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FRIEDRICH NIETZSCHE

A GAIA CIENCIA
TEXTO INTEGRAL

TRADUCAO
ANTONIO CARLOS BRAGA

A
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Tora
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4
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CoLECcAO GRANDES OBRAS DO PENSAMENTO UNIVERSAL
Av. ProF Ipa Kois, 551 — Casa VERDE
CEP 02518-000 ~ SAo PauLo — SP 1 — Assim FALAVA ZARATUSTRA — Nietzsche
TEL.: (11) 3855-2100 2 — A ORIGEM DA FAMILIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO Estapo — Engels
Fax: (11) 3857-9643 3 — ELocio pa Loucura — Erasmo de Rotterdam
INTERNET: www.escala.com.br 4—A REPUBLICA (PARTE I) — Platdo

E-MAIL: escala@escala.com.br 5 — A REPUBLICA (PARTEII) ~ Platdo

Caixa Postac: 16.381 6 — As PaixOEs DA ALMA — Descartes —-


7 — A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HoMENS ~ Rousseau
CEP 02599-970 — SAo PauLo — SP
8 — A ArTE DA GuERRA — Maquiavel
9 — Utopia — Thomas More
10 — Discurso po MEtopo — Descartes
11 — Monarquia ~— Dante Alighieri
12 — O Princire — Maquiavel
13 — O Contrato Sociat — Rousseau
NIETZSCHE 14 — Banquete — Dante Alighieri

A Gata Ciencia 15 — A RELIGIAO Nos LIMITEs DA SIMPLES RAZAo — Kant


16 —- Potitica — Aristételes
TfTULO ORIGINAL ALEMAO
17 — CANnb1Do ov 0 Orimtsmo — O INGENUO — Voltaire
DiE FROHLICHE WISSENSCHAFT 18 — REORGANIZAR A SOCIEDADE — Comte
19 —A Perreira MULHER Casapa — Luis de Leén
20 — A GENFALOGIA DA Mora— Nietzsche
21 —.REFLEXOES SOBRE A VAIDADE Dos HomEns — Mathias Aires
22 — De Pueris — A Civitipabe Pugrit — Erasmo de Rotterdam
23 — CaRACTERES ~ La Bruyére
24 — Tratapo Sosre A TOLERANCIA — Voltaire
DiAGRAMACAO: TyaGo BoniFACIO DA SILVA 25 — INVEsTIGACAO SoprE O ENTENDIMENTO HumaANo ~ David Hume
RevisAo: Maria NazarE DE Souza LIMA BaRACHO 26 — A DicnipabDE po Homen — Pico della Mirandola
Capa: GitiarD ANDRADE E TYAGO BontIFACIO DA SILVA 27 — Os Sonuos ~ Quevedo
CoLaporapor: LUCIANO OLIVEIRA DIAS 28 — Crepuscuto pos fpotos — Nietzsche
Coorpenacdo EpItoriAL: Ciro MIoRANZA 29 — ZapiG ou o Destino — Voltaire
30 — Discurso Sosre 0 Espirito Positivo — Comte
t

31 ~ ALEM po BEM £ Do Mat— Nietzsche


32 ~ A PRINCESA DE BABILONIA — Voltaire
33 —A ORIGEM Das Espéctrs (Tomo I) — Darwin
34 — A OriGem bas Espécirs (TomoII) — Darwin
35 — A OriceM basEspécies (Tomo IID — Darwin
36 — SoLiLoquios — Santo Agostinho . ,
37 — Livro po Amico E po AMaDo— Lilio
38 — FAsuas — Fedro : INDICE
39 — A suseEIGAO DAS MuLuerss — Stuart Mill :
40 — O Sosrinuo DE RAMEAu — Diderot
41 — O Diaso Coxo — Guevara
42 — Humano, DEMASIADO HuMano — Nietzsche .
43 —~A Vipa Feiz — Séneca . APRESENTACAO eee eceee cence tence ene eeOn beeen ease Pn nee e ee eee enn e Desa ea eee eet EE ae Ret ee ees ~9

44 — Ensaio Sopre A LIBERDADE — Stuart Mil


VIDA E OBRAS DO AUTOR ~ oeccccceccseeceessscceessenecseeeesscnsseeseeeeessassaaeeeeeees -11
45 —A Gala CiEncia — Nietzsche
PREFACIO DA SEGUNDA EDICAO — .....sccccssscccccceceecececeeeeeeeeesceeceseeeeettenss -15

BRINCADEIRA, ASTUCIA E VINGANCA


— PRELUDIO EM RIMAS ALEMAS — ......cccccceeeeessseeeeaeeesegeeseceeceessecteceeeeeseeseees —29

LIVRO To ieee ccccccceessessnnceeecseeccssseesessaneesaesaaaaaccceasessaacasessssene -37

LIVRO FD = ooo ccccccceeccscsccccesssccecesescsssescessrsssaeerepeceessstseesereaa -~79

LIVRO TTD — cece ccc ccecceecescecseecesssscceseeccseesesecseseeensasevevsnaacessseees —117

Livro IV
— SANCTUS JANUARIUS — ....cccsccccccccssssecsseesssnseceesccecceesesccececseeseecesetecenens — 161

Livro V
(NOS. 08 SEM MEDO — veeccscseteesesenecetecseesectessesssecseesscsesasesterenerasneaens — 205

Fururos LANCAMENTOS: APENDICE


— CANCOES DO PRINCIPE LIVRE COMO UM PASSARO — .o.ccccccccrseseeeeeceeecssaaseees — 261
- DictonArio Ficosérico — Voltaire
- FILOSOFIA DA MIsERIA — Proudhon
- A MISERIA DA Fitosoria ~ K. Marx
- A Critica DA RazAo Pura — I. Kant
- A CipabeE bo Sot — Campanella
- Dos DEtiTos E pas Penas — Beccaria
~ Cartas Persas — Montesquieu
- O ATEU E 0 SABIO — Voltaire
APRESENTACAO

A gaia ciéncia ou O alegre saber é umaobra de reflexao de Nietzsche


sobre a historia do saber, a busca do conhecimento,os percalcos do homem
nessa busca hist6rica. Nao é um relato didatico, dividido em fases ou
etapas na aquisicao do conhecimento. E mais umacritica aos caminhos
e descaminhos trilhados no decurso dos séculos e dos milénios pelo
proprio individuo, por teorias e correntes, influenciadas geralmente por
superstic6es, preconceitos, religides e atavismosdiversificados.
Independendodas perspectivas projetadas por essas influéncias vindas
do preconceituoso, do religioso, ligado a um eventual sobrenatural, o
verdadeiro saber, 0 auténtico conhecimento brota do intelecto humano, da
razao depurada, da inteligéncia em si e de per si. Este é 0 conhecimento
profundo, filoséfico, ontolégico que privilegia o saber humano como
essencialmente metafisico, que constr6i o mundo dosespiritos livres. Nao
resta divida que a experiéncia de vida também é fonte de conhecimento,
mas de uma ciéncia pratica que descobre e segueas leis da natureza, que
observaas diferentes atitudes comportamentais do homematravés do tempo
para estabelecer regras, normas, ditames, leis, geralmente de cunho moral.
Este é o conhecimento proveniente da observacéo fisica, intelectualizado
ou espiritualizado em vista da vivéncia do homem em sociedade. Nao é,
contudo, 0 conhecimento comoprojecdo do proprio ser para dentro desi
mesmo, perscrutando a vivéncia de seu préprio eu. Sem muitos rodeios,
com A gaia ciéncia Nietzsche tenta explicar as verdadeiras raizes do
conhecimento humanopuroe cristalino.

9
Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal

No decorrer daobra, 0 autoranalisa e critica— mais critica que analisa—os


percalcos do homemantigo e moderno em seu afi de obter o conhecimento,
a verdadeira ciéncia, o saber profundo. Analisa os muitos e1ros, Os
muitos acertos pela metade, os poucos acertos integrais, os ndo poucos e
desastrosos deslizes, as elucubrag6es de mentes desviadas, a sinceridade e
a insinceridade de pensadores, além de muitas outras facetas dessa milenar
pesquisa do homem que tinha como objetivo o cognoscivel. A seu
modo,
Nietzsche elogia todos aqueles que elevaram o homem e desautoriza com
a conhecida lingua e caneta ferinas todos aqueles que superestimaram o
VIDA E OBRAS DO AUTOR
homem,divinizando-o, ou que o subestimaram, demonizando-o.

Ciro Mioranza Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Récken, Alemanha, no dia 15


de outubro de 1844. Orfao de pai aos 5 anos de idade, foi instrufdo pela
mie nosrigidos princfpios da religiaocrista.
Cursou teologia e filologia classica na Universidade de Bonn.
Lecionou Filologia na Universidade de Basiléia, na Suiga, de 1868 a
1879, ano em que deixou a catedra por doenga.
Passou a receber, a titulo de pensao, 3.000 francos suigos que ihe
permitiam viajar e financiar a publicag&o de seus livros.
Empreendeu muitas viagens pela Costa Azul francesa e pela Italia,
desfrutando de seu tempo para escrever e conviver com amigos e
intelectuais.
Nao conseguindolevar a termo uma grandeaspiracdo, a de casar-se com
Lou Andreas Salomé, por causa dasifilis contraida em 1866, entregou-se
a solidao e ao sofrimento, isolando-se em sua casa, na companhia de sua
mie e de sua irma.
Atingido porcrises de loucura em 1889, passou os tiltimos anos de sua
vida recluso, vindo a falecer no dia 25 de agosto de 1900, em Weimar.
Nietzsche era dotado de um espirito irrequieto, perquiridor, préprio
de um grande pensador. De indole romAntica, poeta por natureza, levado
pela imaginag4o, Nietzsche era 0 tipo de homem que vivia recurvado
sobre si mesmo.
Emotivo e fascinado por tudo o que resplende vida, era ao mesmo
tempo sedento porliberdade espiritual e intelectual; levado pelo instinto

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Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal

ao mundoirreal, ao mesmo tempoera apegado ao mundoconcreto e real;


religioso por natureza e por formacao, era ao mesmo tempo um demolidor
de religides; entusiasta defensor da beleza da vida, era também critico
feroz de toda fraqueza humana; conhecedor de si mesmo, era seu proprio
algoz; seu espirito era campo aberto em que irromperam as mais variadas
tendéncias, sob a influéncia de sua agitada consciéncia
Espirito irrequieto e insatisfeito, consciéncia eruptiva e critica, vivia
uma vida de lutas contra si mesmo, de choques com a humanidade, de

A GAIA CIENCIA
paradoxos sem limite. Assim era Nietzsche.

PRINCIPAIS OBRAS:
La Gaya Scienza»
A ORIGEM DA TRAGEDIA (1872)

HUuMANO, DEMASIADO HUMANO (1878)

O VIAJANTE E SUA SOMBRA (1879)

OPINIGES E SENTENGAS MISTURADAS(1879)


Moro em minha propria casa,
Avrora (1881)
Nunca imitei ninguém,
A GAIA CIENCIA (1882) E rio de todos os mestres
Que nunca riram de Si.
ASSIM FALAVA ZARATUSTRA (1883)

ALEM DO BEM E DO MAL (1886) (Escrito em cima de minhaporta)


A GENEALOGIA DA MORAL(1887)

Ecce Homo (1888)

O ANTICRISTO (1888).

O caso WAGNER (1888)

CREPUSCULO bos {poLos (1888)


(1) Este subtitulo “La gava scienza” (em provengal) s6 apareceu na capa da segunda edicao de 1887. Entretanto,
a suas
esta expressio jf constava num fragmento de 1882 servia de titulo a umalista de trovadores provengals €
VONTADE DE POTENCIA (1901) cangoes. Esta é umadas razdes pelas quais sempre se traduziu o titulo Die fréhliche Wissenschaft
como A gaia
ciéncia.
ciéncia, pois poderia ser traduzido igualmente como O alegre saber, O feliz saber. A alegre

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PREFACIO DA SEGUNDA EpDICAO

1
Mesmo que escrevesse mais de um prefacio a este livro, nado estaria
seguro de poder transmitir 0 que ele contém de pessoal para aquele nada
viveu de andlogo. Parece escrito na lingua de um vento de degelo: nele se
encontra petulancia, inquietagdo, contradigdes e um tempo deabril, o que
leva a pensar incessantemente na proximidade do inverno, mas também
na vitéria sobre o inverno, na vitéria que chega, que deve chegar, que
talvez j4 tenha chegado... Transborda de gratidéo, como se a coisa mais
inesperada se tivesse realizado: € a gratidio de um convalescente — pois
essa coisa mais inesperada foi a cura. “Gaia Ciéncia”: a expressdo significa
as saturndlias“’ de um espjrito que resistiu pacientemente a umaterrivel
e demorada press4o — paciente, severa, friamente, sem se submeter, mas
sem esperanca — e que agora, de repente, é assaltado pela esperanga, pela
esperanca de sarar, pela embriaguez da cura.
Quehaverd de surpreendente se muitas coisasirracionais e tresloucadas
sao trazidas 4 luz, se muita ternura maliciosa é desperdigada por problemas
ericados de espinhos, que nao sao feitos para serem atraidos e acariciados?
E que este livro inteiro nada mais é que uma festa depois das privagées e
das fraquezas, é 0 jibilo das forgas renascentes, a nova fé no amanha e no
depois de amanhi,o sentimento repentino, o pressentimento de um futuro,
de aventuras iminentes e de mares novamente abertos, objetivos novamente

(1) Festas que os romanos celebravam em honra de Saturno, nas quais se trocavam presentes, 0s participantes se
entregavam a orgias e os escravos assumiam o lugar de seus patroes (NT).

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Colegao Grandes Obras do
Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

permitidos, objetivos a que é novament


e permitido crer. E quantas coisas Mas nisso existe uma diferencga sensivel: num, sao os defeitos que
eu tinha entdo atrdés de mim!.. . Essa espécie
de deserto de esgotamento, sustentam os raciocinios filosdficos, no outro, sao as riquezas e as forgas.
de auséncia de fé, de congela mento em plena
juventude, essa senilidade O primeiro precisa de sua filosofia, seja para se apolar, para se a se
que se introduziu onde nao devia, essa tirania da
dor, ultrapassada ainda cuidar, se salvar, se elevar ou para se esquecer;, no segundo, a filoso 1a é
pela tirania da vaidade que rejeita as cons
eqiiéncias da dor — pois aceitar um luxo, no melhor dos casosé a voltipia de um reconhecimento triunfante
as conseqiiéncias é se consolar — esse
isolamentoradical para se preservar que acabaporsentir a necessidade de se inscrever em maitisculas cOsmicas
de toda misantropia quandoela se torna morbidamente
clarividente, essa é idéias.
limitagao porprincipio a tudo o que o conhecimento
tem de amargo, de "° Na vvstoria das vezes, é a miséria que filosofa, como em todos os
aspero, de doloroso, tal como a prescrevia 0 desgosto
nascido aos poucos pensadores doentes — os pensadores doentes nao predominam
na histéria
de um imprudente regimeintelectual, que satura
o espirito de mimos —
isso se chama romantismo — ai! quem poderia, portan da filosofia? - O que acontece com o pensamento quando é exercido sob a
to, sentir tudo isso pressio da doenga? Essa é a pergunta que diz respeito ao psicologo: e neste
comigo! Aquele que pudesse fazé-lo me daria certam
ente mais que um campo a experiéncia é possivel. Precisamente como a0 viajante que ©
poucode loucura, de impetuosidade, de “gaia ciénci
a” — me pediria contas,, propde acordar a umahora determinada e se entrega entao tranqiilamen e€
por exemplo, do punhado de cangdes que acompanhar
ao desta vez este ao sono, do mesmo modonésfildsofos, se cairmos doentes, nos resignamos
volume — canges nas quais um poeta’se ri dos
poetas de uma maneira por um tempo de corpo e alma 4 doenca — de alguma maneira fechamosos
dificilmente perdodvel.
; olhos diante de nds mesmos. Mas como 0 viajante sabe que alguma coisa
Ah! nao € s6 contra os poetas e seus belos “sentimentos
liricos” que ndo dorme, que algumacoisa conta as horas e nao falhara em acorda-lo, de
esse ressuscitado deve derramar sua maldade: quem sabe de
que espécie é igual modo nés sabemos que o instante decisivo nos encontraréacordados
a vitima que ele procura, que monstruoso tema parddico vai
seduzi-lo em — que ent&o alguiacoisa saira de seu esconderijo e surpreendera 0 espirito
breve? Incipit tragoedia® — se diz no fim deste livro de
uma inquietante em flagrante delito, quero dizer, prestes a fraquejar ou a retroceder, ase
simplicidade: deve-se tomar cuidado! Alguma coisa de essenc
ialmente resignar, ou a se endurecer, ou ainda de se engrossar, todos estados doentios
malicioso e mau se prepara: incipit parodia®, nao hd sombr
a de diivida... aos quais, quando gozamosde boa saude, 0 espirito se opoealtivamente
(pois continua verdadeiro este ditado: O espirito altivo, o pavdo e 0 cavalo
sdo os trés animais mais orgulhosos daterra). ;
2 Depois de semelhante auto-interr ogacao, de semelhante auto-seduca o,
— Mas deixemos o senhor Nietzsche: que nos importa que o senhor aprende-se a lancar um olhar maissutil para tudo aquilo que até agora foi
Nietzsche tenha recuperado a satide?... filosofia; advinha-se melhor que antes quais sio os desvios involuntarios,
Entretanto, um psic6logo sabe pouco de quest6es tao atraentes como os caminhos dispensados, os bancos de repouso, os recantos ensolarados
aquelada relacdo da satide coma filosofia e casoele proprio caisse
doente, das idéias para onde os pensadores doentes, precisamente porque sofrem,
dedicaria 4 sua doengatoda a sua curiosidade cientifica. De fato, admitindo s4o levadose transportados; sabe-se entaéo para onde 0 corpo doente e suas
que cada um de nés seja uma pessoa, tem-se necessariamente também necessidades impelem e atraem 0 espirito — para o sol, o siléncio, a dogura,
a
filosofia de sua pessoa. a paciéncia, o remédio, o cordial, qualquer que seja seu aspecto. Toda
filosofiaque coloque a paz acima da guerra,toda ética com uma concepgao
(2) Expressao latina que significa “comega a tragédia” (NT).
(3) Expressaolatina que significa “comega a parédia” (NT).
negativa da felicidade, toda metafisica e toda ffsica que conhecem umfinal,

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Universal

umneestado
tad definitiv
iti o de umaa especie
espécie qualquer, toda aspiragao, sobretudo tantas filosofias:
por numerosos estados de satide, passa por outras
estética ou religiosa, possui um ao-lado, um para-além, um or cada vez seu
de-fora, um por- de fato, no pode fazer de outra maneira que transp
cima, autorizam a perguntar-se se nado foi a doenga queinspirou 0 filésofo. de transfiguracdo é
estado na forma distante mais espiritual — essa arte
O inconsciente disfarce das necessidades fisiolégicas sob o
manto do precisamente a filosofia.
objetivo, do ideal, da idéia pura vai tao longe que se poderia ficar como
espantado Nés0sfilésofos nao temosa liberdade de separar 0 corpo da alma,
nao
—-enad poucas vezes me pergunteis i e a filosofia, r a alma doespir ito.
de uma maneira geral, nao faz 0 povo, e menos liberdade ainda temos de separa
foi até agora sobretudo uma interpretagdo do corpo
e um mal-entendido do registadores com entranhas
Nao somosras pensadoras, nao somos aparelhos
corpo. Atras das mais elevadasavaliacdes que guiar
am até agora a hist6ria nossos pensamentos na
frigorificadas — devemos incessantemente dar 4 luz
do pensamento se escondem mal-entendidos de conformaga
ofisica, seja de de sangue, de coragao, de
individuos, seja de castas, seja de racasinteiras. dor e maternalmente dar-lhes 0 que temos em nos
de fatalidade.
ardor, de alegria, de paixao, de tormento, de consciéncia,
Pode-se considerar sempre em primeira linha todas essas audac ormar sem cessar em claridade
iosas A vida consiste, para ndés, em transf
loucuras da metafisica, sobretudo no tocante 4 resposta a quest Nao
o do valor e em chama tudo o que somos e também tudo 0 que nos toca.
da existéncia, como sintomas de determinadas constituicgd os tentados
es fisicas; € podemosfazer de outra maneira. Quanto 4 doenga, nao serfam
se essas afirmagGes ou essas negacdes do mundo nao possuem, em 0
sei a perguntar se podemos passar sem ela? S6 o grande sofrimento €
conjunto, a menor importancia do pontode vista cientifico, forne a, que
cem nao derradeiro libertador doespirito, é ele que ensina a grande suspeit
menos preciosos elementosao historiador e ao psicélogo, sendo ante-
sintomas faz de cada U um X, um X verdadeiro e auténtico, quer dizer a
do corpo, de seu éxito ou de seu malogro, de sua plenitude, de esse demor ado
‘seu poder, pentiltimaletra antes daultima... S6 0 grande sofrim ento,
de sua soberania na histéria, ou ao contrario, de seus recalq
ues, de suas e lento sofrimento que leva seu tempo e chega a nos consumirde alguma
fadigas, de seus empobrecimentos, de seu pressentimento do fim,
de forma como que queimadosporlenhaverde, nos obriga, a nos filésofos, a
sua vontade do fim. Espero sempre que um médico filosofo, no sentid
o descer até nossastltimas profundezas e a nos desfazer de todo bem-estar,
excepcional da palavra — um daqueles que estude o problemada
satide de todo meio véu, de toda docura, de todo meio-termo onde tinhamos
geral do povo, da época, da raga, da humanidade — tenha uma
s6 vez a talvez colocado até entéo nossa humanidade.
coragem de levar minha suspeita até suas Gltimas conseqiiénci
as e que Duvido muito que semelhante sofrimento nos torne “melhores”; — mas
arrisque expressaresta idéia: em todosos filésofos se tratou em absolu
to, sei que nos torna mais profundos. Que lhe oponhamos nosso orgulho,
ate o presente, de “verdade”, mas de outra coisa, digamos de
satide, de nossa ironia, nossa forga de vontade, a exemplo do pele-vermelha que,
futuro, de crescimento,de forga, de vida...
embora horrivelmentetorturado, sc vinga de seu carrasco com injurias, ou
que nosretiremos, diante do sofrimento, para o nada dosorientais — a que
chamam Nirvana — na resigna¢4o muda, rigida e surda, no esquecimento e
3 na anulacdo de si: retorna-se sempre como outro homem desses perigosos
— Compreende-se que eu nao gostaria de me despedir com ingratidao
exercicios de dominio de si, com alguns pontos de interroga¢ao a mais,
desse perfodo profundamente patolégico, do qual naotirei ainda todo 0
antes de tudo com a vontade de fazer doravante mais perguntas que entao,
beneficio possivel: precisamente porque tenho consciéncia da vantagem
com mais profundidade, rigor, durac4o, maldade e siléncio. Trata-se de um
que me proporciona minhasatide versatil sobre todos aqueles
de espirito efeito da confianga na vida: a propria vida se tornou um problema. — Mas
mesquinho. Um fildésofo que passou e que volta a passar constantemente
nao se julgue que tudoisso 0 tornou necessariamente misantropo!

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Colegao Grandes Obras do Pensamento Nietzsche - A Gaia Ciéncia
Universal

Mesmo amara vida ainda é possivel — apena


s se passa a amar de Mesmo comoartistas: — poderia prové-lo. HA coisas que sabemos
a
agora muito bem, nos os iniciados: a partir disso é preciso aprender
maneira diferente. E como 0 amor por uma
mulher de quem se suspeita...
nte
Entretanto, o encanto de tudo o que é
problematico, a alegria causada esquecer, a ndo saber, comoartistas! Quanto a nosso futuro, dificilme
pee X sao demasiado grandes nos homen
pelo s mais espiritualizados e mais nos encontrario seguindo as pegadasdesses jovens egipcios que durante a
noite tornam pouco seguros os templos, abragando as estAtuas e querendo
intelectuais, para que esse prazer nao paire
incessantemente como uma
chamaclara sobre todas as misérias do que € problematico
, sobre todos a todo o custo desvendar, descobrir, pér em plenaluz tudo 0 que, por boas
coisa
razoes, est escondido. Nao, nao encontramos mais prazer nessa
Os perigos da incerteza, até mesmo sobre Os citime
s do apaixonado. Nés
conhecemos umafelicidade nova... custo, essa
de mau gosto, a vontade de verdade, da “verdade” a qualquer
muito mais experiéncia
loucura de jovem no amor da verdade: nés temos
do provados
para isso, somos demasiado sérios, demasiado alegres, demasia
4 pelo fogo, demasiado profundos... Nao acreditamos mais que a verdade
Que nado me esqueca, para terminar, de dizer o essencial: retorna-se.
continue sendo verdade se forem levantadosseus véus; ja vivemos bastante
renascido de semelhantes abismos, de semelhantes doengas graves, para escrever isso.
mesmo
da doenca da suspeita grave, retorna-se comosese tivesse trocado de pele, Para nds hoje € uma questdo de conveniéncia nao querer ver tudo nu,
maisirritadigo, mais maldoso, com um gosto maissutil para a alegria, com de nao quererassistir a tudo, de nao querer tudo compreendere “saber”.
uma lingua mais sensivel para todas as coisas boas, com 0 espirito mais “E yerdade que Deus esta presente em toda parte? — perguntou uma
alegre, com uma segundainocéncia, mais perigosa, naalegria; retorna-se menina a sua mae — Eu acho isso inconveniente.” — Palavra de filésofo!
mais crian¢ga e, a0 mesmo tempo, cem vezes mais refinado do que nunca Dever-se-ia honrar mais 0 pudor que faz com que a natureza se esconda
se havia sido antes. atrds dos enigmase dasincertezas disfargadas. Talvez a verdade seja uma
Ah! Como0 gozo vosrepugna agora, 0 20ZO grosseiro, surdo e cinzento mulher que tem razGes para nado querer mostrar suas raz6es! Talvez seu
como o entendem em geral os aproveitadores, nossas pessoas “eruditas”, nome, para empregar o grego, seja Baubd'”... Ah! esses gregos, sabiam
NOssos ricos e nossos dirigentes! Com que malicia escutamos agora a realmente viver! Para viver, importa ficar corajosamente na superficie,
grandealgazarrada feira, pela qual o “homemerudito” das grandes cidades manter-se na epiderme, adorar a aparéncia, acreditar na forma, nos
se deixa impor, por meio daarte, do'livro, da musica e de outros produtos sons, nas palavras, em todo o Olimpo da aparéncia! Esses Gregos eram
do espirito, seus “prazeres do espirito”! Como hoje essa paix4o teatral superficiais — por profundidade! E nao voltamosa eles, nos que partimos
nos faz mal aos ouvidos, comose tornou estranha a nosso gosto toda essa a espinhado espirito, que escalamos 0 cume mais elevado e mais perigoso
desordem romantica, esse emaranhado de sentidos que a plebe instruida do pensamento atual para, de 14, olharmos em nossa volta, olharmos para
ama, sem esquecer suas aspirac6es ao sublime, ao elevado, ao retorcido! baixo? Nao seremos, precisamente nisso — gregos? Adoradoresdas formas,
Nao,se ainda precisamosde umaarte nds convalescentes, ser4 de uma arte dos sons, das palavras? E com isso — artistas?
bem diferente - umaarte maliciosa,leve, fluida, divinamenteartificial, uma
arte que jorra como uma chamaclara num céu sem nuvens! Antesde tudo: Ruta, perto de Génova,
uma arte para osartistas, unicamente para os artistas. Compreendemos outono de 1886
melhor agora que, para isso, € necessdrio, em primeiro lugara alegria,
toda alegria, meus amigos!
(1) Na mitologia grega, velha ama-de-leite ligada aos mistérios dos deuses (NT).

20 21
BRINCADEIRA,
ASTUCIA E VINGANCA
PRELUDIO EM RIMAS ALEMAS

1 — ConviTE
Experimentem, pois, minhas iguarias, comildes!
Amanha haverao de acha-las bem melhores,
E excelentes depois de amanha!
Se quiserem mais
— pois bem, minhassete coisas antigas
Medardo coragem
Para fazer sete novas.

2 — MINHAFELICIDADE
Depois de estar cansado de procurar
Aprendi a encontrar.
Depois que um vento se opés a mim
Navego com todos os ventos.

3 - INTREPIDO
Onde quer que estejas, cava profundamente;
_ A teus pés esta a nascente.
Deixa os obscurantistasgritar:
“Embaixo esté sempre —o inferno!”

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Colegao Grandes Obras do Pensamen Nietzsche - A Gaia Ciéncia
to Universal

4 - DiALoco 9 — MINHAS ROSAS


A ~ Estive doente? Estou curado?
Sim! minha felicidade — quer tornarfeliz!
E quem foi entao meu médico?
Toda felicidade quer tornarfeliz!
Como pude esquecerde tudo isso?
Querem colher minhas rosas?
B—S6 agora acredito que estejas
curado, E preciso que se abaixem, quese escondam,
Pois estd bem de saiide aquele que esqueceu.
Entre os espinheiros, os rochedos,
E lambam muitas vezes os dedos!
5 — AOS VIRTUOSOS Pois minhafelicidade é zombadora!
Até mesmo nossasvirtudes devem ter 0 passol
eve: Pois minhafelicidade € pérfida!
Parair e vir, como os versos de Homero.
Querem colher minhas rosas?

6 — SABEDORIA DO MUNDO 10 — O DESDENHOSO


Nao fiques embaixo
Como ando semeandoao acaso
N&o subas muito alto .
Metratam de desdenhoso.
O mundo é sempre mais belo Aquele que bebe em copos muito cheios
Visto 4 meia altura.
Os deixa transbordar ao acaso —
Nao continuem a pensar mal do vinho. -
7 — VADEMECUM — VADETECUM”
Meuporte e meus discursoste atraem,
11 — A PALAVRA AO PROVERBIO
Tu me segues, me segues Passo a passo?
Severo e suave, grosseiro e fino,
Segue-te a ti mesmo fielmente: Familiar e estranho, sujo e puro, .
~E assim meseguiras! - Suavemente, muito suave
mente! Lugar de encontro dos loucos e dos sabios:
Eu sou, quero ser tudo isso,
8 — NA EPOCA DA TERCEIRA MUDANCADE PELE
Ao mesmo tempo pomba, serpente e porco.
Ja minhapelese racha cai,
Ja meu desejo de serpente, 12 — A UM AMIGO DA LUZ
Apesarda terra absorvida, Se nado quiseres que teus olhose teus sentidos se enfraquecam
Ambicionaterra nova: Corre atras do sol — 4 sombra.
Ja rastejo entre as pedras e a erva,
Faminto, em meurasto tortuoso, 13 — PARA OS DANCARINOS
Pronto para comer0 que sempre comi: Geloliso,
Tu, alimento da serpente,tu, a terra! Um paraiso,
Para quem sabe dangar bem.
+ composto claramente da expressdo vade
mecum que quer dizer vem comigo; Nietzsche faz
com ele um jogo de palavras e inventa vadetecum,
de vade tecum, que significa vai contigo (NT). composto

24 es
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Universal

14 -O corajoso
Assim pensa 0 homem; a mulher naorapta, rouba.
Mais vale uma inimizade de boa madeira
Que uma amizade feita de madeira
colada! » 23 - INTERPRETACAO
Se vejo claro em mim, eu me envolvo em mim mesmo,
15 — Ferrucem
Naoposso ser meuproprio intérprete.
Necessitas também de ferrugem: ser cort inho
ante nao basta! Masaquele que se eleva sobre seu proprio cam
Senio dirdo semprede ti: “EF muito
Jovem!” Leva com ele minha imagem luz.
16 ~ PARA AS ALTURAS
34 — REMEDIO PARA O PESSIMISTA
Como vou escalar melhor a montanha?”’ o?
ee

Tu te queixas porque nao encontras nada a teu gost


Sobe e nao penses nisso! icho s?
Entéo, sdo sempreteus velhos capr
Ouco-te praguejar, gritar, escarrar —
17 — SENTENCA DO HOMEM FORTE
Perco a paciéncia, meu cora¢gao se despedaga.
Nunca perguntes! Para que serve gemer!
Ouve, meu amigo, decide-te livremente,
Agarra, peco-te, agarra sempre!
A engolir um pequeno sapo gordo,
Depressa e sem sequer olharpara ele! —
18 — ALMAs PEQUENAS
E remédio soberano contra a dispepsia.
Odeio as almas pequenas:
Nao tém nada de bom e quase nada de mau. 25 — OracAo
Conheco o espirito de muitos homens
19 — O SEDUTOR INVOLUNTARIO
E nao sei quem eu mesmosou!
Para passar o tempo, lancou uma palavra noar,
Meuolhar esté demasiado préximo de mim —
E no entanto, por causa dela, uma mulher caiu.
Nao sou aquilo que contemplo.
Saberia ser-me mais util,
20 — A CONSIDERAR Se estivesse mais distante de mim.
Um duplo desgosto é mais facil de suportar
Nao tao longe, decerto, como meu inimigo!
Que um Unico: nao queres experimentar?
Meu amigo mais préximo ja esté demasiado longe —
Entretanto, a meio caminho entre ele e mim!
21 — CONTRA A VAIDADE Adivinham 0 queestou pedindo?
Naote infles, caso contrario,
A menorpicada te fara explodir. 26 — MINHA DUREZA
Devo subir mais de cem degraus
22 — HOMEM E MULHER Devo subir, eu os oucgo dizer:
“Teu coracao bate por uma mulher? Rapta-a!\” “E's duro! Serd que somos de pedra entao?” —

26 27
RTT me
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Preciso subir mais de cem degraus,


Mas em vio! Deteu olhar
E ninguém querservir de degrau.
Cintila a santidade.

27 — O VIAJANTE 32 — O SERVO ,
“Acabou 0 atalho! Abismo em volta e siléncio de morte!” A — Para e escuta: 0 que é que conseguiu engand-lo:
: : , . .
Assim 0 quiseste! Por que deixaste o atalho? Ane?
O que é que ele ouviu Zunir em seus ouvidos:
Atrevido! E o momento! O olhar frio e claro!
O que é que conseguiu abaté-lo desse modo?
Estas perdido se acreditas no perigo. tes,
B — Comotodos aqueles que carregaram corren
.
O ruido das correntes o persegue portoda parte
28 — CONSOLO PARA OS PRINCIPIANTES
Vejam a criang¢a, os porcos grunhem em torno dela, 33 — O SOLITARIO
Abandonadaa si mesma,os artelhos encolhidos!
Detesto tanto seguir como conduzir.
S6 sabe chorar e chorar mais ainda — Obedecer? Nao! E governar, nunca! :
SeraA que um dia i
i vaii aprendera ficar de péé e a caminhar? Aquele que naoé é i
ao terrivel para si,i, nado i
nao incuteterror a ninguém
ning .
Nao tenham medo! Muitobreve, penso, E s6 aquele que inspira terror pode comandar os outros.
Poderao ver a crianga dancar! Ja detesto guiar-me a mim préprio!
Logo que conseguir manter-se de pé, Gosto, como os animais das florestas e dos mares,
Haverdo de vé-la caminhando de cabecapara baixo. De me perder durante um bom tempo,
Acocorar-me, sonhando, em desertos encantadores,
29 — EGoisMo DAS ESTRELAS De me chamar a mim mesmo, porfim, de longe,
Se eu nao girasse sem cessar em torno de mim mesmo E de me seduzir a mim mesmo.
Como um tonel quese rola,
Comosuportaria sem pegar fogo 34 — SENECA ET HOC GENUS OMNE'")
Aocorreratras do sol ardente? Escrevem e escrevem sempre sua insuportavel
E sabia cantilena
30 — O PROxIMO Comose setratasse de primum scribere,
Nao gosto que meu préximoesteja muito perto de mim: deinde philosophari™.
Que v4 emborapara longee paraasalturas!.
Sendo, comofaria para se tornar minhaestrela? 7 35 - GELO
Sim, as vezes fago gelo:
31 - O SANTO MASCARADO E Util para digerir!
Para que tua felicidade nao nos oprima,
Tu te encobres com a astucia do diabo, ee ee eee ree eee ee eee Dee eee etre ree ena s anes er sere
Com espirito do diabo, com 0 traje do diabo. Oo (1) Expressao latina que significa “e todo aquele que é dessa especie”(NT).
(2) Expressao latina que significa “primeiro escrever, depois filosofar” (NT).

28 us 29
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Se tivesses muito que digerir, 40 — SEM VONTADE


Ah! comogostarias de meugelo! Seu olhar €é sem vontade e vocés o honram porisso?
Pouco lhe importam suas honras;
36 — EscCRITOS DE JUVENTUDE Tem o olho da Aguia, olha para longe,
O alfa e 0 6mega de minha sabedoria Nao os vé! Apenasvé estrelas, estrelas!
Meapareceram: que foi que ouvi?...
Ja nao ressoam da mesma maneira, 41 — HeRACLITIsMo'”
Ja nao ouco sendo os Ah! e os Oh! Toda a felicidade naterra
Velhascoisas insuportaveis de minha juventude. Amigos,esta na luta!
Sim,para tornar-se amigo
37 - PRECAUCAO E necessdria a fumaga dapocira!
Nao é bom viajar nessa regiao; Em trés casos os amigos estao unidos:
E se tens espirito, tem cuidado em dobro! Irmaos diante da miséria,
Vote atrair e vao te amar a pontodete dilacerarem. Iguais diante do inimigo,
Espiritos exaltados — semprelhesfalta espirito! Livres — diante da morte!

38 — O HOMEMPIEDOSO FALA 42 — PRINCIPIO DOS DEMASIADO SUTIS


Deus nos ama porque nos criou! — Melhorandar na ponta dos pés
“Foi o homem que criou Deus!” —E sua resposta sutil. Do que com quatro patas!
E nao havia de amar o que criou? Melhorpassar pelo buraco da fechadura
Porque 0 criou, deveria negé-lo? Do que pelas portas abertas!
Isso manca, como com 0 casco do diabo.
43 - CONSELHO
39 — No VERAO Aspiras 4 gléria?
‘Deveremos comer nosso pao . Escuta, pois, um conselho:
Com o suor de nosso rosto? Renuncia a tempo, livremente,
Quandose esta molhado de suor é melhor nado comernada, A honra!
Segundoo sabio conselho dos médicos.
Sob a canicula, o que nos falta? 44 — ATE 0 FUNDO
Que queresse sinal de fogo? Um pesquisador, eu? — Nao empregues esta palavra! —
Com o suor de nosso rosto Sou apenas muito pesado — por excessode libras!
Devemosbebernosso vinho.

(1) Herdclito (550-4 80 a.C.), filésofo grego, de cuja obra s6 restam fragmentos. Este poema de Nietzsche evoca
a seguinte Passagem de Herdclito (Fragmento8): “O que é contrario é util e é do que esté
em luta que surge a
“Mais bela harmonia: tudose faz por discérdia”
(NT).

30 31
Cole¢ao Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

Nada mais consigo sendocair sem cessar 50 — DE CABECA PERDIDA


Paracair, finalmente, até o fundo. Agora ela tem espirito — Comoteria conseguido encontra-lo?
— Por ela um homemacabadeperder a cabeca,
45 — PARA SEMPRE Seu espirito era rico antes de perder seu tempo:
“Venho hoje porque me convém” — Foi para o diabo — nao! para a mulher!
Assim pensa cada um que vem para sempre.
Que lhe importa se o mundolhe diz: 51 — PIEDOSO ANSEIO
“Vens muito cedo! Vens muito tarde\” “Que todas as chaves
Se percam, pois, depressa,
46 — Juizo DOS HOMENS FATIGADOS E que em todasas fechaduras
Todos os esgotados amaldicoam sol: Possa servir uma chave-mestra!”
Para eles o valor das arvores — é a sombra! Assim pensaa todoinstante
Aquele que é ele préprio — uma chave-mestra.
47 — DEcLinio
“Ele declina, ele cai” — gritam vocés zombadores: 52 — ESCREVER COM O PE
A verdade é que ele se inclina em diregao a vocés! Eu s6 escrevo com a mao,
Seu excesso de felicidade foi sua desgraca, Maso pé quer sem cessar escrever também.
Seu excesso de luz segue a obscuridade de vocés. Sélido, livre e corajoso quer fazerisso,
Ora através dos campos, ora sobre o papel.
48 — ConTRA ASLEIS
A partir de hoje penduro 53 — HUMANO DEMASIADO HUMANO,LIVRE
Ao pescogo 0 relégio que marca as horas: Melancélico, timido, enquanto olhas paratras,
A partir de hoje cessam seu curso as estrelas, Confiante no futuro, logo que tens confianga em ti mesmo,
O sol, 0 canto do galo, as sombras; Ave, devo te contar entre as 4guias?
E tudo aquilo que o tempo jamais anunciou Es tu a ave de Minerva?
Esta agora mudo,surdo e cego:
— Para mim toda a natureza se cala 54 - A MEU LEITOR
Ao tique-taque dalei e da hora. Boas maxilas e bom est6mago —
Eo quete desejo!
49 — O SABIO FALA Depois de teres digerido meulivro,
Estrangeiro para 0 povoe,no entanto,util ao povo, Certamente conseguiras entender-te comigo!
Sigo meu caminho,ora sol, ora nuvens —
E sempre por cima desse povo!

32 33°
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Universal

55 — O PINTOR REALISTA
A escrita, é verdade, nao esta realmente nitida —
‘Totalmentefiel a natureza!” ~ Como consegue fazer isso?
Que importa! Quem é que lé o que escrevo?
Quando é que porventuraa natureza se subme
te a um quadro?
Infinita é a menor parcela do mundo!
60 — HOMENSSUPERIORES
~ Finalmente pinta o que dela Ihe agrada.
Este se eleva! — é preciso elogia-lo!
E o que é quelhe agrada? Aquilo que sabe pintar!
Mas aquele vem sempre14 de cima!
Vive mesmo acima do louvor,
56 — VAIDADE DE POETA Ele é do alto!
Déem-mecola, e eu mesmo
Encontrarei a madeira para colar! 61 — O CETICO FALA
Encerrar um sentido em quatro rimasinsensatas —
A metade de tua vida ja passou,
Isso nao é por acaso pequenavaidade!
O ponteiro avanga, tua alma estremece!
Had muito tempoja ela gira,
57 ~ O Gosto DiIFiCIL Ela procura e nao encontrou — e ainda hesita?
Se me deixassem escolher livremente, A metade de tua vida passou:
Escolheria de bom grado um pequenolugar,
Foi dor e erro, de hora em hora!
Precisamente no meio doparaiso: Que procuras ainda? Por qué?
E, melhor ainda — diante de suaporta.
~ E justamente 0 que procuro — 0 que eu procuro!

58 — O NaRIZ TORCIDO 62 — Ecce Homo


O nariz avanga insolente Sim, sei de onde venho!
No mundo.A narina seinfla — Insatisfeito, como a labareda,
E por isso que, rinoceronte sem chifre, Ardo para me consumir.
Homem altivo, tu cais sempre para frente! Aquilo em que toco torna-se luz,
E unidas sempre encontramosessas duas coisas: Carvao aquilo que abandono: Sou certamente labareda.
A altivez rigida e o nariz torcido.
63 — MORALDE ESTRELA
59 — A CANETA RABISCA Predestinada a tua Grbita,
A caneta rabisca: que inferno!
Quete importa,estrela, a escuridao?
Sera que estou condenadoa rabiscar?
Rola, bem-aventurada, através desse tempo!
Mas bravamente tomo meutinteiro, Quea miséria te seja estranha e distante!
E escrevo em grandes ondasdetinta. Ao mundo mais longinquodestinas tua claridade:
Quebelos fluidos largos e cheios! . A piedade deve ser pecado parati!
Comotudo 0 quefaco tem éxito! Admites somente umatnicalei: ser pura!

34 35
LIVRO I
- 1 — AQUELES QUE ENSINAM O OBJETIVO DA VIDA
— Quer considere os homens com um olhar benevolente ou malevolente,
vejo-os todos, e cada um em particular, fazer a mesma coisa: a saber, 0
que é itil para a sobrevivéncia da espécie. Ora, nao € por amora essa
espécie que agem assim, mas simplesmente porque ndo ha neles nada mais
antigo, nada mais forte, mais inexoravel, mais invencivel que esse instinto
— porque esse instinto é precisamente a esséncia de nossa espécie e de
nosso rebanho. Habitualmente, nado se vé mais longe que cinco passos € se
- acredita poder classificar cuidadosamente seu préximo em homensUteis
e em homensprejudiciais, em bons e em maus; mas quandose leva em
conta 0 conjunto, quandose toma tempopararefletir mais delongadamente
sobre o todo, acaba-se por desconfiar dessa cuidadosa distingao, antes de
renunciara ela totalmente.
De fato, o homem mais prejudicial pode ser o homem mais util a
conservacdoda espécie; com efeito, ele sustenta em si ou, por sua influéncia,
nos outros, instintos sem os quais a humanidade estaria ha muito entorpecida
ou corrompida. O ddio, 0 prazer de ver 0 outro sofrer, a sede de rapina e
de dominacao e de tudo aquilo a que se dé o nome de mal: tudo isso faz
parte da espantosa economia da conservacdo das espécies, uma economia
dispendiosa certamente, prédiga e no fundo totalmente insensata: — mas
que, como estdé provado, manteve nossa espécie até agora. Nao sei, meu
caro congénere, meu caro préximo, se ainda podes viver em detrimento da
espécie, isto é, viver de uma forma “desrazodvel” e “ma”; o que poderia
ter prejudicado a espécie talvez tenha se extinguido ha milhares de anos e

37
Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

agorafaz parte dessas coisas que, para Deus, nao sao mais possiveis. Segue da razdo ou de paix4ointelectual; entao se apresenta, cercado de numeroso
tuas melhores ou tuas piores inclinagdes e, sobretudo, vai para 0 diabo! séquito de brilhantes motivos, e quer, a todo o custo, fazer esquecer que
— nos dois casos seras provavelmente ainda, de uma maneira ou de outra, 0 no fundo nfo é mais que impulso,instinto, loucura e auséncia de razdo. E
benfeitor da humanidade e havera sempre gente para te elogiar — bem como preciso amara vida,pois...! E preciso que o homem ative sua vida e aquela
para zombardeti! do préximo,pois...!
Mas nunca encontrards aquele que saberd zombar deti, individuo, E quaisquer que sejam ainda esses“é preciso” e esses “pois”, no presente
mesmo naquilo que tens de melhor, aquele que sera capaz de te fazer ver e no futuro. O que ocorre totalmente s6 e necessariamente, sem nenhum
de maneira adequada tua miserdvel pequenez de moscae de ra! Para rir objetivo, deve aparecer doravante como tendo sido feito em vista de um
de si como conviria, como a estrita verdade 0 exigisse, os melhores nao objetivo, isso deve tomar para o homem 0 aspecto da razdo e do imperativo
tiveram até agora bastante autenticidade, os mais dotados bastante génio! — ai est4 porque surge o professor de moral, ai est4 porque ele se impéde
Talvez ainda haja um futuro para o riso! como professor do objetivo da vida; por isso inventa uma segunda vidae,
O que poderd muito bem ser verificado quando a humanidade tiver por meio de sua nova mecanica,faz sair de seus bons e velhos gonzos nossa
incorporado a maxima: “a espécie é tudo, o individuo nGo é nada”, e boa e velha vida. Nao,ele nao quer de maneira nenhuma que nos ponhamos
quando cada um dispuser, a cada momento, de um acessoa essaliberagao a rir da existéncia, nem de ndéds mesmos — nem dele!
derradeira, a essa derradeira irresponsabilidade. Talvez entao 0 riso se tenha Para ele, um individuo é sempre um individuo, algo de primeiro, de
aliado a sabedoria, talvez entdo resulte em nada mais que a “gaia ciéncia”. Ultimo e de imenso; para ele nao ha espécie, nao ha soma, nao ha zero. Por
Enquanto se espera, tudo caminha de maneira diferente, a comédia da mais loucas e fantasiosas que possam ser suas inveng6ese suas apreciagoes,
existéncia ainda nao se tornou “consciente de si mesma”, continuamosainda por mais desconhecimento que ele tenha da marcha da natureza e das
na época da tragédia, na época das morais e dasreligides. O que significa condigées da natureza: — e todasas éticas até o presente foram de tal modo
essa perpétua aparicdo de fundadores de morais e de religides novas, de loucas e contrarias 4 natureza, a ponto que cada umadelasteria levado a
instigadoresda luta pelas avaliagdes morais, de professores de remorsos e€ humanidade a sua perdicdo se tivessem se apoderado da humanidade — de
de guerras de religido? Que significam esses herdis e esse teatro? qualquer modo,cada vez que “‘o herdi” aparecia no palco, algo de novo era
De fato, enfim, foram realmente herdéis e todo o resto, tudo o que, por atingido, o oposto espetacular do riso, a emogdo profunda compartilhada
momentos, era somente visivel e muito pr6ximo de nos,nuncaserviu sendo por muitos, quando se diz: “Sim, vale a pena viver! Sim, sou digno de
de preparacio paraesses herdis, seja como maquinaria e comobastidor, seja viver!” — a vida, e eu, e tu, e todos nds, quantos somos, voltamos a ser
como confidente e como criado. (Os poetas, por exemplo, foram sempre interessantes, recobramos por algum tempo o interesse em nds mesmos.
os criados de uma moral qualquer). E fora de diivida que esses trdgicos -E inegavel que a longo prazo 0 riso, arazao e a natureza acabem sempre
trabalham também eles no interesse da espécie, embora talvez imaginem por se tornar senhores de cada um desses grandes professoresde teleologia;
trabalhar no interesse de Deus e como enviados de Deus. Eles também a tragédia nao dura: retorna-se sempre 4 eterna comédia da existéncia e o
favorecem a vida da espécie ao promovera crenca na vida. “Vale a pena mar “de sorriso inumerdvel”— para falar com Esquilo” — acaba semprepor
viver — exclama cada um deles — a vida ndo é nada, hé alguma coisa por cobrir com suas ondas a mais longa dessas tragédias. Mas, apesar de tudo,
detras dela e acima dela, prestem atengdo nisso\” Esse instinto que reina apesar desse sorriso corretor, a natureza humana foi transformada pela
de uma forma igual nos homens superiores como nos homens comuns, 0 aparicao sempre renovada desses professores do objetivo da vida — essa
instinto de conservacdo se manifesta de tempos em tempos sob a aparéncia
qd) Esquilo (525-456 a.C.), poeta trdgico grego; a citagio é extraida da obra Prometeu acorrentado (NT).

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Colecao Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

natureza tem agora uma necessidade a mais, precisamente aquela de ver Encontrei em certos homens piedosos um édio contra a razdo pelo qual
reaparecer incessantemente semelhantes doutrinas do fim. lhes fiquei agradecido: assim se revelava pelo menos sua ma consciéncia
O homemSe tornou aos poucos umanimal fantasioso que deve preencher intelectual! Mas encontrar-se no meio dessa rerum concordia discors'"
uma condigdo de existéncia a mais que todos os outros animais: o homem e de toda essa maravilhosa incerteza, dessa complexidade da vida, e ndo
deve de tempos em tempos acreditar que sabe a raziio por que existe, sua interrogar, nao tremer com a alegria de interrogar, nem mesmo odiar 0
espécie nao pode prosperar sem uma confianga periédica na vida! Sem interrogador — é isso que acho desprezivel e € esse sentimento de desprezo
a fé na razdo da vida! E a espécie humana acabara semprepor decretar: que comec¢o a procurar: - basta um nada para melevar a acreditar sempre
“Hd qualquer coisa de que ndo temos de forma algumao direito de rir,’ que cada homem possui, como homem, esse sentimento. Essa é minha
E o mais malicioso dosfilantropos acrescentard: “Nao somente o riso e injusti¢a.
a sabedoria alegre, mas também o trdgico com sua sublime sem-razdo,
fazem parte dos meios necessdrios para conservar a espécie\” — E por 3 — NoOBRE E VULGAR
conseguinte! Por conseguinte! Por conseguinte! Para os caracteres vulgares todos os sentimentos nobres e generosos
O meusirm&os, me compreendem agora? Compreendem essanovalei parecem deslocadose, porconseguinte, na maioria das vezes inverossimeis:
do fluxo e do refluxo? Também nds havemosdeter nossa hora! piscam o olho quando ouvem falar disso e parecem dizer: “Deve haver
ai um proveito qualquer, mesmo se escapa ao olhar’: — mostram-se
2 — A CONSCIENCIA INTELECTUAL desconfiados com relacéo ao homem nobre, comose este procurasse seu
Refaco sem cessar a mesmaexperiéncia e€ sem cessar resisto; nao quero beneficio com artificios.
crer nela, apesar de sua evidéncia: a maioria dos homensfalta consciéncia Se a auséncia de intengdes egoistas e de lucros pessoais num nobre
intelectual, sim, muitas vezes tive a impress&o que reivindicar semelhante transparecem no olhar, eles fazem desse senhor uma espécie de louco: s6
consciéncia fazia de mim um sersolitdrio e, nas cidades mais populosas, sabem demonstrar desprezo por sua alegria e riem do brilho de seu olhar.
era comose eu estivesse num deserto. Todos continuam olhando para mim “Como pode alguém regozijar-se com seu prejuizo, como pode querer um
com olhos estranhos e continuam se servir de sua balanga, designando uma prejuizo de olhos abertos! Sua razdo deve estar realmente afetada.” — Assim
coisa boa, outra ma; ninguém cora de vergonha quando dou a entender que pensam do nobre, com um olhar de desprezo, com o ar que demonstram
OS pesos de que Se servem nao sao bastante pesados — ninguém tampouco quando véem um alienado comprazer-se com sua idéia fixa. O carater
se indigna contra mim: quando muito riem de minhasduvidas. vulgar se distingue pelo fato de que jamais perde de vista seu proveito;
Quero dizer: a maioria dos homens nao acha desprezivel acreditar e esse é seu instinto mais forte e mais violento: ndo se deixar levar para atos
viver de forma coerente com isso sem ter pesado de antemdo as raz6es inadequados — essa é sua sabedoria e sua identidade.
Ultimas e ceftas, sem mesmoter-se dado ao trabalho de encontrar essas Comparada a natureza vulgar, a natureza superior € a mais desrazodavel
raz6es — os homens mais dotados e as mulheres mais nobres fazem parte — pois o homem nobre, generoso, aquele que se sacrifica, sucumbede fato a
desse ntimero. Mas que me importam bondade,a fineza e 0 génio, se o seus instintos e, em seus melhores momentos, sua razdo faz uma pausa. Um
homem que possui essas virtudes tolera nele uma fé que se assemelha, animal que protege seus filhotes com risco de sua vida ou que, no perfodo
se a necessidade de certeza nao é mais nele o desejo mais profundo, a do cio, acompanhaa fémea até a morte, nao pensa no perigo nem na morte;
mais intima necessidade — como 0 que distingue os homenssuperiores dos sua razio também faz uma pausa, pois o prazer que the proporciona sua
homensinferiores!
(1) Expressao latina que significa “concérdia discordante das coisas, dissonancia na harmonia dascoisas” (NT).

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Colegdo Grandes Obras do Pensamento Universal

ninhada ou sua fémea e 0 receio de ser privado o dominam inteiramente; 4—O QUE CONSERVA A ESPECIE
torna-se ainda mais animal do que habitualmente, assim como ocorre com Foram os espfritos mais fortes e os mais maldosos que até agora.
o homem nobre e generoso. que promoveram os maiores progressos da humanidade: reacenderam

eee ee een eRe TS


Este experimenta sensagdes de prazer ou de desprazer com tal sem cessar as paixdes que adormeciam ~— toda sociedade organizada
intensidade que o intelecto deveria se calar ou se colocar a servico dessas adormece as paixdes — despertaram sem cessar o sentido da comparacao,
sensacoes: entdo seu corag&o sobe a cabega e se fala de “paixao”. da contradicao, 0 gosto pelo novo, pelo ousado, por aquilo que ainda nao
(Aqui e acold se encontra também o oposto desse fendmeno e, de foi tentado; obrigaram os homens a contrapor a opiniado -a opinido, tipo
algumaforma, a “‘inversdo da paixdo”, por exemplo em Fontenelle, a quem ideal a tipo ideal. Pelas armas, pela derrubada dos marcosfronteiri¢os, pela
alguém dizia um dia pondo-Ihe a mao no coragao: “O que vocé tem aqui, violacdo da piedade, na maioria das vezes: mas também pornovasreligides
meu caro, também é cérebro”’.) _ . e novas morais! Encontra-se a mesma “maldade” na alma de todos os

Ea desrazio oua falsa razio da paix4o que o vulgar despreza no homem


professores e de todos os pregadores do que € novo — essa maldade que
nobre, sobretudo quando essa paixdo se concentra em objetos cujo valor
lanca no descrédito um conquistador, mesmo quandoela se exprime de
maneira mais sutil e ndo movimente imediatamente os miusculos, o que de
lhe parece realmente fantasioso e arbitrdrio. Irrita-se contra aquele que
sucumbe a paixdo do ventre, mas compreendenoentanto a atragao que essa resto leva a diminuir o descrédito!
O que é novo, entretanto, é de qualquer maneira 0 mal, uma vez que
tirania exerce; em contrapartida, nao explica como se pode, por exemplo,
por amor do conhecimento, pdr em risco sua satide e sua honra. é aquilo que quer conquistar, que quer derrubar os marcos e as antigas

O gosto das naturezas superiores se prende as excegoes, as coisas que crencas; unicamente 0 antigo é que pode ser o bem! Os homens de bem
em todas as épocas foram aqueles que aprofundaram as velhas idéias para
deixam frio e ndo parecem ter sabor; a natureza superior tem umaescala
leva-las a dar fruto, os cultivadores do espirito. Mas todo terreno acaba por
de valores que Ihe é peculiar. Além disso, geralmente acredita ndo ter
se esgotar e 6 preciso que sempreretorne a relha do arado do mal. — Existe
escala de valores singular em sua idiossincrasia do gosto, congela pelo
contrario seus valores e ndo-valores particulares em valores e nao-valores
hoje uma doutrina da moral fundamentalmente err6nea, muito em voga na
universais e cai assim no incompreensivel e noirrealizavel. E muito raro Inglaterra, segundoa qualos conceitos “bem”e “mal” traduzem o acimulo
que uma natureza superior conserve razao bastante para considerare tratar
das experiéncias sobre 0 que “adequado”e “inadequado”; de acordo com
os homens comuns como homens comuns: geralmente acredita em sua essa doutrina, é chamado “bem” aquilo que conserva a espécie, e “mal”

paixdo como numapaixdo que se esconde nas outras e essa crenga desperta quilo que é prejudicial 4 espécie. Mas na realidade os mausinstintos sao
justamente seu ardor e sua eloqiiéncia. 0 adequados, tao titeis 4 espécie e também t4o indispensdveis como os
Masse os homens de excecdo nao se consideram eles proprios como ’ bons: — somente sua funcdoé diferente.
excecdes, como é que alguma vez poderiam compreender as naturezas
vulgares e avaliar sua regra de uma forma eqiiitativa! — Falam entao. 5 — DEVERES ABSOLUTOS
eles também, da loucura, da inadequacaéo e do espirito fantasioso da Todos os homens que sentem que lhes é necessario utilizar palavras
€ entonacdes mais violentas, atitudes e gestos mais eloqiientes para
humanidade, totalmente surpresos por causa do frenesi do mundo que
nao quer reconhecer o que “the importa”. — Essa € a eterna injustiga dos simplesmente poder agir, os politicos revolucionarios, os socialistas, os
pregadores cristd0s ou nao, em resumo todos aqueles que néo podem
homens nobres.
permitir-se meio éxito, todos eles falam de “deveres” e sempre deveres

42 43
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que tém um cardter absoluto — de outra forma nado teriam direito 4 sua uma méquina em movimento constante, que continuasse trabalhando
ganancia desmesurada: sabem muito bem isso. Por isso é que se apoderam | mesmonas condig6es mais improprias para o pensamento. Outrora, quando
de umafilosofia da moral que prega um imperativo categérico qualquer alguém queria pensar — era realmente umacoisa excepcional! — era visto
ou se apropriam de umabela dose de religiaéo, como fez Mazzini'’. Como tornar-se mais calmo e preparar sua idéia: contrafa o rosto comose fosse
desejam que se tenha absoluta confianga neles, tem de comec¢ar por terem | para uma oragdo e parava de caminhar; alguns ficavam até mesmo imoveis
neles préprios uma confianga absoluta, em virtude de um mandamento durante horas — apoiados numa s6 ou nas duas pernas — na rua, quando 0
derradeiro qualquer, indiscutivel e sublime, em virtude de um mandamento i pensamento “vinha”. Isso era chamado “pensar”!
de que se sintam seus servidores e seus instrumentos e que gostariam de se
sentir reconhecidos comotais. Encontram-se nessa categoria os adversdrios
| 7 — PARA AQUELES QUE GOSTAM DE TRABALHAR
mais naturais e geralmente mais influentes da emancipac4o moral e do Aquele que quiser fazer da moral seu objeto de estudo abre para si
ceticismo, mas sdo raros.
| um enorme campo de trabalho. Todas as categorias de paixdo devem ser
Em compensacao, ha uma classe muito numerosa desses adversdrids meditadas separadamente, através dos tempos, dos povos, dos individuos
em qualquer lugar onde o interesse ensine a submissao, quando a reputa¢4o grandes e pequenos: deve ponderar todas as suas razGes, todas as suas
e a honra parecem proibi-la. Aquele que se sente desonrado ao pensar que apreciacGes, todos os seus conceitos das coisas! Até o presente, tudo o
€ 0 instrumento de um principe, de um partido, de umaseita ou mesmode que deu cor 4 existéncia néo tem ainda hist6ria: ou se poderia falar de
uma poténcia financeira — por exemplo, como descendente de uma familia umahistéria do amor, da avidez, da vontade, da consciéncia, da piedade,
antiga e altiva— mas que quer justamente ser esse instrumento ou é forgado da crueldade? Falta-nos mesmo completamente até hoje umahistéria do
a sé-lo, por causa de si préprio e da opiniao publica, esse tera necessidade direito ou ainda somente uma historia da penalidade. Ja foi tomado por
de principios patéticos com que se possa ter a boca cheia a todo o instante: objeto o estudo alguma vez das diversas maneiras de dividir o tempo, as
— principios de uma obriga¢4o absoluta, aos quais seja possivel submeter- conseqiiéncias de uma regulamentacao do trabalho,das festas e do repouso?
se e mostrar-se submisso sem vergonha. Qualquer servilismo um pouco Sado conhecidos os efeitos morais dos alimentos?
sutil se liga ao imperativo categérico e se mostra inimigo mortal de todos Existe uma filosofia da nutrigéo? (A perpétua agitagdo pré e contra o
aqueles que querem tirar do dever seu carater absoluto: é por isso que exige vegetarianismo prova de per Si que nao existe ainda filosofia desse tipo!)
deles a conveniéncia e muito mais que a conveniéncia. Jé foram recolhidas experiéncias da vida em comum, por exemplo, a
vida mondstica? A dialética do casamento e de amizade ja foi exposta?
6 — DIGNIDADE PERDIDA ‘Os costumes dos sdbios, dos comerciantes, dos artistas, dos artesdos — ja
A meditagéo perdeu toda a dignidade de sua forma;ridicularizou-se o -encontraram seu pensador? Ha tanta coisa ainda a pensar nesse assunto!
cerimonial e a atitude solene daquele quereflete e nao se toleraria mais um - Tudo o que os homens consideraram até hoje como suas “condicgées
homem sabio ao velho estilo. Pensamos depressa, pensamos pelo caminho. de existéncia” e o que hd de raz&o, de paixdo, de supersticao nessas
em plena marcha, no meio de negdécios de toda espécie, mesmo quando consideracGes — isso j4 foi estudadoaté o fim?
se trate de pensar nas coisas mais sérias; basta-nos apenas um pouco de A simples observacio dos diferentes graus de crescimento que os
preparacdo e até mesmo poucosiléncio: — é comose nossa cabega contivesse instintos humanos adotaram ou poderiam adotar, segundo os diferentes
Climas, j4 daria muito que fazer ao mais laborioso; seriam necessdrias
(1) Giuseppe Mazzini (1802-1872). revoluciondrio italiano, fundador de uma sociedade secreta. mais vezes 8eracdes de sdbios trabalhando segundo um plano comum para esgotar os
preso e exilado, escreveu duas obras de inspiragdocatélica: Fé e futuro e Os deveres do homem(NT).

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nossa
diferentes pontos de vista e 0 conjunto da matéria. Ocorreria 0 mesmo além disso, possuimosprovavelmente uma vez mais nosso trabalho,
para justificar a variedade dos climas morais: (por que essesol, isto €, esse ambic4o, nossa perspicacia, mas para essas qualidades, que ‘SAO nossas
juizo moral fundamental e essa avaliacgéo moral brilha aqui — e 14 brilha proprias escamas de réptil, 0 microsc6pio ainda nao foi inventado: -E
outro?). Seria ainda outro trabalho determinar o que ha de err6éneo em aqui os amigos da moralidadeinstintiva haverao de exclamar: “Bravo! Pelo
toda justificacao e em todos os juizos morais produzidos até o presente. menos admite a possibilidade de virtudes inconscientes — isso nos basta!
Supondoque todosesses trabalhos fossem feitos, a mais espinhosa de todas — Oh! como thes basta pouco!
as quest6es surgiria entao primeiro: a questao de saber se compete a ciéncia
conferir objetivos novosa atividade do homem, depois de ter provado que 9 ~ NOSSAS ERUPCOES
os podetirar e destruir — entao comegaria uma experimentac4o que poderia H4 uma infinidade de coisas de que a humanidade se apropriou em _
satisfazer toda espécie de heroismo, experimentacgdo de muitos séculos e ‘€pocasanteriores, mas de maneirato fragil e tao embriondria que ninguém

Ps
que relegaria para a sombra todosos grandes trabalhose todos os grandes conseguiu perceber e que, muito mais tarde, talvez depois de séculos, -vém
sacrificios que a histéria nos deu a conhecer até hoje. Até o presente a de repente a luz: no intervalo, se tornaram fortes e amadureceram. Parece
historia néo entregou ainda suas construgGes cicldpicas; para isso também que a certas épocas, como a muitos homens, falta totalmente este ou aquele
o tempovira. talento, esta ou aquela virtude: mas que se esperem osfilhos € os netos,
caso se dispor de tempopara esperar — ¢ se verd vir a luz a alma dos avos,
8 — VIRTUDES INCONSCIENTES essa alma a respeito da qual os préprios avés nada sabiam ainda. Muitas
Todas as qualidades pessoais de que um homem tem consciéncia vezes0 filho ja se torna reveladorde seu pai: este se compreende melhor a
— notadamente quando supe que sao visiveis e evidentes também para si mesmodepoisde ter um filho. Todos temos em ndsplantagéese jardins
aqueles que os rodeiam — est4o submetidasa leis de evoluc4o completamente desconhecidos; e, para empregar outra imagem, somos todos vulcoes em
diferentes daquelas que regem as qualidades que ele conhece mal ou nao atividade que terfo sua hora de erupgdo: € verdade que ninguém sabe se
conhece, qualidades que sabem se esconder até aos olhos do observador esse momento est4 proximooudistante, o proprio Deuso ignora.
mais sutil, por sua fineza, como pordetras do nada.
Ocorre o mesmo comoasfiguras nas escamasdos répteis: seria um erro 10 — UMA ESPECIE DE ATAVISMO
ver nelas um ornamento ou até um meio de defesa — porque nado podem ser Nao posso compreender melhor os homens excepcionais de uma época
vistas sendo ao microscopio,isto é, através de olhos tornados mais agucados sendo comorebentos tardios que surgem de repente de culturas antigas e
por um meio artificial, que os animais, supondo-se que os utilizem como de suas forcas: de algum modo, como 0 atavismo de um povo e de seus
ornamento ou meio de defesa, nado possuem! Nossas qualidades morais costumes; — s6 assim é que se poderia encontrar neles alguma coisa a
visiveis, e sobretudo aquelas que acreditamos serem visiveis, seguem compreender! Agora parecem estranhos, esquisitos, extraordinarios: e
seu caminho — e nossas qualidades invisiveis de denominagoes idénticas aquele que sente em si essas forgas é obrigado cultiva-las e a defendé-
que, com relagao as outras nado podem nos servir de ornamento nem de las contra um mundoinimigo, a veneré-las e a vigiar por seu crescimento:
arma, seguem igualmente seu caminho: provavelmente um caminho bem torna-se por isso ou um grande homem ou um original e um louco, a menos
diferente, com linhas, finezas e esculturas que poderiam talvez dar prazer que pereca a tempo. Antigamente essas qualidades raras eram habituais
a um deus munido de um microscépio divino. Possufmos, por exemplo €, por conseguinte, eram consideradas como vulgares: nao conferiam

nosso trabalho, nossa ambicdo, nossa perspicdcia: todos os conhecem — e, nobreza. Talvez fossem exigidas, colocadas como condig¢éo; era impossivel

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tornar-se grande com elas, a nao ser que néo houvesse risco algum em Uma tarefa permanece sempre nova e apenas perceptivel ao olho
tornar-se, com elas, louco ou solitdério. E sobretudo nas racas e nas castas humano, apenas claramente reconhecivel, a tarefa de incorporar o saber e
conservadoras de um povo que se apresentam semelhantes contragolpes de torné-lo instintivo, — Essa tarefa nao pode ser percebida sendo por aqueles
de instintos antigos, enquanto que a apari¢do de semelhante atavismo nao que compreenderam que até aqui somente nossos erros foram incorporados
€ provavel no caso em queas racas, os costumes, as avaliagdes de valores e que toda a nossa consciéncia naose relaciona sendoa erros.
alternam demasiado depressa.
De fato, entre as forgas que provocam a evolugdo de um povo, 0 12 — Do OBJETIVO DA CIENCIA
andamento ocorre como na mtisica; em nosso caso particular, a evolugado Como? O objetivo supremo da ciéncia seria proporcionar ao homem
deve absolutamente ser andante, pois € 0 movimento de um espirito tanto prazer e tao pouco desprazer possivel? E se o prazer e o desprazer
apaixonadoe lento: ora,tal é 0 espfrito das racgas conservadoras. estivessem de tal modo solidérios um com o outro que aquele que quer
saborear ao maximode um deve saborear ao mAximodooutro — que aquele
11 — A CONSCIENCIA que quer chegaraté a “felicidade do céu’” deve também se preparar para ser
A consciéncia € 0 ultimo estagio, o mais tardio, daquilo que é organico; “triste até a morte”?
é, por conseguinte, também o que ha de menos acabado e de menosforte. Ora, talvez seja assim mesmo! Osestéicos pelo menos acreditavam
Da consciéncia provém inumerdveis enganos que fazem perecer um animal nisso e eram coerentes quando pediam o minimo de prazer possivel para
ou um homem mais cedo do que seria necessario, “apesar do destino”, que a vida lhes causasse o minimo de desprazer possivel (dizendo que “o
como dizia Homero. Sem a associagéo conservadora dos instintos, se virtuoso é 0 mais feliz”, exibiam tao bem umainsignia da escola para
essa associacdo nao fosse infinitamente mais poderosa que a consciéncia, a grande massa como propunham umasutileza casu{stica para os mais
nao haveria regulador: a humanidade sucumbiria sob o peso de seus sutis). Ainda hoje se pode escolher: seja o menor desprazer possivel, em
juizos absurdos, de suas divagacdes, de seus jufzos superficiais e de sua outras palavras, a auséncia de dor — e no fundoossocialistas e os politicos
credulidade, numapalavra, de sua consciéncia: ou antes, nao existiria mais de todos os partidos nfo deveriam honestamente prometer mais nada aos
ha muito tempo! seus clientes — seja o maior desprazer possivel’comoprego pelo aumento
Antes de estar desenvolvida e madura, toda func¢do constitui um perigo de uma multidao de alegrias e de prazeres, sutis e raramente usufruidos
para o organismo: é preferivel que seja longa e sistematicamentetiranizada! até esse dia!
Por isso a consciéncia é sistematicamente tiranizada — e nao é ao orgulho Se optarem pela primeira alternativa, se quiserem reduzir e diminuir os
que 0 deve menos! sofrimentos dos homens, pois bem! é preciso reduzir diminuir também sua
Pensa-se que isso forma 0 nucleo do ser humano,o que tem de duradouro, capacidade de se alegrar.
de eterno, de supremo, de primordial! Considera-se a consciéncia como E certo que com a ciéncia se pode favorecer um e outro objetivo. Talvez
umagrandeza constante! Nega-se seu crescimento, sua intermiténcia! agora se conhega mais a ciéncia por causa de sua faculdade de privar os
E considerada como a “unidade do organismo”! — Essa ridfcula homens de seu prazer e de tornd-los mais frios, mais insensiveis, mais
superestimacdo, esse desconhecimento da consciéncia teve esse resultado estoicos. Mas nada impede também que se descubra nela faculdades de
feliz de impedir 0 desenvolvimento demasiado répido da consciéncia. grande dispensadora de dores' — E entao talvez fosse descoberta ao mesmo
Julgando ja possuir 0 consciente, os homens pouco se esforgaram por temposua forca contraria, sua prodigiosa faculdade de fazer brilhar para a
adquiri-lo — e hoje ainda nao é diferente! alegria um novo céuestrelado!

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13 — PARA A DOUTRINA DO SENTIMENTO DE PODER Umapresafacil, para as naturezas altivas, é algo de desprezivel: so
Ao fazer 0 bem e ao fazer o mal, exercemos nosso poder sobre os experimentam um sentimento de bem-estar diante do aspecto de homens
outros — e € 0 que se quer! Fazemos 0 mal aqueles a quem somosforgados {ntegros que poderiam tornar-se seus inimigos, e diante de todas as posses
primeiramente a fazé-los sentir nosso poder, pois a dor é para isso um meio dificilmente acessiveis; muitas vezes so duros para aquele que sofre,
muito mais refinado que o prazer: — a dor procura sempre suas causas, porque nao o julgam digno de seu esforgo; mostram-se tanto mais corteses
enquanto 0 prazer mostra inclinagado para se bastar a si préprio e a nao para com seus semelhantes, com os quais lutar seria certamente honroso,
olhar paratras. se a ocasido se apresentasse.
Ao fazer 0 bem e querendo o bem daqueles que j4 dependem de nds Foi sob 0 efeito do sentimento de bem-estar que lhe dava essa perspectiva
de uma maneira ou de outra (isto é, que esto habituados a pensar em n6s que os homensda casta cavalheiresca se acostumaram usar uns para com
como em sua causa), queremos aumentar seu poder para aumentar 0 nosso os outros de uma delicadeza requintada. — A piedade € 0 sentimento mais
ou queremos mostrar-lhes a vantagem que ha em estar em nosso poder agradavel para aqueles que sAo pouco orgulhosos e que nao tém esperan¢a
— assim ficarao satisfeitos com sua situacdo e mais hostis aos inimigos de de grandes conquistas: para eles, a presa facil — e aquele que sofre é presa
nosso poder, mais dispostosa lutar contraeles. facil — é coisa que os encanta. Elogia-se a piedade comosendoa virtude
Os sacrificios consentidos, seja em favor do bem, seja em favor do mal, das meretrizes.
nao modificam o valor definitivo de nossos atos, mesmo se arriscarmos
nossa vida, como faz o mértir por sua igreja, seria um sacrificio que fazemos 14 — TUDO AQUILO QUE E CHAMADO AMOR
por nossa exigéncia de poder ou em vista de conservar nosso sentimento Cobica e amor: que diferenga nos sentimentos que cada uma dessas
de poder. Aquele que pensa “estou em poder da verdade”,, quantas outras palavras noscausa! — e, no entanto, nao se trata nos dois casos do mesmo
posses n4o deixa escapar para conservar esse sentimento! Quantas coisa instinto sob dois nomes diferentes? O primeiro vocdbulo nao provém
nao se joga por cimada borda para se manter “na superficie” — isto é, por daqueles que j4 possuem, em quem 0 instinto de posse jA se acalmou um
cima dos outros, daqueles que estéo privados da verdade! pouco e que temem agora porseus “bens”? O segundo, dos insatisfeitos e
Certamente, fazer o mal é raramente tao agraddvel comofazer 0 bem — ai dos avidos que acham “bom”esseinstinto! Nosso “amor ao proximo” nao
est4 um sinalde que nosfalta ainda poder ou é a revelacao do mau humorque € um desejo imperioso de nova propriedade?
nos causa essa pobreza, é o antincio de novos perigos e de novasincertezas E nao ocorre 0 mesmo com nosso amorpela ciéncia, pela verdade e, em
para nosso capital de poder, de um horizonte velado pelas vinganga,pelas geral, com todo desejo de novidade? Nés nos cansamosaos poucos daquilo
zombarias, pelas punig6es, pelos malogros, pelos quais é preciso esperar. que possuimoshd muito tempo e com toda seguranga e nos pomos a estender
Unicamente os homens mais sensiveis ao sentimento de poder, aqueles que novamente as mos; mesmo a mais bela paisagem onde vivemos mais de
mais 0 desejam, podem ter prazer em imprimir ao recalcitrante o sinete de trés meses deixa de nos agradar e qualquer margem distante excita nossa
seu poder; para esses, os homensja submetidos (e comotais, objetos de sua cobica. O objeto da posse diminui geralmente pelo fato de ser possuido.
benevoléncia) séo apenas um fardo sem interesse. O prazer que tiramos de nds mesmosquer manter-se, transformando em
Tudo depende da maneira pela qual se tem o habito de condimentar a nds mesmos qualquer coisa de sempre novo ~ e é precisamente isso que se
propria vida; é uma questao de gosto preferir o aumento de poderlento ou chamapossuir. Cansar-se de umaposseé cansar-se de si proprio. (Pode-se
repentino, seguro ou perigoso e ousado — procura-se sempre este ou aquele também sofrer com umagrande riqueza — ao desejo derejeitar, de distribuir
condimento de acordo com o préprio temperamento. pode também atribuir-se o nome de “amor”).

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Quando vemosalguém sofrendo, aproveitamos de bom grado a ocasiao 15 — A pISTANCIA


que se oferece para nos apoderarmos dele; é 0 que faz, por exemplo, 0 Essa montanhafaz todo 0 encanto todo interesse da regiao que domina:
homem caridoso, aquele que tem compaixao; ele também chama “amor” depois de ter-nos dito isso pela centésima vez, nos achamos,a seu respeito,
ao desejo de nova posse despertada nele e tem prazer nisso, como diante do num estado de espirito tao sobressaltado e tao cheio de reconhecimento
apelo de uma nova conquista. que imaginamos que aquela que possui todosesses encantos deve ser ela
- Mas é 0 amorsexual que se revela mais nitidamente como desejo de propria o que ha de mais encantadorna regiao — é por isso que subimos até
posse: aquele que ama quer possuir, somente para ele, a pessoa que deseja, 0 topo e ficamos desiludidos!
quer ter um poder absoluto tanto sobre sua alma como sobre seu corpo, De repente o encanto desaparece na.prépria montanha e em toda
quer ser amado unicamentee instalar-se na outra alma, nela dominar como a paisagem que a cerca; haviamos esquecido que ha certas grandezas,
o que ha de mais elevado e mais admiravel. precisamente comocertas bondades, que 86 querem servistas de longe, e
Se considerarmos que isso n&o significa nada menos que excluir 0 sobretudo de baixo, sob hipdtese alguma, do alto — é somente assim que
mundo inteiro de um bem precioso, de uma felicidade e de um prazer; que fazem efeito.
aquele que ama visa ao empobrecimento e a privacdo de todos os outros Talvez conhegas homens de teu meio que sé podem olhar-se a si proprios
competidores, que visa a tornar-se o dragio de seu tesouro, como o mais a certa distancia para se julgarem suportaveis, sedutores e vivificantes;
indiscreto e o mais egofsta de todos os conquistadores e exploradores; se deve-se desaconselhar a eles 0 conhecimento desi.
considerarmos finalmente que, para aquele que ama,todo o resto do mundo
lhe parece indiferente, palido, sem valor, e que esta pronto a fazer todos 16 — A PASSARELA
os sacrificios, a provocar em toda parte a desordem, a relegar todos os E preciso saber dissimular com as pessoas que tém o pudor de seus
seus interesses: espantamo-nos que essa avidez selvagem, essa injusti¢a do sentimentos; com efeito, ttm um d6dio repentino contra aquele que
amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto e em todas as surpreende sua ternura, seu entusiasmo ou sua nobreza comosetivesse
épocas, sim, que desse amorse tenha extraido a idéia de amor, em oposic4o violado um segredo.
ao egoismo, quandotalvez seja a expressdo mais natural do egoismo. O uso Se alguém quiser fazer-Ihes 0 bem em tals momentos, deve fazé-las rir
corrente na lingua provém com evidéncia daqueles que nao possuiam e que ou lhes sugerir, por brincadeira, alguma fria malicia: — seu humorse regela
desejavam possuir — sempre foram numerosos demais. e se dominam novamente.
Os favorecidos pela fortuna, aqueles que possuiram muito e que Mas dou a moralantes de contar a histéria. — Estivemos uma vez tao
conheceram a saciedade deixaram sem duvida escapar de vez em quando perto um dooutro na vida que nada parecia entravar nossa amizade e nossa
uma invectiva contra o “demdnio furioso”, como dizia esse ateniense, o fraternidade e que s6 havia entre nds uma pequenapassarela. Exatamente no
mais amavel e 0 mais amado de todos, Sdéfocles: mas Eros sempre ria momento em quetu ias colocar nela 0 pé, te perguntei: “Queres atravessar
de semelhantes caluniadores — justamente seus maiores favoritos. Existe a passarela’? — Mas ent&éo nao quiseste mais, e como eu te pedia, nao
realmente, aqui e acola, na terra, uma espécie de prolongamento do amor, respondeste nada.
no qual esse desejo dvido que duas pessoas experimentam umapela outra Desde entao, montanhas, rios e tudo o que pode separar e tornar
da lugar a um novodesejo, a umanova cobica, a uma sede comum, superior, estranho se acumulou entre nés e, se quisermos nos reencontrar, j4 nao
de um ideal que as ultrapassa: mas quem conhece esse amor? Quem o seria possivel. E agora, quando pensas nessa pequenapassarela, nao sabes
viveu? Seu verdadeiro nome é amizade. mais 0 que dizer — solugas, espantado.

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17 — JUSTIFICAR SUA POBREZA favordveis, sem as quais um grande crescimento, mesmonavirtude, poderia
E verdade que nao podemos, por qualquerartificio, fazer de uma pobre realmente ser possivel? O veneno que mata o mais fraco é um fortificante
virtude umavirtude rica e abundante, mas podemos embelezar essa pobreza para o forte — por isso ele nado o chama de veneno.
e fazer dela uma necessidade, de modo que seu aspecto nado nos cause mais
dor e que por causa dela ndo continuemosa recriminara fatalidade. E o que 20 — DIGNIDADE DA LOUCURA
faz o jardineiro prudente que coloca o pobre fio de agua de seu jardim nos Mais alguns milhares de anos pelo caminho que segue o tltimo século!
bracgos de uma ninfa das fontes e que justifica assim a pobreza: — e quem — Eem tudo o que 0 homem fizer, a mais alta sabedoria sera visivel: mas
nao teria comoele necessidade das ninfas? justamente por isso a sabedoria tera perdido toda a sua dignidade. Sera
entéo certamente necessario ser sdbio, mas isso sera coisa ta40 comum, tao
18 — ALTIVEZ ANTIGA vulgar, que um espirito com um gosto um pouco acima da média podera
Falta-nos 0 mais antigo colorido da nobreza porque nos falta o escravo considerar essa necessidade uma grosseria. Do mesmo modo que uma
antigo. Um grego de origem nobre encontrava entre sua superioridade e tirania da verdade e da ciéncia seria capaz de conferir valor 4 mentira, da
esse Ultimo grau de baixeza um numerotao grande de graus intermedidrios mesma forma uma tirania da sabedoria poderia fazer germinar um novo
e umatal distancia que s6 com dificuldade conseguia distinguir nitidamente género de nobreza de alma. Ser nobre — seria talvez entao ser louco.
o escravo: o préprio Platéo nao o conseguiu ver inteiramente. Ocorre de
outro modo conosco, habituados como estamos 4 doutrina da igualdade 21 — AOS PROFESSORES DE DESINTERESSE
entre os homens, se ndo é a propria igualdade. Dizemos que sao boas as virtudes de um homem, n&o por causa dos
Um ser que nao pode dispor livremente de si e que nao dispGe de lazer resultados que podemterpara ele, mas por causa dos resultados que podem
— nao tem nada de desprezivel a nossos olhos; de fato, cada um de nds ter para nds e para a sociedade: — no elogio da virtude nunca se foi muito
esta demasiado afetado por esse género de servilismo, dadas as condi¢6es pouco “desinteressado”, muito pouco “n4o-egofsta”! Caso contrario, ter-se-
de nossa posicaéo e de nossa atividade sociais, que sao fundamentalmente ia observado que as virtudes (como a aplicacdo, a obediéncia, a castidade,
diferentes daquelas dos antigos. — O filésofo grego atravessava a vida com a piedade, a justiga) sao geralmente prejudiciais aquele que as possui,
o sentimento {ntimo de que havia muito mais escravos do que se pensava: porque elas reinam com demasiada violéncia e avidez, comoinstintos que
para ele, era escravo quem naoera fil6sofo; transbordava de orgulho quando nao querem de maneira algumaestar sob as rédeas da razao no mesmo
considerava que até os mais poderososdaterra figuravam entre os escravos. nivel dos demais instintos. Possuir uma virtude, uma virtude verdadeira e
Semelhante altivez se tornou para nds estranha, impossivel; mesmo como completa (e néo apenas o pequenoinstinto de umavirtude) — é ser vitima
simbolo, o termo “escravo” nao possui para nés toda a sua forga. dela! Essa é a razdo por que é elogiada pelo vizinho!
Elogia-se o trabalhador, embora seu zelo prejudique a acuidade de sua
19-O mMaL vista, a espontaneidade e o frescor de seu espirito; venera-se e lastima-se
Examinem a vida dos homens e dos povos melhores e mais fecundos, 0 jovem que se “matou no trabalho”, dizendo: “Para a sociedade em seu
e perguntem se uma 4rvore que deve elevar-se altivamente nos ares pode conjunto, a perda do melhor individuo ndo passa de um pequenosacrificio!
viver sem 0 mau tempoe as tempestades; se a hostilidade e a resisténcia do E lamentdvel que esse sacrificio seja necessdrio! Mas seria certamente
exterior, se toda espécie de ddio, de inveja, de teimosia, de desconfiang¢a, muito mais lamentdvel que o individuo pensasse de outra forma e que desse
de dureza, de avidez, de violéncia nado fazem parte das circunstancias mais importancia & sua conservacdo e a seu progresso do que ao trabalho

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a servico da sociedade!” Por outro lado, nao se lastima esse jovem por mais dinheiro e sempre mais trabalho: é que é necessdrio muito mais génio
causa dele proprio, mas porque, com essa morte, a sociedade perdeu um para gastar do que para adquirir! — Que seja! Esperemos nossos “netos”.)
instrumento submisso — 0 que se costuma chamarde “um homem devalor”. Se a educacdo tem éxito, toda virtude do individuo se tornara, enquanto
— Talvez se possa também perguntarse naoteria sido preferfvel no interesse objetivo privado Ultimo,titil ao publico e nefasta ao privado — disso decorre
da sociedade que esse rapaztivesse trabalhado mais prudentemente e se provavelmente umaespécie de enfraquecimentodo espirito e dos sentidos
tivesse conservado mais tempo. Reconhece-se 0 dano sofrido, mas se ou mesmo um declinio precoce: examinem-se sob esse ponto de vista, uma
considera superior e mais duradouro o fato de que um sacrificio tenha sido ap6s outra, as virtudes da obediéncia, da castidade, da piedade,dajustiga.
feito e que a mentalidade do animal de sacrificio receebeu uma vez mais O elogio doaltruista, do homem virtuoso, daquele que se sacrifica —
uma confirmacaovisivel. portanto, o elogio daquele que nao empregatoda suaforgae toda a sua razao
Assim, portanto, 0 que realmente se elogia nas virtudes é, por um lado, em sua prépria conservagao, em seu desenvolvimento, em sua elevacio,
sua natureza de instrumento e, de outro, 0 instinto que foge dos limites em seu progresso, no aumento de seu poder, mas que vive com humildade
da vantagem que dela tira o individuo — numapalavra, é a sem-razio na sem se preocupar consigo mesmo,talvez até com indiferenga e ironia a
virtude, gragas 4 qual o ser individual se deixa transformar em “funcdo” seu respeito — esse elogio nao flui certamente do espirito de desinteresse:
do todo. O elogio da virtude é 0 elogio de alguma coisa de prejudicial o “préximo”elogia o desinteresse porque é dele que tira sua vantagem! Se
ao privado, o elogio de instintos que privam o homem de seu mais nobre 0 préximo raciocinasse também de uma forma“desinteressada”, recusaria
amorde si, de sua mais elevada forga de auto-protecdo. E verdade que em essa ruptura de forcas, esse prejufzo ocasionado em seu favor, se oporia ao

genergeetiainSana
vista da educag¢ao e para inculcar habitos virtuosos, se procura extrair uma nascimento de semelhantes inclinagdes e manifestaria antes de tudo seu
série de resultados da virtude que identificam a virtude com a vantagem proprio desinteresse, designando-os precisamente comonefastas! — Essa é
particular — e existe, de fato, semelhante similitude! a contradi¢do fundamental dessa moral que tanto se estima hoje: os méveis
A tenacidade cega,essa virtude tfpica dos instrumentos,é apresentada dessa moral esto em contradigdo com seu principio!
como o caminho das riquezas e das honras € como a pocao maiseficaz O argumento de que ela se quer servir, para se demonstrar legitima, ¢
contra o aborrecimento e as paixdes; mas se passa sob siléncio o que recusadoporseu critério de moralidade. O principio “deves renunciara ti
essa tenacidade tem de perigoso, o que é seu perigo superior. A educacao mesmo te oferecer em sacrificio”, para nao refutar sua prdépria moral, s6
procede geralmente dessa forma:procura determinarnoindividuo, por uma deveria ser decretado por um ser que renunciasse assim ele prdprio a sua
série de atragGes e vantagens, uma manceira de pensare de agir que, tornada vantagem e que provocasse talvez, por esse sacrificio exigido dos outros,
habito, instinto, paix4o, domina nele e sobreele, no final das contas em seu sua propria queda. Mas, desde que o préximo(ou a sociedade) recomenda o
detrimento, mas “‘para o bem geral”. altrufsmo por causa desua utilidade, o principio contrario “Deves procurar
Quantas vezes observei que, se a tenacidade cega proporcionariquezas teu proveito mesmo a custa de todos os outros” & posto em pratica e €
e honras,tira ao mesmo tempodos 6rgaosa sensibilidade que lhe permitiria pregado com o mesmofélego 0 “tu deves” € 0 “tu ndo deves™!
desfrutar essa riqueza e essas honras! Quantas vezes observei também que
esses remédios radicais contra o aborrecimento e as paixdes amolecem 22 — A ORDEM DODIA PARA O REI
ao mesmo tempo ossentidos e os tornam recalcitrantes a qualquer nova Comeca o dia: comecemos, para este dia, a colocar em ordem os
excitagao. (A maisativa de todas as épocas — a nossa — ndo sabe fazer outra negdcios e os prazeres de nosso muito gracioso senhor que se dignaestar
coisa de todo o seu dinheiroe de todo 0 seu trabalho sendo acumular sempre ainda repousando.

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Universal

Sua Majestade tem mau tempo hoje: evitaremos


de chama-lo de 23 — Os SINTOMAS DA CORRUPCAO
ruim; nao falaremos do tempo — mas hoje vamos dar
aos negoécios um Observemosos sintomas dessa doenga social necessaria de tempos em
tom mais solene e as festas algo de mais pomposo do que seria
de outra tempos que é chamada“‘corrup¢ao”. Logo que a corrupgao se manifesta em
forma necessdrio. Sua majestade talvez esteja doente:
contaremos no algum lugar, uma superstig¢do multipla aparece e 0 que 0 povo acreditava
almogo a ultima boa noticia de ontem A noite, a chegad
a do senhor até entao se torna palido e sem forga, pois a superstic&o é umaisca de livre
Montaigne‘” que sabe falar de uma forma tio divertida
de su d pensamento — aquele que se submetea ela escolhe certas formas ¢ formulas
~ sofre de cadlculos renais.
“es que Ihe agradam e se concede o direito de escolher. O supersticioso,
. Receberemos algumas personalidades (Personalidades'
— 0 que nao comparadoao crente, é sempre mais “pessoal” que o outro; uma sociedade
diria, se ouvisse esta palavra, essa velha rf inchad
a que ha deestar entre supersticiosa seré aquela onde se encontram j4 muitos individuose onde se
elas! “Ndo sou uma personalidade, diria ela, sou sempre tem prazer por tudo o que é individual.
o préprio
negocio.”) ~ A recepcao durard mais tempo do que sera agradav
el a quem Desse ponto de vista a supersticdo aparece sempre como um progresso
quer que seja: raz4o suficiente para contar a anedota do
poeta que escreveu com relacao 4 fé, como um sinal anunciando que o intelecto se torna mais
em sua porta: “Quem entrar me dard honra, quem ndo
entrar me dard independente e reivindica seus direitos. Os partiddrios da velha religido
prazer™. — Essa € verdadeiramente umafalta de cortesia formul
ada de e da velha religiosidade se queixam da corrupgdo — mas foram eles que
maneira tao cortés!
até aqui determinaram o vocabulario e que deram a superstigao uma ma

Shh ingaeSORENag8S
. E talvez esse poeta tivesse perfeitamente razio para ser
descortés: reputacio, mesmo junto dosespiritos mais livres. Aprendemos, portanto,
dizem que seus versos sao melhores que aqueles de um ourives
. Que faca que a supersticio é um sintoma do surgimento do iluminismo. — Em
ainda muitos deles e quese retire do mundo: esse é realmente
o sentido de segundo lugar, acusa-se de relaxamento umasociedade da qual a corrupg¢ao
sua malicia. Em contrapartida, um principe vale sempre muito
mais que se apodera: de fato, é visivel que ent&o diminui o prestigio da guerra e o
Os versos que produz, mesmo quando... — mas que fazemos? Conver
samos entusiasmo com que se faz umaguerra e que se aspira aos prazeres da vida
€ toda a corte pensa que estamos trabalhando e que nos inquiet
amos: nao com tanto ardor como aquele que antigamente se punha em procurar as
se vé nenhumaluz antes daquela de nossa Janela. — Escutem! Nao
foi a honras da guerra e da ginastica.
campainha? Com os diabos!
Mas 0 que nao se vé é que essa velha energia popular, essa paixdo
O dia e a danga comecam e nao sabemos nossas fungdes! Precis
amos popular, que a guerra e os torneios punham em tao pomposa evidéncia, se
portanto, improvisar — todos improvisam seu dia. Vamos fazer hoje
como transformou numainfinidade de paixGes privadas que s4o somente menos
todos! — Entéo meusonhose dissipou, meu singular sonho matinal, visiveis; é até provavel que, no estado de “corrupg4o”, o podere a forga da
sem
duvida sobas batidas violentas do telogio da torre que acaba de
anunciar energia que um povo gasta sao maiores que nunca e que 0 individuo use
com a solenidade que Ihe € prépria, a quinta hora. Parece
-me que desta delas com muito mais prodigalidade do que podia fazé-lo anteriormente:
vez 0 deus dos sonhos quis zombar de meus habitos — tenho o costum — porque entao nao era ainda suficientementerico para isso! E, portanto,
e
de comegar o dia acomodando-o de forma a torna-lo suportavel
e sem precisamente nas épocas de “relaxamento” que a tragédia corre as casas €
duivida me ocorreu muitas vezes de torné-lo demasiado cerimon
ioso e as Tuas, que se vé nascer 0 grande amore o grande ddio e que a chama do
demasiado principesco. conhecimento se eleva com brilho para o céu. — Pretende-se, em terceiro
lugar, para compensar ao mesmo tempo a acusa¢ao de superstigao e de
relaxamento, que nas épocas de corrupg¢ao os costumes se tornam mais
(1) Michel Eyquem de Montai gne (1533-1592), pensador e eseritor
itor fi
francés, assi tiente 2
de Paris. Sua obra inteira esta contida em seus Ensaios (NT).
ness sssiauo Heqentador da core rea

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suaves e que, comparada as épocas antigas, mais crentes e mais fortes, a de rebanho, porque se consideram a si préprios tao imprevisiveis como o
crueldade ora esté diminuindo. Nao poderia subscrever esse elogio, como futuro; do mesmo modo, eles gostam de se ligar aos homens violentos,
nao subscrevi a acusacdo precedente: concedo somente um ponto, que a porque se julgam capazes de acdes e de investigagdes que néo podem
crueldade se afirma e que as formas de que se revestia antigamente sao contar nem com a compreensao nem com o perdao da multidao — mas
doravante contrarias ao bom gosto; mas é somente nos tempos de corrup¢ao o tirano ou o César compreende o direito do individuo, mesmo em suas
que se expandem o ferimento e a tortura que sdo infligidos pela palavra e transgressGes; tem interesse em favorecer uma moral pessoal mais ousada
pelo olhar — é somente agora que se pode falar de maldade e de prazer em e até mesmo em lhe dar a mao.
ser mau. Os homens da corrupcfo sao espirituais e caluniadores; sabem De fato, pensa dele e quer que os outros pensem dele o que Napoleao
que ha outras formas de matar. que nfo seja pelo punhal e pela emboscada exprimiu uma vez da forma classica que lhe era peculiar: “Tenho o direito
— sabem também que se acredita em tudo o que é bem dito. — Em quarto de responder a todas as suas queixas com um eterno eu. Estou distante de
lugar, é preciso esperar que “os costumes se corrompam” para que esses todos, ndo aceito as condicées de ninguém. Devem submeter-se a todas
seres chamados tiranos comecem a aparecer: séo os precursores e, de as minhas fantasias e achar muito simples que eu me dé semelhantes
alguma forma, os prot6tipos dos individuos. distracées.” Foi o que ele disse 4 mulher um dia em queela tinha razGes para
Mais um pouco de paciéncia e esse fruto, que é o fruto dos frutos, duvidar de sua fidelidade conjugal. — As épocas de corrupgdo sao aquelas
acabara por pender, maduro e dourado, da 4rvore'do povo — ora, é somente em que as macas caem dasArvores: quero dizer os individuos, aqueles que
por causa desses frutos que essa drvore existe! Quando a decomposi¢éo carregam a semente do futuro, os promotores da colonizagio intelectual
atingiu seu apogeu, assim comoa luta dostiranos de toda espécie, chega e da nova formag4odas relagées entre o Estado e a sociedade. Corrup¢ao
sempre o César, 0 tirano definitivo, que vibra o golpe final ao combate pela — nao passa de um termo injurioso para o outono de um povo.
preponderancia, aquele que se aproveita do relaxamento geral.
Eemsua época que0 individuo esté mais maduroe que, por conseguinte, 24 — DESCONTENTAMENTOSDIVERSOS
a “cultura” esta mais elevada e mais fecunda, nao gragas ao tirano, nem por Os descontentes fracos e de alguma forma femininos sao os mais
ele: embora seja proprio dos homens de uma cultura superior cultivar seu engenhosos quandose trata de tornar a vida mais bela e mais profunda;
César, fazendo-se passar por sua obra. Na verdade, eles tem necessidade os descontentes fortes — os descontentes do sexo masculino para conservar
de paz exterior porque neles tudo é agitacdo e trabalho. Entdo, chega-se a imagem — sdo mais inventivos para tornar a vida melhor e mais segura.
ao cimulo da corrupcao e da traigéo: pois o amor do ego que acaba de Os primeiros mostram sua fraqueza e sua feminilidade quando gostam de
ser descoberto é agora muito mais poderoso que o amor da velha patria, se deixar enganar e porque se contentam com um pouco de embriaguez
desgastadoe repetitivo; e a necessidade de se defender contra os temidos e de entusiasmo, mas no final das contas nao é possivel satisfazé-los e
caprichos da fortuna abre mesmo as mos mais nobres, desde que um sua frustragao é incuravel; além disso, encorajam todos aqueles que
homem rico e poderoso se mostre disposto a ali depositar ouro. sabem criar 6pios e narcéticos consoladores e detestam, por esse motivo,
O futuro é tao incerto que é preciso viver o dia apés dia: estado de alma aqueles que colocam o médico acima do pastor — mantém dessa maneira
que favorece 0 jogofacil de todos os sedutores — pois também naose deixa a continuidade dos verdadeiros males! Se no tivesse havido na Europa, a
seduzir e corrompersendo por“um dia”, reservando-se o futuro e a virtude! partir da Idade Média, uma multidao de descontentes dessa espécie, talvez
Sabe-se que os individuos, esses auténticos homens “em si” e “para si”, a famosa faculdade européia de evolucdo nunca tivesse surgido: de fato,
pensam nascoisas do momento, muito mais que seus antipodas, os homens as ambigées dos descontentes fortes sido demasiado grosseiras e, no fundo,

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demasiado modestas para nado poderem ser finalmente satisfeitas. A China 27 — O HOMEM QUE RENUNCIA
nos da o exemplo de pajs onde o descontentamento em massa e a faculdade O que faz aquele que renuncia? Aspira a um mundo superior, quer
de evolucdo desapareceram hd muitos séculos; os socialistas e os iddlatras voar mais longe e mais alto que todos os homens da afirmacao — ele se
do Estado na Europa, com suas medidas para tornar a vida melhor e mais livra de muitas coisas que sobrecarregariam seu véoe, entre essas coisas,
segura, poderiam facilmente levar a Europa a umafelicidade “chinesa”, se ha aquelas que tém valor e das quais ele gosta: ele as sacrifica a seu
conseguissem extirpar essa frustragdo e esse romantismo doentios, ternos e desejo das alturas.
femininos, atualmente superabundantes. Ora,é esse sacrificio e esse desprendimento que so unicamentevisiveis
A Europa é um doente que deve a maior gratidao a sua incurabilidade nele: é por isso que the dao o nome de renunciador e é comotal que se
e as eternas transformacGes de seu mal: essas situagGes sempre novas, apresenta diante de nds, envolto em seu habito de monge, comose fosse a

esses perigos, essas dores, esses expedientes, igualmente sempre novos, alma de um cilifcio.
acabaram por gerar uma irritabilidade intelectual que quase equivale ao Masfica muito satisfeito com a impressdo que produz: quer esconder
génio e que é, em todo o caso, a mae de todo génio. a nossos olhos seu desejo, seu orgulho, sua intengéo de se elevar pelos
ares, acima de nés. Sim! E muito mais habil do que pensamos e tao cortés
25 ~ NAO PREDESTINADO AO CONHECIMENTO conosco — esse afirmador! Porque é perfeitamente como nds, mesmo em

Existe uma humildade ingénua, bastante freqiiente em suma que, sua rentincia.
quando tomaconta de nés, nos torna de uma vez por todas impréprios a
sermosdiscipulos do conhecimento. 28 — PREJUDICAR COM O QUE SE TEM DE MELHOR
De fato, no momento em que um homem dessa espécie percebe alguma Nossas forgas nos impelem de tal forma para frente que ndo podemos
coisa que o afeta, volta-se de alguma forma para si mesmoe diz: “Tu te mais suportar nossas fraquezas e por elas perecemos: acontece também
enganaste! Onde é que tinhas a cabegca! Isso ndo pode ser verdade\.— E que podemos preveresse resultado e, no entanto, nao queremos que seja
entao, em vez de examinar mais de perto, em vez de prestar mais atencdo, diferente. Entéo usamos a dureza contra o que deveria ser poupado em
foge intimidado e evita encontrar aquilo que o choca e procura esquecé-lo nds e nossa grandeza é também nossa barbarie.
0 mais depressa possivel. Semelhante aventura, que acabamos por pagar com a vida, é um
Sua lei interior diz: “Nao quero ver nada que esteja em contradigdo exemplo da influéncia geral que os grandes homens exercem nos outros
coma opiniao corrente sobre as coisas. Serei eu feito para descobrir navas e em seu tempo: — é justamente com aquilo que tém de melhor, com
verdades? Ja had demais antigas.” © que unicamente eles sabem fazer que arruinam muitos seres fracos,
incertos, que ainda esto no vir-a-ser e no querer — e é por isso que se
26 — O QUESIGNIFICA VIVER? tornam nocivos.
Viver? — significa: repelir incessantemente aquilo que quer morrter. Pode até mesmo acontecer que s6 prejudiquem porque aquilo que ha
Viver? — isso significa: ser cruel e implacavel contra tudo o que, em nds,se de melhor neles sé é absorvido, de alguma forma degustado, por aqueles
torna fraco e velho, e ndo somente em nés. que ali perdem sua razfo e sua ambic4o, comosob a influéncia de uma
Viver, isso significaria, portanto: nao ter piedade dos moribundos, dos bebida forte, e cujos membros se quebrardéo nos impasses por onde a
miserdveis, dos anciios? Ser assassino sem cessar? — E no entanto o velho embriaguez os conduz.
Moisés disse: “NGo matards.”

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29 — OS QUE ACRESCENTAM UMA MENTIRA 31 — COMERCIO E NOBREZA


Quando na Franga se comecou a combater as trés unidades de Vender e comprar passam hoje porcoisa banal, precisamente comoler e
escrever; qualquer um sabe fazé-lo, mesmo nao sendo comerciante, e o faz
Aristételes e, por conseguinte, também a defendé-las, se pode ver uma
vez mais 0 que se vé freqiientemente, mas sempre com muito desgosto: todo dia: exatamente comooutrora, na época dos homensselvagens, cada
havia quem mentia a si mesmopara encontrar as razGes que fazem subsistir um era cacadore treinava dia apés dia na técnica da caga.
essas leis, simplesmente para nao confessar que se estava habituado a Nessa época, a caca era banal, mas foi se tornando pouco a pouco
sua dominag¢ao e que ndo se queria mais ouvir falar de outra coisa. E € privilégio dos poderosos e dos nobres e perdeu seu cardter cotidiano e
assim que se age em toda moral, em todareligiao reinante e sempre se banal — pois deixou de ser necessaria para se tornar negécio de capricho e
agiu desse modo: as intengdes que se escondem atrds do habito sao sempre de luxo: — poderia ocorrer exatamente o mesmo algum dia com a compra
acrescentadas por mentiras, logo que alguém comega a contestar o habito e a venda.
e a pedir as razOes e as intencoes. E ai que se encontra a grande mé-fé dos Podem ser imaginadas condig6es sociais em que nada sera vendido
conservadores de todas as épocas: — eles acrescentam mentiras. nem comprado e em que a necessidade dessa arte deverd se perder aos
poucos completamente; talvez entéo havera individuos menos submissos
30 — COMEDIA DOS HOMENS CELEBRES as leis da condi¢do geral que se permitiraéo a compra e a venda como um
Os homenscélebres que precisam de sua gléria, como por exemplo os luxo da sensibilidade.
politicos, nao escolhem seus amigos e seusaliados sem segundas inteng6es: Entio somente o comércio se tornara uma coisa distinta e os nobres
este deve lhes proporcionar um poucode brilho e de reflexo de sua virtude, se ocupariam dele talvez com a mesma predilego que ora se entregam
aquele o temor que inspiram certas qualidades duvidosas que todos a guerra e a politica: enquanto que, ao contrario, a politica perderia todo
reconhecem nele; a outro roubam sua reputagdo de ocioso, de preguigoso, prestigio e toda dignidade.
porquanto convém passar momentaneamente por desatento e indolente: Hoje, a politica j4 deixou de ser oficio de fidalgo: poderé ser que um
— eles se escondem logo que estiverem em apuros; ora precisam ter junto dia ela venhaa ser considerada to vulgar que seja classificada, como toda
de si o fantasista, ora o pesquisador, ora o pedante, como de um alter-ego, literatura de partidos e de jornais, sob a rubrica “prostitui¢ao do espirito”.
mas logo néo tém mais necessidade deles! E assim que seu séquito some
de repente, assim desaparecem seus tracos exteriores, quando tudo parece 32 — DisciPULOS QUE NINGUEM DESEJA
querer se aglomerar nesse séquito e lhe conferir um “carater” peculiar: “Que devo fazer com esses dois jovens'” — exclamava zangado um
nisso se parecem com as grandes cidades. Sua reputagao se transforma sem fildsofo que “corrompia” a juventude como Sécrates a havia outrora
cessar, precisamente como seucarter, pois seus meios mutaveis exigem corrompido. “Semelhantes discipulos me importunam. Este ndo sabe
essa mudang¢a e trazem em primeiro plano na cena ora umaora outra dizer “ndo” e aquele responde a tudo “sim, mas”. Admitindo que
de suas qualidades reais ou supostas: seus amigos e seus aliados fazem compreendessem minha doutrina, o primeiro sofreria demais, porque
parte dessas qualidadesteatrais. Pelo contrario, 0 que eles querem deve minhas idéias exigem uma alma guerreira, um desejo de fazer mal, um
permanecerainda maisfirme, mais sdlido e mais brilhante — e isso também prazer da negacdo, uma pele dura — sucumbiria a suas chagas abertas e
por vezes tem necessidade de sua comédia e de seu jogo de cena. a suas feridasinteriores. E o outro se situaria no meio de todas as causas
que defende para fazer algo de mediocre — semethante discipulo, eu o
(1) Trata-se das unidades de lugar, de tempo e de agao, atribuidas pela tradigao a Aristételes, mas que
nado desejo a meu inimigo!”
constam especificamente em sua obrafilos6fica (NT).

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33 — FORA DOS ANFITEATROS e representado uma comédia; tinha feito perfeitamente 0 papel de pai da
“Para lhes provar que o homem no fundo fazparte da classe dos animais patria e de sdbio no trono até iludir inteiramente a todos: “Plaudite, amici;
de uma. ingenuidade natural, terei apenas de Ihes recordar sua longa comaediafinita est”! — O pensamento de Nero moribundo “Qualis artifex
credulidade. Somente hoje, muito tarde e depois de uma imensa vitoria pereo!” foi também 0 pensamento de Augusto moribundo: vaidade
sobre si mesmo, se tornou um animal desconfiado — sim, o homem € agora de histrido, loquacidade de histriao! E é exatamente a contrapartida de
mais maldoso do que nunca.” — Nao compreendo: por que o homem seria Sécrates moribundo. — Mas Tibério morreu em siléncio, ele que foi o
hoje mais desconfiado e mais maldoso? — Porque agora tem umaciéncia mais atormentadode todos quantos se atormentaram si préprios — ele foi
- porque agora tem necessidade de uma ciéncia!” verdadeiro e nado desempenhou o papel de um comediante!
O que é que podera ter pensado em sua Ultima hora? Talvez isto: “A
34 — HISTORIA ABSCONDITA vida ~ € uma longa morte. Comofui louco ao abreviar tantas existéncias!
Todo grande homem possui uma for¢aretroativa: por causa dele, toda Seria feito, eu, para ser um benfeitor? Deveria ter-lhes dado a vida eterna:
a historia 6 recolocada sobre a balanga e mil segredos do passado saem poderia assim ao menos vé-los morrer eternamente. Saberia ver isso tao
de seus esconderijos — para serem iluminados por seu sol. Nao é possivel bem! Qualis spectator pereo’” Quando, depois de longa agonia, pareceu
de forma alguma prever tudo o que vird a ser ainda a hist6ria. O passado recuperar forcas, julgou-se de bom alvitre sufocdé-lo com travesseiros —
talvez continue ainda essencialmente inexplorado! Ha ainda necessidade assim, morreu duas vezes.
de muitas forcas retroativas!
37 — TrES ERROS
35 — HERESIA E FEITICARIA Nos ultimos séculos se fez avangar a ciéncia, seja porque com ela e
Pensar de forma diferente do que é usual — é muito menos 0 efeito de por ela se esperava compreender melhor a bondade e a sabedoria de Deus
um intelecto melhorque 0 efeito de inclinagées fortes e mas, de inclinagdes — 0 principal motivo na alma dos grandes ingleses (como Newton) — seja

ssbeesiahinges.
separadoras, isoladoras, altivas, zombadoras, pérfidas. A heresia € a porque se acreditava na utilidade absoluta do conhecimento, sobretudo na
contrapartida da feitigaria; é totalmente pouco inocente ou veneravel em uniao maisintima entre a moral, a ciéncia e a felicidade — principal motivo
si. Os hereges e osfeiticeiros sio duas categorias de seres maus: 0 que na alma dos grandes franceses (como Voltaire) — seja porque se pensava
possuem em comum é no s6 que séo maus, mas que se sentem também possuir e amar na ciéncia uma coisa desinteressada, inofensiva, que se
maus; seu maior prazer é fazer 0 mal ao que reina (homens ou opinides). bastava a si propria e inteiramente inocente, na qual os mausinstintos do
A Reforma, umaespécie de repeti¢ao do espirito medieval numa época em homem naoparticipavam de forma alguma — o motivo principal na alma de
que a Idade Média ja nao tinha por ele a boa consciéncia, produziu os dois Spinoza que, como pensador, se achava divino: — portanto, trés erros.
em grande abundancia.
38 — Os EXPLOSIVOS
36 — ULTIMAS PALAVRAS Se considerarmosque necessidade de explodir reside na forga dos jovens,
Talvez se lembrem que o imperador Augusto, esse homem terrivel nao nos surpreenderemos mais ao vera falta de fineza e de discernimento
que era senhor de si e que sabia se calar, tao bem como um Socrates,
se traiu a si proprio em suas tltimas palavras: deixou pela primeira vez
(1) Fraselatina que significa “aplaudam, amigos. a comédia terminou” (NT).
cair sua mascara quando deu a entender que havia usado uma mascara (2) Expressolatina que significa “que artista morre comigo” (NT).
(3) Expresso latina que significa “que espectador morre comigo” (NT).

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que tém para se decidir em favor desta ou daquela causa: 0 que 0s atral € 0 que a submissdo a pessoas poderosas gue inspiram o temor e mesmo o
espetaculo do ardor que cerca uma causa e, de algum modo, ver a mecha terror, a tiranos e a comandantesde exército, produza uma impressdo muito
acesa — e nao a causa em si. E por isso que os sedutoressutis se esforgam menos penosa, e de longe, que a submissdo a pessoas desconhecidas e
a fazé-los esperar a explosdo antes que persuadi-los por razdes: nao € com sem interesse, como 0 sdo todos os magnatas da indtistria: no patraio, o
argumentos que se conquista esses barris de pélvora! operario s6 vé geralmente um homem astuto, um vampiro, um cdo que
especula todas as mis€rias e cujo nome, conduta, costumes e reputacio Ihe
39 -~ GOsTO MUDADO sdo inteiramente indiferentes.
A mudancado gosto comum é mais importante que aquela das opinides; Os fabricantes e os grandes comerciantes mostraram provavelmente
as opinides, com todasas provas, as refutagGes e toda a mascara intelectual até hoje a extrema falta dessas formas e desses sinais que distinguem a
que as acompanha, so apenas sintomas de uma mudanga de gosto e€ raga superior, necessarias para tornar interessante uma personalidade; se
certamente nao aquilo por que sao ainda geralmente consideradas a causa tivessem tide, no olhar e no gesto, a distingdo da nobreza hereditdria, nado
dessa mudanca. Como é que se modifica 0 gosto comum? Pelo fato de haveria talvez socialismo das massas. Porque as massasest4o prontas, no
individuos poderosos e influentes pronunciarem sem vergonha seu hocest fundo, a escraviddo sob todas essas formas, contanto que aquele que esta
ridiculum, hoc est absurdum'", quer dizer, de experimentarem seu gosto e acima delas afirme sem cessar sua superioridade, contanto que legitime
seu desgosto e imporem tiranicamenteesse jufzo: — submetem assim muitos 0 fato que ele nasceu para comandar — pela nobreza das maneiras! O
a uma coacdo, coac&o que se transforma aos poucos em habito para alguns homem mais comum sente que a nobreza nao se improvisa e que deve
e finalmente numa necessidade para todos. Mas o fato desses individuos reverenciar nela o fruto do tempo — mas a auséncia de formas superiores
sentirem outras sensacdes e outros gostos, tem geralmente sua razao na e a vergonhosa vulgaridade dos fabricantes, com suas mios vermelhas e
singularidade de sua maneira de viver, de se alimentar e de digerir; é talvez gordas, desperta no homem comum 0 pensamento que unicamente 0 acaso
devido a presenca de uma dose mais ou menos grande desais inorganicos e a sorte elevaram aqui um acima dooutro: pois bem! Pensa ele consigo,
em seu sangue e em seu cérebro, em resumo, em seu fisico: mas eles tém a vamos também nds experimentar o acaso e a sorte! Lancemos os dados! — e
coragem de reconhecerseufisico e acatar suas exigéncias mesmo em seus 0 socialismo comega.
mais finos matizes: seus juizos estéticos e morais fazem parte desses “finos
matizes” do fisico. 41 - ConTRA 0 REMORSO
O pensador vé em seus préprios atos pesquisas e perguntas para obter
40 — DA AUSENCIA DE NOBREZA esclarecimentos sobre alguma coisa: 0 sucesso ou o fracasso s40 para
Os soldados e seus chefes mantém ainda relagdes bem superiores aquelas ele, antes de tudo, respostas. Entretanto, zangar-se porque alguma coisa
existentes entre operdrios e patrdes. Provisoriamente pelo menos, toda nao da certo ou mesmosentir remorsos — deixa isso para aqueles que nao
civilizacao de tipo militar se encontra muito acima de tudo 0 que se chama agem sendo sob uma ordem e que esperam alguns golpes de acoite, se seu
civilizagdo industrial: esta, em seu estado atual, € a forma de existéncia gracioso patrao nao se mostrar satisfeito com o resultado.
mais baixa que houveaté nossos dias. Nela esto em vigor somenteasleis
da necessidade: quer-se viver e se é obrigado a vender-se, mas se despreza 42 — TRABALHO E ABORRECIMENTO
aquele que explora essa necessidade e€ que compra 0 operario. E singular Procurar um trabalho para ter um saldrio — isso é 0 que torna hoje quase
todos os homensiguais nos paises civilizados; para todoseles o trabalho é
(1) Expressao latina que significa “issoé ridiculo. € absurdo” (NT)...

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um meio e nao um fim; por isso s40 poucodificeis na escolha do trabalho, “E que pensamdoassassinato ¢ do adultérioY”’ — perguntou com espanto
desde que lhes proporcione um ganhosignificativo. Ora, ha homensraros o inglés a quem contavam essas coisas. “Ora, Deus é cheio de graca e de
que preferem perecer a trabalhar sem prazer: sao delicados e dificeis a misericérdia!” — respondeu o velho chefe. - Da mesma forma, 0s antigos
satisfazer, ndo se contentam com um ganhoabundante,se o préprio trabalho romanosacreditavam que uma mulhers6 podia tornar-se culpada de pecado
ndo representar o ganhodos ganhos. Dessa espécie de homens raros fazem mortal de duas maneiras: cometendo adultério e — bebendo vinho. O velho
parte osartistas e os contemplativos, mas também esses ociosos que passam Catao pensava queso setinha criado 0 costumede se beijar entre parentes
sua vida na caca ou nas intrigas do amore nas aventuras. Todos procuram para poder controlar as mulheres a esse respeito; esse beijo significava:
o trabalho e o sacrificio na medida em que estejam ligadosao prazer e, se cheira a vinho? Foram realmente punidas de morte as mulheres que eram
necessario, o trabalho mais duro e dificil. surpreendidas bebendo vinho: e certamente ndo era s6 porque as mulheres,
Caso contrario, se decidem pela preguiga, mesmo que essa preguica sob a influéncia do vinho, perdessem as vezes toda a veleidade de dizer

emINR Sia
signifique miséria, desonra, perigos para a satide e para a vida. Nao “nado”; os romanos receavam sobretudo o sopro orgiaco e dionisiaco que
receiam tanto o aborrecimento que 0 trabalho sem prazer: € preciso mesmo passava de vez em quandoporessas mulheres do sul da Europa (quando o
muito aborrecimento para que seu trabalho dé resultado. Para o pensador vinho era ainda novidade), como uma monstruosa manifestacdo antinacional
€ para o espirito inventivo o aborrecimento é essa “caima monétona” da que abalava a base do sentimento romano: para eles era como umatraic&o
alma que precede o curso feliz e os ventos alegres; € preciso que suporte de Roma, comoa assimilacao do estrangeiro.
essa calma, esperar seu efeito apesar deles: — é precisamente isso que as

sogay
naturezas inferiores nao podem em absoluto obter delas proprias! Expulsar 44 — Os MOTIVOS EM QUE SE ACREDITA

o aborrecimento a qualquer custo é tao vulgar como trabalhar sem prazer. Apesar da importaéncia que possa haver em conhecer os auténticos
Nisso talvez os asidticos se distinguem dos europeus: sio capazes de motivos que guiaram até hoje as agdes humanas, talvez seja mais importante
um repouso mais longo e mais profundo; mesmoseus narcoticos agem ainda, para quem procura o conhecimento, saber qual crenca esta ligada a
mais lentamente e exigem paciéncia, contrariamente a insuportavel este ou aquele motivo, quero dizer, conhecer o que a humanidade supés e
instantaneidade desse veneno europeu,o alcool. imaginou até o presente como sendo a verdadeira alavanca de seus atos. De
fato, a felicidade e a miséria interior dos homens vieram-lhe de sua crenca
43 — O QUE REVELAMASLEIS neste ou naquele motivo — e ndo daquilo que foi o motivo verdadeire! Este
Equivoca-se grosseiramente quem estudar asleis penais de um povo tem apenas um interesse secundario.
como se fossem a expressdo deseu carater; as leis nado revelam o que € um
povo, mas somente aquilo que lhe parece estranho, esquisito, monstruoso, 45 — Epicuro”
exdtico. A lei se refere 4s excegdes da moralidade dos costumes; e as penas Sim, estou orgulhoso por sentir o carater de Epicuro de uma forma
mais duras atingem o que estd de acordo com oscostumesdo povovizinho. talvez diferente daquela de todos e de usufruir da antigiiidade como de
E assim queentre os wahabitas'” existem apenas dois pecados mortais: ter uma felicidade vespertina, cada vez que leio ou ouco alguma coisa dele;
um deus diferente daquele dos wahabitas e — fumar (designam isso como — vejo seu olhar errar sobre vastos mares esbranquicados, sobre falésias
“a mais vergonhosa maneira de beber’). onde repousa 0 sol, enquanto animais grandes e pequenos vém brincar sob

(1) Os wahabitas formavam umacorrente religiosa islamica, fundada em torno de 1750. por Mohamed Ebn (2) Epicuro (341-270 a.C.), fildsofo grego; sua doutrina era essencialmente materialista e pregava tirar todo 0
Abdel Wahab (NT). proveito possivel dos prazeres materiais e espirituais da vida (NT).

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Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

seus raios, seguros e trangiiilos como essa luz e esse olhar. Semelhante perdeu a propria paixdo que, substituida pela gracga, pela frivolidade,
felicidade sé pode ter sido inventada por alguém que sofria sem cessar, pela leviandade — foi uma época marcada pela incapacidade de ser sem
é a felicidade de um olhar que viu se apaziguar sob seu olhar o mar da cortesia, a tal ponto que até uma ofensa era recebida com palavras de
exist@ncia € que agora nado pode mais se satisfazer de ver essa superficie cortesia e devolvida da mesmaforma. Talvez nossa época forneca a mais
ondulante, essa epiderme multicolorida, delicada e fremente: nunca ali curiosa contrapartida disso: vejo em toda parte, na vida e no teatro e,
tinha havido até entéo semelhante modéstia da voluptuosidade. ndo menos, em tudo o que se escreve, 0 sentimento do bem-estar que
causam todasas irrup¢6es grosseiras, todos os gestos vulgares da paixio:
46 — Nosso ESPANTO exige-se agora certa convengdo da propria paixdo — mas a prego algum
Ha umafelicidade profundae radical no fato de que a ciéncia descubra se aceitaria a propria paixdo! Apesar disso, acabar-se-4 por acatd-la e
as coisas que se “agiientam de pé’ e que dao sempre motivo a novas nossos descendentes possuirao uma verdadeira selvageria e nao somente
descobertas: — de fato, com certeza, poderia muito bem nao ser assim. a selvageria e a grosseria das maneiras.
Estamos tio intimamente persuadidos da incerteza e da loucura dos
nossosjuizos e da eterna transformagao dasleis ¢ das idéias humanas, que 48 — CONHECIMENTODA MISERIA
ficamos estupefatos ao ver como os resultados da ciéncia se agiientam de Talvez nada separe os homense as épocasa naoser os diferentes graus
pé! Antigamente nao se sabia nada dessa instabilidade de todas as coisas de seu conhecimento da miséria: tanto a da alma como a do corpo. No
humanas, a moralidade dos costumes mantinha a crenga que toda a vida que se refere a esta ultima, nds, homensde hoje, apesar de todas as nossas
interior do homem era fixada por eternos grampos a uma necessidade de fraquezas e nossas enfermidades, por causa de nossa falta de experiéncias
bronze: — talvez se experimentasse entéo semelhante volupia ao ouvir sérias, talvez todos nos tornamosignorantes e fantasiosos: em comparac4o
fabulas surpreendentes e contos de fadas. O maravilhoso fazia tamanho com uma época do temor — a mais longa da humanidade — quando o
bem a esses homensque as vezes deviam se cansar da regra e da eternidade. individuo devia se proteger a si mesmo contra a violéncia e era obrigado,
Perder o pé uma vez! Planar! Errar! Ser louco! — Isso fazia parte do paraiso para esse fim, a ser ele proprio violento. Nessa época o homem fazia um
e da embriaguez de outrora: ao passo que nossa beatitude se assemelha a duro aprendizado de sofrimentos fisicos e de privacdes e encontrava,
do néufrago que alcanga a costa e que pde seus pés na velha terra firme numa certa crueldade para consigo mesmo e no exercicio voluntario da
— espantado de naosenti-la vacilar. dor, um meio necessdrio 4 sua conservacao; entdo se educava seu meio a
saber suportar a dor, entaéo se gostava de provocar a dore se via os outros
47 — DA REPRESSAO DAS PAIXOES . serem atingidos por aquilo que ha de pior nesse género, sem experimentar
Se continuamente se reprimir a expressdo das paixdes como uma coisa outro sentimento que nao fosse o da propria seguranca. Quanto a miséria
que deve ser deixada ao “vulgar”, as naturezas mais grosseiras, burguesas da alma, examino agora cada homem para me darcontase ele a conhece
e risticas — se, portanto, se quiser nado refrear as proprias paixdes, mas por experiéncia ou por descrigao; se julga ser necessdrio, por exemplo,
apenas sualinguagem e seu gesto, nem porisso se deixa de atingit aquilo simular 0 conhecimento dessa miséria, para testemunharcerta cultura ou
que ndo se quer atingir, a repressao das proprias paixdes, pelo menos se, no fundo de sua alma,se recusa a acreditar nas grandes dores da alma e

seu enfraquecimento e sua transformagao: — como aconteceu, exemplo se, quando sao mencionadas em sua presenga, nao se passa nele qualquer
instrutivo, com a corte de Luis XIV e com tudo o que dela dependia. A coisa de andlogo ao que acontece quando the falam de sofrimentos ffsicos
época seguinte, educada no hdbito de refrear a expressao das paix6es, — Pensa entao logo em suas dores de dente e de est6mago.

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Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

Parece-me que é assim entre a maioria das pessoas. Jd ninguém ¢ esvaziandoa tagaaté a Ultima gota,se satisfaz j4 na imaginagao, de modo
treinado no sofrimento, nem fisico nem moral, ninguém vé uma pessoa que um enorme desgosto se segue rapidamente a esse excesso; — eleva-se
sofrer a ndo ser muito raramente; do que resulta uma conseqiiéncia muito entao, comose costumadizer, “acima desi proprio” e perdoaseu inimigo,a
importante: é que se odeia agora 0 sofrimento mais do que antigamente, ponto de abencoa-lo e homenageda-lo. Por essa violagdo de seu eu, por essa
que dele se diz mais mal do que nunca, e que se vai mesmoao ponto de zombariade seu instinto de vinganga, ha poucoaindatao poderoso, nao faz
ja nem sequer se poder suportar a idéia dele: disso se faz uma questao mais que ceder um novoinstinto que acaba de se manifestar poderosamente
de consciéncia e uma censura a4 existéncia, em sua totalidade. nele (o desgosto) e isso com 0 mesmo excesso e a mesma impaciéncia
O surgimento de filosofias pessimistas ndo € de forma alguma com os quais tinha ha pouco antecipado em espirito a alegria de se vingar,
indicio de grandes e terriveis misérias; muito pelo contrario, fazem- para logo esgotd-la. Hé na generosidade 0 mesmo grau de egoismo que na
se essas interrogacdes sobre o valor geral da vida em épocas em vinganga, masse trata de um egoismode outra qualidade.
que o conforto e a facilidade acham cruéis, demasiado sangrentas,
as pequenas e inevitaveis picadas de mosquitos na alma e no corpo 50 -— O ARGUMENTO DO ISOLAMENTO

cong@hneeewiir ee
e gostariam de fazer aparecer, na pentria das auténticas experiéncias A recriminagéo da consciéncia, mesmo nos mais conscienciosos,
dolorosas, representacdes dolorosas comuns como um sofrimento de pesa pouco diante do sentimento segundo o qual “esta ou aquela coisa €
espécie superior. — Haveria realmente um remédio contra as filosofias contrdria aos bons costumes de tua sociedade”. Um olhar frio, uma boca
pessimistas e 0 excesso de sensibilidade que me pareceser a verdadeira gelada naquelesentre os quais e pelos quais se foi educado inspirara temor
“miséria do presente”: — mas talvez esse remédio parecesse demasiado até mesmo ao mais forte. Temor de que, realmente?
cruel e poderia ser ele proprio classificado entre os sintomas em que se Do isolamento! De fato, esse € um argumento que destréi até mesmo os
baseiam agora para considerar que “a vida é algo de mau’. Que seja! O melhores argumentos em favor de um homem ou de umacoisa! — E assim
remédio contra a “miséria” se chama: miséria. que 0 instinto do rebanho fala em nos.

49 — A GENEROSIDADE E O QUE A ELA SE ASSEMELHA 51 -— VERACIDADE


Os fendmenos paradoxais, como a frieza repentina no comportamento Elogio toda espécie de ceticismo que me permite que lhe responda:

ayn
de um homem caloroso, o humor do melancélico, sobretudo a generosidade “Vamos tentar sempre!” Mas nado quero mais ouvir falar de todas as coisas
como rentncia brusca da vinganca ou da satisfagaéo da vontade — se e de todas as quest6es que nado permitem a experiéncia. Esses sao os limites
manifestam nos homens que possuem uma grande forca centrifuga, nos de minha “veracidade”: pois aqui a bravura perdeu seusdireitos.
homensprontos a saciedadee ao desgosto. Suas satisfagdes sao tao rapidas
e tao fortes que so imediatamente seguidas de antipatia, de repugnancia e 52 — O QUE OS OUTROS SABEM DE NOS
que fogem imediatamente para 0 terreno oposto: nessa oposi¢ao se resolve O que sabemos de nds mesmos e 0 que guardamos em nossa memoria,
a crise do sentimento, num porfrieza repentina, em outro por um acesso de para a felicidade de nossavida, nao € tao decisivo comose pensa.
hilaridade, num terceiro pelas lagrima e pelo sacrificio. Chega um dia em que aquilo que os outros sabem de nds (ou julgam
O homem generoso — pelo menos a espécie de homens generosos que saber) cai sobre nds — e a partir de entao reconhecemos que é isso 0 que
sempre causou mais impressdo — me parece ser o homem da extrema sede hd de mais poderoso. Arranjamo-nos melhor com a md consciéncia do que
de vinganga, que vé a seu alcance umapossibilidade de satisfazé-la e que,

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; com a ma reputacdo.

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53 ~ ONDE COMECA O BEM 55 — A DERRADEIRA NOBREZA DE SE NTIMENTOS


La onde a fraqueza dos olhos nao permite mais ver, por causa de O que 6, pois, que torna “nobre”™? Ngo é certamente fazer sacriffcios:

STADESTOALi es eR apg
sua extrema sutilidade, 0 mau instinto como tal, é ali que o homem mesmo 0 voluptuoso mais descarado faz sacrificios. Nio é certamente

faz comecar 0 reino do bem; e a sensagdo de ter agora penetrado nesse obedecer a uma paixdo; ha paixdes despreziveis. Nao é certamente fazer
reino desperta a excitagdo de todos os instintos que estavam ameagados alguma coisa para Os outros, sem egoismo; talvez a coeréncia do egoismo
e limitados pelos instintos maus, como o sentimento de segurang¢a, € mais forte justamente nos mais nobres. — O que faz a nobreza de um
de bem-estar, de benevoléncia. Por conseguinte: quanto mais o olhar ser € que a paixao que se apodera dele é umapaixdo peculiar, sem que
é impreciso, maior é 0 dominio do bem! Daj a eterna serenidade do ele o saiba; € o emprego de uma medida singular e quase uma loucura:
povo e das criangas! Daf 0 abatimento dos grandes espfritos, seu humor € a sensacdo de calor nas coisas que outros as acham frias ao tocd-las; é
negro, préximo da ma consciéncia. a adivinhagao de valores para os quais ainda nao foi inventada balanga;
€ 0 sacrificio em altares dedicados a deuses desconhecidos; é a coragem
54 — A CONSCIENCIA DA APARENCIA sem 0 desejo das honras; € um contentamento de si que transborda e que
Que lugar admirdével ocupo diante da existéncia inteira com meu prodigaliza sua abundancia aos homens e Ascoisas.
conhecimento, como isso me parece novo e ao mesmo tempo espantoso e€ Até aqui eram portanto a raridade e a ignorancia dessa raridade que
irénico! Descobri por mim que a velha humanidade, a velha animalidade, conferiam nobreza. Mas deve considerar-se que esse critério obrigou a
sim, mesmo todos os tempos primitivos e 0 passado de toda existéncia julgar injustamente e a caluniar em bloco, em proveito da exce¢i4o, tudo
sensivel, continuam a viver em mim, a escrever, a amar, a odiar, a concluir © que era ordindrio, préximo, indispensdvel, em resumo, tudo aquilo que
— despertei de stibito no meio desse sonho, mas somentepara ter consciéncia mais servia para conservara espécie e que foi até agora regra geral entre os
que estava sonhando e que devo continuar sonhando para nao perecer: homens. Tornar-se 0 advogadoda regra — isso poderia ser a forma e a fineza
precisamente como o sondmbulo deve continuar sonhandopara naocair. O supremaspelas quais a nobreza de sentimento se manifesta na terra.
que é agora para mim a “aparéncia™?
Certamente no ser4 o contrario de um “ser” qualquer — que saberia eu 56 — O DESEJO DE SOFRER
dizer desse ser que ndo fossem os atributos de sua aparéncia? Certamente Quando penso no desejo de fazer alguma coisa que afague e estimule
nao uma mascara inanimada que se poderia por, e talvez até mesmo tirar, incessantemente milhares de jovens europeus dos quais nenhum pode
de um X desconhecido! A aparéncia é para mim a propria vida e a propria suportar nem o aborrecimento nemasi proprio — dou-me conta de que
acio que. em sua ironia de si mesma, chegard até a me fazer sentir que deve haver neles um desejo de sofrer, seja comofor, a fim de extrair de seus
hd nela aparéncia, fogo-fatuo, danga dos elfos e nada mais — que no meio sofrimentos uma razao provavel de agir. O sofrimento Ihes € necessario!
desses sonhadores também eu, que “procuro o conhecimento”, dango o Daf a gritaria dos politicos. daf as pretensas “crises sociais” de todas as
mesmopasso de todos, que o “conhecedor” € um meio para prolongar a classes imaginaveis, tio numerosas comofalsas. imagindrias, exageradas,
danca terrestre e que, em raz4o disso, faz parte dos mestres de ceriménia da € 0 cego ardor em acreditarnelas.
vida e que a sublime conseqiiéncia e a ligagado de todos os conhecimentos Essa geragao jovem exige que seja de fora que Ihe chegueou se manifeste
sfo e serio talvez 0 meio supremo para assegurar a universalidade do — nao a felicidade — masa infelicidade; e sua imaginacdo se ocupa de
devaneio e do entendimento de todos esses sonhadoresentre si e, por isso antemao em fazer dela um monstro, a fim de ter a seguir um monstro a
mesmo, para fazer 0 sonhodurar. combater. Se esses seres dvidos de sofrimentosentissem em si a forga de

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eee a

Colegdo Grandes Obras do Pensamento Universal

fazer o bem em si mesmos,para eles mesmos, saberiam também criar para


si préprios uma miséria propria e pessoal. Suas sensagoes poderiam entao
ser mais sutis e suas satisfagdes poderiam ressoar como uma musica de
qualidade; ao passo que agora enchem o mundo com seusgritos de agonia
e, por conseguinte, muitas vezes, em primeiro lugar, de seu sentimento de
angustia! Nao sabem fazer nada de si proprios — € por isso que rabiscam

LIVRO I
nos murosa infelicidade dos outros: sempre tém necessidade dos outros!
— Peco perdio, meus amigos, tive a ousadia de rabiscar no muro minha
felicidade.

57 — AOS REALISTAS
O homens racionais, que se sentem encouracados contra a paixdo e a
imaginagao e que gostariam de fazer de sua doutrina um objeto de orgulho
e um ornamento, vocés se chamam realistas e déo a entender que o mundo
é verdadeiramente feito como Ihes aparece; que sAo os Unicos a ver a
verdade sem véu e que vocés seriam talvez a melhor parte dessa verdade
— 6 amadasestatuas de Sais! Mas vocés também, quando aparecem sem
véu, nao seriam seres muito apaixonados e obscuros, comparados aos
peixes, seres que se assemelham ainda em demasia a artistas apaixonados?
— E que é a “realidade” para um artista apaixonado? Ainda trazem em
vocés as formas de apreciar que tém sua origem nas paixGes e nas intrigas
dos séculos passados! Sua sobriedade ainda esta repleta de umasecreta e
indestrutivel embriaguez! Seu amorpela “realidade”, por exemplo — é um
velho, realmente um velho “amor”!
Em cada sentimento, em cada sensacao hd alguma coisa desse velho
amor; e de igual modo algum jogo da imaginag4o (um preconceito, uma
desrazao, uma ignorancia, um temor ou qualquer outra coisa que seja)
trabalhou nisso e teceu a malha. Tomem essa montanha! Tomem essa
nuvem! Que tém de “real”? Tentem, portanto, tirar delas as fantasias e tudo
0 que os homens lhes acrescentaram, homens timoratos! Sim, se pudessem
fazer isso! Se pudessem esquecer sua origem, seu passado, sua educacao
fundamental — tudo 0 que vocés tém de humanoe de animal!

(1) Safs era um centro religioso do Egito antigo (NT).

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Coleg&o Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

Nao ha para nés nenhuma “realidade” — e nao ha nem mesmo para pelas fungSes naturais, os adoradores de Deus e de sua “onipoténcia” o
vocés, homens s6brios — somos muito menosestranhos uns para os outros sentiam outrora: em tudo o que os astr6nomos, os gedlogos, os fisiologistas
como vocés pensam: talvez nossa vontade deir além da embriaguez importa e médicos diziam da natureza, esses adoradores viam uma violacao daquilo
tanto comosua convicgaode ser totalmente incapazes de chegar a isso. que possuiam de mais sagrado, portanto, um ataque — e, além disso, a prova
da imprudéncia daqueleque atacava! As “leis da natureza”ja lhes pareciam
58 — SOMENTE COMO CRIADORES como uma caltinia de Deus; no fundo, nao teriam pedido mais do que ver
Se hd uma coisa que me custou muito a compreender e que sempre me reduzir a totalidade da mec4nica a atos de vontade e de arbitrio morais:
deixa perplexo é que 0 nome das coisas importa infinitamente mais do — mas como ninguém Ihes prestava esse servigo, preferiam escondera si
que saber o que elas sao. A reputagao, 0 nome, 0 aspecto, a importancia, a proprios a natureza e a mecAnica quanto possivel, a fim de viver no sonho.
medidatradicional e o peso de uma coisa — na origem,na maioria das vezes, Ah! esses homens do passado sabiam sonhar, sem ter necessidade de
um erro, uma qualificagdoarbitraria, colocadas em coisas como um traje e adormecer! — e nds, homens de hoje, ainda o sabemos fazer muito bem,

profundamenteestranhas a seu espirito, até mesmoa sua superficie — pela apesar de nossa boa vontade em nos mantermosacordadose viver a luz do
crenc¢aque se tinha em tudoisso, por seu desenvolvimento de geragao em dia! Basta-nos amar, odiar, desejar, basta até mesmo simplesmente sentir
gerac4o, aos poucosisso se apegou a coisa, se identificou com ela, para se para que imediatamente0 espirito e a forga do sonho desgam em nos! E,
tornar seu proprio corpo; a aparéncia primitiva acaba quase sempre por se de olhos abertos, insensiveis a qualquer perigo, subimos 0 caminho mais
tornara esséncia e faz o efeito de ser a esséncia! Seria necessdrio ser louco perigoso que leva ao topo e as torres da imaginacdo; a vertigem nao nos
para imaginar que basta indicar essa origem e esse envolt6rio nebuloso atinge a nés que nascemospara galgar — sonambulos em pleno dia!
da ilusdo para destruir esse mundo que passa por essencial, a famosa Nos, os artistas! N6ds, dissimuladores da natureza, lunaticos e
“tealidade’”’! S6 podemosdestruir criando! — Mas nao esquegamos também embriagados do divino! Viajantes infatigaveis, silenciosos como a morte,
isto: basta criar nomes novos, apreciagdes e probabilidades novaspara criar passamos sobre as alturas, sem perceber, pensando estarmos na planicie,

com o tempo “coisas” novas. em plena seguranga!

59 — NOs, OS ARTISTAS 60 — AS MULHERESE SEU EFEITO A DISTANCIA


Quando amamos uma mulher acontece-nos as vezes odiar a natureza, Tenho ouvidos ainda? Serei todo ouvidos, apenas ouvidos e nada mais!
pensandoem todas as desagradaveis fung6es naturais a que toda mulheresta Aqui estou no meio da fornalha das vagas que se quebram em chamas
submetida; prefeririamos pensar em outra coisa, mas se, por acaso, nosso brancas e sobem para lamber meus pés: — de todos os lados ougo o mar
espirito aflora esse assunto, é tomado de um movimento de impaciéncia uivar, ameacar, mugir, sua voz estridente se algca contra mim, enquanto
e lanca um olhar de desprezo sobre a natureza: — logo ficamos ofendidos que nas tiltimas profundezas o antigo abaladordaterra canta sua melodia,
porquea natureza pareceinvadir nossosdireitos de propriedade da maneira surda como o mugido de um touro; e bate 0 compasso com seu ritmo
mais profana. Tapamos os ouvidos para n4o ouvir a voz dafisiologia e sismico, que esses monstros de rochas que aqui se esboroam sentem eles
decretamos, excluindo-nos, que queremos ignorar que o homem € também préprios 0 coracao de seu velho demOnio tremerdentro desi. E entao que,
outra coisa além de alma e forma. Para todos aqueles que amam, 0 homem repentinamente, como surgindo do nada, aparece a porta desse labirinto
sob a pele € uma abominagao, uma monstruosidade, um blasfemo contra infernal, apenas a algumas bracas — um grande veleiro que vai deslizando,
Deus e contra 0 amor. — Pois bem! O que o amante sente pela natureza ¢ silencioso como um fantasma. Oh! que aparicao! Que beleza!

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Que encanto se apodera de mim! O qué? Embarcaram aqui todo o 62 —- AMOR


siléncio, todo o repouso do mundo? Minha prépria felicidade estara O amorperdoa até 0 desejo do ser amado.
realmente ali, sentado nesse lugar trangiiilo meu eu mais venturoso,
meu segundo eu eterno? Nao estar morto e, no entanto, ndo estar mais 63 — A MULHER NA MUSICA
vivo? Como um ser intermedidrio, um espirito silencioso, contemplativo, Por que os ventos quentes e chuvosos trazem com eles um estado de
deslizando e flutuando? Sim! Passarpor cimada existéncia! E isso! Isso era espirito que disp6e para a musica e para 0 prazer inventivo da melodia? Nao
necessdrio! — Mas 0 qué! O estrondo das Aguas nao meteria mergulhado no s40 OS Mesmos ventos que enchem as igrejas e que sopram pensamentos
delirio? Qualquer grande rumornos leva a colocara felicidade no siléncio amorosos as mulheres?
e na distancia. Quando um homemse encontra no meio de sua agitacao,
exposto a ressaca em que projetos e contra-projetos se misturam, acontece- 64 — MULHERES CETICAS
lhe as vezes ver deslizar perto dele seres de quem inveja a felicidade e Receio que as mulheres, quando velhas, no mais intimo de seu coracao,
o afastamento — sGo as mulheres. Ele imaginaria que quase 14, perto sejam mais céticas que todos os homens: julgam queo lado superficial da vida é
das mulheres, fica seu melhor eu: que nesses lugares silenciosos o pior a propria esséncia da vida e todavirtude, toda profundidade,para elas € apenas
estrondo das vagas se transformaria em siléncio de morte e a propria vida 0 véu que esconde essa “verdade”, um véu jogado sobre um “pudendum”
um sonhosobre a vida. Entretanto! Entretanto! Nobre sonhador, nos mais — portanto, uma quest&o de conveniéncia e de pudor, nada mais!
belos veleiros ha também muito barulho e muita algazarra, ai de mim!
Algazarra tao mesquinha! O encanto e 0 efeito mais poderoso da mulheré, 65 — DEVOTAMENTO
para empregara linguagem dos filésofos, sua “actio in distans’"”: mas para Ha mulheres de sentimentos nobres com umacerta pobreza de espirito
isso é preciso em primeiro lugar e antes de tudo — distancia! que nado sabem exprimir seu profundo devotamento de outra forma que
oferecendo sua virtude e seu pudor: é 0 que elas tém de mais precioso. E
61 — EM HONRA DA AMIZADE muitas vezes se aceita esse presente sem se empenhar tao profundamente
A antigiiidade via no sentimento da amizade o mais nobre dos como a doadora possa supor — essa é umahistéria deveras melancolica!
sentimentos, superior mesmo que a altivez tio elogiada desses homens
sdbrios e sébios, um sentimento que seria o Unico rival dessa altivez, mais 66 — A FORCA DOS FRACOS
sagrado ainda: é o que bem exprime a histéria desse rei da Macedénia Todas as mulheres sao cheias de fineza quandose trata de exagerar sua
que, tendo dado um talento a um filésofo ateniense que fazia profissdo de fraqueza; sao até mesmocheias de engenhosidade na invencdo das fraquezas
desprezar o mundo, .viu o sdbio devolver-lhe a moeda. “Como! — exclamou para dar a impress4o de frageis ornamentos que um grao depo lhesfaria mal.
o rei — ele ndo tem amigos?” Com isso queria dizer: “Honro essa altivez do E assim que elas se defendem contra 0 vigore 0 “direito do maisforte”,
sdbio e do homem independente, mas honraria muito mais sua humanidade,
se aamizadetivesse sido nele maisforte que aaltivez. Ofildsofo se diminuiu 67 — SIMULAR A PROPRIA NATUREZA
diante de mim, ao mostrar que ndo conhecia um dos dois sentimentos — e, Agora ela 0 ama e doravante olha diante de si com uma confianca tao
dos dois, o mais elevado!” tranqiiila que faz pensar naquela das vacas: masinfeliz dela! Seu encanto
era precisamente parecer essencialmente mutavel, inapreensivel!
(1) Expressao latina que significa “agdoa distancia” (NT). (2) Termolatino que significa “algo vergonhoso”™ e. por extensdo, a genitalia (NT).

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Porque ele j4 tinha conquistado igualdade de humor e tempo invariavel. 70 — AS SENHORAS DOS SENHORES
Nao seria preferivel para ela simular seu antigo cardter? Simular Uma profunda e poderosa voz de soprano, como se ouve as vezes
indiferenca? Nao seria o proprio amor que lhe aconselharia a agit assim? no teatro, abre de repente para n6és o pano para possibilidades nas quais
Vivat comoedia!” geralmente no acreditamos: subitamente ficamos convencidos de que pode
haver em alguma parte do mundo mulheres de almas sublimes, herdicas e
68 — VONTADEE SUBMISSAO reais, aptas e prontas a respostas grandiosas, a decisGes e sacrificios. capazes
Levaram um jovem a um sdbio a quem disseram: “Aqui estd alguém que de dominar os homens e prestes a fazé-lo, porque o que ha de melhor no
esta prestes a ser corrompido pelas mulheres.” O sdbio abanou a cabega, homem pareceter-se tornado nelas, além da diferenca dos sexos, um ideal
Sorriu e exclamou: “Sao os homens que corrompem as mulheres! E tudo vivo. E verdade que. conforme as intengdes do teatro, essas vozes ndo
? que falta as mulheres deve ser expiado pelos homens e corrigido neles deveriam dar precisamente a idéia dessa categoria de mulheres: geralmente
— pois aimagem da mulher procede do homeme a mulherse conforma com devem representar o amante masculino ideal, por exemplo, um Romeu:
essa imagem.” — “Fs demasiado benevolente para com as mulheres”, disse mas, a julgar pelas experiéncias que fiz, 0 teatro e o mUsico que esperam de
um daqueles que ali estava; “tu ndo as conheces!” semelhantes vozesesses efeitos se equivocam regularmente: essas vozes de
O sdbio respondeu: “O cardter do homem é a vontade, o da mulher é a soprano contém sempre um matiz algo maternal e doméstico e tanto mais
Submissdo — esta € a lei dos sexos! justamente porquanto ha amor em seu timbre.
Uma dura lei para a mulher, na verdade! Todos os seres humanos
SAo inocentes de sua existéncia, mas a mulher é inocente no segundo 71 — DA CASTIDADE FEMININA
8rau; quem sera portanto capaz de ter para ela bastante 6leo, suficiente Ha alguma coisa de espantoso e de monstruoso na educag4o das mulheres
brandura?’ — “Que importa o 6leo! Que importa a dogura?” — respondeu da alta sociedade, sim, talvez nio haja mesmo nada mais paradoxal. Todos
alguém na multidao: “E preciso educar melhor as mulheres\” —“E preciso concordam em educa-las na maior ignorancia possivel in eroticis?’, em
educar melhor os homens’, foi aresposta do sdbio e fez sinal ao jovem para thes inculcar um pudor profundo e em lhes inspirar na alma a impaciéncia
que 0 seguisse. — Entretanto, 0 jovem nao oseguiu. e 0 temordiante de uma simples alusao sobre esses temaseréticos. E toda
a “honra” da mulher que é posta em jogo; em compensacao, o que é que se
69 — FACULDADE DE VINGANCA nao perdoara a elas em outros aspectos!
Nao saber se defender e, por conseguinte, no querer se defenderisso Masnesse devem conservar-se ignorantes até ao fundo da alma; nado
Nao é ainda uma vergonhaa nossosolhos: mas desprezamos aquele que nao devem ter nem olhos, nem ouvidos, nem palavras, nem pensamentos para
tem nem a forca nem a vontadede se vingar — seja homem ou mulher. Uma aquilo que elas devem considerar como o “mal”; 0 tinico fato de saber jd
mulher nosatacaria (ou, comose diz, nos “agarraria”), se ndo a julgassemos € um mal. Ora, de repente sAo jogadas pelo casamento ao conhecimento
Capaz de se servir, em caso de necessidade, do punhal(de toda espécie de da realidade — e mais ainda, seu iniciador é 0 homem que devem amar e
Punhais) contra nds? respeitar acima de tudo: flagrante delito de contradicdo entre 0 amor e a
Ou contra ela mesma, o que. em circunstancias determinadas, seria a vergonha, quando num s6 objeto devem sentir 0 encanto, o sacrificio, o
Maneira mais delicada de se vingar (a vingan¢a chinesa). dever, a piedade e o susto diante da proximidade inesperada de Deus e do
animal, e sei 14 o que mais ainda!

(2) Expresso latina que significa “nas coisas eréticas. nas coisas do amor” (NT).

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— Criou-se ali um emaranhado na alma que deveria procurarseu igual! indesejada e ndo tem vida bastante para morrer.’ —“Mata-a — exclamou 0
Mesmoa curiosidade cheia de compaixéo do mais sAbio conhecedor de santo com vozterrivel — mata-a e guarda-a durante trés dias e trés noites
almas nao seria capaz de compreender como é que esta ou aquela mulher em teus bracos para te criar uma memoria: — assim, nunca mais gerards
consegue chegar a descobrir a solucdo ‘desse enigma, desse enigma de um filho enquanto ndo tiver chegadoa hora.” — Ao ouvir estas palavras o
solugdes, nem a adivinharas suspeitas atrozes e as miltiplas desconfian¢gas homem foi embora desapontado; e muitos criticaram o santo pela crueldade
que nao podem deixar de despertar numa pobre alma que saiu de si € de seu conselho, pois havia mandado matara crianca. — “Mas ndo é mais
como,finalmente, a ultima filosofia e derradeiro ceticismo da mulher vao cruel deixd-la viver?” — respondeu 0 santo.
langar sua ancora nesse ponto! — Depois, € o mesmo profundo siléncio
‘queantes: e muitas vezes, um siléncio diante de si mesma. — As mulheres 74 — SEM SUCESSO .
jovens se esforgam vivamente por parecer superficiais e aturdidas; as mais Nunca tém sucesso essas pobres mulheres que, na presenca daquele que
sutis simulam uma espécie de desenvoltura. - As mulheres véem muitas amam, se tornam inquietase incertas e falam demais: porque é uma ternura
vezes no marido uma espécie de ponto de interrogagdo colocado diante discreta e fleumatica que seduz mais seguramente os homens.
da sua honra e nosfilhos uma apologia ou umapeniténcia — elas precisam
dos filhos e os desejam num sentido completamente diferente daquele do 75 — O TERCEIRO SEXO
homem. — Numapalavra, nunca se podera ser demasiado indulgente para “Um homem pequeno é um paradoxo, mas nem porisso deixa de ser um
com as mulheres. homem — ao passo que uma mulher pequena me parece pertencera outro sexo,
quando comparada com as mulheres altas.’ — Assim falava um velho professor
72 — AS MAES de danga. Uma mulher pequena nuncaé bonita — dizia 0 velho Aristételes.
Os animais tém outra visdo da fémea, diferente daquela que os homens
tém da mulher; para os animais a fémea é a criatura reprodutora. Ignoram 76 — O MAIOR PERIGO
o amorpaterno, mas se encontra neles alguma coisa parecida com 0 afeto Se nfo tivesse havido em todos os tempos muitos homens que
que se podeter pelos filhos de uma amante e com 0 apego que se tem por considerassem a disciplina de seu espirito ~ sua “razfio” — como seu
eles. Para as fémeas, os filhotes satisfazem um apetite de dominio, sao orgulho, seu dever, sua virtude, homens que eram ofendidos e humilhados
para ela uma propriedade, uma ocupa¢do, alguma coisa que compreendem por tudo o que é fantasia e excesso de imaginacdo, permanecendo amigos
inteiramente e com a qual podem se entreter; tudo isso € amor materno — do “bom senso”, ha muito tempo que a humanidade teria desaparecido.
comparavel ao amordo artista por sua obra. A gravidez tornou as mulheres Acimaplanava e plana continuamente, como seu maior perigo, a loucura
mais doces, mais pacientes, mais receosas, mais submissas; de igual modo prestes a explodir — o que é precisamente a irrupcdo do bom prazer no
a gravidez intelectual cria o cardter dos espiritos contemplativos que se sentimento, na vista e no ouvido, 0 gozo nos excessos do espirito, a alegria
aparenta com o carater feminino; os contemplativos sao as m4es masculinas. que a desrazao proporciona. O oposto do mundoda loucura nao é nem a
— Nos animais 0 sexo masculino é considerado como belo sexo. verdade nem a certeza, mas a universalidade e a obrigac4o para todos de
ula mesma crenga, numa palavra, a exclusdo do bom prazernojulgar.
73 — CRUELDADE SAGRADA
Um homem quetrazia nos bracos um recém-nascido se aproximou de (1) Narealidade Aristoteles nao disse exatamente isso, pois se referia a todo ser humano, mais particularmente
um santo. “Que devo fazer desta crianca? — perguntou ele — E miserdvel, aos homens. De fato. em Etica a Nicémaco UV.3). encontra-se esta passagem: “Os homens pequenos podem ser
elegantes e bem feitos, mas naosdobelos.” (NT).

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O maiortrabalho da humanidade até agora foi aquele de concordar sobre lendo todo livro antigo. Como € possivel isso? Sera porque aqui 0 pudorfaz
uma quantidade de coisas e de se impor umalei do consenso — aquela que falta e tudo o que € vulgar se apresenta com tanta certeza e seguran¢a como
representa a verdade oua falsidadedascoisas. Essa foi a disciplina do espirito se fosse algo de nobre, de agradavel, de apaixonante, colocado lado a lado
que o homem recebeu; — mas0s instintos contrarios sao ainda tao poderosos no mesmo género de musica ou de romance?
que em sumasése pode falar com pouca confianga do futuro da humanidade. “O animal tem seus direitos precisamente como o homem: pode mover-
A imagem das coisas recua e se desloca ainda sem cessar e talvez doravante se livremente e tu, meu caro irmGo na humanidade, tu proprio és esse
sera assim com mais freqiiéncia ainda e mais rapidamente que nunca; animal, apesar de tudo\” — Essa me parece ser a moral da questfo e a
sem cessar Os espiritos justamente mais distintos se rebelam contra essa particularidade da humanidade meridional. O mau gosto tem seus direitos
obrigacao universal — e em primeirfssimo lugar os exploradores da verdade! do mesmo modo que 0 bom gosto e tem até mesmo uma precedéncia
Vé-se incessantemente essa fé, como creng¢ade todos, provocar nos espiritos sobre 0 bom gosto quando se trata de grande necessidade, da satisfagao
sutis um desgosto e uma nova concupiscéncia: e esse andamento lento que certa e, de alguma forma, da linguagem geral, uma atitude e uma mascara
exige para todo processointelectual, essa imitacdo da tartaruga que se torna imediatamente compreendidas: 0 bom gosto, o gosto escolhido, pelo
lei aqui, s6 ela basta para converter em desertores os artistas e os poetas; contrario, tem sempre algumacoisa de rebuscado, de ousado, algo que nao
— é nesses espiritos impacientes que se manifesta uma verdadeira alegria da esta certo de ser compreendido — nao é e nuncafoi popular. S6 a mascara
loucura, pois a loucura tem um andar tao alegre! é e continua sendo popular.
Ha portanto necessidade de intelectos virtuosos ~ ai! quero empregar Vamos 14 entao jogar em tudo o que é mascarada nos ritmos e nas
a palavra que menosse presta ao equivoco — hd necessidade da estupidez cadéncias, nossaltos e nas alegrias do ritmo dessas 6peras! Ea vidaantiga,
virtuosa, dos inabaldéveis marcadores do compasso doespirito lento, que os que se poderia compreendernela se nao se sentir a alegria da mascara,
crentes da grande crenca geral fiquem juntos e continuem a executar sua a boa consciéncia de tudo 0 que se assemelha A mascara! E 0 banho de
danca: é umanecessidade de primeira ordem que a dirige e que a exige. Nds, repouso, € o reconforto do espfrito antigo: — e talvez esse banho fosse
nds somos a excecdo e o perigo — temos eternamente necessidade de nos mais necessdrio ainda aos espiritos raros e superiores do mundo antigo
defender. — Pois bem! HA verdadeiramente algumacoisa a dizer em favor da do que aos espiritos vulgares. - Em compensacio, fico indizivelmente
excecéo, com a condicdo de que nunca queira se transformar em regra. ofendido por uma feigéo vulgar nas obras do norte, por exemplo, na
musica alema. Nela se mistura vergonha,o artista se humilhou perante si
77 — O ANIMAL DE BOA CONSCIENCIA proprio e nem sequer conseguiu evitar de corar; nds temos vergonha com
O que agradano sul da Europa — que seja a Operaitaliana (por exemplo ele e nos sentimos tao ofendidos porque adivinhamosqueele julgava ser
Rossini e Bellini) ou o romance de aventuras espanhol (que nos é obrigado a humilhar-se por nossa causa.
sobretudo acessivel sob o disfarce francés de Gil Blas”) tem um lado
vulgar que ndo me escapa — mas isso nao me atinge, bem como pouco me 78 — EM QUE DEVEMOS SER GRATOS
atinge a vulgaridade que se encontra passeando por Pompéia’’) ou mesmo Foram osartistas, e sobretudo aqueles ligadosao teatro, que por primeiro
deram aos homensolhos e ouvidos para ver e para ouvir com certo prazer
(1) Gioacchino Antonio Rossini (1792-1868) e Vincenzo Bellini (1801-1835), compositores italianos (NT).
(2) Gil Blds de Santillana € 0 titulo do romance de inspiragdo espanhola de autoria de Alain René Lesage (1668- aquilo que cada um é ele préprio, aquilo que viveu e que quis; foram eles
1747), escritor francés (NT). que por primeiro nos ensinaram a dimensdo do herdi que se esconde em
(3) Cidade romana,situada nas proximidades de Napoles. destruida por violenta erupcao do Vestivio no ano79
de nossa era, ficando soterrada sob uma camada de oito metros de lava e cinzas até meados do século XVIII cada um desses homens comuns, foram eles que ensinaram a arte de nos
quandofoi redescoberta e comegaram as escavagdes que perduram até hoje (NT).

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consideramos como herois a distancia e, por assim dizer, simplificados ¢


E assim exigiam mesmoda paixao no teatro essa bela linguagem e se
transfigurados — a arte de “entrar em cena” diante de si proprio. S6 dessa deliciavam com 0 artiffcio dos versos dramdaticos: — na paixao,a natureza
maneira € que conseguimos nos estabelecer acima de alguns pormenores é to econdmica de palavras! Tio muda e téo embaracada! Ou, quando
mesquinhos que existem em nos! Sem essa arte viverfamos totalmente encontra palavras, tio confusa e desarrazoada! Tem tanta vergonha desi!
em primeiro plano e inteiramente sob 0 encanto dessa ética que modifica Todos nos habituamos, gracas aos gregos, a essa desnaturalizacao em cena,
desmesuradamente o mais pré6ximo e o mais comum, como se fosse a precisamente como suportamos, € suportamosde boa vontade, gragas aos
verdade por exceléncia. — Talvez subsista um mérito da mesma espécie italianos, outra desnaturalizacdo, a paixdo que canta. — Tornou-se para nds
nessareligiao que mandava examinar o estado de pecado de cada um com umanecessidade que nao podemossatisfazer na realidade, ouvir homens
umalente de aumento e que fazia do pecador um grande criminoso imortal: falar bem e copiosamente nas situacdes mais criticas: ficamos encantados
descrevendo perspectivas eternas em torno dele, ela ensinava ao homem a agora ao ver o her6i tragico encontraraindafrases, razoes, gestos elogtientes
olhar-se de longe e como algumacoisa passada. e, em suma, ficar Iicido quando a vida passa ao lado dos abismos que
fariam, na realidade, perder a cabega 4 maioria dos homens a todostiraria
79 — O ENCANTO DO INACABADO o gosto de falar bem.
. Vejo aqui um poeta que, como muitos homens, exerce por suas Essa espécie de desvio da natureza é talvez 0 mais agradavel alimento
imperfeig6es um atrativo superior do que aquele das coisas que se completam para o orgulho do homem; é por causa dela que 0 homem ama arte,
€ tomam umaforma perfeita sob sua mao — pode-se mesmo dizer que sua express4o de uma anomalia e de uma conveng¢aosuperior, herdica. Acusa-se
gloria e sua superioridade derivam de sua impoténcia em finalizar que com razio o dramaturgo que nao exprimee nao explica tudo, que conserva
de seu abundante vigor. Sua obra nunca exprime completamente aquilo sempre um resto de siléncio: - do mesmo modo quese fica descontente com
que gostaria de exprimir a fundo, 0 que gostaria de ter visto: parece ter um mtisico que, numa 6pera, no momento do movimento de paixao mais
havido nele 0 antegosto de uma visio e nunca a propria viséo — mas um intensa, nao sabe encontrar melodia mas somente um balbucio “natural”,
enorme desejodessa visao ficou em sua alma e € desse desejo que extrai um grito de expressdo. De fato, nesse momento é preciso contradizer a
a eloqiiéncia igualmente enorme que a vontade e a fome the conferem. E natureza! Nesse momento é preciso que o encanto vulgar da ilusao ceda.o
gracas a ela que eleva aqucles que 0 ouvem acimade sua obra de todas as lugar a um encanto superior!
“obras”, que Ihes dé asas para subir mais alto que qualquer ouvinte jamais Osgregos vao muito longe nesse caminho — vao espantosamentelonge!
0 consegue; e, transformados assim eles préprios em poetas e videntes, Da mesma forma que constroem o palco, téo estreito quanto possivel,
prestam aoartifice de sua felicidade a mesma homenagem de admiracao e profbem ao ator qualquer jogo fisiondmico, toda a espécie de mimica
que lhe prestariam se ele os tivesse levado 4 imediata contemplagao de ligeira para fazer dele um solene espantalho, rigido e mascarado, assim
seu Santudrio mais intimo e mais sagrado, comose tivesse atingido seu retiram A paixdo toda a espécie de profundidade do plano de fundo para
objetivo, como setivesse verdadeiramente visto e mostrado sua visdo. Sua lhe impor lei do belo discurso; ainda melhor! Puseram tudo em agao
gloria se aproveitou do fato de nao ter exatamente atingido seu objetivo. -para contrariar o efeito elementar das imagens que despertam o temor ou
a piedade: porque nado queriam o temor e a piedade! Honra a Aristételes,
80 — ARTE E NATUREZA a maior honra a ele! Mas certamente ele nfo tocou o ponto justo, longe
Os gregos(ou pelo menos osatenienses) gostavam de ouvir falar bem: disso, quando falou do objetivo supremo da tragédia grega. Examinem
era para eles umaviva predilegdo queos distingue de qualqueroutra nado. Os poetas trdgicos gregos, para verificar 0 que mais excitou seu espirito

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ERE

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de aplicagao, seu espirito inventive, sua emulacio — nao foi certamente © $2 — O ESPIRITO NAO EF GREGO
desejo de subjugar o espectador por meio das paixGes! — O ateniense 1a ao Em todos os seus modos de pensar, os gregos so indizivelmente
teatro para ouvir belos discursos! E cra de belos discursos que se ocupava l6gicos e simples; ¢ nao se cansaram dessas formas, pelo menos durante
S6focles! — perdoem-me esta heresia! — Ocorre de mancira absolutamente seu perfodo mais longo e melhor, como ocorre com freqléncia com os
diferente com a 6pera séria: todos os grandes mestres se empenham em franceses que gostam demais de dar reviravoltas e nao suportam no
evitar que suas personagens sejam compreendidas. fundo o espirito de I6gica sendo quandorevela, por uma multidao dessas
Uma palavra apanhada ao acaso pode ajudar o espectador desatento: reviravoltas, sua gentil sociabilidade e sua abnegagaosocial. A légica lhes
mas € preciso que a siltuagao se explique por si prépria no conjunto — os parece tao necessdria como 0 pio e a Agua. mas ao mesmo tempo como
discursos nao tém nenhuma importancia! — Foi assim que todos eles umalimento de prisioneiros que se deve consumir $6 e sem preparativos.
pensaram e foi assim que se divertiram em produzir suas farsas com as Na boa sociedade é preciso nunca procurar ter s6 e completamente razdo,
palavras. Talvez s6 Ihes tenha faltado coragem para exprimir inteiramente como o quer a lé6gica pura: de onde a pequena dose de desrazdo em todo
seu desprezo pelas palavras: um pouco mais de insoléncia de Rossini e espirito francés. — O senso da sociabilidade era muito mais desenvolvido
teria feito cantar de ponta a outra traé-l4-ld — e teria tido até razdo ao fazer nos gregos do que é e foi nos franceses: é€ isso que faz com que haja tao
isso! E precisamente porque nao se deve acreditar “nas palavras™, mas “nos pouco espirito em seus homens mais espirituais, tao poucas boas palavras,
sons” das personagens da Opera. mesmo em seus farsantes, t40 pouco — ai!... Ninguém vai acreditar mais
Essa é a diferenga. essa é a bela desnaturacdo pela qual a gente vai nessas palavras e muitas outras da mesma espécie que ainda conservo no
a 6pera! No fundo, o proprio recitative seco nado deve ser ouvido como coragio! — “Est res magna tacere™". diz Marcial com todos os faladores.
texto e palavras: essa espécie de meia musica é antes feita para dar ao
ouvido um pouco de repouso(0 repouso da melodia, o prazer mais sublime 83 -— TRADUCOES
€, por conseguinte. o mais fatigante dessa arte) ~ mas bem depressa se Pode-se avaliar 0 sentido hist6rico de uma época pela mancira comoessa
transforma em outra coisa: isto é, numa impaciéncia crescente, numa épocatraduz e procura assimilar os tempos passados e¢ os livros antigos. Os
crescente resisténcia. num novo desejo de musica completa, de melodia. franceses dos tempos de Corneille’? e também aqueles da Revolugao se
— O que ha na arte de Richard Wagner''’ a esse respeito? Seria a mesma apoderaram daantigiiidade romana de uma forma que nods nao teriamos
coisa? Talvez ocorra de forma diferente? Muitas vezes me pareceu que coragem— gragas a nossosentidohist6rico superior. E a propria antigtiidade
teria sido necessario aprender de cor antes do espetaculo 0 texto e a mtsica latina, com que violéncia e ao mesmo tempo comque ingenuidade passou
de suas criagdes, sob pena — era 0 que me parecia — de nao ouvir nem as a mio em tudo o que havia de grande e de belo na antigiiidade grega
palavras nem a musica. que a havia precedido! Como transpunhampara o latim! Como faziam
desaparecer. com conhecimento de causa e sem escrupulos. a poeira das
$1 -— GosTo GREGO asas da borboleta-momento! Foi assim que Horacio’ traduzia aqui e acola
“Que hd de belo nisso?” — perguntava aquele topografo depois de uma Alceu e Arquildquio™'; Propércio™ fazia o mesmo com Calimacoou Filetas
representacdo da pega Ifigénia —“ndo se prova nada\” Sera assim tao certo
(1) Expressdo fatina que significa “cakar-se & uma grande coisa”: esta na obra Epigranmnata UN. 80) de Mareus
que os gregos tenham estado tao Jonge de compartilhar essa opiniao? Em Valerius Martialis (40-104). escritor latino (NT).
(2) Pierre Corneille (1606-1684). poeta dramatico traneés (NT).
Sofocles. pelo menos, “tudo se prova”. (3) Quintus Horatius Flaccus (65-8 a-C.), poeta kutino (NT).
(4) Alceu (630-580 a.C.) ¢ Arquil6quio (712-648 a.C.). poetas gregos (NTH.
(1) Richard Wagner (1813-1883). compositor alemao, amigo de Nietzsche ¢ depois adversario (NT). (5) Propércio (47-15 a.C.1. poetalatino (NT).

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(poetas do mesmonivel que Teécrito', se nos é permitidojulgar); que lhes De fato, era realmente a utilidade e uma grande utilidade que se tinha
importava que o verdadeirocriador tivesse vivido esta ou aquela coisa e em vista nesses tempos antigos que criaram a poesia — deixandopenetrar
que lhe tivesse gravado a marca em seus versos! — Comopoetas, viam com nodiscurso o ritmo, essa forga que volta a ordenar todos os atomosdafrase,
maus olhos 0 espirito pesquisador da arqueologia que precede o sentido que forga a escolher as palavras e da nova cor ao pensamento, tornando-
hist6rico: como poetas, desprezavam essas coisas totalmente pessoais, 0s oO mais obscuro, mais estranho, mais distante: utilidade supersticiosa
nomes e tudo o quese referia a uma cidade, a um local, a um século, como evidentemente! Queria-se gravar os desejos humanos no espirito dos
uma encenacdo e uma mascara, e se apressavam a substitui-los por aquilo deuses por meio do ritmo, depois que se havia observado que um homem
que era atual e romano. retém melhor em sua memoria um verso que uma frase em prosa; pensava-
Parece que quiseram nosdizer: “Nao devemos renovar o que é antigo se igualmente, gragas a cadéncia ritmica, em se fazer entender a maior
e nos acomodarmosnele de nosso jeito? Nao temos o direito de insuflar distancia; parecia que a prece ritmada se devia aproximar mais do ouvido
nossa alma nesse caddver? Pois, enfim, esta morto e tudo o que esta dos deuses. Mas sobretudo: queria-se tirar partido dessa subjugacdo
morto é tao feio!” — Nao sabiam usufruir do sentido hist6rico, o passado elementar que cativa o homem ao ouvir musica; 0 ritmo € uma coacgao;
e o estranho lhes eram penosos e para eles, como romanos, isso era uma gera um irresistivel desejo de ceder, de fazer eco; ndo sdo apenas os pés
incitacdo para uma conquista romana. Defato, traduzir era entao conquistar que seguem a cadéncia, mas a alma também — dizia-se, portanto, que devia
~ nado somente negligenciando o histérico, mas ainda acrescentando uma ocorrer 0 mesmo com a alma dos deuses! Procurava-se portanto for¢d-los
aluséo a um acontecimento contemporaneoe, antes de tudo, apagando o pelo ritmo e exercer uma coacao sobre eles: a poesia fol um lago magico
nome do poeta para colocar 0 proprio no lugar — nao se tinha, contudo, a com que foram capturados.
intencdo de roubar; pelo contrario, agia-se com a melhor consciéncia do Existia ainda uma representagdo mais singular e esta talvez contribuiu
Imperium Romanum. mais poderosamente na formagao da poesia. Entre os pitagdricos, a poesia
nos aparece comoensinamentofilosdfico e procedimento de educagao: mas
84 — Da ORIGEM DA POESIA muito antes de haverfil6sofos, atribufa-se 4 musica a forca de descarregar
Os amantes do fantastico no homem sustentam também a doutrina do as paixGes, de purificar a alma, de suavizar a ferocia animi'” — e justamente
carater instintivo da moral; raciocinam desse modo: “Se desde sempre porque ha ritmo na musica. Quando a justa tens4o e a harmonia da alma
se venerou como divindade superior o que é util, de onde péde surgir a se perdiam, era necessdrio comegar a dangar — era 0 que receitava essa
poesia? — Essa maneira de ritmar o discurso que, longe de favorecer a terapia. Com ela, Terpandro’ apaziguou uma sublevagio, Empédocles'”
inteligibilidade da comunicacdo, antes diminui a clareza e que, apesar acalmou um louco furioso e Damon curou um jovem que enlanguescia
disso, como uma derisdo a toda perspectivautilitdria, proliferou e ainda de amor; com ela punha-se também sob tratamento os deuses selvagens,
prolifera em toda parte na terra! A selvagem e bela desrazdoosrefuta, sedentos de vingang¢a. E_ para isso elevava-se em primeiro lugar ao maximo
6 utilitaristas! E precisamente a vontade de se livrar de uma vez da a extravagdncia de seu delirio e de suas paixdes. tornava-se frenético o
utilidade que elevou o homem; que lhe inspirou a moralidade e a arte!” furioso, o sedento embriagado de vingancga — todos os cultos orgiacos
~ Pois bem! se propdem satisfazer de uma s6 vez 0 impeto de uma divindade e fazer
Neste caso particular, devo falar em favor dos utilitaristas — tém tao
(1) Expressao latina que significa “impeto do 4nimo, impulse da alma” (NT).
raramente razao que chegaa causar do! (2) Terpandro(sé. VI a.C.}. poeta e musico. teria estabelecido as primeiras regras musicais (NT).
(3) Empédocles (490-435 a.C.). poeta e mtisico grego (NT).
(1) Calimaco (315-240 a.C.), Filetas (340-290 a.C.) e Tederito (315-250 a.C.), poetus gregos (NT). (4) Damon (sée. VIEV aC.) musico grego. amigo de Socrates (NT).

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disso uma orgia para que depois ela se sinta mais livre e mais calma ¢ Nao é divertido que os fil6sofos mais sérios, apesar de todaa severidade
deixe os homens em paz. Melos, etimologicamente, significa um meio que demonstram, por outro lado, ao manejar as certezas, se apdiem
de apaziguamento, nio porque o canto seja suave em si proprio, mas sempre em sentengas de poetas para conferir a suas idéias mais forga e
porque seus efeitos ulteriores produzem a suavidade. — E admite-se que. autenticidade? — e no entanto é mais perigoso para umaidéia ser aprovada
nao apenas no canto religioso, mas também no canto profano dos tempos pelos poetas do que ser contradita por eles! De fato, como diz Homero: “Os
Mais distantes, o ritmo exercia um poder magico, por exemplo, quando poetas mentem muito!”
se buscava 4gua ou quando se remava: o canto é um encantamento dos
dem6nios que eram consideradosativos quandose fazia uso dele, tornando- 85 — O BEM E 0 BELO
OS servicais, escravos e instrumentos do homem. Sempre que se age ha Os artistas passam seu tempo a glorificar — nada mais: — e sobretudo
razGes para cantar — os espiritos vém em socorro em cada acao: as formulas todas as condic¢ées e todos os objetos que tém a reputagdo de levar o homem
magicas e os encantamentos parecem ter sido as formas primitivas da a sentir-se bem, grande, bébado, sadio e sébio. Essas situagdes e objetos

poesia. Se ordculos se exprimiam também em verso — os gregos diziam escolhidos, cujo valor, para a felicidade humana, é considerado certo e
que o hexdmetro tinha sido inventado em Delfos — € porque o ritmo, ainda determinado, sdo 0 objetivo dos artistas; estes esto sem cessar a espreita

nesse caso, devia exercer uma coac4o. Interrogar o ordculo — isso significa para descobrir semelhantes coisas, a fim de fazer delas uma matéria de
primitivamente (segundoa etimologia provavel da palavra profecia): tornar arte. Quero dizer, sem ser eles préprios os taxadores da felicidade e dos
certo.o aleatério; julga-se poder coagir o futuro conquistando Apolo para acontecimentos felizes, se pOem sempre perto desses taxadores com a
sua causa: ele que, segundo a representacdo antiga, é muito mais que um maior curiosidade e com o desejo de se apropriar imediatamente de suas
deus que prevé o futuro. avaliacoes. E por isso que, pois que além de sua impaciéncia tém também
Logo que a férmula é pronunciada, com a condigao de respeitar a voz potente dos arautos e pés de corredores, serao sempre os primeiros
exatamente o ritmo a letra, ela liga o futuro: mas a formula é invengao de a glorificar 0 novo valor e parecerGo muitas vezes ser aqueles que por
Apolo que, como deusdosritmos, pode também obrigar as divindades do primeiro definem como bom esse valor e o taxam comotal. Mas, repito,
destino. — No final das contas, houve alguma vez, para o homem antigo e trata-se de um erro: 0S poetas s4o apenas mais rapidos e mais barulhentos
supersticioso, coisa mais util que o ritmo? que os verdadeiros taxadores. — Mas quem sao, portanto, estes? — Sao os
Tudo era possivel com ele: ativar o trabalho de modo magico; obrigar TICOS € OS OCIOSOS.
um deusa aparecer, a estar presente, a ouvir; acomodaro futuro segundo a
propria vontade; aliviar a alma de qualquer peso excessiva (medo, mania, 86 — No TEATRO
compaix4o, sede de vinganga) e néo apenas a propria alma, mais ainda a Hoje experimentei de novo sentimentos fortes e elevados; e se, para
dos piores deménios — sem o verso nao se era nada, com ele se se tornava terminaro dia, pudesse ouvir misica esta noite, sei muito bem de que musica
quase um deus. Um sentimento téo profundo nao podia ser extirpado nao gostaria, a saber, dessa arte que inebria os ouvintes e procura lhes

inteiramente — e ainda em nossosdias, depois de um trabalho de milhares proporcionar aforca um minuto de sentimentos fortes e elevados; — homens
de anos para combater essa superstic&o, o mais sabio de nés pode tornar- de alma cotidiana, esses ouvintes que 4 noite, em vez de se parecerem como
se no momento um joguete do ritmo, quando mais nao sinta nisso uma vencedores no carro do triunfo, tém o ar de mulas cansadas, demasiado

idéia mais verdadeira, ao tomar uma forma métrica e se manifestar com os fustigadas pelo chicote da vida. Esses homens conheceriam ao menos
sobressaltos dos deuses. os “estados de alma superiores”, se niéo houvesse remédios inebriantes

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e chicotadas idealistas? ~ E € assim que possuem seus estimulos de mais que qualquer outro, se tornou mestre na arte de encontrar tonalidades
entusiasmo comopossucm seus vinhos. Mas que me importam sua bebidac para exprimir Os sofrimentos, as opressdes e as torturas da alma e também
sua embriaguez! Que importa o vinho do entusiasmo? Pelo contrario, € com para dar voz ao mutismodesoladodo animal. Ninguém o iguala para conferir
uma espécie de repugnancia gue considero 0 meio e o mediador que devem uma coloragao de fim de outono, a felicidade indizivelmente comovedora de
provocar nesses homens um efeito sem causa suficiente, uma macaquice da um ultimo, absolutamente Ultimoe inteiramente ef€mero prazer; ele conhece
grande maré da alma! — Como? Sao oferecidas asas e pensamentosaltivos o tom para essas mintcias da alma, secretas e inquietantes, em que causa e
a toupeira, antes que va se deitar, antes que entre em sua toca? Por acaso efeito parecem se separar, em que a cada instante algumacoisa pode surgir do
a mandamosuo teatro e lhe pomos grossas lentes em seus olhos cegos e “nada”. Melhor que ninguém tira o que quer do mais profundo dafelicidade
cansados? Homenscuja Vida nunca foi “agao” mas simples negocio vaoali humanae, de alguma forma,de sua taga j4 vazia, onde as gotas mais amargas

sentar-se diante do palco para ver esses seres estranhos, cuja vida € mais acabam por se confundir com as mais doces.
que um negécio? “E exatamenteisso, podem dizer, isso é divertido, é isso Ele conhece essas oscilag6es cansadas da alma que nao sabe mais saltar
que a cultura quer!” — Pois bem! Talvez seja porque tenhofalta de cultura nem voar, nem mesmo caminhar; tem o olhar receoso da dor escondida, da

que muitas vezes esse eSpetdculo me aborrece tanto. Aquele que encontra compreens&o que no consola, dos adeuses sem confiss6es; sim, como Orfeu

em si proprio suficiente comédia e tragédia deverd preferir ficar longe do de todas as misérias intimas, ele ultrapassa qualquer outro e acrescentou com
teatro; ou entdo, excepcionalmente, a representagdo completa — cenario, isso a arte das coisas que, até aqui, pareciam inexprimiveis e mesmo indignas
ptiblico, autor inclufdo ~ se tornard para ele o verdadeiro espetaculo, um da arte — e que, sobretudo com palavras, s6 podiam ser postas em fuga e
espetaculo tragicOmico, que tora insignificante a pega representada. nao apreendidas — mesmotodos esses elementos infinitamente pequenos de
Um verdadeiro Fausto e um verdadeiro Manfredo pouco se importarao natureza anfibia ~ pois na arte do infinitamente pequeno se tornou senhor.
dos Faustos e dos Manfredos de teatro! — em contrapartida, o fato de que Mas nao quer saber disso! Pelo contrario, seu cardter prefere os grandes
se ponha em cena semelhantes personagens Ihes dara certamente motivo murais, a audaciosa pintura mural! Nao percebe que seu espirito tem outro
para reflexdo. Os pensamentos e as paixdes mais fortes diante de pessoas gosto e outro pendor, que preferiria se refugiar tranqiilamente nos recantos
que sao incapazes de pensamentos e de paixdo, mas que sao capazes de de casas em ruinas: — é ali que escondido, escondidode si proprio, compde
embriaguez! — tomam-se aquelas como um meio para chegar a esta! O suas verdadeiras obras-primas, que séo sempre muito curtas, um simples
teatro e a mUsica empregados como um haxixe e um bétel dos europeus! compasso muitas vezes — entéo somente é superior, absolutamente grande,
Ah! Quem nos contara a histéria completa dos narcéticos? — E quase a perfeito. — Masele nao o sabe! E demasiado vaidoso para sabé-lo.
historia da “cultura” inteirg, a chamada cultura superior!
)
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88 — TOMAR A VERDADE A SERIO
87 — DA VAIDADE DOS apRTISTAS |i Tomara verdade a sério! De quantas manciras se pode compreenderesta
Creio que os artistas ignoram muitas vezes 0 que melhor sabem fazer frase! As opinides, os modos de demonstragdo e de exame que um pensador
porque so muito vaidoggos e dirigiram sua vista para alguma coisa de considera como um desatino quando ele mesmoos pe em pratica — sucumbiu
mais altivo, desdenhandoessas pequenasplantas que, novas, raras € belas, nisso, para sua vergonha, num momento de fraqueza — essas mesmas opinides
crescem em seu solo com real perfeicao. Julgam superficialmente 0 que ha podeminspirar um artista, quando cruza e vive com elas durante certo tempo,
de verdadeiramente bom em seu préprio jardim. em seu proprio vinhedoe a consciéncia de ter sido dominado pela profunda gravidade da verdade,
seu amor nao € da mesma ordem desuainteligéncia. Ai esta um musico que. coisa surpreendente, de ter finalmente mostrado, ainda queartista, 0 mais
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meme

Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

sério desejo daquilo que é contrario 2 aparéncia. Assim 6 que alguém revela. 92 — PROSA E POFSIA
precisamente com suafeigdo grave, de que mancira superficial e frugal seu Naose deve esquecer que os grandes mestres da prosa foram quase sempre
espirito se moveu até o presente no dominio do conhecimento. — E nao poetas, fosse as claras, fosse em segredo e para seus intimos: e na verdade
somos traidos por tudo aquilo que consideramos importante? Mostramos nao € sendo em funcdo da poesia que se escreve boa prosa! De fato, esta é
desse modo a que damospeso e onde ele nosfalta. uma amavel guerra ininterrupta contra a poesia: todo seu encanto consiste
em escapar sem cessar da poesia e em contradizé-la; toda abstragdo quer
89 — AGORA E OUTRORA ser debitada com voz zombeteira, como uma malicia contra a poesia: toda
Que importamtodasas nossas obras de arte, se a arte superior, que ¢ seca, todo frio devem levar a um desespero amdvel a amavel deusa; muitas
a arte das festas, comeca a desaparecer entre nds! Outrora, todasas obras vezes ha reaproximac6es, reconciliagdes momentaneas, depois um recuo
de arte eram expostas nas grandes vias triunfais da humanidade. como repentino e um riso solto: muitas vezes a cortina ¢ levantada para deixar
monumentos em comemoragao de momentos superiorese felizes. Agora. entrar uma luz crua, enquanto precisamente a deusa goza de seu crepusculo
com as obras de arte se quer afastar da grande estada de sofrimento da e de suas cores sombrias; muitas vezes se devolve a ela as palavras em sua
humanidade os pobres esgotados e os doentes para Ihes proporcionar um boca para canta-las numa melodia quea leva a tapar seus delicados ouvidos
breve momento de embriaguez e de loucura. com suas delicadas méos — é assim que ha mil prazeres da guerra, sem
esqueceras derrotas, de que os espiritos desprovidos de poesia. aqueles que
90 — LUZES E SOMBRAS sio chamados homensprosaicos, nao sabem absolutamente nada: — 0 que
A redagao doslivros difere conforme os pensadores: um reuniu num faz com que estes s6 escrevam e falem em péssima prosa! Se a guerra é a
volume toda a claridade que soube furtar ao fulgor de um conhecimento mde de todasascoisas boas'"', a guerra é também a mae de toda boa prosa!
repentino e dominado rapidamente; 0 outro da apenas as sombras, as cOpias — Houve neste século quatro homens extraordinarios e verdadeiramente
em cinza e preto do que foi edificado. na véspera. em sua alma. poetas que conseguiram dominar a prosa, dominio para o qual este século
nao foi de maneira algumafeito — por causa de sua falta de poesia, como
91 — PRECAUCAO ja afrmei. Sem contar Goethe’, que reivindica com justa razdo o século
Alfieri''’ mentiu muito, como se sabe, ao contar a hist6ria de sua vida que 0 produziu, vejo apenas Giacomo Leopardi. Prosper Merimée, Ralph
a seus contemporaneos espantados. Foi por despotismo em relacdo a si Waldo Emerson e Walter Savage'’’”, autor das Imaginary Conversations,
proprio que o levou a mentir, esse despotismo que mostrou, por exemplo, na como dignos de ser chamados mestres da prosa.
maneira comocriousuapropria lingua e se fez poeta tiranicamente: — tinha
finalmente descoberto umaforma severa de superioridade a que coagiu sua 93 — MAs TU, POR QUE E QUE ESCREVES?
vida e sua memGria, nao sem sofrimento. — Eu ndo daria tampouco maior A — Naosou daqueles que pensam com a caneta 4 mao e menos ainda
crédito a uma autobiografia de Platao; tampouco 4 de Rousseau’! ou a de daqueles que se entregam a suas paixGes diante do tinteiro aberto, sentados
Dante em sua Vita nuova". em sua cadeira e fitando o papel.
(1) Vittorio Alfieri (1749-1803), dramaturgoitaliano: suas Memodrias foram publicadas postumamente (NT). (1) Frase de Herdclito (550-480 aC. tilésofo grego: de sua obra se conservam somente fragmentos e esta
(2) Jean Jacques Rousseau (1712-1778). fildsofo e romancista francés: de suas obras, O contrate vacial ¢ citagdo se encontra no Fragmento 53 (NT). :
origent da desigualdade entre os homens foram publicadas nesta colegdo da Editora Escala: Nietzsche faz alusce (2) Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). escritor alemao (NT).
aqui ao livro de Rousseau intitulado Confissdes (NT) (3) Giacomo Leopardi (1798-1837), poela ¢ escritor italiano: Prosper Mérimée (1803-1870), escritor francés:
(3) Dante Alighieri (1265-1321) poeta e escritor italiana, autor de Divina Comedia, De vulgari cloquentia, Vite Ralph Waldo Emerson (1803-1882), fil6sofo ¢ eseritor americano: Walter Savage Landor (1775-1864), eseritor
nova, Monarquia. Banquet (estas duas ja publicadas nesta colegdo da Editora F: seal) ¢ outras obras iNT? inglés (NT).

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Nietzsche - A Gaia Ciéncia


Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal

escrito: escrever é para de sua infancia ¢ que esperava a hora de vingar a mae’. E eis que a vida, e seu
A — Eu me aborreco ou tenho vergonha de todo
em falar de génio, € ai! — sobretudotalvez — 0 sangue paterno que corria em suas veias 0
mim como fazer minhas necessidades — sinto repugnancia até
haviam levadoa arregimentar-se durante longos nessa nobrezae a sentir-se seu
forma simbdlica.
igual! Mas acaba por nao poder mais suportar seu proprio aspecto, 0 aspecto
B — Masentao por que escreves?
do “velho homem” sob o antigo regime: foi dominado por violenta paixdo de
A — Ai de mim! Meucaro, dito entre nds, ndo descobri ainda até agora
peniténcia; essa paixdo 0 levoua trajar a veste da massa do povo como uma
outro meio de me desembaragar de meus pensamentos.
espécie de cilicio préprio dele. Sua ma consciéncia acabavade ter falhado em
B —E por que quereste desembaragar deles?
sua vingan¢a. ~ Se tivesse permanecido entao mais fildsofo por um s6 grau,a
A — Por que quero? Massera que quero? Sou forgado a isso.
Revolucaoteria sido privada de sua faceta menosdivertida e de seu aguilhdo
B- Bem! Bem!
mais afiado: seria considerada como um acontecimento muito mais esttpido e
seduziria menos0s espiritos.
94 — CRESCIMENTO APOS A MORTE
que Mas0 6dio e a vingan¢a de Chamfort educaram uma geracaointeira: e os
Essas pequenas palavras intrépidas sobre as coisas morais
Mortos eram homens mais ilustres sairam dessa escola. Pense-se que Mirabeau” olhava
Fontenelle’? semeou em seus imortais Didlogos dos
iro; para Chambort como para um eu superior e mais idoso, de quem esperava
consideradas outrora como paradoxos, jogos de um espirito aventure
0 impulso e do qual tolerava as adverténcias e as sentengas — Mirabeau que,
mesmo os juizes supremos do gosto e do espirito nao viam nelas mais
tavel: como homem, é muito superior aos maiores homens de Estado de ontem e
que isso — e talvez Fontenelle também. Agora ocorre algo inacredi
se de hoje. E singular que, apesar de semelhante amigo e advogado — temos
esses pensamentos se tornam verdades! A ciéncia os demonstra! O jogo
as cartas de Mirabeau a Chamfort — 0 mais espiritual dos moralistas tenha
torna sério! Lemosesses didlogos com outra opiniao, totalmente diferente
os seu permanecidoalheio aosfranceses, tal como Stendhal” que. talvez entre todos
daquela de Voltaire'” e de Helvétius” e, involuntariamente, colocam
classe muito mais elevada que os franceses desse século, possuia os olhos e os ouvidos mais pensantes de
autor numa classe de espirito superior, numa
seu pais. Sera que havia em Stendhal alguma coisa de demasiado alemdo e
aquela em que estes 0 colocaram ~ com raz4o? ou sem razao?
de demasiado inglés para ser ainda tolerado pelos parisienses? — enquanto
Chamfort, rico em profundezas e em recénditos da alma, sombrio, sofredor,
95 — CHAMFORT™
ardente — pensador que julgou o riso um remédio necessario contra a vida
Que um conhecedor da humanidade e da multidio como Chamfort se tenha
e que considerava perdido o dia em que nao tivesse rido — parecia mais um
colocado precisamente do lado da multidao em vez manter-se afastado e na
italiano que um francés, parente proximo de Dante e de Leopardi!
defensiva, que ndo tenha perseverado em sua renuncia filosdfica, néo posso
Conhecem-se as ultimas palavras de Chamfort: “Ah! meu amigo”, disse
explicar esse fato sendo da maneira seguinte: havia nele um instinto mais forte
de a Sieyés". “vou embora finalmente deste mundo, onde é necessdrio que o
que sua sabedoria, que jamais tinha sido saciado, 0 édio contra toda nobreza
coracdo se parta ou se torne de bronze.” — Certamente essas nao sao palavras
sangue; talvez 0 6dio muito bem explicavel que sua maetinha pelos nobres € f
trazia de um francés moribundo.
que seu amorpor ela o tinha tomado sagrado — um instinto de 6dio que
| (5) A mae de Chamfort era pobre ¢ era dama de companhia numa tica e nobre familia: perdeu o emprego. seu tinico
; 7 a meio de subsisténcia. ao descobrirem que estava gravida: o nome do pai de Chamfort nuncafoi revelado (NT).
(1) Bernard Le Bovier de Fontenelle (1657-1757), escritor francés (NT).
francés: varias de suas obras ja foram (6) Honoré Gabriel Riqueti. conde de Mirabeau (1749-1791), politico francés da €poca da Revolugdo (NT),
(2) Frangois Marie Arouet, dito Voltaire (1694-1778). fildsofo e escritor (7) Henri Beyle. dito Stendhal (1783-1842). escritor francés (NT).
publicadas nesta colecao da Editora Escala (NT).
; (8) Emmanuel Joseph Sieyés (1748-1836). politico francés da época da Revolugdo: estas palavras teriam sido
(3) Claude-Adrien Helvétius (1715-1771). fildsofofrancés {NT}. proferidas por Chamfort antes de se suicidar em 1794. durante 0 regime doTerror da Revolugao Francesa (NT).
(4) Sébastien Roch Nicolas de Chamfort (1742-1794). escritor francés (NT).

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Colegdo Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

96 — Dots ORADORES 98 — PARA GLORIA DE SHAKESPEARE


Desses dois oradores, um consegue libertar toda a razao de sua causa A mais bela coisa que posso dizer para gléria de Shakespeare, do
quando se entrega a paixdo: s6 a paixao lhe faz subir sangue e calor homem, € esta: acreditou em Brutus” sem um minimo de desconfianga
suficientes ao cérebro para forgar sua alta inteligéncia a se revelar. O outro sobre a espécie de virtude que este ultimo encarna! A ele consagrou sua
bem que experimenta de tempos em tempos 0 mesmo método: apresentar melhor tragédia — que continua a ser designada com um titulo inexato — a
sua causa com a ajuda da paixdo de uma formasonora,violenta e cativante ele e ao mais terrivel resumoalta moralidade. Independéncia da alma! — E
— mas geralmente nao tem sucesso. Entaéo se torna rapidamente obscuro disso que se trata aqui!
e confuso, exagera, omite e suscita a desconfianca em relagao a razao de Nenhum sacrificio pode ser considerado demasiado grande; é preciso
sua causa; pior, ele proprio sente essa desconfianga e assim se explicam podersacrificar a essa independéncia o melhor amigo, seja ele o homem
esses saltos repentinos, essas entonagoes frias e repulsivas que provocam mais magnifico, o ornamento do mundo, 0 génio sem igual — quero dizer,
no auditério dividas sobre a sinceridade de sua paixado. Nele a paixdo no caso de amara liberdade, como liberdade das grandes almas e que pelo
submerge cada vez 0 espirito: talvez porque é mais forte do que no primeiro. amigo essa liberdade é colocada em perigo: — é assim que Shakespeare
Masele atinge a supremaaltura de sua forca quandoresiste 4 impetuosa sentiu! O pedestal em que ele coloca César é a honra mais sutil que podia
tempestade de seu sentimento, desprezando-o de alguma forma: ¢ somente prestar a Brutus: assim, somente ele eleva até o imenso o problemainterior
entdo que seu espirito sai inteiramente de seu esconderijo, espirito ldgico, deste e da mesma forma a forcga da alma que era capaz de cortar esse nd!
zombeteiro, que brinca consigo e, no entanto, terrivel. — Foi realmente a liberdade politica que despertou no poeta essa simpatia
por Brutus — a ponto de tornar-se cimplice de Brutus?
97 — DA LOQUACIDADE DOS ESCRITORES Ou a liberdade politica nao era senéo o simbolo de qualquer coisa de
Existe uma loquacidade da célera — como em Lutero’ e em inexprimivel? Encontrar-nos-emos talvez diante de algum acontecimento
Schopenhauer. Uma loquacidade que provém de uma_ grande da alma, proprio do poeta, diante de uma aventura da qual nao queria
abundancia de conceitos, como em Kant’. Uma loquacidade que traduz falar sendo por sinais? O que é toda a melancolia de Hamlet ao lado da
o prazer de dizer de uma forma sempre nova a mesma coisa: encontra- melancolia de Brutus? Talvez Shakespeare conhecesse uma como a outra
se em Montaigne’. Uma loquacidade de natureza pérfida: aquele que por experiéncia! Talvez tivesse, também ele, suas horas sombrias e seu
1é os escritos de nossa época se lembrard provavelmente, para esse caso anjo mau como Brutus! Mas sejam quais forem suas semelhangas e suas
particular, de dois escritores®. Uma loquacidade que produza alegria das relacdes secretas, Shakespeare se inclinou diante do carater e da virtude de
palavras apropriadas e das belas formas dodiscurso: freqiiente na prosa de Brutus, do qual se sentia indigno. — Sua tragédia testemunhaisso. Brutus, 0
Goethe. Uma loquacidade por puro prazer do barulho e da confusao dos proprio Brutus, perde a paciéncia quandoo poeta aparece, vaidoso,patético,
sentimentos: por exemplo, em Carlyle. importuno como sdo geralmente os poetas, seres que parecem estar inflados
de possibilidades, de grandeza, mesmo de grande moral, e que no entanto,
na filosofia da acéo e da vida, eles préprios raramente conseguem chegar

|
(1) Martinho Lutero (1483-1546), filésofo e tedlogo alemao, fundador da Reforma protestante (NT).
(2) Arthur Schopenhauer (1788-1860). filésofo alemao (NT).
A simples eqiiidade. “Se ele conhece sua hora, eu conheco seus caprichos
(3) Immanuel Kant (1724-1804), fil6sofo alemao:; entre suas obras, A religido nos limites da simples razdoja toi
publicada nesta colegao da Editora Escala (NT). ~tirem daqui o fantoche!” — exclama Brutus. Quese retraduzaisso na alma
(4) Michel Eyquem de Montaigne(1533-1592), pensadore escritor francés (NT).
(5) Alusdo a Karl Eugen Diihring (1833-1921), filésofo e economista alemao. e a Richard Wagner (1813-1883). do poeta que 0 imaginou.
compositar alemao que, além de sua produgdo musical. foi também escritor (NT).
(6) Thomas Carlyle (1795-1881), historiador escocés (NT). ," (7) Marcus Junius Brutus (85-42 a.C.). filho adotivo e assassino de Hilio César (NT).
L
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99 — Os DISCiPULOS DE SCHOPENHAUER'! aparéncia; — Schopenhauer chama 0 pensamento de Lamarck’? “wmerro
O que se observa quandodocontato entre povos civilizados e barbaros genial e absurdo”’), — & a exaltagdo do génio (‘na contemplacdo estética
é que, regularmente, a civilizagdo inferior comegar por adotar os vicios, 0 individuo ndo é mais individuo, mas puro sujeito do conhecimento, sem
as fraquezas e os excessos da superior, depois, partindo disso, enquanto
| vontade, sem dor e fora do tempo”; “o sujeito absorvendo-se totalmente
aquela experimenta a sedugao, acaba porassimilar, por meio das fraquezas no objeto da contemplagdao, transforma-se nesse mesmoobjeto”); ou ainda
e dos vicios adquiridos, alguma coisa da forga que a civilizagao superior o absurdo da piedade e da ruptura do principio de individuacao comofonte
encerra — pode-se constatar isso também em sua vizinhanga, sem viajar | de toda moralidade, sem esquecer finalmente afirmagées deste género:
no meio dos povos barbaros; é verdade que ali € misturado com um pouco “a morte, no fundo, é a finalidade da existéncia”; “ndo se pode negar
|
mais de sutilidade e de espiritualidade e que nao é€ tao facil dar-se conta absolutamente a priori a possibilidade que uma influéncia magica possa
disso. Pode-se observar, pois, 0 que os discipulos de Schopenhauer na
| emanar de um defunto”. Estes excessos e estes vicios do fildsofo e outros
Alemanha comecam primeiramente a adotar de seu mestre! — Com respeito | semelhantes sAo sempre adotados em primeiro lugar para fazer deles artigos
4 sua cultura superior, devem se encontrar suficientemente barbaros para
ser desde logo fascinados e seduzidos por ele como barbaros. Sera seu
| de fé: — pois os vicios e os excessos sio sempre mais faceis de imitar e nao
exigem um longo exercicio prévio.
cruel sentido das realidades, sua boa vontade para chegar a clareza e a Mas falemos do mais célebre dos schopenhauerianos ainda vivo,
razJo que muitas vezes o fazem parecertio inglés e tao pouco alemao? Richard Wagner"), — Aconteceu-lhe 0 que ja aconteceu a muitos artistas:
Seré o vigor de sua consciéncia intelectual que suportou durante toda a enganou-se na interpretagéo das personagens que criou e desconheceu
vida uma contradi¢do entre o ser e 0 querer e 0 obrigou, mesmo em seus a filosofia implicita de sua prépria arte. Richard Wagner, até metade de
escritos, a contradizer-se sem cessar e quase em cada ponto? sua vida, deixou-se extraviar por Hegel; depois se deixou extraviar por
Serd sua honestidade com relacao as coisas da Igreja e do Deus cristao? Schopenhauer, quando julgou ver em suas proprias personagens o reflexo
~ pois era claro como nenhum fildsofo alemao havia agido assim até entao, das doutrinas do fild6sofo e que passou ele préprio a explicitar com termos
29 oe
de modo que viveu e morreu “como voltairiano”. como “vontade”, “génio” e “piedade’’. Entretanto, é certo que nada € mais
Ou aindaserio suas imortais doutrinasda intelectualidade, da intuigao, contrario ao espirito de Schopenhauer que aquilo que ha de propriamente
da prioridade da lei da causalidade, da natureza instrumental do intelecto wagneriano nos herdis de Wagner: quero dizer a inocéncia do supremo
e da nao-liberdade do querer? Nao, nada disso fascina: 0 que seduz em amor si, a fé que tém na grande paixdo como o bem porexceléncia, em
Shopenhaueré seu misticismo, seu embarago nos pontos em que o pensador resumo, 0 que ha de siegfriediano em seus heréis. “Tudo isso se parece
realista se deixou seduzir e corromperpela va ambigdo de querer decifrar o mais com Spinoza” do que comigo” — diria talvez Schopenhauer. Quantas
enigma do mundo; é a indemonstravel doutrina da vontade unica (“qualquer boas razGes teria portanto tido Wagnerpara procurar outros fildsofos que
causa é sempre causa ocasional da aparigdo da vontade emcerto tempo. nio Schopenhauer; 0 encanto a que este o fez sucumbir tornou-o cego
em certo lugar”; “a vontade de viver estd presente, inteira e indivisa, em relacdo nao somente a todos os outros filésofos, mas ainda a propria
em todos os seres, mesmo no mais insignificante, tao completa como na ciéncia; toda a sua arte quer se afirmar sempre mais como caminhando ao
totalidade daqueles que foram, sGo e serao”), é a negagdo doindividuo
(“todosos ledes nao sao em suma sendo ums6 ledo”; “a multiplicidade dos (2) Jean-Baptiste de Monet. cavaleiro de Lamarck (1744-1829), naturalista francés, precedeu Darwin ao enunciar
umateoria da evolugiio das espécies (NT).
individuos € apenas aparéncia”, precisamente como a evolugdo € apenas (3) Richard Wagner(1813-1883). compositor alemao. amigo de Nietzsche e depois adversdrio (NT).
(4) Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), fildsofo alemao(NT).
(1) Arthur Schopenhauer (1788-1860), filésofo alemado (NT). (3) Baruch Spinoza(1632-1677), filésofo holandés (NT).

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Nietzsche - A Gaia Ciéncia
Colegaéo Grandes Obras do Pensamento Universal

lado da filosofia schopenhaueriana que ele completa e renuncia sempre Continuemos fiéis a Wagner naquilo que ele tem de verdadeiro ¢ de
mais expressamente a honra suprema de completar o conhecimento original — ¢ isso, ficando fiéis, nGs que somos seus discfpulos, ao que em
humano e a ciéncia. Wagner naoé levadoa isso apenas empurrado pelo nos é verdadeiro c original. Deixemos a ele suas mudangas de humor, suas
misterioso esplendor dessa filosofia que teria tentado um Cagliostro'!': ciibras intelectuais, consideremos antes, com eqiiidade, quais sao seus
nao, os gestos particulares e as paixdes dos filésofos foram sempre seu alimentos e suas necessidades singulares que suaarte tem o direito de ter
elemento mais sedutor! Schopenhaueriano 6, por exemplo. 0 protesto de para viver e para crescer. Pouco importa que, como pensador, esteja tao
Wagner contra a corrup¢doda lingua alema; e se, neste caso particular, a freqiientemente errado; a justiga e a paciéncia nao sdo elementoseu. Basta
imitagao podeser aprovada,é preciso nao esquecerque o estilo de Wagner quesua vida tenha razo diante de si mesma e que fique com a razao: — essa
nem por isso deixa de apresentar todas as énfases, todos os tumores que vida que se dirige a cada um de nos para exclamar: “Sé wn homem e ndo
provocavam o furor de Schopenhauer e que, para os wagnerianos que mesigas; € ati mesmo que deves seguir. A ti mesmo!”
escrevem em alem4o, a wagnermania comega a mostrar-se mais perigosa E nés também devemoster uma vida que tenha uma razao perantesi
do que foi desde sempre a hegel mania. propria! N6és também devemos crescer € nos expandir livremente e sem
Schopernhaueriano é tambémo 6dio de Wagnercontra os judeus. porque temor. num inocente amor de nds mesmos, de nossa propria personalidade.
nao sabe apreciar seu valor e considerar seu ato mais famoso: pois foram E assim, ao contemplar semelhante homem, hoje como outrora estas
os judeus os inventores docristianismo! Schopenhaueriana é, em Wagner, palavras ressoam a meu ouvido: “A paixdo é melhor que o estoicismo e a
a tentativa de considerar o cristianismo como um grao extraviado do hipocrisia; ser sincero, mesmono mal, vale mais que perder-se a si proprio
budismoe de preparar uma €poca budista para a Europa. preconizando uma na moralidade da tradic¢do, o homem livre pode escolher ser bom ou mau,
aproximacdo momentanea com férmulas e sentimentos cristéo-catdlicos. mas o homem subjugado é€ uma vergonha da natureza endo temdireito a
Schopenhaueriana é a pregagao de Wagner em favor da piedade para com nenhuma consolacdo, nem divina nemterrestre; enfim, que qualquer um
os animais: sabe-se que nessa matéria o precursor de Schopenhauer foi que queirase tornarlivre 86 pode sé-lo por si proprios; a liberdade ndo
Voltaire que, como seus sucessores, Jd soube talvez disfargar em compaixdo cai nas bracos de ninguém como um presente milagroso™ (Ricardo Wagner
pelos animais o 6dio que sentia contra certas coisas e certas pessoas. Em em Bayreuth).
todo o caso, o 6dio de Wagner contra a ciéncia, que se exprime em sua
pregacao, nao é certamente inspirado pelo espirito de caridade e de bondade 100 — APRENDER A HOMENAGEAR
—e ainda menos pelo proprio espfrito. — No final das contas, a filosofia de Homenagear se aprende da mesma forma que desprezar. Aquele que
um artista importa poucose s6 for acrescentada depois de realizada a obra abre caminhos novos e que conduza por eles muitos homens descobre com
e ndo prejudique sua propria arte. surpresa comosaoindbeis e pobres todos esses homens na expressao de seu
Nunca sera demais evitar de querer mal a um artista por causa de uma reconhecimento e mesmo como € raro que esse reconhecimento chegue a se
pretensdo ocasional, muitas vezes infeliz e cheia deilusGes: nao esquegamos manifestar. E comose, cada vez que ele quer falar, alguma coisa se entrava
que esses carosartistas, sem excegdo, desempenham sempre uma comédia na garganta. de modo que naofaz outra coisa senaotossir e engasgar-se na
qualquer, que nao podem deixarde fazé-lo e que sem isso, com o andar do tosse. E quase cémico ver de que maneira um pensadorapreende 0 efeito de
tempo, nunca mais se conseguiriam libertar. suas idéias. de seu poder de transformacao e 0 abalo que produzem; parece
as vezes que aqueles que experimentaram esse efeito se encontram, no
(1) Giuseppe Balsamo Caghostro (1743-1795). ocultista italiano, alquimista e curandeiro, charlatdo segundo fundo, ofendidos e nao sabemexprimir senao por meio de mil grosserias sua
.

uns, mesire segundo outros (NT).

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independéncia que jJulgam ameacada. Sdo necessdrias geracoes inteiras para 103 — Da MUSICA ALEMA
inventar uma convengao cortés do reconhecimento; e s6 muito tarde é que Se a musica alema de hoje 6, mais que qualquer outra, a musica da
chega 0 momento em que uma espécie de espirito e de genialidade penetra Europa, € porque é a Unica que exprime as mudangas que a Revolugao
o reconhecimento. Entaéo alguém recebe em abundancia os agradecimentos, produziu na Europa: s6 a miisica alema sabe exprimir os movimentosdas
nao somente pelo bem que ele proprio fez, mas pelo tesouro de coisas massas populares, essa imensa confusdo artificial que nem sequer tem
sublimes e excelentes que seus predecessores acumularam. necessidade de ser muito barulhenta para produzir seu efeito — enquanto
que a Opera italiana, por exemplo, conhece apenas os coros de criados ou
101 ~ VoLTAIRE de soldados, mas nado tem “povo”’.
Onde quer que houvesse umacorte, foi ela que ditou a regra da bela Deve-se acrescentar que, em toda miisica alema,se percebe um profundo
linguagem e, por isso mesmo, também regrasde estilo para todos aqueles citime burgués de tudo 0 que é nobreza, sobretudodoespirito e da elegdncia,
que escreviam. Masa linguagem dascortes é aquela do cortes4o, que ndo enquanto expressdes de uma sociedade de corte e cavalheiresca, antiga
tem profissGo e que, mesmo falando de temascientificos, se profbe toda e segura de si propria. Nao é a musica desse “Sdnger” de Goethe, dessa
expressao técnica porque cheira a profissional; é por isso que a expressdo misica cantada diante da porta e que agrada também “nasala”, sobretudo
técnica e tudo aquilo que revela o especialista, passa por umatara do estilo ao rei: nao se trata mais de “cavaleiros que olhamas coisas de frente”, nem
em todos os paises onde reinava uma cultura de corte. Agora que todas as de “belas damas que abaixamos olhos”.
cortes nao séo mais que caricaturas do passado, fica-se surpreso ao ver A propria gracga nao entra na musica alema sem veleidades de
© proprio Voltaire tao incrivelmente seco e duro (por exemplo, em seu remorsos; s6 a partir da beleza, irma rustica da graga, € que 0 alemao
Juizo sobre estilistas como Fontenelle e Montesquieu); — é que estamos comega a sentir-se bem — e, a partir de entdo, a elevar-se cada vez mais
totalmente emancipados do gosto das cortes, ao passo que Voltaire o havia até essa “sublimidade” entusiasta, sébia, muitas vezes com patas de urso,
levado a perfeicdo! a sublimidade de um Beethoven. Se alguém quiser imaginar 0 homem
dessa musica, pois bem, que imagine precisamente Beethoven, tal como
102 — UMA PALAVRAPARA OS FILOSOFOS apareceu ao lado de Goethe, por exemplo, quando doencontrode Teplitz™:
HA livros tao preciosos e tao reais que gerac6es de sdbios se revelam como a semibarbarie ao lado da civilizagéo, como o povo ao lado da
liteis se conseguem com seu esfor¢co salvar o texto e 0 sentido — e a nobreza, como o bonachao ao lodo do homem bom, e mais do que “bom”,
comoofantasista ao lado doartista, como o homem que tem necessidade
i
filologia existe para reforgar incessantemente essa crenca. Essa ciéncia
pressupOe que existem também homens raros (embora nao sejam vistos de consolacdo ao lado de quem é consolado, como o exagerador e 0
imediatamente) que sabem servir-se de livros téo preciosos: — sio sem desconfiado ao lado dojusto, como 0 queixoso e 0 carrasco de si proprio,
duvida aqueles que escrevem ou sdo capazes de escrever semelhantes como 0estatico insensato, o infeliz beato, o candido e desmedido, como
livros. Gostaria de dizer que a existéncia dos filélogos implica uma nobre o homem pretensioso e pesado — e em tudo e por tudo, como o homem
cren¢a — a cren¢a que, em beneficio de alguns homens raros que sempre “que nado se domina™: foi assim que 0 proprio Goethe o viu e o designou,
“vao surgir” e que nunca est4o presentes, uma grande parte de trabalho o alemao de excegdo para quem aindanao se encontrou musica! — Que se
penoso e muitas vezes bastante sujo deve ser feito de antemio: trata-se de considere, para terminar, se nao se deve entender esse desprezo sempre
uma tarefa “in usum delphinorum””’. crescente pela melodia e esse enfraquecimentodo sentido melddicoentre
(1) Expressaolatina que significa “para uso dos delfins. em proveito dos delfins” (NT). (2) Localidade de curas termais da Boémia. onde Beethoven e Goethe se encontraram em 1812 (NT).

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os alemaes como uma indelicadeza democratica e um efeito posterior —Pois bem! Observo agora de novoque, entre os antigos admiradores das
da Revolugao. De fato, a melodia manifesta um prazer tao franco e uma chancelarias, se propaga uma necessidade andloga de nobreza na entonagao
tamanha hostilidade por tudo 0 que é inacabado, informe e arbitrario, que e que os alemaes comegam a se submeter ao “encanto” de um_ timbre
relembra a antiga ordem das coisas européias com uma forga de sedu¢ao todo particular que poderia se tornar, a longo prazo, um verdadeiro perigo
propria para nos reconduzir a ela. para a lingua alema — porque em vdo se procurariam outras entonagoes tao
horrorosas na Europa. Ter qualquer coisa de irénico, de frio, de indiferente,
104 — Do TIMBRE DA LINGUA ALEMA de descuidado na voz: é 0 que os alemaes consideram agora “distinto” — €
Sabe-se de onde vem o alem&o que se escreve ha alguns séculos. percebo o zelo por essa distingdo na linguagem dos jovens funcionarios,
Os alem&es, com seu respeito por tudo o que vinha da corte, tomaram professores, mulheres e comerciantes; e as préprias meninas ja imitam esse
propositadamente as chancelarias como modelos para tudo o que tinham alemao deoficial.
de escrever e sobretudo na correspondéncia, nosatosoficiais, testamentos, Porque foi o oficial, o oficial prussiano, que inventou essa maneira de
etc. Escrever em estilo de chancelaria era escrever conforme o estilo de falar. Esse oficial possui, como militar e profissional, o admirdveltato, a
corte e do governo — era algo de nobre que se distinguia do alemao da modéstia, que todos os alemdes (inclufdos o professor e 0 musico) poderiam
cidade onde se vivia. Pouco a pouco, para ser conseqiiente, acabou-se por tomar como exemplo; mas logo que comega a falar ou a se mover, se torna
falar como se escrevia — assim 0 cidaddo se tornava mais nobre ainda na a figura mais imodesta, a de mais mau gosto na velha Europa — e isso
formacdo dos vocdbulos, na escolha das expressGes e na construg¢ao das certamente sem que se importe! E também sem que esses bons alemaes
frases e, finalmente também no timbre da voz: imitava-se a entoagéo da tenham consciéncia disso, esses bons alemaes que admiram nele o homem
corte quando se falava e essa afetacao acabou por se tornar uma segunda da melhor sociedade, da classe mais distinta e que gostam que ele lhes “dé
natureza. Talvez nunca se tenha passado nada parecido em qualqueroutra o tom”. E é 0 que ele faz! — E sao logo os suboficiais, os sargentos e os
parte: o predominio do estilo literario sobre a lingua falada: as maneiras cabos que imitam esse tom e o tornam ainda mais grosseiro. Que se ouca
rebuscadas e a afetagdo distinguida de todo um povo, como base de uma os comandos, cujos gritos cercam as cidades alemas, agora que se fazem
lingua, comum a um povo e que nao era mais um dialeto. exercicios diante de todas as portas: que arrogdncia, que autoridadefuriosa,
Acredito que a entoacao da lingua alema, durante e sobretudo na Idade que frieza zombeteira nesses gritos!
Média, foi fundamentalmente camponesa e popular; ela se enobreceu um Os alemaes seriam verdadeiramente um povo musical? — O que ha
pouco no decurso dos Ultimos séculos, sobretudo porque todos se julgavam de certo é que eles se militarizam agora na entonacao de sua lingua: é
obrigadosa imitar tantas entoagées francesas, italianas e espanholas, e isso provavel que treinados como sfo a falar militarmente acabaréo também a
especialmente nos ambientes da nobreza alema (e austriaca) que nao podia escrever militarmente. De fato, o habito de certas entonagdes se enraizam
em absoluto ficar satisfeita com a lingua materna. Mas para Montaigne, e profundamente na carater: ndo tarda muito que se adotam palavras e
particularmente para Racine”, o alemao deve ter tido um timbre de uma construcgdes de frases idiomaticas e, finamente, também as idéias que
vulgaridade insuportavel: mesmo em nossos dias, no meio da massa do concordam com essas entonagdes! Sem dtivida ja se escreve agora como
povo italiano, na boca dos viajantes, a lingua alema guarda sempre sons os militares; ndo leio talvez o suficiente o que se escreve atualmente na
duros € roucos que parecem saidosda floresta ou de moradas enfumagadas Alemanha para sabé-lo. Mas ha uma coisa que sei com toda a certeza:
em regides desprovidas de boa educacao. as manifestacdes publicas alemas que chegam até o estrangeiro nao se
inspiram na misica alema, mas nessa nova forma de uma arrogancia de
(1) Jean-Baptiste Racine (1639-1699). poeta trdgico francés (NT).

112 113
se

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mau gosto. Em quase todos os discursos do primeiro homem de Estado como irrefutdvel. A drvore tem necessidade de tempestades, de dtividas,

alemao, mesmo quandose faz ouvir por meio do porta-voz imperial, ha um de vermes roedores, de hostilidades, a fim de poder manifestar a natureza
sotaque que o ouvido de um estrangeiro repudia com repugnancia; mas os e a forga de seu germe; que se quebre se ndo for suficientemente forte.
alemdes 0 suportam — eles se suportam a si préprios. Mas um germe é sempre destruido — e jamais refutado'” — Depois de ter
assim falado, seu discfpulo exclamou impetuosamente: “Mas eu creio em
105 — Os ALEMAES COMOARTISTAS tua causa e a considero bastante forte para que eu possa dizer contra ela
Se por acaso acontece ao alemao de se apaixonar verdadeiramente (e tudo o que tenho no coracao.” — O inovadorse pos a rir e 0 ameacou com oO
nado, como é€ geralmente o caso, ter apenas a boa vontade da paix4o), ele dedo, acrescentando: “Essa espécie de adesdo é a melhor, mas é perigosa,
se comporta em sua paixio como deve e nao ira mais longe. Na verdade, pois nem toda doutrina a suporta.”
serd entao todo desajeitado e esquisito, como se estivesse sem ritmo e sem
melodia e os espectadores ficaraéo impressionados ou enternecidos, nada 107 — NOSSA ULTIMA GRATIDAO PARA COM A ARTE
mais: — a menos que ele nado se eleve ao sublime e ao encanto de que sao Se nao tivéssemos aprovadoas artes e nao tivéssemos inventado essa
capazescertas paixGes; nesse caso, 0 alemAose torna realmente belo! espécie de culto do nao-verdadeiro, a compreensdo da universalidade do
O pressentimento da altura a partir da qual a beleza comega a espalhar nao-verdadeiro e da mentira que ora nos proporciona a ciéncia — essa
seus encantos, mesmo sobre os alemaes, impele os artistas germanicos a compreensao da ilusdo e do erro como condigées do mundo intelectual
elevar-se até os delirios da paixdo: €, portanto, um desejo profundoe real — naoseria em absoluto suportavel. A probidade teria por conseqiiéncia o
de sobrepujar, ao menos com o olhar, as feitiras e os modos desajeitados desgosto e 0 suicidio. Ora, 4 nossa probidade se opde um poder contrario
— para alcancar um mundo melhor, mais leve, mais meridional, mais que nos ajuda a escapar de semelhantes conseqtiéncias: a arte. como
ensolarado. E é assim que suas cdibras nfo sd0 muitas vezes senao consentimentoa ilusio. Nem sempre impedimosnossosolhos a arredondar
indicios de suas aspiracdes a danca: pobres ursos cuja alma € perseguida e inventar uma finalidade: entéo nado é mais a eterna imperfeigdo que
por ninfas e silvanos escondidos — e as vezes também por divindades levamos pelo rio do devir — entéo imaginamos levar uma deusa e esse
superiores também! servi¢o nos torna orguthosose infantis.
Enquanto fendmenoestético, a existéncia nos parece sempre suportdvel
106 — A MUSICA QUE INTERCEDE e, por meio da arte. nos demos os olhos e as mdos, sobretudo a boa
“Estou ansioso por encontrar um mestre na arte dos sons”, diz um consciéncia, para poder crer, por nds mesmos, em semelhante fendmeno.
inovador a seu discfpulo, “wa mestre que fosse capaz de apreender E preciso de vez em quando descansarmos de nés proprios, olhando-
minhas idéias e traduzi-las em seguida em sua linguagem: desse modo eu nos do alto, com umadistancia artistica. para rir, para chorar sobre nos:
atingiria melhor os ouvidos eo coracdo dos homens. Comos sons se pode é preciso descobrirmos o herdi e também o louco que se escondem em
chegar a seduzir os homens e levd-los a aceitar todos os erros e todas as nossa paixdo pelo conhecimento; é preciso aqui e acold sermosfelizes com
verdades: quem, portanto, iria refutar um som?” — “Gostarias entdo de nossa loucura, para podermos continuar felizes com nossa sabedoria. E
ser considerado comoirrefutavel?’, perguntou-lhe o discipulo. O inovador € precisamente porque somos no fundo homens pesados e sérios, ¢ mais
respondeu: “Gostaria que o germe se tornasse arvore. Para que uma ainda pesos que homens, que nada nos faz mais bem que o capuz dos
doutrina se torne drvore, é necessdrio que se acredite nela durante um loucos: temos necessidade dele diante de nés mesmos — temos necessidade
certo tempo: para que se acredite nela, é necessdrio que seja considerada de toda arte petulante, flutuante, dangante, zombeteira, infantil e bem-

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Colecao Grandes Obras do Pensamento Universal

aventurada para néo perder essa liberdade que nos coloca acima das coisas
e que nosso ideal exige de nés. Seria para n6és um recuo cairf inteiramente
na moral, precisamente com nossa probidade irritavel e, por causa das
exigéncias muito severas que nisso temos por nés mesmos, acabar por
nos tornarmos nés mesmos monstros e espantalhos de virtude. E preciso
também que possamos nos colocar acima da moral: e nao somente com a

LIVRO It
inquieta rigidez daquele que receia a todo o instante resvalar e cair, mas
também poderplanar e brincar por cima dela! Comopoderfamospara isso
dispensar a arte e o louco? — E enquanto aindativerem vergonha de vocés
mesmos, em que quer que seja, ndo poderidoser dos nossos!
108 — Luras Novas
Depois de Buda ter morrido, foi mostrada ainda durante séculos sua
sombra numa caverna — uma sombra enorme e aterradora. Deus morreu:
masassim sao feitos os homens que haverd talvez ainda durante milhares
de anos cavernas nas quais se mostrard sua sombra — e nds devemosainda
vencer sua sombra.

109 — Eviremos
Evitemos de pensar que o mundo € umser vivo. Como poderia se
desenvolver? De que deveria se alimentar? Como faria para crescer e
multiplicar-se? Além disso, mal sabemos o que é a matéria organica: e 0
que percebemos de indizivelmente derivado, tardio, raro, ocasional sobre a
crosta da terra, chegarfamos a fazer disso algo de essencial. geral e eterno.
como fazem aqueles que chamam o universo um organismo? E isso que
me causa desgosto. Evitemos até de pensar que o universo € uma maquina:
nao foi certamente construfdo em vista de uma finalidade e. ao empregar a
palavra “maquina”, Ihe prestamos uma honra demasiado grande. Evitemos
de ver em toda parte algo de tio definido como 0 movimento ciclico dos
planetas vizinhos: umolharpara a Via Lactea ja provoca duvidas., leva a crer
que nela ha talvez movimentos muito mais grosseiros e mais contradit6rios
e tambémestrelas cadentes como numa queda em linha reta, etc. A ordem
astral em que vivemos é uma excec4o; essa ordem, da mesma forma que
a duracgio mediocre que é sua condigdo, tornou possivel. por sua vez, a
excecao das excecées: a formagéo daquilo que é organico.

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I

Nietzsche - A Gaia Ciéncia


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seus descendentes com mais felicidade. Muitos desses artigos de fé errados,


A condigaogeral do mundo¢, pelo contrario, desde toda a necessidade,

ge ne
transmitidos por heranga. acabaram por se tornar um tipo de fundo comum
0 caos, nao pela auséncia de uma necessidade, mas no sentido de uma
da espécie humana, por exemplo: que ha coisas durdveis e idénticas, que
falta de ordem, de estrutura, de forma, de beleza, de sabedoria e de outras
existem objetos, matérias, corpos, que uma coisa é 0 que parece ser, que

ce
categorias estéticas humanas. Ao juizo de nossa razao, os lances de dados
nossa vontade é livre, que aquilo que é bom para alguns é bom em si.
infelizes sao a regra geral; as excecdes nao formam o objetivo secreto € todo
S6 muito tardiamente € que apareceram aqueles que negaram ou puseram
o mecanismorepete eternamenteseuestribilho sem nunca produzir melodia
em duvida esse género de proposigdes — 56 muito tardiamente surgiu a
— e, finalmente, a expressao “lances de dados infelizes” comporta em si
verdade, essa forma menoseficaz do conhecimento.
propria uma humanizag4o que contém uma censura. Mas como podemos
Masndose podia viver com essa verdade, uma vez que nosso organismo
nos permitir censurar ou elogiar 0 universo? Evitemos de recriminar sua
estava constituido para contradizé-la; todas as suas fung6es superiores, todas
dureza e a falta de razio ou o contrario. Nao é perfeito, nem belo, nem
as percep¢des dos sentidos e todas as espécies de sensac6es trabalhavam
nobre e nao quer transformar-se em nada disso, nao tende em absoluto a
baseadas nos antigos erros fundamentais que haviam assimilado. Mais
imitar 0 homem! Nao é tocado por nenhum de nossos juizos estéticos e
ainda: essas proposicées se tornaram mesmo, nos limites do conhecimento,
morais! Nao possui tampoucoinstinto de conservagao e, de uma maneira
normas segundo as quais se avaliava o “verdadeiro” e o “nao-verdadeiro
geral, nado possui qualquerinstinto; ignora também todasas leis. Evitemos
— mesmo nos dominios mais distantes da logica pura. Portanto: a forca do
de dizer que hd leis na natureza. Nela sé ha necessidades: ninguem manda, |
conhecimento ndo reside em seu grau de verdade, mas em sua antiguidade,
ninguém obedece, ninguém desobedece. Quando souberem que nao ha
em seu grau de assimilacado, em seu carater de condi¢ao vital.
fins, saber4o igualmente que ndo ha acaso: pois é unicamente sob o prisma
Ondeessas duascoisas, viver e conhecer, pareciam entrar em contradig¢ao,
de um mundodefins que a palavra ‘‘acaso” tem um sentido. Evitemos de
dizer que a morte é 0 oposto da vida. A vida nao passa de umavariedade da
nunca houve luta séria; a negagdo e a divida passavam entao por loucura.
morte e uma variedade muito rara. - Evitemos de pensar que 0 mundocria Esses pensadores de excecdo, comooseleatas, estabeleceram e mantiveram,
eternamente o novo. Nao ha substancias eternamente duraveis; a matéria € apesar disso, as antinomias dos erros naturais, imaginaram que era
possivel viver também essas antinomias: inventaram o sabio, o homem da
um erro semelhante ao deus dos eleatas'’. Mas quando acabaremosde nos
preocupar? Quandotodas essas sombras de Deusnaonosperturbarao mais? imutabilidade, da impessoalidade, da viséo universal, ao mesmo tempo uno
e total, e eles proprios estavam aptos ao conhecimento inverso: acreditavam
Quando teremos despojado completamente a natureza de seus atributos
divinos? Quando haveremos de reencontrar a natureza pura, inocente?
que seu conhecimento era ao mesmo tempo 0 principio da vida.
Quando poderemos nds, homens, tornar a ser natureza? Entretanto, para poder afirmar tudo isso, era necessdario que se
enganassem quanto a seu estado: tiveram de se atribuir impessoalidade e
110 — ORIGEM DO CONHECIMENTO duragéo sem mudanga, desconhecer a esséncia do conhecimento, negar a
Durante muito tempo, muito tempo mesmo, o intelecto nao produziu
forga dos instintos no conhecimento e considerar em geral a razao como uma
senio erros; alguns deles se mostraram titeis para a conservacao da espécie: atividade perfeitamente livre e aut6noma:; recusaram-se a ver que tinham
aquele que caiu neles ou que os recebeu como heranga lutou por si e por chegado a seus principios seja contradizendo as coisas existentes, seja por
necessidade de repouso ou de posse ou de dominio. O desenvolvimento
(1) Eléia era uma colénia da Magna Grécia, situada no sul da Italia. onde floresceu uma célebre escolafilos6fica: mais sutil da probidade e do ceticismo acabou por tornar esses homens
entre seus filésofos mais proeminentes esto Xendfanes. Zenon e Parménides: este, em seu poema “Sobre i
natureza’. descreve o mundo como umbloco unico. sem movimento ¢ sem finalidade. além de invocar um deus
igualmente impossiveis.
que rege tudo e que temas chaves de tudo (NT).

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Sua vida e seu juizo apareceram também como dependentes dos 111 — ORIGEM DA LOGICA
antigos instintos e dos erros fundamentais de toda a vida sensitiva. — Como se formou a l6gica na cabega do homem? Certamente doilogismo,
Esse ceticismo e essa probidade mais sutil se formaram por toda a parte cujo dominio primitivamente deve ter sido imenso. Mas uma multidao de
onde dois principios opostos pareciam aplicdveis & vida porque ambos seres que raciocinava de maneira completamente diversa da nossa deve
concordavam com os erros fundamentais, em toda parte onde era possivel ter desaparecido; isso poderia ser ainda mais verdadeiro do que se pensa!
discutir sobre 0 grau mais ou menos consideravel de utilidade para a Aquele que, por exemplo, nao chegava a descobrir com bastante rapidez as
vida; em toda parte ainda onde novosprincfpios, sem se mostrarem tteis “similitudes” quanto 4 alimentacg4o ou ainda quanto aos animais que eram
a vida, também nao eram prejudiciais a ela, sendo antes manifestagdes de seus inimigos, aquele que classificava com demasiada lentidao ou que
um instinto de jogo intelectual, inocente e alegre como tudo o que é jogo. era muito circunspecto em suaclassificag4o diminufa suas possibilidades
Pouco a pouco o cérebro humano se encheu com semelhantes juizos e de sobrevivéncia mais do que aquele que conclufa imediatamente pela
conviccoes e, nessa aglomerac4o, se produziu uma fermentacao, uma luta identidade com relac4o a essas coisas. Era essa inclinagdo predominante
e um desejo de dominar. que levavaa tratar, desde o inicio, as coisas semelhantes como se fossem
Ndo somente a utilidade e o prazer, mas também toda espécie de idénticas — umainclinagdo ilégica, contudo, porque em si nao ha nada de
instinto, tomaram parte na luta pela “verdade”; o embate intelectual se idéntico — que por primeiro criou o fundamento da légica.
tornou uma ocupa¢4o, im fascinio, uma vocag40, uma dignidade: — 0 Do mesmo modo, para que se formasse o conceito de substancia,
conhecimento e a aspiracéo ao verdadeiro tomaram lugar finalmente indispensdvel para a légica — ainda que estritamente falando nada de
como uma necessidade no meio das outras necessidades. A partir de real lhe correspondesse — foi necess4rio que nao se visse nem se sentisse
entao nao somente a fé e a convicc4o, mas também o exame, a negacao, durante muito tempo o que ha de mutavel nas coisas; os seres que nado
a desconfianga, a contradi¢4o se tornaram uma forca; todos os “maus” viam com exatidéo tinham uma vantagem sobre aqueles que percebiam as
instintos foram subordinados ao conhecimento e postos a seu servico,foi “flutuacgdes” de todasas coisas. Em si, toda a prudéncia em tirar conclusdes,
dado a eles o brilho do permitido, do venerado, do util e, finalmente, o toda tendéncia cética jA constituem um grave perigo para a vida. Nenhum
aspecto e a inocéncia do bem. ser vivo se teria conservado, se a inclinagAo oposta, a inclinagdo de afirmar
Oconhecimentosetornou, desde entao, umaparte da prépria vidae, como antes que suspender 0 juizo, de se enganar e fantasiar antes que esperar,
vida, uma forga que foi crescendo sem parar: até que enfim o conhecimento de aprovar antes que negar, de julgar antes que ser justo, nao se tivesse
e esses antigos erros fundamentais se chocaram reciprocamente, uns e desenvolvido de uma forma extremamente intensa. — A seqiiéncia dos
outros como vida, como forga dentro do mesmo individuo. pensamentos e das deducgées légicas, em nosso cérebro atual, responde a
O pensador: ai estao agora o ser ou 0 instinto de verdade e esses erros um processo, a uma luta de instintos, em si deveras ildgicos e injustos;
que conservam a vida entregando-se ao primeiro combate, depois que o s6 percebemos geralmente o resultado da luta: de tal modo esse antigo
instinto de verdade, também ele, se afirmou como uma for¢a que conserva mecanismo funciona agora em nods rapidamente e escondido.
a vida. Em vista da importancia dessa luta, todo o resto é indiferente: ela
enuncia a ultima pergunta sobre a condig&o da vida e faz a primeira tentativa 112 — Causa E EFEITO
para lhe responder com a experiéncia. Chamamos“explicag4o”o que nos distingue dos graus de conhecimento
Até que ponto a verdade suporta a assimilacao? — esta é a pergunta, esta e de ciéncia mais antigos, mas isso nado passa de “‘descrigéo”. Sabemos
é a experiéncia a serfeita. descrever melhor — explicamos igualmente pouco como nossos

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predecessores. Descobrimos sucessdes multiplas nos pontos em que o cientifico e se disciplinam reciprocamente: agiram como venenos. Veja-
homemingénuoe osabiode civilizagdes mais antigas s6 viam duascoisas: se, por exemplo, o instinto da duvida, o instinto da negagdo, 0 instinto de
comose diz geralmente, a “causa” e 0 “efeito”; aperfeigoamos a imagem temporizacao, o instinto colecionadore o instinto de dissolugao. Tiveram
do devir, mas néo fomos além dessa imagem. A seqiiéncia das “causas” se de ser sacrificadas hecatombes de homens antes que esses instintos
apresenta em todos os casos mais completa diante de nés; deduzimos: é aprendessem a compreendersua justaposic¢ao e se sentissem reunidos como
preciso que esta ou aquela coisa tenha sido precedida para que outra se siga funcgdes de uma mesmaforca organizante num s6 homem! E quao longe
— mas nao compreendemosnada. estamos ainda de ver juntar-se ao pensamento cientifico as faculdades
A qualidade, por exemplo, em cada fendmeno quimico, aparece antes artisticas e a sabedoria pratica da vida, de ver formar-se um sistema organico _
como depois qual um “milagre”, do mesmo modo que todo movimento; superior em relacg4o ao qual o sdbio, o médico, 0 artista e o legislador, como
ninguém “explicou” ainda o choque. De resto, como poderfamos explica- os conhecemos agora, aparegam comoinsuficientes antigtiidades!
lo! S6 operamos com coisas que ndo existem, com linhas, superficies,
corpos, dtomos, tempos divisiveis, espagos divisiveis — como poderia 114 — LiMITEs DO DOMINIO MORAL
uma interpretagdo ser possivel se, de cada coisa, fazemos primeiramente Construfmos imediatamente a nova imagem que vemos com a ajuda de
uma umagem a nossa imagem? Basta considerar a ciéncia como uma nossas velhas experiéncias conforme o grau de nossa probidade e de nossa
humanizagdo das coisas téo fiel quanto possivel; aprendemos a ‘nos eqiiidade. Mesmo no dominio da percepgao dos sentidos, nado ha outras
descrever a nds mesmos cada vez mais exatamente, descrevendo as coisas experiéncias vividas sendo morais.
e sua sucessao. Causa e efeito: trata-se de uma dualidade que decerto
nunca provavelmente existiraé — na realidade, temos diante de nos uma 115 — Os QUATRO ERROS
continuidade de que isolamos algumas partes; do mesmo modo que nunca O homem foi educado por seus erros: em primeiro lugar, ele nunca
percebemos um movimento senfo como uma série de pontos, isolado; na se viu sendo incompletamente; em segundo lugar, atribuiu-se qualidades
realidade, nado o vemos, portanto, nds o deduzimos. imagindarias; em terceiro, sentiu-se numa relacdo hierarquica falsa diante
A rapidez com que se fazem notar certos efeitos nos induz em erro; dos animais e da natureza; em quarto lugar, nunca deixou de inventar tabuas
mas essa rapidez sd existe para nds. Num segundo, ha umainfinidade de do bem sempre novas, considerando-as durante certo tempo como eternas e
fendmenos que nos escapam. Umainteligéncia que visse causa e efeito absolutas, de tal maneira que ora tal instinto humanooratal outro ocupava
como uma continuidade e nao, 4 nossa maneira, como um retalhamento oO primeiro lugar, enobrecido em conseqtiéncia dessa apreciagao. Terminar
arbitrario, a inteligéncia que visse a onda dos acontecimentos — negaria a com esses quatro erros seria acabar com as nogGes de humanidade e de
idéia de causae de efeito e de toda determinagao. “dignidade do homem”.

113 ~ PARA A CIENCIA DOS VENENOS 116 — INSTINTO DE REBANHO


Ha tantas coisas a reunir para que possa se formar um pensamento Em toda parte onde encontramos uma moral, encontramos uma
filos6fico: e todas as forgas que para isso sdo necessdrias tiveram de avaliagao e uma hierarquia das acGes e dos instintos humanos. Essas
ser inventadas, exercidas e sustentadas separadamente! Isoladas, elas avaliagGes e essas classificagGes sio sempre a expressdo das necessidades
produziram muitas vezes um efeito totalmente diferente daquele que de uma comunidade ou de um rebanho. O que. em primeiro lugar, [hes
produzem agora, quando se restringem nos limites do pensamento convém — e também em segundo e em terceiro lugares — é também a

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Nietzsche - A Gaia Ciéncia
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medidasuperior para 0 valor de todos os individuos. Pela moral oindividue 118 — BENEVOLENCIA
é instrufdo a ser fungdo do rebanhoe a nao se atribuir valor sendo como E justo que umacélula se transforme para se tornar fungao de uma célula
fungao. As condig6es para a manutengdo de uma comunidade, sendo muito mais forte? Se nao puder fazer de outra maneira? E justo gue uma célula
diferentes de uma comunidade para outra, dai resultam morais muito mais forte assimile a mais fraca? Se ela também nao puder fazer de outra
diferentes: e, com relagaoas transformagGes essenciais dos rebanhose das maneira? Isso é necessario que 0 faga. porque aspira a uma compensagao
comunidades, Estados e sociedades que podem surgir, pode-se profetizar. abundante e quer se regenerar. E preciso mesmo distinguir em matéria de
terfio ainda morais muito divergentes. A moralidade é 0 instinto do rebanho benevoléncia: o instinto de apropriagdo e o instinto de submissao conforme
no individuo. sio o mais forte ou o mais fraco que demonstram benevoléncia. O prazer e
a ambicAose retinem no mais forte que quer transformar qualquer coisa em
117 — REMoRSO DE REBANHO umade suas fung6es: 0 prazer e 0 desejo de ser ambicionado, no mais fraco,
Nas épocas mais remotas da humanidade e durante o perfodo mais que gostaria de se tornar funcdo. — A piedade é essencialmente a primeira
longo, houve um remorso bem diferente daquele de hoje. Nos dias de hoje coisa, uma emogio agradavel do instinto de assimilagdo que desperta o
o homem sé se sente responsavel daquilo que quer e do que faz, e o orgulho aspecto do mais fraco: de resto, “forte” e “fraco” sAo conceitos relativos.
s6 deriva daquilo que tem em si: todos os nossos juristas partem desse
sentimento de dignidade e de prazer proprio do individuo, comose a fonte 119 — NADA DE ALTRUISMO
do direito tivesse jorrado disso desde sempre. Observo em muitos seres uma extrema propensdo a querer ser fun¢do:
Ora, durante o perfodo mais longo da humanidade. nado houve nada tém o faro mais sutil para as posigdes em que s4o precisamente eles que
mais terrivel do que sentir-se isolado. Ser s6, sentir como um isolado, nao podem ser fungao e se empenham emocupa-las. Certas mulheres fazem
obedecer, nado dominar, ser um individuo — nao era entaéo um prazer, mas parte desses seres quandose identificam com a fungao de um homem. uma
uma punicao: estava-se condenadoaser “individuo”. fungdo mal desenvolvida. tornando-se assim sua politica, sua bolsa ou sua
A liberdade de pensar era considerada como 0 desprazer por exceléncia. sociabilidade. Esses seres se conservam melhor quandose implantam num
Enquanto nos sentimos a lei e a ordem como uma coagado e um prejuizo, organismoestranho; se o néo conseguem., se irritam, se azedam e acabam
outrora se considerava o egofsmo como uma coisa penosa, como um porse devorara si préprios.
verdadeiro mal.
Ser si mesmo, avaliar-se a si mesmo de acordo com suas proprias 120 — SatdE DA ALMA
medidas e seus proprios pesos — era coisa que passava por inconveniente. A célebre forma de medicina moral (da qual Ariston de Quios''' é 0
Uma inclinagaéo demonstrada nesse sentido teria passado por loucura: pois autor), “A virtude é a sade da alma”, deveria, para que possaser utilizada.
toda miséria e todo temor estavam ligados a solidado. ser pelo menos transformada assim: “Tua virtude é a satide de tua alma.”
O “livre-arbitrio” era muito proximo da ma consciéncia: quanto mais Porque em si nao existe saude ec todas as tentativas para dar esse nome
se agia de forma dependente, mais o instinto de rebanho, e nado o sentido a qualquer coisa malograram miseravelmente. Importa conhecer tua
pessoal, se manifestava na ag4o, mais 0 individuo se considerava moral. finalidade, teu horizonte, tuas forgas. teus impulsos, teus erros e sobretudo
Tudo 0 que prejudicava o rebanho, quer o individuo o tivesse querido ou 0 ideal e os fantasmasde tua alma para determinar o que significa a satide,
nao, lhe causava entaéo remorsos — e néo somente a ele, mas também a seu mesmoparateu corpo.
vizinho ou mesmoa todo o rebanho! — Af esta o que mais desaprendemos.
(1) Ariston de Quios isée. HW a.C.). discipulo do estoico Zenon (NT).

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Coleg&o Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

Existem, portanto, inimeras saides do corpo; e quanto mais se Séneca"” e Epicteto'”’, experimentamos uma agradavel superioridade com
permitir ao individuo particular e incomparavel de levantar a cabeca, uma multidao de pensamentos e de segundas intengdes e julgamos ouvir
mais se desaprenderé o dogma da “igualdade dos homens”, mais falar umacriangadiante de um velho ou uma jovem bela e entusiasta diante
necessdrio serd que nossos médicos percam a nogéo de uma saide de La Rochefoucauld®’: conhecemos melhor o que é a virtude! Mas, no
normal, de uma dieta normal, do curso normal da doenga. final das contas, aplicamos também esse ceticismo aos estados de alma
E entdo somente se podera talvez refletir na satide e na doenca da e aos fendmenosreligiosos, como 0 pecado, o arrependimento, a graca,
alma e colocara virtudeparticular de cada um em suasatide: a satide da a santificacdo, e deixamos o verme roer tao profundamente que agora,
alma poderia parecer num o contrério da satide do outro. Finalmente, na leitura dos livros cristéos, experimentamos 0 mesmosentimento de
permanece aberta a grande questéo de saber se podemos dispensar sutil superioridade e de clarividéncia: — conhecemos também melhor os
a doen¢a, mesmo para desenvolver nossa virtude e se nossa sede de sentimentos religiosos! E é tempo de conhecé-los bem e de descrevé-los
conhecimento, de conhecimento de si em particular, néo tem tanta bem, porque osfiéis da antiga fé tendem também a desaparecer: — salvemos
necessidade de nossa alma doente como de nossa alma saudavel: em pelo menos sua imagem e seu tipo em proveito do conhecimento.
resumo, se somente a vontade de satide nado é um preconceito, uma
covardia e talvez um resto da barbdrie mais sutil, do espirito retrégrado 123 — O CONHECIMENTO E& MAIS QUE UM MEIO
mais refinado. Mesmosem essa-nova paixdo — entendo a paixéo do conhecimento — a
ciéncia faria progressos: até o presente a ciéncia nao teve necessidade dela
121 — A vipa NAO E UM ARGUMENTO para isso. O crédito de que a ciéncia se beneficia, 0 preconceito favoravel
Arranjamos para nosso uso um mundo em que possamos viver — que ja reina em nossos Estados (antigamente reinava na Igreja) repousa,
admitindo a existéncia de corpos,de linhas, de superficies, de causas e de no fundo, no fato de que essa paixAoirresistivel ndo se revelou nela sendo
efeitos, do movimento e do repouso, da forma e de seu contetido: sem esses raramente e que a ciéncia nado é considerada precisamente uma paixdo, mas
artigos de fé, ninguém suportaria viver! muito mais uma condi¢fo e um “ethos”. Sim, as vezes basta somente
Masisso nao prova nada em favordesses artigos. © amor-prazer do conhecimento (curiosidade), basta o amor-vaidade, 0
A vida nao é um argumento; entre as condicdes da vida se poderia habito da ciéncia com a segundaintencao de honras e de seguranga material,
encontrar 0 erro. basta mesmopara muitos nao saber o que fazer do tempo que perdem e que
empregam em ler, colecionar, classificar, observar, relatar; sua “‘inclinac4o
122 — O CETICISMO MORAL NO CRISTIANISMO cientifica” ndo é outra coisa sendo aborrecimento. O papa Ledo X (no
O préprio cristianismo contribuiu amplamente para o racionalismo: Breve a Beroaldo)*' cantou os louvores da ciéncia: ele a designava como 0
ensinou o ceticismo moral com muita energia e eficdcia, acusando e
espalhando a amargura, mas com umapaciéncia e umasutileza infatigaveis:
() Lucius Annaeus Seneca (4 a.C.-65 d. C.), filésofolatino, foi professor de Nero, Entre suas muitas obras. De
aniquilou em cada individuo a fé em sua “virtude”; fez desaparecer para vita beata (A vida feliz) ja foi publicada nesta colegéo da Editora Escala (NT).
(2) Epicteto (50-130), natural da Frigia (hoje parte da Turquia). foi levado a Roma comoescravo: de suas obras,
sempre daterra esses grandes “virtuosos” que abundavam naantiguidade, restam-nos Didlogos e um Manual de aforismas ¢ pensamentos (NT).
esses homens populares que desfilavam sua fé em sua perfeigdo com uma (3) Francois de La Rochefoucauld (1613-1680), escritor francés: sua obra de maior sucesso foi Réflexions ow
sentences et maximes morules (
NT).
dignidade de toureadores. Se lermos agora, educados como somos nessa ® Termo rego que significa “moral” (NT).
( ) an X (1475-1521) foi papa de 1513 a 1521: foi o ultimo dos papas que incentivou aberta e quase
escola crista do ceticismo, os livros de moral dos antigos, por exemplo Primordialmente as artes. cercando-se dos maiores nomes europeus dasletras e das belas artes, Encarregou seu

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Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

mais belo ornamento e a mais bela razao de orgulho de nossa vida, como 125 — O INSENSATO
uma nobre ocupaciio nafelicidade e na desgraca. Escrevia, para terminar: Nunca ouviram falar desse louco que acendia umalanterna em pleno
“Sem ela, toda empresa humanaestaria sem ponto de apoio — pois mesmo dia e desatava a correr pela praca publica gritando sem cessar: “Procuro
com ela tudo é bastante mutdvel e incerto!” Mas esse papa, passavelmente Deus! Procuro Deus\” — Comohavia ali muitos daqueles que nao acreditam
cético, cala, como todos os panegiristas eclesidsticos, seu juizo definitivo em Deus,seu grito provocou grande riso. “Estava perdido?” — dizia um.
sobre a ciéncia. Talvez se possa observar nestas palavras que coloca a “Sera que se extraviou como umacrianga?” — perguntava o outro. “Sera
ciéncia acimada arte, o que é bastante singular para um amigodasartes, que se escondeu?” “Tem medo de nés?” “Embarcou? Emigrou?” — Assim
mas se trata somente de uma amabilidade se nao fala daquilo que coloca, gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou no meio deles e
também ele, acima da ciéncia: a “verdade revelada”, a “eterna salvagado da trespassou-os com 0 olhar.
alma” — quelhe s4o, ao lado disso, o ornamento, 0 orgulho, o divertimento, “Para onde foi Deus?’— exclamou — “E 0 que vou dizer. Nos 0 matamos
a seguranga da vida! — vacés e eu! Noés todos, nés somos seus assassinos! Mas como fizemos
“A ciéncia é coisa de segunda categoria, ndo é nada de supremo, de isso? Como conseguimos esvaziar 0 mar? Quem nos deu uma esponja
absoluto, ndo é um objeto digno da paixdo” — este o juizo que ficou no para apagar o horizonte? Que fizemos quando desprendemosesta terra
fundo da almado papa Ledo; é 0 verdadeiro juizo cristo sobre a ciéncia! Na da corrente que a ligava ao sol? Para onde vai agora? Para onde vamos
antiguidade, a dignidadee a legitimidade da ciéncia eram diminufdas pelo nos? Longe de todos os séis? Nao estamos incessantemente caindo? Para
fato de que, mesmoentre os seus mais fervorosos discipulos, a aspiragao diante, para tras, para o lado, para todos os lados? Haverd ainda um
4 virtude aparecia em primeiro lugar e porque se acreditava que se deferia acima e um abaixo? Na estaremos errando como num nada infinito? O
ao conhecimento o maisalto elogio ao glorificd-lo como 0 meio caminho vazio ndo nos persegue com seu hdlito? Nao faz mais frio? Nao véem
para chegarA virtude. E coisa nova na historia que 0 conhecimento queira chegar a noite, sempre mais noite? Ndo sera preciso acender os lampides
ser mais que um meio. antes do meio-dia? Ndo ouvimos nada ainda do barulho que fazem os
+
coveiros que enterram Deus? Ndo sentimos nada ainda da decomposicdo

124 — No HORIZONTEDO INFINITO divina? — Os deuses também se decomp6em! Deus morreu! Deus continua

vow
Deixamosa terra e subimos a bordo! Destruimosa ponte atras de nds morto! E fomos nds que o matamos! Come havemos de nos consolar, nos,
— melhorainda, destrufmosa terra que ficou atras de nds! E agora, pequeno assassinos entre os assassinos! O que o mundo possuiu de mais sagrado
navio, toma cuidado! De teus lados esté o oceano; é verdade que nem e de mais poderoso até hoje sangrou sob nosso punhal — quem nos lavard
sempre bramee As vezes sua toalha se estende como seda e ouro, um sonho desse sangue? Que dgua nos poderd purificar? Que expiacGes, que
de bondade. Mas,virado horas em que reconhecerds queele € infinito e que Jogos sagrados seremos forcados a inventar? A grandeza desse ato ndo
nao existe nada mais terrivel que o infinito. Ah! pobre passaro, tu que te é demasiado grande para nés? Ndo seremos forcados a nos tornarmos
sentiste livre, agora te feres contra as grades dessa gaiola! Desgragado de nods préprios deuses — mesmo que fosse simplesmente para parecermos
ti se fores dominadopelanostalgia da terra e se lamentaresa liberdade que dignos deles? Nunca houve acGo mais grandiosa e aqueles que nascerem
tinhas 14 embaixo — pois agora nao ha mais“terra”! depois de nés pertencerdo, por causa dela, a uma hist6éria mais elevada
do que o foi alguma vez toda essa historia.” O insensato se calou depois de
pronunciarestas palavras e voltou a olhar para seus ouvintes: também eles
secretério particular a publicar obras da latinidade classica, sobretudo as de Tacito; criticado por favorecer a
ciéncia e as artes em detrimento do Evangelho, respondeu com o Breve a Beroaldo; de qualquer modo. este for se calaram e o fitaram com espanto.
mais um dos muitos motivos dados a Lutero para deflagrar a Reformaprotestante (NT).

128 129
oe

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Finalmente jogou a lanterna ao chao, de tal modo que se partiu e sc Mas como durante largo tempo o homem nunca acreditou senéo em
apagou. E entao disse: “Chego cedo demais, meu tempo ainda ndo chegou. pessoas (e nado em substancias, forgas, objetos, etc.), a fé nas causas e nos
Esse acontecimento enormeainda esté a caminho, caminha — e ainda nado efeitos tornou-se para ele uma crenga fundamental de que se serve sempre
chegou aos ouvidos dos homens. O relampagoe o trovdo precisam de que acontece alguma coisa — € isso hoje ainda,instintivamente, como uma
tempo, a luz dos astros precisa de tempo, as agdes precisam de tempo, espécie de atavismo de origem antiga. Os principios “ndo hd efeito sem
mesmo quando foram executadas, para serem vistas e entendidas. Esse ato causa’, “todo efeito € uma nova causa” aparecem como generalizagées
estd ainda mais distante do que o astro mais distante — e, no entanto, foram de principios no sentido mais restrito, comoestes: “onde se agiu, se quis”,
eles que o fizeram!” hed — Conta-se ainda que esse louco entrou nesse mesmo “sé se pode agir sobre seres dotados de vontade”, “ndo se sofre pura
dia em diversas igrejas e entoou seu Requiem aeternam Deo". Expulso ¢ e simplesmente uma causa: agiientar é ter a vontade excitada” (para a
interrogado,teria respondido inalteravelmente a mesma coisa: “Para que ac4o, para a defesa, a vingang¢a e as represdlias); mas nos temposprimitivos
servem essas igrejas, se ndo sdo os tumulos de Deus?” da humanidadeesses princfpios eram idénticos, os primeiros nao eram a
generalizagao dos segundos, mas os segundos eram interpretagdes dos
126 — EXPLICACOES MiSTICAS primeiros. — Schopenhauer”, ao admitir que tudo aquilo que existe quer,
As explicagées. misticas sio consideradas profundas; na realidade, é colocou no trono uma antiga mitologia; parece nuncater tentado analisar
preciso ainda muito para que cheguem ser superficiais. a vontade porque acreditava, como todos, na simplicidade e na imediatez
do querer: — ora, querer € um mecanismotao exercitado que quase escapa
127 — EFEITO DA MAIS ANTIGA RELIGIOSIDADE ao olho do observador.
O homemirrefletido imagina que s6 a vontade é atuante; querer seria, Contra Schopenhauer, ponho os principios seguintes: em primeiro
segundo ele, uma coisa simples, prevista, indeduzivel, compreensivel em lugar, para que haja vontade, € necessaria uma representacdo de prazer e
si. Esta convencido, quando faz algumacoisa, por exemplo quandodesfere de desprazer; em segundo lugar, que umaviolenta irritagao produza uma
um soco, que é ele que bate e que bateu porque queria bater. Nao vé nisso sensacao de prazer ou de desprazer, isso é uma interpretacdo do intelecto
nenhum problema,pois a sensagdo da vontade \he basta, ndo somente para que, alids, na maioria das vezes opera sem que o saibamos — uma mesma
admitir a causa e 0 efeito, mas também para acreditar que compreende sua irritagdo pode receber uma interpretagéo de prazer ou de desprazer; em
relacdo. Nao sabe nada do mecanismo da agdo, do centuplicado trabalho terceiro lugar, s6 ha prazer, desprazer e vontade nosseres intelectuais; a
sutil que tem de ser efetuado para que chegue a bater, do mesmo modo enorme maioria dos organismosos ignora.
que nao sabe nada da incapacidade fundamental da vontade para executar
a menorparte desse trabalho. A vontade é para ele uma forga que age de 128 — O VALOR DA ORAGAO
maneira magica: uma fé na vontade como causa de efeitos € uma fé em A ora¢ao foi inventada pelos homens que nunca tiveram pensamentos
forcas que agem por magia. Ora, primitivamente, por toda parte onde o proprios e que nado conhecem ou deixam escapar sem perceber a elevacdo
homem via uma acdo, imaginava uma vontade como causa, imaginava da alma: que fariam noslugares santos e em todasas situag6es importantes
um ser dotado de um querer pessoal que agia nos bastidores — a idéia de da vida que exigem tranqiiilidade e uma espécie de dignidade? Para
mecanica estava muito longe dele. impedir pelo menos que incomodem,a sabedoria de todos os fundadores
(1) Expressdolatina que significa “descanso eterno para Deus”, corruptela da oracioliturgica da Igreja catolica.
de religides, grandes ou pequenos, recomendou a férmula da oracio,
utilizada na encomendagao e no enterro dos mortos: Requiem aeternam dona eo, Domine — descanso eterno
da-Ihe. Senhor (NT). (2) Arthur Schopenhauer(1788-1860). filésofo alemao (NT).

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eee

Nietzsche - A Gaia Ciéncia


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longo trabalho mecanico dos labios, aliadv a um esforgo de memoria


e a duas formas de suicidio, revestindo-as da mais alta dignidade e das mais
uma posicao uniformemente determinada das maos, dos pés € dos olhos! elevadas esperancas e proibindo todas as outras com ameagasterriveis.
Ruminem, portanto, como os habitantes do Tibet, sua inumerdvel “om Mas 0 martirio e o lento aniquilamento do asceta eram permitidos.

mane padme hum’, ou contem nos dedos, como em Benares”, 0 nome do


132 — CONTRA O CRISTIANISMO
deus Ram-Ram-Ram (e assim por diante, com ou sem graga), ou venerem
Vishnu com seus mil nomes, ou mesmo Ald com seus noventa e nove, ou Agora nao sao mais os argumentos, é nosso gosto que decide contra 0
que utilizem moinhos de oragGes ou rosarios — 0 essencial € que com esse cristianismo.
trabalho sejam imobilizados durante certo tempo e thes confira um aspecto
suportavel: sua maneira de orar foi inventada em beneficio dos piedosos 133 - Principio
que conhecem os pensamentose as exaltagdes por experiéncia pessoal. E Uma hipotese inevitavel a que a humanidade é sempre forcada a
mesmoestes tém suas horas de fadiga em que umasérie de palavras e de regressar, acabaporser, a longo prazo, mais poderosa que a fé mais viva
sons veneraveis e uma piedosa mecanica !hes fazem bem. em algumacoisa de falso (por exemplo,a fé crista). A longo prazosignifica
Mas, enquanto esses homens raros — em todas as religides, o homem em cem mil anos.
religioso é uma excecdo — sabem livrar-se de embaracos sozinhos, os
pobres de espirito néo chegam a tanto e proibir-Ihes de ronronar oragoes 134 — Os PESSIMISTAS COMOVITIMAS
seria roubar sua religido, como o protestantismo consegue fazé-lo sempre Quando um profundo desgosto pela vida toma conta, se manifestam
mais. A religifio nao exige deles nada mais que manter-se tranqiiilos, os efeitos do grande erro dietético de que um povo se tornou por muito
inclusive com os olhos, as mos, as pernas e outros érgaos: assim ficam tempo culpado. Assim, o desenvolvimento do budismo (ndo sua origem)
momentaneamente embelezados e — mais semelhantes a homens. € em grande parte devido ao abuso de uma alimentac4o exclusivamente
composta de arroz e ao amolecimento geral que disso resulta. Talvez o
129 — As CONDICOES DE DEuS descontentamento da Europa dos tempos modernos derive do fato de
“O proprio Deus ndo poderia subsistir sem os homens sdbios” — disse nossos antepassados, através de toda a Idade Média, se terem entregues
Lutero e com muita razio: mas “Deus pode ainda menos subsistir sem os a bebida sob a influéncia das preferéncias germanicas: Idade Média, isso
insensatos’’- isso, o bom Lutero, nao o disse. quer dizer intoxicagao da Europa pelo alcool. — O pessimismo alemao é
essencialmente uma languidez hibernal, sem esquecer o ar viciado e o
130 — UMA DECISAO PERIGOSA veneno espalhado pelos fogGes nas casas germanicas.
A decisio crista de achar o mundo feio e mau tornou o mundofeio e mau.
135 — ORIGEM DO PECADO
131 — CRISTIANISMO E SUICIDIO O pecado, como é considerado hoje, em toda parte onde reina o
Na época de seu surgimento, 0 cristianismo se serviu do enorme cristianismo ou algumavez reinou, 0 pecado é um sentimento judeu e uma
desejo de suicidio para fazer dele a alavanca de seu poder: s6 conservou invengao judia; é o pano de fundo de toda a moralidade crista, e desse
ponto de vista o cristianismo procurou “judaizar” o mundo inteiro. Até
(1) “Salve. preciosa flor de l6tus!” que ponto o conseguiu na Europa, é 0 que se sente sobretudo pelo grau de
(2) Cidade da India, grande centroreligioso (NT).
(3) Uma das maiores divindades do hinduismo: compée. juntamente com Brahma e€ Shiva. a trindade divina
estranheza que a antiguidade grega— mundoisento do sentimento do pecado
hindu (NT).

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— conserva sempre para nossa sensibilidade, apesar de toda a boa vontade 136 — O POVO ELEITO
que um grande numero de geragoes e de individuos notaveis empregaram Os judeus, que tém 0 sentimento de ser 0 povoeleito entre os povos e
para se aproximar dele e 0 assimilar. “Deus s6 perdoa se realmente tu isso porque sao © génio moral entre os povos (gracas a sua faculdade de
te arrependeres’” — semelhantes palavras provocariam no grego 0 risoea desprezar mais profundamente 0 homem em si, faculdade desenvolvida
célera; ele exclamaria: “Esses sGo sentimentos de escravo!” O cristianismo neles mais que em qualquer outro povo), os judeus sentem em seu santo
pressupde um Deus poderoso, de um poder supremo e, no entanto, um e divino monarca um prazer andlogo aquele que a nobreza francesa sentia
Deus vingador. diante de Luis XIV. Essa nobreza, deixando-se privar de todo 0 seu poder
Seu poderé tio grande que geralmente no se pode causar-lhe prejuizo, e de sua soberania, se havia tornado desprezivel: para ndo sentir isso,
salvo no tocante 4 honra. Todo pecado é umafalta de respeito, crime de para poder esquecé-lo, tinha necessidade de um esplendor real, de uma
lesa-majestade divina — e nada mais! Contrigao, desonra, humilhagao — autoridade real, de um poder absoluto e sem igual, ao qual somente a
essas sAo as primeiras e Ultimas condigdes a que se prende sua graca: ele nobreza tinha acesso. Elevando-se, conforme esse privilégio, até a altura
querser restabelecido em suahonradivina! da corte, vendodai tudo abaixo dela com desprezo, acabava finalmente por
Se, por outro lado, o pecado causa um prejuizo, se implanta com ele esquecera irritagdo de sua consciéncia. Era assim que se edificava a torre
um mal profundo e crescente que afeta e sufoca um homem apos outro, do poder real sempre mais em direg&o ao céu, empregandonela as ultimas
como uma doenga — isso preocupa pouco esse oriental ciumento de sua pedras de seu prdprio poder.
honra, 14 no alto do céu; 0 pecado é umafalta contra ele e nao contra a
humanidade! — Aquele a quem é concedida sua graga recebe também essa 137 — PARA FALAR POR IMAGENS
despreocupagao pelas conseqiiéncias naturais do pecado. Um Jesus Cristo s6 era possivel numa paisagem judaica — quero dizer
Deus e a humanidade sao imaginadas aqui tao separados, de tal modo numa paisagem sobre a qual estava sempre suspensa a sombria e sublima
em oposigéo um com a outra que, no fundo, é praticamente impossivel nuvem de tempestade de um Jeova em célera.
pecar contra esta tiltima — toda ag&o deve ser sempre considerada do ponto S6 ali era possivel considerar a passagem rara e repentina de um Unico
de vista de suas conseqiténcias sobrenaturais, sem se preocupar com as raio de sol como um milagre do amor, como um raio da “graca” mais
conseqiiéncias naturais: assim 0 quer 0 sentimento judeu para o qual tudo imediata nesse pais. S6 14 Cristo podia sonhar seu arco-fris e sua escada
o queé natural é indigno em si. celestial pela qual Deus descia para os homens; em qualquer outra parte o
’ Os gregos, ao contrério, admitiam de bom gradoa idéia que 0 sacrilégio bom tempo e o sol eram a regra cotidiana.
também podia ter dignidade — mesmo o roubo de Prometeu‘”, mesmo o
massacre do gado como manifestagéo de um citime insensato, caso 138 — O ERRO DE CRISTO
de Ajax’: foi diante da necessidade de imaginar a incorporagao dessa O fundador do cristianismo pensava que nada fazia sofrer mais os
dignidadenosacrilégio que inventaram a tragédia — umaarte e um prazer homens que seus pecados: ~ era um erro, 0 erro daquele que se sente sem
que, apesar dos dons poéticos e de uma inclinagao para o sublime, se pecados, que nado tem experiéncia disso! Assim sua alma se encheu com
mantiveram essencialmente alheios ao judeu. essa maravilhosa piedade por um mal de que seu préprio povo, o inventor
do pecado, sofria raramente como de um grande mal! — Masoscristaos
(1) Na mitologia grega, Prometeu era um semideus que roubou o fogo dos deuses e 0 deu aos homens; foi punido souberam, uma vez a coisa feita, dar raz4o a seu mestre: santificaram seu
por isso por Zeus que 0 acorrentou a uma rocha, exposto aos ataques de uma Aguia que devorava continuamente
seu figado (NT). €1ro para fazer dele uma“verdade’”’.
(2) Herdi grego que desafiou os deuses e investiu contra rebanhosde bois e cabras (NT).

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139 — Cor DAS PAIXOES isso sempre teve necessidade de uma apologia diante de si mesmo e era
Naturezas como a do apéstolo Paulo tém um mauolhar para as paixGes; geralmente esta: “Ndofui eu! Nao fui eu! Mas um deus que agiu por mim\”
s6 véem delas o lado sujo, o que desfigura e destréi os coragdes — sua Foi numaarte maravilhosa, na forga de criar deuses — 0 politefsmo — que
aspiracio ideal seria, portanto, a destruigao das paixdes: para eles, 0 que esse instinto pddese descarregar, se purificar, se aperfeicoar, se enobrecer,
é divino esta completamente desprovido delas. Ao contrario de Paulo e 4
pois primitivamente esse era um instinto vulgar, mediocre, parente da
dos judeus, os gregos levaram sua aspiragao ideal precisamente sobre as teimosia, da desobediéncia e da inveja. Combater esse instinto de um ideal
paix6es; eles as amaram, as elevaram, as douraram e as divinizaram; € pessoal foi antigamente o mandamento de toda moralidade. S6 havia ent3o
evidente que na paix4o se sentiam nao s6 mais felizes, mas ainda mais‘ um modelo: “o homem”- e todos os povos julgavam possuir esse nico e
puros, mais divinos que de costume. — E oscristaos? Queriam nisso tornar- derradeiro modelo.
se judeus? Nao o teriam conseguido? Masacimadesi e fora de si, num distante mundo superior, podia ser
visto um grande numero de modelos: um deus nao era a negacdo nem o
140 — DEMASIADO JUDEU blasfemadorde outro! E foi ai que se permitiu pela primeira vez os individuos,
Se Deus tivesse querido tornar-se um objeto de amor, deveria ter foi ai que foi honrado pela primeira vez o direito dos individuos. Foram
comegado por renunciar a fazer justiga: — um juiz, mesmo clemente, nao inventados deuses, herdis, super-homensde todas as espécies, assim como
é objeto de amor. Para compreender isso, o fundador do cristianismo nao quase homense sub-homens, andes, fadas, centauros, satiros, demdnios e
tinha o senso bastante sutil — era judeu. diabos para justificar o egoismo glorificar o individuo:a liberdade que se
concedia a um deus com relag4o a outros deuses acabou porser conferida a
141 — DEMASIADO ORIENTAL si proprio com relacao asleis, aos costumes e aos vizinhos. O monoteismo,
Como? Um Deus que s6 ama os homens com a condi¢ao de que creiam pelo contrario, essa rigida conseqiiéncia da doutrina de um homem normal
nele e que lanca olhares terriveis e ameagas contra quem nao tem fé nesse — portanto, a fé num deus normal junto do qual nao ha sendo deuses falsos
amor! Como? Um amor com clausulas, tal seria o sentimento de um Deus — for talvez até agora o maior perigo da humanidade; foi ent&o que a
todo-poderoso? Um amorque nem conseguiu tornar-se senhor do ponto de humanidade foi ameagada com a parada prematura que a maiorparte das
honrae da vingan¢airritada? Comotudoisto é oriental! “Se te amo, que tens outras espécies animais, por quanto podemosjulgar, tinha atingido depois de
a ver com isso?” — essa j4 é umacritica suficiente de todo 0 cristianismo. muito tempo; essas espécies animais que acreditam, todas elas, num animal
normal, num ideal de sua espécie e que se identificaram definitivamente
142 — INCENSO com a moralidade dos costumes. No politefsmo se encontrava uma primeira
Buda disse: “Nao lisonjeies teu benfeitor.” Repitam-se estas palavras imagem dolivre pensamento e do pensamento multiplo do homem: a forga
numaigreja crist4: — imediatamente limpam o ar de tudo o que € cristao. de se criar olhos novos e pessoais, olhos sempre mais novos e sempre mais
pessoais, de modo que, s6 para o homem, entre todos os animais, ndo ha
143 — A EXTREMA UTILIDADE DO POLITEISMO horizontes e perspectivas eternas.
Que cada individuo possa criar seu proprio ideal para dele inferir sua
lei, seus prazerese seusdireitos, é 0 que foi considerado, acredito, até agora 144 — GUERRASDE RELIGIAO
como a mais monstruosa de todasas aberragdes humanas, comoa idolatria O maior progresso das massas foi até agora a guerradereligiao, pois é
por exceléncia; com efeito, o reduzido ntimero daqueles que tentaram 4 prova que a Massa comecoua tratar as idéias com respeito. As guerras de

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religido s6 comecam quando, pelas sutis disputas das seitas, a razao geral 147 — PERGUNTA E RESPOSTA
esta afinada a ponto que 0 proprio povose torna sutil, leva pequenas coisas Adivinhem 0 que os povos selvagens passam agora em primeiro lugar
a sério e chega mesmoa admitir que a “salvagdo eterna da alma” depende aos europeus? O Alcool e o cristianismo, os narcéticos da Europa. — E
de pequenas diferengas de idéias. adivinhem 0 que os mata mais depressa? Os narcéticos da Europa.

145 — PERIGO DOS VEGETARIANOS 148 — ONDE NASCEM AS REFORMAS


A enormepredominancia do arroz comoalimentoleva ao uso do 6pio e Na época da grande corrup¢do da Igreja, era na Alemanha que ela
dos narc6ticos, do mesmo modo que a enorme predominancia das batatas estava menos corrompida: foi por isso que a Reforma nasceu nesse pais,
como alimento leva ao uso do dlcool: — mas gragas a uma contrapartida como sinal de uma repugnancia pelo menor grau de corrupcao. De fato,
mais sutil, esse alimento leva também a maneiras de pensar e de sentir que feitas as contas, nenhum povo foi mais cristaéo do que os alemaes do tempo
tém um efeito narcético. Na mesma ordem dasidéias, os promotores das _ de Lutero: sua cultura crista estava prestes a se expandir em cem flores
formas narcéticas de pensar e de sentir, como esses fil6sofos hindus, se espléndidas — faltava apenas mais uma noite; mas essa noite trouxe a
gabam de um regime que gostariam de fazer dele uma lei para as massas, tempestade e pds tudo a perder.
um regime que é puramente vegetariano: procuram assim despertar e
aumentar a necessidade queeles sdo, s6 eles, capazes de satisfazer. 149 — MALOGRO DAS REFORMAS
Se, mesmo em tempos bastante remotos, as tentativas de fundar novas
146 — ESPERANCAS ALEMAS religides na Grécia malograram diversas vezes, isso deve ser creditado
Nao esquecamosque os nomesdos povossao geralmenteinjuriosos. Os como honra a cultura superior dos gregos; isso significa que houve na
tartaros, por exemplo, de acordo com seu nome, sao chamados“os caes”; Grécia, desde muito cedo, uma multidao de individuos diferentes, cujas
foi assim que foram batizados pelos chineses. miultiplas misérias nado podiam ser curadas por umatinica receita de fé e de
Os alemaes — die Deutschen — significava originariamente os esperanca. Pitagoras e Platao, talvez também Empédocles e, muito antes,
“pagdos”: foi assim que os godos, depois de sua conversdo, designaram os entusiastas orficos, procuraram fundar novasreligides; os dois primeiros
a grande massa de seus irmfos de mesma raga ainda nao batizados, possuiam até realmente a alma ¢ o talento dos fundadoresde religides, que
segundo as instrugdes de sua traducdo dos Setenta'’, em que os pagaos nunca nos espantaremosbastante com seu malogro; ora, nado conseguiram
eram designados pela palavra grega que significa “os povos”: consulte-se mais do que reunirseitas.
Ulfilas®. — Seria ainda possivel que os alemaes se sentissem honrados, Toda vez que a reforma de todo um povo nao tem éxito e que somente
apesar de tudo, com um nome que era uma antiga injria, tornando-se o as seitas se sustentam, pode-se concluir que 0 povo ja tem tendéncias
primeiro povo ndo-cristdo da Europa: a quem Schopenhauer imputava a multiplas e comega a se desprender dos grosseiros instintos de rebanho e
honra de ser dotado no mais elevado grau. da moralidade dos costumes: estado transit6rio significativo que se tem o
Assim se ultimaria a obra de Lutero que lhes havia ensinadoa seranti- costume de insultar em nome da decadéncia dos costumes e da corrup¢ado
romanos e a dizer: “Sou assim! Nao posso fazer de outro modo\” quando, pelo contrario, anuncia que 0 ovo vai eclodir e que a casca vai se
romper. Se a reforma de Lutero teve éxito nos paises ndrdicos, trata-se de
um indicio de que o norte da Europatinha ficado atrasado em relacg4o ao
(1) Traducdo da Bfblia, da lingua hebraica para o grego, feita por setenta rabinos judeus residentes no Egito: 0
trabalho foi realizado nos séculos If] e If antes de Cristo (NT). sul e que ainda tinha necessidades bastante uniformes e unicoloridas; e
(2) Ulfilas ou Vulfita (311-383), apdstolo e bispo dos godos: taduziu o Novo Testamento para o goético (NT).

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nao teria havido de modoalgum cristianizagdo da Europa se a civilizagdo 152 — A MAIOR MUDANCA
do velho mundo meridional! nao tivesse sido barbarizada aos poucos por Aluzeascores de todasas coisas se transformaram! Nao compreendemos
uma excessiva adigfo de sangue germanico barbaro, e privada assim de mais muito bem como os antigos sentiam as coisas mais pr6ximas € mais
sua preponderancia. Quanto mais se vé um individuo ou o pensamento banais — por exemplo, o dia e o fato de acordar: como acreditavam nos
de um individuo agir de maneira geral e absoluta, mais € necessdrio que sonhos, a vida no estado de vigilia tinha para eles uma luz diferente. E
a massa sobre a qual ele agiu seja composta de elementos idénticos e igualmente toda a vida com refracdo da morte e de seu significado: nossa
inferiores; os movimentos de oposigdo revelam sempre, pelo contrario, “morte” é uma morte completamente diferente. Todos os acontecimentos
necessidades opostas que exigem tambémsersatisfeitas e se fazer valer. brilhavam com outra cor, pois um deus os irradiava; de igual modotodas
Por outro lado, pode-se sempre concluir por uma verdadeira superioridade as decisdes e todas as previsdes de um distante futuro: porque acreditavam
de cultura quando naturezas poderosas e dominadoras chegam apenas a nos ordculos, nas premonicoes ¢ nas predicdes.
exercer uma influéncia restrita, limitada a seitas: 0 que é igualmente valido A “verdade” era concebida de forma diferente, porque o louco podia
para as diferentes artes e os dominios do conhecimento. Onde se domina, passar outrora por seu porta-voz — 0 que nos faz estremecer ou rir. Toda
existem massas: onde ha massas, hé uma necessidadede escravidio. Onde injustica produzia outra impressdosobre o sentimento, porque se receava a
ha necessidade de escravidio, ha apenas poucos individuos e estes tém vinganga divina e néo somente a desonra e a puni¢aocivil.
contra eles os instintos de rebanho e a consciéncia. O que era a alegria no tempo em que se acreditava no diabo e no
tentador? O que era a paixio quando se via bem de perto os deménios
150 — Para A CRITICA DOS SANTOS a espreita? O que era a filosofia quando a divida era considerada como
Sera, pois, necessdrio, para ter uma virtude, querer possui-la sob sua um dos pecados mais perigosos e, além disso, como uma blasfémia
forma mais brutal? - como a desejavam os santos cristaos, como tinham contra o amor eterno, como uma desconfianga de tudo o que era bom,
necessidade dela. Esses santos nao suportavam a vida a nao ser gracgas a elevado, puro e misericordioso? — Nés demos as coisas uma cor nova ¢
idéia de que 0 aspecto de sua virtude os levaria ao desprezo de si pr6prios. continuamos sem cessar a pintd-las de outra forma — mas que podemos
Uma virtude com semelhantes efeitos a chamo de virtude brutal. até agora contra 0 esplendor do colorido dessa antiga amante! — quero
dizer a antiga humanidade.
151 — Da ORIGEM DAS RELIGIOES
A necessidade metafisica nao é a fonte das religides, como o pretende 153 - “Homo poeta”
Schopenhauer; é apenas seu rebento. Sob o império das idéiasreligiosas “Eu mesmo, que fiz com minhas proprias maos esta tragédia das
ganhou-se 0 habito de conceber um “outro mundo” (de um pré-mundo, tragédias, na medida em queela esta feita, eu que fui o primeiro a dar na
supermundo ou submundo) e a destruicao das ilusGes religiosas deixa a existéncia o né da moral e que o apertei com tanta forga que s6 um deus 0
impresséo de um vazio angustiante e de uma privagdo. — Entaéo renasce poderia desatar — pois assim o queria Horacio!’ — eu mesmo matei agora
desse sentimento um “outro mundo”, mas longe de ser um mundoreligioso, todos os deuses no quarto ato — por moralidade!
nada mais é que um mundo metaffsico. Ora, o que nos tempos primitivos Que deve acontecer agora no quinto ato! — Devo comegar a pensar num
levou a admitir a realidade de um “outro mundo” nao foi um instinto e desenlace c6mico?”
uma necessidade, mas um erro de interpretacdo de certos fendmenos da
natureza, uma perturbacdo dainteligéncia. (1) Expresso latina que significa “o homem poeta” (NT).
(2) Ars Poetica, 191-192. de Quintus Horatius Flaccus (65-8 a.C.), poeta latino (NT).

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154 — A VIDA MAIS OU MENOS PERIGOSA 160 — NAS RELAGOES COM AS VIRTUDES
Vocés ignoram completamente 0 que lhes acontece, correm como Até nasrelagdes com uma virtude se podeser lisonjeiro e sem dignidade.
bébados pela vida e rolam de vez em quando por uma escada abaixo.
Agradecam a embriaguez por nao quebrarem os membros: seus musculos 161 — AOS APAIXONADOS DA EPOCA
estao fatigados e sua cabega esta demasiado atordoada para encontrar as O padre suspenso de suas fungdes e 0 condenadoa trabalhos forgados
pedras desses degraus tao duras como nés! libertado se comp6em incessantemente um novo semblante: o que eles
Para nos, viver € mais perigoso: somos de vidro — infelizes de nds se precisam é de um semblante sem passado. — Mas ja viram homens que,
batemos! E se caimos, tudo esta perdido! sabendo que futuro se reflete em seu semblante e que sao bastante corteses
para com vocés que sao os apaixonados do “tempo presente”, se compor
155 — O QUE NOS FALTA um semblante sem futuro?
Gostamos da grande natureza e a descobrimos: isso deriva dofato de os
grandes homens faltarem em nossa cabeca. Era o contrario entre os gregos: 162 — Ecoismo
seu sentimento da natureza era diferente do nosso. O egoismo € a lei da perspectiva no dominio do sentimento. De acordo
com essalei, as coisas mais proximas parecem grandes e pesadas, ao passo
156 — O MAIS INFLUENTE que afastando-se delas, tudo decresce em dimensdo e em peso.
Que um homem resista a toda a sua época, que detenha essa época a
porta da cidadeparalhe pedir contas, terafor¢osamenteinfluéncia! Que ele 163 — DEPoiIs DE UMA GRANDE VITORIA
0 queira,é indiferente; que ele o possa, é 0 principal. O que ha de melhor numa grande vitoria é que libera 0 vencedor do
temor da derrota. “Por que é que ndo serei uma vez também vencido?”
157 — MENTIRI'” ~ diz consigo — “Sou agora bastante rico para isso.”
Tomacuidado! — Ele reflete: num instante sua mentira estara pronta.
Esse é um grau de cultura alcangado por povosinteiros. Que se pense entao 164 — AQUELES QUE PROCURAM O REPOUSO

naquilo que os romanos exprimiam por mentiri! Reconheco os espiritos que procuram 0 repouso pelo grande nimero
de objetos sombrios com que se rodeiam: aquele que quer dormir escurece
158 — QUALIDADE INCOMODA seu quarto ou se encolhe numa caverna. — Indicagdo para aqueles que nao
Achartoda coisa profunda — af esté uma qualidade inc6moda: faz com sabem exatamente 0 que procuram acima de tudo e que bem gostariam
que se force constantemente a vista e que se acabe sempre por encontrar de sabé-lo!
mais do que se havia desejado.
165 — FELICIDADE DA RENUNCIA
159 — CADA VIRTUDE TEM SUA EPOCA Aquele que renuncia inteiramente a uma coisa e por muito tempo, se
A quem hoje é inflexivel, sua honestidade Ihe causa muitas vezes porventura voltar a encontra-la, acreditara té-la descoberto — e qual nao é a
remorsos: porquea inflexibilidade é umavirtude de outra época que aquela felicidade do homem que descobre!
da honestidade. Sejamosmaisastutos que as serpentes que ficam tempo demais deitadas
sob o mesmosol.
(1) VerboJatino que tanto significa “mentir” como “imitar” (NT).

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166 — SEMPRE EM NOSSA COMPANHIA 170 — CoM A MULTIDAO


Tudo aquilo que é de minha espécie, na natureza e na sociedade, me Até agora caminha com a multiddo, de quem é o panegirista, mas um
fala, me elogia, me encoraja, me consola: — 0 resto nfo o entendo ou me dia sera seu adversario! Defato, ele a segue imaginando que sua preguicga
apresso em esquecé-lo. podera encontrar ali sua solugdo: ainda nao aprendeu que a multidao nao
Nunca estamos senao em nossa propria companhia. é bastante preguicgosa para ele! Que ela vai sempre em frente! Que nao
permite a ninguém ficar parado! — E ele gosta tanto de ficar parado!
167 — MISANTROPIA E AMOR
Nunca se diz que jé se esté farto dos homensa nao ser quando ja nao se 171 — GLORIA
pode mais digeri-los e quando,portanto, se tem o est6mago ainda cheio. A Quando o reconhecimento de um grande niimero por um tinico repele
misantropia é a conseqiiéncia de um amor demasiado Avido da humanidade, qualquer espécie de pudor, a gléria comegaa nascer.
de uma espécie de “antropofagia” —- mas quem foi, pois, que te levou a
engolir os homens comoostras, meu principe Hamlet? 172 — O ESTRAGA-PRAZERES
A - Tu és um estraga-prazeres — é o que se diz em toda parte.
168 — A PROPOSITO DE UM DOENTE B - Certamente! Estrago a cada um o prazer que tem por seu proprio
“Esta mal! — Mas o que é que lhe falta? — Tem fome de elogios e ndo partido: é o que nenhum partido me perdoa.
encontra nada para mastigar. ~ E inacreditdvel, todos ofestejam, o animam
e€ seu nome estd em todas as bocas! — E que ele tem ouvidos duros para 173 — SER PROFUNDO E PARECER PROFUNDO
os elogios. Se um amigo o elogia, pensa ouvir que se elogia a si mesmo; Aquele que se sente profundo se esforga por ser claro; aquele que
se um inimigo o elogia, acredita que esse inimigo procura ele proprio ser gostaria de parecer profundo 4 multidéo se esforga por ser obscuro. De
elogiado;finalmente, se é algum dos outros —ndo sGo numerosos, tanto ele fato, a multidao tem por profundo tudo aquilo de que nao pode ver o fundo:
é célebre! — fica ofendido porque ndo o querem ter como amigo nem como ela tem tanto receio, tem tanto medo de se afogar!
inimigo; tem o costume de dizer: Que me importa aquele que pretende ser
justo com relac4o a mim!” 174-A parte
O parlamentarismo, isto é, a permiss4o publica de escolher entre cinco
169 — INIMIGOS DECLARADOS opinides publicas fundamentais, se insinua no espirito desses numerosos
A coragem diante do inimigo é umacoisa 4 parte: com essa bravura se seres que gostariam muito de parecer independentese individuais e lutar por
pode ser um covarde ou um espirito trapalhao e indeciso. — sua opinido. Mas, em definitivo, ¢ indiferente saber que se imp6e ao rebanho
Era a opiniao de Napoledo sobre o “homem mais corajoso” que uma tnica opiniao ou que se lhe permitem cinco. — Aquele que diverge das
conheceu, Murat”: — disso se deve concluir que inimigos declarados so cinco opinidesptiblicas e fica 4 parte tem sempre o todo rebanhocontra ele.
indispensdveis a certos homens se quiserem se elevar até sua virtude, sua
virtlidade, sua serenidade. 175 — Da ELOQUENCIA
Quem possui até 0 presente a eloqiiéncia mais convincente? — O rufar
dos tambores: tanto que os reis os t8m em seu poder, permanecem os
(1) Joachim Murat(1767-1815). general dos exércitos napoleénicos, cunhado de Napoledo, foi rei de Napoles: melhores oradores e os melhores agitadores populares.
mas com a queda do cunhado,foi fuzilado (NT).

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176 — Comparxdo 182 — Na SOLIDAO


Pobres principes reinantes! Todos os seus direitos se tornam agora, de Quandose vive s6, nao se fala muito alto, ndo se escreve também muito
uma forma inesperada, pretensGes e todas essas pretensdes logo terao o alto: pois se receia 0 vaziodoeco, a critica da ninfa Eco. — Todas as vozes
aspecto de usurpacoes! Basta para eles dizer “n6és” ou “meu povo”, para tém outro timbre na solidao.
que essa maldosa Europavelha se ponhaa rir. Verdadeiramente, um mestre
de cerim6nias faria com eles pouca cerim6nia e 0 vejo realmente declarar: 183 — A MUSICA DO MELHOR FUTURO
“Les souverains rangent aux parvenus.”"! O primeiro miusico seria para mim aquele que sé conhecessea tristeza
da mais profundafelicidade e que ignorasse qualqueroutratristeza.
177 — PARA O “SISTEMA DE EDUCACAO” Nao houve até agora semelhante musico.
Na Alemanha, 0 homem superior sente falta de um grande meio de
educagdo: o riso dos homens superiores; estes nado riem na Alemanha. 184 — Justica
E preferfvel deixar-se roubar do que ter em torno de si espantalhos —
178 — Para 0 ILUMINISMO MORAL pelo menos é conforme a meu gosto.
E necessdrio desaconselhar aos Alemdes seu Mefistofeles e também E nada deixa de ser uma questo de gosto — e nao outracoisa.
seu Fausto. Trata-se de dois preconceitos morais contra o valor do
conhecimento. 185 — PosRrE
Hoje ele € pobre: nado é porque lhe tenham tirado tudo, mas porque
179 — Nossos PENSAMENTOS jogou fora tudo — que lhe importa?
Nossos pensamentos sao as sombras de nossos sentimentos — sempre Esta habituado a encontrar. - SAo os pobres que compreendem mal sua
mais obscuros, mais vazios, mais simples que estes. pobreza voluntaria.

180 — Os BELOS TEMPOS DOS ESPIRITOS LIVRES 186 — MA CONSCIENCIA


Os espiritos livres tomam liberdades mesmo com a ciéncia — e Tudo o que ele faz agora é sdbio e conveniente — e, no entanto, sua
provisoriamente essas liberdades lhes sAo concedidas — enquanto a Igreja consciéncia nao esta tranqiiila.
ainda subsistir! — Nisso eles tem agora seus bons tempos. E que suatarefa é excepcional.

181 — SEGuIR E PRECEDER 187 — O QUE HA DE OFENSIVO NO DISCURSO


A -“Um dos dois seguird sempre, o outro hé de preceder, qualquer Esse artista me ofende pela maneira como apresenta suas sacadas,
que seja o caminho do destino. E, no entanto, o primeiro estaé acima do suas excelentes sacadas: ele as repete com tamanha chatice e insisténcia,
segundopor seu espirito e por sua virtude!” com artificios de persuasao tao grosseiros que parece que esté falando
B —“E no entanto? E no entanto? Isso é falar pelos outros e ndo por ao povao. Depois de consagrar um certo tempo 4 suaarte, nds nos sentimos
mim, e ndo por nds! — Fit secundum regulam.’”) sempre “em ma companhia”.

(1) Frase francesa que significa “os soberanos prestam honras aos recém-chegados™. (NT) (3) Segundo a mitologia grega, a ninfa Eco, enganada por Narciso. se esconde na montanha, mas sua voz é
(2) Expressaolatina que significa “que se faga segundoa regra, que se concorde com a regra” (NT). ouvida por todos (NT).

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188 — TRABALHO 194 — “DE CORACAO ABERTO”


Como hoje, mesmo 0 mais ocioso de nés, esta perto do trabalho e Esse homem obedece provavelmente sempre a raz6es incontessaveis:
do operdrio! A cortesia real que se encontra nestas palavras “Nos todos pois esta sempre com razOes confessaveis na boca e sé falta abrir as maos
somos operdrios\”teria ainda passado por cinismo e indecéncia na €poca para no-las mostrar.
de Luis XIV.
195 - RIsivEL
189 — O PENSADOR Vejam, vejam! Foge dos homens: — mas os homens o seguem porque
E um pensador: isso significa que sabe toma as coisas de uma forma corre na frente deles — de tal modo so rebanho!
mais simples do que sao.
196 ~ OS LIMITES DE NOSSO OUVIDO
190 — CoNTRA OS ELOGIADORES Nunca se ouvem sendo as perguntas para as quais se é capaz de encontrar
A —“S6se é elogiado por seus semelhantes\” uma resposta.
B ~“Sim! E aquele quete elogiate diz: tu és meu semethante.”
197 — ATENCAO!
191 — CONTRA CERTOS DEFENSORES Nao ha nada de que tanto gostemos de mostrar aos outros como o selo
A mais pérfida maneira de prejudicar uma causa é defendé-la do segredo — sem esquecer 0 que ha debaixo.
intencionalmente com mas razGes.
198 — DESPEITO DO ORGULHOSO
192 — Os BENEVOLENTES O orgulhoso sente despeito mesmo quando contra aqueles que o fazem
Quem distingue dos outros homens esses seres benevolentes cuja avancar: olha maldosamente para os cavalos de sua carruagem.
benevoléncia ilumina seu rosto? Eles se sentem a vontade na presenga de
uma pessoa nova e se entendem rapidamente; é por isso que Ihe querem 199 — LIBERALIDADE
bem. O primeiro juizo que fazem é: “Ela me agrada.” Neles se sucedem Nosricos a liberalidade nao é muitas vezes sendo uma espécie de timidez.
rapidamente: o desejo de assimilagdo (nao se preocupam muito com o valor
do outro), a assimilagdo rapida, a alegria da posse e as agdes em favor do 200 ~ Rir
objeto possufdo. Rir é se regozijar com um dano causado a outro, mas com boa consciéncia.

193 — Macicia DE Kant 201 — APLAtuso


Kant''’ queria demonstrar, de uma forma que consternaria “todo mundo”, Aplaudir ¢ sempre fazer barulho: mesmo quando nos aplaudimos a
que “todo mundo” tinha razao: —.essa fol a secreta malicia dessa alma. nds mesmos.
Escreveu contra os sabios em favor do preconceito popular, mas escreveu
para os sabios e nao para 0 povo. 202 — Um pissiPpADOR
Naotem aindaessa pobreza dorico quej4 fez as contas de todo 0 seu tesouro
~ ele prodigaliza seu espirito com falta de razo da natureza dissipadora.
(1) Immanuel Kant (1724-1804). ftldsofo alemao (NT).

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203 — “Hic NIGER ESTIH 1) oposi¢gado e uma repugnancia contra toda espécie de razGes: — trata-se de uma
maneira de questionar bemesttipida, uma verdadeira mania dostiranos.
Habitualmente é desprovido de pensamentos — mas eventualmente os
tem maus.
210 — MEDIDA NO EMPENHO

204 — Os MENDIGOS E A CORTESIA E preciso nao querer fazer mais que o proprio pai — ficarfamos doentes.
“Nao se é descortés ao bater com uma pedra numa porta que nao tem
campainha’” — assim pensam os mendigose os necessitados de toda espécie, 211 — INIMIGOS SECRETOS
mas ninguém lhes da razdo. Poder sustentar um inimigo secreto é um luxo que a moralidade dos
proprios espiritos mais nobres nao é suficientemente rica para se permitir.
205 — NECESSIDADE
A necessidade passa por causa; na realidade, na maioria das vezes nao 212 — NAOSE DEIXAR ENGANAR
passa de efeito. Seu espirito tem mas maneiras, se precipita e gagueja sempre de
impaciéncia: € por isso que malse duvida dotipo de alma que é a sua, uma
206 — Sos A CHUVA almade grande fdlego e depeito largo.
Chove e penso nos pobres que agora se apertam uns contra 0s outros
com todas as suas numerosas preocupagoes, sem ter 0 habito de escondé- 213 — O CAMINHODA FELICIDADE
las; cada um deles esta pronto, portanto, a causar danoaooutro e a se criar, Um sdbio perguntava a um louco qual era o caminho dafelicidade. Este
mesmo durante 0 mau tempo, uma miserdvel forma de bem-estar. — Essa ¢ respondeu imediatamente, comoalguém a quem se pergunta o caminho da
a pobreza dos pobres, e a unica! cidade vizinha: “Admira-te a timesmoe vive na rua!” — “Alto la’, exclamou
0 sdbio, “pedes demais, ja basta que nos admiremos'” O louco retrucou:
207 — O INVEJOSO “Mas como admirar sempre, sem sempre desprezar?”
Aguele é um invejoso, nao se deve desejar-lhe filhos, teria clumes deles
porque n&o pode mais ser crianga. 214 ~— A FE QUE SALVA
A virtude nao dé a felicidade e uma espécie de beatitude sendo dqueles
208 — GRANDE HOMEM que tém fé em sua virtude — e naoa essas almas sutis, cuja virtude consiste
Pelo fato de alguém ser “um grande homem”, ndo se deve concluir que numa profunda desconfianga diante de si préprias e de qualquer virtude.
é um homem; talvez ndo seja mais que uma crianga ou um camaleao de Em ultima instancia. nesse caso também é “a fé que salva” ~ e ndo, note-se
todas as idades da vida ou ainda uma velhinha enfeitigada. bem, a virtude.

209 — UMA FORMADE INDAGAR 215 — IDEAL E MATERIA


Tutens um ideal nobreem vista; mas és feitode uma pedra suficientemente
Existe uma maneira de nos indagarmos que nos leva néo somente a
nobrepara tirar de ti semelhante imagem divina?
esquecer nossas melhores razGes, mas que desperta ainda em nos uma
Caso contrario — todo o teu trabalho nao é escultura barbara? Uma
Injuria de teu ideal?
(1) Expressao latina que significa “aqui é que estd o negro” (NT).

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216 — PERIGO NA VOZ que, por infelicidade, perdeu seu bom senso de animal — receio que eles o
Com uma voz forte a gente € quase incapaz de pensar coisas sulis.
considerem como 0 animal absurdo, como o animal que ri e chora, como
o animal nefasto.
217 — CAUSA E EFEITO
Antes do efeito acredita-se em causas diferentes daquelas que
225 — O NATURAL
“O mal teve sempre por si o grande efeito! E a natureza é md.
aparecem depois.
Sejamos portanto naturais\” — assim concluem secretamente os grandes
218 — Meus antipopas pesquisadores de efeito da humanidade que, por demasiadas vezes, foram

Nao gosto dos homens que, para obter um efeito, séo obrigados a contados entre os grandes homens.
explodir como bombas, dos homens na proximidade dos quais se esta
sempre em perigo de perder o ouvido — ou piorainda. 226 — Os DESCONFIADOS E 0 ESTILO
Dizemos com simplicidade as coisas mais fortes, contanto que haja
219 — FINALIDADE DO CASTIGO . em torno de nés homens que tém fé em nossa forga: — semelhante circulo
habitua a “‘simplicidade do estilo”. Os desconfiados falam enfaticamente;
O castigo tem por finalidade tornar melhor aquele que castiga — ai esta
o ultimo recurso para os defensores do castigo. os desconfiados tornam enfatico.

220 — SAcriFicIo 227 — CONCLUSAO FALSA, GOLPE FALHO


Ele nao sabe se dominar e essa mulher conclui que sera facil domina-lo,
Do sacrificio e do espfrito do sacrificio, as vitimas pensam bem diferente
que os espectadores; mas nuncalhesfoi dada a palavra. ela lanca sobre ele suas redes; — pobre mulher, em pouco tempose tornara
escrava dele.
221 — POUPAR-SE
Pais e filhos se poupam mais entre eles do que miese filhas entre elas. 228 — CONTRA OS MEDIADORES
Querer servir de mediador entre dois pensadores decididos demonstra

222 — POETA E MENTIROSO mediocridade; é que naose possui vista suficientemente boa para distinguir
0 que é tinico; aproximagées e nivelamento sao préprios de olhosfracos.
O poeta vé no mentiroso seu irmdodeleite, mas bebeu 0 leite desse irmao;
este ficou miserdvel sem, no entanto, chegar a ter uma boa consciێncia.
229 — TEIMOSIA E FIDELIDADE
223 — VICARIATO DOS SENTIDOS Ele defende por teimosia uma coisa da qual viu o lado fraco — mas
“Temos também olhos para ouvir’, dizia um velho confessor que se chamaa isso de “fidelidade”’.
havia tornado surdo — “no reino dos cegos é rei aquele que tem as orelhas
230 — FALTA DE DISCRICAO
mais compridas.”
Seu ser inteiro no convence — isso decorre do fato que nunca soube

224 — CRITICA DOS ANIMAIS


calar uma boa aciio que haviafeito.
Receio que os animais tomem o homem por um ser como eles, mas

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231 — Os SERES “PROFUNDOS”’ 238 — SEM INVEJA


Os lerdos do conhecimento imaginam queele exige lentidao. Ele é destituido de qualquer inveja, mas néo tem nenhum mérito,
pois quer conquistar um pais que ninguém possuiu, talvez mal tenha sido
232 — SONHAR entrevisto por alguém.
Qu nao se sonha em absoluto ou se sonha de uma formainteressante.
E necessario aprender a estar acordado da mesma maneira: ou de modo 239 — SEM ALEGRIA
algum ou de umaformainteressante. Um tinico ser sem alegria basta para envenenar a atmosfera de uma casa
inteira e para escurecertudo;ora, é um milagre quandoesseser no existe! A
233 — O PONTO DE VISTA MAIS PERIGOSO felicidade esta longe de ser uma doenga tao contagiosa — de onde vem isso?
O que fago ou o que nao fago agora é tao importante para tudo o que ha
de vir como os maiores acontecimentos do passado; sob essa formidavel 240 — A BEIRA DO MAR
perspectiva do efeito, todos os atos sao igualmente grandes e pequenos. Nao tenho vontade de construir uma casa para mim (n&oserproprictario
contribui até mesmo para minhafelicidade!). Mas se fosse forgado a isso,
234 — CONSOLACOES DE UM MUSICO gostaria, como certos romanos, de construi-la até no mar — gostaria de ter
“Os homens nado tém ouvido para tua vida:ela lhes parece muda e todas com esse belo monstro alguns segredos em comum.
as finezas da melodia, toda sutil revelagdo do passado e do futuro thes
escapam. E verdade que ndo te apresentas numa grande via com miisica 241 — A OBRA E O ARTISTA
militar — mas ndo é uma razdo para que esses homens bons possam dizer Esse artista é ambicioso e nada mais; no final das contas, sua obra nado é
que tua é falha de miisica. Quem tiver ouvidos que ouca.” mais que um vidro de aumento que ele oferece a quem quer que o olhe.

235 — Espirito E CARATER 242 — “SuuM CUIQUE”?


Ha aqueles que alcangam o topo de seu carater quando seu espirito nao Por maior que seja a avidez de meu conhecimento, nao posso retirar
esta 4 altura desse topo — e ha outros com quem ocorre o contrario. coisas daquilo que j4 me pertence — enquanto o bem dos outros permanecer
nelas. Como é possivel que um homemseja ladrao ou salteador!
236 — PARA AGITAR A MULTIDAO
Para agitar a multid4o nao se deve ser o comediante de si mesmo? Nao 243 — ORIGEM DO BOM E DO MAU
se € forcado a se tornar a si proprio grotesco para defender sua causa sob S6 inventa uma melhoria aquele que sabese dizer: “/sso ndo é bom.”
uma forma aumentada e simplificada?
244 — PENSAMENTOS E PALAVRAS
237 — O HOMEM CORTES Mesmo os pensamentos podem ser traduzidos inteiramente por meio
“Ele é tdo cortés!’— Sim, ele tem sempre em seu bolso um doce para das palavras.
o cérbero'” e é tdo temeroso que pensa que todo murido é um cérbero,
mesmo tu tanto quanto eu — essa é sua “cortesia’’.

(1) Na mitologia grega, era um cdo monstruosode trés cabecas, guardiao dos infernos (NT). a) Expresso latina que significa “a cada um o seu, a cada um o que Ihe pertence™ (NT).

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245 — ELOGIOS NA ESCOLHA e mesquinhas emogoes de certos maus momentos, as dtividas que elas
O artista escolhe seus temas: essa é sua maneira de elogiar. podem concebera respeito de sua prépria grandeza — e nao ossacrificios e
os martirios que sua tarefa exige delas.
246 — MATEMATICA Enquanto Prometeu lamenta os homens e se sacrifica por eles, ele
Queremos, até onde for possfvel, introduzir em todas as ciéncias a se mantém feliz e grande; mas quando se torna ciumento de Zeus e das
sutileza e o rigor da matematica, sem acreditar que com isso chegaremos a homenagensque os homensprestam este ~ é entéo que comegaa sofrer.
conheceras coisas, mas somentepara determinar nossasrelagGes com elas.
A matemitica nao é mais do que o meio supremo de conhecer os homens. 252 — MELHOR FICAR DEVENDO
“Antes continuar tendo dividas do que pagd-las com uma moeda que
247 — HAsitro nado traz nossa efigie!” — Assim o quer nossa soberania.
Todo habito torna nossa mao mais maliciosa e nossa malicia menos
habilidosa. 253 — SEMPRE EM NOSSA CASA
Um dia alcangamos nosso objetivo — a partir de entéo indicamos com
248 — Livros orgulho o longo caminho que percorremos para chegara isso. Na realidade,
Que importa um livro que nem mesmosabe nostransportar para além nao tinhamos percebido que estévamos percorrendo esse caminho.
de todos oslivros? Ocorria que em cada local tinhamosa ilusdo de estar em nossa casa.

249 — O SUSPIRO DAQUELE QUE PROCURA O CONHECIMENTO 254 — ConrrA O EMBARACO


—“O maldita avidez! Nessa alma ndohd desinteresse—pelo contrario, um Aquele que esta sempre profundamente ocupadoesta acima de qualquer
eu que deseja tudoe que, através de mil individuos, quereria ver como com embaraco.
seus olhos, agarrar com suas préprias mdos, um eu que recolhe ainda todo
o passado, que ndo quer perder nada daquilo que poderia the pertencer! 255 — IMITADORES
Maldita seja essa chama de minha avidez! Ah! Pudesse eu reencarnar-me A—“Como? Nao queres ter imitadores?”
em mil seres!” — Aquele que nao conhece por experiéncia este suspiro, nao B — “Nao quero que me imitem, quero que cada um se determine por
conhece tampoucoa paix4o daquele que procura o conhecimento. sl; € o que faco.”
A —“Masentdo...?7”
250 — CuLpa
Embora 0s juizes mais sagazes e mesmoas propriasfeiticeiras estivessem 256 — A FLOR DA PELE
persuadidos que a feitigaria era um crime, nao havia crime. Assim acontece Todos os homens das profundezas pdem suafelicidade a se assemelhar
com todafalta. uma vez com Os peixes voadorese a brincar nas cristas extremas das ondas;
consideram que aquilo que as coisas tém de melhor é sua superficie: o que
251 — SOFRIMENTO DESCONHECIDO esta a flor da pele — sit venia verbo."
As naturezas grandiosas sofrem de maneira muito diferente daquela
que seus admiradores imaginam: aquilo que mais astortura sdo as vulgares
(1) Expressaolatina que significa “comperdao da palavra” (NT).

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257 — PoR EXPERIENCIA 264 — O QUE FAZEMOS

Alguns nao sabem comosdoricos, até que aprendem que seu contato O que fazemos nunca € compreendido, mas sempre e somente louvado
torna ladrées mesmo os homens ricos. ou criticado.

258 — Os NAVEGADORES DO ACASO 265 — SUPREMO CETICISMO


Nenhum vencedoracredita no acaso. Quais sao, em ultima andlise, as verdades do homem? — So seus erros
irrefutdveis.
259 — OUVIDO NO PARAisO
“Bem e mal sdo os preconceitos de Deus” — disse a serpente. 266 — ONDE A CRUELDADE E NECESSARIA
Aquele que possui a grandeza é cruel para com suas virtudes e suas
260 — UM VEZES UM consideragdes de segunda ordem.
Umsé nunca tem razdo; mas no dois comeca a verdade. — Um s6 nao se
pode provar, mas quandoso dois, j4 ndo se pode mais refutar. 267 — UM GRANDE OBJETIVO
Um grande objetivo torna superior a prépria justica e nado somente a
261 — ORIGINALIDADE suas acdes e a seus jufzos.
O que é a originalidade? Ver alguma coisa que ainda nao tem nome,
que ainda nao pode ser nomeada, emboraissoesteja diante dos olhos de 268 — O QUE F QUE TORNA HEROICO?
todos. Tais sio habitualmente os homens que necessitam de uma palavra Ir ao mesmo tempona frente de suas maiores dores e de suas maiores
para ver a coisa. — Os homens originais s4o geralmente aqueles que dao esperancas.
nomes As coisas.
269 — EM QUE TENS FE?
262 — “SuB SPECIE AETERNT™”? Nisto: que € necessario determinar de novo 0 peso de todas as coisas.
A — “Tu te afastas sempre mais dos vivos: logo vado te marcar com
suas listras\” 270 — QUE DIZ TUA CONSCIENCIA?
Torna-te o que és.
oe 2 sf

B — “E 0 tinico meio de participar do privilégio dos mortos.”


A — “Que privilégio?”
B — “Nunca mais morrer.” 271 — ONDE ESTAO OS MAIORES PERIGOS?
Napiedade.
263 — SEM VAIDADE
Quando amamosqueremosquenossos defeitos permanegam escondidos 272 — O QUE AMAS NOS OUTROS?
— nao por vaidade, mas para que o amadonao sofra. Sim, aquele que ama Minhasesperancas.
gostaria de aparecer como um deus— e isso tampouco€ por vaidade.
273 — A QUEM CHAMAS MAU?
Aquele que sempre quer nossa vergonha.
(1) Expressao latina que significa “do pontode vista do eterno. da eternidade” (NT).

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274 ~ O QUE CONSIDERAS COMO AQUILO QUE HA DE MAIS HUMANO?


Poupar a vergonha a alguém.

275 — QUAL E A MARCA DA LIBERDADE REALIZADA?


Nao ter mais vergonha de si mesmo.

LIVRO IV
SANCTUS JANUARIUS””

“Tu, que com uma lanca de chamas


De minha alma quebraste o gelo,
E que a expulsas agora para o mar espumante
De suas mais elevadas esperancas:
Sempre mais claro e mais sadio,
Livre numa amante coacdo:
Assim ela celebra teus milagres,
Tu, o mais belo més de janeiro!”

Génova,janeiro de 1892.

276 — PARA O NOVO ANO


Vivo ainda, ainda penso: é necessdrio ainda que eu viva, porque é
necessdrio ainda que eu pense. Sum ergo cogito: cogito, ergo sum”. E
0 dia em que cada um se permite exprimir seu desejo e seu pensamento
mais caro: e eu também vou dizer o que hoje desejo de mim mesmo e

(1) Latim: Sao Janeiro — segundo o poema,parece referéncia ao més de janeiro e nao, a Sao Januario, dito em
latim igualmente Sanctus Januarius (NT).
(2) Expressiio latina que significa “existo, logo penso: penso, logo existo”; desenvolvimento da formula de René
Descartes (1596-1650), fildsofo e matematico francés que, em seu livro Discurso do Método(ja publicado nesta
coleg3o da Editora Escala), escreve: “Penso. logo existo” (NT).

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qual € 0 pensamento que, este ano, tomei a peito por primeiro — qual é arranjar os acontecimentos acaba de atingir seu apogeu. Nao pensemos
o pensamento que deverd ser doravante para mim a raz4o, a garantia ¢ a também demasiado bem dessa destreza de nossa sabedoria quando somos
docura de viver! Quero aprender cada vez mais a considerar como belo surpreendidos pela maravilhosa harmonia que produz o toque de nosso
o que ha de necessdrio nas coisas: — assim serei daqueles que tornam instrumento: uma harmonia demasiado bela para que ousemosatribuir-nos
belas as coisas. Amorfati'"’: que esse seja doravante meu amor. Nao quero seu mérito. Com efeito, se alguém toca conosco, é 0 acaso: esse caro acaso
mover guerra 4 feitira. Ndo quero acusar, nao quero acusar nem mesmo nos guia a mao e a mais sabia providéncia nao poderia imaginar mais bela
os acusadores. Desviar meu olhar, que seja essa minha unica negagao! E, musica que aquela que surge entéo sob nossa louca m4o.
numapalavra, para ver grande: s6 quero ser um dia afirmador!
278 — O PENSAMENTO DA MORTE
277 — PROVIDENCIA PESSOAL Sinto uma felicidade melancélica em viver no meio dessa confusdo de
Haum pontoculminante na vida: ao alcanga-lo, apesar de nossaliberdade ruelas, de necessidades e de vozes: quantos prazeres, impaciéncias, desejos,
e embora neguemos ao belo caos da existéncia toda razdo providencial e quanta sede de vida e que embriaguez vém 4 luz aqui a cada instante! E
toda bondade, estamos entaéo em grande perigo de servidao intelectual e logo, contudo, o siléncio cairé sobre todos esses homens barulhentos,
as provas mais diffceis nos esperam. De fato, € somente ent&o que a idéia vivos e felizes por viver! Atras de cada se desenha sua sombra, obscuro
de uma providéncia pessoal se apodera de nosso espirito com forga, uma companheiro de caminhada! Ocorre sempre como no tltimo momento
idéia que tem para ela o melhor advogado, a aparéncia evidente, agora que antes da partida de um navio de emigrantes: tem-se mais coisas dizer que
podemosconstatar que todas as coisas que se relacionam a nds sempre nunca, 0 oceano e seu morno siléncio esperam impacientemente atras de
vém em nossa vantagem. todo esse barulho — tao Avidos, tao seguros de sua presa! E todos, todos
A vida de todos os dias e de todas as horas parece querer demonstra-lo imaginam que o passado nao é nada, ou téo pouca coisa e que o futuro
sem cessar; seja comofor, o bom como o mau tempo, a perda de um amigo, préximoé tudo: disso decorrem essa pressa, esses gritos, essa necessidade
uma doenca, umacaltinia, uma carta que nao chega, um pé machucado, um de se ensurdecer e de extravasar! Cada um deles quer ser 0 primeiro nesse
simples olhar para uma loja, um argumento contrario que alguém poe, um futuro — e, contudo, a morte, o siléncio da morte s4o as unicas certezas
livro que se abre, um sonho, uma fraude: tudo isso se revela imediatamente que todos tém nesse futuro! Como é estranho que essa linica certeza, essa
ou pouco tempo depois como umacoisa que “nao podia nao se produzir”, unica comunhéoseja quase impotente em agir sobre os homens e queeles
alguma coisa que esta repleta de sentido e de uma profunda utilidade, estejam tao longe de sentir essa fraternidade da morte! Sinto-me feliz em
precisamente para nos! constatar que os homens se recusam absolutamente a pensar na idéia da
Ha seducio mais perigosa do que retirar sua fé nos deuses de Epicuro, morte e gostaria muito de contribuir para Ihes tornar a idéia da vida ainda
esses despreocupados desconhecidos, para crer numa divindade qualquer, cem vezes mais digna de ser pensada.
desconfiada e mesquinha, que conhecesse pessoalmente cada um dos
cabelos de nossa cabega e que nado tivesse repugnancia em nos prestar os 279 — AMIZADE ESTELAR
mais detestdveis servicos? Pois bem! — quero dizer, apesar de tudo isso — Eramos amigos e nos tornamos estranhos um ao outro. Mas isso
deixemosos deuses em paz e também os génios servis para nos contentarmos € realmente assim e nado queremos cald-lo nem escondé-lo como se
em admitir que agora nossa habilidade, pratica e tedrica, em interpretar e devéssemoster vergonha. Exatamente comodois navios, cada um com seu
objetivo e sua rota tragada: podemos noscruzar ainda, talvez, e celebrar
(1) Expressaolatina que significa “amor do destino” (NT).

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festas juntos, como ja o fizemos ~ e, no entanto, esses bravos navios Seria necessario que nés mesmos féssemos traduzidos em pedras e em
estavam tio tranqiiilos no mesmo porto, debaixo do mesmosol, que se plantas para passear em nds mesmos, quando passdssemosnessas galerias
teria acreditado que tinham alcancado o objetivo, que tinham tido um e nesses jardins.
Gnico objetivo comum. Masentao a forga todo-poderosa de nossa tarefa
nos separou, empurrados para mares diferentes, sob outros s6is e talvez "281 — SABER ENCONTRAR 0 FIM
nunca mais nos voltemos a ver — talvez nos voltemos também a ver sem nos Os mestres de primeira linha sdo reconhecidos porque sabem,tanto no
reconhecermos: tantos mares e s6is nos mudaram! grande como no pequeno, encontrar sempre o fim de uma formaperfeita,
Era preciso que nos torndssemosestranhos um ao outro, assim o queria quer seja o fim de uma melodia ou de um pensamento, quer seja 0 quinto
a lei que nos transcende e é por isso que nos devemosrespeito, para que ato de umatragédia ou de um ato de governo.
a lembranga de nossa antiga amizade se torne mais sagrada que outrora! Os misicos de segunda categoria se enervam sempre nofinal e ndo se
Existe provavelmente uma formiddvel curva invisivel, uma rota estelar, inclinam para o mar com um ritmo simples e tranqtiilo, como o faz, por
onde nossos caminhos e nossos objetivos diferentes estejam incluidos exemplo, a montanhaperto de Portofino — no lugar onde a baia de Génova
como pequenas etapas; elevemo-nos a esse pensamento! Masnossa vida é termina de cantar sua melodia.
demasiado curta e nossa vista demasiado fraca para que possamos ser mais
que amigos no sentido dessa sublime possibilidade! — E assim queremos 282 - A MARCHA
acreditar em nossa amizade nas estrelas, mesmo que tivéssemos de ser Ha maneiras do espirito pelas quais, mesmo grandes espiritos, deixam
inimigosnaterra. adivinhar se provém da plebe ou da semiplebe: — sao sobretudo o andar
e a marcha de seus pensamentos que os traem; eles nao sabem marchar.
280 — ARQUITETURA PARA AQUELES QUE PROCURAM O CONHECIMENTO Assim, 0 proprio Napoledo nunca péde, a despeito de tudo, marchar com
Sera necessdrio reconhecer um dia, e talvez logo, o que falta a nossas um passo principesco e “legitimo” nas ocasides que 0 exigiam, como por
grandes cidades: locais silenciosos, espagosos, amplos para a meditagao, exemplo nos grandes desfiles da coroagao e nas cerim6nias andlogas:
i
providos de altas e longas galerias para o mau tempo e o tempo muito mesmo nessas ocasi6es ele s6 caminhava como chefe de coluna — altivo e
| ensolarado, onde o rumordas viaturas e os gritos dos comerciantes nao
th
brusco ao mesmo tempo e bem consciente da coisa. — Nada mais divertido
i1
:; penetrem, onde umasutil conveniéncia proiba, mesmo ao padre, a oracdo do que ver esses escritores que deixam farfalhar em torno deles as amplas
em voz alta: edificios e passeios que exprimiam por seu conjunto tudo o vestes da moda: querem esconderseus pés.
\
que a medita¢do e 0 afastamento do mundo tém de sublime.
Passou 0 tempo em que a Igreja possuia o monopdolio da reflexdo, 283 — Os HOMENS QUE PREPARAM
em que a vida contemplativa era antes de tudo vida religiosa: tudo o Satdo todos os indicios da vinda de uma época mais viril e mais
que a Igreja construiu exprime essa idéia. Nao vejo como poderiamos guerreira que recolocara em honra a bravura! Porque essa época deve abrir
Se

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nos contentar com seus edificios, mesmo se perdessem sua finalidade caminho para outra mais elevada ainda e recolher a forca de que esta tera
eclesiastica: os edificios da Igreja falam uma linguagem excessivamente necessidade um dia — quando introduzir o herofsmo no conhecimento e
patética e muito restrita, so demasiadamente casas de Deus e lugares de fizer a guerra pelo pensamento e por suas conseqiiéncias. Af esta porque
aparato das relag6es supraterrestres para que ndés, fmpios, possamos nelas sao necessdrios desde agora homens valentes que preparem o terreno; esses
meditar nossos pensamentos. homens nao podem surgir do nada — e tampouco da areia e da escuma

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da civilizagdo de hoje e da educagao das grandes cidades; sao necessarios 285 — Excecsior!'!’
homens silenciosos, solitarios e decididos, que saibam contentaf-se com a “Nunca mais orards, nunca mais adorards, nunca mais te repousards
atividade invisivel que perseguem: homens que, com umapropensao a vida numa confianga ilimitada — recusards te deter diante de uma suprema
interior, procurem em todas as coisas o que hd de superar nelas: homens sabedoria, de uma suprema bondade e de um supremo podere de despir
que possuem nelesa serenidade, a paciéncia, a simplicidade e 0 desprezo teus pensamentos — nao terds guarda nem amigo a toda hora paratuas sete
das grandes vaidades, bem comoa generosidade navitoria e a indulgéncia soliddes — viverds sem ter saida nessa montanha nevada em seu topo e em
com relac&o 4s pequenas vaidades de todos os vencidos; homens que chamas seu coracdo — nao havera mais para ti recompensador, corretor de
tenham um juizo preciso e livre em todas as vit6rias e na parte de acaso ultima mao — nao havera mais raz4o naquilo que se passa, ndo haveré mais
que ha em toda vitdria e em toda gloria; homens que tenham suasproprias amor naquilo que te acontece — teu cora¢gdo nao tera mais asilo onde s6 se
festas, seus préprios dias de trabalho e de luto, habituados a comandar encontra repouso, sem ter de procurar nada.
com seguranga, igualmente prontos a obedecer quando for necessdrio, Tu te defenderds contra uma paz definitiva, quereraés o eterno retorno
igualmente altivos como se seguissem sua propria causa tanto num como da guerra e da paz: — homem da rentincia, quererds renunciar a tudo isso?
no outro caso; homens mais expostos, mais fecundos, mais felizes! Quem te dara a forga?
Porque, acreditem em mim! — o segredo para colher a existéncia mais Ninguém teve ainda!” — Existe um lago que um dia se recusou de se
fecunda e o maior prazer da vida é viver perigosamente! Construam suas escoar e que levantou um dique no ponto por onde vazavaaté entao: desde
cidades nas encostas do Vesuvio! esse dia 0 nivel do lago se eleva sempre mais.
Enviem seus navios para os mares inexplorados! Vivam em guerra Talvez essa rentincia nos dara justamente a forga que nos permitird
com seus semelhantes e com vocés mesmos! Sejam salteadores e suportar a propria renuncia; talvez o homem se elevard sempre mais a partir
conquistadores, uma vez que niéo podem dominar e possuir, vocés que do momento em que nao escoar num Deus.
procuram o conhecimento!
Logo o tempo vai passar quando poderdo viver escondidosnafloresta 286 — DiGREssAO
como cervos assustados! O conhecimento acabara, enfim, por estender a Aqui estéo esperancgas; mas em que as poderfo ver e sentir se, em sua
mao para aquele quelhe pertence de direito: — vai querer dominar € possuir, alma, vocés nao viveram o esplendor das chamase da aurora?
e vocés vao queré-lo com ele! SO posso evocar — nada mais! Remover pedra, mudar os animais em
homens — é isso que vocés querem de mim? Ai de mim! Se ainda sdo pedras
284 — A FE EM SI MESMO € animais, procurem primeiro seu Orfeu.
Ha em geral poucos homens que tém fé em si mesmos - e€ entre esse
pequeno ntimero,unstrazem essa fé de nascenga, como umacegueiraUtil ou 287 — FELIZ, POR SER CEGO
como um obscurecimento parcial do espfrito (que espetaculo perceberiam “Meus pensamentos’, diz 0 viajante 4 sua sombra, “devem me indicar
I se pudessem olhar para o fundo de si préprios!); os outros sao obrigadosa onde estou: mas ndo devem me revelar para onde vou.
adquiri-la: tudo o que fazem de bem, de sdlido, de grande comega por ser Gosto do desconhecimento dofuturo endo quero morrer de impaciéncia
um argumento contra o cético que moraneles; é este que querem convencer nem provar por antecipacdo as coisas prometidas.”
e persuadir e, para chegara isso, necessitam quase do génio. Sao os grandes
descontentes consigo mesmos. (1) Termolatino que significa “mais alto, 0 maisalto” (NT).
/ (2) Na Mitologia grega. poeta e misico. considerado o inventorda lira ¢ dos rituais mdgicos (NT).

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288 — EstabDO DE ALMA ELEVADO Osantipodas, eles também tém direito 4 vida! Ha ainda outro mundo a
Parece-me que, de uma maneira geral, os homens n4o acreditam em descobrir — e mais de um! Vamos, filésofos, para os navios!
estados de alma elevados, a nao ser por instantes, no maximo por quartos
de hora — excecdo feita de alguns raros individuos que, por experiéncia, 290 — UMAUNICA COISA E QUE CONTA
conhecem a durac4o dos nos sentimentos elevados. Mas ser 0 homem de “Darestilo” a seu carater — essa é umaarte considerdvel que raramente
um nico sentimento elevado, a encarnacao de um unico grande estado de se encontra! Aquele que percebe em seu conjunto tudo o que sua natureza
alma — isso naofoi até agora sendo um sonho e umaexaltante possibilidade: oferece em forcas e fraquezas para adaptdé-la em seguida a um plano
a histéria nao fornece dele ainda exemplo irrefutavel. artistico a exerce até que cada coisa aparega em sua arte e em sua razdo
Apesar disso, talvez um dia ponha no mundo semelhantes homens e que as proprias fraquezas encantem os olhos. Aqui tera acrescentado
— isso vai acontecer quando for criada e fixada uma série de condigoes, uma grandeparte de segunda natureza, onde tiver tirado um pedaco da
que o acaso mais feliz n&o poderia agora reunir. Talvez nessas almas do primeira natureza: — nos dois casos foi necessdria uma lenta preparacao e
futuro, esse estado excepcional que toma conta de nés, aqui e acola, num um trabalho cotidiano. Aqui escondeu o que era feio e que nao podia ser
arrepio, seria precisamente o estado habitual: um continuo vaivém entre eliminado o tornou sublime. As coisas vagas que se recusavam a tomar
alto e baixo, um sentimento de alto e baixo, de subir sem cessar degraus e forma as reservou para a perspectiva de conjunto: — devem produzir efeito
ao mesmo tempoflutuar sobre nuvens. a distancia, evocar o incomensuravel.
E preciso esperar o fim da obra para ver reinar em toda parte o mesmo
289 — EMBARQUE gosto, em grande e em miniatura: a qualidade do gosto, bom ou mau,
Quando se considera que efeito produz em qualquer individuo importa muito menos do que se possa crer — 0 essencial € que 0 gosto seja
uma justificagao filoséfica geral de sua maneira de viver e de pensar Unico. As naturezas fortes e dominadoras encontrar4osua alegria mais sutil
— isto é, como um sol que brilha precisamente para esse individuo, um numa semelhante coacéo, numa semelhante sujeigéo e num semelhante
sol que aquece, abengoa e fecunda, quando se reconhece como essa cumprimento sob lei propria; a paixfo de sua forte vontade se alivia ao
justificagdo torna independente dos elogiose das criticas, como transforma aspecto de toda naturezaestilizada, de toda natureza vencida e submetida;
continuamente o mal em bem, como faz florescer e amadurecer todas as mesmo quando tém paldcios a construir e jardins a plantar, repugna-lhes
forcgas e impede de crescer a pequena e a grande erva daninhada afli¢ao e também deixar a natureza livre. — Pelo contrdrio, os caracteres fracos,
do descontentamento: — acabar-se-4 por exclamar em tom de oragdo: Ah! - aqueles que nfo se dominam, odeiama servidao do estilo: sentem que
Oxald sejam criados ainda muitos desses novossois! se tornariam inevitavelmente vulgares se essa amarga opressao !hes fosse
Os pr6prios maus, os infelizes, os homens de excecdo, devem ter imposta; ndo saberiam servir sem se tornar necessariamente vulgares,
sua filosofia, sua razio, seu raio de sol! Nao é a piedade por eles que é escravos. Semelhantes espiritos — e podem ser de primeira ordem — se
necessdria! — E preciso que desaprendamosessa inspiracdo do orgulho a empenham sempre em se dar a si préprios e em dar a seu meio a forma
despeito de tudo o que a humanidade aprendeu dela para se exercitar nisso de naturezas livres — selvagens, arbitrdrias, fantasiosas, desordenadas,
ha tanto tempo — nao temos de instituir para eles confessores, exorcistas surpreendentes — e a se interpretar comotais: e tém razao, pois é s6 assim
e absolvidores. E uma nova justica que importa! E uma nova sangao! Sao que fazem o bem si préprios! De fato, uma tinica importa: que o homem
necessarios novos filésofos! A terra moral, ela também é redonda! A terra atinja o contentamento de si mesmo — qualquer que seja sua arte: pois
moral, ela também tem seus antipodas! somente ent4o o aspecto do homem sera suportavel!

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Aquele que esta descontente consigo mesmo esta sempre pronto a se “mede com olhar de inveja tudo o que é velho, tudo que ja esta construido:
vingar: como nés que seremos suas vitimas, quanto mais nao seja tendo quereria, pelo menos em pensamento, maravilhoso suplicio da imaginagao,
de suportar seu aspecto repugnante! Porque o que é feio a vista torna mau reconstruir de novo tudo aquilo, deixar ali a marca de sua mao, de seu
e sombrio. ‘espfrito, ainda que fosse apenas durante o instante de uma tarde de sol em
que sua alma insaciavel e melanc6lica experimenta finalmente o peso da
291 — GENOVA saciedade e em queseu olhar deve ver apenas coisas que lhe pertencem e
Contemplei durante um bom tempo essa cidade, suas mansGes e seus nao mais coisas estrangeiras.
jardins de lazer e o amplo circulo de suas colinas e de suas encostas
habitadas; finalmente, nao deixei de dizer para mim mesmo: vejo rostos 292 — AOS PREGADORES DA MORAL
vindos de geracgdes passadas — essa regido esta coberta de retratos de Nao quero fazer moral, mas dou o conselho seguinte aqueles que a
homensintrépidos e soberanos. fazem: se quiserem de toda formatirar 4s melhores coisas e as melhores
Viveram e quiseram prolongar sua vida — é o que me dizem com suas condicdes toda a sua honra e todo o seu valor, continuem a falar delas
casas construidas e decoradas para séculos e nao para o instante passageiro: como o fazem.
gostaram da vida, por mais cruel que ela pudesse ter sido muitas vezes Coloquem-nas no centro de sua moral, repitam de manha a noite
para eles. Tenho sempre diante dos olhos aquele que construiu, vejo como a felicidade da virtude, a tranqitiilidade da alma, a equidade e a justica
seu olhar pousa sobre tudo o que o cerca de perto ou de longe, sobre as imanente; se agirem desse modo, tudo isso acabara por ter de per si a
construg6es, sobre a cidade, sobre o mar e a linha da montanha e vejo seu ’ popularidade e o rumor das ruas; a voz do povo estara de seu lado; mas,
olhar exercer sua forga como conquistador. passando de mo em mao, perderdo toda a sua aparéncia dourada, pior: seu
Quer submeter tudo isso a seu plano e acabar por tornar isso sua ouro se transformara em chumbo.
propriedade. Um soberbo egoismo, uma insaciavel vontade de posse e de Na verdade, vocés sabem muito bem aplicar a arte contraria aquela dos
espolio reinam em toda a regiao; e precisamente como esses homens nfo alquimistas para desmonetizar o que ha de mais precioso!
reconheciam fronteiras em suas expedicées distantes, colocando em sua Tentem, portanto, a titulo de experiéncia, umareceita diferente, se nao
sede de novidade um mundo novo ao lado de um mundoantigo, assim quiserem, como até agora, conseguir o contrdério daquilo que procuram:
também em sua pequena patria todos se revoltavam contra todos, todos neguem essas excelentes coisas, retirem-lhes o aplauso da multidao,
inventavam uma forma de exprimir sua superioridade e de colocar seu entravem sua circulacao, voltem a fazé-las outra vez o objeto de secreto
infinito pessoal entre ele e seu vizinho. pudorda almasolitdria, digam que a moral é um fruto proibido!
Cada um reconquistava sua patria por sua conta impondo-lhe sua idéia Talvez ganhem entdo para sua causa a tnica espécie de homens que
arquitetOnica, recriando-a de umacerta maneira para o prazer deseus olhos. interessa, quero dizer, a estirpe do herdis.
O que impressiona no norte, quando se observa a ordenaciio das cidades, Masseria necessdrio que essa causa inspirasse 0 receio, e nao o desprezo,
€ a lei e o prazer da imposic4o: adivinha-se essa propens4o a igualdade e a comofez até aqui!
submissao que deve ter reinado na almade todosos construtores. Nao terfamos vontade de dizer hoje, com relagdo 4 moral, como Mestre
Mas aqui, em cada esquina, € um novo homem quese encontra, um Eckhart": “Peco a Deus que me liberte de Deus?”
homem que conhece o mar, a aventura, Oo oriente, um homem a quem
impacientam, como uma espécie de aborrecimento, a lei, o vizinho, e que
(1) Johannes Eckhart, dito Mestre Eckhart (1260-1327), fildsofo e tedlogo alemao (NT).

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293 — NOSSA ATMOSFERA 294 — CONTRA OS CALUNIADORES DA NATUREZA

Nos 0 sabemos muito bem: para aquele que se contenta em langar Que desagradaveis s40 aqueles em quem toda tendéncianaturalse torna
um olhar na ciéncia, somente de passagem, 4 maneira das mulheres e imediatamente doenga, algo que altera ou mesmo algo de ignominioso —
infelizmente também de muitos artistas, o rigor que é preciso colocar a estes nos induziram a pensar que as inclinacGes e os instintos do homem sao
servico da ciéncia, esse rigor nas pequenas como nas grandes coisas, essa maus; eles sdo a causa de nossa grande injustiga para com nossa natureza,
rapidez na pesquisa, o julgamento e a condenac4o tem alguma coisa que para com toda a natureza! Nao faltam homens que poderiam se entregar a
inspira o temore a vertigem. suas inclinagdes com graga e inconsciéncia; mas n&o o fazem, com receio
Ficara sobretudo espantado pela forma com que se exige o que ha de desse “mau espirito” imagindrio da natureza!
melhor, sem a recompensa do elogio ou dadisting4o, muito pelo contrario, E por isso que se encontra tao pouca nobreza entre os homens: porque
s6 deve esperar, como no exército, ouvir formular censuras ou severas a nobreza se reconhecerd sempre no fato de ela nao ter medode si prédpria,
reprimendas — porque fazer bem a regra, errar deve ser apenas a excegao; ndo esperar dela nada de vergonhoso e voar sem hesitag4o por toda parte,
e aqui, como em todaparte, a regra é silenciosa. Ocorre com esse “rigor voar para onde somos impelidos ~ nds, passaros livres! Para onde quer que
da ciéncia” como ocorre com as formas de cortesia na melhor sociedade: formos, tudo se torna livre e ensolarado em torno de nés.

— assusta 0 profano.
Masaquele que esta habituado a elas nado gostaria de viver em outro 295 — HABITOS BREVES
lugar sendo nessa atmosfera clara, transparente, vigorosa e fortemente Gosto dos habitos que néo duram e os considero como meios
elétrica, nessa atmosferaviril. inapreciaveis para aprender a conhecer muitas coisas e circunstancias
Em qualquer outra parte nado encontra bastante ar nem limpeza; além variadas, até o fundo de sua docura e de sua amargura; minha uma natureza
disso, teme que sua melhorarte nao seja Util a ninguém e lhe nao dé a é feita inteiramente para os hdbitos que néo duram, mesmo psiquicamente:
ele préprio nenhumaalegria, que metade de sua vida se escoe entre os tao longe quanto possa ver, do mais alto ao mais baixo de minha satide.
dedos no meio de mal-entendidos, que em toda parte fosse necessarias E sempre nessa brevidade que vou encontrar minha conta — 0 habito
muitas precaugées, segredos, consideragdes pessoais — e tudo isso seria breve tem essa fé da paixdo, essa fé na eternidade — creio ser invejavel por
uma grande perda de forgas! té-lo descoberto e reconhecido: — e agora me alimento dele; de manha a
Mas nesse elemento severo e claro possui sua forga por inteiro: aqui noite, um suave contentamento me cerca e me invade, de modo que nao
pode até voar! Por queiria voltar a descer para essas Aguas agitadas onde tenho vontade de outra coisa, sem ter necessidade de comparar, desprezar
sera condenado a nadar, a se atrapalhar e a manchar suas asas! — Nao! E ou odiar. E um belo dia, af esta: o breve habito teve seu tempo: a boa causa
muito dificil viver por14: seré por nossa culpa que nascemospara 0 ar puro, se despede de mim, nao comoalgumacoisa que ora meinspira desgosto —
nos, rivais dos raios de luz, que preferirfamos, 4 maneira desses raios de maspacificamente, saciado de mim, como eu dele, e como se devéssemos
luz, cavalgar parcelas de éter, nado para fugir do sol, mas parair para ele! ser gratos um ao outro, apertando a mao em despedida.
Nao podemos: — fagamos a tinica coisa que nossas forgas nos permitem: E ja algo de novo espera a porta, como também minhafé — a indestrutivel
levemosa luz 4 terra, sejamos “a luz daterra! E porisso que temos nossas louca, a indestrutivel sdbia! — minha fé nessa coisa nova que agora seria a
asas, nossa velocidade, nosso rigor, para isso € que somos viris e mesmo verdadeira, a Ultima verdadeira. Assim acontece comigo com os alimentos,

terriveis como o fogo. Que aqueles que nado sabem se aquecer e iluminar idéias, homens, cidades, poemas, misicas, doutrinas, ordens do dia,
junto de nés, que fiquem com receio! Maneiras de viver. — Em compensac4o, odeio os habitos longos e creio

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que um tirano se aproximou de mim, que minha atmosfera vital se tornou A opiniao doinvestigador passa sempre por desleal enquantoinimiga
mais espessa, logo que Os acontecimentos se orientam de maneira que da ‘“‘sdlida reputagdo”, ao passoquea petrificagdo das idéias monopoliza as
habitos duradouros parecem necessariamentesurgir: por exemplo, por uma distingdes honorfficas: € sob 0 império dessas regras que temosde existir
fungao social, pelo convivio constante com os mesmos homens, por uma hoje em dia! Como€ dificil viver quando sentimos contra nds, quando
residéncia fixa, por uma espécie definida de satide.. respiramos em nossoar,0 juizo de varios milénios! E provavel que durante
No fundo de minha alma, sou até grato a minhas misérias fisicas, a milhares de anos o conhecimento tenha tido a consciéncia pesada e que
minha doenga ¢ a tudo o que possoter de imperfeito — porque tudo isso me tenha havido muito desprezo de si e misérias secretas na histéria dos
deixa mil escapatérias por onde posso me furtar aos habitos duradouros. maiores espiritos.
— Apesardisso, seria para mim totalmente insuportdvel, verdadeiramente
terrivel levar uma vida inteiramente desprovida de habitos, uma vida que 297 — SABER CONTRADIZER
exigisse sem cessar uma improvisac4o: isso seria para mim meuexilio, Saber suportar a contradigdo é um sinal de elevada cultura e ninguém
minha Sibéria. hoje o ignora. Alguns sabem até que o homem superior deseja e provoca
essa contradicéo para que se indique onde se encontra sua injustiga que
296 — SOLIDA REPUTACAO sem isso ignorariam. Mas saber contradizer, conservar a boa consciéncia
Ter uma reputagio feita era antigamente uma coisa de extrema quando se opGe ao que é habitual, tradicional e sagrado€, mais que tudo, o
necessidade; e, por toda parte onde a sociedade é dominadapeloinstinto que nossa cultura possui de verdadeiramente grande, novo e surpreendente,
de rebanho, 0 mais oportuno continua ainda apresentar o pr6prio cardter é 0 progresso por exceléncia de todos os espiritos emancipados: quem é
assim comoas préprias ocupagées, como dados definitivos, mesmo quando que sabe isso?
nao 0 sao. “Pode-se confiar nele, permanece igual a si mesmo”; — esse é 0
elogio mais util em todas as situagdes perigosas da sociedade. 298 — SusPIRO
A sociedade é, com efeito, feliz por sentir que possui um instrumento Apanhei essa idéia no ar e logo tomei as primeiras palavras que me
seguro e pronto a todo momentona virtude de um, na ambi¢4o de outro, na vieram para a fixar, com receio que mefuja.
reflexao e no ardor de um terceiro — ela honra de mododigno essas naturezas E agora queela esta morta por causa dessaspalavras estéreis, flutua sob
de instrumentos, essa fidelidade a si mesmo, essa inalterabilidade nas esse trapo verbal — e, ao olhd-la, lembro com dificuldade ainda como pude
opinides, nas aspiracgdes e mesmo nos vicios. Semelhante apreciag4o que ter essa felicidade ao esse passaro.
floresce e sempre floriu por toda parte ao mesmo tempo que a moralidade
dos costumes produz “caracteres” e pde no descrédito toda mudan¢a,todo 299 — O QUE E NECESSARIO APRENDER DOS ARTISTAS
proveito de uma experiéncia, toda transformagao. Por maiores que possam Que meios temosde tornaras coisas para ndsbelas, atraentes e desejaveis
ser de resto as vantagens dessa maneira de pensar para 0 conhecimento, é a quando nao 0 s4o0? — e creio que em si n@o o sao nunca. Aqui os médicos
espécie de opinido publica mais prejudicial: porque aquilo que condena e -podem nosensinar alguma coisa quando, por exemplo, atenua a amargura
denuncia é justamente a boa vontade daquele que procura 0 conhecimento, ou acrescenta a¢uicar e vinho a suas misturas; mais ainda osartistas que se
sem se desencorajar por ser incessantemente forgado a se declarar contra aplicam em suma continuamente a fazer semelhantes inveng6es. Afastar-
a opinido que professava até entdo e a desconfiar em geral de tudo o que se dos objetos até fazer desaparecer um bom numero de seus pormenores
ameagase fixar — que é aqui condenado e desacreditado. e obrigar o olhar a acrescentar-lhe outros para que se possa ainda vé-los;

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contempla-los de um angulo de mancira a descobrir apenas uma parte; 301 -— ILUsAO DOS CONTEMPLATIVOS
olhd-los através de vidros coloridos ou a luz do poente; dar-lhes uma Os homens superiores se distinguem dos inferiores porque véem e
superficie, uma pele, que néo seja completamente transparente; tudo isso entendem infinitamente mais e s6 véem e entendem meditando — e isso
nos € necessario aprenderdos artistas e, quanto aoresto, ser mais sdbios do precisamente distingue o homem do animal e 0 animalsuperior doinferior.
que eles. Porque sua forga sutil se detém geralmente no ponto onde acaba O mundose enriquece sempre mais com aquele quese eleva nasalturas da
a arte e comeca a vida; mas nds queremos ser os poetas de nossa vida e em humanidade e cada vez mais iscas lhe sao langadas, o interesse cresce em
primeiro lugar nas menores coisas, nas minimas banalidades do cotidiano! torno dele, e na mesma propor¢do suas categorias de prazer e de desprazer
—o homem superior se torna ao mesmo tempo mais feliz e mais infeliz.
300 — PRELUDIO DA CIENCIA Mashd umailusdo que nao o abandonajamais: julga encontrar-se como
Créem que asciéncias teriam nascido, créem queteriam se desenvolvido, espectador e ouvinte no grande concerto que é a vida; diz que sua natureza
se OS Magicos, os alquimistas, os astrélogose os feiticeiros nao as tivessem é contemplativa e nao percebe que é ele mesmo o verdadeiro poeta e 0
precedido, eles que tiveram de criar tudo antes, por meio de suas promessas criador da vida — que se distingue do aror desse drama, o chamado homem
e de suas ligagdes enganosas, a sede, a fome e o gosto pelas for¢gas de acao, se distingue muito mais ainda de um simples espectador, de um
escondidas e proibidas? convidado sentado diante do palco.
Créem que nao foi necessaério prometer muito mais do que aquilo Tem certamente comopréprio dele, sendo poeta, a vis contemplativa’
que alguma vez se podera cumprir para poder fazer a mais insignificante ea faculdade de olhar retrospectivamente sua obra, mas ao mesmo tempo e
coisa no dominio do conhecimento? — Talvez, do mesmo modo como nos em primeiro lugar possui a vis creativa'’?) que falta ao homem deagao, seja
aparecem aqui os preltidios e os primeiros exercicios da ciéncia (que nunca o que for que digam a aparéncia e a crengatradicionais.
foram considerados comotais), assim também apareceraéo, numa época Nés que meditamose sentimos, somos nés que fazemos e nao cessamos
distante, todas as religides, isto é, como exercicios e preludios: talvez realmente de fazer o que nao existe ainda: ou seja, este mundo sempre
as religides nao tivessem mais que o mérito singular de permitira alguns crescente de apreciac6es, de cores, de pesos, de perspectivas, de escalas, de
homenssaborear toda a satisfagdo que um deustira de si mesmo e toda a afirmag6es e de negacées.
forga que lhe é propria para se resgatar a si mesmo. _ Eesse poemade nossa invengao que os homens praticos (nossosatores)
E se poderia perguntar se, na verdade, sem essa escola e essa preparacdo aprenderam, repetiram, traduziram em carne e em realidade, sim, mesmo
religiosa, o homemteria aprendido a ter fome e sede de seu préprio eu, ase em vida cotidiana. Tudo o que tem algum valor no mundopresente nao 0
saciar e a se encher de si mesmo. possuipor si mesmo, segundo sua natureza — a natureza nunca tem valor: —
Noteria sido necessario que Prometeu acreditasse primeiro ter roubado foi preciso conferir-Ihe um valor,atribui-lo a ela eforos nds que 0 fizemos!
a luz e que expiasse isso — para descobrir enfim que havia criado essa luz, N6s sozinhos criamos 0 mundo que interessa ao homem! — Ora, nds nao
ao desejar a luz, e que nao somente o homem, mas também 0 deus, tinham sabemosisso e quandonosacontece por um instante tomarmosconsciéncia
sido obra de suas mos, da argila em suas mdos? disso, esquecemoslogo noinstante seguinte: desconhecemosnossa melhor
Nao seriam apenasestatuas de escultor? — Precisamente comoa loucura, forca e nos subestimamos um pouco, nés, os contemplativos — nado somos,
o roubo, o Caucaso,o abutre e toda a tragica promethéia'” de todos aqueles portanto, nem tdo orgulhosos nem tao felizes como poderiamos.
que procuram o conhecimento?
(1) Expressio latina que significa “forga contemplativa™ (NT).
(1) Termo grego derivado de Prometeu e que alude a faganha de Prometeu que roubou o fogo do céu (NT). (2) Expresso latina que significa “forga criativa” (NT).

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302 — PERIGO DOS MAIS FELIZES As causas a que deu seu coragio levaram-no j4 varias vezes a borda do
Ter sentidos apurados e um gosto refinado; estar habituado as coisas abismo e muitoperto da queda: e se escapou, nao foi somente com o “olho
mais selecionadas e melhores do espfrito, como a alimento mais verdadeiro machucado”’. Julgam quese sente infeliz?
e mais natural; dispor de uma alma forte, intrépida e audaciosa; percorrer a Ha muito tempo que decidiu consigo nao levar muito a sério seus
vida com olhartranqiiilo e passo firme, estar sempre pronto aos extremos proprios desejos, seus projetos pessoais. Diz para si mesmo: “Se isso ndo
como para uma festa, sempre cheio do desejo de mundos e mares saiu a contento, talvez nisso tenha sucesso; e, no fundo, ndo sei se devo
inexplorados, de homens e de deuses desconhecidos; escutar toda miisica mais gratiddo a meus malogros que ndo sei a qual de meus sucessos? Seret
alegre comose, ao ouvi-la, homens corajosos, soldados e marinheiros se feito para ser teimoso e carregar chifres de touro? O que faz para mim o
permitissem uma breve parada e uma brevealegria, e no profundo gozo do valor da vida e seu resultado se encontra em outro lugar; meu orgulho,
momento fossem vencidospelas lagrimas e por toda melancolia purpura da minha miséria se encontram em outro local. Conheco melhor a vida por
felicidade, quem, pois, nao desejaria que tudo isso fosse sua partilha, seu ter estado muitas vezes a ponto de perdé-la: essa é a razdo por que a vida
estado! Foi essa a felicidade de Homero! me deu mais alegria que a vocés todos”
O estado daquele que inventou para os gregos seus deuses — nao, que
inventou para si mesmo seus deuses! Mas nao vale a pena de simula-lo, 304 — AO AGIR, ABANDONAMOS
com essa felicidade na alma também se é a criatura mais vulneravel sob o No fundo, nado gosto de todas essas morais que dizem: “Ndo facas
sol! S6 por esse prego se compra a mais preciosa das conchas que as ondas isto! Renuncia! Supera-te!” — Gosto, pelo contrario, de todas essas outras
do universo alguma vez langaram na praia. O possuidor dessa concha se morais que me levam a fazer umacoisa, a refazé-la, a pensar nela de manha
torna cada vez mais sensivel na dor e, finalmente, demasiado sensivel: 4 noite, a sonhar com ela durante a noite e a néo pensar em outra coisa:
um pequeno desencorajamento, um pequeno desgosto acabaram porlevar fazer bem isso, tao bem comos6 eu sou capaz de fazer! Quem vive assim se
Homeroa perder 0 gosto pela vida. Nao tinha sabido adivinhar um simples livra continuamente de uma apos outra das coisas que nao fazem parte de
e absurdo enigma que jovens pescadores lhe propuseram. Sim, os menores semelhante vida; sem d6dio e sem repugnancia, vé hoje tal coisa e amanha
enigmas sAo 0 perigo dos mais felizes! tal outra se despedirem dele, como uma folha amarela se destaca da arvore
ao menorsopro: por outro lado, pode até mesmo nem perceber que ela o
303 — Dols HOMENS FELIZES deixa, de tal modo o objetivo absorve seu olhar para a frente e ndo para
Verdadeiramente esse homem, apesar de sua juventude, sabe improvisar © lado, para tras ou para baixo. “Nossa atividade deve determinar o que
na vida e espanta mesmo os mais sutis observadores: de fato, parece que deixamos de lado: ao agir, nds abandonamos” — isso é que me agrada,
nunca se engana, embora se arrisque sempre nos jogos mais perigosos. esse é meu proprio placitum'!, Mas nao quero trabalhar, de olhos abertos,
Leva a pensar nesses musicos que improvisam magistralmente, aos quais 0 para me empobrecer, nfo gosto das virtudes negativas — as virtudes cuja
espectador gostaria de atribuir uma divina infalibilidade da mao, emboraas esséncia é a negac4o e a renuncia.
vezes toquem errado, pois todo mortal pode se enganar. Mas sao hdbeis e
inventivos e sempre prontos, no mesmo instante, a integrar o som produzido 305 — Dominio SOBRE SI
pelo acaso de seu dedilhar ou por uma fantasia no conjunto tematico e a + Esses professores de moral que recomendam ao homem em primeiro
animar o imprevisto com um belo significado e uma alma: — Af esta um lugar e acima de tudo que se domine, dao-lhe assim uma singular doenga:
homem totalmente diferente: fracassa em tudo 0 que empreende.
(1) Termolatino que significa “o que me agrada” (NT).

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querodizer, umairritabilidade constante diante de todos os impulsos e de 307 — EM FAVORDA CRITICA


todas as inclinag6es naturais e, de alzum modo, uma espécie de comichao. Agora te aparece como um erro alguma coisa que outrora amaste como
Seja o que for que lhe acontega dentro ou fora, um pensamento, uma uma verdade ou pelo menos como umaprobabilidade: tu a rejeitas para
atragao, umaincitagao — esse homem irritadigo sempre imagina que agora longe de ti e imaginas que tua razdo acaba de obter umavit6ria. Mastalvez
seu dominio sobresi poderia estar em perigo: sem poder confiar em nenhum entado, quandoeras ainda outro — tu és sempre um outro — esseerro te fosse
instinto, se entregar a nenhum v6olivre, esté sempre na defensiva, armado tao necessdrio comotodasas “verdades”atuais, de algum modo como uma
contra si mesmo, com o olhar atento e desconfiado, ele que se instituiu 0 pele que te escondia e te velava muitas coisas que ainda nao podias ver.
eterno guardiao de suatorre. Foi tua nova vida e nao tua razao que matou em ti essa idéia: ja ndo tens
Certamente, ele pode ser grande nesse papel! Mas como se tornou necessidade dela e agora ela se destroi por si mesma e a sem-razdo sai dela
insuportavel aos outros, pesado para si, como se empobreceu e se isolou como um verme.
dos mais belos acasos da alma! E também de todasas /icdes futuras! De Quando exercemosnossoespirito critico, nao ha nisso nada dearbitrario
fato, € preciso saber se perder durante um tempo se se quiser aprender e de impessoa! — é pelo menos, com muita freqiéncia, uma prova de que ha
alguma coisa dos seres que nds préprios nao somos. em nos forgas vivas e agindo que eliminam uma casca. Negamos e somos
obrigados a fazé-lo porque ha em nds alguma coisa que quer viver e se
306 — Esr6Ico E EPICUREU _ afirmar, alguma coisa que néo conhecemos, que nao vemostalvez ainda!
O epicureu escolhe as situagGes, as pessoas € MesMoOs acontecimentos — Isso em favordacritica.
que se conformam com sua constituicao intelectual extremamente irritavel
e renuncia a todo o resto — isto é, 4 maioria das coisas ~ porque esse seria 308 — A HISTORIA DE TODOS OS DIAS
um alimento forte demais, pesado demais paraele. De que é feita em ti a histéria de todos os dias? Considera os habitos
O estoico, pelo contrario, treina para engolir pedras e vermes, cacos e que compéem essa histéria: sero 0 produto de inumerdveis pequenas
escorpides, e isso sem repugnancia; seu est6mago acabapor ficarindiferente covardias e pequenas preguicas, ou ainda aquele de tua coragem e de tua
a tudo 0 que 0 acaso da existéncia oferece: — lembra essa seita arabe dos engenhosa raz4o? Por mais diferentes que sejam essas duaseventualidades,
Aissaouas, que se encontram na Argélia e, comoesses insensfveis, gosta de é possivel que os homens te cubram dos mesmoselogios e que, de qualquer
ter um publico de convidados ao espetaculo de sua insensibilidade, de que forma, tu sejas para eles da mesmautilidade.
nao precisa o epicureu. — Este ndo tem um “jardim’”? Masqueos elogios, a utilidade e a respeitabilidade sejam suficientes
Para homens sujeitos as improvisagées da sorte, para aqueles que para aquele que s6 pretende possuir uma boa consciéncia — elas nao te
vivem em tempos de violéncia e que dependem de homens impulsivos e bastarao a ti que sondasosrins, a ti que possuis a ciéncia da consciéncia.
caprichosos, 0 estoicismo pode ser muito oportuno.
Mas aquele que pode prever, por pouco que seja, que o destino Ihe 309 — Da SETIMA SOLIDAO
havera de permitir de tecer um longo fio fara bem em assumir o modo de Um dia, o viajante fechou umaporta atras de si, se deteve e comegou
el

vida epicureu; todos os homens votados ao trabalho cerebral o fizeram a chorar. Depois disse: “Essa inclinagdo ao verdadeiro, a realidade, ao
até agora! De fato, seria para eles a pior das perdas serem privados se sua ndo-aparente, a certeza! Como detesto isso! Por que essa for¢a que age,
fina irritabilidade para receber em troca a dura pele dos estéicos, erigada sombria e apaixonada, me segue, justamente eu? Gostaria de descansar,
de espinhos. mas ela ndo o permite.

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Quantas coisas me convidam a parar! Hé em toda parte jardins _ Oh! por que isso é necessdrio? De que serve vivermos escondidosse
Ndoseria
de Armida para mim: tantas outras dilaceragées do coragdo e novas nado queremos guardar para n6s 0 que provoca o escandalo?
amarguras! E preciso que ponha meu pé mais longe, esse pé cansado e mais prudente viver na confusdo e reparar nos individuos os pecados
ferido: e, como é preciso, volto-me muitas vezes para lancar um olhar cometidos, que devem ser praticados por todos? Ser insensato com os
feroz para as belas coisas que ndo souberam me deter, porque ndo insensatos, vaidoso com os vaidosos, entusiasta com os entusiastas? Nao
souberam mereter\” seria justo, porquantonos afastamosdeles tao insolentemente em geral?
Quando ougofalar da maldade dosoutros a meu respeito — meu primeiro
310 — VONTADE E ONDA sentimento nado é o de satisfacdo? Esta bem assim — parego dizer-
Essa onda, com que avidez se aproxima, comose tivesse um objetivo a Ihes — dou-me tao mal com vocés e tenho tanta verdade de meu lado:
alcangar! Com quepressa inquietante desliza nas fendas mais rec6nditas da consigam por isso prazer & minha custa, tantas vezes quantas puderem!
falésia! Parece que quer prevenir alguém: parece que haali alguma coisa Esses sGo meus defeitos e meus erros, minha loucura, meu mau gosto,
de oculto, algumacoisa de valor, de um grandevalor. — E agora ela reparte, minha confusdo, minhas lagrimas, minha vaidade, minha noite de coruja
um pouco mais lentamente, ainda inteiramente branca de emogao! — Estard e minhas contradicgées! Pois ai esta do que rir! Riam e se divirtam! Nao
desapontada? Tera encontrado o que procurava? — Nao estard simulando a quero mal @ lei e a natureza das coisas que querem os defeitos e os
decep¢4o? Masjd se aproximaoutra onda, mais dvidae mais selvagem ainda erros causem prazer! — E verdade que houve tempos mais “belos” em
quea primeira, e sua alma, também ela, parece cheia de mistério, cheia de que se podia ainda sentir-se indispensdvel com qualquer idéia um pouco
vontade para procurartesouros. E assim que vivem as ondas — é assim que nova, em que se podia descer para a rua e gritar a todos os passantes:
nds vivemos também, nds que possuimos a vontade! — Nao direi mas nada “Atencdo! O reino de Deus esta proximo!” — Poderia enfurecer-me, se
— Como? Desconfiam de mim? Vocés me querem, belos monstros? Temem eu ndioexistisse. Ninguém é indispensdvel\” — Mas, ja 0 disse, nao € assim
queeu traia inteiramente seu segredo? Pois bem! Aborrecam-se, levantem que pensamos quando somos corajosos; ndo pensamos nisso.
seus corpos verdoengose perigosostao alto quanto puderem, levantem um
muro entre mim e 0 sol — como agora! Na verdade, ndo ha mais nada no 312 — MEu cAo
mundo senao um creptisculo verde e de relampagos verdes. Fagam como Dei um nome a meu sofrimento e o chamo “cao” — é tao fiel, tao
quiserem, impetuosas, bramem de prazer e de maldade — ou mergulhem de importuno e impudente,tao divertido, tao esperto como qualqueroutro cao
novo, derramem suas esmeraldas no abismo, lancem sobre elas suas rendas —e posso xingé-lo e descarregar nele meus humores: como fazem outros
infinitas de musgo e de espuma. - Subscrevo tudo, pois isso tudo lhes cai com seus c4es, com seu criado e com sua mulher.
bem e porque sei que so infinitamente gratas: como poderia trai-las?
Porque — ouvi — eu as conhego, conhego seu segredo, sei de que espécie 313 — NADA DE QUADRO DE MARTIR
vocés sdo! Vocés e eu somos de uma mesmaespécie! — Vocés e eu temos 0 Quero fazer como Rafael'’ e nao pintar mais quadros de méartires. Ha
mesmo segredo! muitas coisas elevadas para que se v4 procurar o sublime ondeeste se une
4 crueldade: e mais, meu amor préprio no ficaria satisfeito se eu quisesse
311 — Luz REFRATADA fazer de mim um sublimecarrasco.
Nem sempre se € corajoso e quando seesta cansado, muitas vezes ocorre
quese passe a lamentar-se desse modo: “Como é durofazer mal aos homens! (1) Raffaello Sanzio (1483-1520). pintor e arquiteto italiano, famoso por suas obras executadas sobretudo em
Florenga e em Roma (NT).

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314 ~ Novos ANIMAIS DOMESTICOS um ethos’ e nao um pathos’ — para falar como os gregos. Algumas
Quero ter meu ledo e minha 4guia em minha volta para reconhecer notas de misica me lembraram hoje um inverno, uma casa € uma vida
sempre, por indicios e sintomas, a grandeza e a pequenez de minhaforga. to que eu sentia
essencialmente solitdria e¢, ao mesmo tempo, o sentimen
Sera necessdrio hoje que abaixe meus olhos para eles para os temer? E entdo: — eu acreditava poder continuando a viver eternamente assim.
chegara a hora em queeles erguerdo para mim seu olhar com temor? Mas agora compreendo que isso era unicamente pathos e palxao, uma
coisa que se parecia com essa musica dolorosamentecorajosa e consoladora
315 ~ Do ULTIMO MINUTO — pode-se nao ter sensagdes dessas durante anos ou mesmo durante
As tempestades so meu perigo: chegarei a ter minha tempestade, aquela ‘eternidades: nds nos tornarfamos demasiado “etéreos” para este planeta.
que vai me matar, como Oliver Cromwell! morreu com sua tempestade?
Ou, sem esperar ser soprado pelo vento, vou distender-me como umatocha 318 — SABEDORIA 'NA DOR
fatigada e saciada de si propria — uma tocha consumida? Ouacabarei por Na dor ha tanta sabedoria como no prazer: ambos estado na primeira
soprar-me a mim mesmopara nao chegara esse ponto? linha das forcas conservadoras da espécie. Se assim nao fosse com a dor,
ha muito tempoela teria desaparecido; que ela cause sofrimento, esse nao é
316 — HOMENS PROFETICOS um argumento contraela, ao contrario, é sua esséncia. Ouco na dor a ordem
Vocés nao querem compreender que os homens proféticos siio seres que do capitao do navio: “Arriem as velas!”
sofrem muito: pensam somente que um belo “dom”lhes foi concedido e O intrépido navegador “homem” deve ser treinado a orientar as velas
vocés mesmosgostariam de té-lo — mas quero expressar meu pensamento de mil maneiras, de outro modo nfo tardaria a desaparecer e 0 oceano Oo
por umaparabola. Quanto nao devem sofrer os animas com a eletricidade do engoliria depressa. .
ar e das nuvens! Algunsdeles possuem em relaco ao tempo uma faculdade E preciso que saibamosviver também com umaenergia reduzida: logo
profética, como os macacos(pode-se observar isso na Europa, néo somente que a dor da seu sinal de seguranga, ¢ 0 momento de reduzi-la — algum
nos jardins zoolégicos, masaoar livre em Gibraltar). Mas nunca refletimos grande perigo, uma tempestade se prepara e agimos prudentemente ao
que sao seus sofrimentos que neles profetizam! Quando umaforte corrente oferecer a menor“superficie” possivel. — E verdade que ha homens que,
de eletricidade positiva se transforma de repente em eletricidade negativa, com a aproximacio da grande dor, ouvem a ordem contraria e nunca tém ar
sob a influéncia de uma nuvem que se aproxima sem servisivel, e que masaltivo, mais belicoso, mais feliz do que quando a tempestade chega;€
uma mudanga de tempose prepara, esses animais se comportam da mesma a propria dor que lhes da seus instantes mais sublimes!
maneira que com a aproximacao de um inimigo; eles se organizam para a Esses sd0 os homens herdicos, os grandes “promotores da dor” da
defesa e a fuga, geralmente se escondem — nao véem, no mau tempo, 0 mau humanidade: esses raros individuos de quem se deve fazer a mesma
tempo, mas o inimigo de que jd sentem sua mao pousadasobreeles. apologia que se faz para a dor em geral - e, na verdade, nfo se deve
recusé-la a eles! . 7
317 — UM OLHARPARA TRAS Sao forcas de primeira ordem para conservare fazer progredir a especie:
Raramente temos consciéncia de que cada periodo de sofrimento quanto mais nao seja porque resistem ao sentimento de bem-estar e nao
de nossa vida tem algo de patético; enquanto estivermos nesse periodo, escondem seu desgosto por essa espécie de felicidade.
acreditamos ao contrdrio que esse é praticamente 0 tinico estado possivel,
(1) Termo grego quesignifica “dever, moral” (NT).
(1) Oliver Cromwell (1599-1658). militar e ditador da Inglaterra entre 1653 e 1658 (NT). (2) Termogrego que significa “afeto. sentimento” (NT).

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319 — INTERPRETES DOS ACONTECIMENTOS DE NOSSA VIDA brilhantes! Obscurecamos 0 outro por nossa luz! Nao! Nao queremos nos
Umaespécie de franqueza que sempre faltou a todos os fundadores escurecer como todos aqueles que punem, como todos os descontentes.
de religiao e aqueles que se assemelham a eles: — nunca fizeram Melhorque isso, afastemo-nos! Olhemospara outro lado!
dos acontecimentos de sua vida uma questo de consciéncia para o
conhecimento. “Que me aconteceu, entdo? Que se passou em mim e 322 — PARABOLA
em torno de mim? Minha razdo estaria suficientemente lucida? Minha Os pensadores cujas estrelas seguem rotas ciclicas no sao os mais
vontade estava armada contra os enganos da imaginacdo?” — Nenhum profundos; aquele que vé nele como num universo imenso e que traz nele
deles se fez esta pergunta, nenhum de nossos bonsreligiosos se a faz hoje: vias l4cteas sabe também comotodasas vias lacteas s4oirregulares; elas
pelo contrario, tém sede das coisas que s4o contra a razdo e nao querem conduzem até o caose até o labirinto da existéncia.
ter muito trabalho em satisfazé-la — é assim que lhes acontecem milagres
e “regenerescéncias”, é assim que ouvem a voz dos anjos! Mas nos, nds 323 — FELICIDADE NO DESTINO
outros, que temos sede da raz4o, queremos examinaros acontecimentos de A maior distincdo que o destino possa nos reservar € de nos deixar
nossavidatao rigorosamente como se fossem experiénciascientificas, hora combater durante certo tempo do lado de nossos adversarios. E assim que
por hora, dia por dia! Queremos nés proprios ser nossas préprias cobaias! somospredestinados a uma grandevit6ria.

_ 320 — REENCONTRO 324 — IN MEDIA VITA‘?


A — Sera que te ouvi bem? Procuras alguma coisa ? Onde ficam, no Nao, a vida nao me desapontou! Pelo contrario, a cada ano a acho mais
meio do mundo real de hoje, teu canto e tua estrela? Onde podeste deitar rica, mais desejavel e mais misteriosa — desde o dia em que veio a mim
ao sol para que tu também tenhas um excedente de bem-estar e para que a grande libertadora, essa idéia de que a vida podia ser uma experiéncia
tua existéncia se justifique? Que cada um aja por sua conta — pareces me daquele que procura 0 conhecimento — e nado um dever, nao umafatalidade,
dizer — e que tire da cabeca as generalidades, a preocupacdo pelos outros _ ndo um engano! — Eo proprio conhecimento — que para Osoutros seja outra
e pela sociedade! coisa, por exemplo, um leito de repouso ou 0 caminho que leva para um
B — Quero mais, nado sou daqueles que procuram. Quero criar para leito de repouso ou ainda um divertimento ou uma vadiagem — para mim ¢é
mim meu propriosol. um mundode perigose de vitérias, onde os sentimentos herdicos também
tém seu local de danca e de jogos. “A vida como meio do conhecimento”
321 — Nova PRECAUCAO — com esse principio no coragao se pode viver nao somente com bravura,
Nao pensemos mais em punir, em recriminar e em querer tornar melhor! mas ainda viver alegremente e rir de felicidade! E como se conseguiria
Raramente chegaremos a mudar alguém individualmente; e se chegarmos chegar a bem rir e a bem viver se antes ndo se conseguisse enfrentar a
a isso, talvez sem perceber teremosfeito outra coisa ainda. — Nés também guerra e conquistar a vitéria?
teriamos sido modificados pelo outro! Procuremos antes que nossa
influéncia sobre tudo isso que estd para vir se contraponha a sua e leve 325 — CONDICAO DA GRANDEZA
a melhor! Nao lutemos em combate direto! — 0 que é toda punicao, toda Quem podeesperar, pois, algumacoisa de grande se nao sente a forca e
recriminagao, toda vontade de tornar melhor. Elevemo-nos, pelo contrario, a vontade de acrescentar grandes dores?
a nos prdoprios muito mais alto! Demosa nosso exemplo cores sempre mais
(1) Expressaiolatina que significa “no meio da vida. na metade da vida" (NT).

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Sabersofrer é a coisa mais insignificante: as mulheres fracas e mesmo mas a calaram porquerefutava sua teoria, segundo a qual a felicidade passa
Os escravos chegam a ser mestres nessa arte. Mas nado perecer de miséria ~ pelo aniquilamento da paix4o e pelosiléncio da vontade! Quantoa receita
interior e de incerteza quando se provoca a grande dor € se Ouve 0 grito de todos esses médicos da alma e suas recomendacées de umacura radical
dessa dor — isso € grande — isso faz parte da grandeza. e rigorosa, € permitido perguntar: nossa vida ser realmente tao dolorosa
e té0 odiosa para troca-la com vantagem pelo estoicismo de um género de
326 ~ Os MEDICOS DA ALMA E O SOFRIMENTO vida petrificada? Nos nao nos sentimos tdo mal assim para termos de nos
Todos os pregadores de moral, bem como os tedlogos, possuem um sentir mal 4 maneira estdica!
tique comum: todos procuram persuadir 0 homem queele est4 muito mal,
que necessita de uma cura enérgica radical e suprema. E como todos os 327 — LEVAR A SERIO
homens deram ouvidos com demasiada 4nsia, durante séculos, a esses O intelecto da maioria dos homens é uma maquina pesada, sombria ¢
mestres, algumacoisa dessa supersti¢4o que eles sdo miserdveis acabou por rangente, dificil de p6r em movimento; quando querem trabalhar com ela
passar realmente neles: de modo que estao ai sempre mais que dispostos a e pensar bem com essa maquina dizem que “levam a coisa a sério”~ oh!
suspirar, a achar a vida indigna de ser saboreada a fazercaratriste, como como deve ser penoso para eles “pensar bem”!
se a existéncia fosse dura demais para suportar. A graciosa besta humana tem a aparéncia de perder cada vez seu bom
Na verdade, sfo furiosamente seguros de sua vida, sio apaixonados humor quandose pée a pensar bem; ela se torna “séria”! E “em toda parte
por ela e cheios de astticias e de sutilezas, querem eliminar as coisas onde hé riso e alegria, o pensamento ndo vale nada’: esse € 0 preconceito
desagradaveise arrancar o espinho do sofrimento e dainfelicidade. Parece- - dessa besta séria contra toda “gaia ciéncia”. Pois bem! Mostremos que se
me que semprese falou com exagero da dore da infelicidade comose fosse trata de um preconceito.
de bom tom exagerar: em contrapartida, cala-se intencionalmentea respeito
dos inumeraveis meios de aliviar a dor, como por exemplo os narc6ticos ou 328 — PREJUDICAR A ESTUPIDEZ
a pressa febril dos pensamentos ou uma posic¢do tranqiiila ou ainda as boas E certo que no conjunto a reprovag4o do egoismo,crenga pregada com
e mas lembrangas,as intengGes, as esperang¢ase toda espécie de orgulhos e tanta obstinac4o e conviccao, prejudicou o egofsmo (em beneficio dos
de compaixGes que produzem efeitos quase anestésicos; enquanto que num instintos de rebanho, vou repeti-lo mil vezes!), sobretudo pelo fato de que
alto grau de sofrimento o desmaio se produz porsi. Ihe tirou a boa consciéncia, ensinando a procurar no egoismo a verdadeira
Sabemos muito bem destilar dogura sobre nossas amarguras, fonte de todos os males.
especialmente sobre a amargura da alma; temos recursos em nossa bravura “A procura de teu proprio interesse é a desgraga de tua vida” — isso
e em nossa elevagéo, bem como nos nobres delirios da submissao e da é€ o que foi pregado durante milhares de anos: isso fez muito mal ao
resignacdéo. Uma dano é raramente um dano por mais de umahora; de uma egoismoe lhe tirou muito espirito, muita serenidade, muita engenhosidade,
maneira ou de outra, um presente ao mesmo tempo nos caiu do céu — por muita beleza, foi bestializado, enfeado, envenenado! — Pelo contrario, os
exemplo, uma forga nova, mesmo que fosse apenas uma nova ocasiao de antigos fildsofos indicaram outra fonte principal do mal: desde Sdcrates,
forga! Os pregadores de moral, que temas nao urdiram sobre a “miséria™ Os pensadores no cessaram de pregar: “Sua irreflexdo e sua estupidez, a
interior dos homens maus? E que mentiras ndo nos contaram sobre a _amenidade de sua vida regular, sua sobordinacdo a opinido do vizinho,
infelicidade dos homens apaixonados! — Sim, mentiras, esse é o termo e€ssas sdo as razOes que lhes impedemtdo freqiientemente de chegarem a
exato: conhecem muito bem a extremafelicidade dessa espécie de homens. Felicidade — nds, pensadores, somos os mais felizes porque pensamos.”

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Nao nos perguntemos aqui se este sermdo contra a estupidez tem mais Ah! que suspeita sempre crescente a respeito de toda alegria! O
razdes em seu favor que 0 sermao contra o egoismo; 0 que € certo é que trabalho tem sempre mais a boa consciéncia de seu lado: a inclinagdo a
eliminou a estupidez de sua boa consciéncia: — esses filésofos prejudicaram alegria j4 € chamada de “necessidade de repouso” e comegaa ter vergonha
a estupidez! de si mesma. “E bom para a satide” ~ é assim que se fala quando se €
surpreendido num passeio pelo campo. Sim, neste ritmo as coisas poderao
329 — LAZER E OCIOSIDADE ir rapidamente tao longe que ndo se ousar4 mais ceder a uma inclinag&o
HA umaselvageria totalmente india, particular ao sangue dos peles- pela vida contemplativa (isto é, a passear com pensamentos e amigos)
vermelhas, na maneira como os americanos aspiram ao ouro; e seu frenesi sem se desprezar nem ter ma consciéncia: — Pois bem, antigamente era 0
do trabalho — 0 verdadeiro vicio do novo mundo — j4 comega a contaminara contrario: o que conferia ma consciéncia era otrabalho.
velha Europa, a tornd-la selvagem ao propagar umafalta de espirito de todo Um homem de boa origem escondia seu trabalho, se a miséria o
singular. Agora se tem vergonha do repouso; parece que se morde os dedos constrangia o fazer um. O escravo trabalhava esmagado pelo sentimento
ao pensar em meditar. Reflete-se de relégio na mao, mesmo quandose esta de fazer alguma coisa de desprezivel: — 0 proprio “fazer” ja era algo de
almogando, com um otho no andamento da bolsa de valores — vive-se como desprezivel. “S6 hd nobreza e honra no écio e na guerra”: era assim que
alguém que sem cessar tivesse medo de “deixar escapar” algumacoisa. falava a voz do preconceito antigo!
“E preferivel fazer qualquer coisa que ndo fazer nada” — esse principio
também é uma corda apropriada para estrangular todo gosto superior. 330 — APLAUSOS
E do mesmo modo que todas as formas desaparecem num piscar de O pensadornao tem necessidade de aplausos, desde que esteja certo dos
olhos nesse labor frenético, assim também perecem o sentimento da forma, seus: pois, esses ndo pode dispensa-los. Alguém pode se dispensar de todo
0 ouvido e a vista pela melodia do movimento. A provadisso esta na pesada aplauso? Duvido muito. Mesmo o sabio entre os sdbios, Tacito'!’, que nao
precisdo que se exige agora em todasas situagdes em que o homem quer era um caluniador da sabedoria, dizia: “Quando etiam sapientibus gloriae
ser leal para com o homem, em suas relagdes com os amigos, as mulheres, cupido novissima exuitur’” — 0 que para ele quer dizer: nunca.
os pais, os filhos, os professores, os alunos, os guias e os principes — nao
se tem mais nem tempo nem forga para as cerimOnias, para a cortesia com 331 — E PREFFRIVEL SER SURDO QUE ENSURDECIDO
graca, para todo espirito de conversa e, em geral, para todo lazer. De fato, a Antigamente se queria que todos ouvissem seu nome: hoje isso nao
caca ao ganhoforga o espirito a se esgotar numa dissimulagdo sem trégua, basta, pois a praca ficou muito grande — é preciso gritar e muito alto para
numa iluséo permanente ou na preocupagdo de desmascarar o outro: a ser ouvido. A conseqiiéncia é que as melhores gargantas enrouquecem
verdadeira virtude consiste agora em superar o vizinho. para oferecer as melhores mercadorias; sem gritos em praca publica e sem
Nao ha, por conseguinte, senao raras horas permitidas de lealdade: enrouquecimento nao pode mais haver génios em nossos dias. — Essa é
mas entdo se esta cansado e s6 se aspira a “deixar correr” e a estender-se realmente um época bem vil para o pensador: deve reaprender a encontrar
pesadamente na cama. Isso € 0 que se faz agora na propria correspondéncia: sua calma entre duas algazarras e fazer-se de surdo até tornar-se de fato.
o estilo e 0 espirito das cartas serao sempre o verdadeiro “sinal do tempo”. Enquanto nfo tiver aprendido isso, corre o risco de perecer de impaciéncia
Se ainda se encontra prazer na sociedade e nas artes, € um prazer de e de dores de cabe¢a.
escravos cansados pelo trabalho. Ah! Comofica contente por pouca coisa
(1) Caius Cornelius Tacitus (55-120), historiador latino (NT).
essa gente culta e inculta! (2) Frase latina que significa “Mesmoos sdbios s6 dispensam em ultimo caso a sede de gloria” (NT).

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332 —- A MA HORA Sim, talvez haja em n6s muitos herofsymos escondidos em futa, nada
Deve ter havido para cada fildsofo uma hora mé em que pensou: de divino contudo, nada que repousa eternamente em si mesmo, como
“Que importancia posso ter, se ndo acreditam também em meus maus
pensava Spinoza.
argumentos?” — E entéo um pdssaro malicioso, passando ao lado dele, se O pensamento consciente, e sobretudo o dofilésofo, é 0 menos violento
pos a gorjear: “Que importdncia tens? Que importdncia tens tu?”
| e€, por conseguinte também, relativamente a mais suave e a mais tranqiiila
forma de pensamento: é por isso que na maioria das vezes € 0 fildsoto o
333 — O QUE E CONHECER?
“Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere”, diz
i Mais exposto a se enganarsobre a natureza do conhecimento.

Spinoza” com essa simplicidade e essa elevacio que lhe sao peculiares. 334 — AMAR SE APRENDE
Mas0 que vem ser, em tiltima andlise, este intelligere sendo a forma pela Aqui esta 0 que ocorre na mésica: em primeiro lugar é preciso aprender
qual ostrés outros atos se tornam sensiveis de repente? a ouvir em geral um tema ou um motivo, é preciso percebé-lo, distingui-
Sendo o resultado de diferentes instintos que se contradizem, do desejo lo, isola-lo e limitaé-lo numa vida prépria; depois € preciso ym esforgo de
de zombar, de se queixar ou de maldizer? Para que o conhecimento seja boa vontade para suporta-lo, apesar de sua novidade, para ter paciéncia em
possivel, € necessdrio que cada um desses instintos dé sua opinido parcial relacao a seu aspecto e a sua expressdo, de caridade por sua singularidade:
sobre 0 objeto ou 0 acontecimento; ent&éo comegaa uta desses julgamentos — chega enfim o momento em que ja estamos habituados a ele, em que 0
incompletos e o resultado é as vezes um meio-termo, umapacificacdo, esperamos, em que pressentimos que nosfaltaria se nao viesse; a partir de
uma concessao mutua entre os trés instintos, uma espécie de justica e de entéo comega a exercer por seu encanto e nao cessa até que nos tornemos
contrato: de fato, por meio da justica e do contrato todos esses instintos os amantes humildes e encantados, que nao querem nada mais desse mundo
podem subsistir e ter razio ao mesmo tempo. sendo esse motivo e sempre esse motivo. — Mas isso nao ocorre somente
Nos, que nao guardamostracgo em nossa consciéncia sendo das ultimas com a musica: foi exatamente da mesma maneira que aprendemos a amar
cenas de reconciliacgdo, de tiltimas prestagdes de contas, pensamos que as coisas que amamos.
intelligere é algumacoisa de conciliante, de justo, de bom, de essencialmente Finalmente, somos sempre recompensadospornossa boa vontade, nossa
Oposto aos instintos; ao passo que nao é na realidade sendo uma certa paciéncia, nossa eqiiidade, nossa docura com relago as coisas estranhas,
relacdo dosinstintos entre eles.
quando para nds as coisas afastam lentamente seu véu e se apresentam
Durante muito tempo se considerou 0 pensamento consciente como o em sua nova e indizivel beleza: é sua melhor maneira de agradecer nossa
pensamentopor exceléncia: agora somente comecamosa entrevera verdade, hospitalidade. Mesmo o amorde si passa por isso: néo ha outro caminho.
isto 6, que a maior parte de nossa atividade intelectual se efetua de uma O amor também deve ser aprendido.
formainconsciente e sem sentirmos nada; masacredito que esses instintos
que lutam entre si se entendem muito bem emse tornar perceptiveis e a se 335 - Viva A Fisica!
prejudicar mutuamente; ~ 0 formidavel e stibito esgotamento de que sao Quantos homenssabem observar? E entre 0 pequeno nimero daqueles
afetados todos os pensadores poderiater sua origem aqui (é 0 esgotamento que sabem — quantos se observam a Si proprios? “Cada umé o mais distante
do campodebatalha). de si mesmo” — todos aqueles que perscrutam as almas sabem disso e o
deploram; na boca de um deuse dirigida aos homens, a maxima “‘conhece-
(1) Frase latina que significa “nao rir, nao chorar. nem detestar, mas compreender” (NT).
(2) Baruch Spinoza (1632-1677). fildsofo holandés (NT).
te a ti mesmo!” ? é quase uma maldade.

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Que nado ha nada mais a esperardisso, nada o prova melhor que a forma A firmeza de teu juizo moral poderia muito bem ser a prova de uma
pela qual guase todo mundofala da esséncia de um ato moral, essa maneira pobreza pessoal, de uma falta de individualidade, tua “forga moral” poderia
de ser pronta, empenhativa, convicta,indiscreta, com seu olhar, seu sorriso, ter sua origem em tua teimosia — ou em tua incapacidade de perceber um
sua complacéncia! ideal novo! Em resumo: se tivesses pensado de uma forma mais sutil,
Parece que querem te dizer: “Mas, meu caro, essa é justamente minha tivesses observado melhore aprendido mais, nunca mais chamarias “dever”
especialidade! Tu cais precisamente sobre quem pode te responder: é o
e “consciéncia” a esse dever e a essa consciéncia que acreditas serem
-assunto que mais domino. Ora, quando um homem diz “isto é correto”,
-pessoais: tua religiao seria esclarecida sobre a maneira pela qual sempre se
quando conclui “é por isso que deve ser assim” e quando, finalmente, faz
formaram os jutzos morais e ela te faria perder o gosto por esses vocdbulos
O que assim reconheceu correto e designado como necessdrio — entdo a patéticos — precisamente como ja perdeste o gosto que tinhas por esses
esséncia de seu ato é moral!” — Mas, meu caro amigo, tu me falas detrés outros termos patéticos, como por exemplo “pecado”, “salvagéo da alma”,
agoes em lugar de umaso: € 0 jufzo “isto é correto”, por exemplo, é também “redengdo”’. — E agora nao mefales do imperativo categérico, meu amigo!
um ato — nado se poderia desde logo emitir um juizo moral ou imoral? Por — Essa expressao faz cécegas em meus ouvidos e mefaz rir apesar de tua
que considerasisso, e isso em particular, como correto? — “Porque minha presenga tao séria: me faz lembrar o velho Kant que, como puni¢éo por
consciéncia me diz isso; a consciéncia nunca diz nada de imoral, pois é
se ter apoderado subrepticiamente da “coisa em si’ - mais uma vez uma
ela que determina o que deve ser moral\” — Mas por queescutas a voz de coisa bastante ridicula! — foi apanhado subrepticiamente pelo “imperativo
tua consciéncia? categ6rico” para se extraviar de nove com ele, no fundo de seu corac4o,
O que é que te da o direito de aceitar como verdadeiro e infalfvel em direcao a “Deus”, a “alma”, a “liberdade”, a “imortalidade”, como uma
semelhante juizo? Para essa crenca — nao hA outra consciéncia? Uma raposa que, achando queesta fugindo, retorna para sua jaula —e sua forca e
consciéncia atrds de tua “consciéncia”? Teu juizo “isto é correto” tem uma sua sabedoria é que tinham partido as grades dessa jaula! -Como? Admiras
pré-hist6ria em teus instintos, em tuas inclinacgdes, em tuas antipatias e o imperativo categérico em ti? Essa firmeza a que chamasteu juizo moral?
em tuas inexperiéncias; deves te perguntar: “Como esse juizo se formou?” Esse sentimento “absoluto” que “o mesmo juizo que tens nesse caso afeta
E depois esta: “O que € que me impele no fundo a escutd-lo?’ Podes dar
todo mundo”?
ouvidos 4 sua ordem, como um bravo soldado que cumpre as ordens de seu
Admira antes nisso seu egoismo! E a cegueira, a pequenez, a modéstia
oficial. Ou como uma mulher que ama aquele que ordena. Ou ainda como
de teu egoismo! De fato, é egofsmo considerar seu prdprio juizo comolei
um lisonjeador e covarde que tem medode seupatrao.
geral; além disso, um egoismo cego, modesto, mesquinho, porque revela
Ou como um tolo que obedece porque ndo tem nada a objetar. Em que ainda nao te descobriste a ti mesmo, que ainda nao criaste para teu
resumo, podes obedecera tua consciéncia de mil maneiras diferentes. Mas
uso um ideal proprio que nao pertenceria a ninguém sendoa ti: — de fato,
Se escutas este ou aquele juizo, como a voz de tua consciéncia, se julgas esse ideal nio poderia jamais ser aquele de outro e muito menos aquele
algumacoisa comocorreta,talvez € porque nuncarefletiste sobre ti mesmo
de todos! — Aquele que pensa “nesse caso todos deveriam agir assim’,
€ aceitaste cegamente aquilo que, desde tua infancia, te foi indicado como
néo avangou ainda cinco passos no conhecimento de si: de outro modo,
correto, ou ainda porque o pao e as honras chegaram ti até o presente
saberia que nao ha duas ag6es semelhantes e que nao pode haver — que toda
com 0 que chamasde teu dever; — consideras esse dever como “correto”
acdo que foi realizada o foi de uma maneira Unica e irreproduzivel e que o
porque te parece ser umadetuas “condicdées de existéncia” (pois teu direito mesmo aconteceraé com qualquer agdo futura, que todos os preceitos s6 se
a existéncia te parece irrefutavel). relacionam com 0 grosseiro lado exterior das agdes (do mesmo modo que os

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preceitos mais exéticos € mais sutis de todas as morais que apareceram ate 337 — A “HUMANIDADE” DO FUTURO
hoje) — que com essespreceitos se pode alingir, é verdade, uma aparéncia de Quando olho com os olhos de uma €poca distante para esta, ndo posso
igualdade, mas nada mais que uma aparéncia — que toda agao, com relagao encontrar nada de mais singular no homem atual que sua virtude
e sua
a eles, é e permanece uma coisa impenetravel — que nossas opinides sobre o doengaparticular que é chamada 0 “sentido hist6rico”.
que é “bom”, “nobre”, “grande”, nao podem jamais ser demonstradas por E a isca de uma coisa completamente nova e estranha na hist6ria:
nossos atos, porque todo ato permanece incognoscivel — que certamente que sejam dados a esse germealguns séculos e mais e acabarétalvez por
nossas opinides, nossas apreciagées e nossas tabelas de valores fazem parte -aparecer uma planta maravilhosa com perfume nao menos maravilhoso,
das alavancas mais poderosas nas engrenagens de nossas ag6es, mas que propria a tornar nossa velha terra mais agradavel de habitar do que tem
para cada acdo particular a lei de sua mecanica é indemonstravel. sido até o presente. E que, nés homens modernos, comecamos a formara
Limitemo-nos, portanto, 4 depuragfo de nossas opinides e de nossas corrente de um sentimento que 0 futuro havera de tornar muito poderoso,
apreciagGes e 4 criagdo de novas tabelas de valores que nos sejam proprias; elo por elo — mal sabemos 0 que fazemos.
— mas nao queremos raciocinar sobre o “valor moral dos nossas ages”! Parece-nos quase que naose trata de um sentimento novo, mas somente
Sim, meus amigos, est4é na hora de mostrar o préprio desgosto por todo de um enfraquecimento de todos os sentimentos antigos: — 0 sentido
o palavreado moral de uns e outros. Produzir sentengas morais deve ser hist6rico € ainda umacoisa tao pobree t4ofria que resfria muitos, até os
contrario a nosso gosto. congela, os torna mais pobres e mais frios ainda. Para outros, é 0 indicio
Deixemosesse palavreado e esse mau gosto para aqueles que nado tém da velhice que chega e nosso planeta Ihes parece como um melancélico
nada de melhora fazer do que trazer 0 passado para o presente e que nunca doente que, para esquecer0 presente, escreve a hist6ria de sua juventude.
s4o atuais — 4 multiddo, portanto, 4 grande maioria! Com efeito, esse € um dos aspectos desse novo sentimento: aquele que
Masnos queremosnos tornar aqueles que realmente somos — OS NOVOS, sabe considerar a histéria do homem, em seu conjunto, como sua historia,
os Unicos, os incomparaveis, aqueles que produzem suas proprias leis, esse sente, numa enorme generalizac¢ao, toda a aflicéo do doente que pensa
aqueles que se criam a Si proprios! na saude, do velho que se lembra do sonho de sua juventude, do apaixonado
E paraisso € necessario que sejamos daqueles que aprendem e descobrem privado de sua bem-amada, do mértir cujo ideal é destrufdo, do heréi na
melhor tudo aquilo que é lei e necessidade no mundo: é necessdrio que tarde de umabatalha cuja sorte ficou indecisa e da qual guarda no entanto
sejamos fisicos para poder ser, nesse sentido, criadores — ao passo que até ferimentos e 0 pesar da morte de um amigo. — Mas carregar essa soma
hoje toda avaliagéo e todo ideal se fundavam num desconhecimento da enorme de misérias de toda espécie, poder carrega-la e ser, apesar disso, 0
fisica, em contradigdo com ela. Porisso: viva a fisica! E mais ainda o que herdi que satida a aurora da felicidade, no segundo dia de batalha, a vinda
nos impele para ela: nossa probidade! da felicidade, como homem que tem por horizonte milénios, como herdeiro
de toda a nobreza, de todo 0 espirito do passado, herdeiro obrigado, 0 mais
336 — AVAREZA DA NATUREZA nobre de todos e, ao mesmo tempo, o primeiro de uma nova nobreza,
Por que a natureza foi téo parcimoniosa com relagdo aos homens, a -como nenhum tempo nunca viu nem sonhou nada de igual: tomar tudo
ponto de nao fazé-los brilhar, um mais, outro menos, segundoa intensidade isso sobre sua alma, o que ha de mais antigo e de mais recente, as perdas,
de sua luz? Por que os grandes homens nao possuem, em sua alvorada as ‘esperancas, as conquistas, as vit6rias da humanidadee reunir, enfim,
como em seu ocaso, um brilho tao belo como aquele do sol? tudo isso numa tnica alma, resumi-lo num Unico sentimento — ai esta o
Se assim fosse, haveria menos equivocos ao viver entre os homens! que deveria produzir uma felicidade que o homem ainda ndo conheceu até

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O presente — a felicidade de um deus cheio de poder e de amor, cheio de Se vocés, partiddrios dessa religido, professam verdadeiramente, com
lagrimase risos, umafelicidade que, semelhante aosol da tarde, derramaria relagao a vocés mesmos, semelhante sentimento aquele que vocés tém em
em profusdo sua riqueza inesgotdvel no mar e que, como 0 sol, nfo se relagdo a seu proximo,se nado quiserem olhar sobre vocés mesmos, durante
sentiria 0 mais rico sendo quando o mais pobre pescador remasse com uma hora, seu proprio sofrimento, prevenindo sempre toda infelicidade
remos de outro. Essa felicidade divina se chamaria entdo - humanidade! possivel, se consideram em geral a dor e a miséria como mas, odiosas,
dignas de serem destruidas, como umatara da vida, pois bem entao! além
338 — A VONTADE DE SOFRER E OS COMPASSIVOS de sua religiao da compaix4o, vocés tém ainda no coragao outra religido e
E salutar para vocés ser antes de tudo homens compassivos? E salutar esta € talvez a mde daquela — a religido do bem estar. Ai de mim! Como
para aqueles que suportam que vocés sejam compassivos? Deixemos por vocés conhecem mal infelicidade dos homens, vocés gente do conforto
enquanto sem resposta minha primeira pergunta. — O que nos faz sofrer mais e de boa vontade! — de fato, a felicidade e a infelicidade sao irmas gémeas
profundamente e mais pessoalmente é quase incompreensivele inacessivel que crescem juntas ou que, comoentre vocés, ficam pequenasjuntas! Mas
a todos osoutros; é nisso que ficamos escondidos a nosso proximo, mesmo regressemos a nossa primeira pergunta. - Como é€ possivel se manter em
quando comesse conosco no mesmoprato. Em toda parte onde se observa seu prdéprio caminho?
que sofremos, nosso sofrimento é mal interpretado; é proprio da compaixao A todo o instante um grito qualquer nos desvia dele; raramente nosso
despojar o sofrimento estranho daquilo que tem de verdadeiramente pessoal: olhar percebe alguma coisa que merega que abandonemosnossos negécios
— nossos “benfeitores”, mais que nossos inimigos, diminuem nossovalor e para acorrer. Sei que ha mil maneiras honestas e louvaveis para me afastar
nossa vontade. Na maioria dos beneficios com quese gratifica os infelizes de meu caminhoe sao certamente maneirasaltamente “morais”! A opiniaio
ha alguma coisa de revoltante, por causa da despreocupagao intelectual dos pregadores da moral e da piedade vai mesmo hoje ao ponto de dizer
com que 0 compassivo costuma brincar com o destino: nao sabe nada de que isso, e somenteisso, é moral: ~ ou seja, desviar-se de seu caminhopara
todas as conseqiiéncias e de todas as complicag6es interiores que, para correr em socorro do préximo. E sei com tanta certeza que nao tenho mais
mim ou para ti, se chamam infelicidade! do que me expor durante um instante a uma miséria verdadeira para me ver
Toda a economia de minha alma, seu equilibrio por causa da eu mesmoperdido!
“infelicidade”, as novas fontes e as novas necessidades que surgem, os Se um amigo na sofrimento medissesse: “Olha, vou morrer; promete-
velhos ferimentos que cicatrizam, as épocas inteiras do passado que sao me que vais morrer comigo” — eu o prometeria, da mesma forma que
repisadas — tudo isso, tudo o que pode estar ligado a infelicidade, nao © espetdéculo de um pequeno povo das montanhas, combatendo por sua
preocupa esse caro compassivo, ele quer socorrer e ndo pensa que existe liberdade, me impeliria a lhe oferecer meu braco e minha vida: — para nado
uma necessidade pessoal da desgraca, que, tu e eu, temos tanta necessidade escolher sendo maus exemplos por boas razGes.
do medo, das privacées, do empobrecimento, das vigilias, das aventuras. Sim, ha uma secreta seducio, em todas essas oragdes, em todos
dos riscos, das transgressGes, como do contrario disso tudo e mesmo, para esses apelos por socorro, pois nosso “préprio caminho” € precisamente
me exprimir de uma forma mistica, que o caminho de nosso pr6éprio céu -alguma coisa de demasiado duro e exigente; alguma coisa que esta muito
sempre atravessa a volipia de nosso proprio inferno. - distante do amor e do reconhecimento dos outros — nao é sem prazer que
Nao, ele nao sabe nada de tudoisso: a “religido da compaixdo”’, ou 0 escapamos dele, dele e de nossa consciéncia mais individual, para nos
“coracao”, ordena socorrer e se acredita que se deu a melhor ajuda quando tefugiarmos na consciéncia dos outros e no templo encantador da “religido
se ajudou depressa! da compaixdo”.

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Logo que hoje eclode uma guerra qualquer, eclode ao mesmo tempo, verdade que os gregos pediam: “Que tudo o que é belo retorne duas ou
entre os homens mais nobres de um povo, umaalegria, mantida secreta, trés vezes!” — eles tinham, ai! uma boa raziio para invocaros deuses, pois a
€ verdade: eles se langam com encanto 4 frente do novo perigo de morte, realidade impia nado nos confere a beleza e, se no-la dd, $6 0 faz uma vez!
porque acreditam ter finalmente encontrado nosacrificio pela patria essa Quero dizer que 0 mundoesta repleto de belas coisas e, apesar disso, pobre,
permisséo ha muito tempo procurada — a permissdo de escapar de seu muito pobre em belos instantes e em revelacdes dessas coisas.
objetivo: — a guerra é para eles um desvio para 0 suicidio, mas um desvio Mastalvez que seja esse 0 maior encanto da vida: carrega com ela,
com boa consciéncia. -bordado a ouro, um véu de belas possibilidades, prometedoras, selvagens,
E, calando aqui certas coisas, nao quero contudo calar minha moral pudicas, zombeteiras, complacentes e tentadoras. Sim, a vida é mulher!
que me ordena: Vive escondido para poder viver para ti, vive ignorante
daquilo que importa mais a tua época! Coloca, entre ti e hoje, pelo menos 340 — SOCRATES MORIBUNDO
a espessura de trés séculos! E os clamores do dia, 0 estrondo das guerras Admiro a coragem e a sabedoria de Sdcrates em tudo o que fez, em
e das revolugdes nado devem chegar a ti sendo como um murmirio! Se tudo o que disse — e em tudo o que naodisse. Esse catadorde ratos e esse
quiseres ajudar alguém, ajuda aqueles de quem compreendesinteiramente gnomo de Atenas, zombeteiro e amoroso, que fazia tremer e solugar os
0 sofrimento, aqueles que tém contigo uma alegria e uma esperanga em jovens petulantes de Atenas, foi néo somente o mais sdbio de todos os
comum — teus amigos: e somente da maneira comotu te ajudas a ti mesmo: tagarelas, foi também grandenosiléncio. Maseu teria preferido que ele o
~ “quero tornd-los mais corajosos, mais tolerantes, mais simples, mais tivesse guardado até o fim — talvez pertencesse entdo a umacategoria dos
alegres! Quero lhes ensinar aquilo que hoje tdo pouca gente compreende espiritos ainda mais elevada. Teria sido a morte ou 0 veneno, a compaixdo
e esses pregadores da compaixGo menos que ninguém: — ndo mais o ou a maldade? — alguma coisa no derradeiro momentothe soltou a lingua
17?
sofrimento comum, mas a alegria comum e disse: “O Criton, devo um galo a Esculdpio.” Estas “ultimas palavras”,
ridiculase terriveis, significam para quem tiver ouvidos: “O Criton, a vida
339 — “Vira FEMINA”™)) é uma doenca!” Sera possivel! Um homem quefoi alegre diante de todos,
Ver a Ultima beleza de uma obra — que ciéncia e que boa vontade como um soldado — esse homem era pessimista! E que, no fundo, durante
poderiam bastar; sao necessarios os mais raros, os mais felizes acasos para toda a vida, contra a ma sorte tinha tido bom coracao e havia escondido
que o véu das nuvens se afaste desses cumespara deixar brilhar o sol. E 0 tempo inteiro seu verdadeiro jufzo, seu sentimento interior! Sécrates,
preciso ndo somente que nos encontremos exatamente no melhorlocal, Sécrates sofreu com a vida! E se vingou dela — com suas palavras veladas,
masainda que nossa prépria alma tenha afastado os véus de seus cumes e€ espantosas, piedosas e blasfemas! Um verdadeiro Sécrates teve ainda
sinta a necessidade de uma expressdo e de um simbolo exterior, como para necessidade de se vingar? Faltava um grao de generosidade & sua virtude
ter um apoio e se tornar senhora de si propria. Mastudoisto se encontra tao tao rica? Ai! meus amigos! Temosde superar até mesmo os gregos!
raramente reunido que estou tentado a crer que Os mais altos cumes de tudo
0 que é bem, seja a obra, a acdo, a honra, a natureza, permaneceram para a 341 — O PESO MAIS PESADO
maioria dos homens, mesmopara os melhores, alguma coisa de escondido
Z
E se um dia, ou uma noite, um dem6nio te seguisse em tua suprema
e de velado: — entretanto, o que desvela a nés sé se desvela uma vez! —-E solidao e te dissesse: “Esta vida, tal como a vives atualmente, tal como a
viveste, vai ser necessGrio que a revivas mais uma vez e inumerdveis vezes;
e ndo haverd nela nada de novo, pelo contrario! A menor dor e o menor
(1) Expressaolatina que significa “vida feminina ou, literalmente. vida mulher” (NT).

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prazer, 0 menor pensamentoe 0 menor suspiro, o que hd de infinitamente para baixo do mundo, 6 astro transbordante de riqueza! — Devo descer,
grandee de infinitamente pequeno em tua vida retornard e tudo retornard como tu, devo me deitar, como dizem os homens para quempretendoir.
na mesma ordem — essa aranha também e esse luar entre as arvores e€ esse Abengoa-me, portanto, olho tranqiiilo que podes ver sem inveja mesmo
instante e eu mesmo! A eterna ampulheta da vida serdinvertida sem cessar uma felicidade muito grande! Abengoa a taca que quer transbordar, que
—e tu com ela, poeira das poeiras\” — Naote jogarias no chao, rangendo os a agua totalmente dourada jorre levando em toda parte o reflexo de tua
dentes e amaldicoando esse dem6nio que assim falasse? _alegria! Vé! Esta taga quer se esvaziar de novo e Zaratustra quer voltar a
Outalvezjd viveste um instante bastante prodigioso para lhe responder: ser homem.” — Assim comegou 0 declinio de Zaratustra.
“Tu és um deus e nunca ouvi coisa tdo divina\” Se este pensamento te
dominasse, tal comoés, te transformaria talvez, mastalvez te aniquilaria; a
pergunta “queres isso ainda uma vez e um numeroincalculdvel de vezes?”,
esta pergunta pesaria sobre todas as tuas agdes com 0 peso mais pesado!
E ent&o, como te seria necessd4rio amar a vida e amar a ti mesmo para
ndo desejar mais outra coisa que essa supremae eterna confirmacao, esse
eterno e supremoselo!

342 — “INCIPIT TRAGOEDIA™”’


Quando Zaratustratinha trinta anos, deixou sua patria, perto do lago
de Urmi, e foi para a montanha. La usufruiu de seu espirito e de sua solidao
e ndo se cansou durante dez anos. Masporfim seu coracdo se transformou
— e, uma manhi, levantando-se com a aurora, avancou em dire¢4o ao sole
lhe falou assim: “O grandeastro! Quefelicidade seria a tua, se ndo tivesses
aqueles a quem iluminas! Hd dez anos que vens aqui a minha caverna:tu
te terias cansado de tua luz e de teu caminho sem mim, minha dguia e
minha serpente; mas nos te esperdvamos todas as manhds, te tomadvamos
teu supérfluo e te abencodvamos. Pois bem, vé! Estou aborrecido de minha
sabedoria como a abetha que recolher mel demais; tenho necessidade de
mdos que se estendam. Gostaria de dar e de distribuir até que os sdbios
entre os homens voltassem a ser felizes com sua loucura e os pobres,
felizes com sua riqueza. Por isso devo descer até as profundezas: como tu
fazes a noite, quando te vais para tras dos mares, levando tua claridade

(1) Expressiiolatina que significa “a tragédia comega™ (NT).


(2) Zaratustra ou Zoroastro (628-561 a.C.), nascido perto do mar Caspio, em regiao hoje pertencenteao territério
do Ira, foi o fundador do zoroastrismo. religiaopolitefsta, embora admitisse que um s6 deus. o supremo. era
digno de adoracao; a doutrina do zoroastrismo se centraliza em principios de sabedoria e teve ampla penetracdo
no mundooriental (NT).

202 203
LIVRO V
Nos, os SEM Mepo

“Tremes, carcaca? Tremerias


,
muito mais, se soubesses para ondete levo.’

Turenne”?

343 —- Nossa ALEGRIA


O mais importante dos acontecimentos recentes — 0 fato de que “Deus
esta morto”, o fato de que a crenga no Deus cristo se tornou impossivel
— comega ja a projetar sobre a Europa suas primeiras sombras. Pelo menos
para o pequeno numero daqueles cujo olhar e a desconfianc¢a do olhar sao
bastante agucadose sutis para esse espetaculo, um sol parece ter-se posto,
umavelha e profunda confiangase ter transformado em dtivida: nosso velho
mundo deve lhes parecer todos os dias mais crepuscular, mais suspeito,
mais estranho, mais “velho”. Para o essencial, porém. 0 acontecimento é
demasiado grande, distante, afastado da compreensado da maioria para que
se possa dizer que a noticia chegou, e muito menos ainda que a maioria
tenha compreendidoo que realmente ocorreu — e tudo 0 que vai desmoronar

Q) Esta quinta parte néo existia na primeira edigdo desta obra, que remonta a 1882: foi acrescentada na edigdo
de 1887 (NT).
(2) Henri de la Tour d’ Auvergne. visconde de Turenne (1611-16751, marechal francés (NT).

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Nietzsche - A Gaia Ciéncia
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desconfianga. — Masisso naoquer dizer, no fundo, que € unicamente quando


agora que essa fé foi enterrada, tudo o que estava construido em cima,
a convicgao deixa de ser convicgdo que se pode lhe conceder a entrada na
tudo 0 que se apoiava nela e tudo o que nela crescia: por exemplo, toda a
ciéncia? A disciplina do espirito cientifico ndo come¢aria somente partir
nossa moral européia. Uma série sem fim de demolicédes, de destruigGes,
do momento em que nao se permite mais qualquer conviccdo?... E provavel.
de rufnas e de quedas nos esperam: quem, pois, o imaginar hoje para ser
0 iniciador e 0 adivinho dessa enorme légica de terror, 0 profeta de um - Ora,trata-se ainda de saberse, para que essa disciplina possa comecar, uma
assombro e de umaescuridao que talvez nuncativeram lugarnaterra? Nos, convic¢ao nao € indispensdvel, uma conviccfo tao imperiosa e tao absoluta
nés mesmos adivinhos de nascenca, que ficamos como que a espera nos que force todasas outrasa se sacrificar por ela. Vé-se que a propria ciéncia
cumes, esquartejados entre 0 ontem e o amanha, nds primogénitos, nds se baseia numa fé e que nao poderia existir ciéncia “incondicionada”.
os prematuros do século futuro, nés que deverfamos perceber desde jd as Ela pressup6e que a verdade importa, a ponto de afirmar que “nada
sombras que a Europa esta prestes a projetar: como se explica, pois, que importa mais que a verdade” e que “com relacdo a ela, todo o resto ndo
nds mesmos esperemos sem um interesse verdadeiro e especialmente sem tem sendo um valor de segunda ordem’”. Este é seu principio, sua fé, sua

preocupa¢éo nem temora vinda desse assombro? conviccaéo. — Mas essa vontade absoluta, o que vem a ser? Sera vontade
Serd que ainda estamos demasiadamente dominados pelas primeiras de ndo se deixar enganar? Sera vontade de ndo enganar? A vontade de
conseqiiéncias desse acontecimento? -— De fato, essas primeiras verdade poderia também ser interpretada dessa maneira por pouco que
conseqiiéncias, contrariamente ao que se poderia talvez esperar, ndo se admita que dizer “ndo quero me enganar’ é a generalizacio do caso
nos aparecem de forma algumatristes e sombrias, mas, pelo contrario, particular “ndo quero enganar’. Mas por que nao enganar? Mas por

como umaespécie de luz nova, dificil de descrever, como uma espécie que nao se deixar enganar? — E preciso notar que as razées da primeira
de felicidade, de alegria, de serenidade, de encorajamento, de aurora...
eventualidade se encontram em dominio completamente diferente daquelas
De fato, nds, filésofos e, “espiritos livres”, sabendo que “o Deus antigo que respondem a segunda. Nao se quer deixar-se enganar porque se
esta morto”, nos sentimos iluminados de uma nova aurora; nosso coragéo considera que é prejudicial, perigoso, nefasto ser enganado — nesse sentido,
transborda de gratidao, de espanto, de apreensdo e de expectativa — enfim, ciéncia seria uma longa astucia, responderia a uma precaucao, teria uma
o horizonte nos parece novamente livre, embora nao esteja ainda claro — utilidade, a que se poderia justamente objetar: como?
finalmente, nossos navios podem voltar a igar as velas, navegar diante do O fato de ndo querer se deixar enganar diminuiria verdadeiramente os
perigo, todos os imprevistos do acaso daquele que procura 0 conhecimento riscos de encontrar coisas prejudiciais, perigosas, nefastas? Que sabem
sao novamente permitidos; o mar, nosso pleno mar, se abre de novo diante vocés a priori do carater da existéncia para poder decidir se a maior
de nds e talvez jamais tenha havido um tao “pleno”. vantagem esta do lado da desconfianga absoluta ou do lado da confianga
absoluta? Mas no caso em que as duas coisas fossem necessdrias, muita
344 ~ EM QUE SOMOS, TAMBEM NOS, AINDA PIEDOSOS confianc¢a e muita desconfianga: onde iria a ciéncia procurar essa fé
Com justa razao se diz que, no dominio da ciéncia, as convicgdes nao absoluta, essa conviccféo que Ihe serve de base, que diz que a verdade é
tém direito de cidadania: s6 quando se decidem a adotar modestamente mais importante que qualquer outra coisa e também mais importante que
as formas provisérias da hipdtese, do ponto de vista experimental, de qualquer outra convicg4o? Essa conviccdo precisamente n&o poderia ter-se
formado,se a verdade e a nao-verdade afirmavam ambas ao mesmo tempo
um artiffcio de regulamentacéo, é que se pode Ihes conceder 0 acesso e
mesmo um certo valor no dominio do conhecimento — com a condicado sua utilidade, essa utilidade que é um fato. Portanto, a fé na ciéncia, essa

de continuarem, todavia, sob uma vigilancia de policia, sob o controle da fé que é incontestavel, nao ter tirado sua origem e, semelhante calculo de

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utilidade, pelo contrario, elas se formou, apesar da demonstraga4o Constante 345 — A MORAL COMO PROBLEMA
da inutilidade e do perigo queresidem na “vontade de verdade”, na “verdade A falta de personalidade se expia em toda parte; uma personalidade
a qualquer custo”. “A qualquer custo”, ai! Sabemos muito bem 0 que isso enfraquecida, fragil, apagada, que se nega e se renega a si propria nao serve
quer dizer quando oferecemos e sacrificamos nesse altar uma crenga depois para mais nada — e, menos que qualquer outra coisa, para a filosofia. O
da outra! — Por conseguinte, “vontade de verdade” ndosignifica “n@o quero “desinteresse” nado tem nenhum valor, nem no céu nem naterra; OS grandes
me deixar enganar’, mas — e nao ha escolha — “ndo quero enganar, nema _ problemas exigem todos 0 grande amore 86 os espiritos vigorosos, nitidos
mim mesmo, nem os outros’: e aqui estamos no terreno da moral. e segurossao capazes desse grau de amor, os espiritos de base sélida, pois
De fato, seria bom perguntar a fundo: “Por que nao queres enganar?”, repousam sobresi préprios.
sobretudo quando poderia haver aparéncia — e é bem esse o caso! — porque Héumadiferencaconsideravel entre um pensador que toma pessoalmente
a vida nao é feita sendo em vista da aparéncia, quero dizer, em vista do posicao diante de seus problemas, a ponto de fazer deles seu destino, seu
erro, do engano, da dissimulacao, do deslumbramento, da cegueira, e que | esforco e também sua maior felicidade, e aquele que se aproxima de seus
ent&o, por outro lado, a grande forma da vida sempre se mostrou do lado problemas de forma “impessoal”, aquele que s6 sabe aborda-los e toma-
dos menos escrupulosos espertalhdes. los com as antenas da fria curiosidade. Este ultimo nao chegara a nada,
Semelhante designio poderia talvez se assemelhar, para me exprimir certamente, admitindo que os grandes problemas nao se deixam apanhar,
com delicadeza, a algo de donquixotesco, a uma pequena sem-razdo nao se deixam observarpelos seres de sangue dera e pelos fracos.
entusiasta, mas poderia ser algo de pior ainda, quero dizer, um principio Siio assim desde toda a eternidade — uma fantasia que compartilham,
destruidor que pde a vida em perigo... alids, com todas as valentes mulheres. - Como pode ocorrer entao que
“Vontade de verdade” — isso poderia esconder uma vontade de morte. eu nao tenha ainda encontrado ninguém, nem mesmo nos livros, ninguém
~ De modo que a pergunta “por que a ciéncia?” se reduz ao problema que se posicionaria diante da moral como se ela fosse algo de individual,
moral: “Por que, no fundo, a moral’, se a vida, a natureza, a histéria sao | que faria da moral um problema e desse problema sua dificuldade, seu
tormento, sua volupia e sua paixao individuais? .
‘“imorais”? Sem dtivida alguma, 0 verfdico, no sentido mais ousado e mais fo:
extremo, como o pressupée a fé na ciéncia, afirma assim outro mundo do | ae E evidente que até hoje a moral nao foi um problema; pelo contrario,
que aquele davida, da natureza e da histéria; e, enquanto afirma esse outro |. foi o terreno neutro onde, depois de todas as desconfiangas, dissensoes €
mundo — como? nao é preciso, por isso mesmo, negar seu antipoda, esse z contradicées, se acabavaporestar de acordo, foi o local sagrado da paz onde
mundo, nosso mundo”... I os pensadores descansam de si proprios, onde respiram e revivem. Nao
Masja se tera compreendido aonde quero chegar,ou seja, que 6 sempre : vejo ninguém que tenha ousado umacritica dos valores morais: verifico
ao
e ainda numacrenca metafisica que baseia nossa fé na ciéncia — que nds i até, nesse caso, uma auséncia de curiosidade cientifica, dessa imaginacg
também, ndés que procuramos hoje o conhecimento, nds os impios e os : delicada e aventureir. dos psicdlogos e dos historiadores que se antecipam
antimetafisicos, nés ainda emprestamos nosso fogo ao incéndio que uma L, ; muitas vezes aos problemas, apanhando-os no ar sem saber muito bem o
bts
fé de mil anos de velhice acendeu, essa fé crista que era também aquela de que estao apanhando.
Platéo, segundo a qual Deus é a verdade e a verdade é divina... Foi com dificuldade que consegui descobrir algumasraras tentativas de
Masse precisamente isso se tornasse cada vez menosprovavel, se nada umahistéria das origens desses sentimentos morais e dessas apreciagdes
se afirmasse mais como divino que 0 erro, a cegueira e a mentira — se o (o que é coisa completamente diferente de umacritica e ainda coisa bem
proprio Deus se revelasse como nossa mais imensa mentira? diversa que a hist6ria dos sistemas éticos): num caso isolado fiz de tudo

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cia

para encorajar uma inclinagao e um talento para com esse género de historia ouvidos. Quem somos nos entéo? Se, com uma expressdo antiga, quisermos
— constato hoje que era em vao. Os historiadores da moral (ingleses, na nos chamar simplesmente fmpios ou incrédulos, ou ainda imoralistas, ainda
maioria) so de pouca importancia: eles est4o ainda geralmente, de forma
estarfamos longe de uma designacdo exata: somos essas trés coisas numa
ingénua, sob as ordens de uma moral definida; sao, sem se darem conta, os
frase muito tardia para que se possa compreender — para que vocés possam
escudeiros e fazem parte da escolta: nisso seguem esse preconceito popular
compreender, senhores indiscretos ~ os sentimentos que nos animam em
da Europacrist&, esse preconceito que se repete sempre com tanta boa-fé e nosso estado deespirito.
que quer queascaracteristicas essenciais da agdo moral sejam 0 altrufsmo, Nao! Nao sentimos mais a amargura e a paixdo do homem liberto que
a renuncia, 0 desprezode si, a piedade, a compaixdo.
nao pode deixar de transformar sua descrenga usual em fé, em objetivo,
Seu erro habitual é postular uma espécie de consenso entre os povos, em martirio! A custa de sofrimentos que nos tornaram frios e duros,
pelo menos entre os povos civilizados, a respeito de certos preceitos da adquirimos a convicgdo que os acontecimentos do mundo nao tém nada de
moral e de concluir que decorre desses preceitos uma obrigacdo absoluta,
divino, nem mesmo nada de razodvel, segundo as medidas humanas, nada
mesmo para as relagdes entre individuos. Quando se deram conta do
de lamentavel e de justo; sabemos que o mundo em que vivemos € sem
contrario e que, na verdade, entre os diferentes povos as apreciacGes morais
Deus, imoral, ‘““desumano”— por muito tempo lhe demos umainterpretagao
sao necessariamente diferentes, querem concluir disso que toda moral nao
falsa e mentirosa, preparada pelos desejos e a vontade de nossa veneragao,
obriga. Os dois pontos de vista so igualmente pueris.
isto 6, conforme com uma necessidade.
Os mais sutis dentre eles cometem outro erro: depois de ter mostrado
De fato, o homem é um animal que venera! Mas é também um animal
em que podemestar erradas as opinides que um povo podeter sobre sua
desconfiado e o mundo nao vale aquilo que imaginamos que valesse, essa
moral ou aquelas que os homens tém sobre toda moral humanae, portanto,
é talvez a coisa mais certa de que nossa desconfianga acabou por aprender.
sobre a origem da moral, a sancdoreligiosa, 0 preconceito do livre-arbitrio,
Tanta desconfianga, tanta filosofia. Evitamos de qualquer modo dizer que
etc., acreditam ter assim criticado a prépria moral.
o mundo tem menos valor: hoje isso nos pareceria até mesmorisivel, se 0
Mas 0 valor do “tu deves” é profundamente diferente e independente
homem quisesse ter a pretensdo de inventar valores que ultrapassassem
de semelhantes opinides sobre esse preceito e do joio de erros de que esta
o valor do mundo verdadeiro — foi precisamente disso que regressamos,
coberto: do mesmo modoa eficdcia de um medicamento num doente nao
como de um distante extravio da vaidade e da extravagancia humanas que
tem nenhumarelagao com as nogdes médicas desse doente, quer sejam
por muito tempo nao foi reconhecido comotal.
cientificas, quer ele saiba tanto quanto uma velha mulher. Uma moral
Essa loucura encontrou sua ultima expressdo no pessimismo moderno,
poderia mesmo ter sua origem num erro: essa constatagdo nado chegaria
uma expressio mais antiga e mais forte na doutrina de Buda; mas o
a afetar o problemade seu valor. - Ninguém,portanto, examinou até hoje
cristianismo também esté repleto dela: ele se mostra nisso de uma forma
0 valor desse medicamento, 0 mais célebre de todos, esse medicamento
mais duvidosa e mais equivoca, é verdade, mas nem por isso menos
chamado moral: teria sido necessdrio, antes de mais nada, que ela tivesse
sedutora. “O homem contra o mundo”, o homem principio “negador do
sido posta em questdo. Pois bem! Essa é precisamente nossatarefa.
. mundo”, o homem comoescala das coisas, como juiz do universo que
termina por colocar a prépria existéncia em sua balanga por julga-la muito
346 — Nosso PONTO DE INTERROGACAO leve — tudo isso é de um mau gosto monstruoso e desencorajador — 0 que ha
Entao néo compreendem isso? De fato, haverd dificuldade em nos
de mais risivel que colocar “o homem e o mundo”lado a Jado, que sublime
compreender. Procuramos as palavras, talvez procuramos também os
presuncdo nao confere esse “e” que os separa!

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Mas 0 qué! Aorir, nao é dar um passoa mais no desprezo dos homens? exibicdo do ressentimento, do mau humor, do anarquismo exasperado e
E, por conseguinte, um passo a mais no pessimismo, no desprezo da outros mascaramentos do sentimento de fraqueza. A propria violéncia
exist€ncia como a percebemos? Nao é cair na suspeita que esse contraste com que nossos mais instruidos contempordneos se deixam perder em
ocasiona, 0 contraste entre este mundo onde até aqui nossas veneragoes lamentaveis redutos, em infelizes impasses, por exemplo, na patriotada (é
tinham encontrado um refigio — essas veneragdes por causa das quais assim que designo o que se denomina chauvinismo na Franga, “deutsch”
suportartamos talvez viver — e um mundo que ndo é outro sendo nos na Alemanha), ou numa estrita profissdo de fé estética, a maneira do
mesmos: uma suspeita implacdvel, fundamentale radical com relacdo a nds naturalismo (esse naturalismo que néo toma da natureza e que nela s6
mesmos, que se apodera sempre mais de nés europeus, que nos mantém descobre a parte que desperta ao mesmo tempo o desgosto e o espanto
sempre mais perigosamente em seu poder e que poderia facilmente colocar — costuma-se chamarisso hoje a verdade verdadeira), ou ainda no niilismo
as geragGes futuras diante dessa terrivel alternativa: “Suprimam suas a maneira de Sao Petersburgo(isto é, a crenca na descrenga até o martirio);
veneracées, ou entdo — suprimam-se a si mesmos!” O Ultimocasolevaria essa violéncia é sempre e antes de tudo uma prova de uma necessidade de
ao niilismo; mas o primeiro caso nao levaria também ao niilismo? — Esse fé, de apoio, de suporte, de recurso...
€ nosso ponto de interrogacao! A fé é tanto mais requerida, a necessidade de fé tanto mais urgente
quanto mais faltar vontade: de fato, a vontade como paixao do mando é 0
347 — Os CRENTES E SUA NECESSIDADE DE CRENCA sinal distintivo da soberania e da forga. Isso significa que, quanto menos
Mede-se 0 grau de forga de nossa fé (ou mais exatamente o grau de sua alguém sabe comandar, mais violentamente aspira a alguém que ordene,
fraqueza) pelo numero de principios “sdlidos” de que necessita para se que comande com severidade, a um deus, um principe, um Estado, um
desenvolver, desses princfpios que nossa fé nao quer ver abalados porque médico, um confessor. um dogma, uma consciéncia de partido. Disso se
servem de sustentdculo. Parece-me que hoje a maioria das pessoas na deveria talvez concluir que as duas grandes religides do mundo, o budismo
Europa tém ainda necessidade do Cristianismo, e é por isso que se continua e 0 cristianismo, poderiam muito bem ter sua origem, e sobretudo sua
a lhe darcrédito. propagacio repentina, num enormeacesso de doencada vontade. E de fato
De fato, o homem feito assim: poder-se-ia Ihe recusar mil vezes um foi realmente assim.
artigo de fé — se ele tem necessidade dele, continuaria sempre a considera- As duas religides encontraram uma aspiragdo exaltada até a loucura
lo como “verdadeiro” — conforme essa célebre “prova pela forca” de pela doenga da vontade, a necessidade de um “tu deves” impulsionado até
que fala a Biblia. Alguns tém ainda necessidade de metafisica; mas esse o desespero; ambas ensinavam o fatalismo as épocas de enfraquecimento
impetuoso desejo de certesa que se descarrega hoje ainda sob formas da vontade e ofereciam assim um apoio a uma multiddo inumerdvel uma
cientificas e positivistas nas grandes massas, esse desejo de ter a qualquer nova possibilidade de querer, uma fruig&o da vontade. Defato, 0 fatalismo
custo algumacoisa de s6lido (enquanto que 0 calor desse desejo impede € a tinica “forca de vontade” a que podem ser levados mesmo osfracos € Os
de dar importancia aos argumentos em favor dacerteza) 6 tambémele o indecisos, como umaespécie de hipnotizacao de todo o sistema sensitivo €
desejo de apoio. de suporte, em resumo. esse instinto de fraqueza que, se intelectual em beneficio da hipertrofia de um s6 sentimento, de um so ponto
nao cria religiées, metafisicas e principios de toda espécie, pelo menos os de vista que desde entao domina— 0 cristéo chamaisso sua fé. Quando um
conserva. E um fato que em torno de todos esses sistemas positivistas se homem chega A conviccao fundamental de que deve ser comandado, ele se
eleva a fumaga de um certo sombreadopessimista, algo comoa fadiga. torna “crente”; inversamente, pode-se imaginar umaalegria e uma forga de
o fatalismo, a decepcéo ou o temor de uma nova decepgao — ou ainda a soberania individual, uma liberdade do querer, em que0 espirito recusaria

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toda fé, todo desejo de certeza, exercido como se fosse manter-se sobre parte do “oficio”. Num judeu, pelo contrario, levando-se em conta seu
as cordas leves de todas as possibilidades, até mesmo a dancar 4 beira do hdbito nos negécios e pelo passado de seu povo, nada ¢ menos habitual
abismo. Esse espirito seria 0 espirito livre por exceléncia. do queser acreditado: isso se verifica nos sbios judeus ~— todos eles tém
em alta consideracao a ldgica, isto é, a arte de forcar a aprovacgdo por
348 — Da ORIGEM DOSABIO argumentos; sabem que a légica os levard a vencer, embora tenham contra
O sabio na Europa € encontrado em todas as classes sociais e nos _eles a repugndncia de raga e de classe.
meios mais diversos, como umaplanta que n&o tem necessidade de um Defato, nada é mais democratico que a légica: nao conhece privilégios
solo particular para crescer; por isso veicula, essencial e involuntariamente, para as pessoas € mesmoosnarizes aduncoslhe parecem retos. (A Europa,
as opinides democraticas. Mas essa origem setrai. Se porventura se esta diga-se de passagem, deve reconhecimento aos judeus com relagao ao
habituado com o olhar a descobrir e a surpreenderna pratica, numa obra ou exercicio da légica e A higiene intelectual; sobretudo os alemaes, raga
num tratadocientifico, a idiossincrasia do sdbio — todo sdbio possui a sua — lastimavelmente irrazodvel, da qual, ainda hoje, € preciso sempre comegar
quase sempre se reconhecer4,atras dessa idiossincrasia, a hist6ria primitiva por “lavar a cabeca”. Em toda parte onde os judeus adquiriram influéncia,
do sdbio, sua familia e em particular a profissdo e 0 oficio de seus pais. ensinaram a distinguir com mais sensibilidade, a concluir com mais
Alguns textos parecem dizer: “Af estd, terminei, demonstrei o que tinha sagacidade, a escrever com mais clareza e mais propriedade: sua tarefa
a demonstrar’, entéo 6 0 sangue e 0 instinto do sdbio que se exprimem, sempre foi de levar um povo “a razao”.)
€ o ancestral que fala e que, de seu recanto, aprova a “tarefa realizada”’;
~— acrenga numa demonstragdo nado € sendo o sintoma daquilo que desde 349 — AINDA A ORIGEM DOS SABIOS
sempre se considerava, numa familia trabalhadora, como “bom trabalho”. Querer se conservar é a expressdo de um estadode afligao, uma restrigao
Um exemplo: os filhos dos escrivaes e dos burocratas de toda espécie, cuja do verdadeiro instinto fundamental da vida que tende a uma extensGo do
tarefa principal sempre consistiu em classificar miltiplos documentos, em poder e que, Por causa dessa vontade, muitas vezes pde em jogo a “auto-
distribuf-los por arquivos e, em geral, em esquematizar, mostram, quando conservacao”. — E sintomatico que certos filésofos, como por exemplo
se tornam sabios, uma propensao a considerar um problema comoresolvido Spinoza,o tuberculoso, tiveram justamente que considerar 0 que se chama
a partir do momento em que estabeleceram 0 esquema. instinto de conservacao como causa determinante: — de fato, eram homens
Ha fildsofos que ndo s4o mais que cérebros esquematicos — 0 que era em plena angtistia. Se nossas ciéncias naturais modernas se engajaram de
exterior na profissao de seu pai se tornou para eles a prépria esséncia das tal forma no dogmade Spinoza (em ultimo lugar e do modo mais grosseiro
coisas. O talento em classificar, a estabelecer as tabelas de categorias, com o darwinismo e sua doutrina incrivelmente unilateral da “luta pela
revela alguma coisa; nao se €é impunementefilho de seu pai. O filho de um vida”) — é provavelmente a origem da maioria dos naturalistas que esta em
advogado continuara a ser advogado enquanto homem de ciéncia: quer, causa: nisso pertencem ao “povo”. seus antepassados eram pobrese gente
em primeiro lugar, fazer triunfar sua causa; em segundolugar talvez, que simples que conheciam de muito perto as dificuldades que hd em sobreviver.
seja justa. Osfilhos dos pastores protestantes e dos professores primdrios O darwinismo inglés respira por completo uma atmosfera semelhante
sao reconhecidos pela ingénua certeza com que acreditam, como sdbios, Aquela que produz a superpopulagao das grandes cidades inglesas, o odor
considerar suas afirmacées como demonstradas a partir do momento em das pessoas pobres, reduzidas 4 miséria. Mas quando se ¢ naturalista, se
que acabam somente de exp6-las corajosa e acaloradamente: de fato, eles deveria sair do seu esconderijo, pois na natureza reina, nao a pentria, mas
tém o habito inveterado de que acredita neles — nos pais deles isso fazia a abundancia e até mesmo o desperdicio até a loucura.

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A luta pela vida nao passa de uma excecdo, uma restrigaéo mMomentanea como a grande paixdo daquele que procura o conhecimento, que vive
da vontade de viver; a grande e a pequena luta giram em toda parte em torno constantemente nas nuvens tempestuosas dos mais altos problemas e das
da preponderancia, do aumento, da extensiio do poder, em conformidade mais dura responsabilidades, que é forcado a viver nelas (que nao €, porisso,
com a vontade de poder que é precisamente a vontade da vida. de modo algum contemplativo, exterior, indiferente, seguro, objetivo...).
O povo honra umacategoria totalmente diferente de homens quando
350 — EM HONRA DOS “HOMINES RELIGIOS?”!) se faz um ideal do “sabio” e tem mil vezes razdo de prestar honras a
A luta contra a Igreja significa muitas coisas — entre outras, a luta das esses homens com as mais selecionadas palavras e homenagens: s4o as
naturezas mais vulgares, mais alegres, mais familiares, mais superficiais naturezas do padre, amenase sérias, simples e castas, e tudo o que é de
contra a dominagao dos homens mais graves, mais profundos, mais sua espécie; — é a eles que sdo dirigidos os elogios que a veneracao do
contemplativos, quer dizer, mais malvados e mais sombrios, que ruminam povo prodigaliza 4 sabedoria. E para quem 0 povoteria mais razdo para
por longo temposuassuspeitas sobre o valor da existéncia e também sobre testemunhar gratidao sendo para esses homens que saem do meio dele
seu proprio valor: — o instinto vulgar do povo, sua alegria dos sentidos, seu e continuam a pertencer 4 sua espécie, mas como pessoas consagradas
“bom coragdo” se revoltavam contra esses homens. Toda a Igreja romana e escolhidas, sacrificadas para seu bem — eles pr6éprios se julgam
se baseia numa desconfianga meridionalcontra a natureza humana, sempre sacrificados a Deus — junto de quem 0 povo pode impunemente abrir seu
mal compreendidano norte. coracéo, desembaracar-se de seus segredos, das suas preocupagées e de
Essa desconfianga, 0 sul europeu a herdou do oriente profundo, da coisas piores ainda (porque o homem que “se confia” se desembaraga de
antiga e misteriosa Asia,terra da contemplagao. Ja o protestantismo é uma si mesmo e aquele que se “confessou” esquece).
revolta popular em favor dos homensintegros, cAndidos e superficiais (o Ora, aqui se trata de uma imperiosa necessidade: pois, para as imundicies
norte sempre foi mais benigno e mais superficial que o sul); mas foi a da alma, também sido necessarios canais de escoamento e dguas limpas que
Revolugdo Francesa que entregou definitiva e solenemente o cetro nas purificam, so necessdrios rios caudalosos de amor e de coragdes valentes,
maos do “homem bom” (do carneiro, do asno, do ganso e de tudo o que humildes e puros que se prestam a esse servico sanitdrio nao publico, que
€ incuravelmente chato e gritante, maduro para o asilo de loucos das se sacrificam — de fato, isso é realmente um sacrificio em que 0 padre é e
“idéias modernas”’). permanece a vitima.
I O povoconsidera esses homens sacrificados e silenciosos, esses homens
351 — EM HONRA DAS NATUREZAS SACERDOTAIS t
sérios da “fé" como sdbios, isto é, como aqueles que chegaram ao saber,
Creio que os filésofos sempre se mantiveram mais afastados possfvel como homens ‘seguros” com relagdo 4 sua prépria incerteza: quem, pois,
daquilo que o povo entende por sabedoria (e quem hoje nio faz parte do o faria calar e lhe tiraria essa veneragdo? — Mas em contrapartida, é justo
“povo”), dessa prudente tranqiiilidade de alma bovina, dessa piedade e que, entre os fildsofos. também o padre seja ainda considerado como um
dessa suavidade de pastor interiorano que se estende pelos prados e que homemdo“povo”e nado como um homem que “sabe”. antes de tudo porque
assiste ao espetaculo da vida ruminando com arsério; talvez fosse porque ele proprio acredita que se possa “saber” e porque eles farejam 0 “povo”
os fildsofos nao se sentiam suficientemente povo,suficientemente pastores Nessa crenca € nessa superstigdo. Foi a modéstia que na Grécia inventou
camponeses. Por isso talvez seréo também os Ultimos a acreditar que 0 0 termo “fildsofo” e que deixou aos comediantes do espirito 0 soberbo
povo possa compreender alguma coisa daquilo que esta tio distante dele. orgulho de se chamarem sdbios — a modéstia de monstros de orgulho e de
independéncia comoPitagoras e Platao.
(1) Expressao latina que significa “homens religiosos” (NT).

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352 — PORQUE E MUITODIFICIL DISPENSAR A MORAL Na realidade, dessas duas invengdes, a segunda é a mais importante;
O homem nu é geralmente um vergonhoso espetdculo — penso em nos, a primeira, 0 género de vida, ja existia em geral ao regulamento, mas ao
europeus (para nao dizer nada das européias!). Suponhamos que os mais lado de outros modos de vida e sem que se desse conta do valor que tinha.
alegres convivas, por meio de um toque de malicia de um magico, se vissem A importancia, a originalidade do fundador de religiao se manifestam
de repente desnudados, despidos, creio que, repentinamente, nao somente geralmente pelo fato que ele vé 0 modo de vida, que o escolhe, que pela
seu bom humorhaveria de desaparecer, mas também haveriam de perder primeira vez adivinha para que podeservir, como se pode interpreta-lo.
0 apetite — parece que nés, europeus, nao podemos em absoluto dispensar Jesus (ou Sao Paulo), por exemplo, encontrou a sua volta a vida da gente
esse mascaramento que se chama vestudrio. Mas os “homens morais” nao humilde de provincias romanas: ele a interpretou e lhe conferiu um sentido
tém eles também boas razGes para se disfarcar, para se vestir de formulas superior — e por isso mesmo lhe deu a coragem de desprezar qualquer
morais e de nogdes de conveniéncia? outro género de vida, o tranqiiilo fanatismo que mais tarde retomaram os
Nao temos boas razGes para esconder complacentemente nossosatos Irmios Moravios'”, a secreta e subterrénea confianga em si que cresce sem
sob as idéias do dever, da virtude, do espirito critico, da honorabilidade, cessar até estar pronta a “vencer o mundo” (quer dizer Roma e as classes
do desinteresse? Nao que eu pense que a moralidade permita mascarar a superiores de todo o império).
maldade e a infamia humana,isto é, a perigosa besta selvagem que esté Buda, da mesmaforma, encontrou umaespécie de homens, disseminada
em nos; pelo contrario, 6 precisamente em nossa qualidade de animais em todas as classes de seu povo, essa espécie de homens que, por preguiga,
domésticos que oferecemos um espetéculo vergonhoso e que precisamosde é boa e benevolente (antes de tudo, inofensiva) e que, igualmente por
um disfarce moral — 0 “homem interior” na Europa nao é suficientemente preguica, vive na abstinéncia, quase sem necessidade: ele compreendeu que
inquietante para poder“se deixar ver” com sua ferocidade (para que o torne essa espécie de homens, com toda a sua forga de inércia, tendia a uma fé
belo). O europeu se disfarea com a moral porque se tornou num animal que prometia evitar o retorno das misérias terrestres (quer dizer do trabalho
doente, enfermo, estropiado, que tem boas razdes para “domesticado”, e da aciio em geral) — entender isso foi sua marca de genio. Para ser um
porquanto € quase um aborto, alguma coisa de inacabado, de fraco e de fundador dereligido 6 necessdrio possuir umaintalibilidade psicologica
desastrado... Nao € a ferocidade do animal de presa que experimenta a na descoberta de uma categoria de almas determinadas: e médias, almas
necessidade de um disfarce moral, mas 0 animal de rebanho, com sua que ainda nao reconheceram que sao da mesma espécie. E 0 fundador de
mediocridade profunda, o medo e 0 aborrecimento quese causa a si propria. religido que as retine: é por isso que a fundagao de umareligido se torna
A moral adorna o europeu — confessemo-lo! — para Ihe conferir distincao, sempre umalonga festa de reconhecimento.
importancia, aparéncia, para tornd-lo ‘“divino”.
354 — Do “GENIO DA ESPECIE”
353 — DA ORIGEM DAS RELIGIOES O problema da consciéncia (ou mais exatamente. do fato de se tornar
As verdadeiras invencdes dos fundadores de religiao sao, de um lado: consciente) s6 se apresenta a nds no momento em que comegamos a
ter fixado um modo de vida determinado, habitos didrios que agem como compreender em que medida poderfamos dispensar a consciéncia: a
umadisciplina da vontade e suprimem ao mesmo tempo o aborrecimento:
Deeenertncresesesereeerener tenner sce coe wae austeras
de outro lado, ter dado justamente a esta vida umainterpretacdo por meio (1) Irmaos Mordvios ou Irmdos Boémios & a denominagio de uma corrente crista de vida e devogaoausten
da qualparece envolvida na auréola de um valor superior, de modo que se que condena qualquer envolvimento ou compromisso com mundo politico: eles se consideram herdeiros do
reformadortcheco Jan Hus (queimado vivo comoherege em 1415): com a Reforma protestante de Lutero
torna agora um bem pelo qualseluta e se sacrifica as vezes a vida. século XVI. passarampara olado deste e hoje esses seguidores sdo alguns milhares, disseminados
empaises da
Europa centro-setentrional (NT).

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ia
fisiologia e a zoologia nos colocam agora no inicio dessa compreensao e que so se desenvolveu em fungadode seu grau de utilidade. A consciénc
— somente como tal é
(foram necessdrios, portanto, dois séculos para acatar a precoce suspeita é apenas uma rede de comunicagao entre homens
animal
de Leibniz’). Com efeito, poderiamos pensar, sentir, querer, lembrar-nos, que foi forgada a se desenvolver: o homem que vivia solitario e 0
poderiamos igualmente agir em todas as acepgdes do termo, sem que seja de presa poderiam ter passado sem ela. Se nossos atos, pensamentos,
necessdrio que tudo isso “chegue @ nossa consciéncia” (como se diz, sob sentimentos e movimentos chegam & nossa consciéncia — pelo menos em
forma de imagem). A vida inteira poderia passar sem se olhar de algum parte — € o resultado de uma terrivel necessidade que durante muito tempo
modo nesse espelho: por outro lado, ainda agora, a maior parte da vida dominou o homem: uma vez que era 0 mais ameagado dos animais, tinha
decorre em nds sem que haja semelhante reflexéo — e mesmo quando necessidadede ajuda e de protegao, tinha necessidade de seus semethantes,
pensamos, sentimos e agirmos, por mais ofensivo que isso possa parecer a era obrigado a saber exprimir sua aflig&o, a saber tornar-se inteligivel — e
um filésofo antigo. Para que serve a consciéncia, se € supérflua para tudo para isso era necessario, em primeiro lugar, a “consciéncia”, para “saber”
o que é essencial? ele proprio o que Ihe faltava, “saber” qual era sua disposigdo de espirito,
Se realmente se quiser ouvir minha resposta a essa questdo e as hipoteses, “saber” o que pensava.
talvez excessivas, nas quais ela se baseia, diria que a acuidade e a forga De fato, repito, o homem, como todo ser viva, pensa constantemente,
da consciéncia me parecem estar sempre em relag4o com a faculdade de mas 0 ignora; 0 pensamento que se torna consciente representa apenas a
comunicacdo de um homem (ou de um animal) e essa mesma faculdade parte mais infima, digamos a mais mediocre e a mais superficial — pois, ¢
em fung4o da necessidade de comunicar: mas nao se deve ver nisso 0 ser |; © somente esse pensamento consciente que se realiza em palavras, isto é,
humano individual como um mestre na arte de comunicar, de explicar suas | em sinais de comunicacdo, pelo qual a propria origem da consciéncia se
necessidades e, ao mesmo tempo, como um ser coagido, mais que qualquer revela. Em resumo, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento
e
outro, a contar com seus semelhantes. da consciéncia (ndo da raz4o, mas somente da razao quese torna conscient
Nao! Trata-se de ragas inteiras e de geragdes sucessivas: quando de si propria) se dao as maos. Acrescentemos que nao é somente a lingua
a necessidade e a miséria forgaram por muito tempo os homens a se que serve de intermedidrio entre os homens, mas também o olhar, a
comunicar, a se compreender reciprocamente de uma maneira rapida e pressdo, 0 gesto: a consciéncia das impressoes de nossos prdprios sentidos,
repentina, acaba por se formar um excedente dessa forga, dessa arte da a faculdade de poder fixd-los e determind-los, de alguma forma fora de
comunicagao, de algum modo um tesouro que se acumulou aos poucos e nos mesmos. aumentaram ao ritmo com que aumentava a necessidade de
que espera agora um herdeiro que a dispense com prodigalidade (aqueles comunicd-los a outros por meio de sinais. —
que s4o chamadosartistas sio desses herdeiros, bem como os oradores, O homem inventor de sinais 6 ao mesmo tempo o homem que toma
os pregadores, os escritores: sempre homens que chegam nofinal de uma consciéncia de si mesmo de uma forma sempre mais aguda; nao € senao
longa corrente, homens tardios no melhorsentido da palavra e que, por sua como animal social que 0 homem aprende a se tornar consciente de si
natureza, sAo dissipadores). proprio — e o faz ainda, e o faz sempre mais. — Minha idéia é. como se vé,
Se essa observagdo for correta, posso ir mais longe e supor que a que a consciéncia nao pertence essencialmente a existéncia individual do
consciéncia s6 se desenvolveu sob a pressdo da necessidade de comunicar, homem, mas, pelo contrario, que nele pertence a natureza da comunidade e
que a principio s6 era necessaria e Util nas relagdes de homem para homem do rebanho: que. por conseguinte. a consciéncia so se desenvolveu de uma
(sobretudo nasrelagSes entre aqueles que mandam e aqueles que obedecem) forma sutil com relacdo a sua utilidade para a comunidade e 0 rebanho,
Portanto, que cada um de nds. apesar do desejo de se compreender a si
(1) Gottfned Wilhelm Leibniz (1646-1716). filésofo e matematico alemao (NT).

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mesmo tao individualmente quanto possivel, apesar do desejo “de se por conhecer! Que quer quando quer 0 conhecimento? Nada mais queisto:
conhecer a si mesmo”, sempre tomard consciéncia em si préprio somente reduzir qualquer coisa de estranho a qualquer coisa de conhecido. Né6s,
daquilo que ha de nao individual, daquilo que nele é “meio” — que fildsofos, por “conhecimento” quererfamostalvez mais? O que é conhecido
nosso préprio pensamento € sem cessar “aumentado” de alguma forma é aquilo a que estamos habituados, de tal modo que nado nos espantamos
pela caracteristica propria da consciéncia, pelo “génio da espécie” que mais, af incluindo nossosafazeres cotidianos, uma regra qualquer que nos
a comanda — e retraduzida na perspectiva do rebanho. Todos os nossos conduz, tudo o que nosé familiar... como?
atos sao no fundo incomparavelmente pessoais, tinicos, imensamente, nao Nossa necessidade de conhecimento nao é justamente nossa necessidade
restando nenhuma diivida a respeito; mas desde que os transcrevemos na de conhecido? O desejo de descobrir, no meio de todas as coisas estranhas,
consciéncia, deixam de parecer assim... inabituais, incertas, alguma coisa que n4o nos inquietasse mais? No seria
Este € 0 verdadeiro fenomenalismo, o verdadeiro perspectivismo como 0 medo instintivo que impele a conhecer? O encanto do conhecedor nao
o entendo: a natureza da consciéncia animal quer que 0 mundo de que seria 0 encanto da segurancga reconquistada?... Tal fil6sofo considerou o
podemoster consciéncia nao passe de um mundodesuperficies e de sinais. mundo como “conhecido”depois de té-lo reduzido a “idéia”.
um mundo generalizado e vulgarizado, que tudo 0 que se torna consciente Ai! Nao era assim simplesmente porque a “idéia” era para ele coisa
se torne por isso superficial, reduzido, relativamente estupido, se torne conhecida, habitual? Porque tinha muito menos medo da “‘idéia’’?
generalizacao, sinal, marca do rebanho: desde que se toma consciéncia,se — E vergonhosa a moderaciio daqueles que procuram o conhecimento!
produz uma corrup¢do decisiva, uma falsificagao, um achatamento, uma Examinem, portanto, desse ponto de vista, seus principios e suas solucées
vulgarizacao. No fim de contas, o aumento da consciéncia é um perigo e aos enigmas do mundo! Quando voltam a encontrar nas coisas, entre as
quem vive no meio dos europeus mais conscientes sabe mesmoquesetrata coisas, atras das coisas, qualquer coisa que infelizmente conhecemos
de uma doenga. demais, como por exemplo, nossa tabuada de multiplicar, nossa légica,
Nao €, como se adivinha, a oposigao entre 0 sujeito e 0 objeto que me nossas vontades ou nossosdesejos, que gritos de alegria nao soltam! Defato,
preocupa aqui; deixo esta distingdo aos teéricos do conhecimento que “o que é conhecido é reconhecido”: nisso, estao todos de acordo. Mesmoos
continuam ainda presos nas malhas da gramatica (a metafisica do povo). E mais circunspectos entre eles acreditam que aquilo que € conhecido é pelo
menosainda a oposi¢4oentre a “coisa em si” e a aparéncia: porque estamos menos mais facil de reconhecer do que aquilo que é estranho; acreditam
longe de nos “conhecermos” o suficiente para poder estabelecer esta que, por exemplo, para proceder metodicamente, se deve partir do “mundo
distingdo. A bem da verdade, nao possuimos um 6rg4o para 0 conhecimento. interior”, dos “fatos da consciéncia’”, pois esse seria o mundo que melhor
para a “‘verdade”: ‘‘sabemos” (melhor, acreditamos saber, imaginamo-nos) conhecemos! Erro dos erros!
nem mais nem menos que é iti] que saibamos no interesse do rebanho O que é conhecido é 0 que ha de mais habitual e o habitual é o que ha
humano, da espécie: e mesmo 0 que € chamado aqui “utilidade” nao 6. de mais dificil a considerar como problema, a ver por seu lado estranho,
no final das contas, sendo uma crenga um produto de nossa imaginacio e distante, “exterior a ndés préprios”.
talvez a masfatal estupidez, aquela que nos levard a perecer um dia. A grande superioridade das ciéncias “naturais”, comparadas com a
Psicologia e a critica dos elementos da consciéncia — ciéncias ndo naturais,
355 — A ORIGEM DE NOSSA NOCAO DO ““CONHECIMENTO” se deveria dizer — consiste precisamente nisto: escolhem por objeto
Colhi esta explicacdo na rua: ouvi alguém no meio do povodizer: “Ele elementos estranhos, quando querer tomar por objeto elementos que nao
me reconheceu”; — e eu me pergunto o que é que 0 povo entende no fundo 840 estranhosbeira a contradicao e o absurdo...

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356 ~ EM QUE A EUROPA SE PODERA TORNAR CADA VEZ MAIS “ARTISTA” singular que nao é€ digna de admiragdo sob todos os pontos de vista:
o
Em nossa época de transigdo, quandotantas opressdes desapareceram, tornaram-se realmente atores; como tais fascinaram e conquistaram
a luta pela existéncia continua a impora quase todos os europeus um papel mundo,incluindofinalmente até a propria cidade que havia “conquistado
determinado, a que chamamossua carreira; alguns conservam a liberdade, o mundo” (porque foi 0 graeculus histrio® que conquistou Roma e ndo
uma liberdade aparente, de escolher eles préprios esse papel, mas na a cultura grega, como costumam dizer os inocentes...). Mas o que me
maioria das vezes € o papel que os escolhe. O resultado é bastante singular: assusta, 0 que j4 se pode constatar hoje, é que nés, homens modernos,
quase todos os europeus se confundem com seu papel logo que chegam a 'j4 nos encontramos precisamente no mesmo caminho; e cada vez que o
umaidade mais avangada;eles préprios sdo as vitimas da “comédia” que homem comegaa descobrir em que medida desempenha um papel, em que
representam, esqueceram o acaso, 0 capricho, a fantasia que dispuseram medida pode ser comediante,ele se torna comediante...
deles quando se decidiram por uma “carreira” — talvez tivessem podido Entdo se desenvolvem umanova flora e uma nova fauna humanas que,
representar outros papéis, para os quais é muito tarde agora. Ao olhar mais em épocas mais fixas e mais rigorosas, nao poderiam crescer — ou, pelo
de perto, o papel que representam se tornou verdadeiramente seu carater menos, ficariam “embaixo”, postas de lado na sociedade, suspeitas de
proprio, a arte se fez natureza. desonra. - E entio, digo, que aparecem as épocas mais interessantes € as
Houve épocas em que se acreditava firmemente e mesmo com certa mais loucas da historia, nas quais os “comediantes”de todas as espécies
piedade em sua predestinag4o para esse oficio determinado, esse ganha- sdo os verdadeiros senhores.
pao, e no qual nado se queria admitir a qualquer prego 0 acaso, 0 jogo, 0 Por isso mesmo,outra categoria de homens é vista sempre mais causar
arbitrario que eventualmentetivesse interferido: gracas a isso, as castas, as danos, até que se torne totalmente impossivel, € a categoria dos “grandes
corporagées, os privilégio hereditarios de certos offcios chegaram a erigir construtores”; a forca de construir se paralisa; a coragem que permitia
essas colossais torres sociais que distinguem a Idade Média, na qual se forjar projetos a longo prazo diminui; os génios organizadores comegam
pode ao menos elogiar uma coisa: a perenidade (— e a durac&o é na terra um a faltar: — quem ousaria ainda empreender obras cujo acabamento exigiria
valor de primeirissima ordem). que se pudesse contar com milhares de anos?
Mas ha €pocas contrarias, as épocas verdadeiramente democraticas em Defato, essa crenca fundamentalesta prestes a desaparecer, essa cren¢a
que se perde cada vez mais essa crenga e em que umaidéia contrdria, um em nome daqual alguém nao podecontar, prometer, antecipar planos para
ponto de vista temerdria se coloca em primeiro plano - essa crenca dos o futuro, sacrificar seus planos 4 medida que se afirma o principio de que
atenienses que se observa pela primeira vez na época de Péricles'”, essa o homem nio tem valor, sentido, a ndo ser enquanto for uma pedra num
crencga dos americanos de hoje que quer, cada vez mais, tornar-se também grandeedificio: € por isso que ele deve antes de tudo ser sélido, ser uma
uma crenca européia: épocas em que o individuo é persuadido de que é “pedra”... E acima de tudo que nao seja - comediante! Resumindo — ai!
capaz de fazer quase tudo, que esta @ altura de quase todos os papéis, em seria preciso ficar calado ainda por muito tempo a respeito disso — 0 que
que cada um ensaia consigo mesmo, improvisa, ensaia de novo, ensaia com doravante nao seria mais construfdo, ndo poderia mais ser construido, ¢
prazer, em que toda natureza cessa e se torna arte... Foi somente quando se uma sociedade no sentido antigo da palavra; para construir esse edificio
imbuiram nessa crenca no papel — crenga de artista, se quisermos — que os inteiro nos falta antes de tudo o material de construgdo. Nés todos ndo
gregos conheceram, comose sabe, degrau por degrau, uma transformagao somos mais material para uma sociedade: esta é uma verdade que esta na
hora de dizer.
(1) Péricles (séc. V a.C.), estratega grego, favoreceu o acessode todos os cidadaos ao exercicio do poder e aos
espetaculos (NT). (2) Expressdo latina que significa “o pequenogrego histrido ou comediante™ (NT).

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Parece-meindiferente para o momento que a espécie de homens mais profundidade hoje ainda nao esta totalmente esgotada, tem alguma coisa
miope, talvez a mais honesta e em todo caso a mais barulhenta que exista de alemao? Existe uma razio para supor que um latino nao teria chegado
hoje, a espécie que formam nossos senhores socialistas acredite, espere, facilmente a essa inversdo da evidéncia? — De fato, trata-se realmente de
sonhee antes de tudo grite e escreva mais ou menos o contrario; pois ja se uma inversdo! -
pode ler em todos os muros e em todas as mesas suas palavras do futuro: Lembremos, em segundo lugar, do enorme ponto de interrogagao que
“sociedade livre”. Sociedade livre? Perfeitamente! Mas acho que vocés Kant"? colocou junto da idéia de “causalidade” — ndo que, como Hume“,
sabem, senhores, com que ela é construida? Com ferro de madeira! O tenha colocado em dtvida sua legitimidade: pelo contrario, comegou por
famoso ferro de madeira! E até mesmo sem madeira... delimitar, com precaugao, o dominiono interior do qual ela tem um sentido
(trata-se de um trabalho que ainda nfo acabou em nossosdias). Tomemos,
357 — A PROPOSITO DO VELHO PROBLEMA: “O QUE E ALEMAO?” em terceiro lugar, a admirdve! descoberta de Hegel’? que abalou todos
Facam a conta das verdadeiras conquistas do pensamento filoséfico os habitos dalégica. bons e maus, quando ousou ensinar que as idéias
devidas a cérebros alemaes: deve-se creditd-las, de qualquer maneira que especificas nascem umasdas outras: esse principio preparouos espiritos da
seja, a toda a raga? Pode-se dizer: sAo ao mesmo tempo a obra da “alma Europapara o ultimo grande movimentocientifico, o darwinismo — porque
alem&” ou pelo menos o simbolo dessa alma, mais ou menos no mesmo sem Hegel nao teria havido Darwin’.
sentido como somos acostumadosa considerar, por exemplo, a ideomania Ha alguma coisa de alemao nessa inovagdo hegeliana que foi a
de Platao, sua loucura quase religiosa das formas, como um acontecimento primeira a introduzir na ciéncia a nog4o de “evolugdo”? — Pois bem, sim!
e um testemunho de “alma grega”’? Nao é antes o contrario? As conquistas Sem diivida nenhuma: nesses trés casos sentimos que se “descobriu”,
filoséficas alemas néo seriam alguma coisa de tao individual, de t4o que se adivinhou um pouco de nos proprios; estamos ao mesmo tempo
excepcional no espirito da raga e tao pouco vergonhoso de sé-lo como é: reconhecidos e surpresos. Cada um desses trés principios é, para a alma
entre os alemaes, por exemplo, 0 paganismo de Goethe'''? alema, uma contribuicao séria para o conhecimento de si, uma experiéncia
Ou o maquiavelismo de Bismarck”, chamado “realismo politico”? e uma definicdo pessoais. “Nosso mundointerior é muito mais rico, muito
Nossosfilédsofos nao seriam na verdade contrarios 4 necessidade da“alma mais vasto, muito mais escondido” — é assim que o sentimos com Leibniz;
alema”’? Em resumo, os filésofos alemaes foram realmente — alemdes comoalemies, duvidamos com Kant do valor definitivo dos conhecimentos
fildsofos? — Vou evocar trés casos. Em primeiro lugar, a incomparavel cientificos e de tudo o que se aprende por dedugdo causal; o prdprio
clarividéncia de Leibniz” que Ihe deu razdo, nao apenas contra Descartes’, cognoscivel comotal nos parece como de valor menor.
mas também contra toda a filosofia antes dele — quando reconheceu que Nos alemaes serfamos hegelianos, mesmo se Hegel nao tivesse
a consciéncia é um simples acidente da representacdo e ndo seu atributo existido, A medida que (em oposigao com todos os latinos) concedemos
necessério e essencial, que aquilo que chamamos consciéncia, longe instintivamente um sentido mais profundo, um valor maisrico ao futuro,a
de ser a prépria consciéncia, é apenas uma condi¢éo de nosso mundo evolucdo do que “é” — mal acreditamos nalegitimidade do conceito “ser”;
intelectual e moral(talvez uma condicdo doentia): — esse pensamento, cuja
(5) Immanuel Kant (1724-1804). filésofo alem4o; dentre suas obras, j4 foi publicada nesta colegio da Editora
Escala A religide nos limites da simples razéo (NT).
(1) Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), escritor e pensador alemao (NT). (6) David Hume (1711-1776), filésofo, historiador e economista escocés; dentre suas obras. jd foi publicada
(2) Otto von Bismarck (1815-1898), estadista alemao (NT). nesta colegio da Editora Escala Investigagdo sobre o Entendimento Humano(NT).
(3) Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). fil6sofo e matematico alemdo (NT). (7) Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). filésofo alemao (NT).
(4) René Descartes (1596-1650), filésofo e matematico francés: dentre suas obras, j4 foram publicadas nesta (8) Charles Darwin (1809-1882). naturalista inglés: sua mais célebre obra. A origent das espécies ja foi publicada
coleg4oda Editora Escala Discurso do método e Aspaixées da alma (NT).
Nesta colecdo da Editora Escala (NT).

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~— de igual modo, 4 medida que nao estamos dispostos a conceder a nossa


Considerar a matureza como se fosse uma prova da bondade e da
l6gica humana queseja a l6gica em si, a Gnica espécie de ldgica possivel
providéncia divinas; submeter a hist6ria ao crédito de uma razdo divina,
(gostariamos, ao contrario, de nos convencer que n§jo passa de um caso como testemunho constante de uma ordem moral do universo e de uma
particular da verdadeira légica, talvez um dos mais singulares e dos mais
finalidade; interpretar nosso destino, como o fizeram durante tanto tempo
estupidos). Haveria ainda uma quarta pergunta: a de saber se era necessdrio
os homens piedosos, vendo nele sempre a mao de Deus que dispensa e
que Schopenhauer” com seu pessimismo, isto é, com 0 problema do valor _ dispde tudo em vista da salvacio de nossa alma: af estéo maneiras de
da existéncia, fosse justamente um alemao.
pensar que hoje estéo ultrapassadas, que tém contra elas a voz de nossa
O acontecimento depois do qual esse problema devia inevitavelmente consciéncia que, no julgamento de toda consciéncia delicada, passam por
se por, de modo que um astr6nomoda almativesse podido calcular o dia
inconvenientes, desonestas, por mentira, feminismo, covardia — e€ essa
e a hora, 0 acontecimento que foi a decadéncia da fé no Deuscristao e
severidade, mais que qualquer outra coisa, faz de nds bons europeus,
a vitéria do ateismo cientifico, é um acontecimento europeu, cujo mérito herdeiros da mais longa e da mais corajosa vit6ria sobre si mesma que
recai sobre todas as racas em conjunto. Em contrapartida, deveria ser
a Europa ja tenha conquistado. Mas logo que assim rejeitamos essa
imputado precisamente aos alemdes, a esses alemaes que viveram na interpretacgdocrist4, logo que a rejeitamos como uma moedafalsa, vemos
€poca de Schopenhauer — terem retardado por mais tempo e da forma mais desenhar-se diante de nés, imediatamente e com umainsisténcia terrivel, a
perigosa essa vitéria do atefsmo; Hegel, particularmente, foi seu refreador
pergunta de Schopenhauer: “A existéncia tem, portanto, um sentido?”
por exceléncia, com sua grandiosa tentativa para nos convencer a ultima Esta pergunta vai exigir séculos antes de poder. ser simplesmente
hora da divindade da existéncia por meio de nossosexto sentido, o “sentido compreendida de maneira exaustiva e em todas as suas profundezas.
hist6rico”. Schopenhauer, como fildsofo, foi o primeiro ateu convicto e A propria resposta que Schopenhauer Ihe deu foi — perdoem-me — algo
inflexivel que tivemos, nés alemaes: esse é 0 segredo de sua hostilidade de prematuro, juvenil, um compromisso; ele se deteve, se enredou no
para com Hegel.
ascetismo da moral crista, na qual ndo se podia mais acreditar desde que
Ele considerava a naéo-divindade da existéncia como algumacoisa de nao se pudesse mais acreditar em Deus...
provado, de palpavel, de indiscutivel; perdia sua calma de filésofo e se Masele enunciou a pergunta — como bom europeu, comoja disse, e nao
indignava profundamente toda vez que via alguém hesitar nisso e procurar -como alemao. —A menosque se pense que os alemaes tenham experimentado
se explicar com rodeios. uma afinidade, um parentesco de espirito com Schopenhauer, uma
E nesse ponto que repousa toda a sua retido: de fato, 0 atefsmo absoluto disposicdo para ouvi-lo e uma necessidade de seu problema, pela maneira
e leal € a condigdo primeira na colocacaéo de seu problema, é para ele uma como se apoderaram da pergunta schpenhaueriana? Nao!
vitoria, definitiva e dificilmente tirada da consciéncia européla, 0 ato mais
Que depois dele — de resto tarde demais! — se tenham posto a meditar
fecundo de dois mil anos de educagdo no sentido da verdade, para coibir tambéme a escreversobre esse problema, nao basta certamente para concluir
finalmente a mentira da fé em Deus... Vé-se o que realmente triunfou do por umaafinidade intima: poder-se-ia mesmo encontrar qualquer. contra-
Deus crist&o: foi a propria moral cristé, a nogdo de veracidade aplicada argumento na singular impericia desse pessimismo pés-schopenhaueriano
com um rigor sempre crescente, foi a consciéncia cristé agugada nos ~ é claro que os alemaes néo se comportavam comose estivessem em seu
confessiondrios e que se transformouaté se tornar a consciéncia cientifica. ’ elemento. Nao é de forma nenhuma umaalusao a Eduardo von Hartmann.
a probidade intelectual a qualquer custo. Muito pelo contrario, suspeito ainda, comoantes, que ele fosse demasiado
(9) Arthur Schopenhauer (1788-1860). filésoto alemao (NT). habil para n6és, quero dizer com isso quea terrivel severidade fingida nao

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somente se riu talvez desde 0 principio do pessimismo dos alemdes, mas pitoresco — ja houve alguma vez mais belas rufnas? — e recobertas de ervas
ainda que sera capaz, para acabar, de lhes “legar” em testamento a reccita daninhas de todos os tamanhos. Essa cidade em ruinas € a Igreja; vemos
utilizada para zombar deles da forma mais sutil como a empregada na o mundo cristéo abalado até seus fundamentos mais profundos, a fé em
época das sociedades por agdes. Mas pergunto: deve-se talvez considerar Deus arruinada, a fé no ideal ascético cristo se entregando a seu ultimo
como uma gloria alema esse velho pido Bahnsen'que girou toda a sua combate. Uma obra comoessa, que levou tanto tempo para ser construida
vida com volipia em torno de sua miséria realista e dialética e de seu “azar _e para se consolidar, o cristianismo — foi o Gltimo monumento romano!
pessoal” — isso seria talvez alemao? (Recomendo de passagem seus escritos — nao poderia ser, evidentemente, destrufdo com um Gnico golpe; foram
pelo uso que eu proprio fiz deles, como alimentoantipessimista, sobretudo necessdrias todas as espécies de abalos para abala-lo, todas as espécies de
por causa de suas elegantiae psychologicae''"', com as quais, me parece, espiritos para perfurd-lo, afund4-lo, roé-lo, apodrecé-lo.
se poderia vencer os corpos e os espiritos mais fechados.) Ou sera entao Mas o que ha de mais singular é que aqueles que mais se esforgaram
necessario incluir entre os verdadeiros alemaes um diletante e um solteirio para mantero cristianismo foram aqueles que se tornaram seus melhores
como Mainlander'', este agucarado apéstolo da virgindade? destruidores: os alemdes. Parece bem que os alemaes néo compreendem
Nofinal dascontas, era provavelmente um judeu(todosos judeusse tornam a natureza de uma Igreja. E falta de espirito, falta de desconfianga? Seja
acgucarados quandofalam de moral), Nao, nem Bahnsen, nem Mainlander, nem comofor, 0 edificio da Igreja se baseia numaliberdade e numaliberalidade
mesmoEduardo von Hartmannfornecem provas para admitir que 0 pessimismo do espirito que sfo coisas meridionais e também numa desconfianga
de Schopenhauer, com o olhar assustado que lanc¢a sobre um mundoprivado meridional com relagao A natureza, ao homem e ao espirito — ela se
de Deus, um mundo tornado estipido, cego, insensato e problematico, seu baseia num conhecimento dos homens, numa experiéncia dos homens
espanto sincero... nado foi somente um caso excepcional entre os alemaes, mas completamente diferente daquela do norte.
sim um acontecimento alemdo: ora, todo o resto, tudo 0 que se encontra em A reforma de Lutero foi uma vasta revolta da simplicidade contra a
primeiroplano, nossa corajosa politica, nosso alegre patriotismo, que considera “multiplicidade’’, para falar com prudéncia, um mal-entendido grosseiro e
tao vivamente todas as coisas sob o Angulo de um principio pouco filos6fico( honesto em grande parte perdodvel. — Nao se compreendia a expresso de
Deutschland, Deutschlandiiberalles”), portanto sub specie speciei', isto é. umaIgreja vitoriosa e apenas se via nela corrupgdo; ndo se compreendia
a species alema, demonstra exatamente 0 contrario. Néo! Os alemaes de hoje _ 0 ceticismodistinto, esse /uxo de ceticismo e de tolerancia que todo poder
ndo sao pessimistas! E se Schopenhauer era pessimista, era, repito, como bom vitoriosoe seguro de si se permite. Negligencia-se hoje querer perceber como
europeu e€ ndo como alemao. Lutero tinha a vista curta, como era mal dotado, superficial e imprudente,
com relacdo a todas as questées cruciais do poder, antes de tudo porque era
358 — A SUBLEVAGAO CAMPONESA DO ESPIRITO homem do povo, a quem toda heranca de umacasta reinante, todo instinto
Nos europeus nos encontramos diante de uma imensa campo de de poderfazia falta: de tal modo que sua obra, que visavaa restaurar a obra
ruinas, de onde emergem ainda alguns edificios que se mantém em pé por de Roma, deu sem o sabero sinal da destruig4o.
milagre, mas cuja maioria se esparrama pelo chao; 0 espetaculo é bastante Em sua santa célera, rasgou a tela sedosa e limpou os locais em que a
velha aranha a havia tecido durante muito tempo e com o maior cuidado.
(10) Julius Bahnsen (séc. XIX). fil6sofo alemao (NT). Entregou a todos os livros sagrados, de tal modo que acabaram porcair
(11) Expressaolatina que significa “elegdncias psicoldgicas” (NT).
(12) Philip Mainlinder (1841-1876). fil6sofo alemdo (NT).
nas maos dos filélogos, ou seja, dos destruidores de toda a crenga que
(13) Expressdo alema que significa “Alemanha, Alemanha acima de tudo” (NT), repousa em livros.
(14) Expressdolatina que significa “sob a espécie da espécie. sob 0 pontode vista da espécie” (NT).

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Destruiu a idéia de “Igreja”, rejeitando a fé na inspiragao dos concilios: de acrescentar, € verdade, que é igualmente cimplice da degenerescéncia
porque o espirito inspirador que fundou a “Igreja” ainda vive nela, ainda do saébio moderno, de sua falta de veneracao, de pudor, de profundidade,
constrdi nela, continua a construir sua casa para que a idéia de “Igreja” _ dessa candura ing€nua, essa pesada probidade nas coisas do conhecimento,
conserve sua forga. Deu ao padre relacées sexuais com a mulher, quando em resumo, desse plebeismo do espirito que é proprio dos dois ultimos |
a veneragao de que € capaz 0 povo, e sobretudo a mulher do povo, se séculos e cujo pessimismo ainda nao nos libertou de forma alguma — a
baseia em trés quartos na crenca que um homem queé excepcional nesse “idéia moderna” também faz parte ainda dessa“sublevagdo camponesa” do
ponto sera também uma excecao em outros pontos — essa era a idéia norte contra o espirito do sul, mais frio, mais ambiguo, mais provocador,
precisamente que defendia da maneira mais sutil, mais insidiosa em favor que se havia sublimadonaIgreja crista, seu mais sublime monumento.
da crenga popular em algo de sobre-humano no homem, no milagre, no Nao esquegamos, para terminar, o que vem a ser uma Igreja, em
Deus salvador oculto no homem. , oposicao a toda espécie de “Estado”: umaIgreja é antes de tudo um edificio
Depois de ter dado a mulher ao padre, Lutero nao podia evitar de lhe de dominacado que assegura aos homens mais espirituais o plano superior
retirar a confissdo auricular, 0 que era psicologicamente ldgico: mas com e que acredita no poderda espiritualidade até se proibir todos os meios
isso suprimiu 0 proprio padre crist4o, cuja maior utilidade foi sempre ser violentos considerados grosseiros — isso é suficiente para fazer da Igreja
um ouvido sagrado, um poco mudo, um timulo dos segredos. “Cada um umainstituigao mais nobre que o Estado.
€ seu proprio padre” — atras de semelhantes formulas e de sua astticia
camponesa, dissimulava-se em Lutero o édio profundo contra o “homem 359 — A VINGANCA SOBRE O ESPIRITO E OUTROS PLANOS OCULTOS DA MORAL
superior’, como o havia concebidoa Igreja — ele destruiu um ideal que nao A moral — onde é que pensam que ela possa ter seus mais temidos e
tinha podido alcangar enquanto mantinha o ar de combater e abominar a mais rancorosos advogados? Aqui esta um frustrado que nfo tem espirito
‘degenerescéncia desseideal. suficiente para se regozijar e precisamente cultura suficiente para sabé-lo.
Na realidade, rejeitou nele o monge impossivel, a dominacdo dos Aborrecido, desgostoso, s6 se despreza a si mesmo; possuidor de pequena
homines religiosi”’, fez, portanto, na ordem eclesidstica 0 mesmo que heranga, infelizmente est4 privado da suprema consolagao, a “béngdo do
combatia com tanta intolerancia na ordem social — uma sublevacdo dos trabalho’’”, o esquecimentode si nas “lides cotidianas”; esse homem tem, no
camponeses. — Quanto a tudo o que surgiu depois da Reforma, para o bem fundo, vergonhade sua existéncia — talvez, ainda por cima, albergue alguns
ou para 0 mal, e que hoje se pode fazer um balancgo aproximado ~ quem pequenos vicios — e que, por outro lado, nao pode impedir de se corromper
seria suficientemente ingénuo para simplesmente elogiar ou para recriminar cada vez mais, de se tornar sempre mais vaidosoe irritadigo em virtude de
Lutero? Era totalmente inocente, ndo sabia o que fazia. O achatamento do leituras a que nao tem direito, ou a uma sociedade demasiado intelectual
espfrito europeu, sobretudo no norte, seu adogamento, se for o caso de para seu est6mago: esse homem, envenenado até a medula — porque para
preferir usar uma expressao moral, deu com a Reforma de Lutero um grande um malogrado dessa natureza o espirito se torna veneno, a cultura se torna
passo em frente, sem divida nenhuma; foi ainda a Reforma que aumentou veneno, a propriedade se torna veneno, a solidao se torna veneno — acaba
a mobilidade e a inquietude desse espirito, sua sede de independéncia, sua por cair num estado habitual de vinganga, de vontade de vinganga...
fé num direito a liberdade, seu carater ‘natural’. Se, finalmente, se quiser Do que julgam que tenha necessidade, que tenha absolutamente
reconhecer o mérito da Reforma por ter preparado e favorecido o que necessidade para conservar diante dele mesmo uma aparéncia de
veneramos hoje sob 0 nome de “ciéncia moderna”, é preciso ndo esquecer superioridade sobre homens mais espirituais, para se dar, pelo menos
na imaginacao, a alegria da vinganca satisfeita? Sempre a moralidade,
(1) Expressaolatina que significa “homens religiosos” (NT).

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pode-se p6r a mao no fogo, sempre as grandes palavras da moral, sempre A primeira espécie de causa é uma quantidade de forga acumulada e
os grandes tambores da justiga, da sabedoria, da santidade, da virtude, que espera ser empregada, ndo importa quando, nao importa em qué; a
sempre o estoicismo da atitude (como o estoicismo esconde bem o que segunda é, pelo contrario, medida segundo o padrao dessa primeira forga,
ndo se tem!...), sempre o manto do siléncio superior, da afabilidade, da é alguma coisa realmente insignificante, geralmente um pequeno acaso,
suavidade e quaisquer que sejam os nomes conferidos ao manto do ideal, gracas ao qual essa quantidade se “alivia agora de uma maneira unica e
sob o qual se escondem incurdveis contendores de si, que séo também determinada: é€ a relagao do fésforo com o barril de pélvora.
incuraveis vaidosos. Que me compreendam bem: acontece as vezes que, Entre esses pequenos acasos e esses fésforos conto tudo o que se
desses inimigos natos do espirito, se desenvolvem esses raros exemplos de chama“causas”e tudo o que se chama “vocacgGes”: elas sao relativamente
humanidade que 0 povo venera sob 0 nomedesanto e de sabio; é desses comuns, arbitrdrias, quase indiferentes, comparadas a essa enorme
homens que surgem esses monstros de moral que fazem barulho, que fazem quantidade de forca que tende, como ja indiquei, a ser utilizada de uma
hist6ria — Santo Agostinho"” faz parte deles. forma qualquer.
O temordo espirito, a vinganga contra o espirito — ai! Quantas vezes Considera-se geralmente a coisa de outro modo: usualmente se esta
esses vicios, que tém um verdadeiro poder dinamico, deram origem a habituado a ver a forca motriz no objetivo (o fim, a vocagao, etc.), em
virtude! Sim, a virtude! —E,entre nds, a pretensdodosfildsofos 4 sabedoria, conformidade com um erro antigo — mas 0 objetivo é apenas a forca
essa pretensdo — a mais louca e a mais impertinente — que apareceu aqui propulsora, confunde-se o piloto com o vapor. E mesmo assim nem
e acola na terra, nao foi sempre até hoje, tanto na India como na Grécia, sempre a forca propulsora, o piloto...
antes de tudo um refigio? As vezes talvez do ponto de vista da educacado, O “objetivo” e a “intengdo” nao séo, na maioria dos casos, mais do
que santifica tantas mentiras, permitia ter uma terna solicitude pelos seres que pretextos decorativos, uma cegueira voluntdria da vaidade que nao
em formagao, em devir, com seus discipulos que muitas vezes é necessdrio quer admitir que o navio segue a corrente, na qual entrou por acaso?
defender contra eles proprios com a ajuda da fé na pessoa (por um erro)... Que queira seguir essa diregdo porque é preciso que a siga? Que tem
Masnoscasos mais freqiientes, um refigio para ondeseretira o fil6sofo realmente uma direcgéo, mas nem sombra de um piloto? — A critica da
fatigado, resfriado pela idade, endurecido, porque tem o sentimento de seu idéia de “objetivo” é coisa ainda a fazer.
fim proximo,a sagacidade desse instinto que os animais tém antes da morte
— eles se afastam, se tornam silenciosos, escolhem a soliddo, se refugiam 361 — O PROBLEMA DO COMEDIANTE
em cavernas, se tornam sdbios... Como? A sabedoria seria o reftiigio do O problema do comediante é aquele que me deixou preocupado por
fildsofo diante do — espirito? mais tempo: eu me perguntava (e ainda mo pergunto as vezes) se nao
era preciso partir daf para atingir 0 conceito perigoso do “artista” — um
360 — DUAS ESPECIES DE CAUSAS QUE SE COSTUMA CONFUNDIR conceito tratado até hoje com uma imperdoavel ingenuidade. — A falsidade
Segundo meparece, af esta em que consiste um de meuspassosa frente, com boa consciéncia; o prazer de fingir que imp6e seu poder e obriga a se
um de meus progressos mais importantes: aprendi a distinguir a causa da afastar daquilo que se chama“cardter”, submergindo-o as vezes até apaga-
acao em geral da causa da aco particular, de uma a¢4o neste ou naquele lo; o desejo intimo de desempenhar um papel, de ter uma mascara, uma
sentido, para este ou para aquele fim. aparéncia, um excedente de faculdades de assimilagao detodasas espécies
que nao sabem mais se saciar a servico da utilidade mais préxima e mais
(1) Aurelius Augustinus ou Santo Agostinho (354-430), fildsofo e tedlogocristo; dentre suas numerosas obras. estrita: tudo isso nao caracteriza talvez unicamente o comediante...
Soliléquiosja foi publicada nesta colegdo da Editora Escala (NT).

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Semelhantes instintos se desenvolveram talvez mais facilmente em 362 — NOsSSA FE NUMA VIRILIZACAO DA EUROPA
familias do baixo povo que, sob o dominio do acaso, numa dependéncia Ea Napoleao (e de modoalgum 4 Revolu¢céo Francesa, que procurava

estrita, atravessaram penosamente sua existéncia, obrigadas a se acomodar a “fraternidade” entre os povos e via efusdes floridas na terra inteira) que
no inc6modo, a se dobrara circunstincias sempre novas, a se mostrar e a devemospoderpressentir alguns séculos guerreiros que se anunciam e que
se apresentarde outra forma do que realmente eram e que terminavam,aos ficarao sem igual na hist6ria, numa palavra, ter entrado na idade cldssica

poucos, por saber a “virar sua capa” até se identificar com esse vestudrio da guerra, da guerra cientifica e ao mesmo tempo popular, da guerra feita
€ passar por mestras na arte de representar incessantemente o jogo do em grande escala (pelos meios, pelostalentos e a disciplina), que durante
esconde-esconde — a imitagéo nos animais: isso até o dia em que esse séculos seguidos nos haverao de invejar como uma €poca de perfeigao com
poder, acumulado de geracao em gerac4o, se torna despotico, irrazodvel, um olhar cheio de cidmes e de respeito: — de fato, o movimento nacional de
indomavel, e comoinstinto se pde a comandaroutros instintos para terminar onde saird essa gl6ria guerreira nao passa de um contragolpe do esforgo de
por criar 0 comediante, “‘o artista” (em primeiro lugar o bufao, o palrador, Napoledo e nfo existiria sem Napoleao.
0 arlequim, o louco, o palhago, assim como 0 criado doméstico classico, 0 Sera, portanto, a ele que um dia cabera a honra de ter refeito na Europa
Gil Blas: porque semelhantes tipos s4o os precursores do artista e muitas um mundo onde 0 homem dominara o comerciante e o “filisteu”’; talvez até
vezes do “génio”). mesmo “a mulher” mimadapelocristianismo e pelo espirito entusiasta do
Em condig6es sociais mais elevadas se desenvolve igualmente, sob uma século XVIII, mais ainda pelas “idéias modernas”. Napoleao, que via nas
pressdo andaloga, um tipo semelhante de homens: mas entio os instintos idéias modernas e em geral na civilizagao, alguma coisa como se fossem
de comediante s4o na maioria das vezes contidos por outro instinto, por inimigas pessoais, provou por essa hostilidade que era um dos principais

exemplo, nos “diplomatas” — estaria, por outro lado, disposto a acreditar continuadores do Renascimento: trouxe 4 luz toda uma face do mundo
que um bom diplomata poderia também se tornar um bom ator, contanto, antigo, talvez a mais decisiva, a face de granito. Quem sabese, gragasa ela,
bem entendido, que sua dignidade o permitisse. o herofsmoantigo nado acabara algum dia por triunfar sobre o movimento
Quantoaos judeus, esse povo da assimilacgao por exceléncia, se se seguir nacional, se nao deve se tornar o herdeiro e o continuador, no sentido
essa idéia, pode-se ver neles, de algum modo a priori, uma instituicdo afirmador, de de Napolefo — ele que queria, como se sabe, a Europa unida
histérica destinada 4 formacdo de comediantes, uma verdadeira sementeira para que fosse senhora do mundo.
de comediantes; e, com efeito, essa questo esta agora realmente na ordem
do dia: que bom ator de hoje nao é judeu? 363 — COMO CADA UM DOS SEXOS TEM SEUS PRECONCEITOS SOBRE O AMOR
O judeu, comoliterato nato, como dono efetivo da imprensa européia,
Apesarde todas as concess6es que estou pronto a fazer aos preconceitos
exerce seu poder gracas a suas capacidades de comediante, pois o literato mondégamos, nunca admitirei que se fale para o homem e para a mulher de
€ essencialmente comediante — ele interpreta o “homem instruido”, o igualdade dos direitos no amor: essa igualdade naoexiste. E que, por amor,
“especialista”. — Finalmente, as mulheres: pensemos um pouconahist6ria o homem e a mulher entendemcoisas diferentes — e € uma das condigdes
das mulheres — nao é necessdrio que sejam antes de tudo e em primeiro lugar do amornos dois sexos que um ndo suponha no outro o mesmosentimento
comediantes? Ougam falar os médicos que hipnotizaram jovens mulheres: que 0 seu, a mesma idéia do “amor”. O que a mulher entende por amor €
eles pedem que finalmente as amemos — que nos deixemos “hipnotizar” bastante claro: doagéo completa (mais que abandono) de corpo e alma,
por elas! Resultado? Elas “se entregam” mesmo quandose dao... A mulher sem restricao. Ela pensa com vergonha e medo numa doacao em que se
é de tal formaartista... misturassem clausulas e restrig6es.

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E essa auséncia de condig6es que faz de seu amor umaverdadeira fé e a e tardiamente, essa “posse”; €é mesmo possivel entéo que esse amorcresca
mulher n&o tem outra. —O homem, se gosta de uma mulher, exige dela esse depois do dom da mulher: ele ndo confessa facilmente que a mulher nao

amor, quantoa ele prdprio, esta, portanto, totalmente distante das hip6teses tem mais nada para lhe “dar”.
do amor feminino; se se encontrassem homens que experimentassem
também esse desejo de entrega total ndo lhes fosse estranho, pois bem, 364 — O SOLITARIO FALA
esses nao seriam — homens. Um homem que ama como uma mulher se A arte de freqiientar os homens se baseia essencialmente no habito
torna escravo; uma mulher, ao contrdério, que ama como mulher se torna “ (que supde um longo exercicio) de aceitar, de deglutir um repasto cuja
uma mulher mais realizada... preparacio nao inspira confianga. Admitindo-se que se chega 4 mesa com
A paixao da mulher, em sua absoluta rentincia a seus direitos préprios, uma fome de lobo, tudo ird muito bem (“a pior companhia te permite
postula precisamente que naoexiste, de outro lado, uma paixdo semelhante, sentir’ ~ como diz Mefistofeles'””); mas nao se possui essa fome de lobo
semelhante necessidade de rentincia: de fato, se ambos renunciassem a si quando se tem necessidade! Ai! como os outros sao dificeis de digerir!
proprios por amor,resultaria — nao sei o que, talvez o horror ao vazio? — A Primeiro principio: tomar sua coragem com as duas maos, como diante
mulher gosta de ser conquistada, de ser aceita como propriedade, ela quer de uma desgraga, caminhar com ousadia, estar repleto de admiragao por
se fundir na idéia de “propriedade”, de “posse”; porisso deseja alguém que - si proprio, cerrar sua repugnancia entre os dentes, engolir seu desgosto.
tome, que se nao doe e nao se entregue a si préprio, mas que queira, pelo Segundoprincipio: tornar 0 outro “melhor”, por exemplo, por um elogio,
contrario, enriquecer seu “eu” por meio de uma acréscimo de forc¢a, de para que possa suar de felicidade em si mesmo ou tomar por uma ponta
felicidade, de fé, para que a mulher se doe a si mesma. suas qualidades boas e “interessantes” e puxar até que se tenha feito sair
A mulher se da, o homem toma — penso que nenhum contrato social toda a virtude e que se possa dobrar a outra em suas dobras.
permitira passar por cima dessa diferenga de natureza: a melhor vontade e Terceiro principio: a auto-hipnotizagdo. Fixar o objeto de suas relagdes
a maiorsede de justica nao poderao quase nada contraessa antitese natural, como um botdo de vidro até que, cessando de experimentar prazer ou
por mais desejavel que possa ser n4o deixar ver constantemente a dureza, o desprazer, se comece a adormecer imperceptivelmente, a enrijecer-se,
horror, 0 enigma e a imoralidade desse antagonismo. a conseguir manutencdo: um meio doméstico tirado do casamento e da
Porque 0 amor, 0 grande concebido em sua totalidade, em sua grandeza, amizade, abundantemente experimentada e vista como indispensavel, mas
em toda a suaplenitude, é prdprio da natureza e, comotal, é e permanecerd nao ainda formuladacientificamente. Seu nome popular é — paciéncia.
alguma coisa de eternamente “moral”. — A fidelidade esté seguramente
inclufda no amor da mulher, por definig&o, ela é uma conseqiiéncia dela: 365 — O SOLITARIO FALA MAIS UMA VEZ
no homem, o amor pode as vezes acarretar a fidelidade, seja sob forma Nos também temosrelagGes com os “homens”, nds também vestimos
de gratidao, seja como idiossincrasia do gosto, o que se chama “afinidade humildemente 0 traje sob o qual nos conhecem (pelo qual nos identificam),
eletiva”, mas nao faz parte da natureza de seu amor ~ ¢ isso tio pouco, que sob o qual nos veneram e nos procuram, e sob o qual nos dirigimos a
quase se pode falar de uma antinomia natural entre o amor ¢ a fidelidade no sociedade, isto é, entre pessoas disfargadas que nado querem quese diga que
homem: 0 amor do homem é um desejo de posse e de forma alguma uma estdo disfarcadas; nds também agimos comotodas as mascarasdistintas e
rentincia e uma entrega;ora, 0 desejo de posse cessa cada vez que se realiza bloqueamos cortesmente com umacadeira a porta de toda curiosidade que
a posse... Se o amor do homem persiste é, de fato, porque seu desejo de
posse € suficientemente sutil e prudente para nao confessar, a ndoser rara (1) Personagem da obra Fausto de Goethe. simbolo do dem6niointelectual que confere ao homema ilusdo de
compreender e dominar tudo (NT).

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nao digarespeito a nosso “disfarce”. Mas ha ainda outras maneiras e outros tem uma corcunda. — Um livro sabio reflete sempre uma alma que se curva;
truques para-“freqiientar” os homens: por exemplo, como “fantasma” — o toda profissao forca o homema securvar. Ao rever os amigos da juventude
que é muito recomendavel quandose quer desembaragcar-se rapidamente depois que entraram na posse de sua ciéncia: ah! € sempre © contrario
deles e ihes inspirar temor. E simples: estendem a mio para nos e nao do que teve lugar, ai! € deles que, desde entéo e para sempre, a cliéncia
chegam a nos apanhar. Isso assusta. Ou entao: entramos por uma porta tomou posse. Incrustados em seu canto até se tornarem irreconheciveis,
fechada. Ou ainda: quando todas as luzes foram apagadas. Ou ainda: sem liberdade, privados de seu equilibrio, emagrecidos e angulosos em
quandoja estamos mortos. todo o corpo, salvo num tinico lugar onde sao realmente redondos — fica-se
Esse ultimo procedimento € 0 artificio dos homens pdstumos por “_ emocionadoe se procura calar ao encontrd-los assim...
exceléncia.(“Pensam entdo” ,exclamou um dia um desses com impaciéncia, Toda oficio, admitindo mesmo que seja uma de ouro, tem acima
“que teriamos vontade de suportar esse afastamento, essa frieza, esse dele um céu de chumbo que oprime a alma, que a prensa até torna-la
siléncio de morte que reinam em torno de nos, toda essa soliddo subterrdnea, estranhamente curvada. Nao ha nada a fazer a respeito. Nao se imagine
escondida, muda, inexplorada que para nos se chama vida e que poderia sobretudo que é possivel evitar essa deformagéo por meio de algum
muito bem ser chamada também morte, se ndo soubéssemos o que nos artificio da educacéo. Todo dominio se paga caro naterra, onde tudo se
havia de acontecer — e que somente depois da morte realizaremos nossa paga talvez muito caro; ndo se poderia ser homem de umaespecialidade
vida, nds nos tornaremos vivos, muito vivos! Nés, homens pdstumos"”). sendo A custa dos sacriffcios que sao feitos. Ora, querem que seja de outro
modo — querem pagar “menos caro”, querem que seja mais facil ~ naoé,
366 — A RESPEITO DE UM LIVRO SABIO senhores meus contemporaneos?
Nao fazemos parte daqueles que s6 tém pensamentos no meio dos Pois bem, que seja! Nesse entio, logo a seguir, terdo outra coisa: em
livros, sob a influéncia dos livros — nés temos o costume de pensar ao vez do oficio e do mestre, terao o literato, o literato habil e flexivel que,
ar livre, caminhando, saltando, subindo, dangando e de preferéncia nas com efeito, ndo tem corcunda — excetuando as costas largas que mostra
montanhas solitarias ou bem perto do mar, 14 onde até os caminhos se em reveréncias de vendedor de loja do espirito e como “representante”
tornam sonhadores. Para julgar o valor de um livro, de um homem, de um da cultura — 0 literato que no fundo ndo é nada, mas que “representa”
trecho de miisica, comegamospor nos perguntar se sabe caminhar, melhor quase tudo, que desempenhae “substitui” 0 conhecedor, que com toda a
ainda, se sabe dangar... Lemos raramente, nado podemos ler pior - oh! como ‘humildade se encarrega também de se fazer pagar, venerar e celebrar em
adivinhamosdepressa como um autor chegoua suasidéias, se ficou sentado lugar do outro. — No, meus amigos sdbios! Eu os abengdéo, a vocés e a
diante do tinteiro, com 0 ventre comprimido, reclinado sobre o papel: oh! sua corcunda.
como lemos depressa seu livro! E também porque desprezam, como eu, os literatos e os parasitas da
O intestino comprimidosetrai tio certamente como0 arviciado, o teto cultura! E porque nz» sabem comercializar seu espirito! E porque vocés
baixo, o aposento acanhado — Esses foram meus pensamentos ao fechar nao tém sendo opinides que nao podem se expressar em dinheiro! E porque
rapidamente um belo livro sabio, fiquei reconhecido, muito reconhecido, nado representam o que vocés nao sdo! Porque nado tém outra vontade
mas também aliviado... No livro de um sabio ha quase sempre alguma coisa ' sendio de se tornarem mestres em seu oficio, por respeito a toda espécie de
de opressivo, de oprimido: o “especialista” sempre se afirma em algum maestria e de exceléncia e por avers4o radical contra tudo o que é apenas
local, seu zelo, sua seriedade, seu rancor, sua presunc4o a respeito do aparéncia, semiverdade, brilhante, virtuosidade, maneiras de demagogos
recanto onde esta sentado a tecer sua trama, seu corcunda, todo especialista e de comediantes nas letras e nas artes — contra tudo o que ndo quer se

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apresentar diante de vocés com umaprobidade absoluta em sua preparagao E minhasentranhasnaose entristecem? O que é que me nao enrouquece
e em seus meios! (O proprio génio nado ajuda a superar semelhantes insensivelmente? — Por isso me pergunto: meu corpo inteiro, que pede entio
lacunas, por mais que se tente a fazé-las esquecer com um habil engano: a musica? Acredito que pede um alivio: como se todas as fungdes animais
coisa compreensivel quandosao vistos de perto os mais dotados de nossos devessem ser aceleradas por ritmos leves, ousados, desenfreados e seguros
musicos e de nossos pintores — todos sabem, quase sem excecdo, gracas a deles; como se a vida de bronze e de chumbo devesse ser transmudada no
astuciosa inveng4o de maneiras, de acessérios e mesmo de princfpios — a outro de melodias delicadas e suaves.
criar imediata e artificialmente a aparéncia dessa probidade, dessa solidez Minha melancolia quer se repousar nos esconderijos e nos abismos
de escola e de cultura, sem conseguir, é verdade, a se enganarem a si da plenitude: eis porque tenho necessidade de mUsica. Que me importa 0
proprios, sem imporsiléncio definitivamente a sua propria ma consciéncia. : teatro? Que me importam as convulsées de seus éxtases morais com que 0
Defato, j4 0 sabem muito bem: todos os grandesartistas modermos sofrem “povo” se satisfaz! Que me importam todas as caretas dos comediantes!...
de ma consciéncia.) Adivinha-se, sou de um cardter fundamentalmente antiteatral — mas
Wagnerera, pelo contrario, essencialmente homem deteatro e comediante,
367 — QUAL A PRIMEIRA DISTINCAO A FAZER ENTRE AS OBRAS DE ARTE o mim6logo mais entusiasta que jamais existiu, mesmo como musicol...
Tudo o quefoi pensado,versificado, pintado, composto, mesmoedificado Se, seja dito de passagem, a teoria de Wagnerfoi “o drama é o objetivo,
e esculpido, pertence a arte monologada ou a arte diante de testemunhas. a musica é sempre apenas o meio” — sua pratica foi, pelo contrario, do
Deve-se contar também nessa ultima a arte que nao é aparentemente sendo comeco ao fim, “a atitude é 0 objetivo, o drama e mesmo a mitsica sdo
uma arte monologada e que encerra a fé em Deus, todo lirismo da oracdo: sempre apenas os meios”.
pois para um homem piedoso naoha ainda solidio ~ fomosnds, os impios, A musica serve a acentuar, a reforgar, a interiorizar o gesto dramatico e
Os primeiros a inventar a solidéo. Nao conheco diferenca mais profunda a exterioridade do comediante, e o drama wagneriano é apenas um pretexto
em toda a 6tica de um artista: saber se 6 com o olhar da testemunha que para numerosasatitudes dramaticas.
ele observa a elaboragdo de sua obra (que se observa “a si proprio”) ou se Wagnertinha, ao lado de todos os outros instintos, os instintos de
“esqueceu 0 mundo”, o que é essencial em toda arte monologada — arte que mando de um grande comediante, em toda parte e sempre e, como ja
se baseia no esquecimento, que é a miisica do esquecimento. acenei, também como musico. — Foi o que demonstrei claramente, mas
com certa dificuldade, a um bom wagneriano; e eu tinha razGes para
368 — O ciNICO FALA acrescentar ainda: “Seja, portanto, um pouco mais sincero consigo; ndo
Minhasobjeg6es contra a miisica de Wagner!" sao objecéesfisiolégicas; estamos no teatro! No teatro, s6 somos honestos como massa; como
para que dissimuld-las ainda sob formulas estéticas? E um “fato”: respiro individuo, mentimos, nos mentimos a nods mesmos. Quando vamos ao
com dificuldade quando essa miisica comega a agir sobre mim; logo teatro deixamo-nos a nos proéprios em casa, renunciamos ao direito de
meupé se aborrece e se revolta contra ele — meu pé sente necessidade de falar e de escolher, renunciamosa nosso proprio gosto, mesmo @ nossa
cadéncia, de danga e de marcha, reclama da musica em primeiro lugar. coragem, como a possuimos e a exercemos entre quatro paredes para
os arrebatamentos que proporcionam uma boa marcha, o passo, 0 salto. com Deus e para com os homens. Ninguém leva ao teatro 0 senso mais
a danga. — Mas meu estémago nao protesta também? E meu coragaio? A sutil de sua arte, nem mesmo o artista que trabalha para o teatro; é la
circulagdo de meu sangue?
que somos povo, publico, rebanho, mulher, fariseu, eleitor, concidadao,
(1) Richard Wagner (1813-1883). compositor alem4o (NT).
democrata, préximo, semelhante, é ld que a consciéncia mais pessoal

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sucumbe ao encanto nivelador da maioria, é lé que reina 0 “vizinho”, 370 — O QUE E 0 ROMANTISMO?
é lad que nos tornamos vizinho...” (Esquecia-me de contar 0 que meu
Talvez se recorde, pelo menos entre meus amigos, que comecei por
wagneriano esclarecido respondeu a minhas objecdes fisioldgicas: “Nao me lancar sobre a questaéo do mundo moderno com alguns grandes erros
és, portanto, dito de modo simples, suficientemente bem comportado e alguns exageros forcgados, mas eu alimentava grandes esperangas.
para nossa musica!) Considerava — quem sabe na seqiiéncia de que experiéncias pessoais? — 0
pessimismofilosdfico do século XIX como sintoma de umaforg¢a superior
369 — O QUE COEXISTE EM NOS do pensamento, de uma bravura mais temerdria, de uma plenitude de vida
Nos, artistas, ndo devemos confessar a nés mesmos que ha em n6s mais vitoriosa que aquelas que tinham sido o préprio século XVIII, a
uma inquietante discordancia; nosso gosto, de um lado, e nossa forga época de Hume, de Kant, de Condillac'” e dos sensualistas. Tomava o
criadora, de outro, séo separados de uma forma singular; permanecem conhecimento tragico como verdadeiro /uxo de nossacivilizacao, via nele
separados e tém um crescimento particular — quero dizer que tém Oo mais precioso, 0 mais nobre e o mais perigoso dos desperdicios, pensava,
graus e tempos diferentes de velhice, de juventude, de maturidade, de levando em conta sua opuléncia, que esse luxo lhe era permitido.
decomposigao, de putrefagao. De igual modointerpretava a musica alem& como a express4o de um
De tal modo que, por exemplo, um misico poderia compordurante toda poder dionisiaco da alma alema: nela acreditava surpreender o rumorejar
a sua vida coisas que estariam em oposic¢do com aquilo que seu ouvido de subterraneo de umaforga primordial, comprimida havia muito tempo e que
ouvinte refinado e seu coragéo de ouvinte apreciam, gostam e preferem enfim vinha a luz — indiferente a tudo aquilo que hoje se chamacultura
— nao é realmente necessdrio que conhegaessa contradicao. pudesse ser abalado. :
Pode-se, como 0 prova uma experiéncia que se repete com dolorosa Como se vé, eu desconhecia entao, tanto no pessimismofiloséfico
constancia, ultrapassar facilmente com seu gosto 0 gosto que se tem na como na musica alema, o que lhes conferia seu verdadeiro cardter — seu
forga criativa, mesmo sem queessa forga seja paralisada com isso e refreada romantismo. O que é 0 romantismo?
em sua producdo; mas também pode ocorrer 0 contrario — e é sobre isso que Todaarte, toda filosofia podem ser consideradas comoremédios e auxflios
gostaria de chamar a atencdo doartista. a servico da vida em crescimento e em luta: supdem sempre sofrimentos
Um homem que cria constantemente, uma “mde” entre os homens. e sofredores. Mas ha duas espécies de sofredores: ha em primeiro lugar
no sentido superior do termo, alguém que nao conhece outra coisa senao aqueles que sofrem de superabunddancia de vida, aqueles que reclamam
gravidez e partos de seu espirito, que nao tem mais tempo algum para umaarte dionisiaca e também umavisdo tragica da vidainterior e exterior
refletir sobre sua propria pessoa e sobre sua obra e compara-las, que nao —e hd em seguida aqueles que sofrem de um empobrecimento da vida, que
tem tampoucoa intengao de exercer seu gosto, que o esquece simplesmente pedem arte e ao conhecimento a calma, o siléncio, o martranqitiilo, ou
e o deixa correr ao acaso — esse homem acabara talvez por produzir obras ainda a embriaguez, as convulsGes, 0 abalo, a loucura.
infinitamente superiores a seu senso critico: 0 que faz com que diga A esta ultima categoria de necessidade corresponde todo romantismo na
asneiras sobre elas e sobre si mesmo — ele as dird e as pensaraé. Parece-me arte e nafilosofia; foi aela que respondiam e respondem ainda Schopenhauer
que é€ regra geral entre os artistas muito fecundos — ninguém conhece de e Wagner, para citar os dois romanticos mais famosos e mais expressivos,
forma pior um filho que seus pais. Diria mesmo que é assim, para tomar um entre aqueles que entao eu interpretava mal — alias, de alguma forma em
exemplo marcante, do mundo dos poetase dosartistas gregos sem excegao: seu beneficio, como haverdo de concordar.
eles nunca “souberam” 0 que faziam...
ay Etienne Bonnot de Condillac (1715-1780). filésofo francés (NT).

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O ser mais transbordante de vida. o deus e o homem dionisiaco, pode revoltam e 0 irritam — para compreenderessa paixdo€ preciso olhar de perto
se permitir néo somente observar 0 que € terrivel e inquietante, mas nossos anarquistas. A vontade de eternizar tem igualmente necessidade
também dar-se ao luxo de fazé-lo ele préprio, de tudo destruir, de tudo de uma interpretagaéo dupla. Pode, por um lado, provir da gratidao e do
desagregar, de tudo negar; sua superabundancia o autoriza em suma a amor: — uma arte que tem essa origem ser4 sempre uma arte de apoteose,
maldade, a insanidade, a fealdade, pois é capaz de fazer de cada deserto ditirambica talvez com Rubens”, divinamente zombeteira com Hafiz,
uma regiao fértil. Inversamente, 0 homem mais sofredor, mais pobre luminosa e benevolente com Goethe, derramando sobre todas as coisas
em for¢a vital tem a maior necessidade de suavidade, de amenidade, de um raio homérico de luz e de gléria. Mas pode ser também essa vontade
bondade, tanto em pensamento como em ato e, se possivel, de um Deus tiranica de um ser que sofre atrozmente, que luta e que é torturado, de um
que seria particularmente um Deus dos doentes, um “salvador”; tem ser que gostaria de dar ao que lhe é mais pessoal, mais particular, mais
também a necessidade de légica, de inteligibilidade abstrata da existéncia préximo, dar 4 verdadeira idiossincrasia de seu sofrimento o selo de uma
— porque a ldogica tranqiiiliza e da confianga — em resumo, de uma certa jei e de uma coac4o obrigatérias e que se vinga de algum modo de todas
intimidadeestreita e calorosa que dissipa o temor e de um confinamento as coisas, imprimindo-lhes em caracteres de fogo sua imagem, a imagem
em horizontes otimistas. de sua tortura. Este ultimo caso é 0 pessimismo romdntico sob sua forma
Assim aprendi aos poucos a compreender Epicuro como o oposto de mais expressiva, seja como filosofia schopenhaueriana da vontade, seja
um pessimista dionisfaco, como o “cristao”
~ 8
que, de fato, nao passa de um como musica wagneriana: — 0 pessimismo romfntico é o ultimo grande
aspecto de epicureu e, como este, essencialmente romantico — e assim eu acontecimento no destino de nossa civilizagéo. (Que possa haver um
chegava a uma acuidade sempre maior no manejo da inducdo,tao dificil e otimismo completamente diferente - um pessimismo classico — esse
to capciosa, na qual se cometem mais erros — aquela que da obra remonta pressentimento e essa viséo me pertencem, nao podem ser separados de
ao criador, do fato ao autor, do ideal aquele que tem necessidade dele, de mim, séo meu proprium™ e meu ipsissimum®; entretanto, meu ouvido
qualquer maneira no fato de pensar e apreciar a necessidade que comanda. repudia o termo “‘classico”, que se tornou usado demais, muito arredondado,
— A respeito de todos os valores estéticos me sirvo agora desta distincdo muito irreconhecivel. Chamo esse pessimismo do futuro — porque esta a
capital: pergunto-me em cada caso: “E a fome ou a abundancia que cria caminho, o vejo chegar! — 0 pessimismo dionisiaco.)
aqui?” A primeira vista outra distingfo pareceria ser mais recomendada
— salta muito mais aos olhos — quero dizer: saber se € 0 desejo de fixidez. 371 — Nos, OS INCOMPREENSIVEIS
de eternidade, de ser, que é a causa criadora ou o desejo de destruicgao, de Algumavez j4 nos queixamosde ser mal compreendidos, desconhecidos,
mudanga, de novidade, de futuro, de vir-a-ser. confundidos, caluniados, de ser mal entendidos e de nao té-lo sido? Esse
Esses dois desejos, contudo, quando se olha mais de perto, parecem € precisamente nosso destino — ai! por muito tempo ainda, digamos para
ainda ambiguos, e nao se pode interpretdé-los senéo de acordo com o ser modestos, até o ano de 1901 — essa é também nossadisting4o; nao nos
critério indicado anteriormente, que se deve preferir, ao que me parece. O estimariamos bastante a nds mesmosse desejassemos que fosse de outra
desejo de destruigdo, de mudanga, de devir, pode ser a expressdo da forga maneira. N6s nos prestamos 4 confusdo — 0 fato é que nos engrandecemos
superabundante, gravida de futuro (meu termo para isso é, comose sabe. ands mesmos, mudamossem cessar, rejeitamosnossa velha casca, criamos
a palavra “dionisfaco”), mas pode ser também o ddio do ser fracassado.
do deficiente, do deserdado que destrdéi, que é forcado a destruir porque (2) Petrus Paulus Rubens (1577-1640), pintor flamengo (NT).
(3) Mohammed Shams od-Din Hafiz (1327-1390), poeta persa (NT).
o estado de coisas existente, todo estado de coisas, todo ser mesmo. 0 (4) Termolatino que significa “prdprio. bem préprio” (NT).
(3) Termolatino, superlative de ipstm(si mesmo): exatamente “si mesmo, si mesm{ssimo™ (NT).

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pele nova a cada primavera, nos tornamos sempre mais jovens, Mais por Esses fildsofos antigos eram pessoas sem cora¢ao: filosofar era sempre
vir-a-ser, mais altos e mais fortes, afundamos nossas raizes com sempre uma espécie de vampirismo. Nao sentem, diante de figuras como a de
maior forga nas profundezas — no mal — enquanto que ao mesmo tempo Spinoza, alguma coisa de profundamente enigmatico e inquietante? Nao
abragamos o céu com mais amor, com nossos bragos sempre mais abertos, véem o drama que aqui se representa, nao véem a palidez aumentar sem
aspirando a luz do céu sempre mais avidamente, com todos os nossos ramos _ cessar — 0s sentidos se empobrecerem e a dessensualizagao passar como
e com todas as nossasfilhas. ideal? Nao pressentem a presen¢a, em segundo plano, de uma sanguessuga
Nos crescemos, como as Arvores — isso é dificil de compreender, tao por longo tempo escondida que comega a se agarrar aos sentidos e que
dificil de compreender como a vida! — crescemos nao apenas num local, acaba por conservar, por deixar somente os ossos e seu chocalhar? — Quero
mas em toda parte, ndo numasé direcdo, mas tanto para o alto como para dizer, categorias, formulas, palavras (porque, perdoem-me,o que restou de
baixo, para o interior e para o exterior — nossa forga cresce ao mesmo Spinoza, amorintellectualis dei”, nado passa de um chocalhar e nada mais!
tempo notronco, nos ramos e nasraizes, j4 nao temos mais a total liberdade O que é amor, 0 que é deus, quando deixam de ter uma gota de sangue’?).
de fazer qualquer coisa separadamente, de ser alguma coisa em separado... - Emsuma, todo idealismofilos6fico foi até agora uma espécie de doenca, em
Defato, essa é nossa sorte: crescemos em altura;-admitindo que seja esse toda parte onde ndo foi, como no caso de Plato, a precaugdo de umasatide
nosso destino nefasto — pois habitamos sempre mais perto do raio! — pois muito rica e perigosa, o temor de sentidos superpoderosos, a sabedoria
bem! nem assim deixamos de guardar com honra esse destino, embora de um sabio discfpulo de Sécrates. ~- Talvez nés, homens modernos, nao
permanega aquele que nao poderiamos compartilhar, comunicar — 0 destino somosbastante saudaveis para ter necessidade do idealismo de Platao. E se
dos cumes, nosso destino... nao tememosos sentidos, é que...

372 — PORQUE NAO SOMOS IDEALISTAS 373 — A “CIENCIA” COMO PRECONCEITO


Outrora os filé6sofos temiam os sentidos — nao teremos esquecido demais E uma conseqiiéncia das leis da hierarquia que os sdbios, na medida
esse temor? Somostodos sensualistas, nds, homens de hoje e homens do futuro em que pertencem 4 classe intelectual média, nao tém de forma alguma
em filosofia, nao no plano da teoria, mas naquele da praxis, da pratica... Os acesso as questdes e aos problemas verdadeiramente grandes: nem sua
fil6sofos de outrora, pelo contrario, acreditavam ser atraidos pelos sentidos coragem nem sua visdo bastam paraatingi-los — sobretudo a necessidade
para fora de seu mundo, o frio reino das “idéias”, numailha perigosa e mais que faz deles pesquisadores, sua previsdo e seu desejo interior de obter
meridional, onde temem ver suas virtudes de fil6sofos derreter como a neve este ou aquele resultado, seu temor e sua esperanga se entregam e se
sob o sol. Para filosofar era preciso entéo tapar os ouvidos com cera; um contentam cedo demais.
verdadeiro filésofo nao entendia a vida, porquanto a vida é musica, e ele O que, por exemplo, entusiasma 4 sua maneira esse pedantesco inglés
negava a musica da vida — é uma velha superstic4o de fil6sofo acreditar que Herbert Spencer’, o que o leva a tracgar uma linha de esperanga no
toda musica é musica de sereia. — Hoje serfamos tentados a julgar no sentido horizonte de seus desejos, essa tardia reconciliacdo entre “o egofsmo e o
contrario (o que poderia ser em si do mesmo modo falso): a acreditar que altrufsmo” com que divaga. nos leva quase a vomitar: — uma humanidade
as idéias tém um poder de seducgao mais perigoso que os sentidos, com seu com semelhantes perspectivas spencerianas como Ultimas perspectivas
aspecto frio e anémico e até mesmo no poresse aspecto — as idéias viveram nos pareceria digna de desprezo e de destruicao!
sempre do “sangue”’ dosfildsofos, roeram sempre os sentidos dosfil6sofos e
até mesmo, se se quiser acreditar, seu “coracgao”. (1) Expresso Jatina que significa “amorintelectual de deus” (NT).
(2) Herbert Spencer (1820-1903). fildsofo e socidlogo inglés (NT).

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Mas s6 0 fato que alguma coisa que é forgado a considerar como 374 — Nosso NOVO “INFINITO”
esperanca superior nado aparece e nado pode aparecer a outros como Saber até onde vai 0 cardter perspectivista da existéncia ou mesmo
repugnante possibilidade, esse simples fato constitui um problema que saber se a existéncia possui ainda outro carater, se uma exist€ncia sem
Spencer ndo teria podido prever... Ocorre o mesmo com essa Crenga com interpretagdo, sem “sentido”, nao se torna um “‘absurdo”, se, por outro
que se satisfazem hoje tantos sdbios materialistas que acreditam que 0 lado, toda existéncia nao é essencialmente interpretativa — € 0 que, como

mundo deve ter seu equivalente e sua medida no pensamento humano, correto, nao pode ser decidido pelas andlises e pelos exames do intelecto
na avaliacdo humana, num “mundo de verdade”, do qual se poderia mais assiduos e mais minuciosamente cientificos: uma vez que o espirito
finalmente aproximar com o auxilio de nossa pequena razao humana, humano, durante essa andlise, nio pode agir de outra forma do que se ver
bem grosseira. - Como? Queremosrealmente rebaixar a existéncia a um sob suas pr6prias perspectivas e unicamente assim.
exercicio de calculo, a uma pequenatarefa para matematicos? S6 podemos ver com nossos olhos: ha uma curiosidade sem esperanga
Que se evite, antes de tudo, querer tirar da existéncia humana seu em querer conhecer que outras espécies de intelectos e de perspectivas
carater ambiguo: € isso que exige o bom gosto, senhores, 0 gosto do poderiam existir, por exemplo, se ha seres que podem conceber 0 tempo
respeito acima de tudo — 0 que ultrapassa seu horizonte! Que seja para tr4s, ou ora em marcha para frente ora em marcha para tras (0 que
verdadeira somente uma interpretagéo do mundo em que vocés estarao modificaria a direcdo da vidae inverteria igualmente a concepc¢ao da causa e
no verdadeiro, em que se possa realizar pesquisas cientificas (querem do efeito). Espero, contudo, que estejamos hoje longe daridicula pretensdo
dizer, na realidade, mecAnicos?) e continuar a trabalhar segundo seus de decretar que nosso reduzido canto é 0 tinico de onde se tem o direito de
principios, uma interpretagéo que permita contar, calcular, pesar, ver, possuir umaperspectiva. O mundo,para nos, voltou a se tornar “infinito”;
tocar e nao outra coisa, é um despropésito e uma ingenuidade, se nao for nado podemoslhe recusar a possibilidade de se prestar a umainfinidade de
deméncia ouidiotice. Nao é, pelo contrario, muito provavel que é 0 que interpretac6ées. Voltamos a ser dominadospor grande calafrio: — mas quem
teria vontade de divinizar de novo, imediatamente, 4 antiga moda, esse
ha de mais superficial e de mais exterior 4 existéncia — o que ha de mais
aparente, sua crosta e sua materializagdo — que se capta por primeiro? monstro de mundo desconhecido? Adorar esse desconhecido doravante
Talvez até mesmo exclusivamente? como o “deus desconhecido”? Ai! Existem demasiadas possibilidades de
Umainterpretacao “cientffica do mundo”, como vocés a entendem, interpretar esse desconhecido sem deus, de interpreta-lo com o diabo, com

meus senhores, seria por conseguinte ainda uma das mais estupidas a estupidez ou com a loucura — sem contar com nossa propria mancira, essa
interpretagdes do mundo, isto é, das mais pobres de sentido: isso dito aos interpretagéo humana, demasiado humana, que conhecemos!...
ouvidos dos mecanicistas e posto em sua consciéncia,eles que hoje gostam
de se misturar com osfilésofos e que imaginam de forma absoluta que a 375 — PORQUE PARECEMOS EPICURISTAS
mecAnica é a ciéncia das leis primeiras e tiltimas, sobre as quais, como
Nos, homens modernos, somos prudentes, prudentes com relagao a
sobre um fundamento, toda existéncia deve ser edificada. Entretanto, um
conviccdes supremas; nossa desconfianga se mantém alerta contra os
mundo essencialmente mecanico seria essencialmente desprovido de sortilégios e os enganos de consciéncia que ha em toda crenga forte, em
sentido! Se julg4ssemos o valor de uma musica pelo que dela se pode todo sim ou nado absolutos: como explicar isso? Talvez, em grande parte se
deva ver nisso a crianca que se queimou, o idealista abusado, mas por outro
calcular e contar, traduzir em f6rmulas — comoseria absurda semelhante
avaliacdo “cientifica” da musica! Que se teria captado, compreendido. lado, a melhor, a curiosidade repleta de alegria daquele que estava outrora
recolhido em seu canto até ficar exasperado e que se inebria e se exalta
reconhecido dela? Nada, estritamente nada daquilo que é “musica”!...

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Colecao Grandes Obras do Pensamento Universal

Nada “conservamos’’, néo queremos regressar anenhum passado, ndo somos


agora no ilimitado, “com toda a liberdade”. Assim se desenvolve uma
a que “liberais” em absoluto, nao trabalhamos para o “progresso”, nao temos
tendéncia quase epicurista em procurar 0 conhecimento, uma tendénci
modo, necessidade de tapar os ouvidospara nao ouvir as sereias do futuro cantar
nao deixa escapar facilmente 0 carater incerto das coisas; de igual
que na praga publica. — O queelas cantam, “Igualdadede direitos!” “Sociedade
umaantipatia contra as grandes frasese as atitudes morais, um gosto
fato, livre!”, “Nem senhores nem escravos!”, isso nao nos atrai! — na verdade,
recusa todos os antagonismos pesadose grosseiros das reservas. De
nao achamos de forma alguma desejavel que o reino da justica chegue e
é isso que faz nosso orgulho, essa leve tenso das rédeas quando nossa
que a paz seja instaurada naterra (porque esse reino seria forg¢osamente
impetuosa necessidadede certeza nos impele para frente, 0 sangue-frio do
o reino da mediocracia e da chinesice); aplaudimos todos aqueles que,
cavaleiro em suas corridas mais selvagens: de fato, antes como depois, nos
que nos como noés, gostam do perigo, da guerra e das aventuras, aqueles que nao
montamosos animais mais fogosose, se hesitamos, nao é 0 perigo
se deixam acomodar e reacomodar, conciliar e reconciliar, nos contamos
leva a hesitar...
a nds mesmos entre os conquistadores, refletimos na necessidade de uma
nova ordem e também de umanovaescravidao — pois, para todo reforgo,
376 — AS PARADASNA VIDA
que criam para toda elevac4o do tipo “homem”, é necessdria uma nova espécie de
Esse é 0 sentimento de todos os artistas, de todos os homens
cada vez -escravidao. — Af esta porque n&o nos sentimos bem numa época que gosta
“obras”, da espécie materna entre os homens: sempre imaginam,
de reivindicar a honra de ser a mais humana, a mais caridosa, a mais justa
que um perfodo de sua vida termina — um periodo que se fechou com uma
para que alguma vez ja existiu debaixo dosol!
obra — queatingiram o préprio objetivo; sentindo-se cada vez prontos
Ja é bastantetriste ver que essasbelas palavras sugerem tantas segundas
morrer, dizem: “Estamos maduros para a morte.” Isso nao quer dizer que
em intengdes para que néo vejamos também a expressdo ~ e também o
estejam cansados — mas antes que sua obra amadureceu e que deixou
Entao mascaramento — do mais profundo enfraquecimento, da fadiga, da velhice,
seu ator, como deve, uma luminosidade e uma docgura de outono.
da diminuigdodas forgas! Que nos importa saber com que enfeites um
o ritmo da vida diminui sempre, se torna espesso e pesado como mel —
doente decora sua fraqueza! Que a exiba como o faz com sua virtude —
diminui até longas paradas, até a crenga no longo repouso...
nao ha dtivida, com efeito, que a fraqueza torna doce, ah! to doce, tao
justo, tio inofensivo, tao “humano”! — A “religiaéo da piedade” a que
377 — Nos, SEM-PATRIA
nos quereriam converter - ah! nds conhecemos muito bem os pequenos
Entre os europeus de hoje, nao faltam aqueles que tém o direito de se
jovens e as pequenas jovens histéricas que hoje tém necessidade de véu
chamar, num sentido distintivo e que os honra, sem-patria: possa minha
fato, sua e de ornamentos! Nao somos humanitarios; nunca nos permitirfamos
secreta sabedoria, minha “gaia ciéncia”’, tocar-Ihes o coracao. De
falar de nosso “amor pela humanidade” — nés nao somos suficientemente
sorte é dura, sua esperanca ¢ incerta, € necessdria uma verdadeira habilidade comediantes para isso!
para Ihes inventar uma consolagao — e para qué! Nos, filhos do futuro.
Ou suficientemente sao-simonistas'’', suficientemente franceses para
como poderiamos estar em nossa casa nesse hoje! Somos hostis a todo
isso. E preciso ter sido atingido por doses excessivas, bem gaulesas, de
ideal que ainda pudesse encontrar um refiigio, um “em casa”, nesse tempo
irritabilidade erética e de impaciéncia sensual para se aproximar ainda da
de transic4o fragil e quebradi¢go; quanto as “realidades” desse tempo, nao
humanidade de maneira leal e com ardor...
acreditamos em sua duracdo. O gelo que ainda tem hoje se adelgacgou de
tal maneira: o vento do degelo sopra, nds mesmos, nos Os sem-patria somos
(1) Designative des adeptos da doutrina de Louis de Rouvroy, conde de Saint-Simon(1760-1825), doutrina que
algumacoisa que quebra o gelo e outras “realidades” demasiado frageis... Pretendia emancipar a humanidade, fundar um “novocristianismo” (NT).

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todas 378 — “E VOLTAREMOS A SER CLAROS”’.


Da humanidade! Jé houve alguma vez velha mais horrivel entre
Nos que somos ricos e prédigos em espirito, colocados como pocos
as horriveis velhas? — (a menos que seja a “verdade”: uma questao para
abertos a beira da estrada, nao querendo proibir a ninguém 0 acesso a
os fildsofos.) Nao gostamos da humanidade; mas, por outro lado, estamos
” nos, infelizmente ndo sabemos nos defender quando desejarfamosfazé-lo,
bem longe de ser muitos “alemaes” — nosentido atual da palavra “alemdo
"nao temos meios para impedir que nos perturbem, que nos obscurecam —
— para podermos ser os porta-vozes do nacionalismo e do édio das ragas,
porque a época em que vivemos joga no fundo de nés sua “atualidade” mais
para podermos nos regozijar com os males nacionais do coragao e com o
recente, porque Os passaros sujos dessa época jogam neles suas imundicies,
envenenamento do sangue, que fazem com que na Europa um povo levante
os malandros suas ninharias e viajantes esgotados que ali descansam suas
barricadas contra 0 outro, como se uma quarentena OS Separasse.
pequenas e grandes misérias.
Para isso somos muito imparciais, muito maliciosos, muito delicados,
Mas faremos como sempre: arrastaremos para o fundo tudo o que
também viajamos muito; preferimos muito mais viver nas montanhas, a
Jogarem em nos — porque somos profundos, nao 0 esquecemos — e nos
margem, “inatuais”, em séculos passados ou futuros, ainda que fosse apenas
tornaremos novamente claros.
para nos poupara raivasilenciosa a que nos condenaria o espetaculo de
uma politica queesteriliza o espirito alemao, injetando-lhe a vaidade e que
379 — INTERRUPCAO DO LOUCO
é, de resto, uma pequenapolitica: — ndo tem ela necessidade, para impedir
Nao foi um misantropo que escreveu este livro: o é6dio dos homens
que sua criagdo desabe logo quefor edificada, que se erga entre dois édios
se paga muito caro hoje. Para poder odiar como outrora se sabia odiar
mortais? Nao é obrigada a querer perpetuar o fracionamento da Europa em
o homem, 4 maneira de Timon", em bloco, sem restrigao, com todo o
pequenosEstados’...
amordo Odio — para isso se deveria poder renunciar ao desprezo — e quanta
Nos, sem-patria, somos muiltiplos em demasia e muito misturados, em
bondade devemos até precisamente a nosso desprezo! Somosos “oseleitos
raca e origem, para fazer parte dos “homens modernos”e, por conseguinte,
de Deus”; 0 desprezosutil é de nossogosto, 6 nosso privilégio e nossa arte,
pouco tentados a participar a essa mentirosa auto-idolatria racial que hoje
talvez nossa virtude, modernos entre os modernos que somos}...
se exibe impudicamente na Alemanha, & guisa de distintivo do lealismo
O dédio, pelo contrario, iguala uns diante dos outros, no é6dio hé honra
germanico e que parece duplamente falsa e inconveniente na patria do
e, finalmente, no 6dio ha medo, uma grande parcela de medo. Mas nés,
“sentido hist6rico”. Somos, numa palavra — e que essa palavra seja nossa
que somos sem medo, nds, os homens mais espirituais dessa época,
palavra de ordem! — bons europeus, os herdeiros da Europa,os herdeiros
conhecemosbastante bem nossa vantagem comotais para viver justamente
ricos e satisfeitos — mas ricos também em obrigagées, herdeiros de varios
na despreocupagao em relacao a esse tempo. Nao me parece provavel que
milhares de anos de espirito europeu: comotais, saidos do cristianismo
nos decapitem, que nos encerrem, que nos expulsem, nossos livros ndo
e a ele hostis, porque precisamente saimos de sua escola, porque nossos
. Serao certamente proibidos e queimados.
ancestrais eram cristaos de uma lealdade sem igual que, por suafé, teriam
A €poca ama 0 espirito, ela nos ama e teria necessidade de nés, mesmo
sacrificado os bens, o sangue,sua condicao e sua patria. Nés — nds fazemos
que Ihe déssemos a entender que somos artistas no desprezo, que toda
o mesmo. Masem favor de qué? Pornossafalta de fé pessoal? Por aquela
relagéo com os homens nos causa um leve susto, que, apesar de nossa
dos outros? Nao, bem o sabem, meus amigos! O sim escondido em vocés é
. docura, nossa paciéncia, nossa afabilidade, nossa cortesia, nao poderiamos
mais forte do que todos os naos e todosos talvez de que vocés sofrem com
Persuadir nosso nariz a deixar a aversAo que possui contra a vizinhanga
sua época: e se Ihes for necessdrio partir para o mar, vocés, emigrantes.
empenhem-se em ter também — uma fet...

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Nietzsche - A Gaia Ciéncia
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contra umlivro que alguém © possa achar incompreensivel: talvez fizesse


dos homens, que menosa natureza é humana mais a amamos, que amamos
parte das intengdes doautor nado ser compreendido por nado sei quem. Todo
a arte quando ele é a fuga do artista diante do homem, ou o sarcasmo do
espirito distinto e de bom gosto escolhe seus ouvintes quando quer se
artista contra o homem ou o sarcasmodoartista contra si mesmo...
comunicar; sua escolhafecha a porta aos “outros”. Todasas regrassutis de
um estilo tém ali sua origem: de um lado, elas se mantém a distancia, criam
380 — “O VIAJANTE” FALA
a distancia, profbem a “entrada”, a compreensdo — de outro, elas abrem os
Para considerar umavezde longe nossa moralidade européia, para medi-
- ouvidos daqueles que nos sao parentes pelo ouvido.
la pela escala de outras moralidades, mais antigas ou futuras, ¢ preciso agir
E, para dizé-lo entre nds e em meu caso particular — nado quero me
comofaz 0 viajante que quer conhecera altura das torres de umacidade: sai
deixar impedir nem por minha ignorancia, nem pela vivacidade de meu
da cidade. “Pensamentos sobre os preconceitos morais’’, se quisermos que
temperamento, de ser compreensivel para vocés, meus amigos: nem pela
nao sejam preconceitos sobre os preconceitos, sup6em uma posigao defora
vivacidade, disse, embora ela me force, para poder me aproximar de uma
da moral, algo para além do bem e do mal, para que seria necessdrio subir,
coisa, a me aproximar dela rapidamente. De fato, eu ajo com os problemas
galgar, voar — e nesse caso um para além de nosso bem e de nosso mal, uma
profundos como se fossem um banho frio — entrar nele rapido e sair
independéncia de toda “Europa”, essa ultima entendida como uma soma
depressa. Acreditar que dessa maneira nao se entra nas profundezas, nado
de juizos avaliadores que nos ordenam e que entraram em nosso sangue.
se vai demais ao fundo, é a superstigio daqueles que temem a Agua, dos
Querer assim se colocar fora e acima, é talvez uma leve temeridade, um
inimigosda Aguafria; eles falam sem experiéncia.
“tu deves”particular e irrazoavel, pois nds também, nds que procuramos 0
Ah! O frio intenso torna a gente agil! — Dito de passagem, umacoisa
conhecimento, temos nossas idiossincrasias da vontade “ndolibertada”: — a
ficaria verdadeiramente incompreendida e desconhecida pelo fato de ser
questiio esta em saberse se pode realmente subir 14 em cima. Isso depende
tocada apenasno véo, captada por um olhar, num instante? Seria necessdrio
de muitas coisas. No conjunto, trata-se de saber se somos pesados ouleves.
realmente comegarporsentar em cima dela? Té-la chocado como um ovo?
é o problema de nosso “peso especffico”. E preciso ser extremamenteleve
Diu noctuque incubando'", como dizia Newton”) de si mesmo? Ha pelo
para impelir sua vontade de conhecer para tio longe e, de algum modo.
menos verdades de um pudor e de umasuscetibilidade tais que nao se
para além de seu tempo, para se criar olhos que possam abragar milhares
pode apoderar-se delas senao de uma forma imprevista — que € preciso
de anos e que o azul nelessereflita! E preciso estar desapegado de muitas
surpreender ou deixar... Enfim, minha brevidade tem outra razdo ainda:
coisas que nos oprimem, que nos entravam, que nos mantém curvados, que
entre as quest6es que me preocupam, ha muitas que devo explicar em
nos tornam pesados, a nds, europeusde hoje. O homem de semelhante além.
poucas palavras para me compreendam ainda mais rapidamente. Defato,
que quer ele prdprio abracar as avaliag6es superiores de sua epoca, tem
€ preciso evitar, como imoralista, perverter a inocéncia, quero dizer, os
necessidade em primeiro lugar de “ultrapassar” em si mesmo essa €poca
asnos € as solteironas dos dois sexos que n4o tém outra vantagem da vida
— essa é a prova de forca — e, por conseguinte, nao somente sua época, mas
senao sua inocéncia; melhor ainda, minhas obras devem entusiasmé-los,
também sua repugnancia contra essa época, a contradi¢do, 0 sofrimento
eleva-los e levd-los para a virtude. Ndo conheco nada mais alegre na terra
que lhe causava essa €poca, sua inatualidade, seu romantismo...
que o espetaculo de velhos asnose de velhas solteironas que agita 0 doce
sentimento da virtude: e isso “ew vi” — assim falava Zaratustra.
381 — A QUESTAO DA COMPREENSAO
Quandose escreve nao se faz questo somente de ser compreendido.
(1) Expressaolatina que significa “incubando dia e noite” (NT).
mas certamente também de nao sé-lo. Nao é de forma alguma uma objegao (2) Isaac Newton (1642-1727), fisico, matematico e astrénomoinglés (NT).

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Nietzsche - A Gaia Ciéncia

Esta € minha brevidade; com relagéo 4 minha ignorancia, que nado


da grande satide — de uma saude que nado somente se possui, mas que se
dissimulo nem a mim mesmo,a questdo é mais grave. Ha horas em que
deve também conquistar sem cessar, porquanto sem cessar é sacrificada e
tenho vergonhadela; é verdade que ha horas também em que tenho vergonha
precisa ser sacrificada!... E agora, depois de ter estado por tanto tempo em
dessa vergonha. Talvez nés, filésofos, estejamos todos hoje em ma posigao
viagem, nos, os argonautasdoideal, mais corajosos talvez do que 0 exigisse
perante o saber humano: a ciéncia cresce e os mais sdbios de nds estao
a prudéncia, muitas vezes naufragados e abismados, mas em melhorsatide
prestes a descobrir que sabem muito pouco. E verdade que seria pior ainda
do que se poderia desejar e permitir-se, perigosamente bem de satide, de
Se Ocorresse de outro modo — se soubéssemos demais. Nosso dever € antes
uma satide sempre nova — parece-noster diante de n6ds, como recompensa,
de tudo nao nos envolvermos em confuséo conosco mesmos. Nés somos
um pais desconhecido, do qual ninguém viu ainda as fronteiras, um além
outra coisa e nio sdbios, embora seja inevitdvel que, entre outros, nds
de todos os paises, de todos os recantos do ideal conhecido até hoje, um
fOssemos também sdbios. Temos outras necessidades, outro crescimento,
mundo tao rico em coisas belas, estranhas, duvidosas, terriveis e divinas,
outra digestdo: precisamos mais e também precisamos menos. Nao ha
que nossa curiosidade, bem como nossa sede de possuir, sairam de seus
f6rmula para definir a quantidade de alimento que € necessdrio para um
gonzos — ai! agora nada mais chega para nossaciar!
espirito; se, no entanto, ele tem gosto pela independéncia, com uma vinda
Comopoderiamos, depois de semelhantes perspectivas e com semelhante
brusca e uma partida sibita, com viagens, talvez com aventuras que sao
forme na consciéncia, com semelhante avidez de ciéncia, nos satisfazer
unicamente a forca dos mais rapidos, preferira viver livre com um alimento
ainda com esses homens atuais? E deploravel, mas € inevitdvel que nado
frugal do que cevado e na opressao. Nao é a gordura, mas uma grande
prestemos mais seriamente atencdo a seus objetivos e a suas esperangas
elasticidade e um vigor maior que o bom dangarino exige de seu alimento
mais dignase talvez nio pudéssemos até mesmoprestar atengao isso.
— € no vejo o que o espirito de um fildsofo poderia desejar de melhor do
Outro ideal corre diante de nds, um dieal singular, tentador, cheio de
queser um bom dangarino. De fato, a danga é seu ideal, sua arte particular
perigos, um ideal que nao gostarfamos de recomendar a ninguém porque
e finalmente também sua tinica piedade, seu “culto”...
a ninguém reconhecemos facilmente o direito a esse ideal: é o ideal de
um espirito que brinca ingenuamente, isto é, sem intengdo € porque sua
382 — A GRANDE SAUDE
plenitude e sua forga transbordam, com tudo 0 que até o presente se chamou
Né6s, homens novos, nds que ndo temos nome, que somosdificeis de
sagrado. bom, intangivel, divino: espirito para o qualas coisas mais elevadas
compreender, precursores de um futuro incerto — temos necessidade, para
que servem, comrazao, de medida ao povo, significariam ja alguma coisa
um novo fim, de um novo meio, quero dizer de uma nova satide, de uma
que se assemelha ao perigo, 4 decomposi¢do, ao rebaixamento ou , pelo
satide mais vigorosa, mais aguda, mais obstinada, mais intrépida e mais
menos, 4 convalescéncia, a cegueira, ao esquecimento momentaneo desi:
alegre do que foi até agora qualquer outra satide. Aquele cuja alma esta
€ o ideal de um bem-estar humano-sobre-humano e de uma benevoléncia
Avida porter as feicgdes de todos os valores que tiveram curso e de todos os
andloga, um ideal que parecerd muitas desumano, por exemplo, quando
desejos que foram satisfeitos até o presente, de visitar todas as costas deste
se coloca ao lado de tudo o que até agora foi sério, terrestre, ao lado de
“Mediterraneo” ideal, aquele que quer conhecer, por meio das aventuras
toda espécie de solenidade no gesto, na palavra, na entonagao, noolhar, na
da experiéncia mais pessoal, que se sente um conquistador, um explorador
moral, como sua viva parddia involuntaria — e com o qual. apesar de tudo,
do ideal e também quese sente um artista, um santo, um legislador, um
a grandeseriedade talvez s6 comega, com 0 qual o verdadeiro problema
instrufdo, um sdbio, um homem piedoso, um adivinhador, um divino
é talvez somente posto, o destino da alma volta. o ponteiro caminha, a
solitdério de outrora: esse terd antes de tudo necessidade de uma coisa.
tragédia comega...

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Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal

383 — EpiLoco
Mas ao tracar, para terminar, lentamente, lentamente, esse sombrio
ponto de interrogac&o, quando eu notinha a inten¢do de relembrar ao
leitor as virtudes da verdadeira arte de ler — ai! que virtudes esquecidas e
desconhecidas! — me dou conta que 0 rir mais zombeteiro, mais jovial e
mais frivolo se faz ouvir em torno de mim: os préprios espiritos de meu
livro se jogam sobre mim, me puxam as orelhas e me chamam a ordem.
Eles me interpelam desse modo: “Jd néo podemos mais; para o diabo,
para o diabo, essa misica negra e sombria comoas penas de um corvo! A
claridade da manhd jé ndo brilha em volta de nés? Nao estamos cercados
de um verde e macio relvado, o reino da danca? Jé houve uma hora melhor
para estarfeliz? Quem quer entoar uma cangdo, uma cangdo da manhd tao APENDICE
ensolarada, tdo leve, tio aérea que, em vez de expulsar as idéias negras
as convida a cantar comele, a dancar com ele? Antes a melodia de uma
estipida cornamusa que esses sons misteriosos, esses gritos de coruja,
essas vozes de além-tuimulo, esses assobios de marmotas, com os quais nos
CANCOESDO PRINCIPE
presentearam até o momento em sua selvagem soliddo, senhor eremita e
musico do futuro! Nao! Basta com esses sons! Entoemos melodias mais
LIVRE COMO UM PASSARO’"
agraddveis, mais marcantes e mais alegres!” — Af esta o que vocés querem,
meus impacientes amigos?
Pois bem! Quem naothes obedeceria de boa vontade? Minha cornamusa
esté pronta, minha garganta também — talvez saiam sons roucos, pois
déem um jeito vocés! Estamos nas montanhas! Maso que thes farei ouvir
serd pelo menos novo e, se vocés néo o compreenderem, se as palavras
do trovador lhes sao ininteligiveis, que importa! Essa é a “maldicao do
trovador”. Assim ouvirao mais distintamente sua musica e sua melodia,
dancarfo tanto melhorao ritmo de sua gaita de foles... Querem isso’...

(1) O termo alemdaodo texto original “vogelfre’” significa também, no sentido figurado, “fora da lei” (NT).

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Nietzsche - A Gaia Ciéncia

A GOETHE

O imperecfvel
E apenas simbolo!
Deus, o insidioso,
Impostura de poeta...

A roda do universo
Rola de fim em fim:
O édio a chama miséria,
O louco diz que é um jogo.

O jogo do mundo, imperioso,


Mistura o ser a aparéncia:
— A eterna loucura
Nos misturaa elat...

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Colecdo Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

Naspartes nobres de secu corpo!


Vals morrer, pobre diabo!
Ai! se nao for de embriaguez.
— “Sim, senhor, vocé é poeta’”
A VocacAo DO POETA
Pic, o passaro, da de ombros.

Repousava, outrodia,
Versiculos obliquos, cheios de pressa,
Sentado a sombra de espessa folhagem,
Pequenas palavras loucas que se atropelam!
Quandoouvi golpes discretos,
Até que, linha apés linha,
Suavemente, como em compasso.
Tudo esteja suspenso na corrente.
Aborrecido, fiz uma careta,
E ha pessoas cruéis
Até que enfim, eu também, como um poeta,
Isso diverte? Poeta sem cora¢do?
Comecei a falar em tique-taque.
— "Sim, senhor, vocé é poeta!”
Pic, 0 passaro, da de ombros.
Enquanto eu versificava, upa!
Silaba por sflaba,
Zombas, passaro? Queres rir?
Subitamente desatei a rir, a rir,
Ja estou com a cabega desvairada,
Pelo menos durante um quarto de hora.
Meu coragao estaria ainda mais?
Tu poeta? Tu um poeta?
Cuidado, cuidado com minha ira!
Estaras assim mal da cabeca?
Mas0 poeta tece rimas,
— “Sim, senhor, vocé é poeta!”
Mesmoirado, breves e verdadeiras.
Pic, o passaro, da de ombros.
— “Sim, senhor, vocé é poeta!”
Diz “pic”, o passaro. que da de ombros.
Quem espero sob este arbusto?
Salteador, quem quero surpreender?
Umasentenga, uma imagem?
E logo fago a rima.
Tudo © querasteja, o quesaltita,
O poeta logo transforma em versos.
~ “Sim, senhor, vocé é poeta”
Pic, o passaro, da de ombros.

As rimas para mim sao comoflechas.


Comoo animal sobressalta, treme, pula,
Quando a flecha penetra

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Nietzsche - A Gaia Ciéncia
Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal

Taojovens, tio falsos, tio vagabundos,


Parecemser feitos para amar,
E para todos os belos passatempos?
No norte — hesito em confessa-lo —
No Sut Amei uma mulher, velha de chorar:
Ela se chamava “Verdade”...
Num ramotorcido, eis-me suspenso,
E balanco meu cansaco.
E de um pdssaro que sou hdspede,
Repouso num ninho de passaro.
Ondeestou entéo? Longe! Ai, muito longe!

O branco mar adormeceu,


Em sua superficie uma vela purpura.
Umarocha, umafigueira, a torre e o porto,
Idilios ao derredor, balidos de ovelhas,
Inocéncia do sul, acolhe-me!

Andar a passo — que existéncia!


Esse andar me torna alemaoe pesado.
Disse ao vento que melevasse,
O passaro meensinou a planar.
Para o sul, sobrevoei 0 mar.

Razao! Coisa entristecedora!


Isso nos aproxima demaisdo fim.
Aprendi voando, 0 que meiludia.
Sinto a seiva que sobe e a coragem
Para uma vida nova e um jogo novo...

Pensar sozinho é a sabedoria,


Cantar sozinhoseria estipido!
Eis um canto em sua honra,
Sentem-se em torno de mim,
Em siléncio, passaros maldosos!

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Colecéo Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche- A Gaia Ciéncia

Bendito seja Deus na.terra,


Que amaas jovens bonitas,
E perdoa de bom grado
Essa espécie de dor do coragao.
A Preposa BeEppa’”’ Enquanto meu pequeno corpofor belo,
Vale a penaser piedosa:
Enquanto meu pequenocorpoforbelo, Quando eu for uma velha senhora
Vale a pena ser piedosa. O diabo vira me procurar!
Sabe-se que Deus gosta das mulheres jovens,
E sobretudo daquelas que sao bonitas.
Ele perdoa, tenho certeza,
Ao pequeno monte
De amar, como mais de um pequeno monge,
A estar perto de mim.

Nao é um padre daIgreja!


Nao, é jovem e muitas vezes vermelho,
Apesarde sua cinzenta embriaguez,
Cheio de desejo e de citime.
Nao gosto dos velhos,
Ele nao gosta das pessoas velhas;
Grande é a sabedoria de Deus,
Comoele nos arranjou bem!

A Igreja sabe viver,


Ela sonda os corag6es e€ 0srostos.
Sempre me havera de perdoar —
E quem entéo nao me perdoa?
Murmura-se na ponta dos labios,
Dobra-se os joelhos e vai-se embora;
Com um pequeno pecado novo,
Apaga-se depressa 0 antigo.

(1) Beppa é hipocaristica ou redugdo carinhosa e familiar do nome préprioitaliano Giuseppa (Josefa) (NT).

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DECLARACAO DE AMOR
O Barco MISTERIOSO
(em que o poeta se fez despedir)

Na noite passada, quando tudo dormia,


Oh! maravilha! Voa ainda?
E que, nas ruelas, o vento
Sobe e suas asas néo se mexem?
Suspirava sem estar seguro desi,
Quem é entao que o leva e 0 eleva?
Nada podia me acalmar, nem o travesseiro,
Onde esta agora seu fim, seu v6o, sua rédea?
Nem a papoula, nem o que faz também
Dormir — uma boa consciéncia.
Comoa estrela e a eternidade
Vive nas alturas de que a vida foge,
Enfim, renunciei ao sono,
Compassivo, mesmo para com a inveja;
Corri para a praia.
Subiu bem alto quem o vé planar!
O clarao da Lua era suave - e, na areia quente,
Oh! albatroz, passaro!
Encontrei o homem com seu barco.
Um desejo eterno me impele paraas alturas.
Os dois cochilavam, comopastor e ovelha:
Pensei em ti: entéo uma ldgrima
— Sonolento, o barco deixou a margem.
Apos outra, escorreu — sim, eu te amo!

Umahora passou, talvez duas.,


Ou talvez mesmo um ano?
De repente meus sentidos foram submersos
Numaeterna inconsciéncia
E um abismoseabriu,
Sem fundo: — tinha terminado!

— Chega a manha, em negras profundezas


Um barco repousa e repousa —
Que aconteceu? Um grito se eleva,
Cem gritos: que ha? Sangue? —
Nada aconteceu! Tinhamos dormido,
Todos — Ah! Tao bem! Tao bem!

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A lua j4 se deitou no mar,


Cansadas estio todas asestrelas,
O dia chega cinzento,
Gostaria de morrer.
CANCAO DE UM CARNEIRO DE TEOCRITO“”

Estou deitado, doente,


Os percevejos me devoram,
Perturbam minhaluz!
Eu os ougo dangar...

Ela queria, a esta hora,


Deslizar até mim,
Espero como um cao
E nada chega.

Esse sinal da cruz que prometia?


Comoela haveria de mentir?
~— Ou corre atrés de cada um,
Como minhas cabras?

De onde Ihe vem o vestido de seda?


Pois bem! Minha altiva!
Ha ainda mais de um bode
Nesse bosque?

— Como a espera amorosa


Me deixa perturbado e venenoso!
Assim cresce na noite imida
O venenoso cogumelo do jardim.

O amor mecorr6i
Comoossete males.
— Nao tenho mais apetite para nada,
Adeus, minhas cebolas! (1) Teécrito (310-250 a.C.). poeta grego nascido em Siracusa (Sicilia), considerado o pai da poesia pastoril (NT).

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Colecdo Grandes Obras do Pensamento Universal
Nietzsche - A Gaia Ciéncia

““EsSSAS ALMAS INCERTAS”’ Um Louco EM DESESPERO

Essas almas incertas,


Ai de mim! O queescrevi na mesae naparede,
Detesto-as até a morte.
Com meu coracio de louco, com minha maode louco,
Toda a sua honra é um suplicio,
Devia decorar para mim mesa e parede?...
Seus elogios cobrem de vergonha
Masvocés dizem: “As mdosde louco rabiscam,
Porque, no fim de sua area,
E preciso limpar a mesa e a parede
_Nao atravesso o tempo,
Até que o ultimo traco tenha desaparecido!”
O veneno da inveja, doce e desesperado,
Em seu olhar me satida.
Permitam! Vou dar-lhes uma pequena mado —
Aprendia utilizar a esponja e a vassoura,
Que meinjuriem cordialmente,
Comocritico e como homem detrabalho.
E me virem ascostas!
Esses olhos suplicantes e extraviados
Mas quandootrabalho estiverfindo.
Sem cessar se enganarao a meurespeito.
Gostarei muito de vé-los, supersabios que vocés sao,
Mesa e parede de sua sabedoria, sujas...

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Colegdo Grandes Obras do Pensamento Universal Nietzsche - A Gaia Ciéncia

A porta se abre de subito!


Chove até em minha cama!
O vento apaga a lamparina — miséria!
— Aquele que agora nao tiver cem rimas,
Rimus REMEDIUM™”
Aposto, aposto,
ou. como os poetas doentes se consolam
Que vai deixar sua pele!

Feiticeira do tempo
De tua boca baba escorre
Lentamente uma hora apés outra.
Em vao todo meu desgosto exclama:
“Maldito, maldito seja o abismo
Da eternidade'”

O mundo -— é de bronze:
Um touro furioso — é surdo aos gritos.
A dor escreve com uma adaga voadora
Em minhaperna:
“O mundo ndo tem coracdo
E seria loucura dele querer um'”

Derramatodas as papoulas,
Derramaa febre! O veneno em meu cérebro!
Depois de muito tempo experimentas minha mao e minhafronte.
Que pedes? O qué? “A que preco?”
— Ah! Maldita seja a jovem
E sua zombaria!

Nao! Volta!
Faz frio 14 fora, ougo a chuva —
Eu deveria ser mais terno contigo?
— Toma! E ouro: como a moedabrilha!
Te chamar“felicidade”’?
Te abengoar, febre?
(1) Expressaolatina que significa “a rima como remédio™ (NT).

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Colecao Grandes Obras do Pensamento Universal
Nietzsche
i - A Gaia Ciéncia

E ainda muito cedo para as harmonias, os ornamentos de ouro


Ainda naocintilam em seu esplendorde rosa,
Resta ainda muito dia,
“MINHA FELICIDADE!’ Muito para confabular, deslizar, cochichar sozinha
— Minhafelicidade! Minhafelicidade!
Revejo os pombos de Sao Marcos":
A pracaesta silenciosa, a manha nela repousa.
Nosuave frescor, indolente, envio meus cantos,
Como um enxamede pombospara o azul
E os chamo de novo dasalturas,
Mais uma rima que prendo a plumagem
— Minha felicidade! Minhafelicidade!

Calma abébada do céu, azul claro, teto de seda,


Planas protetora sobre 0 edificio multicor
Que amo — que digo? Que temo, que invejo...
Comoseria feliz bebendo sua alma!
Alguma vez a devolveria?
N§o, nao falemos mais, presa maravilha do olhar!
— Minhafelicidade! Minhafelicidade!

Torre severa, com que vigor de leoa


Te ergues aqui, vitoriosa, sem custo!
Enches a praca com teus sons profundos —
Em francés, tu serias seu “accent aigu”!
Se comotu eu ficasse aqui
Saberia por que coacgao, suave comoseda...
— Minhafelicidade! Minhafelicidade!

Vai embora, vai embora, musica. Deixa as sombras engrossar


E crescer até a noite escura e suave.

(1) Alusdo aos milhares de pombos que vivem na praga Sdo Marcos de Veneza (NT).
(2) Expressaofrancesa que significa “acento agudo. som agudo” (NT).

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Nietzsche A Gaia Ciéncia
Colegdo Grandes Obras do Pensamento Universal

Para OS Mares Novos Sits Maria")

La embaixo — queroir e confio Estava sentadoali a espera — 4 espera de nada,


Em mim e em minhaarte. Para além do bem e do mal, usufruindoora
O marse oferece, vasto, e se estende Da luz, ora da sombra, abandonado

E meu barco genovés navega para 0 azul. A esse jogo, ao lago, ao meio-dia, ao tempo sem fim.
E depois, de stibito, amiga, um se tornou dois —
Tudo cintila para mim, num esplendor novo, E vi passar Zaratustra perto de mim...
O meio-dia cochila no espacgo e no tempo: —
S6 teu olhar — monstruoso
Mefita, 6 infinito!

(1) Localidade suiga onde Nigtzsche permanecia longas temporadas (NT).

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Nietzsche - A Gaia Ciéncia
Colegao Grandes Obras do Pensamento Universal

Eu te vi saltar da carruagem
Para acelerar tua corrida,
Eu te vi correr como uma flecha e
Tombar diretamente novale,
PARA O MISTRAL Como um raio de ouro trespassa
Cancdo para danegar Asrosas da primeira aurora.

Vento mistral, cagador de nuvens, Danga agora sobre mil dorsos,


Matadordetristeza, varredor do céu, No dorso das ondas, das ondas pértidas —
Tu que muges, como te amo! Satide a quem cria dangas novas!
Nao somos nos dois as primicias Dancemosde mil maneiras,
De uma mesmaorigem, com a mesmasorte, Que nossa arte seja denominada- livre!
Eternamente predestinados? Que seja chamada gaia — nossa ciéncia!

La, nos deslizantes caminhosde falésia, De tudo 0 que floresce tomemos


Acorro dangandoa teu encontro, Uma flor para nossa gléria,
Dangando, enquanto assobias e cantas; E duas folhas para uma coroa!
Tu que vens sem navio e sem remos, Dancemos comotrovadores,
Como o irméo mais livre da liberdade, Entre os santos e as putas,
E te lancas nos mares selvagens. Dancemos entre Deus e 0 mundo!

Apenasacordado, ouvi teu apelo, Aquele que, com os ventos, nao sabe dangar,
Desci as falésias, Aquele que deve se envolver em mantos,
Até o muro amarelo do mar. Como um velho enfermo,
Satide! JA como as claras ondas Aquele que é hipocrita,
De umatorrente de diamante, descias Arrogante e virtuoso como um ganso,
Vitoriosamente da montanha. Que deixe nosso paraiso.

Nos ares nivelados do céu, Sacudamos a poeira dos caminhos,


Vi galoparos cavalos, No nariz de todos os doentes,
Vi a carruagem quete leva. Espantemos os rebentos dos doentes,
Vi até mesmo o gesto da mao Purifiquemos a costa inteira
Que, no dorso dos cavalos, Do halito dos peitos secos
Como o relampagobaixa seu chicote, E dos olhos sem coragem!

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Colegdo Grandes Obras do Pensamento Universal

Expulsemos quem perturba 0 céu,


Enegrece o mundo, atrai as nuvens!
Clarifiquemos o reino dos céus!
Mujamos... tu, o mais livre
Detodososespiritos livres, contigo
Minhafelicidade muge como a tempestade.

— E, para que essa lembranca


Dessa felicidade seja eterna, toma a heranga,
Tomaessa coroa contigo!
Atira-o para cima, atira-a mais longe,
Apodera-te da escada que leva ao céu,
E amarra-a — nas estrelas!

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31 — ALEM po BEM E DO Mat — Nietzsche
32 — A PRINCESA DE BaBILONIA — Voltaire
33 — A Oricem bas Espécies (TomoI) — Darwin
34 — A Oricem pas Espéctes (TomoI) — Darwin
35 — A OrIGEM bas Espécies (Tomo TI) — Darwin
36 — SoLiLoguios — Santo Agostinho
CoLecAo GRANDES OBRAS DO PENSAMENTO UNIVERSAL 37 — Livro po AMIGO E bo AmMApo— Lilio
38 — FABULAS — Fedro
} — Assim FaLava ZARATUSTRA — Nietzsche 39 — A suJEIGAO DAS Mutueres — Stuart Mill
2 — A ORIGEMDA FAMILIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO — Engels 40 — O Soprinuo DE RAMEau — Diderot
3 — ELoaio ba Loucura — Erasmo de Rotterdam 41 — O Diaso Coxo — Guevara
4—A Repuswica (parte 1) ~ Platéo 42 — Humano, Demasiapo Humano— Nietzsche
5 —A Repusuica (PARTE IL) — Platdo 43 —A Vina FELiz — Séneca
6 — As Parxoes DA ALMA — Descartes 44 — Ensaio Sosre A LiperDade — Stuart Mill
7 —A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS — Rousseau 45 —A Gaia Ciencia — Nietzsche
8 —A ARTE ba GurrrA — Maquiavel
9 — Utopia — Thomas More
10 — Discurso bo METODO — Descartes
11 — Monarguia — Dante Alighieri
12 —O Principe — Magiiavel
13 —O Conrrato Social. — Rottsseau
14 - Banourte — Dante Alighieri
15 —A Revictio xos Limites bA Simpeies RazAo — Kant
16—A Potitica — Aristoteles
17 — CAnpipo ot 6 OTIMISMO — O INGENUO — Voltaire
18 — REORGANIZAR A SOCIEDADE — Conite
19—A Perrerta McuLHeR Casapa — Luis de Leon
20 — A GENEALOGIA DA Morat — Nietzsche
21 — ReEFLEXOES SOBRE A VAIDADE DOS Homens — Mathias Altres Fururos LANCAMENTOS:
22 — Dr Pueris — A Crvitipabe Puern. — Erasmo de Rotterdam - Dictonario Fitosorico — Voltaire
23 — Caracteres — La Bruyére - FILosoria pA Misérta — Proudhon
24 — TraTAbo Sopre A TOLERANCIA — Voltaire - A Miseria Da Fitosoria — K. Marx
25 — INvesTIGACAO SoprE O ENTENDIMENTO HuUMaANO — David Hume
~ A Critica DA RazAo Pura — L. Kant
26 — A Dicnipape bo Home— Pico della Mirandola - A CipabeE po So. — Campanella
27 — Os SonHos — Quevedo - Dos De.itos & pas Penas — Beccaria
28 — CreptiscuLo pos Inotos — Nietzsche - Cartas Persas — Montesquieu
29 — Zapic ov 6 Destino — Voltaire - OATELE 0 SABl0 — Voltaire
30 — Discurso Soprt 0 Espirito Posrrivo — Conite

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