entretanto, na prática, a CIDH, em informe temático de 2019 sobre a situação dos Direitos Humanos
dos Povos Indígenas e Tribais da região da Panamazônia, destacou haver no Brasil uma interpretação
restritiva do direito à consulta, na medida em que não seria aplicado em todas as medidas legislativas e
administrativas que possam afetar direta ou indiretamente aos Povos Indígenas.
O informe também alertou a realização de meras reuniões e não de consulta prévia na fase de licencia-
mento de projetos e empreendimentos. A CIDH afirmou que tais reuniões não atenderiam aos padrões
estabelecidos no Sistema Interamericano, o que seria evidenciado na ausência de informações sobre o
projeto, seus impactos e medidas de mitigação, assim como a falta de relatórios traduzidos para a língua
indígena e de comunicados culturalmente apropriados.155
O que também é afirmado pela Corte IDH nos casos do Povo Saramaka Vs. Suriname156 e dos Povos
Kaliña e Lokono Vs. Suriname,157 em que constatou violações ao direito à consulta, mas o Estado tem o
dever de consultar ativamente a comunidade, de acordo com seus costumes e tradições, para garantir
a participação efetiva dos Povos Indígenas, sendo que, também, a consulta é um dever do Estado e é
ele quem deve exercer, não podendo delegar este direito.

151
CNJ. Manual Resolução 287/2019. Procedimentos relativos a pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade.
Orientações a Tribunais e Magistrados para cumprimento da Resolução 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça. Brasília, DF: CNJ, 2019.
p. 17.
152
ANAYA, James S. International Human Rights and Indigenous Peoples: the move toward the Multicultural State. Arizona Journal of Inter-
national & Comparative Law v. 21, nº 1, p. 13-61, 2004. p. 55.
153
DPLF. Manual para defender os direitos dos Povos Indígenas e tradicionais. Washington, D.C.: DPLF, 2018. p. 21.
154
ANAYA, James S. International Human Rights and Indigenous Peoples: the move toward the Multicultural State. Arizona Journal of Inter-
national & Comparative Law v. 21, nº 1, p. 13-61, 2004. p. 60.
155
CIDH. Situación de los derechos humanos de los pueblos indígenas y tribales de la Panamazonía. Aprobado por la Comisión Inte-
ramericana de Derechos Humanos el 29 de septiembre de 2019. Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Panamazo-
nia2019.pdf. Acesso em: 07 mai. 2021.
156
CORTE IDH. Caso del Pueblo Saramaka Vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de
noviembre de 2007.
157
CIDH. Caso Pueblos Kaliña y Lokono Vs. Surinam. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 25 de noviembre de 2015.

675
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

7.2. Direito ao consentimento livre, prévio e informado

Aos povos indígenas também é garantido o direito ao consentimento livre, prévio e informado. O
artigo 19 da DNUDPI afirma que todos os Estados devem consultar e cooperar de boa-fé com os Povos
Indígenas por meio de suas instituições representativas para obter este consentimento. Casos que
envolvem operações de mineração e gás de petróleo, exploração madeireira, estabelecimento de áreas
protegidas, barragens, plantações agroindustriais, reassentamento, tomadas obrigatórias, geralmente
são aqueles em que se faz necessária a consulta livre, prévia e informada, o que não obsta a necessidade
do consentimento em outras empreitadas que atinjam os Povos Indígenas.
O consentimento livre, prévio e informado é afirmado na DNUDPI em relação ao deslocamento dos
Povos Indígenas de suas terras e territórios (art. 10); reparação de propriedade cultural e intelectual,
religiosos e espirituais que foram privados sem seu consentimento (art. 11.2); a adoção e aplicação
de medidas legislativas e administrativas que podem afetar os Povos Indígenas (art. 19); à reparação
por terras, territórios ou recursos que foram privados sem o seu consentimento (art. 28.1); o armaze-
namento ou descarte de materiais perigosos em suas terras ou territórios (art. 29.2); a aprovação de
projetos de desenvolvimento que pode afetar suas terras ou territórios ou outros recursos (art. 32.2); e
facilitar o exercício e garantir a implementação do direito de manter e desenvolver contatos, relações e
cooperação com seus próprios membros assim como com outras pessoas fora de suas fronteiras (36.1).
Segundo a DADPI, podemos trazer, a título exemplificativo, que a exploração dos recursos naturais em
terras indígenas exige o consentimento livre, prévio e informado das comunidades afetadas (XXIX.4).
De acordo com a Convenção nº 169 da OIT, o consentimento é obrigatório nos seguintes casos: explo-
ração de recursos naturais em suas terras (15.2); quando excepcionalmente for necessário o traslado dos
Povos Indígenas (16.2); em caso de transferência do título de suas propriedades (17.2); e em programas
de treinamento ou formação profissional (22.3).
Neste sentido, os Povos Indígenas brasileiros têm o direito incontestável de serem consultados previa-
mente em relação a qualquer medida que afete suas vidas, conforme entendimento consolidado na
Corte IDH, no caso do povo indígena Kichwa de Sarayaku v. Equador,158 bem como no próprio artigo
231, caput, da CF/88.159 A mesma Corte já decidiu que o direito de ser consultado independe do fato de


158
“166. A obrigação de consultar as comunidades e povos indígenas e tribais sobre toda medida administrativa, ou legislativa, que afete
seus direitos reconhecidos na legislação interna e internacional, bem como a obrigação de assegurar os direitos dos povos indígenas de
participar das decisões dos assuntos que digam respeito a seus interesses, está em relação direta com a obrigação geral de garantir o livre
e pleno exercício dos direitos reconhecidos na Convenção (artigo 1.1). Isso implica o dever de organizar, adequadamente, todo o aparato
governamental e, em geral, todas as estruturas mediante as quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira que sejam ca-
pazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos.216 O acima exposto implica a obrigação de estruturar as normas
e instituições de modo que a consulta às comunidades indígenas, autóctones, nativas, ou tribais, possa ser realizada, efetivamente, em
conformidade com as normas internacionais na matéria.217 Desse modo, os Estados devem incorporar essas normas aos processos de
consulta prévia, de maneira a gerar canais de diálogos sustentados, efetivos e confiáveis com os povos indígenas nos procedimentos
de consulta e participação por meio de suas instituições representativas”. IACHR. Case of Kichwa Indigenous People of Sarayaku v.
Ecuador. Merits and reparations. Judgment of June 27, 2012. Series C No. 245.
159
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
30 abr. 2021.

676
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

a terra que ocupam estar ou não demarcada.160 Além disso, também determinou que o direito à terra
torna-se sem sentido se os povos que a ocupam não tiverem controle dos recursos nela existentes, o
que é decorrência do seu direito à autodeterminação.161
A despeito de previsão legal específica que exige o consentimento livre, prévio e informado, no Brasil,
o Decreto que institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas, de 2006, estabelece como
estratégias nacionais a garantia do do consentimento livre, prévio e informado para os Povos Indígenas,
inclusive em situações de reassentamento ou restrição de uso da terra ou dos recursos biológicos por
Comunidades Indígenas.162
A consulta, e em alguns casos o consentimento, devem ser não apenas prévios, mas livres e informados.
As diretrizes do Programa das Nações Unidas para redução de emissões geradas pelo desmatamento
e pela degradação das florestas (UN-REDD) definem, de forma clara, o que cada um destes requisitos
significa e implica:163
i) “Livre” refere-se a um consentimento dado voluntariamente e ausente de “coerção, intimidação ou
manipulação”, seja do Estado ou de qualquer outro terceiro, devendo prevalecer a boa-fé164. Refere-se
também a um processo que é autodirigido pela comunidade de quem o consentimento é procurado,
livre de coação, expectativas ou cronogramas que são impostos externamente. Assim, devem-se
observar as seguintes condições:

160
“109. (1) the traditional possession by the indigenous peoples of their lands has the same effects as a title of full ownership granted by the
State; (2) traditional ownership grants the indigenous peoples the right to demand official recognition of their ownership and its registra-
tion; (3) the State must delimit, demarcate and grant collective title to the lands to the members of the indigenous communities”. IACHR.
Case of the Xákmok Kásek Indigenous Community. v. Paraguay. Merits, Reparations and Costs. Judgment of August 24, 2010. Series
C No. 214.
“151. possession of the land should suffice for indigenous communities lacking real title to property of the land to obtain official recognition of
that property, and for consequent registration”. IACHR. Case of the Mayagna (Sumo) Awas Tingni Community v. Nicaragua. Merits,
Reparations and Costs. Judgment of August 31, 2001. Series C No. 79.


161
“122. the right to use and enjoy their territory would be meaningless in the context of indigenous and tribal communities if said right were
not connected to the natural resources that lie on and within the land. That is, the demand for collective land ownership by members
of indigenous and tribal peoples derives from the need to ensure the security and permanence of their control and use of the natural
resources, which in turn maintains their very way of life. This connectedness between the territory and the natural resources necessary
for their physical and cultural survival is precisely what needs to be protected under Article 21 of the Convention in order to guarantee
the members of indigenous and tribal communities’ right to the use and enjoyment of their property. From this analysis, it follows that
the natural resources found on and within indigenous and tribal people’s territories that are protected under Article 21 are those natural
resources traditionally used and necessary for the very survival, development and continuation of such people’s way of life”. IACHR. Case
of the Saramaka People. v. Suriname. Preliminary Objections, Merits, Reparations, and Costs. Judgment of November 28, 2007 Series C
No. 172.
162
BRASIL. Decreto nº 5.758, de 13 de abril de 2006. Institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas - PNAP, seus princípios, di-
retrizes, objetivos e estratégias, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5758.htm. Acesso em: 30 abr. 2021.
163
O Programa UN-REDD é a iniciativa colaborativa das Nações Unidas para a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Flo-
restal (REDD +) em países em desenvolvimento. O Programa foi lançado em 2008 e se baseia na função de convocação e na experiência
técnica da Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi-
mento (PNUD) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). O Programa UN-REDD apoia processos de REDD +
liderados nacionalmente e promove o envolvimento informado e significativo de todas as partes interessadas, incluindo Povos Indígenas
e outras comunidades dependentes da floresta, na implementação nacional e internacional de REDD +. UN-REDD Programme Guideli-
nes on Free, Prior, and Informed Consent, 2013. Disponível em: https://www.uncclearnºorg/sites/default/files/inventory/un-redd05.pdf
Acesso em: 15 mai. 2021.
164
Sendo que a boa-fé consiste, além de impedir que o Estado ou qualquer outro terceiro, haja coercitivamente ou manipulando a Comu-
nidade envolvida, “além disso, a mesma consulta de boa-fé é incompatível com práticas como tentativas de desintegrar a coesão social
das comunidades afetados, seja por meio da corrupção de líderes comunitários ou pelo estabelecimento de lideranças paralelamente, ou
por meio de negociações com membros individuais das comunidades que são contrárias aos padrões internacionais”, pois senão o proce-
dimento de consulta é mera formalidade. IACHR. Case of Kichwa Indigenous People of Sarayaku v. Ecuador. Merits and reparations.
Judgment of June 27, 2012. Series C No. 245. par. 186.

677
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

● As partes interessadas determinam o processo, o cronograma e a estrutura de tomada de decisão;


● As informações são transparentes e objetivamente apresentadas a pedido das partes interessadas;
● O processo é livre de coação, viés, condições, suborno ou recompensas;
● Reuniões e decisões ocorrem em locais e horários e em idiomas e formatos determinados pelas
partes interessadas; e
● Todos os membros da comunidade são livres para participar independentemente do sexo,
idade ou permanência165.
ii) “Prévio” significa que o consentimento é buscado com antecedência suficiente a qualquer autorização
ou início de atividades. O termo refere-se a um período de antecedência a uma atividade ou processo
a respeito dos quais o consentimento deve ser solicitado, bem como o período entre o momento em
que o consentimento é solicitado e o momento em que é dado ou recusado. “Prévio” ainda refere-se
aos estágios iniciais de um plano de desenvolvimento ou de investimento, não só quando é necessário
obter aprovação da comunidade.
● Prévio implica que seja dado tempo para entender, acessar e analisar informações sobre a
atividade proposta. O montante de tempo necessário dependerá dos processos de tomada de
decisão dos titulares de direitos;
● As informações devem ser fornecidas antes que as atividades possam ser iniciadas ou no
início de uma atividade, processo ou fase de implementação, incluindo conceituação, design,
proposta, informação, execução e avaliação seguinte; e
● O cronograma de tomada de decisão estabelecido pelos detentores dos direitos deve ser
respeitado, à medida que se retira o necessário para entender, analisar e avaliar as ações sob
consideração de acordo com seus próprios costumes166.
iii) “Informado” refere-se principalmente à natureza do engajamento e ao tipo de informação que deve
ser fornecido antes de buscar o consentimento e também como parte do processo de consentimento
em curso. A informação deve ser:
● Acessível, clara, consistente, precisa, constante e transparente;
● Entregue em linguagem e formato culturalmente apropriados (incluindo rádio, vídeo, gráficos,
documentários, fotos, apresentações orais);


165
Sobre este requisito, a Corte Interamericana manifestou-se da seguinte forma: “A consulta tampouco deve se esgotar num mero trâmite
formal, mas deve ser concebida como “um verdadeiro instrumento de participação”, “que deve responder ao objetivo último de esta-
belecer um diálogo entre as partes, baseado em princípios de confiança e respeito mútuos, e com vistas a alcançar um consenso entre
elas”. Nesse sentido, é inerente a toda consulta com comunidades indígenas o estabelecimento de “um clima de confiança mútua”, e a
boa-fé exige a ausência de qualquer tipo de coerção por parte do Estado, ou de agentes, ou terceiros que atuem com sua autorização ou
aquiescência. Além disso, a mesma consulta, com boa-fé, é incompatível com práticas como as intenções de desintegração da coesão
social das comunidades afetadas, seja mediante a corrupção dos líderes comunais ou do estabelecimento de lideranças paralelas, seja por
meio de negociações com membros individuais das comunidades, contrárias às normas internacionais. Do mesmo modo, a legislação e a
jurisprudência nacional de Estados da região247 têm-se referido a esse requisito de boa-fé”. IACHR. Case of Kichwa Indigenous People
of Sarayaku v. Ecuador. Merits and reparations. Judgment of June 27, 2012. Series C No. 245. par. 186.

Sobre a antecedência da consulta, a Corte Interamericana manifestou-se nos seguintes termos:


166

“Sobre o assunto, este Tribunal observou que se deve consultar, em conformidade com as próprias tradições do povo indígena, nas primeiras
etapas do plano de desenvolvimento, ou investimento, e não unicamente quando surja a necessidade de obter a aprovação da comunida-
de, se fosse o caso, pois o aviso antecipado permite um tempo adequado para a discussão interna nas comunidades, e para oferecer uma
adequada resposta ao Estado”. IACHR. Case of Kichwa Indigenous People of Sarayaku v. Ecuador. Merits and reparations. Judgment
of June 27, 2012. Series C No. 245. par. 180.

678
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

● Objetiva, cobrindo o potencial positivo e negativo das atividades de REDD+ e as consequências


de dar ou reter o consentimento;
● Completa, abrangendo o espectro de potenciais impactos sociais, financeiros, políticos,
culturais e ambientais, incluindo informações científicas com acesso a fontes originais na
linguagem apropriada;
● Entregue de uma maneira que fortaleça e não desestrutura as culturas indígenas ou locais;
● Entregue por pessoal culturalmente apropriado, em locais culturalmente apropriados, e incluir
capacitação de instrutores indígenas ou locais;
● Entregue com tempo suficiente para ser entendido e verificado;
● Alcance as comunidades rurais mais remotas, as mulheres e os marginalizados; e
● Fornecido de forma contínua e ao longo do processo de consentimento167.
iv) “Consentimento” refere-se à decisão coletiva tomada pelos titulares de direitos e obtida através
dos processos de tomada de decisão habituais dos povos ou comunidades afetados. O consentimento
deve ser buscado, concedido ou negado de acordo com a dinâmica político-administrativa formal ou
informal única de cada comunidade. O consentimento é:
● Uma decisão livremente dada que pode ser um “Sim” ou um “Não”, incluindo a opção de recon-
siderar se as mudanças propostas forem alteradas ou se surgirem novas informações relevantes
para as ações propostas;
● Uma decisão coletiva determinada pelos povos afetados (por exemplo, consenso, maioria, etc.)
de acordo com seus próprios costumes e tradições;
● A expressão de direitos (autodeterminação, terras, recursos e territórios, cultura); e


167
Sobre o requisito da informação especialmente em relação aos estudos de impacto ambiental, este foi o pronunciamento da Corte Inte-
ramericana:
“Este Tribunal estabeleceu, em outros casos, que as consultas a povos indígenas devem-se realizar mediante procedimentos culturalmen-
te adequados, isto é, em conformidade com suas próprias tradições.” […] “a Corte determinou que os Estudos de Impacto Ambiental
“servem para avaliar o possível dano, ou impacto, que um projeto de desenvolvimento, ou investimento, pode ter sobre a propriedade e
comunidade em questão. O objetivo desses [estudos] não é [unicamente] ter alguma medida objetiva do possível impacto sobre a terra
e as pessoas, mas também [...] assegurar que os membros do povo [...] tenham conhecimento dos possíveis riscos, inclusive os riscos
ambientais e de salubridade”, para que possam avaliar se aceitam o plano de desenvolvimento ou investimento proposto, “com conhe-
cimento e de forma voluntária”. […] “Por outro lado, a Corte estabeleceu que os Estudos de Impacto Ambiental devem ser realizados
conforme as normas internacionais e boas práticas pertinentes;273 respeitar as tradições e a cultura dos povos indígenas; e ser concluídos
previamente à outorga da concessão, já que um dos objetivos da exigência desses estudos é garantir o direito do povo indígena de ser
informado acerca de todos os projetos propostos em seu território.274 Portanto, a obrigação do Estado de supervisionar os Estudos de
Impacto Ambiental coincide com seu dever de garantir a efetiva participação do povo indígena no processo de outorga de concessões.
Além disso, o Tribunal acrescentou que um dos pontos sobre os quais deveria tratar o estudo de impacto social e ambiental é o impacto
acumulado que tem gerado os projetos existentes, e os que gerarão os projetos que tenham sido propostos”. IACHR. Case of Kichwa
Indigenous People of Sarayaku v. Ecuador. Merits and reparations. Judgment of June 27, 2012. Series C No. 245. Para. 201, 204-206.

679
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

● Dado ou negado em fases, em períodos específicos de tempo ou fases distintas de REDD +.


Não é um processo de um único estágio168169.
Também, cumpre salientar que o direito ao consentimento livre, prévio e informado está anexado ao
direito da autodeterminação ou livre determinação, pois:

Os requisitos processuais para consultas e consentimento livre, prévio e informado, respectiva-


mente, são semelhantes. No entanto, o direito de consentimento livre, prévio e informado precisa
ser compreendido no contexto do direito dos Povos Indígenas à autodeterminação, por se trata
de um elemento integral desse direito. [...] O dever do Estado de obter o consentimento livre,
prévio e informado dos Povos Indígenas dá aos Povos Indígenas o direito de determinar efetiva-
mente o resultado da tomada de decisão que os afeta, não apenas o direito de se envolver em
tais processos. O consentimento é um elemento significativo do processo de tomada de decisão
obtido através de consulta e participação genuínas. Assim, o dever de obter o consentimento livre,
prévio e informado dos Povos Indígenas não é apenas um processo processual, mas um meca-
nismo substantivo para garantir o respeito aos direitos dos Povos Indígenas170. (tradução nossa).

No caso de os Povos Indígenas negarem-se a consentir com as medidas em relação às quais foram
consultados, entendemos que os Estados devem respeitar a decisão resultante da consulta, sobretudo
quando as informações levantadas demonstrarem impactos e riscos adversos e irreparáveis às comuni-
dades que ameacem o livre e pleno gozo dos demais direitos coletivos e individuais que lhes são asse-
gurados. Esta foi também a posição adotada pela Organização Nacional Indígena da Colômbia (ONIC),
segundo a qual os Povos Indígenas podem se opor aos projetos de desenvolvimento em grande escala
quando representam afetações a eles. A ONIC traz como exemplos: a “[...] perda de territórios, despejo,
migração e reassentamento, esgotamento de recursos para subsistência física e cultural, destruição e
contaminação meio ambiente, desorganização social e comunitária, impactos na saúde ou nutrição
negativa, abuso e violência.”171 (tradução nossa)

168
A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou inválido, para fins de consulta prévia, o plano de impacto ambiental no caso do
Povo Indígena Kichwa de Sarayaku pois: “No presente caso, a Corte observa que o plano de impacto ambiental: a) foi realizado sem a par-
ticipação do Povo Sarayaku; b) foi realizado por uma entidade privada, subcontratada pela empresa petrolífera, sem que conste que tenha
sido submetido a um controle estrito posterior por parte de órgãos estatais de fiscalização; e c) não levou em conta a influência social,
espiritual e cultural que as atividades de desenvolvimento previstas podiam ter sobre o Povo Sarayaku. Portanto, o Tribunal conclui que o
plano de impacto ambiental não foi realizado em conformidade com o disposto em sua jurisprudência ou com as normas internacionais
sobre a matéria”. IACHR. Case of Kichwa Indigenous People of Sarayaku v. Ecuador. Merits and reparations. Judgment of June 27, 2012.
Series C No. 245. par. 207 and 211.
169
UN-REDD Programme Guidelines on Free, Prior, and Informed Consent, 2013. p. 18-20. Disponível em: https://www.uncclearnºorg/
sites/default/files/inventory/un-redd05.pdf. Acesso em: 15 mai. 2021.
170
“20. As mentioned above, the right to free, prior and informed consent is embedded in the right to self-determinationº The procedural
requirements for consultations and free, prior and informed consent respectively are similar. Nevertheless, the right of free, prior and
informed consent needs to be understood in the context of indigenous peoples’ right to self-determination because it is an integral ele-
ment of that right. 21. The duty of the State to obtain indigenous peoples’ free, prior and informed consent entitles indigenous peoples to
effectively determine the outcome of decision-making that affects them, not merely a right to be involved in such processes. Consent is a
significant element of the decision-making process obtained through genuine consultation and participationº Hence, the duty to obtain
the free, prior and informed consent of indigenous peoples is not only a procedural process but a substantive mechanism to ensure the
respect of indigenous peoples’ rights”. Relatório final sobre o estudo sobre os Povos Indígenas e o direito de participar na tomada de
decisões. A/HRC/18/42, 17 de agosto de 2011, par. 20 e 21. Disponível em: https://undocs.org/A/HRC/18/42. Acessado em: 15 mai. 2021.


171
“[...] pérdida de territorios, desalojo, migración y reasentamiento, agotamiento de recursos para la subsistencia física y cultural, destruc-
ción y contaminación del ambiente, desorganización social y comunitaria, impactos sanitarios o nutricionales negativos, abusos y violên-
cia”. POPOLO, Fabiana Del(ed.). Los pueblos indígenas en América (Abya Yala): desafíos para la igualdad en la diversidad, Libros de la
CEPAL, N° 151 (LC/PUB.2017/26), Santiago, Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), 2017. p. 83.

680
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

8. DIREITO A SEUS PRÓPRIOS SISTEMAS DE JUSTIÇA

8.1. Parâmetros Legais e Interpretativos

O direito dos Povos Indígenas a seus próprios Sistemas de Justiça originalmente era interpretado com
base nos Pactos de 1966 (artigo 1º do PIDESC e artigo 1 do PIDCP)172. Segundo Anaya,173 o direito dos
Povos Indígenas de manter e desenvolver seus próprios Sistemas de Justiça, ou como ele denomina de
“direito consuetudinário de autogoverno”, decorre do princípio da autodeterminação, juntamente com
outros princípios de direitos humanos, como o da integridade cultural.
A garantia no direito internacional aos Povos Indígenas a seus próprios Sistemas de Justiça, encontra-se
expressa nos artigos 8.2 e 91, da Convenção nº 169 da OIT; no artigo 34, da DNUDPI; e nos artigos VI,
XXII.1 e 2, XXXIV, da DADPI. No México, o Código de Processo Penal de Oaxaca reconhece as decisões
tomadas pelas comunidades com base em seu próprio sistema de justiça e extingue o processo penal
em relação a crimes que afetem bens jurídicos próprios de um povo indígena.174
No Brasil, a Resolução do CNJ nº 287, de 2019, sobre os procedimentos relativos às pessoas indígenas
acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, determina que se deve considerar primeiramente
os mecanismos próprios da comunidade indígena, conforme os artigos 7º, 8º e 9º:

Art. 7º A responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da


comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada, mediante consulta prévia.

Parágrafo único. A autoridade judicial poderá adotar ou homologar práticas de resolução de


conflitos e de responsabilização em conformidade com costumes e normas da própria comuni-
dade indígena, nos termos do art. 57 da Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio).

Art. 8º Quando da imposição de qualquer medida cautelar alternativa à prisão, a autoridade judicial
deverá adaptá-la às condições e aos prazos que sejam compatíveis com os costumes, local de
residência e tradições da pessoa indígena, observando o Protocolo I da Resolução CNJ nº 213/2015.

Art. 9º Excepcionalmente, não sendo o caso do art. 7º, quando da definição da pena e do regime de
cumprimento a serem impostos à pessoa indígena, a autoridade judicial deverá considerar as carac-
terísticas culturais, sociais e econômicas, suas declarações e a perícia antropológica, de modo a:

I - aplicar penas restritivas de direitos adaptadas às condições e prazos compatíveis com os


costumes, local de residência e tradições da pessoa indígena;

II - considerar a conversão da multa pecuniária em prestação de serviços à comunidade, nos


termos previstos em lei; e

172
ANAYA, James S. International Human Rights and Indigenous Peoples: the move toward the Multicultural State. Arizona Journal of Inter-
national & Comparative Law v. 21, nº 1, p. 13-61, 2004.
173
ANAYA, James S. International Human Rights and Indigenous Peoples: the move toward the Multicultural State. Arizona Journal of Inter-
national & Comparative Law v. 21, nº 1, p. 13-61, 2004.


174
Para maiores informações, consultar: DPLF. La protección de los derechos de los Pueblos indígenas a través de un nuevo sistema de
justicia penal: Estados de Oaxaca, Chiapas, Guerrero. 2012.

681
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

III - determinar o cumprimento da prestação de serviços à comunidade, sempre que possível e


mediante consulta prévia, em comunidade indígena.175

A Convenção nº 169 da OIT, em seu artigo 12, determina que sobre a relação dos povos indígenas com
sistemas de justiça estaduais, os Estados devem garantir, sem qualquer discriminação, o acesso a proce-
dimentos legais aos membros das comunidades indígenas. Dessa forma, deverão tomar medidas para
garantir que os Povos Indígenas possam compreender e serem compreendidos no processo. Para isso,
facilitarão, quando necessário, intérpretes ou outros meios eficazes para possibilitar a compreensão
dos procedimentos. A garantia de ter um intérprete, em todas as etapas do processo, no Brasil, encon-
tra-se disposta no art. 5º, da Resolução do CNJ nº 287 de 2019.176
Além disso, Convenção nº 169 da OIT, em seu artigo 10, estabelece que os tribunais chamados a se
pronunciar sobre questões penais deverão levar em conta os costumes desses povos e, quando da
imposição de uma pena, deverão levar em consideração as características econômicas, sociais e cultu-
rais do indivíduo, dando preferência a tipos de sanção diferentes do encarceramento. Nesse sentido,
em caso de não ser possível a aplicação dos mecanismos próprios da Comunidade Indígena, o art. 10,
da Resolução do CNJ nº 287 de 2019, também estabelece que a autoridade judiciária deverá sempre
preconizar pelo regime de semiliberdade.177
Já de acordo com o artigo 40, da DNUDPI,178 os povos indígenas têm direito a procedimentos equita-
tivos e justos para a resolução de litígios que surjam entre a comunidade e os Estados. Eles também têm
direito a que as decisões judiciais relativas a essas disputas sejam adotadas prontamente e tenham em
conta seus costumes e tradições, bem como a normas internacionais de direitos humanos.
Neste sentido, também reconhece o CNJ:

O reconhecimento da organização social dos povos indígenas e de suas práticas de justiça não
afasta o dever de garantir aos indígenas o acesso à justiça estatal em condições de igualdade com
os demais cidadãos. Nesse sentido, o relatório da visita oficial ao Brasil da Relatora Especial da
ONU sobre Povos Indígenas, de 2016, recomendou a eliminação das barreiras que impedem os
povos indígenas de realizarem seu direito à justiça.

Ademais, é preciso que o Estado tenha postura ativa na adoção de medidas para reverter a discri-
minação contra pessoas indígenas. Para isso, um mecanismo fundamental é a produção de dados
que auxiliem a identificar onde estão os principais obstáculos e como superá-los. Por esse motivo,
o art. 4º da Resolução CNJ nº 287/2019 estabelece que a autoridade judicial deve incluir no registro
de todos os atos processuais a identificação da pessoa como indígena e informações sobre sua
língua e etnia, especialmente na ata da audiência de custódia. Em sentido análogo, os tribunais
devem garantir que informações sobre identidade indígena, língua e etnia constem nos sistemas
informatizados do Poder Judiciário179.

175
CNJ. Resolução Nº 287, de 25 de junho de 2019. Estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, conde-
nadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário. Brasília,
DF: CNJ, 2019. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_287_25062019_08072019182402.pdf. Acesso em: 30 abr. 2021.
176
Idem.

Idem.
177

178
ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (107ª
sessão) em 13 de setembro de 2007. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Na-
coes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.
179
CNJ. Manual Resolução 287/2019. Procedimentos relativos a pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade.
Orientações a Tribunais e Magistrados para cumprimento da Resolução 287/2019 do Conselho Nacional de Justiça. Brasília, DF: CNJ, 2019.
p. 19.

682
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

Ainda, no caso de mulheres indígenas submetidas à justiça criminal, o CNJ adverte para uma atenção
redobrada de Magistrados e Tribunais, pois as mulheres indígenas sofrem múltiplas formas de discrimi-
nação, e, de modo geral, encontram uma maior dificuldade para acessar seus direitos. Portanto, sempre
devem dar uma atenção ao gênero, pois “para que a autoridade judicial consiga ter elementos para
tratar adequadamente a perspectiva de gênero nos atos processuais, é importante que essa questão
seja submetida à perícia antropológica.”180 Uma vez que, somente assim o juiz poderá ter contato com
a cosmovisão indígena, adequando, assim, “[...] dentro da perspectiva de gênero o procedimento de
consulta à comunidade que irá definir o modo de responsabilização no caso concreto.181
Bem como, o CNJ adverte que medidas privativas de liberdade, no caso de mulheres indígenas, deve
ser a excepcionalidade extrema, pois o papel exercido por muitas, garantem a continuidade da cultura
e a sobrevivência de seus povos, de tal modo que seu aprisionamento afeta a identidade coletiva da
comunidade à qual pertencem e suas práticas tradicionais. Ficando, então, garantido a substituição da
prisão domiciliar para a mulher gestante, mãe ou responsável por crianças ou adultos com deficiência,
nos termos do art. 318-A do Código de Processo Penal, no caso de excepcional decretação de prisão
preventiva, a qual deverá ser cumprida no âmbito da comunidade indígena, conforme o art. 13 da Reso-
lução CNJ 287/2019.182
Por fim, no caso do povo Saramaka Vs. Suriname, a Corte IDH reconheceu que para efetivar o direito à
propriedade coletiva deste povo, o Estado deveria garantir o reconhecimento legal da capacidade jurí-
dica da comunidade, a fim de garantir o acesso à justiça coletivamente, em conformidade com o direito
consuetudinário e as tradições dos Saramaka.183 Tanto é que a CIDH determina que os Estados estão
obrigados a garantir o acesso a um recurso judicial adequado e efetivo para a impugnação de danos
ambientais de maneira coletiva, a fim de se estabelecer mecanismos judiciais de resposta a danos irre-
paráveis a estes grupos, além da esfera penal.184

9. DIREITO À REPARAÇÃO

De acordo com o “Manual para defender os direitos dos Povos Indígenas e tradicionais”, todas as pessoas
e grupos têm o direito à reparação de danos causados pelo não cumprimento das obrigações interna-
cionais pelos Estados, a qual pode assumir formas tais como restituição, indenização ou satisfação.185
A garantia no direito internacional à reparação justa, imparcial e equitativa de danos causados aos
povos indígenas encontra-se expressa nos artigos 11.2, 20.2, 28.1 e 32.3, da DNUDPI;186 e nos artigos

180
Ibidem, p. 33.

Idem.
181

182
Ibidem, p. 34.
183
CORTE IDH. Caso do Povo Saramaka Vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 28 de novembro
de 2007, Série C nº 172.
184
CIDH. Democracia e Direitos Humanos na Venezuela. Doc. OEA/Ser.L/V/II, Doc. 54, 30 de dezembro de 2009, p. 137, Recomendação 7.
185
DPLF. Manual para defender os direitos dos Povos Indígenas e tradicionais. Washington, D.C.: DPLF, 2018. p. 28.
186
ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (107ª
sessão) em 13 de setembro de 2007. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Na-
coes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.

683
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

XIII.2, XXVII.1, XXX.4, alíneas “b” e “c”, e XXXIII, da DADPI.187 No âmbito Convenção nº 169 da OIT, em seus
artigos 15.2, 16.4 e 5,188 preveem casos de direito à indenização dos Povos Indígenas.
Por isso, o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, em sua Recomendação Geral nº 23, esta-
beleceu que, quando os povos indígenas forem privados de seus territórios, sem o procedimento do
consentimento livre e informado, os Estados adotem medidas de restituição destes territórios. Somente
quando não isso for possível por motivos factuais, é que o direito à restituição pode ser substituído por
uma compensação equitativa, justa e imediata, preferencialmente em termos de território.189
Na esfera da Corte IDH, no caso da Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai, além de ordenar ao
Estado delimitar, demarcar, titular e entregar às comunidades indígenas seus territórios ancestrais ou
terras alternativas. A Corte IDH, ordenou também que, enquanto os membros da Comunidade indí-
gena Yakye Axa se encontrarem sem suas terras, o Estado deverá fornecer os bens e serviços básicos
necessários para sua subsistência. Além de que, o Estado ficou obrigado ao pagamento de custas e de
dano material190.
Ainda, recentemente, a Corte IDH, no caso do Povo Indígena Xucuru Vs. Brasil, reconheceu a proprie-
dade coletiva dos Povos Indígenas e o direito à indenização pelos danos sofridos, assegurando a
igualdade e a não discriminação dos Xucuru, bem como prevalecendo a sua proteção e o direito à
reparação191. Demonstrando-se o direito à reparação, uma ferramenta importante para sanar danos a
processos históricos de injustiças aos Povos Indígenas.

10. CRIME DE GENOCÍDIO E POVOS INDÍGENAS

10.1. Conceito

As Nações Unidas promulgaram em 1948 a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de


Genocídio, a qual foi ratificada pelo Brasil no ano de 1952.192 Mais recentemente, em 1998, através do
Estatuto de Roma,193 o genocídio foi incluído na categoria ampla dos crimes de atrocidade.

187
OEA. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovada pela Assembleia Geral (3ª sessão) realizada em 15 de
junho de 2016. Disponível em: https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021.
188
BRASIL. Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem
sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Fe-
derativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/
Decreto/D10088.htm#art5. Acesso em: 23 mar. 2021.
189
ONU. Committee on the Elimination of Racial Discriminationº General Recommendation 23: General Recommendation on Indigenous
Peoples, UN Doc A/52/18 Annex V at 52ª Session (1997). par. 6.
190
CORTE IDH. Caso Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai. Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 17 de junho de 2005. Série
C No. 125.

CIDH. Caso Pueblo Indígena Xucuru y sus miembros Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de
191

5 de febrero de 2018. Serie C No. 346.


192
BRASIL. Decreto nº 30.822, DE 6 de maio de 1952. Promulga a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio,
concluída em Paris, a 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Brasília, DF: Presidência
da República, [1952]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1952/D30822.html. Acesso em: 06 nov. 2020.
193
BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Brasília, DF:
Presidência da República, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 06 nov. 2020.

684
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

Os crimes de atrocidade são crimes internacionais graves, cujas consequências afetam a dignidade
humana de todos e a comunidade internacional no seu conjunto.194 São cometidos contra grupos
sociais mais vulneráveis, os quais deveriam, teoricamente, ser titulares de proteção especial dos Estados
e da comunidade internacional.195
Neste sentido, o artigo II da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio196
e o artigo 6º do Estatuto de Roma197 definem o genocídio como a ocorrência de determinados atos,
cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou reli-
gioso, enquanto tal. Os atos previstos consistem em homicídios de membros do grupo, ofensas graves
à integridade física ou mental de membros do grupo, sujeição intencional do grupo a condições de
vida com vistas a provocar a sua destruição física, total ou parcial, imposição de medidas destinadas a
impedir nascimentos no seio do grupo e transferência, à força, de crianças para outro grupo.
Em relação aos povos indígenas, por serem vítimas potenciais do crime de genocídio enquanto grupos
étnicos minoritários, a DNUDPI estabelece em seu Artigo 7 que os povos indígenas têm o direito cole-
tivo de viver em liberdade, paz e segurança, e não serem submetidos a qualquer ato de genocídio ou
a qualquer outro ato de violência.198 Já a DADPI afirma em seu Artigo XI que os povos indígenas têm o
direito de não ser objeto de genocídio ou de intenção de extermínio.199
Tanto o genocídio quanto os crimes contra a humanidade podem ser cometidos em tempos de paz200
e contra membros civis da sociedade, sem que nenhuma vida seja direta e imediatamente ceifada. Ou
seja, para a caracterização do crime de genocídio não se faz necessária a ocorrência de assassinatos
coletivos. Por exemplo, no caso Jorgic, de 1997, o Superior Tribunal Regional de Düsseldorf afirmou
que a intenção de destruir um grupo inclui mais que a pura destruição físico-biológica, englobando,
também, a “[...] destruição do grupo como unidade social em sua peculiaridade, particularidade e senti-
mento de pertencimento.”201

194
Conforme exposto no artigo 5º do Estatuto de Roma, estão incluídos nesta categoria o próprio genocídio, os crimes de guerra, os crimes
contra a humanidade e o crime de agressão.
195
ONU. Framework of Analysis for Atrocity Crimes: a tool for preventionº United Nations, 2014, p. 1. Disponível em: http://www.unºorg/en/
preventgenocide/adviser/pdf/framework%20of%20analysis%20for%20atrocity%20crimes_enºpdf. Acesso em: 05 nov. 2020.
196
BRASIL. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952. Promulga a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio,
concluída em Paris, a 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Brasília, DF: Presidência
da República, [1952]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1952/D30822.html. Acesso em: 06 nov. 2020.

BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Brasília, DF:
197

Presidência da República, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 06 nov. 2020
198
ONU. Declaração da ONU sobre direito dos povos indígenas. Disponível em: http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/cogedi/pdf/
LEGISLACAO_INDIGENISTA/Legislacao-Fundamental/ONU-13-09-2007.pdf. Acesso em: 06 nov. 2020.
199
OEA. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Aprovada pela Assembleia Geral (3ª sessão) realizada em 15 de
junho de 2016.
200
“ARTIGO I - As Partes Contratantes confirmam que o genocídio quer cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime
contra o Direito Internacional, que elas se comprometem a prevenir e a punir”. BRASIL. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952. Pro-
mulga a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, concluída em Paris, a 11 de dezembro de 1948, por ocasião da
III Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Brasília, DF: Presidência da República, [1952]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Atos/decretos/1952/D30822.html. Acesso em: 06 nov. 2020.
201
VAN SAAN, Ruth Rissing. The German Federal Supreme Court and the Prosecution of International Crimes Committed in the
Former Yugoslavia, 2005, P. 398.

685
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Além disso, o genocídio não é considerado é um ato único, um “evento”, mas um longo processo de
muitas etapas. Gregory H. Stanton, por exemplo, identifica as etapas da classificação, simbolização, discri-
minação, desumanização, organização, polarização, preparação, persecução, extermínio e negação. 202
Do mesmo modo, para Raphael Lemkin, advogado polonês idealizador da positivação interna-
cional do crime de genocídio, tal crime poderá se dar por uma grande variedade de atos capazes
de serem empregados por aqueles que pretendem destruir “os fundamentos essenciais da vida” de
determinado grupo. 203
Paola Gaeta afirma que a responsabilidade internacional do Estado prescinde de demonstração de que
o Estado como tal – ou através de um ou mais de seus servidores – possuía a intenção de cometer,
diretamente, atos genocidas em seu sentido criminal. Este é um requisito que diz respeito à respon-
sabilidade criminal de indivíduos, de modo que a evidência da existência de uma política genocida
caracteriza o genocídio. Ou seja: seria necessário apenas provar que, devido ao padrão geral adotado, o
objetivo da política do Estado não pode deixar de ser a de destruir determinado grupo. 204
Ainda que a Convenção de Genocídio de 1948 tenha revogado o crime de genocídio cultural (etno-
cídio), é possível estabelecer uma relação entre o risco de destruição física de um povo e sua dissi-
pação cultural. 205 Deste modo, conforme exposto por Lemkin, a cultura é, muitas vezes, intrínseca ao
bem-estar individual e de determinados grupos, de modo que as ameaças e/ou violações à cultura de
um povo podem resultar na desintegração, assimilação e destruição física deste. 206
O fim do genocídio (extermínio de determinado grupo étnico) pode ser alcançado “[...] pela desinte-
gração forçada de instituições políticas e sociais, da cultura do povo, de sua língua, de seus sentimentos
nacionais e de sua religião.”207 Deste modo, os integrantes do grupo terão suas bases de segurança
pessoal, liberdade, saúde e dignidade comprometidos ou, até mesmo, eliminados. 208
Portanto, a destruição cultural (etnocídio) é um componente mensurável da intenção de destruir deter-
minado grupo, sendo que os atos praticados podem e, no decorrer dos anos, irão, inevitavelmente,
levar à destruição física do próprio grupo209. Para grupos étnicos, cujo território tradicional é condição
de sobrevivência física e cultural, privá-los de seu acesso equivale a expô-los à destruição física, seja
pela falta de condições de sobrevivência, seja pela exposição à violência e à morte. Esta relação entre
privação territorial e condições para ocorrência de genocídio é particularmente importante em relação
aos povos indígenas.

202
STANTON, Gregory H. The Ten Stages of Genocide. Genocide Watch: The International Alliance to End Genocide, 2013. Disponível em:
http://www.genocidewatch.org/genocide/tenstagesofgenocide.html. Acesso em: 08 nov. 2020.
203
GLOBAL JUSTICE CENTER. Beyond Killing: Gender, Genocide, & Obligations Under International Law, 2018, p. 05. Disponível em: http://
globaljusticecenter.net/files/Gender-and-Genocide-Whitepaper-FINAL.pdf. Acesso em: 08 nov. 2020.
204
Idem.
205
Idem.
206
D.A. Moses. Empire, Colony, Genocide: Conquest, Occupation, and Subaltern Resistance in World History. Berghahn Books, New York,
2008, p. 12.


207
LEMKIN, R. Genocide: a modern crime. 4 Free World, 1945. p. 39–43. Disponível em www.preventgenocide.org/lemkin/freeworld1945.
htm. Acesso em 06 de janeiro de 2020.
208
Ibidem.
209
MAKO, Shamiran. Cultural Genocide and Key International Instruments: Framing the Indigenous Experience. International Journal on
Minority and Group Rights 19, 2012. p.175 –194.

686
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

O entendimento internacional sobre a caracterização do crime de genocídio sem a necessidade de


assassinatos em massa pode ser ilustrada a partir de diversos casos paradigmáticos em que, posterior-
mente, houve o reconhecimento de que as políticas estatais adotadas constituíram crime de genocídio.
Por conta de “limpeza étnica” praticada em 1991 pela antiga República Federal Socialista da Iugoslávia,
Slobodan Milosevic210 e Blagojević211 foram acusados por crimes de guerra, crime contra a humanidade
e genocídio pelo Tribunal Penal Internacional em 2001. Em síntese, a Câmara de Julgamento de Blago-
jević afirmou que há a intenção de destruir fisicamente determinado grupo quando há a prática de
atos destinados a prejudicar sua estrutura sociocultural, motivo pelo qual condenou Blagojević pelo
crime de genocídio. 212
Não obstante o encerramento do processo proposto em face de Slobodan Milosevic em virtude de seu
falecimento em 2006, 213 em 26 de fevereiro de 2007, a Corte Internacional de Justiça proferiu sentença
na qual declarou que houve um “genocídio” em Srebrenica e concluiu que, embora a Sérvia não fosse
diretamente responsável ou mesmo cúmplice no genocídio, com base na falta de intenção específica,
responsabilizou o país por violar o dever legal de prevenir o genocídio, bem como punir os responsáveis
pela sua perpetração.
O caso de Jean Paul Akayesu, em Ruanda, também ilustra o argumento de que a não prevenção do
genocídio acarreta responsabilidade tanto estatal (objetiva) quanto pessoal (subjetiva). Embora ele
tivesse autoridade e responsabilidade para tentar impedir o assassinato de tutsis (civis deslocados) na
comuna, nunca o fez, tampouco pediu ajuda às autoridades regionais ou nacionais para conter a violên-
cia. 214 Neste sentido, o Tribunal Internacional Criminal de Ruanda condenou Jean Paul Akayesu pelos
crimes de genocídio e de crimes contra a humanidade (extermínio, assassinato, estupro e tortura), eis
que, embora podendo fazê-lo, não preveniu ou impediu a ocorrência dos referidos crimes. 215
Nesse sentido, os casos dos Povos Indígenas Waimiri-Atroari e Krenak sobre a relação recente com o
Estado Brasileiro se destacam. Além destes, já houve no Brasil julgamento do crime de genocídio impu-
tado a atores individuais que promoveram o conhecido massacre de Haximu216 contra índios Yanomami,
baseado na Lei nº 2.889/56 que reconhece o genocídio como tipo penal diferente do homicídio.
No caso do povo Waimiri-Atroari, o processo trata dos inúmeros ataques militares sofridos em nome
do Plano de Integração Nacional (PIN), entre os anos de 1960 e 1980. Os principais objetivos desses

210
International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia. Milošević, Slobodan (IT-02-54). Disponível em: http://www.icty.org/case/
slobodan_milosevic/4#ind. Acesso em: 27.09.2019.

MMIWG. A Legal Analysis of Genocide. Canada: MMIWG. 46 p. Disponível em: https://www.mmiwg-ffada.ca/wp-content/


211

uploads/2019/06/Supplementary-Report_Genocide.pdf, p. 25. Acesso em: 27.09.2019.


212
Ibidem.
213
MILOŠEVIĆ, Slobodan. (IT-02-54). International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia. Disponível em: http://www.icty.org/case/
slobodan_milosevic/4#ind. Acesso em: 27.09.2019.
214
ONU. Caso Jean Paul Akayesu. Ruanda: International Criminal Tribunal for Rwanda. Disponível em https://unictr.irmct.org/sites/unictr.
org/files/case-documents/ictr-96-4/indictments/en/970617.pdf.pdf. Acesso em: 27.09.2019
215
ONU. The Prosecutor VS Jean-Paul Akayesu. Ruanda: International Criminal Tribunal for Rwanda. Disponível em https://unictr.irmct.org/
sites/unictr.org/files/case-documents/ictr-96-4/trial-judgements/en/980902.pdf. Acesso em: 27.09.2019.
216
Em 2006, o Plenário do STF confirmou, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 351487, a condenação de garimpeiros e pistoleiros
que em 1993 planejaram e assassinaram 12 índios Yanomami da comunidade de Haximu, em Roraima. Baseando-se na Lei nº. 2.889/56,
que pune condutas que visam à destruição total ou parcial de grupo nacional, étnico, racial ou religioso, o Tribunal entendeu que o episó-
dio não se tratou de homicídio comum, mas de ato de genocídio.

687
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

ataques eram a abertura da BR 174, a construção da hidrelétrica de Balbina e a atuação de mineradoras


e garimpeiros interessados em explorar as jazidas da área ocupada pelo povo indígena. 217
Após uma tentativa inexitosa de pacificação dos índios, os militares passaram a praticar atos de exter-
mínio contra a comunidade, procedendo a inúmeros ataques aéreos e terrestres. 218 Os referidos ataques,
segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade, ocasionaram uma redução de 3000 (década de
70), para apenas 332 indígenas vivos (década de 80), caracterizando, assim, um verdadeiro genocídio. 219
No ano de 2017, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública objetivando, sobretudo, a conde-
nação do Estado Brasileiro a reparar os danos causados à comunidade Waimiri-Atroari e à concessão de
tutela de urgência a fim de minimizar/fazer cessar parte dos danos por eles sofridos.
Ainda no contexto da Ditadura Militar, no ano de 1969, houve a implementação, pela Funai e pela Polícia
Militar de Minas Gerais, do Reformatório Agrícola Indígena Krenak. O objetivo deste reformatório era
de “confinar e recuperar” índios com comportamentos considerados desviantes ou desajustados. Com
base em documentos oficiais, constatou-se que passaram pelo “reformatório” mais de 94 índios. 220 O
Ministério Público Federal ajuizou em 2015 uma Ação Civil Pública visando, sobretudo, a condenação
do Estado a indenizar as comunidades afetadas pelas práticas genocidas e promover políticas de inte-
gração, prevenção e proteção em face destas. 221

10.2. Estândares do Sistema Interamericano de Direitos Humanos

A importância do território nas cosmovisões indígenas faz com que a sua privação acarrete graves viola-
ções de seus direitos humanos. Neste sentido, o entendimento jurisprudencial da Corte IDH é o de que
quando as comunidades indígenas estão longe de suas terras, o direito à vida passa a ser ameaçado,
pois ficam expostas à pobreza e à vulnerabilidade social. 222
De acordo com a Corte IDH, quando do exame das medidas provisórias solicitadas a favor do Pueblo
Indígena Kankuamo, 223 tentativas de homicídio contra povos indígenas devido a conflitos pela terra
constituem situação de extrema gravidade e urgência que podem ocasionar danos irreparáveis aos
membros das comunidades.


217
Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ação Civil Pública nº 1001605-06.2017.401.3200.
218
DECISÃO da Justiça reconhece violações contra povo Waimiri-Atroari na abertura da BR-174. Conselho Indigenista Missionário, Brasília,
2 de fev. 2018. Disponível em https://cimi.org.br/2018/02/decisao-da-justica-reconhece-violacoes-contra-povo-waimiri-atroari-na-abertu-
ra-da-br-174/. Acesso em 30 de dezembro de 2019.
219
Idem.
220
MPF. Denúncia - Ação Civil Pública nº 64483-95.2015.4.01.3800. Disponível em http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/
acp-reformatorio-krenak.pdf. Acesso em 02 de janeiro de 2020.
221
Idem.
222
Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni VS Nicarágua, Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa VS Paraguai, Caso Yatama
VS Nicarágua, Caso do Povo Saramana VS Suriname, Caso Chitay Nech e outros VS Guatemala, Caso da Comunidade Indígena Xákmok
Kásek VS Paraguai, Povo Indígena Kichwa de Sarayaku VS Equador. Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Secre-
taria Nacional de Justiça, Comissão de Anistia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tradução da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/atuacao-internacional/sentencas-da-corte-
-interamericana/pdf/direitos-dos-povos-indigenas. Acesso em: 25.09.2019.
223
CORTE IDH. Asunto Pueblo Indígena Kankuamo respecto Colombia. Medidas Provisionales. Resolución de la Corte Interamericana de
Derechos Humanos de 5 de julio de 2004, párr. 1, 3.

688
DIREITOS HUMANOS COLETIVOS DOS POVOS INDÍGENAS

Disputas por terras podem ser – de fato, muitas vezes são – disputas pela vida. 224 Atuações e/ou omissões
estatais que visam obstruir a efetivação de direitos tendentes a manter a integridade física e cultural de
grupos proporcionam um contexto favorável para a configuração de fatores de risco para crimes de
atrocidade, incluindo o genocídio. Isto porque, como visto, o genocídio é um longo processo, que pode
ser caracterizado por uma política que acarrete na destruição do grupo por conta da privação dos seus
meios de sobrevivência, sejam materiais ou imateriais.
Tanto a CIDH quanto a Corte IDH já se manifestaram sobre a relação entre o acesso ao território tradi-
cional e a garantia do direito à vida dos povos indígenas. A falta de demarcação e posse dos territórios
ancestrais, ao impedir ou dificultar o acesso dos povos indígenas aos recursos naturais, está diretamente
ligada à situação de pobreza de seus membros (no sentido de privação material de bens essenciais à
manutenção da vida). Esta situação desencadeia violações transversais de direitos humanos, incluindo
violações dos direitos à vida, à integridade pessoal, a uma existência digna, à alimentação, à água, à
saúde, à educação e aos direitos das crianças e adolescentes. 225
Nos casos em que os povos indígenas sejam privados de nutrição, saúde e acesso à água potável por
falta de acesso aos territórios ancestrais, os Estados têm a obrigação de adotar medidas urgentes para
evitar a erosão dos direitos à saúde e à vida. 226
A vida dos membros das comunidades indígenas depende, fundamentalmente, de seus territórios,
pois as atividades de subsistência, como a caça e a pesca, são ali desenvolvidas. 227 Ou seja, segundo
a Corte IDH, a falta de garantias de direitos territoriais indígenas pode vir a implicar descumprimento
do dever de garantir e proteger a vida. No caso Yakye Axa Vs. Paraguay, a Corte decidiu que ao não
garantir o direito da comunidade indígena ao seu território ancestral, o Estado descumpriu o dever
de proteger a vida dos seus membros, uma vez que os privou dos meios de subsistência e de ações de
assistência estatal. 228 
Do mesmo modo, a privação territorial pode acarretar, também, o aumento do sofrimento dos membros
da comunidade indígena e dos casos de violência física e moral contra eles cometidas. 229 No caso da
Comunidade Indígena Xákmok-Kásek Vs. Paraguai, a Corte IDH afirmou que inúmeras vítimas da comu-
nidade relataram o sofrimento oriundo da falta de restituição do território tradicional perdido, da perda
paulatina de sua cultura e da demora do procedimento administrativo. Além disso, as condições de
vida miseráveis por que passam, a morte de vários de seus membros e o estado geral de abandono são
causas de sofrimento que afetam a integridade psíquica de todos, o que viola o artigo 5.1 da CADH. 230
Em relação aos demais direitos, a privação de acesso à terra resulta, segundo a CIDH e Corte IDH,
na dificuldade de utilizar recursos naturais para a prática da medicina tradicional de prevenção e cura
por parte das comunidades indígenas, 231 impede o exercício da autodeterminação e o desempenho
das atividades tradicionais de subsistência, expondo seus membros a situações de exploração laboral

224
WOLFE, Patrick. Settler colonialism and the elimination of the native. Journal of Genocide Research (2006).
225
CIDH. Democracia e Direitos Humanos na Venezuela. Doc. OEA/Ser.L/V/II, Doc. 54, 30 de dezembro de 2009.
226
Idem.
227
CIDH. Justificativas perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Awas Tingni Vs. Nicaragua. Referidos em: Corte IDH.
Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua. Sentença de 31 de agosto de 2001.
228
CIDH. Justificativas perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Yakye Axa Vs. Paraguay. Referidos em: Corte IDH.
Caso Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Sentença de 17 de junho de 2005.
229
CORTE IDH. Caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguay. Sentença de 24 de agosto de 2010.
230
Idem.


231
CORTE IDH. Caso Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay. Sentença de 17 de junho de 2005.

689
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

(caracterizada por más condições de trabalho e trabalho forçado), 232 bem como impede a manutenção
da identidade cultural dos povos indígenas, tendo em vista que os recursos naturais presentes nos terri-
tórios se tratam de elementos constitutivos de sua cultura e forma de vida. 233 
Na sentença de 2006 do caso da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai, a Corte IDH indicou
quatro obrigações dos Estados para evitar a violação de direitos humanos decorrente da privação de
acesso aos territórios tradicionais:

1. adotar medidas urgentes para garantir o acesso efetivo das comunidades aos territórios que lhes
pertencem; 2. empenhar-se em garantir aos integrantes dessas comunidades o acesso a condi-
ções de vida dignas, mediante o fornecimento imediato dos bens e serviços de que necessitam nas
áreas de alimentação, água, moradia digna, saúde e educação; 3. adotar medidas cautelares provi-
sórias para proteger seus territórios ancestrais de qualquer ato que implique a perda de seu valor
durante a execução de sua restituição; e 4. buscar acesso à justiça para membros das comunidades,
como vítimas de graves violações de seus direitos humanos234. (tradução nossa).

Portanto, conforme entendimento do SIDH, a demora na obtenção de soluções definitivas para


problemas relacionados aos territórios tradicionais pode incidir diretamente no estado de vida dos
membros das comunidades indígenas e em seus direitos humanos, 235 comprometendo a sua integri-
dade e dignidade. Segundo a doutrina e a jurisprudência internacionais, estas condições podem contri-
buir para a ocorrência de crimes de atrocidade, especialmente o genocídio.

CIDH. Terceiro Informe sobre a Situação dos Direitos Humanos no Paraguai. Doc. OEA/Ser./L/VII.110, Doc. 52, 9 de março de 2001.
232

233
CIDH. Informe nº. 40/04, Caso 12.053, Comunidades Indígenas Maias do Distrito de Toledo (Belice), 12 de outubro de 2004.
234
“1. adoptar medidas urgentes para garantizar el acceso efectivo de las comunidades a los territorios que les pertenecen; 2. esforzarse por
garantizar a los miembros de estas comunidades acceso a condiciones de vida dignas, mediante la provisión inmediata de los bienes y
servicios que requieren en los campos de alimentación, agua, vivienda digna, salud y educación; 3. adoptar medidas cautelares provisiona-
les para proteger sus territorios ancestrales de cualquier acto que implique una pérdida de su valor mientras se lleva a cabo su restitución;
y 4. procurar el acceso de los miembros de las comunidades a la justicia, en tanto víctimas de serias violaciones de sus derechos humanos”.
CORTE IDH. Caso da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Sentença de 29 de março de 2006.
235
CORTE IDH. Caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai. Sentença de 24 de agosto de 2010.

690
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E


EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Jaqueline Deuner

1. INTRODUÇÃO

O direito humano à educação é um direito que integra o grupo dos direitos sociais, econômicos e cultu-
rais caracterizados pela exigência de prestações positivas do Estado. A educação integra o mínimo exis-
tencial necessário para garantia da dignidade da pessoa humana. É um direito inalienável e universal.
De tal modo, o direito à educação não pode ser legalmente negado a nenhuma pessoa e o Estado tem
obrigação de prover o acesso à educação a todos. Assim, sendo um direito inalienável, embora a criança
não tenha capacidade para dispor deste direito, esse atributo do direito à educação se estende de forma
inderrogável ao Estado e aos responsáveis pela criança, portanto ambos detêm o dever de oportunizar
o direito à educação.
A educação é um direito previsto em diversos diplomas legais, sendo os principais a Declaração
Universal de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Além destes, há previsão sobre o direito à educação em convenções, como a Convenção Internacional
sobre os Direitos da Criança e em conferências internacionais.
Trata-se de um direito humano de fundamental importância, pois possibilita melhores condições de
conhecer e buscar todos os demais direitos. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais já
sinalizou que o direito à educação é um compêndio da indivisibilidade e da interdependência de todos
os direitos humanos, sendo indispensável para realização dos demais direitos humanos.1 É um direito
de múltiplas faces: social, promovendo o pleno desenvolvimento da personalidade humana em seu
meio social; econômica, contribuindo para o combate à pobreza através do emprego possibilitado pela
educação e discernimento; cultural, uma vez que, a comunidade internacional busca que seja cons-
truída uma cultura universal de direitos humanos, construída a partir da educação. 2
A UNESCO3 é a agência especializada das Nações Unidas, que tem como principal objetivo contribuir
para a paz no mundo através da educação, ciência e cultura. Por isso, desenvolve diversos programas e
documentos que versam sobre educação, ciências naturais, ciências humanas e sociais, cultura, comu-
nicação e informação, em diversos países.


1
NAÇÕES UNIDAS, Conselho Econômico e Social, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Observação Geral Número 13,
1999, par. 1.
2
CLAUDE, Pierre Richard. Direito à educação e educação para os Direitos Humanos. Revista Sur. Ano 2. N. 2. p. 37-63, 2005.
3
UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Disponível em: https://nacoesunidas.org/agencia/
unesco/. Acesso em 04 fev. 2019.

691
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

2. OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS EM RELAÇÃO


AO DIREITO DE ACESSO À EDUCAÇÃO

A DUDH menciona o direito à educação já em seu preâmbulo, indicando que todos os órgãos da socie-
dade devem se esforçar pelo ensino e pela educação. Além do preâmbulo, o seu artigo 26 refere-se
à educação, assim como o artigo 13 do PIDESC. Ambos estabelecem que toda pessoa tem direito à
educação, e para que este direito seja assegurado de forma plena, os Estados devem garantir o ensino
primário obrigatório de forma acessível e gratuita a todos.
O PIDESC, em seu artigo XX, estabelece aos Estados a obrigação de criar um sistema adequado de
bolsas, fomentando a igualdade de acesso à educação de pessoas provenientes de grupos desfavo-
recidos e de melhorar continuamente as condições materiais dos docentes. A DUDH no artigo 26,
determina que o ensino técnico e profissional deve ser generalizado. A CDC, no artigo 28, indica que
o ensino superior deve ser acessível a todos “em função das capacidades de cada um, por todos os
meios adequados”.
A CDC presta especial atenção ao direito à educação. O art. 28 estabelece que os Estados Partes da
Convenção passam a reconhecer o direito da criança à educação, tendo em vista assegurar progressi-
vamente o exercício desse direito, calcado pela igualdade de oportunidades. Assim como a DUDH, a
CDC determina que o ensino primário deve ser gratuito e obrigatório. Ao mesmo tempo, encoraja a
organização de diferentes sistemas de ensino secundário, geral e profissional, de modo que se tornem
públicos e acessíveis, criando medidas como a gratuidade do ensino e a oferta de auxílio financeiro em
caso de necessidade.
O Comentário Geral Nº 13 do Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais explica que o nível
secundário de ensino não deve depender da capacidade ou competência aparente do aluno, devendo
ser oferecido pelos Estados de modo que todos possam ter acesso em igualdade de circunstâncias.
Fazem parte do ensino secundário o ensino técnico e profissional e são parte do direito à educação e
do direito ao trabalho. Os Estados devem garantir o ensino primário gratuito e buscar adotar medidas
para alcançar a gratuidade do ensino secundário e superior.
O ensino técnico e profissional deve capacitar os estudantes a adquirir conhecimentos e competências
que contribuam para o seu desenvolvimento pessoal, sua autoconfiança e capacidade para o emprego,
de modo que possam aumentar a produtividade de suas famílias, refletindo no desenvolvimento social
e econômico. O ensino técnico e profissional também deve proporcionar oportunidades aos adultos
que estejam desatualizados, em função de mudanças tecnológicas, econômicas, laborais e sociais, que
tornam seus conhecimentos e competências obsoletas.4
A CDC reserva uma alínea (28. e) específica para estabelecer que os Estados tomem medidas para enco-
rajar a frequência escolar e reduzir as taxas de abandono escolar. O artigo 32.1 da mesma Convenção
proíbe que a criança execute trabalhos perigosos ou capazes de comprometer a sua educação. Os
Estados, ainda obrigam-se, a promover e encorajar a cooperação internacional no domínio da educação,
contribuindo para a eliminação da ignorância e do analfabetismo, facilitando o acesso aos conheci-
mentos científicos e técnicos, além de atenção aos modernos métodos de ensino, em particular, atento
às necessidades dos países em desenvolvimento.
Cada Estado tem a liberdade de regulamentar e definir como o direito de acesso à educação será
garantido para a população, no entanto, toda e qualquer medida deve estar de acordo com as normas
estabelecidas nos tratados e convenções que o Estado aderiu. A prestação do direito à educação deve

4
ONU. CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL, COMITÊ DE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS. Observação Geral Núme-
ro 13, 1999, pt. 1.

692
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

atender às quatro características elencadas pelo Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, de
forma inter-relacionada e em todos os níveis educacionais, quais sejam: disponibilidade, acessibilidade,
aceitabilidade e adaptabilidade. 5
A disponibilidade corresponde à obrigação do Estado de oferecer educação gratuita disponível à todas
as pessoas, atendendo às necessidades de qualidade e quantidade, mantendo as condições necessárias
para tanto, como professores qualificados, espaço físico adequado e materiais didáticos. A acessibilidade
é a garantia de acesso à educação pública. Este acesso é dividido em três dimensões: não discriminação,
acessibilidade material e acessibilidade econômica. A acessibilidade também deve atender às necessi-
dades especiais de pessoas com deficiência, como por exemplo, materiais didáticos em língua de sinais.
A aceitabilidade refere-se à qualidade da educação, que deve ser coerente com métodos pedagógicos,
contexto cultural e qualificação dos docentes. A adaptabilidade diz respeito à necessidade de adaptar a
forma como a educação é prestada, de acordo com os grupos de estudantes, devendo corresponder à
realidade das pessoas, respeitando sua cultura, costumes, religiões e diferenças.
A Declaração Mundial sobre Educação para todos6 foi um documento elaborado na Conferência Mundial
sobre Educação para Todos, realizada na cidade de Jomtien, na Tailândia, em 1990, também conhe-
cida como Conferência de Jomtien. A Declaração discute com profundidade o direito de acesso à
educação e tem como objetivo a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem. A partir dessa
Conferência Mundial, os Estados foram incentivados a criar Planos Decenais de Educação Para Todos,
contemplando as metas traçadas na Conferência. A partir desse compromisso firmado na Conferência
de Jomtien, o Brasil elaborou em 1993 o plano decenal, objetivando erradicar o analfabetismo, além de
oferecer acesso universal a crianças, jovens e adultos à educação fundamental. A Declaração Mundial
Sobre Educação Para Todos tornou-se um dos principais documentos sobre o direito à educação.
Em seu artigo 3, a Declaração trata da necessidade de universalizar e melhorar a educação, ao mesmo
tempo em que devem ser incorporadas medidas efetivas para reduzir as desigualdades. A educação
básica deve ser equitativa, oferecendo a todas as pessoas oportunidade de alcançar e manter um
padrão mínimo de qualidade da aprendizagem.
O mesmo artigo ainda enfatiza a necessidade de priorizar de forma urgente, garantindo melhor
qualidade e acesso à educação para meninas e mulheres, superando obstáculos que impedem a
sua participação ativa no processo educativo. “Os preconceitos e estereótipos de qualquer natureza
devem ser eliminados da educação” 7. Da mesma forma que deve ser facilitado o acesso à educação de
meninas e mulheres, também devem ser priorizadas as pessoas com deficiência, os pobres, populações
de periferias urbanas ou rurais, os povos indígenas, os nômades, os refugiados, as minorias étnicas,
raciais e linguísticas, os povos submetidos a regime de ocupação, todos os pertencentes a grupos
excluídos ou marginalizados não devem sofrer qualquer tipo de discriminação no acesso às oportuni-
dades educacionais.
A educação como um meio de acesso a melhores oportunidades e desenvolvimento efetivo, tanto para
o indivíduo como para a sociedade, depende da aprendizagem dos estudantes. Portanto, a educação
precisa estar voltada para que as pessoas aprendam de fato, adquirindo conhecimentos úteis, habili-
dades de raciocínio, aptidões e valores. Logo, o direito de acesso à educação é mais amplo do que o
direito de apenas frequentar uma escola.8 Especialmente quando se trata de crianças e adolescentes,

5
ONU, Conselho Econômico e Social, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Observação Geral Número 13, 1999, par. 6.
6
DECLARAÇÃO MUNDIAL SOBRE EDUCAÇÃO PARA TODOS: Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem, Jomtien, 1990.


7
DECLARAÇÃO MUNDIAL SOBRE EDUCAÇÃO PARA TODOS: Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem, Jomtien, 1990. Art.
3.2
8
UNESNCO. CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE EDUCAÇÃO PARA TODOS (1990, Jomtien,Tailândia). Declaração Mundial Sobre Educa-
ção Para Todos: satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem. Jomtien: UNESCO, 1990. Art. 4.1

693
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

entende-se que terão na educação uma condição mais favorável para gozar de uma vida digna, além de
contribuir para prevenir situações violadoras de direitos humanos.9
O acesso à educação também diz respeito às necessidades básicas que devem ser supridas, para
que seja possível o aprendizado, como nutrição, cuidados médicos, apoio físico e emocional.10 Afim
de possibilitar o oferecimento de tais condições, a Declaração Mundial sobre Educação para Todos,
reafirma a importância de alianças que contribuam significativamente para o planejamento, imple-
mentação, administração e avaliação de programas de educação básica. Estas alianças podem se dar
entre diversos órgãos do governo, entre organizações governamentais e não-governamentais, setor
privado, comunidades locais, grupos religiosos, além de ser primordial o melhoramento das condições
de trabalho e situação social dos docentes, que são figuras essenciais no processo de aprendizagem
efetiva.11 Além das alianças, o Estado deve atrair recursos de todos os órgãos governamentais respon-
sáveis pelo desenvolvimento humano, mediante o aumento em valores absolutos e relativos, das dota-
ções orçamentárias aos serviços de educação básica.12
A Declaração Mundial sobre Educação para Todos, no artigo 10, declara que satisfazer as necessidades
básicas de aprendizagem é uma responsabilidade comum e universal de todos os povos, implicando a
solidariedade internacional e relações econômicas honestas e equitativas, a fim de corrigir disparidades
econômicas que impossibilitam alguns Estados de garantir a aprendizagem e o acesso à educação.13
Nesse sentido, a Corte IDH, no caso Instituto de Reeducación del Menor vs. Paraguay, apontou falha
do Estado na prestação do direito à educação dos menores, pela falta de professores qualificados e
recursos adequados, pois, a despeito de os jovens estarem privados de liberdade, educação e dignidade
eram direitos que o Estado não poderia deixar de garantir-lhes. Em especial os jovens submetidos a um
programa de reeducação, era imprescindível garantir o acesso devido à educação, pois estes, em sua
maioria, provêm de setores marginalizados da sociedade e, portanto, já têm limitadas suas possibili-
dades de reinserção na sociedade, sendo, a educação um caminho viável ao desenvolvimento dos seus
projetos de vida no futuro.14

3. PRINCÍPIOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO

O direito à educação não se resume ao direito de frequentar a escola. É um direito mais amplo e a
sua prestação deve ser orientada por diversos princípios e condições. Além disso, o direito à educação
não pode estar dissociado dos outros direitos humanos, isto é, deve ser condizente com a digni-
dade da pessoa humana, não podendo ser prestado com cunho discriminatório ou violando qual-
quer direito humano.
O Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, em seu Comentário Geral Nº 13,
que trata sobre o direito à educação, traz uma síntese bastante completa e instigante sobre este direito:

9
CORTE IDH. Opinião Consultiva OC 17/2022.
10
DECLARAÇÃO MUNDIAL SOBRE EDUCAÇÃO PARA TODOS: Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem, Jomtien, 1990. Art.
6.
11
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA, Assembleia Geral das Nações Unidas, 1989. Art. 7
12
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA, Assembleia Geral das Nações Unidas, 1989. Art. 9.2
13
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA, Assembleia Geral das Nações Unidas, 1989. Art. 10
14
CORTE IDH. Caso Instituto de Reeducación del Menor vs. Paraguay. Sentença de 2 de setembro de 2004. p. 99

694
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

A educação é um direito humano por si só e um meio indispensável para a realização de outros


direitos humanos. Como direito do âmbito da autonomia da pessoa, a educação é o meio principal
que permite a adultos e a crianças marginalizados econômica e socialmente sair da pobreza e
participar plenamente nas suas comunidades. A educação desempenha um papel decisivo na
emancipação da mulher, na proteção das crianças contra a exploração laboral, trabalho perigoso
e exploração sexual, na promoção dos direitos humanos e na democracia, na proteção do meio
ambiente e no controle do crescimento demográfico. Cada vez mais a educação é reconhecida
como um dos melhores investimentos financeiros que os Estados podem fazer. Mas a importância
da educação não é apenas prática: uma mente instruída, esclarecida e activa (sic), com liberdade e
amplitude de pensamento, é um dos prazeres e recompensas da existência humana.15

O Protocolo de San Salvador, depois de reafirmar que todas as pessoas tem direito à educação, indica
quais os princípios que devem reger a educação.

Os Estados Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno
desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o
respeito pelos direito humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela
justiça e pela paz. Convêm, também, em que a educação deve capacitar todas as pessoas para
participar efectivamente de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência
digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos
raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades em prol da manutenção da paz.16

3.5. Liberdade Acadêmica

O Comentário Geral Nº 13 do Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU aborda
a liberdade no campo do ensino, enfatizando que todos os membros da comunidade acadêmica devem
ter liberdade de procurar, desenvolver e transmitir o conhecimento e as ideias, de forma individual e
coletiva. A liberdade acadêmica, ou liberdade de cátedra, abrange a liberdade de expressar opiniões
sobre instituições e sistemas educacionais, permitindo que aqueles que trabalham com a educação
possam desempenhar suas funções sem discriminação ou medo de repressão por parte do Estado ou
de qualquer outra instituição.
O Comitê opina que “só se pode satisfazer o direito à educação se acompanhado da liberdade acadê-
mica do corpo docente e dos alunos”.17 Ainda que o Comentário Geral Nº 13 se refira expressamente a
liberdade acadêmica, que diz respeito ao ensino superior, o Comitê ressalta que muitas das observa-
ções feitas neste âmbito aplicam-se igualmente aos demais níveis de ensino.
Outro aspecto imprescindível da liberdade acadêmica é a autonomia das instituições superiores. As
instituições de ensino superior devem ter autonomia de autogoverno, necessária para que sejam
eficazes as decisões adotadas pelas instituições no que diz respeito ao seu trabalho acadêmico, normas,

15
ACNUDH. Compilação de instrumentos internacionais de direitos humanos. Disponível em: http://acnudh.org/wp-content/
uploads/2011/06/Compilation-of-HR-instruments-and-general-comments-2009-PDHJTimor-Leste-portugues.pdf. Acesso em: 03 abr.
2019. p. 142.

CIDH. Protocolo de San Salvador. Artigo 13.2 Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/e.protocolo_de_san_salvador.htm>.


16

Acesso em: 02
maio 2019.


17
ONU, Conselho Econômico e Social, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Observação Geral Número 13, 1999, parágrafo
38.

695
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

gestão e atividades relacionadas. No entanto, o autogoverno deve ser coerente com sistemas de
responsabilidade pública, em especial ao financiamento estatal.18
Conforme consta na DUDH, a educação deve visar à plena expansão da personalidade humana, sempre
atenta aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Neste sentido, a educação deve favorecer a
compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, e
incentivar as atividades da ONU para a manutenção da paz.19 O PIDESC, além de reafirmar o disposto
na DUDH, determina que a educação deve habilitar toda pessoa a desempenhar um papel útil, em uma
sociedade livre. 20
A CDC determina que a educação deve inculcar nas crianças o respeito pelos direitos e liberdades
fundamentais, assim como pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas. De igual modo,
a educação infantil deve orientar as crianças a respeitarem seus pais, sua identidade cultural, língua,
valores, valores nacionais do país em que vivem, do seu país de origem e respeitar as civilizações dife-
rentes da sua. A educação deve ser instrumento que prepara a criança para assumir responsabilidades
em uma sociedade, em um espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de
amizade entre os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e com pessoas de origem indígena.
Ainda, segundo a CDC, a educação deve promover o respeito da criança pelo meio ambiente. 21

3.6. Proibição da Discriminação

A Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino da UNESCO, adotada pelo
Brasil em 1968, aborda os direitos já garantidos pela DUDH, quais sejam, o direito à educação e a não
discriminação. Segundo a Convenção, deve haver a promoção da igualdade de oportunidade e trata-
mento para todos no campo do ensino. A Convenção refere-se aos diversos tipos e graus de ensino,
compreendendo o acesso, qualidade e condições com que é prestado.
O Comentário Geral Nº 13 reafirma a proibição da discriminação, ressaltando que a proibição não está
sujeita nem à implementação gradual pelos Estados, nem mesmo à disponibilidade de recursos, apli-
cando-se de forma plena e imediata a todos os aspectos da educação, abarcando todos os motivos de
discriminação proibidos internacionalmente. 22 No artigo I, a Convenção relativa à Luta contra a Discri-
minação no campo do Ensino conceitua “discriminação”, considerando que

abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião pública ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição
econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito alterar a igualdade de tratamento em
matéria de ensino. 23

No artigo seguinte da mesma Convenção, são descritas situações que não são consideradas discrimi-
natórias, ainda que relacionadas com o disposto no artigo I. A primeira situação é a manutenção de
sistemas ou estabelecimentos de ensino separados em função do sexo dos alunos. Não será consi-

18
ONU, Conselho Econômico e Social, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Observação Geral Número 13, 1999, parágrafo
40.
19
ONU. ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. (217 III A). Paris, 1948. Art. 26.2
20
PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS. Assembleia Geral das Nações Unidas, 1976. art. 13.1


21
ONU. ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Sobre os Direitos da Criança, 1989. Art. 29
22
ONU, Conselho Econômico e Social, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Observação Geral Número 13, 1999, par. 31.
23
ONU. ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Relativa a Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino. Paris,
1960. Art. I

696
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

derada discriminação, quando os sistemas ou estabelecimentos oferecerem as mesmas condições de


acesso, corpo docente, locais e equipamentos da mesma qualidade e que permitam seguir os mesmos,
ou equivalentes, programas de ensino. O Comentário Geral Nº 13 reforça que não será discriminatória a
adoção de medidas especiais temporárias que busquem alcançar a igualdade entre homens e mulheres
e de grupos desfavorecidos, desde que estas medidas não deem lugar a normas não equitativas ou
distintivas para diferentes grupos e que sejam extintas quando alcançados os objetivos para os quais
foram estabelecidas. 24
Do mesmo modo, não é considerada discriminação a criação ou manutenção de estabelecimentos
separados por ordem religiosa ou linguística, desde que proporcionem um ensino que corresponda à
escolha dos pais ou tutores legais dos alunos, que a adesão e frequência seja facultativa e que o ensino
proporcionado coadune-se com as normas aprovadas pelas autoridades competentes.
A criação de estabelecimentos de ensino privados também não será considerada discriminatória,
quando não tiver por objetivo a exclusão de qualquer grupo, mas sim que objetive o aumento das possi-
bilidades de ensino, em comparação com aquelas oferecidas pelos poderes públicos, e que estejam
de acordo com as normas aprovadas pelas autoridades competentes, em particular para o ensino
de primeiro grau.
Consideráveis disparidades nas políticas de gastos, que resultem na distinção de qualidade da educação
para pessoas que residam em diferentes lugares, podem ser consideradas discriminatórias. 25 Os
Estados devem monitorar cuidadosamente o ensino, identificando e tomando medidas necessárias
para eliminar qualquer discriminação. 26

Exemplos de violações do artigo 13º incluem: a introdução de leis ou a omissão de revogação


de leis que discriminem indivíduos ou grupos, por qualquer dos motivos proibidos, na esfera da
educação; não tomar medidas que abordem uma discriminação de facto na educação; a aplicação
de programas de estudo incompatíveis com os objetivos da educação expostos no artigo 13º, n.º
1; a não manutenção de um sistema transparente e eficaz de monitorização do cumprimento do
artigo 13º, n.º 1; não introduzir, com carácter prioritário, o ensino primário obrigatório e gratuito para
todos; a não adopção de “medidas deliberadas, concretas e orientadas” no sentido da instauração
gradual do ensino secundário, ensino superior e educação de base, em conformidade com o artigo
13º, n.º 2 alíneas b) a d); a proibição de instituições de ensino privadas; não assegurar que as insti-
tuições de ensino privadas cumpram com as “normas mínimas” de educação previstas no artigo
13º, n.º 3 e 4; a negação da liberdade académica do corpo docente e dos alunos; o encerramento
de instituições de ensino em épocas de tensão política em não conformidade com o artigo 4º. 27

A Corte IDH, ao julgar o caso González y otras (“Campo Algodonero”) Vs. México28 condenou o Estado
do México a implantar programas e cursos permanentes de educação e capacitação, sem prejuízo
daqueles que já vinham sendo implantados, sobre direitos humanos e gênero, perspectiva de gênero
para a devida diligência na condução de averiguações prévias e processos judiciais relacionados com
discriminação, violência e homicídios de mulheres motivados por questões de gênero, e que busquem

24
ONU. ECOSOC. Observação Geral Número 13, 1999, par 32.
25
ONU. ECOSOC. Observação Geral Número 13, 1999, par 35.
26
ONU. ECOSOC. Observação Geral Número 13, 1999, par 57.


27
ONU. ECOSOC. Observação Geral Número 13, 1999, par 59.
28
O caso trata do desaparecimento de mulheres em 1993 na cidade de Juárez, ano em que existe um aumento de homicídios de mulheres
influenciados por uma cultura de discriminação contra a mulher. Em 2001 encontraram os corpos das mulheres desaparecidas e estes
apresentavam sinais de violência sexual. Com a investigação, conclui-se que as mulheres estiveram privadas de sua liberdade antes da
morte e apesar dos recursos interpostos pelos familiares, não houve investigações nem mesmo foram punidos os responsáveis pelos
crimes. CORTE IDH. Caso Gonzáles e outras (“Campo Algodonero”) vs. México. Sentencia de 16 de noviembre de 2009. Serie C. No.
205.

697
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

a superação de estereótipos sociais a respeito das mulheres. Ainda, o México restou obrigado a apre-
sentar informativos anuais, durante três anos, nos quais indique as ações que tenha realizado com o
intuito de superar a discriminação contra a mulher.
Nesta decisão, a Corte explora a educação como um mecanismo de combate à discriminação, de modo
que é válido frisar que a educação não pode ser prestada com cunho discriminatório e de igual modo
pode ser utilizada como um mecanismo eficaz de combate à discriminação, uma vez que, atenta aos
princípios que regem o direito à educação.
No mesmo sentido decidiu a Corte IDH no caso Velasquez Paiz vs. Guatemala29, condenando o Estado a
adotar políticas públicas e programas institucionais destinados a eliminar estereótipos discriminatórios
sobre mulheres e promover a erradicação de padrões socioculturais discriminatórios que impedem
o acesso pleno a justiça. Além disso, a condenação incluiu adoção de programas de capacitação para
funcionários públicos em todos os setores do Estado, incluindo o setor da educação, ramos da adminis-
tração da justiça e da polícia.
A Corte IDH condenou o Estado a incorporar no currículo do Sistema Educacional Nacional, em todos
os níveis de ensino, um programa de educação permanente sobre a necessidade de erradicar a discri-
minação de gênero, seus estereótipos e a violência contra a mulher na Guatemala. O Estado ficou
obrigado a apresentar, durante três anos, um informativo anual que indique as ações realizadas.

3.7. Liberdade de Escolha dos Pais e Responsáveis

O PIDESC, no artigo 13.4 estabelece que os Estados têm obrigação de respeitar a liberdade dos pais,
ou quando for o caso, dos tutores legais, de escolher para seus filhos ou pupilos, instituições de ensino
diferentes dos estabelecimentos públicos, desde que estejam de acordo com as normas mínimas sobre
educação. O artigo ainda garante a liberdade dos pais de assegurar a educação religiosa e moral de seus
filhos ou pupilos em conformidade com suas próprias convicções. 30 No mesmo sentido se manifesta o
PIDCP, no artigo 1831 e a DUDH, no artigo 26.3, que determina que “aos pais pertence a prioridade do
direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos”. 32
O Protocolo de San Salvador, no artigo 13.4, assegura aos pais o direito de escolher o tipo de educação
dada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados no artigo do Proto-
colo que se refere a educação. Quais sejam: a dignidade e pleno desenvolvimento da personalidade
humana, respeito aos direitos humanos e pelo pluralismo ideológico, prezando pelas liberdades funda-
mentais e pela paz. Ademais, visa orientar a educação em consonância com uma sociedade democrá-
tica e pluralista. 33

29
O caso refere-se ao desaparecimento e morte de Claudina Isabel Velasquez Paiz. Claudina desapareceu no dia 12 de agosto de 2005 e
imediatamente os pais da jovem levaram o fato a conhecimento das autoridades competentes, que não tomaram as devidas providencias,
alegando que se fazia necessário aguardar até que o desaparecimento completasse 24 horas. No dia seguinte Claudina foi encontrada
morta, com sinais de extrema violência, inclusive sexual. Constatou-se no caso a presença de estereótipos discriminatórios que impacta-
ram seriamente na falta de diligencia. A Comissão considerou que a falta de proteção da vítima e a falta de investigação constituíram um
claro reflexo de discriminação contra as mulheres na Guatemala. CORTE IDH. Caso Velasquez Paiz vs. Guatemala. Sentencia de 19 de
noviembre de 2015. Serie C. No. 307.
30
PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS. Assembleia Geral das Nações Unidas, 1976.art. 13.4


31
PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS. Assembleia Geral das Nações Unidas, 1976. art. 18,
parágrafo 4º
32
ONU. ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. (217 III A). Paris, 1948. Art. 26.3.
33
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). Protocolo de San Salvador. Artigo 13 Disponível em: http://www.cidh.
org/basicos/portugues/e.protocolo_de_san_salvador.htm. Acesso em: 05 maio 2019.

698
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no Comentário Geral Nº 13, sinalizou que há
dois aspectos que devem ser considerados para interpretação do artigo 13.3 do PIDESC, que trata sobre
a liberdade de escolha dos pais e tutores. O primeiro deles, segundo entendimento do Comitê, é que é
permitido o ensino de temas como história geral das religiões e ética, desde que ocorra de forma impar-
cial e objetiva, respeitando as liberdades de opinião, consciência e expressão. Ressaltou ainda o Comitê,
que o ensino público não deve instruir os alunos a seguir uma determinada religião ou convicção, pois
isso seria incompatível com o artigo 13.3 do PIDESC, exceto se estipularem isenções não discriminató-
rias ou alternativas que se adaptem aos desejos dos pais e tutores.
O segundo aspecto do artigo 13.3 do PIDESC consiste na liberdade dos pais e tutores de escolher escolas
que não sejam públicas para seus filhos, desde que elas atuem conforme as normas mínimas que
regem o direito à educação, que podem dizer respeito a questões referentes a admissão, programas de
estudo e reconhecimento de certificados, bem como estarem de acordo com os objetivos educativos
dispostos no artigo 13.1 do PIDESC. 34

4. DIREITO À EDUCAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

O artigo 23.3 da CDC garante o efetivo acesso à educação para crianças com deficiência, atenta às
necessidades particulares de cada indivíduo. O Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência da
ONU, em 2016, emitiu o Comentário Geral Nº 4 sobre o Direito à Educação Inclusiva35, onde refere
que os Estados Partes devem consultar e envolver ativamente as pessoas com deficiência, em todos os
aspectos de planejamento, execução, acompanhamento e avaliação das políticas de educação inclusiva.
Enfatiza, ainda, que as pessoas com deficiência e suas famílias, devem ser reconhecidas como parceiras
e não apenas destinatárias da educação. 36
Para que se assegure o direito à educação das pessoas com deficiência, o sistema educacional inclusivo
deve se fazer presente em todos os níveis de ensino, atividades extracurriculares e sociais, sem discri-
minação e em igualdade de condições. Conforme o Protocolo de San Salvador, o Estado deve estabe-
lecer programas de ensino diferenciados para as pessoas portadoras de deficiências, sejam físicas ou
mentais, a fim de proporcionar instrução especial e formação a estas pessoas. 37
A educação inclusiva deve ter como base o bem-estar dos estudantes, respeitando sua dignidade
e autonomia, reconhecendo a capacidade individual dos estudantes de efetivamente ser incluído e
contribuir socialmente, para que atendam efetivamente ao que estabelece o art. 24 da Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 38 Além disso, a educação inclusiva procura habilitar
as comunidades, sistemas e estruturas para o combate à discriminação, à estereotipação prejudicial
e o reconhecendo a diversidade. Tal perspectiva exige uma transformação profunda dos sistemas de
ensino, além da legislação, políticas e financiamento do sistema educacional. 39

34
ONU, Conselho Econômico e Social, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Observação Geral Número 13, 1999. Par. 28.
35
ONU, Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Observação Geral Número 4, 2016.
36
ONU, Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Observação Geral Número 4, 2016. par. 14.


37
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). Protocolo de San Salvador. Disponível em: <http://www.cidh.org/
basicos/portugues/e.protocolo_de_san_salvador.htm>. Acesso em 01 de março de 2019, Artigo 13, e.
38
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. Assembleia Geral das Nações Unidas. 2006. art. 24.
39
ONU, Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Observação Geral Número 4, 2016. par. 15.

699
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Em primeiro de setembro de 2015, a Corte IDH julgou o caso Gonzales Lluy e outros vs. Equador40, que
elucida bem as dimensões do acesso à educação de pessoas com deficiência. Trata-se do caso de Talia,
uma criança que foi contaminada com o vírus HIV41, por meio de transfusão de sangue aos 3 anos de
idade e aos 5 anos foi impedida de frequentar a escola, sob justificativa de preservar a saúde dos demais
estudantes, e condicionada à educação à distância. A decisão da Corte IDH, também com base nas
diretrizes internacionais sobre o HIV/AIDS, estabelece diferentes aspectos sobre a educação.
O primeiro deles é que é necessário que o Estado ofereça educação sobre a contaminação com o
vírus, especialmente sobre a prevenção, devendo assegurar dentro da tradição cultural e religiosa de
cada Estado, que sejam facilitados os meios para educar a população sobre o assunto. Por meio da
educação o Estado deve buscar promover a compreensão, o respeito, a tolerância e a não discriminação
às pessoas que são portadoras do vírus. Além disso, o Estado deve garantir aos portadores da doença
o acesso à educação, em especial o acesso as escolas e universidades, uma vez que não há risco de
transmitir casualmente o HIV/AIDS nos entornos educativos.
No caso de Talia, era obrigação do Estado dar atenção especial às necessidades da estudante, a fim de
garantir o seu direito de acesso à educação. Ao contrário disso, entendeu a sua condição de vulnera-
bilidade como um risco às demais crianças e a expulsaram do ambiente escolar.42 A condição de Talia
exigia que o sistema educativo se adaptasse às suas condições, devendo a educação promover a sua
inclusão e não sua discriminação no meio social. Por fim, a Corte declarou que houve violação do direito
à educação por parte do Estado do Equador. É importante frisar que dentro dos direitos previsto no
Pacto de San Salvador, apenas a educação e os direitos sindicais podem ser objeto de demandas indivi-
duais, assim como exemplificado no Caso Gonzales Lluy e outros vs. Equador.
O Comentário Geral Nº 4 do Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, ao se referir
ao direito de acesso à educação das pessoas com deficiência, através da educação inclusiva, ressalta a
importância de reconhecer as diferenças entre exclusão, segregação, integração e inclusão. A exclusão
é o termo que refere as ocasiões onde os estudantes tem, direta ou indiretamente, o direito à educação
negado de qualquer forma. A segregação, ocorre quando os estudantes têm o direito à educação
oferecido em ambientes separados, isolados de outros estudantes que não possuem deficiências,
como é o Caso Gonzales Lluy e outros vs. Equador. 43 A integração é o processo de inserção das pessoas
com deficiência em instituições de ensino tradicionais, desde que elas possam se ajustar aos padrões
estabelecidos em tais instituições. E a inclusão envolve alterações no conteúdo, método de ensino,
abordagens, estruturas, para proporcionar uma experiência e ambiente de aprendizagem igualitário e
participativos para todos os estudantes.44
Para que o artigo 24 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e a Convenção
da UNESCO Contra a Discriminação na Educação, sejam efetivas, os estados devem assegurar que o
direito à educação seja garantido sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades. De
igual modo, a exclusão de pessoas com deficiência do sistema de ensino deve ser proibida.45

40
CORTE IDH. Caso Gonzales Lluy Vs Equador. Sentencia de 01 de septiembre de 2015. Serie C No. 298. Párr. 1-4.


41
Importante esclarecer que, diversos Estados e tribunais têm reconhecido a condição de viver com HIV/AIDS como uma forma de deficiên-
cia.
42
CORTE IDH. Caso Gonzales Lluy Vs Equador. Sentencia de 01 de septiembre de 2015. Serie C No. 298. Párr. 262.
43
CORTE IDH. Caso Gonzales Lluy Vs Equador. Sentencia de 01 de septiembre de 2015. Serie C No. 298.
44
ONU. COMITÊ DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. Observação Geral Número 4, 2016.
45
ONU. COMITÊ DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. Observação Geral Número 4, 2016. par. 26.

700
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

5. EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

O direito à vida, a uma vida digna e a ter razões para viver, está na raiz da Educação em Direitos
Humanos, deve ser defendido e promovido para todas as pessoas, assim como para todos os
grupos sociais e culturais. Esta é uma afirmação com dimensões planetárias, raízes antropológicas,
éticas, políticas e transcendentais, que aponta à construção de uma alternativa para um futuro
mais humano para o nosso continente e a escala mundial.46

Educar em direitos humanos é construir uma cultura universal de direitos humanos, proporcionando
conhecimento e mecanismos que protegem e criam um ambiente favorável a estes direitos. A EDH
nutre habilidades necessárias para promover, defender e aplicar os direitos humanos de um modo
geral, incentivando o pensamento crítico, a resolução de problemas e a comunicação baseada no
respeito. É um tema bastante abrangente e importante, que proporciona a reflexão sobre seus valores
fundamentais, como a não discriminação, igualdade, não violência, tolerância e respeito pela dignidade
humana. A EDH é parte fundamental da educação de qualidade.47
A proteção aos direitos humanos pode se dar em duas esferas: repressiva e protetiva. A esfera repressiva
trata de remediar as violações já ocorridas, enquanto que a esfera protetiva, tem caráter preventivo,
buscando coibir futuras violações. A educação em direitos humanos diz respeito ao contexto preven-
tivo, buscando educar para evitar possíveis violações.48
O tema tem aporte legal em diversos instrumentos internacionais, como por exemplo a CDC49 e a
DUDH50, que determinam que o ensino deve promover o respeito pelos direitos humanos e pelas
liberdades fundamentais. As pessoas devem ser educadas, e ter acesso à informação sobre os direitos
humanos em todas as idades, na educação formal e informal, uma vez que envolve assuntos de relevo,
como preconceito e atitudes de intolerância.
Os direitos humanos garantem direitos e liberdades de igual forma a todas as pessoas, sem qualquer
tipo de discriminação, independente de sexo, nacionalidade, etnia, idioma, idade, classe, ou quaisquer
outras formas de identidade. O conhecimento e informação sobre estes aspectos é primordial para que
os direitos humanos se tornem efetivos para todos. 51

A ideia que sustenta a educação na esfera dos direitos humanos é que a educação não deveria
objetivar unicamente a formação de trabalhadores capacitados e profissionais, mas também
contribuir com o desenvolvimento de pessoas com capacidade para inter-relacionarem-se e atuar
em uma sociedade justa. Mediante a educação para os direitos humanos, ou os direitos humanos
na educação, se pretende formar os alunos e estudantes em atitudes necessárias para adapta-
rem-se às mudanças sociais e impulsiona-los. A educação é percebida como um meio para favo-
recer a autonomia do indivíduo, melhorar sua qualidade de vida e aumentar sua capacidade para

46
CANDAU, Vera Maria. Experiências de Educação em Direitos Humanos na América Latina: o caso brasileiro. Cadernos Novamérica, Rio
de Janeiro, n. 10, 2001. p. 35.
47
UNESCO. Education Sector Technical Notes. Human Rights Education. Jun, 2013.
48
PIOVESAN, Flávia. FACCHIN, Melinda Girardi. Educação em Direitos Humanos no Brasil: desafios e perspectivas. Revista Jurídica da
Presidência, Brasília, v. 19, n. 117. Fev/Maio 2017. p. 20-38.
49
ONU. ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Sobre os Direitos da Criança, 1989, Art. 29
50
ONU. ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. (217 III A). Paris, 1948. Art. 26


51
UNESCO. Education Sector Technical Notes. Human Rights Education. Jun, 2013.

701
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

participar nos processos de adoção de decisões que conduzam a elaboração de políticas sociais,
culturais e economicamente melhores. 52

É importante perceber que a educação deve ser mais ampla do que apenas o ensino de escrita ou mate-
mática. Uma educação de qualidade deve ter um foco baseado nos direitos humanos e abordar ques-
tões como a diversidade cultural, a paz e a não violência, o desenvolvimento sustentável e o respeito à
dignidade humana. Isto exige dos sistemas educativos a adoção de novas estruturas, gestões, materiais
pedagógicos e didáticos, além de preparação para os profissionais que atuam na educação. 53
Assim como a educação não se resume a conteúdos de cunho mais técnico, a educação em direitos
humanos também não deve ser reduzida a simples incorporação de conteúdos sobre direitos humanos
aos currículos escolares. A EDH vai muito além dos conteúdos e dos planejamentos de estudo, uma vez
que abarca toda a variedade de processos e experiências de aprendizagem, que permite às crianças,
aos jovens e aos adultos, tanto de forma individual quanto coletiva, desenvolver plenamente sua perso-
nalidade no meio social, além de inculcar atitudes e comportamentos que permitem a participação
da comunidade e sociedade de forma construtiva e respeitosa. A EDH oferece uma oportunidade de
adquirir e praticar as atitudes de respeito aos direitos humanos através da vida escolar. 54
O próprio convívio escolar deve respeitar e fomentar os direitos humanos e as liberdades fundamen-
tais, a tolerância e a igualdade. A educação deve ser prestada de modo que respeite a dignidade das
crianças, jovens e adultos, de modo que permita a livre expressão de opiniões com liberdade para
participar plenamente da vida escolar55, sem discriminação ou tratamentos humilhantes e degradantes.
Ainda, cabe à EDH a construção da base da democratização dos sistemas educacionais, bem como
incitar o apreço pela democracia, já mesmo no ambiente escolar, incentivando a adoção de soluções
de conflitos não violenta.

O respeito aos direitos humanos está indissociavelmente unido à democracia porque respeitar os
direitos do homem significa respeitar sua liberdade de opinião, de associação, de manifestação e
todas as demais liberdades que somente a democracia permite. 56

A UNESCO elencou algumas considerações que devem ser respeitadas para implementação da EDH
nos sistemas de ensino:
a. Melhoramento dos currículos e planejamentos de ensino, incorporando os valores
humanos para a realização da paz, a coesão social e o respeito aos direitos e dignidade


52
“La idea que sustenta la educación en la esfera de los derechos humanos es que la educación no debería aspirar únicamente a formar
a trabajadores capacitados y profesionales, sino también a contribuir al desarrollo de personas con capacidad para interrelacionarse y
actuar em una sociedad justa. Mediante la educación para los derechos humanos, o los derechos humanos en la educación, se pretende
dotar a los alunos y estudiantes de las aptitudes necesarias para adaptarse a los câmbios sociales e impulsarlos. La educación se percibe
como un médio para favorecer la autonomía del individuo, mejorar su calidad de vida y aumentar su capacidad para participar en los
procesos de adopción de decisiones que conduzcan a la elaboración de políticas sociales, culturales y económicas mejores. UNESCO,
Educación para los derechos humanos. Disponível em: < https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000131836_spa>. Acesso em: 15
maio 2019.
53
UNESCO, Educación para los derechos humanos. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000131836_spa. Acesso
em: 15 maio 2019. P. 03
54
UNESCO, Educación para los derechos humanos. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000131836_spa. Acesso
em: 15 maio 2019. P. 05.
55
UNESCO, Educación para los derechos humanos. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000131836_spa. Acesso
em: 15 maio 2019. P. 05.
56
GORCZEVSKI, Clovis. MARTÍN, Nuria Bello. A necessária revisão do conceito de cidadania: movimentos sociais e novos protagonis-
tas na esfera pública democrática. Santa Cruz do Sul. EdUnisc. 2011. P. 80.

702
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

humanos. Neste sentido, é fundamental que a elaboração de planos de estudo seja um


processo mais participativo.
b. Reforma dos métodos tradicionais de ensino para torna-los mais democráticos e
participativos.
c. Coerência entre a formação dos professores e os objetivos da educação.
d. Democratização da estrutura interna da escola e sua gestão, promovendo a participação
das crianças e dos professores na vida escolar, criando uma comunidade escolar e conselhos
estudantis. Educando e orientando entre iguais, promovendo a participação das crianças
em processos disciplinares, como parte do processo de aprendizagem e de experiência do
exercício dos direitos humanos.
e. Adoção de medidas que aumentem as oportunidades para que pais e professores decidam
questões relativas à escola.
f. Criação de mecanismos que favoreçam a cooperação e o apreço mútuo entre todos os
membros da comunidade escolar e com isto promovam melhores relações entre profes-
sores e estudantes.
g. Criação de uma comunicação construtiva e a valorização da diversidade.
h. Oferecimento de oportunidades práticas através de exemplos e atividades da vida real. Por
isso, é de extrema importância estabelecer vínculos entre a escola e a comunidade local,
promovendo atividades extracurriculares. 57
A Declaração e Programa de Ação de Viena- Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, traz rele-
vantes apontamentos sobre a educação em direitos humanos.

33. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma que os Estados estão vinculados,
conforme previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Pacto Internacional sobre
os Direitos econômicos, Sociais e Culturais e noutros instrumentos internacionais de Direitos
Humanos, a garantir que a educação se destine a reforçar o respeito pelos Direitos Humanos e
liberdades fundamentais. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realça a importância
de incluir a questão dos Direitos Humanos nos programas de educação e apela aos Estados para
o fazerem. A educação deverá promover a compreensão, a tolerância, a paz e as relações amis-
tosas entre as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, e encorajar o desenvolvimento de
atividades das Nações Unidas na prossecução destes objetivos. Assim, a educação em matéria de
Direitos Humanos e a divulgação de informação adequada, tanto teórica como prática, desempe-
nham um papel importante na promoção e no respeito dos Direitos Humanos em relação a todos
os indivíduos, sem distinção de qualquer tipo, nomeadamente de raça, sexo, língua ou religião,
devendo isto ser incluído nas políticas educacionais, quer a nível nacional, quer internacional. A
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos observa que as limitações de recursos e a falta de
adequação das instituições podem impedir a imediata concretização destes objetivos. 58

O mesmo documento orienta os Estados a direcionar o ensino para o pleno desenvolvimento da


personalidade humana e para o respeito pelos Direitos Humanos e liberdades fundamentais, devendo

UNESCO, Educación para los derechos humanos. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000131836_spa. Acesso
57

em: 15 de maio 2019. P. 06 e 07.


58
ONU. CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE DIREITOS HUMANOS. Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993. Disponível em:
https://www.oas.org/dil/port/1993%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20e%20Programa%20de%20Ac%C3%A7%C3%A3o%20adopta-
do%20pela%20Confer%C3%AAncia%20Mundial%20de%20Viena%20sobre%20Direitos%20Humanos%20em%20junho%20de%20
1993.pdf. Acesso em 29 de abril de 2019, art. 33

703
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

incluir como disciplinas dispostas nos currículos de todos os estabelecimentos de ensino, os direitos
humanos, o direito humanitário e a democracia. As disciplinas deverão incluir educação para a paz, a
democracia, o desenvolvimento e a justiça social, afim de alcançar uma conscientização comum, que
permita reforçar o compromisso universal em favor dos Direitos Humanos. 59
Tendo em vista a importância da EDH, em 1994 a Assembleia Geral da ONU criou a Década das Nações
Unidas para Educação em Direitos Humanos60, que foi de 1994 até 2004.61 A Década teve como principal
objetivo incentivar, através da educação, o pleno desenvolvimento da personalidade humana, em um
espírito de paz, compreensão mútua e respeito pela democracia e pelas leis. O ensino, de acordo com
o estipulado na resolução que criou a Década das Nações Unidas para EDH, precisa ser introduzido em
todos os níveis da educação, e além disso, estar atento as metodologias de ensino, valorizando o ensino
interativo, participativo e culturalmente relevante.62

A proclamação da Década reafirma, tal como já referido em diversos instrumentos internacio-


nais de direitos humanos, que a educação em matéria de direitos humanos e em prol dos direitos
humanos constitui, em si mesma, um direito, isto é, o direito de todos a conhecer os direitos e a
dignidade de todos e as formas de garantir o seu respeito. Este deve ser o nosso compromisso
comum, uma vez que todas as organizações e pessoas têm um papel a desempenhar na orga-
nização de programas formais e não formais de educação em matéria de direitos humanos, e na
participação nos mesmos, a todos os níveis da sociedade.63

Ainda, a Década para EDH buscou fazer com que os Estados estabelecessem parcerias e concen-
trassem seus esforços na promoção de uma cultura universal de direitos humanos, através da educação,
formação e informação em matéria de direitos humanos.64

5.1. A importância da educação em direitos humanos para promoção do


respeito, da garantia e da proteção dos direitos humanos

Existe um crescente consenso em torno da ideia de que a educação em direitos humanos e para os
direitos humanos é essencial e pode contribuir para a redução das violações de direitos humanos,
assim como para a construção de sociedades livres, justas e pacíficas. A educação em matéria de

59
ONU. CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE DIREITOS HUMANOS. Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993. Disponível em:
https://www.oas.org/dil/port/1993%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20e%20Programa%20de%20Ac%C3%A7%C3%A3o%20adopta-
do%20pela%20Confer%C3%AAncia%20Mundial%20de%20Viena%20sobre%20Direitos%20Humanos%20em%20junho%20de%20
1993.pdf. Acesso em 29 de abril de 2019, arts. 79 e 80.
60
Assembleia Geral da ONU 49/184, de 23 de dezembro de 1994.


61
O Brasil lançou em 2003 o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), elaborando e implementando o plano e progra-
ma nacional, criando comitês estaduais de educação em direitos humanos, constituindo a ação global e estratégica do governo brasileiro
para efetivar a Década da Educação em Direitos Humanos 1994-2004.
62
CLAUDE, Richard Pierre. Direito à educação e educação para direitos humanos, SUR 2 (2004). Disponível em: http://sur.conectas.org/
direito-educacao-e-educacao-para-direitos-humanos/ Acesso em 17 Jan. 2019. p. 44
63
ONU. Direitos Humanos: lições para vida. (Série Década das Nações Unidas para a Educação em matéria de Direitos Humanos
1995|2004, n.1 ) Disponível em: http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/serie_decada_1_b_nacoes_unidas_
educacao_dh_.pdf Acesso em: 15 maio 2019. p.3
64
ONU. Direitos Humanos: lições para vida. (Série Década das Nações Unidas para a Educação em matéria de Direitos Humanos
1995|2004) Disponível em: http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/serie_decada_1_b_nacoes_unidas_edu-
cacao_dh_.pdf. Acesso em: 15 maio 2019. pag. 3

704
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

direitos humanos é também cada vez mais reconhecida como uma estratégia eficaz para prevenir
os abusos de direitos humanos.65

O preâmbulo da DUDH já menciona o direito à educação, e não apenas como um direito que deve ser
garantido, mas o indica como um meio para alcançar e garantir os objetivos da DUDH.

Como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indi-
víduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo
ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover,
por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua apli-
cação universais e efetivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre
as dos territórios colocados sob sua jurisdição.66

A partir do preâmbulo da DUDH é importante refletir sobre a importância da educação em direitos


humanos para a garantia e efetividade de todos os direitos. A educação é um meio primordial para que
os indivíduos conheçam seus direitos e descubram caminhos para sua efetividade. Do mesmo modo, a
EDH possibilita a educação para a paz e tolerância, para as relações sem discriminação, mas com igual-
dade, e assim, por conseguinte, a educação em direitos humanos é capaz de aproximar das pessoas, de
forma individual e coletiva, a eficácia dos direitos humanos. Educar e informar as pessoas sobre direitos
humanos é essencial para promover e obter relações estáveis e harmoniosas, assim como é essencial
para o favorecimento da compreensão mútua, da tolerância e da paz.67
A Corte IDH, em diversos casos, tem entendido a EDH como um meio para interromper um ciclo de
violações de direitos humanos.
No caso Guzmán y outras vs Equador,68 a Corte IDH discutiu e reafirmou a importância de uma
educação sexual nas escolas para combater violações de direitos humanos neste aspecto, especial-
mente no que diz respeito às meninas e mulheres. O caso trata de uma adolescente que foi seguida-
mente estuprada por um professor da escola que frequentava, que possivelmente iniciou os abusos,
prometendo à menina que isso possibilitaria que ela não reprovasse. A Corte entendeu que neste caso
houve uma lesão ao direito à educação em dois sentidos. O primeiro deles diz respeito à violação do
direito humano a uma educação sexual e reprodutiva, dado que tais conteúdos não integravam o currí-
culo escolar. O segundo aspecto da violação se refere ao direito de ter acesso a uma educação livre
da violência sexual, direito este garantido pelo artigo 13 do Protocolo de San Salvador, reforçado pelo
artigo 26 da Convenção Americana. A Corte IDH entendeu que o abuso sexual ocorrido dentro de uma
instituição de ensino constitui uma situação de discriminação que obstaculiza o acesso à educação.
Paola Guzmán, após aproximadamente um ano sendo violentada, cometeu suicídio.
As condenações da Corte ultrapassam as partes envolvidas no litígio e buscam estratégias para impedir
que aquelas situações de violação de direitos humanos se repitam. Para decidir desse modo a Corte
avalia o contexto onde as violações ocorrem, e geralmente são situações que favorecem ou incentivam
a violação sistemática de direitos humanos, como por exemplo, os regimes militares.

65
ONU. Direitos Humanos: lições para vida. (Série Década das Nações Unidas para a Educação em matéria de Direitos Humanos
1995|2004) Disponível em: http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/serie_decada_1_b_nacoes_unidas_edu-
cacao_dh_.pdf. Acesso em: 15 maio 2019. pag. 54.
66
ONU. ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948 (217 III A). Paris, 1948.


67
ONU. CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE DIREITOS HUMANOS. Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993. Disponível em: http://
www.oas.org/dil/port/1993%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20e%20Programa%20de%20Ac%C3%A7%C3%A3o%20adoptado%20
pela%20Confer%C3%AAncia%20Mundial%20de%20Viena%20sobre%20Direitos%20Humanos%20em%20junho%20de%201993.
pdf. Acesso em 29 de abril de 2019. art. 78
68
CORTE IDH. Caso Guzmán y otras vs Equador. Sentença de 24 de junho de 2020.

705
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Esta forma de sentenciar é conhecida como “sentenças estruturantes”, que são sentenças que ultra-
passam as partes para dar efetividade aos comandos constitucionais, quando é verificado que existem
recorrentes e generalizadas violações estatais aos direitos humanos e garantias fundamentais.69 Em
diversos casos, a forma que a Corte tem encontrado para mudar esta sistemática de violação, é por
meio da EDH, condenando os Estados a criar programas de EDH para seus agentes, com o intuído de
que, com tais informações e conhecimentos, haja maior apresso a dignidade humana e a não repetição
das violações de direitos humanos.
No caso Rochac Hernández y outros vs. El Salvador70, a CorteIDH reconheceu que a educação em direitos
humanos é crucial para gerar garantias de não repetição de violações de direitos humanos e fomentar
valores tais como a tolerância e o respeito mútuo. Além disso, segundo a Corte, ensinar sobre processos
históricos como o conflito armado interno ocorrido em El Salvador, é essencial para manter a memória
histórica nas gerações futuras. 71 Neste sentido, a Corte condenou o Estado a implementar programas
permanentes de direitos humanos voltados a policiais, fiscais, juízes e militares, assim como para os
funcionários encarregados dos cuidados com as famílias das vítimas de desaparecimento forçado, nos
quais deve incluir o tema de direitos humanos das crianças desaparecidas durante o conflito armado
interno e do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Assim, a Corte demonstra seu
entendimento de que a educação em direitos humanos é um meio eficaz para mudanças sociais, no
sentido de respeito e garantia dos direitos humanos. 72
O Brasil foi condenado no mesmo sentido no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil73, sendo obrigado a
implementar um programa permanente e obrigatório de EDH na formação dos membros das Forças
Armadas, em todos os níveis hierárquicos, como forma de evitar a repetição de tais violações de direitos
humanos. O Brasil incluiu nos currículos de formação militar disciplinas que tratam de Direito Constitu-
cional e de Direitos Humanos, assim como constituiu um grupo de trabalho com o objetivo de analisar
e propor o aperfeiçoamento da legislação militar e de defesa, melhorando a temática afeta à proteção
dos direitos humanos.

69
HENNIG LEAL, Mônica Clarissa; DALENOGARE ALVES, Felipe. A Corte Interamericana De Direitos Humanos Como Indutora De Políticas
Públicas Estruturantes: O Exemplo Da Educação Em Direitos Humanos - Uma Análise Dos Casos Ximenes Lopes E Gomes Lund Versus
Brasil - Perspectivas E Desafios Ao Cumprimento Das Decisões. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, [S.l.], n. 15, p. 287-
300, dez. 2015. Disponível em: http://revista.ibdh.org.br/index.php/ibdh/article/view/318. Acesso em: 16 maio 2019. p. 289.
70
O caso se refere ao desaparecimento forçado das crianças José Adrián Rochac Hernández, Santos Ernesto Salinas, Manuel Antonio Bonilla
Osorio, Ricardo Ayala Abarca e Emelinda Lorena Hernández. Os desaparecimentos ocorreram entre 1980 e 1982, todas com caracterís-
ticas semelhantes, no contexto do conflito armado, após operações militares da chamada “contra-insurgência”, onde seus familiares
escaparam ou foram mortos. Estas crianças foram vistas pela última vez com membros das forças armadas. Após mais de 30 anos do
desaparecimento nenhuma criança foi localizada e nenhuma pessoa foi punida, pois o Estado não executou uma investigação séria, em
um prazo razoável. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Rochac Hernández y outros vs. El Salvador . Sentencia
de 14 de octubre de 2014. Serie C. No. 285.


71
CORTE IDH. Caso Rochac Hernández y outros vs. El Salvador . Sentencia de 14 de octubre de 2014. Serie C. No. 285. par. 242
72
CORTE IDH. Caso Rochac Hernández y outros vs. El Salvador . Sentencia de 14 de octubre de 2014. Serie C. No. 285. par. 244
73
O caso trata da violação dos direitos humanos de integrantes do Partido Comunista do Brasil e de camponeses na Guerrilha do Araguaia,
que ocorreu entre 1960 e 1970, em oposição à ditadura militar brasileira. Todos os integrantes da Guerrilha foram mortos pelo governo
militar. Somente dois corpos foram localizados até hoje, o de Maria Lúcia Petit e de Bergson Gurjão. Com os efeitos da lei de anistia não
houveram punições pelos crimes cometidos pelos militares. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e
outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Serie C. No. 219.

706
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Do mesmo modo o Peru foi condenado no caso La Cantuta vs. Peru74, devendo implementar programas
permanentes de EDH buscando formar e capacitar os membros dos serviços de inteligência, das forças
armadas e da polícia nacional, de todas as hierarquias. Devem focar na legalidade e no uso da força em
situações de conflito armado e terrorismo, conceitos de obediência e a devida função das instituições.
Ainda, o Estado restou condenado a adotar as mesmas medidas de formação e educação para os fiscais
e juízes, incluindo aqueles de foro militar, sobre os standards internacionais em matéria de proteção
judicial de direitos humanos.
Através dos casos trazidos à discussão, é possível observar que a Corte tem buscado a não repetição
de violações de direitos humanos através da EDH, deixando claro entendimento de que a infor-
mação e a formação sobre os direitos humanos, busca a criação de uma sociedade da tolerância e
do respeito mútuo e por fim, poderá passar a efetivar os direitos humanos previstos nos documentos
legais. Assim, ressalta-se a importância de implementar mecanismos para EDH nos sistemas formais e
informais de ensino.

6. DIREITO À EDUCAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

O Brasil adotou em sua legislação interna a DUDH, o PIDESC, o PIDCP, a CADH, o Protocolo de San
Salvador, a CDC, a Convenção relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino, e, por isso,
o conteúdo explanado anteriormente, aplica-se de igual modo ao direito à educação no Direito Brasi-
leiro. Além da normativa internacional incorporada ao direito doméstico, o Brasil conta com legislação
própria que trata sobre o direito à educação, e esta será discutida nesta seção. 75

6.1. Constituição Federal

O direito à educação está assegurado na Constituição Federal76 já no artigo 6, que inclui o direito à
educação no rol dos direitos sociais. A seção I do Capítulo III da CF trata exclusivamente sobre o direito
à educação. O artigo 205 estabelece:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com
a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
A CRFB/88 determina em seu artigo 206 os princípios que devem reger a educação nacional:


74
O caso refere-se ao fato ocorrido em 18 de julho de 1991, na Universidade Nacional Enrique Guzmán e Valle-La Cantuta, membros do
exército invadiram uma residência estudantil e levaram os estudantes Bertila Lozano Torres, Dora Oyague Fierro, Luis Enrique Ortiz Perea,
Condor Armando Richard Amaro, Robert Edgar Teodoro Espinoza, Heráclides Pablo Meza, Felipe Flores Chipana, Marcelino Rosales Cár-
denas e Juan Gabriel Mariños Figueroa. Em seguida, procederam da mesma maneira na residência dos professores e levaram o professor
Hugo Muñoz Sánchez. Os restos mortais de Bertila e Luis Enrique foram encontrados em uma cova clandestina em 1993. Os demais
estudantes e o professor não foram encontrados. Houveram investigações tanto no foro comum quanto militar e algumas pessoas foram
denunciadas. No entanto, houve a promulgação da lei de anistia que isentava militares, policiais e civis da responsabilidade por violações
de direitos humanos entre 1980 e 1995. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso La Cantuta vs. Peru. Sentencia de
29 de noviembre de 2006. Serie C. No. 162.
75
A legislação brasileira aqui explanada não será exaurida. Serão comentados os artigos que indicarem relação com a normativa interna-
cional dos direitos humanos, de modo que questões mais específicas sobre a organização das instituições de ensino, orçamento, entre
outras, não serão esmiuçadas.
76
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 abr. 2019. art. 205

707
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;


II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e
privadas de ensino;
IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira,
com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; 
VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII - garantia de padrão de qualidade.
VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos
termos de lei federal.
Ao elencar os princípios, é possível perceber as similaridades com os princípios trazidos pela normativa
internacional, como a liberdade acadêmica (II), a gratuidade do ensino e a igualdade de condições para
o acesso à educação (I, IV). Mesmo aqueles princípios que não se apresentam com a mesma redação
na legislação interna e internacional, demonstram uma sincronia e complementariedade. Assim como
a normativa internacional, a CF garante um atendimento educacional especializado às pessoas porta-
doras de deficiência, ressaltando que preferencialmente, deve ocorrer na rede regular de ensino.
A CF presta especial atenção as demais necessidades materiais que envolvem o direito à educação,
assegurando que o Estado prestará ao educando, em todas as etapas da educação básica, através de
programas suplementares, material didático, transporte, alimentação e assistência à saúde. É permitida
a inciativa privada no campo do ensino, desde que haja o cumprimento das normas gerais de educação
nacional e autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.
Embora o artigo 210 não refira especificamente o direito à não discriminação, é perceptível que aborda
questões imprescindíveis para efetivação deste direito:
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação
básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas
públicas de ensino fundamental.
§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades
indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
O artigo 22 determina que compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação
nacional, já no artigo 24 consta que a competência é concorrente da União, Estados e Distrito Federal
legislar sobre educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e
inovação. De modo que se faz necessária atenção aos parágrafos do artigo 24, que estipulam que a
competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência dos Estados, que
é suplementar. Além disso, a CRFB/88 é clara ao determinar que a superveniência de lei federal sobre
normas gerais suspende a eficácia de lei estadual, naquilo que lhe for contrária. O artigo 30 estabelece
que é competência dos municípios, com auxilio técnico e financeiro da União e do Estado, manter
programas de educação infantil e de ensino fundamental. Assim como especifica o artigo 211, dele-
gando para os municípios a prioridade no ensino fundamental e na educação infantil, e aos Estados
o ensino médio.

708
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

O artigo 214 aponta objetivos comuns da educação nacional, através do plano nacional de educação,
que coadunam com os dispositivos da legislação internacional sobre o tema.
Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de arti-
cular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas
e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus
diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes
esferas federativas que conduzam a: 
 I - erradicação do analfabetismo;
II - universalização do atendimento escolar;
III - melhoria da qualidade do ensino;
IV - formação para o trabalho;
V - promoção humanística, científica e tecnológica do País.
VI - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do
produto interno bruto.

6.2. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

A lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional é a Lei 9.394 de 199677 e disciplina a
educação escolar, que se desenvolve predominantemente por meio do ensino em instituições próprias,
devendo esta ser vinculada ao mundo do trabalho e à prática social. O artigo 2º da lei, em conformidade
com a CRFB/88, estabelece que a educação é dever do Estado e da família, inspirada nos princípios
de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tendo por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando e seu preparo para o exercício da cidadania, bem como a sua qualificação para o trabalho. No
mesmo sentido, determina o artigo 22 quando estabelece que a educação básica tem por finalidade o
desenvolvimento do educando, oferecendo-lhe o indispensável para o exercício da cidadania e forne-
cendo-lhes os meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores.
Em seguida, a lei 9.934, estabelece os princípios que embasam a prestação do direito à educação. Além
de reafirmar os princípios elencados pela CRFB/88, a lei de diretrizes e bases da educação nacional
adiciona os seguintes princípios:
IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;
V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
X - valorização da experiência extra-escolar;
XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
XII - consideração com a diversidade étnico-racial.
XIII - garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida.
A lei de diretrizes e bases da educação nacional mostra-se de acordo com aquilo que é estipulado pela
normativa internacional, garantindo o ensino primário gratuito e obrigatório, dos 4 aos 17 anos de idade.

BRASIL. Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.
77

br/Ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em: 25 abr. 2019

709
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

A lei ainda assegura o ensino especializado e gratuito aos educandos com deficiência, “transtornos
globais de desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”, reservando um capítulo que trata
da educação especial. Preferencialmente o ensino especial se dará na escola regular, atendendo as
peculiaridades dos estudantes que tenham algum tipo de deficiência. Quando não for possível o aten-
dimento na escola regular, poderá ser prestado em classes, escolas ou serviços especializados.
Os estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades ou super-
dotação terão assegurados um ensino atento as necessidades de cada um, adaptando currículos,
técnicas, métodos, recursos educativos e organizações específicas, além de contar com professores
com formação adequada para o atendimento especializado e capacitados para a integração destes
estudantes nas classes comuns. A lei também determina que deve haver uma terminalidade específica
para os estudantes que não puderem atingir o nível específico para a conclusão do ensino fundamental,
em função da sua deficiência, bem como um tempo menor para conclusão do programa escolar para
os estudantes superdotados.
A lei de diretrizes e bases da educação nacional dedica singular atenção aos jovens e adultos, em espe-
cial os trabalhadores, para que tenham o direito à educação garantido através de condições de acesso
e permanência na escola, estabelecendo que haja oferta de educação escolar com características e
modalidades adequadas às necessidades destes grupos, bem como oferta de ensino noturno.
Neste mesmo sentido, a lei refere-se também a população rural, exigindo que na oferta da educação
básica para esta população os sistemas promovam as adaptações necessárias às peculiaridades da vida
rural em cada região. O sistema educacional deve estar atento aos conteúdos curriculares e metodo-
logias, de modo que sejam apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural,
adequação do calendário escolar atento às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas, bem como
adequação à natureza do trabalho na zona rural.
Em 2019 entrou em vigor o artigo 7º-A, que garante aos estudantes, no exercício de sua liberdade reli-
giosa, de consciência e de crença o direito a ausentar-se de prova ou aula que ocorra no dia em que,
segundo seus preceitos religiosos, seja vedado o exercício de tais atividades, desde que haja prévio e
motivado requerimento por parte do aluno. Na ocorrência desta hipótese, a critério da instituição, seja
esta pública ou privada, e sem custos para o aluno, deve ocorrer uma prova ou aula de reposição. A
atividade de reposição se dará em data alternativa, no turno de estudo do aluno ou em outro horário
agendado com anuência expressa do estudante, ou um trabalho escrito ou outra modalidade de ativi-
dade de pesquisa, com tema, objetivo e data de entrega definidos pela instituição de ensino.
O artigo 26 trata dos conteúdos que devem ser abordados em sala de aula, e seu parágrafo 9º estabelece
que “conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a
criança e o adolescente serão incluídos, como temas transversais, nos currículos escolares” Ainda em
consonância com o que determina o direito internacional dos direitos humanos, bem como o direito
à não discriminação e a educação para cidadania, a lei 9.934/96, ao discutir a base comum curricular
nacional no artigo 26, estipula que os currículos devem abranger obrigatoriamente, além do ensino
da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural, a realidade social e
política, em especial a brasileira. Ainda torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e
indígena, que deve abranger diversos aspectos da história e cultura que caracterizaram a formação da
população brasileira, a partir destes grupos étnicos
tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no
Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional,
resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
A lei determina que o ensino regular deve ser ministrado em língua portuguesa, mas assegura às comu-
nidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

710
DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

6.3. Estatuto da Criança e do Adolescente

O ECA estipula no artigo 4 que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público, assegurar com absoluta prioridade a efetivação dos direitos referentes a educação. Além disso,
a educação deve ser prestada visando o pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da
cidadania e qualificação para o trabalho. 78 À criança deve ser assegurado:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - direito de ser respeitado por seus educadores;
III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores;
IV - direito de organização e participação em entidades estudantis;
V - acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.
No que tange ao direito de escolha dos pais, o ECA determina que os pais e responsáveis têm o direito
de ter ciência do processo pedagógico, participando da definição das propostas educacionais. O ECA
reafirma o direito de acesso à educação nos termos da CRFB/88 e determina que no processo educa-
cional deverão ser respeitados os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da
criança ou do adolescente, garantindo a liberdade de criação e o acesso as fontes de cultura.


78
BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art266. Acesso em: 10 de maio de 2019, art.
53.

711
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O GENOCÍDIO NO
DIREITO INTERNACIONAL E
INTERNO BRASILEIRO

Jocelyn Getgen Kestenbaum

1. DEFINIÇÃO DE GENOCÍDIO

O genocídio é um crime proibido pelo Direito Internacional, cometido em tempos de paz ou guerra,
que todos os Estados são obrigados a prevenir e punir1. Genocídio é reconhecido como uma norma
peremptória (jus cogens) de Direito Internacional e uma obrigação erga omnes, ou seja, devida à
comunidade internacional como um todo2 , significando que a proibição do genocídio é absoluta e
incondicional3. Como tal, todos os Estados, independentemente de ser ou não partes da Convenção de
Genocídio, estão vinculados pelas disposições do tratado que são aceitas como Direito Internacional
consuetudinário4.
Universalmente reconhecido como um crime internacional de natureza particularmente grave5, o
genocídio gera responsabilidade criminal individual e é considerado um ato ilícito que desencadeia
a responsabilidade do Estado6. Embora o termo geralmente associe-se - em imagens vívidas – ao
Holocausto e outros eventos de extermínio em massa, o genocídio é um processo com uma definição
legal específica, diferente da maneira pelo qual pode ser entendida na imaginação coletiva ou no
discurso popular7.
Os artigos II da Convenção de Genocídio e do Decreto nº 30.822 define o crime internacional
de genocídio como:


1
Convenção do Genocídio, vide nota 2, art. I.
2
Aplicação da Convenção de Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Bósnia e Herzegovina vs Sérvia e Montenegro), Julgamento,
2007 C.I..J. Rep. 43, §§161-63, 167 (26 de fevereiro de 2007); olhar também KREß, Klaus. O Crime de Genocídio sob o Direito Internacional,
6 Int’l Crim. L. Rev. 461, 467-68 (2006).
3
Bósnia e Herzegovina vs Sérvia e Montenegro, 2007 C.I.J. §167. Em 2006, o Tribunal Internacional de Justiça concluiu que a proibição
do genocídio é jus cogens. Id. §161 (“A Corte reafirmou as Declarações de 1951 e 1996 em seu julgamento de 03 de fevereiro de 2006
[...] quando acrescentou que a norma que proíbe o genocídio era seguramente uma norma peremptória do Direito Internacional [jus
cogens]”).
4
Schabas, William. Genocídio no Direito Internacional 6 (2ª ed. 2009) (“[...] a grande maioria dos textos nacionais sobre genocídio repete
a definição da Convenção e tende a corroborar seu status de autoridade”).
5
Convenção do Genocídio, vide nota 2, no preâmbulo.
6
Idem,arts. V e IX.
7
Ver Marko Milanović, Responsabilidade do Estado pelo Genocídio, 17 Eur. J. Int’l L. 553, 556 (2006). Em seu artigo sobre a
responsabilidade estatal pelo genocídio, Milanović observa que “há uma diferença marcante entre o significado comum e leigo da palavra
‘genocídio’, ou mesmo o conceito de genocídio na antropologia ou outras ciências sociais e o conceito jurídico de genocídio, ou melhor
ainda, o conceito de genocídio no Direito Internacional”.

712
O GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL E INTERNO BRASILEIRO

[...] qualquer um dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um
grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição
física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.8.
Os requisitos legais do genocídio consistem nos seguintes elementos: a existência de um grupo de
vítimas alvo, podendo ser um grupo nacional, étnico racial ou religioso; a intenção geral de cometer
um ou mais dos atos proibidos; a intenção específica, ou dolus specialis, de destruir, no todo ou em
parte, o grupo protegido; e a atual ocorrência de um ou mais dos atos proibitivos enumerados9. Embora
a prática de genocídio geralmente resulte de uma política ou plano implementado por funcionários/
oficiais estatais, atores privados, ou uma combinação de ambos, a prova da existência de tal política ou
plano, não é, por si só, um elemento para a determinação da responsabilidade do Estado pelo genocídio
sob o costume internacional10.

2. ELEMENTOS DO GENOCÍDIO
A) Grupos protegidos: Grupos Nacionais, Étnicos, Raciais e Religiosos
Os grupos protegidos pela Convenção para a prevenção e a repressão do crime de Genocídio, promul-
gada pelo Decreto n.º 30.822, são limitados aos nacionais, étnicos, raciais e religiosos.11 Essas quatro
categorias são consideradas como “uma lista exaustiva de todos os tipos de grupo abrangidos pela lei”12.
Assim, se as vítimas de um ou mais dos atos proibidos pela Convenção não cumprir com os critérios

8
Convenção do Genocídio, vide nota 2, art. II; Decreto Nº 30.822, de 6 de Maio de 1952, Diário Oficial Da União [D.O.U.] de 9 de maio
de 1952 (Brasil) dispõe o seguinte: Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a
intenção de destruir no todo ou em parte, um groupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou
parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.
9
Genocide Convention, supra note 2, at art. II; Gideon Boas, James L. Bischoff & Natalie L. Reid, Elements of Crime Under International
Law: International Criminal Law Practitioner Library Series Volume II 139-40 (2008).
10
Prosecutor v. Krstić, Case No. IT-98-33-A, Judgment, 225 (Int’l Crim. Trib. for the Former Yugoslavia Apr. 19, 2004); Prosecutor v. Popović
et al., Case No. IT-05-88-A, Judgment, 427-50 (Int’l Crim. Trib. for the Former Yugoslavia Jan. 30, 2015); Prosecutor v. Jelesić, Case No.
IT-95-10-A, Judgment, 47-48 (Int’l Crim. Trib. for the Former Yugoslavia July 5, 2001); Prosecutor v. Kayishema & Ruzindana, Case No. ICTR-
95-1-A, Judgment, 138 (June 1, 2001); Prosecutor v. Blagojević and Jokić, Case No. IT-02-60-T, Judgment, 656 (Int’l Crim. Trib. for the Former
Yugoslavia Jan. 17, 2005); Prosecutor v. Karadžić, Case No. IT-95-5/19-T, Judgment, (Int’l Crim. Trib. for the Former Yugoslavia Mar. 24, 2016).
11
Convenção para Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, ver nota 2 supra, art. II; Decreto Nº 30.822, de 6 de Maio de 1952, Diário
Oficial Da União [D.O.U.] de 9.5.1952 (Braz.).
12
THOMAS W. SIMON, THE LAWS OF GENOCIDE: PRESCRIPTIONS FOR A JUST WORLD 94 (2007). O entendimento de que havia uma
lista fechada das pessoas protegidas pela Convenção sobre o Genocídio surgiu, inicialmente, com o TPIR no caso Prosecutor v. Akayesu.
Ver Prosecutor v. Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T, Julgamento (2 Set. 1998); Ver também INTERNATIONAL CRIMINAL LAW AND ITS
ENFORCEMENT: CASES AND MATERIALS 497 (Beth Van Schaack & Ronald C. Slye eds., 3ed. 2014).

713
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

para ser considerada membro do grupo nacional, étnico, racial ou religioso, a lei de genocídio não é
aplicável para elas.13
As categorias de grupos protegidos são imprecisas e difíceis de definir, bem como não existe uma
definição internacionalmente aceita para cada grupo.14 Os Tribunais, na tentativa de identificar os
grupos protegidos, têm frequentemente seguido a abordagem utilizada pela Câmara de julgamento
do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) no caso Prosecutor v. Akayesu, a primeira acusação
e julgamento internacional por crime de genocídio desde que a Convenção foi promulgada.15 Assim,
a Câmara definiu um grupo nacional como grupo de pessoas que compartilham da mesma naciona-
lidade; grupo étnico como aquele cujos membros compartilham de idioma e cultura comum; grupo
racial baseado nos traços físicos hereditários, geralmente identificado em uma região geográfica parti-
cular; e grupo religioso como aquele cujos membros compartilham da mesma religião, denominação
ou forma de culto.16
Notavelmente, o que consiste nos quatro grupos é essa pertença, em certo sentido, imutável. O texto
da Convenção indica que os seus redatores focalizaram na estabilidade perceptível dos grupos e na
natureza permanente dos seus membros.17 Em particular, “a pertença a tais grupos parece normalmente
não poder ser contestada pelos seus membros, que lhe pertencem automaticamente, por nascimento,
de forma contínua e muitas vezes irremediável”.18
Dadas as dificuldades para identificar os contornos dos grupos protegidos e estabelecer se as vítimas
são, de fato, membros de um grupo, os Tribunais buscam tanto fatores subjetivos como objetivos para
determinar sua identificação.19 Nesse sentido, um grupo pode ser caracterizado com base em como
cada membros compreende o grupo, mas também como a comunidade, no sentido mais amplo – e,
mais especificamente, os agressores – compreendem tal grupo alvo. 20 Especificamente, nos casos
em que não se sabe ao certo se a vítima é membro de um grupo protegido, se o agressor manteve
a convicção subjetiva de que a vítima era um membro de tal grupo e a atingia a partir de tal enten-
dimento, essa vítima pode ser considerada um membro do grupo protegido para fins de genocídio. 21

13
SIMON, ver nota 15 supra, p. 94. Note, contudo, que isto não significa que os perpetradores que visem um grupo não protegido pela
Convenção sobre o Genocídio não possam ser responsabilizados pela lei internacional ou mesmo doméstica, por outros crimes de
atrocidade. Além disso, os Estados podem ampliar os grupos protegidos em leis internas. Ver BOAS ET AL., nota 12 supra, p. 140-42.
14
Ver SCHABAS, nota 7 supra, p. 117, 124 (“The Convention’s list of protected groups has probably provoked more debate since 1948 than any
other aspect of the instrument.”).
15
Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T; ver também International Criminal Law and Its Enforcement, nota 15 supra, p. 497.
16
Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T, Julgamento, p. 512-15.


17
Id. p. 511.
18
No original: “that membership in such groups would seem to be normally not challengeable by its members, who belong to it
automatically, by birth, in a continuous and often irremediable manner.”. Id. Ver também BOAS ET AL., nota 12 supra, p. 174 (concluindo
que “[s]ubsequent judgements take a more relaxed approach to the question of membership in the group”).
19
Prosecutor v. Jelesić, Caso No. IT-95-10-A, Julgamento, 70 (Int’l Crim. Trib. for the Former Yugoslavia 5 Jul. 2001); Prosecutor v. Bagilishema,
Caso No. ICTR-95-1A-T, Judgment, 65 (7 Jun. 2001); Ver também INTERNATIONAL CRIMINAL LAW AND ITS ENFORCEMENT, nota 15
supra, at 506; GENOCIDE AND INTERNATIONAL CRIMINAL LAW 31 (Willem-Jan van der Wolf ed., 2010); SCHABAS, nota 7 supra, p.
128 (“Determination of the relevant protected group should be made on a case-by-case basis, referring to both objective and subjective
criteria.”).
20
Jelesić, Caso No. IT-95-10-A, Julgamento, 70 (“It is the stigmatization [sic] of a group as a distinct national, ethnical or racial unit by the
community which allows it to be determined whether a targeted population constitutes a national, ethnical or racial group in the eyes of
the alleged perpetrators.”).
21
Bagilishema, Caso No. ICTR-95-1A-T, Julgamento, p. 65.

714
O GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL E INTERNO BRASILEIRO

Os grupos de vítimas devem ser determinados a partir de características positivas. 22 No que se refere
a aplicação da Convenção, “[e]ssa é uma questão sobre quem essas pessoas são, não sobre quem elas
não são.”23 Assim, ao determinar a existência de um grupo protegido conforme a Convenção para a
prevenção e a repressão do crime de Genocídio, os Tribunais avaliam caso a caso as características
positivas dos grupos à luz da visão subjetiva do agressor e se há ao menos um suporte objetivo para
todas essas visões. 24
Coincidências significativas existem entre os quatro grupos protegidos. 25 A pertença a um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso geralmente é embasada no amplo contexto político, social e cultu-
ral. 26 As concepções de grupo também evoluíram com as mudanças na compreensão da sociedade. 27 Os
redatores da Convenção entenderam a relação entre os quatro grupos como “dinâmica e sinergética”. 28
Essa abordagem dinâmica e sinergética na definição dos grupos protegidos foi adotada pelo relatório
de 1966 da Comissão de Direito Internacional (CDI) no Projeto do Código de Crimes Contra a Paz
e a Segurança da Humanidade (Draft Code of Crimes Against the Peace and Security of Mankind)
ao considerar que “grupos tribais” podem ser enquadrados no âmbito da definição de genocídio. 29
A Câmara de Recursos do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII) apontou que o
próprio Raphael Lemkin “concebeu o genocídio como direcionado para uma raça, tribo ou nação ou
outro grupo com uma identidade positiva específica.”30
Ao determinar se os eventos ocorridos no Sudão constituíram genocídio, o Relatório da Comissão
Internacional de Inquérito sobre a Situação em Darfur para a Secretaria Geral observou que os antro-
pólogos consideram que uma tribo compreende “uma divisão territorial de determinada popu-
lação numerosa, baseada no parentesco ou na crença que descendem de um ancestral”, bem como

22
Ver Schabas, nota 7 supra, p. 131 (“A negative approach to definition . . . has been fairly convincingly rejected by the courts.”). A Câmara
de Julgamento Jelesić distinguiu estas abordagens positivas e negativas para definir um grupo protegido da seguinte forma: A “positive
approach” would consist of the perpetrators of the crime distinguishing a group by the characteristics which they deem to be particular to
a national, ethnical, racial or religious group. A “negative approach” would consist of identifying individuals as not being part of the group
to which the perpetrators of the crime consider that they themselves belong and which to them displays specific national, ethnical, racial
or religious characteristics. Thereby, all individuals thus rejected would, by exclusion, make up a distinct group. Prosecutor v. Jelesić, Caso
No. IT-95-10-T, Judgment, 71 (Int’l Crim. Trib. for the Former Yugoslavia Dec. 14, 1999).
23
No original: “[i]t is a matter of who those people are, not who they are not.”. Aplicação da Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do
Crime de Genocídio (Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro), Julgamento, 2007 I.C.J. Rep. 43, 193 (Feb. 26).
24
Boas et al., nota 12 supra, p. 175. “[A]ll that may be drawn from the current jurisprudence is that, in order for any offenses against specific
individuals to constitute the crime of genocide, the victims must be at least perceived as belonging to the targeted group; which must at
least be perceived as forming a distinct national, ethnic, racial, or religious group; and that there must be some objective support for the
group to be treated as such.” Id.
25
Schabas, nota 7 supra, p. 129.
26
Boas et al., nota 12 supra, p. 175.


27
Schabas, nota 7 supra, p. 129.
28
No original: “dynamic and synergistic.” Id. p. 130.
29
United Nations, Yearbook of the International Law Commission 1996: Vol. II, Part Two, Report of the Commission to the General
Assembly on the Work of its Forty-Eighth Session 45 (1996), disponível em: https://legal.un.org/ilc/publications/yearbooks/english/
ilc_1996_v2_p2.pdf (last visited Mar. 4, 2020); ver Schabas, nota 7 supra, p. 130.
30
No original: “conceived of genocide as targeting a race, tribe, nation, or other group with a particular positive identity.”. Schabas, nota 7
supra, p. 130 (citando Prosecutor v. Stakić, Caso No. IT-97-24-A) (grifo nosso).

715
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

que essa divisão denominam-se por um nome e compartilham um idioma comum. 31 Ademais, embora
o Tribunal da Guatemala não tenha analisado o elemento do grupo protegido, constatou que a popu-
lação Maya Ixil era um “grupo étnico” para fins de genocídio. 32 Dessa maneira, indígenas – na medida
em que (1) podem ser identificados usando uma identidade de grupo comparável a grupos tribais, e
(2) enquadram-se em um ou mais grupos protegidos sob a definição de genocídio – estão dentro do
escopo de proteção desta lei. 33

B) Mens Rea e a intenção específica do Estado perpetrador


A mens rea do genocídio consiste na intenção geral de cometer um ou mais dos atos proibidos, com
a intenção específica – ou dolus specialis – de destruir um grupo protegido no todo ou em parte. 34 A
intenção geral exige que o perpetrador do ato proibido tenha a intenção de cometer o ato35, enquanto
a intenção específica engloba a intenção de destruir um dos grupos protegidos. 36 É esse requisito da
intenção específica de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso,
enquanto tal, que é a característica distintiva do genocídio. 37
O genocídio geralmente ocorre como parte de um plano sistêmico maior envolvendo vários atores;
assim, os Tribunais enfocam o papel subjacente do Estado na promoção do crime. 38 Embora a
Convenção para a prevenção e a repressão do crime de Genocídio indique que a preocupação de
processar criminalmente os agentes individualmente considerados, perpetradores do crime de geno-
cídio39, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), em julgamento ocorrido em 2007 sobre a aplicação da
Convenção para a prevenção e a repressão do crime de Genocídio (Bósnia e Herzegovina v. Sérvia e
Montenegro, ou “Caso Genocídio”), confirmou que a responsabilização do Estado por genocídio, bem
como sua cumplicidade na prática do crime, pode se dar sob a égide da Convenção, sem qualquer
condenação criminal individual.40


31
No original: “a territorial division of certain large populations, based on kinship or the belief that they descend from one ancestor,”.
International Commission of Inquiry on Darfur, Report of the International Commission of Inquiry on Darfur to the Secretary General.
Pursuant to SC Res. 1564, 18 September 2004, Annex to Letter dated 31 January 2005 from the Secretary General Addressed to the
President of the SC, S/2005/60 (1 Fev. 2005), disponível em: https://www.un.org/ruleoflaw/files/com_inq_darfur.pdf (acesso em: 4 Mar.
2020).
32
State v. Ríos Montt et al., Case No. 1904-2013, Constitutional Court of Guatemala, Judgment (May 20, 2013).
33
International Commission of Inquiry on Darfur, nota 35 supra, p. 495; ver também Schabas, nota 7 supra, p. 130; David L. Nersessian, The
Contours of Genocidal Intent: Troubling Jurisprudence from the International Criminal Tribunals, 37 Tex. Int’l L. J. 231, 262 (2002).
34
Genocide Convention, nota 2 supra, art. II.; ver também Boas et al., nota 12 supra, p. 160 (“Unless this requirement is satisfied, no act
qualifies as genocide.”); National Inquiry into Missing and Murdered Indigenous Women and Girls, Supplementary Report: A Legal Analysis
of Genocide 4 (2019), disponível em: https://www.mmiwg-ffada.ca/wp-content/uploads/2019/06/Supplementary-Report_Genocide.pdf
[hereinafter “Canadian Supplementary Report”].
35
Schabas, nota 7 supra, p. 260.
36
Blagojević and Jokić, Caso No. IT-02-60-T, Julgamento, 640 (citing Krstić, Case No. IT-98-33-T, 542; Brđanin, Case No. IT-99-36-T, 681).
37
Genocide Convention, nota 2 supra, art. II; Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T, Julgamento, 498; Prosecutor v. Brđanin, Case No. IT-99-36-T,
Judgment, 695 (Int’l Crim. Trib. for the Former Yugoslavia Sept. 1, 2004) (As ações proibidas são “elevated to genocide when it is proved
that the perpetrator not only wanted to commit those acts but also intended to destroy the targeted national, ethnical, racial or religious
group in whole or in part, as such. It is this specific intent that characterizes the crime of genocide.”); ver também International Criminal
Law and Its Enforcement, nota 15 supra, p. 511.
38
Schabas, nota 7 supra, p. 491 (“[G]iven the nature of the crime, it is difficult to conceive of genocide without some form of State complicity
or involvement.”).
39
Kreß, nota 5 supra, p. 473. Kreß entende que “the prohibited acts are even formulated from the perspective of the subordinate perpetrator
rather than from the controller/director of the overall genocidal plan.” Id.
40
Aplicação da Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio (Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro), Julgamento, 2007
I.C.J. Rep. 43, 182 (Feb. 26); ver também Schabas, nota 7 supra, p. 491.

716
O GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL E INTERNO BRASILEIRO

Quando o Estado pratica o crime de genocídio, o Tribunal pode inferir intenções específicas às ações
do Estado.41 Os Estados, ao contrário dos indivíduos, não têm uma consciência própria e, portanto, não
possuem “estado mental”, tal como esse termo é compreendido no direito penal.42 Para determinar se
um Estado agiu com a “intenção de destruir” necessária para constatar o genocídio, a investigação
relativa à intenção especial de perpetração do Estado centra-se na sua política. Conforme concluiu
Schabas, “as políticas do Estado materializam a mens rea do Estado.”43
Ao descobrir que um Estado poderia ser responsabilizado por cometer um genocídio e ao deter-
minar se um padrão de conduta demonstrou a intenção especial necessária, o CIJ no Caso do Geno-
cídio considerou:
O dolus specialis, a intenção específica de destruir o grupo protegido no todo ou em parte, tem de
ser demonstrada de forma convincente a partir de circunstâncias particulares, a menos que se possa
demonstrar a existência de um plano geral para esse fim; e para que um padrão de conduta seja
aceito como prova da sua existência, teria de ser tal que somente pudesse apontar para a existência
dessa intenção.44
Assim, para provar a intenção específica do Estado, também deve existir: (1) evidência direta de um
plano genocida, ou, na ausência de tal evidência direta, (2) um padrão geral de violência suficiente
para mostrar que a política do Estado não pode ser senão a de destruir o grupo protegido. 45 As provas
circunstanciais podem estabelecer uma inferência de intenções específicas do Estado.46 Além disso, a
identificação dos perpetradores aos quais a intenção pode ser atribuída não é necessária.47
A destruição do grupo não precisa ser o primeiro objetivo do Estado ao cometer atos proibidos contra o
grupo, visto que, posteriormente, a continuação de tais atos pode se dar com o objetivo de destruição.48
A intenção genocida não precisa ser formada antes de cometer os atos proibidos49, e os próprios atos


41
Schabas, nota 7 supra, p. 250.
42
Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro, 2007 I.C.J. 167-70.
43
No original: “state policies embody the state’s mens rea”. Schabas, note 7, supra, p. 250; Canadian Supplementary Report, nota 38 supra,
p. 19 (citando William A. Schabas, Genocide in International Law 250 (2d ed., 2009)).
44
No original: “The dolus specialis, the specific intent to destroy the protected group in whole or in part, has to be convincingly shown by
reference to particular circumstances, unless a general plan to that end can be convincingly demonstrated to exist; and for a pattern of
conduct to be accepted as evidence of its existence, it would have to be such that it could only point to the existence of such intent.”
Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro, 2007 I.C.J. 373.
45
Id.; Canadian Supplementary Report, nota 38 supra, p. 19-20 (“[A] state’s specific intent to destroy a protected group can only be proved
by the existence of a genocidal policy or manifest pattern of conduct.”); Paola Gaeta, On What Conditions Can a State be Held
Responsible for Genocide?, 18 Eur. J. Int’l L. 632, 643 (2007).
46
Ver: Boas et al., nota 12 supra, p. 160-61; “As provas circunstanciais podem incluir: […] deliberate or systematic targeting of a particular
national, ethnic, racial or religious group to the exclusion of members of other groups; the scale of the alleged atrocities, including the
number of members of the targeted group who are affected; the repetition of destructive and discriminatory acts; the weapons employed
and the extent of bodily injury; a general context of other offenses directed at the same target population; the use of derogatory language
toward or about members of the targeted group; other conduct, which falls short of an underlying offence of genocide, but which violates,
or which perpetrators consider to violate, ‘the very foundation of the group’; and other words and conduct of the perpetrators […]. Id.
47
Krstić, Caso No. IT-98-33-A, Julgamento, 34 (finding that “inference that a particular atrocity was motivated by genocidal intent may be
drawn [] even where the individuals to whom the intent is attributable are not precisely identified”).
48
Prosecutor v. Krstić, Caso No. IT-98-33-T, Julgamento, 571 (Int’l Crim. Trib. for the Former Yugoslavia Aug. 2, 2001).
49
Uma decisão inicial do TPIR sustentou que, embora os próprios atos individuais não exigissem premeditação, “the mens rea must be
formed prior to the commission of the genocidal acts.” Ver Prosecutor v. Kayishema and Ruzindana, Caso No. ICTR-95-1-T, Julgamento, 91
(May 21, 1999). A Câmara de Recursos no caso Simba anulou essa decisão, mantendo: “[t]he inquiry is not whether the specific intent was
formed prior to the commission of the acts, but whether at the moment of commission the perpetrators possessed the necessary intent.”
Ver Simba v. The Prosecutor, Caso No. ICTR-01-75-A, Judgment, 266 (27 Nov. 2007).

717
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

proibidos não precisam ser premeditados. 50 Além disso, o motivo não importa para o genocídio. Não é
relevante legalmente se o Estado perpetrador tinha um motivo alternativo, tal como “desenvolvimento”
ou “uso da terra”, na execução de uma política de genocídio. 51 A existência de motivos subjacentes à
prática de atos proibidos contra um grupo protegido não exclui a existência de intenção genocida. 52
O genocídio requer apenas que a intenção de cometer os atos proibidos e a intenção de destruir o
grupo protegido, no todo ou em parte, exista no momento em que os atos proibidos foram cometidos
contra esse grupo. 53
Além disso, o padrão mens rea é menor para o Estado em relação a um indivíduo, pois diz respeito
à cumplicidade e à – responsabilidade – do Estado pelo genocídio. 54 O CIJ esclareceu que a mínima
intenção criminosa genocida é suficiente para responsabilizar um Estado por agir com cumplicidade
no genocídio, e a prova da intenção genocida por parte do Estado não é um elemento necessário para
estabelecer a responsabilidade. 55

C) Actus Reus: a ação proibida


A Convenção sobre o Genocídio e o Decreto Nº. 30.822 proíbem cinco ações que, individual ou coleti-
vamente, constituem o actus reus do genocídio. 56 O genocídio pode ser perpetrado através de ações
ou omissões direcionadas a um grupo protegido. 57 Não é necessário que ocorra o extermínio do grupo
protegido para que um genocídio ocorra, tampouco que seja estabelecido exatamente o número total
de vítimas. Uma vez que o Estado comete qualquer uma das ações enumerados contra um grupo prote-
gido com intenção, ocorre o genocídio. 58
Os cinco delitos que constituem as ações proibidos estão enumerados no Artigo II da Convenção para
a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio e consistem em: (1) matar membros do grupo; (2)
causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; (3) submeter intencionalmente
o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhes a destruição física total ou parcial; (4)
adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e (5) efetuar a transferência
forçada de crianças do grupo para outro grupo. 59
Os Tribunais Penais Internacionais ad hoc que processam os acusados por responsabilidade criminal
individual, tais como o TPII e o TPIR, têm tido mais oportunidades de abordar certos delitos - tais
como matar e causar lesão grave à integridade física e mental - e pouca ou nenhuma oportunidade

50
Krstić, Caso No. IT-98-33-T, Julgamento, 572 (“Article IV of the Statute does not require that the genocidal acts be premeditated over a
long period.”); Aplicação da Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio (Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro),
Julgamento, 2007 I.C.J. Rep. 43, 292 (26 Fev.) (“The acts of genocide need not be premeditated and the intent may become the goal later
in an operation.”).


51
Nersessian, nota 37 supra, p. 267-68 (grifo nosso).
52
Prosecutor v. Blaškić, Caso No. IT-95-14-A, Julgamento, 694 (Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia 29 Jul. 2004); Prosecutor
v. Krnojelac, Caso No. IT-97-25-A, Julgamento, 102 (Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia 17 Set. 2003).
53
Simba, Caso No. ICTR-01-75-A, Julgamento, 266.
54
Guénaël Mettraux, International Crimes: Law and Practice, Volume I: Genocide 24-25 (2019).
55
Aplicação da Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio (Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro), Julgamento,
2007 I.C.J. Rep. 43 (26 Fev.); ver também Mettraux, nota 58 supra, p. 24-25.
56
Genocide Convention, nota 2 supra, art. II; A Legal Analysis of Genocide: Supplementary Report of the National Inquiry into Missing and
Murdered Indigenous Women and Girls, p. 12.
57
Schabas, nota 7 supra, p. 177; Genocide and International Criminal Law, nota 22 supra, p. 25.
58
Genocide and International Criminal Law, nota 22 supra, p. 25; Boas et al., nota 12 supra, p. 176-77.
59
Genocide Convention, nota 2 supra, art. II.

718
O GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL E INTERNO BRASILEIRO

para processar outros. Isto deixou a jurisprudência comparativamente subdesenvolvida em relação a


alguns delitos.60
Para que qualquer das ações proibidas constitua genocídio, devem satisfazer tanto os requisitos
gerais como os específicos de intenção do cometimento do crime.61 Além disso, a Convenção sobre
o Genocídio e o Decreto n.º 30.822 mencionam explicitamente seu raciocínio no caso de duas das
ações proibidas: submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasio-
nar-lhes a destruição física total ou parcial, e adotar medidas destinadas a impedir os nascimento
no seio do grupo.62

2.1 Matar membros do grupo


A primeira ação identificada no Artigo II da Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de
Genocídio e no Decreto Legislativo n.º 30.822 é a morte de membros de um grupo protegido.63 Os
elementos materiais desta ação são a morte de uma vítima – membro de um grupo protegido – resul-
tado direto da ação ou omissão do perpetrador.64
O uso do termo “matar” no contexto das ações subjacentes tem sido interpretado por câmaras ad hoc
no sentido de exigir que o agressor aja com a intenção de causar a morte da vítima.65 Os Elementos do
Crime do TPI também foram desenvolvidos com o uso do termo “matar”, observando que ele pode ser
substituído por “causou a morte”.66 Este objetivo necessário, causar a morte da vítima, não exige que os
atos sejam premeditados para que o actus reus do genocídio esteja presente.67

2.2 Causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo


A segunda ação tipificada é causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo.68
Lesão física ou mental grave no contexto de genocídio significa que “o(s) agressor(es) causou danos
aos órgãos, sentidos ou saúde física, ou às faculdades mentais de um membro ou membros do grupo
protegido, e que o dano afetou significativa e adversamente a capacidade de levar uma vida normal”.69

60
Ver Boas et al., nota 12 supra, p. 187 (observando, como exemplo, que o TPII nunca teve de enfrentar a ação proibida de impor medidas para
evitar nascimentos dentro do grupo).


61
Supra, Section III.B.
62
Genocide Convention, nota 2 supra, art. II; Decreto Nº 30.822, de 6 de Maio de 1952, Diário Oficial Da União [D.O.U.] de 9.5.1952 (Braz.); ver
também Claus Kreß, The Crime of Genocide under International Law, 6 Int’l Crim. L. Rev. 484-85 (2006).
63
Genocide Convention, supra note 2, at art. II(a).
64
Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T, Julgamento, 589; Boas et al., nota 12 supra, p. 178.
65
A Câmara de Julgamento em Akayesu examinou os textos em inglês e francês da Convenção, observando que, enquanto a versão inglesa
empregava a palavra “killing”, o texto francês empregava a palavra “meurtre” que se traduz para assassinato ou “homicídio cometido com
a intenção de causar a morte”. Ao decidir qual das duas definições era aplicável, a Câmara observou que a versão mais favorável para a
defesa devia ser utilizada e considerou que o acusado devia ter a intenção de causar a morte da vítima. Ver Akayesu, Caso No. ICTR-96-
4-T, Judgment, 500-01; Blagojević and Jokić, Caso No. IT-02-60-T, Julgamento, p. 642 (“. . . the term ‘killings’ . . . has been equated with
murder.”); Boas et al., supra note 12, at 178.
66
Tribunal Penal Internacional, Elements of Crimes, ICC-ASP/1/3 at 108, UN Doc PCNICC/2000/1/Add.2 (2000) art. 6(a), n. 2.
67
Prosecutor v. Stakić, Caso No. IT-97-24-T, Julgamento, 515 (Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia 31 Jul. 2003) (“. . . the word
‘killing’ is understood to refer to intentional but not necessarily premeditated acts.”).
68
Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio, nota 2 supra, art. II(b).
69
No original: “[t]he physical perpetrator(s) caused harm to the organs, senses, or physical health, or to mental faculties of a member or
members of the protected group, and that harm significantly and adversely affected the ability to lead a normal life.” Boas et al., nota 12
supra, p. 181.

719
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Esta ofensa engloba dois elementos distintos: lesões corporais graves e lesões mentais graves. 70 Os
Tribunais ad hoc têm interpretado “lesões corporais graves” para incluir danos que “ferem gravemente
a saúde, causam desfiguração ou qualquer dano grave aos órgãos internos ou externos e aos sentidos
do corpo;” 71 enquanto lesões mentais graves incluem tratamento desumano ou degradante que, de
outra forma, pode não constituir dano físico. 72
Os Tribunais ad hoc observaram, no entanto, que embora as lesões corporais ou mentais graves não
tenham de ser permanentes e irreparáveis, 73 devem ser suficientemente graves para resultar em um
prejuízo adverso e, a longo prazo, na capacidade de uma pessoa para levar uma vida normal e cons-
trutiva. 74 Se uma ação constitui uma lesão corporal ou mental grave para efeitos de genocídio, deve
ser determinada caso a caso, à luz das circunstâncias particulares. 75 Exemplos de ações proibidas que
podem resultar em tais danos incluem: atos de tortura, violência sexual, interrogatórios e interrogató-
rios combinados com espancamentos, ameaças de morte, deportação e traumas e ferimentos sofridos
por indivíduos que conseguem sobreviver a execuções em massa. 76

2.3 Submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasio-


nar-lhes a destruição física total ou parcial
A terceira ação proibida é a submissão intencional de condições de vida aos membros de um grupo
protegido, que se destinam a provocar a destruição física desse grupo, no todo ou em parte. 77 A
Câmara de Julgamento em Akayesu observou que esta ofensa “deve ser interpretada como métodos
de destruição pelos quais o perpetrador não provoca a morte imediata dos membros do grupo, mas
que tem a finalidade de causar sua destruição física.” 78.
Casos posteriores estabeleceram este entendimento, observando que a ofensa inclui a criação de
circunstâncias que levariam a uma morte lenta. Assim, embora a conduta que compõe parte dessa
ofensa possa ficar aquém de matar ou infligir sérios danos corporais ou mentais, ainda assim poderia
ser razoavelmente esperado que levasse à destruição parcial ou total do grupo alvo. 79 Além disso, dado

70
Id.


71
Prosecutor v. Kayishema and Ruzindana, Caso No. ICTR-95-1-T, Julgamento, p. 109 (21 Mai. 1999); Blagojević and Jokić, Caso No. IT-02-
60-T, Julgamento, p. 645.
72
Prosecutor v. Bagilishema, Caso No. ICTR-95-1A-T, Julgamento, p. 59. 07 Jun. 2001.
73
Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T, Julgamento, p. 502.
74
Prosecutor v. Krstić, Caso No. IT-98-33-T, Julgamento, p. 513 (Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia. 2 Ago. 2001); Prosecutor
v. Brđanin, Caso No. IT-99-36-T, Julgamento, p. 690 (Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia 1 Set. 2004); Blagojević and Jokić,
Caso No. IT-02-60-T, Julgamento, p. 645.
75
Blagojević and Jokić, Caso No. IT-02-60-T, Julgamento, p. 646.
76
Id. p. p. 646-49.
77
Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio, nota 2 supra, art. II(c).
78
No original: “should be construed as the methods of destruction by which the perpetrator does not immediately kill the members of
the group, but which ultimately, seek their physical destruction.” Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T, Julgamento, ¶ 505. A Câmara fornece
exemplos de tais métodos, como “subjecting a group of people to a subsistence diet, systematic expulsion from homes and the reduction
of essential medical services below minimum requirement.” Akayesu, Case No. ICTR-96-4-T, Julgamento, ¶¶ 505-06. Estes exemplos
também se reflectem nos Elements of Crimes do TPI. Tribunal Penal Internacional, Elements of Crimes, ICC-ASP/1/3 at 108, UN Doc
PCNICC/2000/1/Add.2 (2000) art. 6(c), n. 4.
79
Boas et al., nota 12 supra, p. 184.

720
O GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL E INTERNO BRASILEIRO

que a ofensa é o afastamento de condições80, não é necessário provar que houve realmente uma
destruição física parcial ou total do grupo protegido.81

2.4 Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo


A quarta ação enumerada é a imposição de medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do
grupo.82 As medidas destinadas a impedir nascimentos dentro de um grupo protegido podem ser
tanto de natureza física como psicológica.83 Exemplos de medidas físicas incluem: mutilação, esterili-
zação, controle de natalidade forçada, separação dos sexos ou proibição de casamentos. Exemplos de
medidas psicológicas incluem ameaças ou traumas que podem levar os membros de um grupo a não
engravidar.84 Por exemplo, o estupro pode ser usado como tal quando a vítima posteriormente não
deseja mais engravidar.85

2.5 Efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo


A quinta e última ação proibida é a transferência forçada de crianças de um grupo para outro grupo.86
Embora haja pouca jurisprudência relacionada à prática deste crime, os Elementos de Crimes do TPI
estipulam a necessária transferência, pelo perpetrador, de pelo menos um ou mais membros de um
grupo protegido para outro grupo, bem como que tais membros tenham menos de dezoito anos de
idade e que o perpetrador sabia ou deva saber a idade dos indivíduos transferidos.87
O uso de força contemplado neste ato não se restringe à força física, podendo incluir ameaças e coer-
ção.88 A inclusão deste delito na lista de ações proibidas visa não só proibir atos diretos de transferência
forçada, mas também proibir atos ou ameaças que geram trauma e que levariam à transferência de
crianças de um grupo para outro.89

80
Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio, nota 2 supra, art. II(c) (grifo nosso).


81
Prosecutor v. Brđanin, Caso No. IT-99-36-T, Julgamento, p. 691 (Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia 1 Set. 2004);
Prosecutor v. Stakić, Case No. IT-97-24-T, Judgment, p. 517.
82
Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio, nota 2 supra, art. II(d).
83
Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T, Julgamento, p. 508.
84
Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T, Julgamento, p. 507-08.
85
Id.
86
Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio, nota 2 supra, art. II(e).
87
Tribunal Penal Internacional, Elements of Crimes, ICC-ASP/1/3 at 108, UN Doc. PCNICC/2000/1/Add.2 (2000) art. 6(e).
88
Id. art. 6(e), n. 5.
89
Akayesu, Caso No. ICTR-96-4-T, Julgamento, ¶ 509.

721
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

3. OBRIGAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO PREVISTAS NO DIREITO


INTERNACIONAL E DOMÉSTICO RELATIVAS AO GENOCÍCIO
3.1 O dever de não cometer genocídio
O Brasil ratificou a Convenção sobre Genocídio90 e a incorporou ao direito interno por meio do Decreto
nº 30.82291. Nos termos dos artigos I da Convenção sobre Genocídio e do Decreto nº 30.822, o Brasil não
deve cometer genocídio - nem por meio de ações de seus órgãos, nem por indivíduos ou grupos cujos
atos lhes sejam atribuíveis92.
Embora não seja expressamente enumerado na Convenção sobre Genocídio, a CIJ constatou que,
“levando em consideração o objetivo estabelecido da Convenção, o efeito do Artigo I é proibir os
Estados de cometerem genocídio”93. O Artigo I da Convenção sobre Genocídio classifica o genocídio
como um crime internacional e impõe uma obrigação aos Estados de preveni-lo e puni-lo, o que indica
um dever assumido pelo próprio Estado de não cometer genocídio94.
Além disso, a CIJ refere-se ao conceito de responsabilidade do Estado por cometer genocídio ao
declarar que “não é o objetivo e o propósito da Convenção negar que a responsabilidade internacional
de um Estado - ainda que de natureza bastante diferente da responsabilidade criminal - possa ser prati-
cada por meio de um dos atos, além do próprio genocídio, enumerado no Artigo III.”95. A CIJ reconhece
que, de acordo com o Artigo IX da Convenção sobre Genocídio, a Corte tem jurisdição sobre disputas,

90
Convenção sobre Genocídio, supra note 2. O brasil assinou a Convenção sobre Genocídio Brasil em 11 de dezembro de 1948, na Terceira
sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas e fez sua ratificação em 15 de abril de 1952.


91
Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952, Diário Oficial da União [D.O.U.] de 09.05.1952 (Brasil). Em 1º de outubro de 1956, o Congresso
Nacional promulgou a Lei nº 2889/56, que positivou o crime de genocídio no país. Lei no 2.889, de 1º de outubro de 1956 (Brasil), http://
www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L2889.htm. Ver, por exemplo, STF, Recurso Extraordinário nº 351.487 / Roraima, 2006 (O Supremo
Tribunal Federal manteve a condenação original do Tribunal Federal de Boa Vista, em Roraima, de quatro mineiros por genocídio contra o
povo Yanomami em Haximu, que ocorreu em 1993); TRF, Apelação Criminal nº 2001.01.00.046953-4 / AM (O 3º Painel de Juízes do Tribunal
Regional Federal (TRF) da 1ª Região ouviu um apelo de um caso de genocídio envolvendo o massacre do povo Tikuna, também conhecido
como Capacete Massacre ocorrido em março de 1988 no município de Benjamin Constant, na região do Alto Solimões, em uma área
remota do estado do Amazonas. Nesse massacre, um comerciante de madeira chamado Oscar de Almeida Castelo Branco, juntamente
com vários outros pistoleiros mortos quatro indígenas, feridos por dezenove anos e dez desaparecidos.Em 18 de maio de 2001, Oscar
Castelo Branco foi condenado por genocídio pelo Primeiro Tribunal Federal de Manaus por sentença proferida pela juiza Jaíza Maria Pinto
Fraxe.).
92
Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro, 2007, Corte International de Justiça, no p. 161.
93
Id. no p. 166.
94
Id.; Amabelle C. Asuncion, Pulling the Stops on Genocide: The State or the Individual? 20 Eur. J. Int’l L. 1195, 1204 (2010).
95
No original: “[i]t would . . . not be in keeping with the object and purpose of the Convention to deny that the international responsibility
of a State—even though quite different in nature from criminal responsibility—can be engaged through one of the acts, other than
genocide itself, enumerated in Article III.”. Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro, 2007 I.C.J. no. p. 167. O Artigo III da Convenção lista as
diferentes formas de responsabilidade que podem existir no que se refere ao crime internacional de genocídio (ou seja, tentativa de
cometer genocídio, cumplicidade em genocídio, etc.)

722
O GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL E INTERNO BRASILEIRO

“incluindo aquelas relacionadas à responsabilidade de um Estado por genocídio ou qualquer outro ato
enumerado no Artigo III”96, confirmando a obrigação dos Estados Partes para não cometer genocídio.
Mesmo que o próprio Estado não compartilhe a intenção genocida necessária dos autores, o estado
ainda pode incorrer em responsabilidade pelo genocídio97. Conforme detalhado a seguir, a respon-
sabilidade do Estado é atribuída se é constatada falha em impedir ou punir o genocídio, quando o
Estado está ciente ou deveria estar ciente do risco sério de que atos de genocídio estivessem sendo
cometidos ou que estes atos seriam cometidos, mas, mesmo diante de seu dever, não agiram para
impedir ou punir atos genocidas98. Por exemplo, a CIJ considerou a Sérvia-Montenegro responsável por
não impedir e punir os atos genocidas perpetrados por oficiais e forças estatais bósnio-sérvios, sem
determinar que a Sérvia-Montenegro possuía necessariamente intenção genocida99.

3.2 Dever de prevenir o genocídio


Nos termos dos artigos I da Convenção sobre Genocídio e do Decreto nº 30.822, o Brasil “confirma que
o genocídio, cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime previsto no direito inter-
nacional que requer que haja prevenção e e punição.”100. Além disso, o Artigo VIII permite que o Brasil
“... recorra aos órgãos competentes das Nações Unidas para tomarem as medidas previstas na Carta
das Nações Unidas que considerem apropriadas para a prevenção e supressão de atos de genocídio.” 101.
Interpretando o escopo da obrigação do Estado de impedir o genocídio, a CIJ concluiu que:
“[A] obrigação em questão é de conduta e não de resultado, no sentido de que um Estado não possui
a obrigação de ter sucesso, quaisquer que sejam as circunstâncias, em impedir o cometimento do
genocídio: a obrigação dos Estados Partes consiste em empregar todos os meios disponíveis, a fim de
evitar o genocídio.”102.

96
Convenção sobre Genocídio, nota supra 2, no art. IX do Decreto nº 30.822, que também contém o mesmo Artigo IX, o qual reafirma o
reconhecimento por parte do Brasil de que os Estados Partes podem ser responsabilizados pelo genocídio. Em seu julgamento sobre
as objeções preliminares no caso de genocídio na Bósnia, a ICJ explica que “a referência no artigo IX da Convenção sobre Genocídio à
responsabilidade de um Estado pelo genocídio. . . ‘Não exclui nenhuma forma de responsabilidade do Estado.” Objeções preliminares da
República Federal da Jugoslávia, aplicação da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (Bosn. & Herz. v. Yugo. (Serb.
& Mont), at 129-30 (June 26, 1995). Consequentemente, a CIJ determinou que o Artigo IX da Convenção sobre Genocídio contempla não
apenas a responsabilidade estatal pelo fracasso em prevenir e punir o genocídio, mas também a responsabilidade estatal por cometer
genocídio. No original: “Genocide Convention, supra note 2, at art. IX. Legislative Decree No. 30.822 also contains the same Article IX,
which reaffirms Brazil’s recognition that state parties can be held responsible for genocide. In its judgment on the preliminary objections
in the Bosnian genocide case, the ICJ explains that “the reference in Article IX of the Genocide Convention to ‘the responsibility of a
State for genocide . . .’ does not exclude any form of State responsibility.” Preliminary Objections of the Federal Republic of Yugoslavia,
Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Bosn. & Herz. v. Yugo. (Serb. & Mont.)),
at 129-30 (June 26, 1995). Accordingly, the ICJ determined that Article IX of the Genocide Convention contemplates not only state
responsibility for failure to prevent and punish genocide, but also state responsibility for committing genocide as well.”
97
Mettraux, supra note 58, at 21.
98
Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro, 2007 CIJ nos p. 231-318, 376.
99
Id. nos p. 186-189, 196, 202, 242, 277, 295, 297, 328, 354, 372, 376.
100
No original: “confirm[s] that genocide, whether committed in time of peace or in time of war, is a crime under international law which
[it] undertake[s] to prevent and to punish.”. Convenção sobre Genocídio, nota supra 2, no art. I; Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952,
Diário Oficial da União [D.O.U.] de 09.05.1952 (Brasil) (grifo nosso). O Art. I do Decreto Legislativo nº 30.822 estabelece claramente que o
genocídio pode ocorrer fora do contexto de uma guerra, o que significa que o Brasil tem uma obrigação contínua de impedir o genocídio.
101
Convenção sobre Genocídio, nota supra 2, no art. VIII.
102
No original: “[T]he obligation in question is one of conduct and not one of result, in the sense that a State cannot be under an obligation
to succeed, whatever the circumstances, in preventing the commission of genocide: the obligation of States parties is rather to employ
all means reasonably available to them, so as to prevent genocide so far as possible”. Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro, 2007 CIJ no ¶
430.

723
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Assim, o Brasil violará sua obrigação de impedir o genocídio se “manifestamente deixar de tomar
todas as medidas para impedir o genocídio que estava ao seu alcance e que poderia ter contribuído
para impedi-lo”103.
O governo brasileiro assumiu a obrigação de exercer a devida diligência ao empregar todos os meios
razoavelmente disponíveis para prevenir o genocídio104. Existem várias considerações materiais e
mentais para avaliar se um Estado exerceu a devida diligência no cumprimento de sua responsabili-
dade de impedir o genocídio105. O fator principal nessa avaliação é a “capacidade do Estado de influen-
ciar efetivamente a ação de pessoas que provavelmente cometerão, ou já cometem, genocídio”106.
Os fatores relevantes para determinar se um Estado tem essa capacidade de influenciar os autores
incluem: (1) a distância geográfica do estado do local em que os atos proibidos estão ocorrendo ou
podem ocorrer em breve; (2) a força dos elos políticos e outros entre o Estado e os principais atores
envolvidos nos eventos; (3) a posição legal do Estado em relação às situações e pessoas que enfrentam
o perigo ou a realidade do genocídio; e (4) o nível de consciência do estado de que atos proibidos estão
ocorrendo ou são muito prováveis ​​de ocorrer em breve107.
A obrigação de impedir o genocídio surge no momento em que o Estado “toma conhecimento ou
deveria ter tomado conhecimento sobre a possibilidade de existência de um sério risco de que o geno-
cídio iria ser cometido”108. Consequentemente, o dever do Brasil de impedir o genocídio é vinculado ao
momento no qual o Estado toma conhecimento de que o genocídio está ocorrendo em seu território.
Todavia, mesmo que o Brasil não saiba que o genocídio está ocorrendo, ainda é possível determinar que
ele violou sua obrigação de impedir o genocídio, pois “um Estado pode ter violado sua obrigação de
impedir, mesmo que não tivesse certeza, no momento em que deveria ter agido, mas não conseguiu,
que o genocídio estava prestes a ser cometido ou estava em andamento.” 109. Assim, o Brasil pode violar
sua obrigação de impedir o genocídio, se estiver “ciente, ou deveria estar normalmente ciente, do grave
perigo de que atos de genocídio seriam cometidos”110.
Finalmente, conclui-se que, se o próprio Estado comete genocídio (ou outros atos relacionados ao geno-
cídio enumerados no artigo III), necessariamente também violou sua obrigação de impedir o genocídio111.

3.3 Dever de punir os autores do crime de genocídio


Nos termos dos artigos I da Convenção sobre Genocídio e do Decreto nº 30.822, o Brasil deve punir os
autores de genocídio, sem que haja limitações a esta obrigação por anistia ou restrições impostas pelo

103
Id.
104
Id. no p. 431.
105
Orna Ben-Naftali, The Obligations to Prevent and to Punish Genocide, in The UN Genocide Convention: A Commentary 40 (Paola
Gaeta ed., 2009).
106
Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro, 2007 CIJ. no p. 430.
107
Id. nos p. 430 & 432.
108
No original: “learns of, or should normally have learned of, the existence of a serious risk that genocide will be committed.”. Id. no p. 431.
109
No original: “a State may be found to have violated its obligation to prevent even though it had no certainty, at the time when it should
have acted, but failed to do so, that genocide was about to be committed or was under way.”. Id. no p. 432.
110
Id.


111
Ver id. no p. 382.

724
O GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL E INTERNO BRASILEIRO

ordenamento jurídico112. De acordo com o Artigo VI do Decreto nº 30.822, o Brasil também tem a obri-
gação de processar e julgar as pessoas acusadas de genocídio em “tribunais competentes do Estado
em cujo território foi o ato cometido” 113. Isso significa que qualquer indivíduo suspeito de cometer
genocídio, incluindo atores estatais, deve ser processado de maneira justa e punido caso reste provado
que cometeu atos de genocídio114.
De acordo com o Artigo I do Decreto nº 30.822, o Brasil tem a obrigação contínua de garantir a punição
dos autores de genocídio por meio de seus tribunais nacionais. Como a apreciação do crime de geno-
cídio não está sujeita a nehum tipo de disposição lhe imponha qualquer limitação, o Brasil não pode
considerar-se impedido de punir atos de genocídio, mesmo que estes tenham ocorrido há muitos anos
atrás, isentando-se de sua responsabilidade de processar e punir tais práticas hoje. Independente-
mente de há quanto tempo os atos de genocídio ocorreram, o Brasil mantém sua obrigação de punir os
responsáveis, a qual está sedimentada no Decreto nº 30.822 115 116.
De acordo com a lei internacional, o Brasil tem a obrigação de punir os autores de violações graves dos
direitos humanos sem restrição legal ou judicial interna117. Adicionalmente, o Artigo 5 (43)118 da Consti-
tuição Brasileira e a Lei Brasileira nº 8072/90119 proíbem a concessão de clemência ou anistia por crimes
hediondos, inclusive genocídio. Portanto, o Brasil também não pode desconsiderar sua obrigação de
punir atos de genocídio com base em tentativas de perdoar ou conceder anistia aos responsáveis ​​pelo

112
O Artigo I obriga o Brasil a punir atos de genocídio que ocorram em seu território. Sob o Decreto Legislativo nº 30.822, não basta que o
Brasil possua a Lei nº 2889/56, que criminaliza o genocídio, mas o Brasil também deve garantir que os responsáveis por atos de genocídio
em seu território sejam punidos por esta lei. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952, Diário Oficial da União [D.O.U.] de 09.05.1952
(Brasil.).
113
Inteiro teor do artigo: “As pessoas acusadas de genocídio ou qualquer dos outros atos enumerados no Artigo III serão julgadas pelos
tribunais competentes do Estado em cujo território foi o ato cometido ou pela Corte Penal Internacional competente com relação às
Partes Contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição”. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952, Diário Oficial da União [D.O.U.]
de 09.05.1952 (Brasil.).
114
Ver: Genocide Convention, nota supra 2, no art. I; Ver também: Decreto Nº 30.822, de 06 de Maio de 1952, Diário Oficial Da União
[D.O.U.] de 09.05.1952 (Brasil.).
115
Inteiro teor do artigo: “As Partes Contratantes confirmam que o genocídio quer cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é
um crime contra o Direito Internacional, que elas se comprometem a prevenir e a punir.”. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952, Diário
Oficial da União [D.O.U.] de 09.05.1952 (Brasil.).
116
No caso específico dos crimes contra a humanidade, o decurso do tempo que ensejaria a incidência do institudo da prescrição não pode
ser trazido à tona para afastar a obrigação dos Estados em processar e julgar os acusados pela prática do genocídio. Esta vedação, que
ampara o dever de processar, encontra fundamento, no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no Art. I do Decreto nº 30.822,
já que este não traz em seu texto nenhuma hipótese que limite ou restrinja o exercício da obrigação de punir.

Ver: Gomes-Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) v. Brasil, Sentença de Mérito, CorteIDH (ser. C) nº 219, ¶ 127 (24 de novembro
117

de 2010). Na sentença, discutiu-se a obrigação de punir afirmando que “nenhuma lei ou norma no direito interno, como as disposições
da anistia, as regras sobre prescrição) e outras exceções à responsabilidade, podem impedir um Estado de cumprir essa obrigação,
especialmente quando lida com violações graves dos direitos humanos.”.
118
Constituição Federal de 1988 [C.F.] [Constitution] art. 5º, inciso XLIII (Brasil.). “[A] lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de
graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos,
por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.”. Id. O Genocídio é definido como um crime
hediondo no Brasil, ver nota 124.
119
De acordo com o artigo 1º da Lei nº. 8072/90, o genocídio é considerado um crime hediondo, que não está sujeito à concessão de anistia,
perdão ou fiança. Lei nº 8072/90, artigo 1, de julho de 1990 (Brasil), Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1990/lei-8072-
25-julho-1990-372192-publicacaooriginal- 1-pl.html.

725
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

genocídio120. De fato, o genocídio e o dever de punir possuem o status erga omnes121, o que obriga o
Brasil a punir atos de genocídio à comunidade internacional como um todo122.
De acordo com o artigo IV123 do Decreto nº 30.822, os atores estatais podem estar envolvidos nos casos
que envolvem genocídio. Da mesma forma, o Artigo IV da lei brasileira sobre genocídio, Lei nº. 2889/56,
adota a linguagem do artigo IV do Decreto nº 30.822 e estabelece que os atores governamentais podem
estar sujeitos à responsabilidade por atos de genocídio124. Assim, os atores estatais brasileiros podem
ser culpados por atos de genocídio e podem sofrer punições no sistema judicial brasileiro.
Consequentemente, atos de genocídio ocorridos no território brasileiro podem atrair responsabilidades
individuais e estatais simultaneamente. De fato, a CIJ argumentou que “a responsabilidade do Estado
pode surgir sob a Convenção sobre Genocídio [...] sem que um indivíduo seja condenado pelo crime .”
125
. Por exemplo, no caso Croácia v. Sérvia126, a CIJ conduziu uma investigação independente para deter-
minar se a Sérvia poderia ser responsabilizada pela responsabilidade estatal por genocídio, apesar do
fato de o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) não ter condenado indivíduos acusados​​
de genocídio contra a população croata127. Consequentemente, um estado pode ser responsabilizado
pelo genocídio, mesmo que nenhum de seus agentes tenha sido condenado por genocídio128. Conse-
quentemente, o Brasil pode estar sujeito à responsabilidade estatal por genocídio, mesmo que nenhum
de seus agentes governamentais seja condenado pelo crime de genocídio.

3.4 Dever de reparação às vítimas de genocídio


Além dos deveres de respeitar e proteger os direitos humanos, os Estados são obrigados a garantir sua
plena realização, proporcionando reparação efetiva às violações e recursos adequados para as vítimas
de violações dos direitos humanos, incluindo genocídio129. No caso Velásquez Rodríguez v. Honduras,
a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) declarou que “os Estados devem prevenir,

120
Mettraux, nota supra 58, no p. 139 (“As anistias domésticas relacionadas a atos de genocídio não poderiam afetar ou qualificar o dever
desse Estado de punir o genocídio.”).


121
Barcelona Traction, Light and Power Company, Limited (Bélgica v. Espanha), Segunda Fase, Julgamento, 1970 I.C.J. Rep. 3., p. 33 (5
de fevereiro) (Julgamento de tração de Barcelona) (Obrigações erga omnes são “obrigações de um Estado para com a comunidade
internacional como um todo” e são “a preocupação de todos os Estados”; portanto “[i ] Em vista da importância dos direitos envolvidos,
todos os Estados podem ter um interesse legal em sua proteção. ”).
122
Promotor contra Nuon Chea et al., Processo nº 002 / 19-09-2007 / ECCC / TC, Decisão sobre as objeções preliminares do artigo 89 da
regra de Ieng Sary (Ne Bis in Idem, Amnistia e Pardon), 3 de novembro de 2011 (Nuon Chea et al., Decisão sobre objeções de Ieng Sary) (n
42) nº. 81 (citando o acórdão do caso Barcelona Traction, no p. 34 (determinando que todos os Estados devem impor a proibição contra o
genocídio como uma obrigação erga omnes).
123
“Persons committing genocide . . . shall be punished, whether they are constitutionally responsible rulers, public officials or private
individuals.” Decreto Nº 30.822, de 6 de Maio de 1952, Diário Oficial Da União [D.O.U.] de 9.5.1952 (Braz.).
124
No original: “The penalty will be increased by 1/3 (one third), in the case of arts. 1st, 2nd and 3rd, when the crime is committed by a ruler or
public official.”. Lei nº 2.889, artigo 4, de 1º de outubro de 1956 (Brasil.), http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L2889.htm.
125
Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro, 2007, CIJ, p. 182.
126
Aplicação da Convenção para Prevenir e Punir o Crime de Genocídio (Croatia v. Serbia), Julgamento, 2015, CIJ, Rep. 3., p. 441 (Fev. 3).
127
Beatrice I. Bonafè, Reassessing Dual Responsibility for International Crimes, 37 Sequência: Estudos Juridicos e Politicos 19, 30 (2016).
128
Bonafè, nota supra 132, no 20.
129
International Commission of Jurists, The Right to a Remedy and Reparation for Gross Human Rights Violations: A Practitioner’s
Guide 21 (2018).

726
O GENOCÍDIO NO DIREITO INTERNACIONAL E INTERNO BRASILEIRO

investigar e punir qualquer violação dos direitos reconhecidos [...] e, além disso, se possível, tentar resta-
belecer o direito violado e indenizar, conforme garantido, os danos resultantes da violação.” 130.
Em 2005, a Assembléia Geral da ONU adotou os Princípios e Diretrizes Básicas Sobre o Direito a
Recurso e Reparação para Vítimas de Violações Flagrantes das Normas Internacionais de Direitos
Humanos e de Violações Graves do Direito Internacional Humanitário 131. O Princípio 3, dentre os prin-
cípios básicos, insta os Estados a tomarem medidas legislativas para prevenir, investigar prontamente
violações de direitos humanos, proporcionar às vítimas de direitos humanos igual acesso à justiça e
fornecer recursos eficazes para as vítimas, incluindo reparações132.
Diferentemente das razões para buscar a responsabilização criminal individual pelo genocídio, o
objetivo de estabelecer a responsabilidade do Estado pelo genocídio é fornecer reparações às vítimas
pelos danos causados133. Por exemplo, de acordo com uma teoria de responsabilidade estatal, a Bósnia
e Herzegovina buscou reparações na forma de compensação financeira por danos resultantes de
supostos atos de genocídio perpetrados pela Sérvia e Montenegro134. Portanto, a responsabilidade
criminal individual não é a única forma de prestação de contas que as vítimas de genocídio podem
procurar; de fato, as vítimas também podem buscar reparação pelas vialções que sofreram em seu
prejuízo pela via da responsabilidade do Estado.
De acordo com os artigos da Comissão de Direito Internacional (CDI)135 sobre responsabilidade do
Estado por atos internacionalmente ilegais, o Brasil tem uma responsabilidade legal internacional de
fornecer reparações completas às vítimas de genocídio, se for considerado responsável por violar suas
obrigações previstas na Convenção sobre Genocídio. De acordo com o Artigo 31(1) dos Artigos da CDI
sobre Responsabilidade do Estado, o Brasil deve reparar os danos genocidas, fazendo uma “reparação
total dos danos causados ​​pelo ato internacionalmente ilegal”136.
No Comentário 3 do Artigo 31 (1), a CDI explica como o Estado responsável deve procurar “eliminar todas
as conseqüências do ato ilegal e restabelecer a situação que, com toda a probabilidade, teria existido
se esse ato não tivesse sido cometido.” 137. Além disso, o Artigo 31 (2) da CDI explica que “[o] ferimento
inclui qualquer dano, material ou moral, causado pelo ato internacionalmente ilegal de um Estado” 138.

130
Ver: Velásquez-Rodríguez v. Honduras, Sentença de Mérito, CorteIDH (ser. C) nº. 4, p. 166 (29 de Julho de 1988). Ver também:
ChumbivCDIas v. Peru, Caso 10.559, CorteIDH, Report nº. 1/96, OEA/Ser.L/V/II.91 Doc. 7 no p. V(3) (1996); X and Y v. the Netherlands, Caso
nº. 16/1983/72/110, ECtHR, Julgamento, p. 27 (26 de Março de 1985); M.C. v Bulgaria, App. nº. 39272/98, ECtHR, Julgamento, p. 153 (04 de
Dezembro de 2003).


131
UN Principles on Remedy and Reparation, U.N.G.A. Res. No. A/RES/60/147 (2005).
132
Id. ver Princípio 3.
133
Ver: Milanović, supra note 10, at 561; Ver também: Andre Nollkaemper, Concurrence Between Individual Responsibility and State
Responsibility in International Law, 52 Int’l & Comp. L. Q. 615, 622-24 (2003).
134
Aplicação da Convenção para Prevenir e Punir o Crime de Genocídio (Bosn. & Herz. v. Serb. & Montenegro), Preliminary Objections
Judgment, 1996 I.C.J. Rep. 595 (11 de Julho).
135
A Comissão de Direito Internacional (CDI) é um corpo de especialistas estabelecido pela Assembléia Geral da ONU, em 1947,
encarregado de cumprir seu mandato, de acordo com o artigo 13 (1) (a) da Carta das Nações Unidas, com a finalidade de “iniciar estudos
e fazer recomendações com o propósito de [...] incentivar o desenvolvimento progressivo do direito internacional e sua codificação”. A
COMISSÃO INTERNACIONAL DE DIREITO. Disponível em: http://legal.un.org/CDI/.
136
No original: “full reparation for the injury caused by the internationally wrongful act.”. CDI Draft Articles on State Responsibility, nota supra
141, at art. 31(1).
137
Id. no Comentário 3, art. 31(1).
138
Id. no art. 31(2).

727
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

O Dano material refere-se a danos à propriedade de particulares ou propriedades estatais, o que é


passível de avaliação financeira, enquanto Dano Moral refere-se a dores e sofrimentos, bem como a
perda de familiares e entes queridos139. Portanto, de acordo com os Artigos da CDI sobre Responsabi-
lidade Estatal, qualquer conclusão de que o Brasil seja responsável por permitir que atos de genocídio
ocorram em seu território sem punição fundamenta o dever deste Estado em prestar reparações às
vítimas, seja pelos danos materiais ou morais que lhes tenham sido causados.
Os Princípios das Nações Unidas sobre Recursos e Reparação especificam que as reparações podem
assumir inúmeras formas para garantir uma resposta abrangente às violações de direitos humanos
e atrocidades, como o genocídio. Mais especificamente, as reparações podem incluir restituição,
compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição140.
A restituição, em um plano ideal, deve restaurar a vítima à situação original antes que ocorram geno-
cídios ou violações de direitos humanos141. A compensação é uma forma de reparação que acarreta
alívio financeiro ou econômico adequado e proporcional à gravidade da violação ou atrocidade em
questão142. A reabilitação envolve a oferta de cuidados médicos e psicológicos, bem como serviços jurí-
dicos e sociais às vítimas-sobreviventes143. A satisfação, por sua vez, compreende uma ampla variedade
de medidas, a exemplo: daquelas eficazes com vista à cessação de violações; a verificação de fatos e
revelação pública da verdade; aquelas que objetivam restaurar a dignidade, a reputação e os direitos
das vítimas; aquelas com o objetivo de prestar homenagens às vítimas; pedidos públicos de desculpa;
sanções judiciais e administrativas contra os autores; dentre outras144.
Finalmente, as garantias de não repetição são outra forma de reparação que envolve promessas ou
compromissos para implementar reformas políticas, legislativas ou judiciais adequadas para garantir
que as violações não ocorram novamente, ou seja, possuem caráter preventivo. Os exemplos incluem
a garantia de que os procedimentos judiciais estejam sujeitos a padrões internacionais de devido
processo, criando mecanismos para a prevenção e a supervisão de conflitos sociais e fazendo esforços
para revisar e reformar as leis que permitem a prática de violações dos direitos humanos145.
O Brasil tem a responsabilidade de garantir que todas as vítimas de genocídio ou outras viola-
ções de direitos humanos estejam cientes destes atos e tenham acesso aos mecanismos de
reparações. Os Princípios das Nações Unidas sobre Recursos e Reparação estipulam que os
Estados devem informar o público em geral e as vítimas dos serviços jurídicos, médicos, psico-
lógicos e outros serviços sociais disponíveis a eles aos quais possam ter direito de acesso146.

139
Ver: id. no Comment 5, art. 31(2).
140
UN Principles on Remedy and Reparation, nota supra 136, no Princípio 18.


141
No original: “Restitution includes as appropriate: restoration of liberty, enjoyment of human rights, identity, family life and citizenship,
return to one’s place of residence, restoration of employment and return of property.”. Id. no Princípio 19
142
No original: Compensation can be for “(a) Physical or mental harm; (b) Lost opportunities, including employment, education and social
benefits; (c) Material damages and loss of earnings, including loss of earning potential; (d) Moral damage; required for legal or expert
assistance, medicine and medical services, and psychological and social services.”. UN Principles on Remedy and Reparation, supra note
136, no Princípio 20.
143
Id. no Princípio 21.
144
Id. no Princípio 22.
145
Id. no Princípio 23.
146
Id. no Princípio 24.

728
NOTAS BIOGRÁFICAS DOS (AS) AUTORES (AS)

NOTAS BIOGRÁFICAS DOS


(AS) AUTORES (AS)

Alex Sandro da Silveira Filho


Doutorando em Direito (Bolsista PROEX/Capes) no Programa de Pós-Graduação em Direito da pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Mestre (2020) em Direito Público pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Advogado e pesquisador.
E-mail: alexsilveirafilho@yahoo.com
Alice Hertzog Resadori
Doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestra em Direito, com
ênfase em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis.
E-mail: ali.resadori@gmail.com
Aline Andrighetto
Doutora em Direito Público e membro do Núcleo de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos- UNISINOS. Professora e pesquisadora.
E-mail: alineandrighetto@gmail.com
Breno Baía Magalhães
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor de Direito Internacional e de
Direitos Humanos da Universidade Federal do Pará (UFPA). Menção honrosa no prêmio CAPES em 2016.
E-mail: brenobaiamag@gmail.com.
Breno de Azevedo Barros
Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Breno de Azevedo Barros.
Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará
(PPGD-UFPA). Advogado
E-mail: brenoazevedobarros@gmail.com
Bruna Marques da Silva
Mestra em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Unisinos (com bolsa de mestrado
CNPq). Advogada. Integrante do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.
E-mail: bmrqs@outlook.com
César de Oliveira Gomes
Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Membro do Núcleo
de Direitos Humanos (NDH) da UNISINOS. Co-fundador do grupo DiversoS - Educação em Direitos
Humanos. Membro convidado da Comissão Especial da Verdade sobre a Escravidão Negra da OAB/
RS. Defensor Público Federal. Diretor da Escola Nacional da Defensoria Pública da União (ENADPU).
E-mail: cesar_gomes10@hotmail.com
Dailor Sartori Junior
Doutorando em Direito Público e integrante do Núcleo de Direitos Humanos da UNISINOS. Mestre em
Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis.
E-mail: dailorjunior@gmail.com

729
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Diovanna Vitória Fritsch


In Memorian .Graduanda em Antropologia pela Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. Especialista
em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
E-mail: laisnardonmartins@gmail.com
Fernanda Frizzo Bragato
Pesquisadora Produtividade em Pesquisa do CNPq. Doutora em Direito pela UNISINOS. Estágio
pós-doutoral no Birkbeck College da Universidade de Londres. Professora do Programa de Pós-gra-
duação em Direito e Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da UNISINOS.
E-mail: fernandabragato@yahoo.com.br

Francine Oliveira Tassoni


Graduanda em Direito na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Bolsista UNIBIC de
iniciação científica vinculada ao Núcleo de Direitos Humanos da UNISINOS.
Email: francine.tassoni@outlook.com
Gabriel Pedro Moreira Damasceno
Doutor em Direito Público pela UNISINOS/RS. Mestre em Direito pela UFMG. Membro do Núcleo
de Direitos Humanos e do CCULTIS - UNISINOS. Membro do Grupo de Pesquisa Direito Inter-
nacional Crítico - UFU. Coordenador do Núcleo de Estudos Avançados em Direitos Humanos
- FUNAM/FUNORTE.
E-mail: gpmdamasceno@hotmail.com
Gabriela da Cunha Thewes
Bacharel em Direito e integrante do Núcleo de Direitos Humanos da UNISINOS
E-mail: gthewes@gmail.com
Gabriela Milani Pinheiro
Mestranda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista CAPES/PROEX.
E-mail: gabrielamilanipinheiro@gmail.com
Gilberto Schäfer
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-doutor em
Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa. Professor convidado em cursos de Pós-Graduação
Lato Sensu. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
E-mail: gilbertoschafer@hotmail.com
Giovana Lima Michelon
Especialista em Litigación Internacional pela Universidad Nacional de Cuyo (UNCUYO-AR).
E-mail: giovanalimamichelon@gmail.com

Guilherme Carneiro de Rezende


Doutorando e mestre em Direito pela Universidade Vale dos Sinos - UNISINOS. Especialista em Direito
Processual: grandes transformações, em Direito Público, com ênfase em Direito Penal e em Direito
das Relações Sociais. Professor de Direito Processual Penal na Escola da Magistratura do Estado do
Paraná e no Centro Universitário Assis Gurgacz. Ex-Defensor Público da União. Promotor de Justiça do
Ministério Público do Estado do Paraná.
E-mail: guilhermec.rezende@gmail.com

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NOTAS BIOGRÁFICAS DOS (AS) AUTORES (AS)

Jaqueline Deuner
Especialista em Direitos Humanos e Estudos Críticos do Direito pela CLACSO. Advogada Criminalista.
E-mail: jaque_deuner@hotmail.com
Jesus Tupã Silveira Gomes
Doutorando em Direito e Sociedade (Universidade La Salle). Bolsista CAPES. Mestre em Direitos
Humanos (UniRitter).Servidor do TJRS.
E-mail: jtsg1976@gmail.com

Jocelyn Getgen Kestenbaum


JD – Cornell Law School; Gruaduada em Saúde Pública – Johns Hopkins Bloomberg School of Public
Health; Graduada em Bachelor of Arts – Cornell University; Diretora e Professora da Clínica de Direitos
Humanos e Prevenção de Atrocidades - Cardozo Law School – Nova York. Nova Nova Nova Nova Nova
E-mail: jocelyn.getgen@yu.com
Karina Macedo Gomes Fernandes
Doutora e Mestra em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), com bolsa CAPES
no mestrado. Professora da Graduação em Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER).
E-mail: karimfernandes@gmail.com
Lais Nardon Martins
Mestranda em Direito Público e integrante do Núcleo de Direitos Humanos da UNISINOS.
E-mail: laisnardonmartins@gmail.com
Lara Santos Zangerolame Taroco
Doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (bolsista Capes/
PROEX). Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV. Integrante do Núcleo de Direitos
Humanos da Unisinos. Professora do Curso de Direito da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
E-mail: larasantosz@hotmail.com
Larissa de Oliveira Elsner
Doutoranda e Mestra em Direito Público pela Universidade do vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
Bolsista PROEX/CAPS. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – UFRGS. Advogada e pesquisadora. Membro do Núcleo de Direitos Humanos (NDH) da UNISINOS
e do Grupo de pesquisa Trabalho e Capital da UFRGS
E-mail: larissaelsner@hotmail.com
Luana Marina dos Santos
Mestra em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista CAPES/PROEX.
E-mail: luana-marinads@gmail.com
Luciane Toss
Doutoranda em Direito e Mestra em Ciências Sociais Aplicadas pela UNISINOS. Especialista em Novos
Rumos do Direito pela Universidad de Burgos (ESP). Direitos Humanos e Direitos Trabalhistas pela
Universidad Castilla La Mancha (ESP). Especialista em Direito Privado e Constitucional pela UNISINOS,
sócia-fundadora e da Escola Trabalho e Pensamento Crítico e da Ó Mulheres! Consultoria em Gênero
e Direitos Humanos. Advogada trabalhista. Docente da Escola da ABRAT, Coordenadora da Comissão
da Mulher Advogada do MATI.
E-mail: lucianetoss@gmail.com

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O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

Marcelo Andrade de Azambuja

Mestrando em International Human Rights and Humanitarian Law pela American University
(AU). Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Advogado e representa organizações e movimentos sociais brasileiros em temas relacionados a
direitos humanos em foros internacionais.
E-mail: marcelo.azamba@gmail.com
Marina de Almeida Rosa
Mestra em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com bolsa CAPES/PROEX.
Especialista em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Advogada e
consultora da Secretaria Executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Professora da
Diplomatura de Posgrado em Litigación Internacional da Universidad Nacional de Cuyo (Argentina
E-mail: marinaalrosa@gmail.com
Natália Caye Batalha Boeira
Mestranda em Direito Internacional pela Universidade de Lisboa. Especialista em Direito
Internacional pela Escola Brasileira de Direito.
E-mail: nataliacboeira@gmail.com
Natalia Martinuzzi Castilho
Doutoranda em Direito Público pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) em cotutela
com a Université Paris X – Nanterre La Defense. Mestre em Direito Público pela Universidade do Vao
Rio dos Sinos (UNISINOS).
E-mail: natiimc@gmail.com
Pedro Lucas Faller
Graduando em Direito – UNISINOS.
E-mail: faller.ifrs@gmail.com
Rafael Selicani Teixeira
Doutorando em Direito Público pela UNISINOS. Mestre em Ciências Jurídicas pela
UNICESUMAR. Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela FMP. Analista
Judiciário no TRT4 e professor de Direito Processual do Trabalho e Prática Processual Trabalhista na
UNIFIN
E-mail: rafa_texa@hotmail.com
Raysa Antônia Alves Alves
Mestranda em Direito Público no Programa de Pós-graduação em Direito da UNISINOS e
especialista em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela mesma Universidade.
E-mail: raysaantoniaalves@gmail.com
Roger Raupp Rios
Doutor e Mestre em Direito (UFRGS). Pós-Doutor (Universidade de Paris II). Professor do PPGD
Mestrado e Doutorado UNISINOS e no Mestrado Profissional ENFAM/STJ. Desembargador Federal -
TRF4
E-mail: roger.raupp.rios@gmail.com
Vitória Volcato da Costa
Mestra em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) – Bolsista
CAPES/PROEX. Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Membro do Grupo de Pesquisa Direito e Integração Regional da
UNISINOS.
E-mail: vitoria.volcato@gmail.com

732
NOTAS BIOGRÁFICAS DOS (AS) AUTORES (AS)

733
O CONTEÚDO JURÍDICO DOS DIREITOS HUMANOS:
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS NOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS

734
NOTAS BIOGRÁFICAS DOS (AS) AUTORES (AS)

735

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