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Paulo Ferreira da Cunha

TEORIA GERAL DO DIREITO


Uma Síntese Crítica

A Causa das Regras

2018
Livro II
VETORES FUNDAMENTAIS
PARA UMA TEORIA GERAL DO DIREITO

Sumário:
Parte I
Filosofia:
De uma noção descritiva de Direito às tópicas
axiológica e
sociológica.
A Justiça e o Direito. O exemplo de Antígona.
Correntes do pensamento jurídico
Parte II
Semiótica
Signos jurídicos
Parte III
Dinâmica:
Dimensões e Funções,
Valores, Princípios e Fins do Direito
Parte IV
Linguística:
Aceções do termo “Direito”

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Parte V
Metodologia:
Fontes de Direito

Parte VI
Epistemologia especial:
Ramos de Direito e Disciplinas afins.
As Ciências Jurídicas Humanísticas
Parte VII
Geografia:
Pluralidade de Ordens Jurídicas
e Comparação de Direitos
Parte VIII
Sociologia:
O Direito e a sua Circunstância:
História, Ordens Sociais Normativas,
Política, Estado

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Parte I
Filosofia:
De uma noção descritiva de Direito às tópicas
axiológica e
sociológica . A Justiça e o Direito36. O exemplo de
35

Antígona37.
Correntes do pensamento jurídico38.

Sumário:
Capítulo I
Em demanda do entendimento do Direito
Capítulo II
Direito, Justiça, Direito Natural
Capítulo III
Correntes do Pensamento Jurídico

35 Um exercício tópico sobre questões fundamentais é o cânone de


vozes sobre a obra Desvendar o Direito, cit., publicado na sua parte final
(p. 207 et sq..), com o contributo de grandes juristas e não juristas... São
vinte e três diálogos que muito acrescentam à doutrina exposta.
36 V. Desvendar o Direito, p. 119 et sq.., e o nosso livro Filosofia do
Direito. Fundamentos, Metodologia e Teoria Geral do Direito, 3.ª edição,
revista atualizada e aprofundada, Coimbra, Almedina, 2018, passim.
37 V. Desvendar o Direito, p. 185 et sq..
38 V. Filosofia do Direito. Fundamentos, Metodologia e Teoria Geral do
Direito, p. 381 et sq..
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Capítulo I
Em demanda do entendimento do Direito

1 .Ver o Direito por uma Tópica


Pode haver a tentação de definir o objeto “Direito”.
Mas é tentação de que se deve fugir. Compreende-se
uma matéria pelo convívio com ela, pela sua
frequentação, teórica e prática (se a dicotomia faz ainda
sentido), não pela memorização exterior e acrítica de
descrições sintéticas mais ou menos abstratas (e
sempre interessadas e ideologizadas lato sensu).
É muito verdade que, como disse Nietzsche (a
contrario), o que tem História não pode ter definição
(definierbar ist nur das, was keine Geschichte hat). Só o
ahistórico ou ucrónico é definível. O histórico não tem
definição ou não deveria tê-la. Pelo menos de forma
positivista, taxativa, exclusora. Porque nos entes
históricos, sujeitos à especial dimensão da historicidade,
historicamente se vão desenhando realidades e
teorizações que pulverizam, tornam caleidoscópica, ao
menos, a realidade que se analisa, pelo seu devir
múltiplo. O Direito é uma dessas realidades
historicamente situadas, mas não acantonada numa
época, antes atravessando séculos. Pior e mais
complexa sina a sua...
Este livro não é nem de História do Direito, para
nele se poder contar como o Direito foi sendo, nem de

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Filosofia do Direito, propriamente dita, para nele se


explicar (desdobrar as dobras escondidas do seu ser)
como deveria ser, em cotejo com o que foi sendo (sollen
/ sein).
As definições do Direito (que já criticámos
desenvolvidamente39) são armadilhas positivistas,
nomeadamente positivistas legalistas. Elas
encaminham-nos ainda para o pensamento dogmático,
sistémico-construtivista e logicista e mais ou menos
dizem que ele seria “um conjunto de normas ou regras
que se impõem pelo Estado coativamente para a ordem,
ou a paz sociais”, algo como isto. Cada elemento desta
definição tem muito que se lhe diga40 .
Também a perspetiva de descrição acaba por nos
remeter para uma definição mais longa, e pouco mais. É
naturalmente melhor a descrição do que a seca
definição, mas não parece ainda ser o ideal. Sobretudo
se quisermos ser concisos. Faremos uma descrição do
Direito adiante, mas não com intuitos de o determinar,
antes de lhe fornecer uma panorâmica. São motivações
diferentes.
Talvez um bom uso da tópica seja a melhor forma
de encontrar o Direito de forma teórica (porque a prática
é mais segura, embora nem sempre esclarecida): há
uma tópica ontológica do Direito presente na descrição
de Ulpiano de Justiça, que é dita uma constante e
perpétua vontade de atribuir a cada um o que é seu,
sendo o Direito o objeto da Justiça, o meio sublunar por
39 Desde logo nos nossos livros Princípios de Direito. Introdução à
Filosofia e Metodologia Jurídicas, Porto, Rés, 1993 e O Ponto de
Arquimedes. Natureza Humana, Direito Natural, Direitos Humanos,
Coimbra, Almedina, 2001.
40 Como desenvolvemos em O Ponto de Arquimedes, p. 149 et sq..
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que se caminha para atingir essa inatingível estrela do


firmamento axiológico.
Assim, o Direito tem como elementos tópicos os
constantes desta bela frase do Digesto41. A tópica
sociológica é o conjunto de elemento indiciários do
Direito, independentemente de considerações
valorativas: peças processuais, palácios de justiça,
atores ou agentes jurídicos, crimes, penas, escrituras,
órgãos de soberania, etc. São o fumo de que há o fogo
do Direito. Independentemente de ser Direito justo (vero
Direito) ou não.
Pessoalmente, cremos que uma perspetiva crítica
e eclética é a que melhor serve um entendimento mais
completo e uma praxis jurídica mais informada. Cremos,
assim, que é preciso saber muito bem as definições
instrumentais deste livro (e outras), porque elas são
regras de um jogo complexo, e por vezes ardiloso, e até
por vezes alienante42. O Direito pode ser um mavioso
canto de sereia, um discurso legitimador, como entre
nós pioneiramente referiu João Baptista Machado43.
Ver o Direito criticamente é desvendá-lo (v. o
nosso manual Desvendar o Direito), é encará-lo sem
venda nem nos olhos da Justiça, nem sobretudo nos
nossos olhos. É um exercício difícil, e sobretudo custa
caro, normalmente. Ver claramente visto como as coisas
são (não como parecem, aparecem, ou no-las querem
fazer parecer) não é muitas vezes pacificador. Mas o
jurista, podendo muitas vezes ser um esteta, não pode
ser morno. Um jurista, em geral, é um cavaleiro andante
41 V. logo o início de Princípios de Direito, p. 45 et sq..
42 V. Desvendar o Direito, p. 63 et sq..
43 BAPTISTA MACHADO, João — Introdução ao Direito e ao discurso
legitimador, reimp., Coimbra, Almedina, 1985.
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(ou uma amazona) da Justiça. Se não, torna-se num


"burocrata da coação", o que é a sua mais triste sina...
Ver o Direito ecleticamente significa que nessa
demanda do que é o Direito se não deve cristalizar em
cartilhas de saber-feito, algumas muito bem elaboradas
e muito plausíveis. Toda a cartilha tende para a
cristalização, e para uma qualquer forma de dominação
(ainda que só mental). O ecletismo pode, é certo, ser
dispersão e tibieza, pode ser bric-à-brac mental, pode
ser irenismo dúctil e adaptável, sem sentido e sem
força. Mas se bem entendido e bem calibrado é também
um poderoso instrumento antidogmático, quando não
seja apenas ecletismo pelo ecletismo, mas inserido no
contexto de uma perspetiva crítica e com algum outro
sentido mais.
Outros sentidos que pessoalmente assumimos são
de índole valorativa e de índole metodológica e
interdisciplinar, na verdade já mais longe: Pós-
disciplinar. (Eles podem ver-se noutros livros nossos,
sobretudo os mais recentes.) Mas tentando um resumo,
diríamos duas linhas, começando pela defesa da Justiça
no Direito.

2 .Justiça no Direito. O Exemplo de Antígona


Valorativamente, somos dos que ainda acreditam
na Justiça. Sem vendas (como aliás parece que
realmente eram as estátuas clássicas). Sem ilusões.
Sem mistificações. Antes uma Justiça multidimensional,
não imobilizada por dogmas e formalismos, mas
agilizada na prática, precisamente com sentido de
Justiça. Uma Justiça específica, rigorosamente jurídica,
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

sim. Mas que não esquece os Direitos Humanos, que


são a linguagem moderna do Direito Natural, como diria
um Francisco Puy. Que não esquece, portanto, também
a dimensão social. Está hoje claramente evidenciado
que a Justiça social não pode ser proscrita do Direito,
sob pena de ele ser apenas o jogo de ricos contra
pobres de que falava o grande filósofo Agostinho da
Silva com duas belas metáforas: "sebes altas" a
defender a propriedade e divisão de “choros e risos”.
Não há nenhum direito natural nem divino de terem uns
de chorar e outros de rir, de serem uns donos eternos
das coisas, e outros sem nada.
Acreditamos que a Justiça não é uma palavra, nem
um flatu vocis anódino, ou uma manifestação de
sentimentalismo, como alguns autores de pensamento
frio e racionalista. Antígona44, que não cumpre os
decretos do rei (e tio) Creonte, não é apenas levada por
um sentimento de amor de irmã, mas há nesse gesto
uma moralidade e mais: uma juridicidade. Nesse
sentido, não há nada de emotivo apenas. Stamatios
Tzitzis estudou bem a questão.
Somos obviamente defensor do rigor e da razão
em Direito. Não apenas, mas também.
A Justiça é, como dizia uma glosa medieval, mãe
do Direito. E o filho perdeu a mãe — dizemos nós — e
anda há séculos à sua procura. A demanda da Justiça é
também uma constante e perpétua vontade (constans et
perpetua voluntas). De quê? De fazer o que é específico
ao Direito: de atribuir a cada um o que é seu (suum
cuique tribuendi). Cada uma destas palavras clássicas
44 Para mais desenvolvimentos, Desvendar o Direito, p. 185 et sq. e o
nosso livro O Século de Antígona, Coimbra, Almedina, 2003.
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que os Romanos nos legaram encerra um mundo de


significados importantíssimos para pensar o Direito.
No tempo em que o Direito nasceu, em Roma,
prosperou o direito objetivo que, no limite, permitia usar,
fruir e abusar das coisas possuídas. Era a plena in re
potestas. Nos tempos medievais tardios, anunciando a
modernidade e o capitalismo, o direito subjetivo — que
ainda hoje usamos em muitos casos — permitiu uma
agilização obrigacional, mas não consegue hoje
compreender as novidades que aí estão: a começar
com os próprios Direitos Humanos, e, por exemplo, os
Direitos Fundamentais Sociais, que tantos engulhos
causam a alguns45... Mas que são uma manifestação
óbvia e irrecusável do Estado Constitucional hodierno.
Não pode haver liberdade sem pão, como também
não pode haver pão sem liberdade. Essas são lições
importantes dos séculos que nos precederam. Hoje
anuncia-se um novo Direito mais flexível, de rosto mais
humano, que está apenas a começar, e que tem
dimensões de fraternidade, que é condição essencial da
própria liberdade e igualdade. Um Direito Fraterno
Humanista, ou como se lhe venha a chamar, é um
grande e galvanizador objetivo para as novas gerações
de juristas, que já não demandam o curso de Direito
porque, como vimos já, querem enriquecer sem saber
matemática.
Esta mensagem é pouco usual, e por isso nos
permitimos repeti-la algunas vezes, pela sua
importância.

45 Cf. o nosso livro Direitos Fundamentais. Fundamentos e Direitos


Sociais, Lisboa, Quid Juris, 2014.
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3 .Para uma Panorâmica descritiva do Direito


Um dos trechos que melhor evidencia este tipo de
procedimento será certamente este, de Carlos Santiago
Niño: "(...) Direito, como o ar, está em toda a parte. Por
exemplo, pode ser que hoje V. se tenha contido de
exercitar a sua agradável voz no duche, recordando que
vizinhos com pouca sensibilidade artística poderiam
fazer valer certas normas contra os ruídos modestos;
seguramente V. ter-se-á vestido para sair de casa,
porque, entre outras razões, sabe bem que há regras
jurídicas que desaconselham uma excessiva ligeireza
no vestir; provavelmente V. terá celebrado um contrato
tácito de transporte ao tomar um transporte público ou
se tiver conduzido o seu automóvel, terá observado. ou
fingido observar algumas regulamentações e terá feito
uso da faculdade jurídica de transitar pela via pública; é
quase certo que V. deve ter celebrado hoje vários
contratos verbais de compra e venda (ao adquirir, por
exemplo, o jornal ou cigarros) e de locação de obra (ao
levar, por exemplo, os seus sapatos a consertar);
mesmo que não tenha um físico imponente, V. tem
alguma confiança em que provavelmente não será
golpeado, insultado, vexado ou roubado graças à
'couraça' normativa que o direito lhe proporciona; a
organização onde V. trabalha ou estuda (é de esperar
que V. não seja membro de uma associação ilícita) está
seguramente estruturada segundo uma série de
disposições legais (...) Todos estes contactos com o
Direito ocorreram-lhe num dia normal; pense em quão
mais envolto pelo Direito estará quando participe de
algum sucesso transcendente, como casar-se ou ser
demandado judicialmente."38

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Sabida a complexidade desta problemática,


arrisquemos, agora, uma abordagem descritiva, não
delimitadora definidora, da realidade que nos propomos
estudar. Se a tópica axiológica e sociológica mais lhe
apreendem o ser, a descrição permite uma visita guiada
ao modo-de-ser.
Antes de mais, o Direito não é apenas uma
realidade social e normativa, mas uma disciplina de
conhecimento, e evoca ainda vários outros quid.
Dizer que o Direito é o conjunto de princípios (e
valores) e regras que orientam a vida em sociedade,
estruturando-a, distribuindo papéis, reconhecendo ou
atribuindo direitos, impondo deveres, evitando e
dirimindo conflitos, não de forma arbitrária, mas de
acordo com um ideal de Justiça, contribuindo assim
para a paz social, a ordem e a hierarquia do grupo e
assim dotando a existência de um sentido — pode ser
uma aproximação a tal tipo descritivo de abordagem.
Admitamo-la. Sabemos por demais (ou deveríamos
sabê-lo) como a definição limita, estrangula, confina,
deforma, e até pode corromper a essência de uma
realidade. Mesmo nesta perspetiva enumerativa,
descritiva, exemplificativa (não taxativa) sabemos o
risco da noção decorada e não digerida, e também da
unilateralidade na focalização.
Nos próximos parágrafos enunciamos alguns
aspetos dessa viagem pelo Direito.

SANTIAGO NINO, Carlos — Introducción al análisis del Derecho, cit..

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

4 .O Direito como Princípios e Normas


Começámos por observar, nesta nossa visita
preliminar, que o Direito é constituído por um conjunto
de princípios (que refletem valores46) e normas ou
regras, orientadores e normadores da vida em
sociedade.
O gregarismo social tem sido apontado com das
mais relevantes explicações da origem do Direito,
embora não seja a única. De todo o modo, a vida em
sociedade requer uma regulamentação que defina o que
a cada um cabe, que estabeleça padrões de
comportamento, criando expectativas, balizando assim
as aspirações, perspetivas e, enfim, a atividade dos
membros da comunidade.
Neste momento inicial de abordagem do jurídico
referimos quer princípios, quer regras. Se estas, em
geral, podem ser identificadas com “normas” (sendo por
isso um estultilóquio a expressão, não sabemos por que
razão tão frequentemente utilizada, “regras e normas”),
nenhuma se pode confundir com aqueles. Na verdade,
o que sucede é terem as regras ou normas por detrás
de si princípios mais vastos de acordo com os quais
devem ser interpretadas, aplicadas e integradas (no
caso de se verificarem lacunas, desde logo).

5 . O Direito como Ordem Social


Tais regras e princípios (tendo ficado claro que
46 V. Desvendar o Direito, p. 125 et sq..; v. o nosso livro Direito
Constitucional Geral, Nova Edição (2.ª), aumentada, revista e atualizada,
Lisboa, Quid Juris, 2013, p. 191 et sq.; Filosofia do Direito. Fundamentos,
Metodologia e Teoria Geral do Direito, 3.ª ed., cit., p. 781 et sq..
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estes são mais mediatos mas fundantes, e aquelas mais


imediatas mas menos fundamentais), têm como função
essa ordenação social aos mais diversos níveis: no
fundo, visam o enquadramento institucional (lato sensu).
Já Santi Romano, cansado de ouvir o Direito
concebido como regra ou comando, o procurara
formular teoricamente enquanto "realização de
convivência ordenada". Porém, falar-se em simples
ordenação social é algo deveras vago. E, nesses termos
inespecíficos, várias outras coisas que não as normas
jurídicas podem pretender aspirar a realizar uma tal
função ordenadora – a política, a economia, e tantas
outras. Por isso, será de ir um pouco mais além, e dizer
que uma tal ordenação se realiza mediante uma série
diferenciada de ações ordenadoras – com as de
estruturar, distribuir papeis, reconhecer direitos, impor
deveres, evitar e dirimir conflitos.

6 .Estatuto Jurídico do Político.


Importância da Constituição
Quando se sublinha que esses princípios e regras
orientadores da vida em sociedade o procuram
concretizar estruturando-a, está-se a pensar sobretudo
na criação de estruturas de poder — de que forma tal se
organiza, como se distribui o mesmo, por que critérios,
com que legitimidade ...
No fundo, pensa-se em regras de Direito Político
ou Constitucional — que consagram v.g. o modelo
democrático, que definem as atribuições e
competências dos tradicionais poderes executivo,
legislativo, judicial, etc. Mas não apenas se visa este
ramo de Direito. Está aqui igualmente em causa um

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outro direito estruturador geral que visa, com isso, o


interesse público — é o Direito Administrativo (o qual
começou por englobar ainda o Direito Público da
Economia, o Direito Fiscal, mesmo o Direito do
Urbanismo, do Ambiente, etc.). Neste caso, trata-se de
criar instituições e órgãos (no quadro da Constituição e
da lei) de índole administrativa, definindo os seus fins e
estabelecendo as suas relações recíprocas (e hierarquia
eventual), não apenas dispondo internamente sobre tais
entes do Estado, mas especialmente regulando a
externalização da sua atividade, em quanto toca aos
particulares. A regulação em causa, como se vê, é mais
patente no Direito Público, em que o Estado nos
aparece revestido do seu poder numa posição de
supremacia (imperium). Mas igualmente noutras áreas
jurídicas ressalta essa preocupação de normação geral.
De facto, tal é omnipresente preocupação do jurídico: no
Direito da Família impõem-se normas para a
estruturação desta, no Direito Comercial é a economia
privada simples e clássica que se visa, etc.
É claro que a estruturação da sociedade implica
(ou pressupõe) um conjunto de opções ideológicas, a
que subjazem elaborações conceituais interessadas e
simbólicas (mitificadas até): claramente se pôde vê-lo
ante a plurissignificação de termos como democracia,
Estado, sociedade, povo, separação de poderes, etc.
Por detrás desta estruturação, de que o Direito não
pode prescindir, reside um bom número de princípios
extrajurídicos, e o Direito (proprio sensu) só lhes reagirá
na medida da sua injustiça. O Direito afirma-se, assim,
plural: não há uma política justa. Pode haver várias.
Mas nem todas as políticas o serão necessariamente.

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Encontrando-nos, porém, nos nossos dias, num


estádio civilizacional de Estado Constitucional, como
enfatizou Peter Haeberle47, será contudo um retrocesso
civilizacional qualquer mutação (na verdade, seria
sempre uma rutura) constitucional que pusesse em
causa os elementos estruturantes do patamar a que se
chegou: Estado de Direito, democrático, social, de
cultura, ambiental, pluralista (inclusivo, não
discriminatório), etc..
O Direito Constitucional, que ocupa o topo da
pirâmide normativa, é o “estatuto jurídico do político”, e
assim um guardião fundamental do estado civilizacional
no que ao Direito respeita. Por isso há quem, com ideias
diferentes (e outro modelo de Estado, sociedade,
Pessoa...), o aponte como entidade a abater. Por isso
ele se protege a si mesmo com limites materiais de
revisão (que no Brasil se chamam, numa bela metáfora
que se espera resista às investidas contrárias,
“cláusulas pétreas”), e com Tribunais Constitucionais
nacionais e já tribunais com algumas funções
constitucionais regionais, estando em discussão o
projeto de um Tribunal Constitucional Internacional.

7 .Direito, Estatutos e Papéis


Os referidos princípios e regras distribuem papéis,
criam estatutos. Por exemplo, estatutos de mãe, pai,
filha ou filho, professor(a), aluno(a). Muitos outros se
lhes poderiam acrescentar: o de funcionário público, o
de entidade patronal, trabalhador, militar ou civil,
47 HAEBERLE, Peter — El Estado Constitucional, estudo introdutório de
Diego Valadés, trad. e índices de Héctor Fix-Fierro, México, Universidad
Nacional Autónoma de México, 2003.
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

comerciante ou não comerciante, etc. — todos eles


relevantíssimos em deveres e direitos para quem deles
é titular, e para o Direito, consequentemente, para o
qual (até por isso mesmo) daí decorrem muito
importantes consequências, tornando- se tais tipos ou
categorias essencial matéria de trabalho.
Podemos encontrar papéis sociais que se
subdividem sucessivamente em infindáveis categorias,
funções, etc. A categoria geral de trabalhador, ou de
trabalhador metalúrgico, ou metalo-mecânico, encontra
nos contratos coletivos de trabalho um sem número de
subclassificações, e, mesmo assim, de muito difícil uso
quando se visa integrar alguém com uma tarefa menos
usual no quadro de uma típica categoria de
profissionais. No entanto, pretendemos apenas chamar
a atenção para questões ainda simples, consciencializar
tão somente esse tipo de presença do Direito que se
traduz no reconhecimento e/ou atribuição de papéis a
cada um.
E é evidente que os mesmos se entrecruzam.
Pode-se ser ao mesmo tempo v.g. funcionário público e
profissional liberal, professor e aluno; pai e filho, etc.
Contudo, há estatutos que são legalmente tidos como
incompatíveis: desde logo, cônjuge e pai ou filho, por
exemplo; depois, ministro e deputado, nalguns países
(devido ao dogma da separação de poderes – mas
noutros será o contrário); ou ainda juiz e muitas outras
coisas, v.g. comerciante, ou político ativo (pelas
mesmas razões; para garantir a independência da
Magistratura).
Mas as incompatibilidades não são as mesmas
nem pelas mesmas razões em todos os países, o que
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nos permite saborosas reflexões comparatísticas e nos


leva a refletir sobre a ratio legis e as mudanças culturais
e de mentalidade.

8 .Direito, direitos e deveres


O Direito reconhece ou atribui direitos. Os Direitos
naturais, humanos e fundamentais são meramente
reconhecidos. Eles já são das Pessoas, em geral.
Concretamente, este ou aquele direito pode ser
atribuído, mas os grandes direitos já são de todos.
Ninguém depende do Estado para possuir os seus
direitos naturais, humanos, fundamentais. Se o Estado
os não reconhecer, na prática, garantindo-os e
impedindo a sua violação, é um Estado- fora-de-lei.
Os direitos podem ser de muitos géneros. Assim,
serão eles v.g. direitos reais ou das coisas (de
propriedade, servidões, de uso e habitação, etc.),
direitos obrigacionais (de ou a prestações – por
exemplo, o direito de nos ser entregue, no dia
convencionado e pelo preço estabelecido, o automóvel
encomendado, tal como prescreve o contrato; ou a que
nos venham pintar a casa, em idênticas condições; ou a
que diante de nós se desenrolem os acordes de uma
sinfonia, depois de pago o bilhete de entrada no
auditório de concertos, etc.), mas também direitos de
carácter pessoal, v.g. o direito à vida (art .º 24.º CRP), à
honra, ao bom nome, etc., chamados direitos de
personalidade (arts. 70.º et sq. C.C.), e ainda direitos de
outros tipos, como os que reciprocamente vinculam os
cônjuges — de respeito, fidelidade, vida em comum, etc.
–, ou os que, como o poder paternal, são poderes-
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

deveres, nos quais é incindível do direito a obrigação,


funcionalizando o poder em causa.
A estes direitos correspondem necessariamente
deveres. Deveres de ação (facere) ou de omissão
(omittere ou non facere).
Assim, aos direitos reais, que são sempre direitos
sobre bens (desde o célebre e já mencionado jus
utendi, fruendi et abutendi — direito de "usar, fruir e
abusar" romano, hoje muito questionável na última
modalidade da tríade: não se pode realmente abusar de
um direito, existindo até o instituto do “abuso do
direito”), equivale, no lado passivo, no lado da obrigação
correlativa, um dever de respeito, de abstenção de
quaisquer atos que possam perturbar o direito real
sobre o bem — a também já referida obrigação passiva
universal.
Ao direito obrigacional (direito v.g. à entrega de
certo bem, cuja titularidade em geral já foi adquirida por
mero efeito do contrato — art.º 408.° C.C.) corresponde
o dever de prestação, mas, nos casos dos contratos
sinalagmáticos, o devedor é também credor de outra
prestação: na nossa aquisição de um café, somos
credores desse negro líquido despertador, e devedores
do preço; o bar, credor do metal sonante das nossas
moedas (ou da operação respetiva por cartão de débito
ou crédito) e devedor do próprio café.
Aos direitos de personalidade corresponde um
dever de respeito por parte de todos face a cada um.
Os direitos conjugais são direitos e deveres, já que
aquilo que cada cônjuge pode exigir do outro será o
equivalente ao que tem de observar Assim, cada
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cônjuge é titular ativo e passivo de direitos ao respeito,


fidelidade, etc..
Já quanto ao poder paternal, encontramos ainda
uma estrutura diversa do comum, uma vez que, em
geral, o direito pode ou não ser exercido (fica na
disponibilidade do seu titular), e entendendo-se até que
o seu não exercício (o não uso das faculdades que ele
confere) é já uma forma de o exercer (pela negativa), o
que não sucede aqui. No poder paternal, o seu titular
ativo tem de exercer o seu poder, e no interesse dos
filhos, não de si próprio — o que explica tal
obrigatoriedade.
Um outro grupo de direitos (subjetivos) a que ainda
não fizemos referência, em vez de serem normais
poderes de exigir ou pretender de outrem um
comportamento positivo ou negativo (ação ou omissão),
constituindo a contraparte num dever jurídico (violável),
vão por um ato livre da vontade (só de per si ou com o
auxílio de um ato de uma autoridade pública) do seu
titular produzir inelutáveis efeitos na esfera jurídica do
sujeito passivo, vão constituí-lo na posição de sujeição,
de um dever inviolável. São os chamados direitos
potestativos, que assim se contrapõem (como caso
especial) àqueles, mais gerais, direitos subjetivos.
Quem tem direito a uma casa (propriedade), ou a
uma indemnização (crédito, obrigação) pode exigir;
quem é credor de uma dívida de jogo, pode pretender o
seu pagamento. Mas em ambos os casos os obrigados
cumprirão ou não. Os direitos potestativos são, pelo
contrário, como que direitos a direitos, e quem pretender
uma passagem para a rua por uma propriedade vizinha,
dando saída ao seu prédio encravado, ou quem se
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

encontrar nas condições requeridas para reclamar o


divórcio, não tem de contar com a têmpera ou a
disposição de ninguém. O seu direito é imediatamente
eficaz, e se, de bacamarte em riste, o vizinho o impedir
de passar, ou o cônjuge de propor uma ação em
tribunal, não violam eles o direito potestativo, mas
direitos subjetivos (de passar, de "pedir" em Tribunal)
constituídos já por via do direito potestativo.
Confessamos que esta construção mental sempre nos
pareceu complexa, e com justificação dificilmente
apreensível. Mas é realmente assim, e assim se tem de
aprender. Sem prejuízo de se dever investigar das
razões e implicações da singular teorização, que não
parece nada natural, como costumam ser as coisas do
Direito.
Além destes direitos de carácter essencialmente
privado (entre cidadãos, ou, de todo o modo, inter pares
ou como tal atuando), há ainda outros, que relacionam
os particulares com o Estado. São direitos dos
particulares face ao Estado, direitos subjetivos públicos.
Alguns deles, como dissemos, encontram-se na
fronteira com o moral e o político, como os direitos à
saúde, ao trabalho, ao ensino, à habitação, etc. São
inegáveis aspirações justas no plano moral e político,
mas não têm, em muitos casos (pelo menos ainda)
suficientes e convincentes meios de tutela. Porém, por
um lado um novo clima de amizade pelos direitos
sociais, e, por outro, o ativismo judicial, têm em certos
casos (por exemplo, no Brasil), tornado efetivos,
pontualmente, com base em litígios judiciais, muitos
destes direitos, em especial o Direito à Saúde. Afigura-
se-nos, todavia, que melhor é ter fisiologicamente um
Estado Social capaz de resolver os problemas sem
13
1
Paulo Ferreira da Cunha

recurso a tribunais, que a necessidade de litigar pela


concretização de direitos. Além de que sempre se pode
cair em exageros e em assimetrias. Ou seja, novas
injustiças.
Outros direitos, são plenamente garantidos, e sem
polémica. Tal é o caso, v.g., do direito de jurisdição, de
pôr em andamento a máquina judicial, e o daqueles
direitos fundamentais, em alguns aspetos confundíveis
com os direitos de personalidade: assim o direito à
liberdade, à segurança, à intimidade da vida privada, à
própria vida, etc. Contudo, muito da tutela destes
direitos é feito pela negativa: o meio de proteção é a
normal sanção ao violador, não a garantia efetiva da
sua concretização. Neste sentido, se um jornal é
censurado, se um orador é impedido de falar, havendo
provas e "vontade política" para o fazer, poder-se-á
punir a infração. Mas não se vai conceder a qualquer
um a propriedade de uma cadeia de media para que
possa fazer ouvir livremente a sua voz. A subtileza da
censura é enorme: pode restrições à liberdade de
expressão. Desde logo promovendo-se a autocensura.
A ideologia transversal do politicamente correto, que é
proteiforma e contraditória, inibe muita gente de dizer o
que pensa, e até de pensar “fora da caixa” dos opinion
makers…
Há, pois, direitos de índole pública, mas também
deveres. Desde logo, quando o haja, nos países em que
os há, os de cumprimento do serviço militar obrigatório.
Mais universalmente ainda, pense-se nos deveres de
declaração de rendimentos e pagamentos de impostos,
etc. São deveres dos cidadãos para com o Estado. São-
no de facto, embora haja objetores de consciência e os
impostos possam vir a ser gastos ao arrepio dos
13
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

desejos do senhor A ou B. Justas em si a obrigação de


contributo na defesa e nas finanças, essenciais a uma
comunidade, só no concreto se poderá avaliar do valor
jurídico de cada uma — consoante o modo e os fins a
que ambas se destinem.
9 .Ordem e Sentido do Mundo
Evitar ou dirimir conflitos: eis dois fins perseguidos
pela aludida ordenação da sociedade. Ao estruturar,
distribuir papéis, reconhecer direitos e deveres, o Direito
organiza, cria estabilidade, contribui para que cada um
saiba com que pode contar, sinta que pode planear a
sua vida com base em alguns dados seguros. Assim, o
Homem sabe que não caminha totalmente às escuras,
redobra a confiança no futuro, pois julga conhecer o que
lhe é permitido fazer, o que pode exigir, o que lhe é
garantido e reconhecido juridicamente. Aqui há uma boa
dose de sentido, para o mundo e para a existência
também.
A segurança que deriva do saber-se com o que se
pode contar propicia também a cada pessoa um
universo estruturado como um cosmos, com uma
ordem. A ordem "artificial" do jurídico torna-se, por
vezes, epifania da ordem natural, racional, divina ... É
certo que o Direito é cada vez menos estável e
estabilizador, e não raro cair nas suas malhas é cair na
diabólica confusão do dédalo. Mas, de uma maneira
geral, os conflitos evitam-se pela existência desta
regulação, e o saber-se que, quando os haja, uma
Justiça não falta, ainda que possa tardar, prenuncia
tudo estar bem, pois se presume que terminará bem,
além de constituir poderoso meio preventivo de mais
infrações, pelo receio da sanção. O grande mal é

13
3
Paulo Ferreira da Cunha

quando as pessoas, a começar pelos jovens, ficam com


a sensação de que a narrativa do mundo é absurda, e
não há recompensa para o bem, e, ao menos, correção
para o mal. Quando tudo é absurdo e aleatório, aí sim,
“tudo é permitido”. Pode dizer-se que essa é uma
tradução do que outros exprimiram como sendo a
“morte de Deus”: é a morte da ordem, do sentido...
As nossa democracias encontram-se em risco
(umas mais que outras, naturalmente) porque têm
falhado no seu dever de educar civicamente (e até tout
court – mas isso é outro problema) e na capacidade de
chamar o comum dos cidadãos para o amor a elas.
Deixando cada um entregue a si, e à Sorte, não podem
contar muito com o amor às Leis e às Repúblicas. E isso
pode vir a ser dramático para o Direito e a Justiça, e, no
limite, para a simples legalidade.

10 .A tutela jurídica. As sanções


Ganha particular importância, aqui, a tutela dos
direitos. Assim, quando um direito é violado, a ordem
jurídica põe à disposição do seu titular mecanismos de
tutela tendo em vista reestabelecer a ordem, e colocar o
titular do direito (tanto quanto possível) na situação em
que estaria (no statu quo ante) caso o seu direito tivesse
sido respeitado (restituição in natura ou por
equivalente).
Por exemplo, no já falado caso do relógio
danificado, o seu proprietário, Abel, poderia propor uma
ação de responsabilidade civil tendo por fim que o
lesante, Beltrão, o reintegrasse, dando-lhe um relógio
13
4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

igual ou, se tal não for possível (porque, por hipótese, já


se não fabriquem relógios daquele modelo), pagando-
lhe uma indemnização de montante igual ao valor do
relógio. Claro está que as situações se complicam
quando estamos perante violações que não só
provocam danos para um bem, mas também fazem
incorrer o lesado na perda de determinados lucros, os
quais se teriam obtido não fora a emergência do dito
dano (lucros cessantes). Ora, nestes casos, a
indemnização deve tomar em consideração tais lucros
que "se perderam" (além do puro dano emergente).
Procedimento semelhante se deverá observar nos
casos em que se não trata da lesão de bens
patrimoniais, mas antes pessoais (v.g. a honra, o bom
nome), os quais, no entanto, podem ter repercussões
patrimoniais (v.g. perda da clientela num
estabelecimento de que se é titular, etc.). O mesmo se
diga da lesão de um bem patrimonial criar danos
patrimoniais e não patrimoniais, ou até principalmente
deste último tipo. Neste âmbito, muitas complicações
decorrem, desde logo, da definição do que sejam danos
patrimoniais e não patrimoniais, e depois, do facto de se
pensar ser impossível indemnizar estes (fala-se
normalmente em "compensar", não de indemnizar por
equivalente, e muito menos de reconstituir a situação
inicial). Outros problemas derivam das dificuldades de
fixação da indemnização em compensação. Para além
de alguns autores considerarem ser imoral a
compensação de danos não patrimoniais – por exemplo,
a dor provocada pela morte de um filho, para eles,
jamais deveria poder conduzir a compensação material.
Qual o “preço” de uma vida (já nem se fala do seu
“valor”)?
13
5
Paulo Ferreira da Cunha

Na verdade, como se vê, esta função reconstitutiva


do Direito, pela qual ele pretende ir refazendo o tecido
social doente, põe difíceis, mas fascinantes problemas.
Todavia, pretendemos apenas pôr em relevo a
existência de mecanismos tutelares, enfatizar a
necessidade de se impor (na prevenção e no
"tratamento" dos conflitos) uma responsabilidade de
reparação ao lesante. E, do que dissemos, decorre sem
ambiguidades que em muitos casos se não trata apenas
de uma responsabilidade civil, mas igualmente criminal.
Quer dizer, entende-se que há determinadas violações
que, por assumirem certa gravidade, por denotarem um
especial desrespeito por um círculo mínimo de
sociabilidade harmónica, assumem não apenas o
carácter de lesão localizada de A a B, mas ainda ao
todo social, a toda a comunidade. Assim se passa com
o homicídio, o roubo, a injúria, a violação, entre muitos
outros. E também com o crime de dano.
No caso apresentado, que recordamos agora, o
agente, Beltrão, incorre igualmente em responsabilidade
criminal.
Tendo sido praticada uma lesão à comunidade,
qualquer membro desta que tenha presenciado a prática
da lesão (flagrante delito) a pode denunciar (ou, para a
evitar, nesse momento, recorrer à legítima defesa de
terceiro, usando mesmo de força, proporcionada, para
evitar a lesão). Há mesmo o dever de denúncia para as
entidades que têm como função a garantia desses
essenciais valores e bens da comunidade (Polícia,
Ministério Público). Poderá assim o indivíduo infrator vir
a ser punido criminalmente.
Temos então que aos direitos correspondem
13
6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

deveres de facere e de non facere, os quais têm de ser


cumpridos sob pena de se vir a aplicar uma sanção (e
eis novamente a característica da coercibilidade da
norma jurídica). A sanção ao nível civil, seria a
indemnização, a penal poderia ser uma multa, pena de
prisão, etc. (já há uns anos que se concebem e vão
aplicando penas alternativas e também de vai
exercendo mediação, inclusivamente mediação penal:
mas há que aprofundar essa vertente do Direito).
É claro que o agente violador poderia,
voluntariamente, vir repor a situação no status quo ante
ou no seu equivalente (v.g. entregando um relógio igual,
ou de boa vontade pagando uma indemnização). Neste
caso, não seria necessário ao Direito usar do seu poder
autoritário, da coação (o qual, se necessário, poderia
usar a força e a penhora de bens do infrator), pela
desnecessidade da utilização do mesmo. Sem embargo,
poderia continuar a haver sanção penal, mesmo em
casos de cumprimento espontâneo de sucedâneos da
civil.
Mudando um tudo-nada de assunto, situando-nos
num plano um tanto diverso (já não entre particulares,
mas pensando nas relações destes com o Estado),
verificamos que, por exemplo, dado o incumprimento de
diversas obrigações fiscais, entrarão em movimento
diversos mecanismos jurídicos que obrigarão à
efetivação do respetivo pagamento, além de imporem
correspetivas sanções. Assim, não se havendo disposto
o particular ao cumprimento rigoroso e temporão dos
impostos que lhe eram devidos, proceder-se-á a uma
execução fiscal coativa.
Por outro lado, a responsabilidade criminal de que
13
7
Paulo Ferreira da Cunha

falávamos supra, e que no caso em apreço poderia


aparecer – erroneamente é certo – como uma
sobrecarga, uma sanção puramente adicional, ganha
toda a sua autonomia noutros casos, em que a
comunidade é diretamente lesada, nos seus valores
fundamentais – por exemplo, em casos como os de
tráfego de droga, contrabando, ou ainda, nos crimes
contra a ordem e a tranquilidade públicas (art.º 295 et
sq. CP), etc. A comunidade, sentindo-se ferida nos
valores que tem por essenciais à sua própria existência
como tal (de acordo com o modelo escolhido), reage,
punindo os agentes de tais condutas lesivas em alto
grau daqueles valores, qualificando-as como crimes.

11 .Coercibilidade e Sanção
Se a ordem jurídica se limitasse a estabelecer
catálogos mais ou menos bem intencionados de direitos
e deveres (como são tantas declarações universais de
direitos, por exemplo), não reagindo contra as violações
a essa ordem, perderia a credibilidade; toda a
segurança que visara estabelecer se quedaria ineficaz –
no fundo, a única diferença que passaria a haver entre
tal ordem e a sua inexistência proviria (a sermos
otimistas, a crermos na juridicidade do comportamento
corrente do homem comum), de, na maior parte das
situações, se observar o respeito (costumeiro,
tradicional, ou “político”) por tais normas.
Mas há aqui um sem número de questões a
ponderar. A principal seria talvez a de saber em que
medida o respeito por muitas normas não deriva
precisamente da garantia geral da sua observância
13
8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

conferida pela coercibilidade da ordem jurídica. Além de


que normas legais (de edição estadual) não dotadas
daquela eficácia, se não fossem imperativos categóricos
plenos de eticidade, dificilmente passariam de
declarações de intenção, votos piedosos (ou não ...).
Quer dizer: dada a intrínseca necessidade do Homem
de se dotar de uma ordem justa, é provável que
algumas normas não viessem a ser muito violadas; mas
outras, cujo conteúdo de Justiça fosse mais duvidoso,
sê-lo-iam sem dúvida. Acresce — para encurtarmos
razões — o problema da primeira violação. Mesmo que
a norma fosse comummente aceite, havendo uma
quebra no seu cumprimento manter-se-ia a Justiça não
havendo punição do culpado? Bastaria, para a
reprovação, o desprezo social generalizado? A
sensibilidade social a estas questões vai mudando, e
não se pode dizer que sempre para melhor. Há hoje um
medo muito generalizado que gera o clamor por
violência e punição mesmo degradante (há – brade-se
aos céus – quem defenda abertamente a tortura) e até
penas capitais. Mas é evidente que a doutrina, a grande
doutrina, em geral apurou a sua sensibilidade. Vivemos
num mundo a duas velocidades: uns estão cada vez
mais angélicos, outros cada vez mais bestiais. Pascal
pensaria, certamente, que a Pessoa humana se
encontraria no meio: ni ange ni bête. Preferimos
contudo o que se eleva ao que decai.
Por estas reflexões ficamos a ver mais claramente
como a coercibilidade e a sanção se não encontram na
situação de simples instrumentos do jurídico, a ele
alheios. É essencial à Justiça a repreensão (não sempre
e necessariamente uma punição gravíssima, porque há
ponderação, moderação, clemência e ressocialização)
13
9
Paulo Ferreira da Cunha

de quem contra ela atente. E daqui (falando agora por


símbolos mais teológicos) decorre necessariamente a
conclusão de que no céu, povoado de anjos, arcanjos,
querubins e serafins, com santos e a Divindade, ainda
há Justiça, embora se não conheça a coerção. O que
nem sempre terá sucedido: a revolta de Lúcifer, foi
castigada (sanção) com a queda deste, e a sua
transformação em Satã. O Direito continua, em grande
medida, a ter como pano de fundo muitas narrativas e
categorias teológicas. Nem sempre disso as pessoas se
dão conta: dão-se até muito pouco conta dessas
influências. Mas note-se que a Separação dos Poderes,
por exemplo, deve ser santa, quase como a Santíssima
Trindade (mutatis mutandis).
Propositadamente escolhemos o exemplo de uma
narrativa sobre o paraíso celestial para que se
dissipassem quaisquer dúvidas sobre um qualquer
paraíso terreal. Mesmo no Éden havia Direito: a infração
de Eva e Adão mostrou-o. E da sanção todos sofremos.
As utopias igualmente têm Direito (mesmo quando o
negam explicitamente)48. Dizer-se que um dia o Direito
será desnecessário numa sociedade sem conflitos é,
hoje, um erro professado apenas por meia dúzia de
distraídos meta-utopistas. Igualmente, afirmar-se
concebível um Direito sem coercibilidade na ordem
interna, desprovido de sanção, é algo deveras
improvável. E a contraprova é a primeira violação. Mal
esta se verifica, que se há de fazer ao "torto", ao anti-
direito? Daqui se retirará logo que a orientação geral,
assim ferida, maculada, desapareceria como modelo,
48 Cf., desenvolvidamente, a nossa tese de doutoramento em Coimbra
Constituição, Direito e Utopia. Do Jurídico-Constitucional nas Utopias
Políticas, Coimbra, Faculdade de Direito de Coimbra, Studia Iuridica,
Coimbra Editora, 1996.
14
0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

pois outras hipóteses, com a falta, se passavam a


conceber. Aí, não só alguns se interrogariam sobre a
conduta correta, outros veriam interesse em, mesmo
incorretamente, trilharem a via da lesão jurídica, e o
comum das gentes, sempre prejudicadas, deixaria de
saber com o que contar. Desaparecida a segurança,
com ela se desvaneceria a Justiça, passível de ser
posta em causa sem que nada a procurasse repor, nem
punisse quem a pervertia. A incompletude da “Justiça”
(que é um absoluto em si, e, por definição, um absoluto
não pode ser relativo, ou incompleto) ficaria patenteada.
Apenas, pois, num paraíso mental (nem sequer o
judaico- cristão, como vimos) haveria uma
omnipresença da Justiça, sem qualquer violação. Se até
anjos foram prevaricadores, poderá pretender-se que
algum dia os homens deixam de o ser?
Como vimos, só numa sociedade de completa
observância do Direito a coercibilidade e a sanção
estariam a mais. Não se encarando a possibilidade de
emergência de tamanha utopia (metautopia até: utopia é
só mito da cidade ideal), haveremos de continuar a
considerar tais elementos como partes integrantes da
juridicidade.
A coercibilidade, sendo elemento do Direito,
jamais poderá, no entanto, ser considerada o seu
primeiro aspeto, a sua característica principal. Ela é uma
característica externa do Direito, i.e., um elemento da
sua imagem, da sua aparência, e da sua efetividade, do
seu ser-no-mundo. Ou, dito de outro modo: trata-se de
um dado que não pertence à finalidade, à essência ou
ao interior, ao dever-ser do Direito. Também, como é
óbvio, se não pode encarar a coercibilidade como o
14
1
Paulo Ferreira da Cunha

fator de legitimação ou o fundamento do jurídico.


Porque estes têm de se ir buscar à Justiça.

14
2
Capítulo II
Direito, Justiça, Direito Natural

1 .Direito e Justiça
Será da Justiça que falaremos — brevemente —
agora. É um tema naturalmente recorrente, de resto.
Terminámos precisamente a nossa descrição
fazendo depender da Justiça todas as funções
desempenhadas pelo Direito: orientação e estruturação
da vida social, reconhecimento e atribuição de direitos,
imposição de deveres, distribuição de papéis, etc. É ela
que confere uma ordem à ordem, que a dota de um
sentido (o do Justo) impedindo por um lado o caos, e
por outro a roleta, o arbítrio de uma qualquer ordenação
surrealista, ilógica, ou mesmo lógica, geométrica e
rigorosa mas desatendendo à natureza das coisas e à
natureza humana, racional, livre e ignorando ou
ofendendo a Justiça.
O Direito perderia toda a aceitação e credibilidade
(e pontualmente a perde, sabemo-lo, quando nisto não
atenta) se ordenasse, estabelecesse (criasse
segurança), de forma efetiva (com coercibilidade),
normas completamente alheias à razão, à liberdade e à
Justiça (que às duas primeiras pressupõe e a ambas
atende).
Uma ordem “jurídica” que estabelecesse hic et
nunc, constitucionalmente e até por maioria absoluta (ou
unanimidade) não só do legislativo mas de todos os

14
3
Paulo Ferreira da Cunha

órgãos do poder (sabe-se que as unanimidades e as


maiorias políticas se conseguem facilmente sob força de
pressão e da ameaça — que até nem precisam de ser
efetivas ou diretas), princípios como o da tortura como
meio idóneo de obtenção da prova, em geral, a
comunidade de crianças como forma comum da
organização da família, a pena de morte, a escravatura,
a mutilação, ou os trabalhos forçados como penalização
de certos crimes, e a criminalização severa e
estigmatizadora de condutas aceites hoje, seria, para
nós, injusta. E de gritante injustiça. E contudo, noutras
épocas e latitudes foi, e em certos casos ainda o será,
perfeitamente admitida. Aqui se nota como a Justiça
evolui e difere com os lugares. Mas não entremos num
relativismo absoluto. De forma alguma. Se há que haver
tolerância e convivência com formas admissíveis de
interpretar o Direito em culturas e civilizações diversas
da nossa, há, contudo, casos em que não devemos
capitular perante o mal, com a má consciência de
colonialismo ou imperialismo ou outra qualquer. Há
países e grupos que praticam ainda a escravatura, a
mutilação genital feminina, os casamentos precoces,
graves castigos corporais a crianças e trabalhadores,
um sem-número de horrores que a nossa civilização, ao
longo de séculos, conseguiu praticamente banir.
Não podem ser tolerados em território europeu e,
latamente, na civilização que a Europa criou também
pelo Mundo. E essa civilização, que já não é apenas
europeia, nem judaico-cristã, nem sequer apenas
Moderna, gerou aquilo a que podemos chamar Direito
democrático (e que afinal é o Direito propriamente dito,
visto com olhos atuais), o qual, como afirma Yadh Ben
Achour, não é ocidental nem oriental já, e respeita e
14
4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

promove a pluralidade, mas não cede à “geografia que


mata”, ao culturalismo tirânico, à divindade
escravizante49.
2 .O Direito como Ordem Justa
A História (e a lenda) contém algumas curiosas
cenas de arbítrio antijurídico, sobretudo de grandes
senhores face aos seus indefesos súbditos. A czarina
Ana lvanovna, pelo facto de o príncipe Michael
Alexievich Jolitsyn lhe não ter pedido autorização para
casar, condenou-o, mais tarde, a desposar uma sua
serva, muitíssimo feia, e para ambos mandou construir
um requintadíssimo palácio de gelo. É injusto e absurdo.
O cavalo de Calígula foi promovido a senador. É
absurdo, e é por isso injusto. Já que a Justiça
pressupõe a racionalidade. E igualmente a ordem. A
desordem estabelecida por forma "ordenada" não é
Justiça. Quando, na peça homónima de Camus,
Calígula estabelece que "todas as pessoas do Império
que disponham de alguma fortuna — pequena ou
grande, tanto faz — devem obrigatoriamente deserdar
os filhos e testar imediatamente a favor do Estado" está
a dispor injustamente, dado que a consciência jurídica
geral da época (e de sempre) vê na sucessão um
princípio jurídico fundamental do Direito. E mais ainda
os Romanos, para quem tal sucessão era por essência
livre — e daí o testamento (a possibilidade de se deixar
os bens, etc. a quem se escolhesse); pelo que a
decisão de Calígula (testamento obrigatório a favor do
Estado) é uma subversão dos próprios princípios
testamentários, é uma ficção jurídica. A decisão é
injusta, mas pode ser lógica, dado que Calígula quer
49 Cf. BEN ACHOUR, Yadh / FERREIRA DA CUNHA, Paulo – Pour une
Cour Constitutionnelle Internationale, cit., p. 22.
14
5
Paulo Ferreira da Cunha

herdar — há injustiça, mas há ordem.


Já quando, logo a seguir, Calígula prevê
mecanismos para acelerar a efetivação do seu decreto,
trata-se de uma ordem desordenada e dupla ou
triplamente antijurídica: "...Vamos fazer morrer essas
pessoas na ordem de uma lista estabelecida
arbitrariamente, à medida das nossas necessidades. Na
ocasião, sempre arbitrariamente, poderemos modificar
essa ordem. E herdaremos." (Calígula 1-8). A ordem
arbitrária e a alteração arbitrária da ordem são, tal como
o arbítrio intrinsecamente injusto, anti-Direito.

3 .Direito, Justiça, e Direito Natural, Moral


Quando fazemos radicar o Direito na ordenação
da ordem, no valor Justiça, evidentemente tomamos
partido (ainda que não sectariamente) a favor do Direito
Natural. É complexo dizer o que é o Direito Natural em
extensão (em compreensão já o dissemos), embora
haja meia-dúzia de princípios que ninguém negará
decerto. Não matarás, não roubarás, decerto se
encontram de entre os primeiros. Embora sejam
mandamentos religiosos e morais, não se pode negar
que também sejam uma espécie de mínimo jurídico.
De todo o modo, quando recuamos a bases
consensuais jurídicas está também envolvido o
problema da moraI (e a religião). Há um movimento de
dialética entre estas e o Direito. Umas vezes, normas
jurídicas elevam-se a preceitos morais (antes de o
Direito prescrever a obediência aos sinais de trânsito,
estabelecendo-os, não havia sequer a hipótese de tal
ser uma norma moral — por inexistência do objeto
14
6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

sobre que versasse), mais frequentemente foram


normas morais a tornar-se jurídicas.
A isto acresce ainda o movimento de juridização
e desjuridização, de penalização e despenalização50.
Com efeito, nota- se um vaivém de matérias acolhidas
como Direito ou como Moral.
E isto sucede tanto no plano do Direito positivo
como do Direito Natural. De facto, hoje já não é crime
benzer cães (como o era na vigência das Ordenações
Afonsinas), mas também não o são (em muitos países,
com mais ou menos requisitos) o aborto (ou interrupção
voluntária da gravidez), ou a eutanásia (e afins), para
referir alguns dos casos recentes mais polémicos.
No primeiro caso, está-se perante o absurdo (não
jurídico, portanto) de punir uma (outra) prática absurda,
não havendo qualquer moralidade aí envolvida, e
apenas se quedando eventualmente o aspeto “religioso”
da possível bruxaria – e assim o sacrilégio, punível
religiosamente. No segundo, há claramente o plano
religioso, o moral e o jurídico. Assim, penalizar ou
despenalizar (e como) não é de modo algum absurdo, e
deve ter ainda em conta dados científicos, tendo sempre
envolvidas posições pelo menos filosóficas. E não se
pode esquecer, além dessa dimensão axiológica, as
questões de eficácia (por exemplo muito salientes em
matéria de consumo de drogas), as quais entram no
quadro da política jurídica, neste caso da política
criminal. Não vale por vezes querer fazer as pessoas
puras à força (se a sua atitude não prejudicar
50 V., por exemplo, FERREIRA DA CUNHA, Maria da Conceição —
Constituição e Crime. Uma Perspectiva da Criminalização e
Descriminalização, Porto, Universidade Católica Portuguesa Editora,
1995.
14
7
Paulo Ferreira da Cunha

diretamente em excesso), através da criminalização,


quando alguma suavização no tratamento de certas
condutas se revele mais eficaz na prevenção geral.
Obviamente são questões muitíssimo polémicas, e
pedra de toque ético para alguns. Não esperemos
consenso entre os juristas sobre tais matérias.
Sobretudo porque, nelas, não será muitas vezes a
racionalidade jurídica a falar, mas conceitos e
preconceitos que relevam de outras dimensões. E há,
evidentemente, muita paixão nestas matérias.

4 .Direito Natural — diversas visões


De todos estes casos se pode extrair o melindre
e a complexidade das questões em apreço.
Sintetizando, o Direito Natural pode ser concebido quer
como estático e estável (uma Justiça permanente,
eterna), quer como evolutivo.

Quando se enfatiza a primeira versão, haverá (ao


menos subconscientemente) ainda a ideia de uma
justiça divina. De facto, não se compreende como a lei
de Deus possa mudar — até porque a temporalidade ou
historicidade são contingência, coisas humanas, por
contraposição à eternidade e absoluto do Divino.
Quando, por outro lado, se advoga a segunda
versão referida, olha-se, histórica e sociologicamente,
para o fluir do que, em diversas épocas e autores foi
sendo tido como justo. E como até Aristóteles achava
natural a escravatura (embora de certa forma e haja em
concreto muitas atenuantes para esta sua perspetiva),
haverá que pensar-se numa evolução das
14
8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

mentalidades, uma progressão rumo à perfeição da


Justiça, a uma Justiça mais Justa. Esta última visão
tem, além disso, a própria visão juspositivista a
influenciá-la: o direito positivo muda tanto, será que se
deve condenar ao anátema de não jurídico tudo o que
está desconforme com um dado padrão — no presente,
no passado e no futuro?
Estamos em crer que não é por acaso que
mesmo os jusnaturalistas propendem mais ora para um,
ora para outro lado, aproximando-se uns mais do
positivismo, outros de uma visão moral, metafísica, ou
mesmo religiosa do jurídico. Tal deve-se, segundo
pensamos, a que o Direito Natural não é alheio a essas
realidades, com elas se cruza.
O ecletismo é sedutor para as pessoas
moderadas, que normalmente são ponderadas, mas
pode também ser sempre perigoso. Contudo, correndo
riscos, diríamos que haverá, no Direito Natural, um
núcleo básico, e incindível, um conjunto de princípios
basilares, ou quiçá um núcleo duro que pode ser até
não principial, que pode transcender os princípios,
apresentando-se mesmo como inefável.
De qualquer forma, falemos do que mais
facilmente será compreensível. O Direito à vida, à
dignidade da pessoa humana, a liberdade, as garantias
individuais contra o arbítrio (fiscal e penal, desde logo),
o direito de escolher (ativa ou passivamente) os seus
governantes e as suas leis concretas talvez sejam (à luz
do nosso tempo e lugar) alguns desses princípios
imutáveis. Claro que temos que admitir a hipótese de os
não termos captado perfeitamente. Para serem básicos
e irrefutáveis hão de ser atributo da Divindade, ou da
14
9
Paulo Ferreira da Cunha

Ordem Natural, e, por isso, a nossa "ciência" sempre


será uma mera aproximação.
Para além desse núcleo, concretizando-o sob
diversas formas, estará o Direito Natural mutável —
aquele que vai estabelecendo o que é justo e injusto
com as luzes (relativas e sempre penumbrosas) de cada
tempo e lugar. E nem pensemos que a evolução é linear
— rumo a uma perfeição maior, com o acumular dos
séculos. Dir-se-ia antes que, com o rodar dos tempos,
nos vamos aproximando ou afastando de uma ideia
mais justa de Justiça. Há momentos menos justos (na
consciência jurídica geral) que se seguem a outros,
mais justos. Para quem creia firmemente no Progresso,
e neste progresso jurídico em especial, deverá ser
embaraçoso explicar a “justiça” do III Reich, por
exemplo. Na verdade, tudo parece indicar que o
progresso se vai fazendo por avanços e recuos, numa
espécie de espiral e não em linha reta. Contudo, é
terrível regredir…em qualquer tipo de direitos,
liberdades ou garantias.
Claro que, com esta explicação, quase caímos
numa tripartição: o direito positivo, o direito natural
histórico-sociológico (consciência jurídica geral de um
dado tempo e lugar — evolutiva), e o direito natural de
base, absoluto (divino ou da natura rerum, o fulcro da
Justiça). Mas tal é o preço a eventualmente pagar por
uma visão que se pretenda não extremista, não
ocultadora do permanente e do mutável. Além de que
laços profundos vinculam um ao outro, e de que este é
apenas a encarnação imperfeita de que aquele é o
arquétipo.

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0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

5 .A alternativa do Poder e da Força


Por mais especulativas que todas as referidas
aproximações à ideia de Direito Justo, de Justiça,
possam parecer, o que alternativamente fica é uma
conceção pretensamente objetiva, por vezes também
utilitária de Direito, mas com a qual ele bem pode, ao
invés, tornar-se nocivo e bem nocivo — a visão do
Direito com simples reflexo do Poder, expressão da
pura Força. E isso era o que já se recusava na Grécia
Antiga. Prometeu, crucificado no Cáucaso pelos
acéfalos Krátos e Bías (poder e força), serventuários da
injustiça suprema de um Zeus que ainda não desposara
Témis (a Justiça), representa bem a vítima desse
primeiro grande erro judiciário. Ésquilo, ao escrever este
Prometeu Agrilhoado, remete a última decisão para um
poder superior ao próprio pai dos deuses — um destino
de Justiça, de reparação dos males. E Prometeu, que
cometera um crime à face da lei de Zeus, acabará por
vir a ser libertado51 .
Quem ignora hoje — num mundo politizado como
o nosso — que o poder nem sempre tem razão, nem
sequer quando é emanação da maioria? E mesmo
quando o Povo diretamente fala, em referendo, mesmo
então nada prova que esteja certo, ou certo para todo o
sempre. Porque, além do mais, o Povo não decide,
ainda, de forma totalmente livre. Para isso precisaria de
ter tido educação, com formação da sensibilidade e do
caráter para a liberdade, espírito crítico. Ou seja,
precisaria de não ser manipulado por tanta
comunicação social, de não ser alienado.

51 Cf. Por todos, os textos de Ésquilo (mas também de Hesíodo) que


recolhemos e comentámos em Prometeu Antigo, Porto, Rés, 1987.
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1
Paulo Ferreira da Cunha

Vítima de lavagens ao cérebro, pressionado por


um quotidiano de privações e extenuantes labores, há
muito quem delegue o próprio ofício de pensar e
acredite até que essa delegação possa ser definitiva.
Dá muito trabalho, requer muito sacrifício, a quem não
viva no ócio, participar. E isso pode ser apenas votar de
forma consciente.
Pode assim até ocorrer (e já ocorreu algumas
vezes) que a democracia meramente técnica, eleitoral,
acabe por ser a porta aberta ao seu próprio fim.

6 .Voluntarismo e ceticismo vs. humildade e


ecletismo
O reconhecimento da existência de um Direito
Natural é uma prova de humildade humana, que aceita
a sua imperfeição e admite a sua finitude e falibilidade
em cada momento em matéria tão transcendente como
a decisão do justo e do injusto. Mas fá-lo sem cair no
ceticismo ou relativismo antijurídico e antiético, para os
quais ou não se pode conhecer a Justiça, ou tudo é
igualmente certo (ou neutro), tornando-se impossível
qualquer culpabilização ou julgamento. Aceitar o
incompleto conhecimento da Justiça, é estar aberto à
reformulação do pensamento, da ideia do Direito
Natural, e, consequentemente, permeável à alteração
da lei vigente. Todavia, fazendo-o com particular
cuidado e reserva se estiverem em jogo os valores que
se creem juridicamente fundamentais, os quais, até
melhor "prova", deverão ser irredutivelmente
defendidos.
Coisa muito diversa fará o positivista, que acredita
15
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

na omnipotência humana e racional e vê a lei como


supremo produto do seu geométrico otimismo. E é
curioso: há um otimismo no próprio pessimismo
antropológico de alguns positivistas: descrendo dos
homens, acreditam na lei para os reformar ou, pelo
menos, conter. O legalista agarra-se à lei como à
própria divindade. Ou então, quando os factos lhe
infirmaram as certezas, abraça o sincretismo e o
ceticismo, a insegurança, e prega uma desculpa
universal, só aqui e ali consentindo no Direito como
forma (indesejável, mas necessária) de ordem, ao
serviço do Poder, qualquer que seja.
Há, pois, uma divergência fundamental entre o
positivista desencantado e o jusnaturalista eclético:
enquanto aquele descrê da Justiça e se conforma com
os ditames da força, este aceita que aquela o
transcende sem, contudo, jamais ceder à injustiça da lei
do mais forte.

7 .Justiça e Direito Natural na prática


No fundo, na prática tudo melhor se compreende:
tal como ocorria com o Tempo para Santo Agostinho,
podemos não saber o que é a Justiça se no-lo
perguntarem, mas se o não fizerem, reconhecemo-la
nos atos, nas situações. Quem — a não ser de má fé —
acredita que é justo (entre milhões de exemplos)
caluniar o próximo, maltratar animais, não pagar as
dívidas próprias, ou danificar os bens alheios? E
limitamo-nos propositadamente a enunciar exemplos
que ainda não estão no nível do mais horrendo ou
hediondo, de acordo com as conceções que julgamos
15
3
Paulo Ferreira da Cunha

correntes (e no topo da reprovação estarão várias


formas de tortura, cremos: mas poderá certamente
discutir-se). Um relativista procurará na genética, na
personalidade ou na sociedade alibis intelectuais, mas
imprestáveis. Se soubermos que um devedor ou um
assassino se podem furtar a pagar ou a cumprir uma
pena sob pretexto sistemático de loucura ou irreprimível
tendência individual (desculpável, portanto), ou a
coberto de ter tido uma infância infeliz ou um desgosto
de amores (razões tidas por justificativas) contrataremos
com o primeiro e confiaremos candidamente na nossa
segurança? 45
Evidentemente que as deficiências eventuais

45
Há quem defenda, porém, a irresponsabilidade dos infratores por
razões empáticas. Referindo-se a uma tal posição, característica de certa
"intelectualização" hodierna v. PARETO, Vilfredo — Traité de Sociologie
deste ou daquele sistema jurídico não justificam de
forma alguma o recuo para a idade das cavernas, para
o chamado “estado de natureza”, e portanto de forma
alguma legitimam um absurdamente opor alguns
considerado “natural” direito ao armamento, por
exemplo. A legítima defesa e a ação direta são resíduos
desses tempos, mas importa, para que realmente se
verifiquem, que se não possa recorrer em tempo útil à
força pública.

8 .O Direito dá sentido ao Mundo


Ora será aquela última questão que nos vai
permitir sublinhar o aspeto final da nossa descrição do
Direito: o sentido que ele confere às coisas, ao mundo,
à existência.
Se os contratos não forem tidos juridicamente

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4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

como vínculos para se cumprir, se o velho princípio


pacta sunt servanda

Générale, ed. Suíça, Genebra, Droz, 1968, p. 603: "... As pessoas que
não vivem em boas condições económicas estão persuadidas de que a
culpa é da sociedade. Por analogia pensam também que os delitos dos
ladrões, dos assassinos, são igualmente o efeito das faltas da sociedade.
Assim, ladrões e assassinos afiguram- se-lhes como irmãos
desafortunados dignos de condescendência e piedade. Os 'intelectuais'
estão convencidos de não ocuparem um lugar condigno na hierarquia
social. Invejam os ricos, as altas patentes militares, os prelados, etc., em
suma o resto da alta sociedade. Supõem que os pobres, os delinquentes
são, também eles, vítimas dessa classe. Sentem-se nisso semelhantes;
essa é razão pela qual por eles têm benevolência e piedade (…). E
depois passa Pareto a dar exemplos concretos. É preciso ter muito
cuidado em não confundir as observações referidas com a ideologia do
medo que infesta certas classes em diversos países, e que parece
inclusivamente querer colocar de cabeça para baixo todo o Direito Penal,
nomeadamente invertendo o ónus da prova, julgando em praça pública
crimes mais apaixonadamente odiados (pontualmente) por certa opinião
pública fanatizada, etc.. A constitucionalização do Direito Penal e alguma
tenacidade política, que se espera do poder democrático que manda
ainda, nos livrem dessas barbarizações. São dois exageros: o que aos
agentes criminosos desculpa tudo, e o que a meros suspeitos ou
acusados por inimigos já querem linchar... Há pessoas com uma sede de
sangue e maldade muito grandes, talvez na medida das suas
frustrações.

for letra morta, decerto que a sociedade se adaptará.


Quando em Roma a deusa Fides residia na palma da
mão dos contraentes de uma obrigação, e uma vez
selado o contrato estes se cumprimentavam, num ritual
que aquela divindade tomava como protetora, não havia
lugar a mais formalidades — e o combinado geralmente
cumpria-se. Com o envelhecer dos tempos, novas
gerações começaram a não mais acreditar na deusa
Fides, e nas suas punições, vendo que, a haver
infração, eram bem humanos os que a podiam
sancionar. Esta narrativa traduz a decadência do
cumprimento pela palavra dada, uma degenerescência
ética.

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5
Paulo Ferreira da Cunha

Vai daí, face às frequentes quebras da palavra


dada, passou a exigir-se forma escrita, e, depois, todo
um sucessivo e acrescentado material probatório que
nos nossos dias (como está longe a deusa Fides!) nos
enovela em papeladas e andanças — impressos,
reconhecimentos, certidões, escrituras, registos...
Face ao enfraquecimento de um típico vínculo
jurídico, a sociedade forjou novos vínculos. É portanto
possível que, se a ordem jurídica, cedendo no plano
ético-jurídico, viesse, por absurdo, a tornar meras
"obrigações naturais" (v. v.g. art.ºs 402 et sq. C.C.)
todas as decorrentes dos contratos, quem quisesse
contratar se defendesse, por meios que a imaginação
decerto encontraria — em obediência clara ao Direito
Natural. E assim como as dívidas de jogo, nos casinos,
se pagam mesmo, apesar de serem meras "obrigações
naturais", também haveria de gizar a inteligência
contratual algum artifício (legítimo) que defendesse os
credores de devedores faltosos, e quem quer que
quisesse constituir-se devedor da falta de pessoas
dispostas a tornarem-se credores.
Quando a ordem jurídica descura o policiamento,
não começam a criar-se organizações privadas de
segurança — que ela pode, a princípio, proscrever, mas
as quais acabará por ter, a prazo, de reconhecer, ou, ao
menos, tolerar? Quando um contrato se torna lesivo
para uma das partes, por força da lei, não há cada vez
menos pessoas (que nessa posição estariam) a querer
contratar em tais termos? Não se terão firmado mais
contratos de trabalho a prazo por existir ao menos o
receio que o típico contrato de trabalho sem prazo, em
algumas ordens jurídicas muito protegido, atasse as

15
6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

mãos ao empregador? E não passou a haver menos


arrendamentos, quando o possível senhorio sentia que
uma casa arrendada era uma casa quase praticamente
“oferecida”, pelas limitações à subida das rendas, pela
transmissibilidade do arrendamento, etc.?
Evidentemente que as facilidades do Direito do
Trabalho para a posição do trabalhador, ou do Direito
do arrendamento para o inquilino se integravam, com
mais ou menos planificação, em políticas sociais
(independentemente da cor política dos governos que
as promoveram ou mantiveram – e foram entre si muito
diversos). Não estamos agora a discutir da bondade
dessas medidas. Apenas sociologicamente se verifica
que, quando uma das partes de uma relação jurídica
sente que tem fuga a um regime jurídico que considera
para si desfavorável obviamente será caso raro que, por
considerações mais ou menos filantrópicas de justiça
social ou moralidade, deixe de encontrar um caminho
legal para se furtar ao lucro cessante.
Perante uma normação que legalmente imponha
uma espécie de pacto leonino (cf. art.º 994 C.C.), os
potenciais interessados procuram um contrato dele
sucedâneo. Mas perante a inércia legal ou institucional
ante o anti-Direito, ou a sua ação injusta?
É aí que o Mundo começa a ficar seriamente
abalado nas suas estruturas, nos seus fundamentos.
Se, às seis da manhã, tocarem à porta de gente de bem
e não for o leiteiro ou o padeiro, se os nossos amigos e
familiares começarem a desaparecer
incompreensivelmente, se pessoas que se destaquem
pela sua cor de pele ou outros traços exteriores,
passarem a ser agredidas, torturadas e mortas por

15
7
Paulo Ferreira da Cunha

brigadas sectárias ou mesmo por agentes da


“autoridade”, se em concursos oficiais certas pessoas,
com certas ideias, forem sempre preteridas, não pode
haver Direito, mas uma ação injusta do Poder — um
Estado de exceção. Se os nossos filhos forem
assaltados, violados e mortos a caminho da escola, se
nos supermercados e nas estações e nos aeroportos
explodirem bombas todas as semanas, se ao
regressarmos de férias (ou do emprego) a nossa casa
se encontrar vazia, porque entretanto uns larápios
normalmente nos fizeram uma "mudança", se
criminosos hediondos forem inocentados sob pretextos
(explícitos ou calados) ideológicos, raciais, de género,
religiosos, psicológicos, sociológicos, genéticos, ou o
que se quiser, e se os poucos incriminados andarem
sob fiança ou em liberdade condicional praticando mais
crimes, ou a passar férias em penitenciárias de luxo, ou
num qualquer limbo de impunidade, não pode também
existir Direito, mas uma demissão injusta do Poder —
não protegendo a sociedade.
Em todos estes casos (e o leque poderia alargar-
se com exemplos ora mais para esta sensibilidade, ora
mais para aquela: porque os nossos preconceitos nos
dão uma seletividade aos horrores) deixa de haver
Justiça, deixa de haver paz social, ordem e hierarquia
comunitárias justas.
Num primeiro caso, podem ser mantidos uns
arremedos de Justiça, autoritários ou totalitários,
fundados em nada mais que na força. E o sentido do
Mundo, se poderá ser dado por um "Mundo às
avessas", ou sobretudo ideado a partir dos interesses
do grupo dominante, do Poder, jamais será completo,

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8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

jamais fará pleno sentido. Isto até porque o Poder em


luta contra a Sociedade vê nela os mais paranoicos
perigos, além de continuamente a si próprio se devorar.
Num Poder arbitrário ninguém — nem mesmo os
governantes, sobretudo os governantes — está certo ou
seguro. Todos temem a calúnia, a intriga, a delação. Os
dirigentes de segunda ordem receiam cair em desgraça.
Os do primeiro plano, o atentado popular ou o golpe
palaciano. Os membros do Povo podem servir de bode
expiatório, exemplo, ameaça, para outros, ou para os
próprios privilegiados. O Poder, não obedecendo ao
Direito, é sempre um fator de alienação, e o Mundo,
então, não tem mesmo qualquer sentido. Vegeta-se,
procura-se sobreviver, ou subir, ou não cair — não se
vive. E mesmo o mais terrível ditador terá uma
existência miserável.
Num segundo caso, a loucura é semelhante. O
Poder não o é: existe para comemorações e para cobrar
impostos, é uma fachada. Não vê, não prevê, não
provê. Por cumplicidade, por complexo ideológico, ou
por inércia deixa que o crime atue e penalize a
sociedade. E como a polícia pode chegar a prender
quem age em legítima defesa, e não o agressor, cobra a
multa de estacionamento proibido mas ignora o
atropelamento criminoso, ninguém está seguro, mais
parecendo os homens bons joguete de dois bandos
com "fardas" diferentes (no fundo era o que sucedia na
série televisiva Hill Street Blues, menos bem traduzida
por "A Balada de Hill Street"). O mundo não tem
sentido, porque não possuir uma autorização é mais
suavemente penalizado que dela ter-se esquecido em
casa. O mundo é absurdo porque a comparação entre
as previsões das penas e a diversidade das sentenças
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9
Paulo Ferreira da Cunha

deixam-nos sem pé, sem norte. Não há ordem, nem paz


social nem hierarquia legítima quando se vive sob a
ameaça do crime, e a álea de uma Justiça que só
aparece a quem, quando e para o que não deve — ou é
de somenos. Crime de muito tipo: o do famélico que
ataca para comer, e já nem tem consciência do valor da
vida, mas também o do fanático ou do meramente
sádico, que elege com bode expiatório e descarrega
nele a sua existência infra-humana: foram judeus, foram
ciganos, foram homossexuais, foram comunistas, etc. E,
em algumas latitudes, estão a sê-lo de novo, mais uns
menos outros. O Diário de Anne Frank ajuda a pensar o
que é viver permanentemente no medo. E o poema,
muitas vezes atribuído a Brecht, mas que tudo indica é
da autoria do pastor Martin Niemöller, é uma lição para
os tíbios:
E não sobrou ninguém “
Primeiro levaram os comunistas
mas não me importei com isso
eu não era comunista;
em seguida levaram os sociais-democratas
mas não me importei com isso
eu também não era social-democrata;
depois levaram os judeus
mas como eu não erajudeu
não me importei com isso;
depois levaram os sindicalistas mas não me importei com
isso porque eu não era sindicalista;

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0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

depois levaram os católicos mas como não era católico


também não me importei;
agora estão me levando
mas já é tarde
não há ninguém para se importar com isso52.

Comentados estes dois tipos-ideais de anti-


Direito, que são a estilização do seu recorte máximo,
haverá que sublinhar existirem outros, embora mais
ténues. O Direito não é, também (porque isso é alheio à
Justiça, e seu contributo para paz social, ordem,
hierarquia) a burocracia kafkeana que nos faz
endoidecer, saltando de repartição para repartição, de
guichet para guichet, de impresso para impresso, de
selo para selo, de maçada para maçada. A fórmula não
deve ser magia, mas facilitação. Os serviços, não
devem ser nunca fins, mas simples meios. Atribui-se ao
General De Gaulle uma frase lapidar, que coloca no seu
lugar a burocracia: “A intendência seguirá”. Ela deve
limitar-se a seguir.
E o princípio é sempre o mesmo, para avaliar do
carácter jurídico de uma realidade, qualquer que seja: a
Pessoa não foi feito para as Leis, mas as Leis para a
Pessoa. E o Direito será a tentativa de fazer valer (como
Lei) o que se vai sentindo ser a Justiça.

52 Versão colhida in https://blogdaines.wordpreet sq.com/2015/12/10/e-


nao- sobrou-ninguem-de-martin-niemoller/ (consultada em 12 de outubro
de 2018).
16
1
Capítulo III
Correntes do Pensamento Jurídico

1 .Positivismos, Legalismos, Normativismos,


Sistematismos, Dogmatismos
Pensar ou obedecer, eis a questão. Evidentemente
que há uma grande diferença metodológica entre um
Direito pensado e um direito obedecido, entre um direito
formal e um direito material (e entre uma justiça formal e
uma justiça material), entre um direito essencialista e
um direito fenoménico (como entre o natural e o
positivo), entre um direito dogmático e um direito
problemático, entre um direito mecânico e construtivista
e um direito dialético, tópico e problemático, entre um
direito normativista e um direito judicialista (embora os
“bons velhos tempos” do preto-e-branco nestas coisas
tenham passado), etc.. Todas estas oposições são
significativas em si mesmas, embora se dividam, grosso
modo, entre as duas alternativas fundamentais no
mundo jurídico: o direito pensado e o direito para
obedecer, o monismo e o pluralismo jurídico.
O paradigma do direito moderno (e contemporâneo
em boa parte, embora os tempos estejam confusos e
com anúncios de mudança), mesmo apesar de todos os
progressos que foi integrando, é o do positivismo,
sobretudo legalista, para o qual o voluntarismo político
da lei se impõe a todas as fontes do Direito e a toda a
prática hermenêutica, de interpretação / aplicação das
normas e dos próprios factos, que obviamente são
certamente dos primeiros a ser interpretados (é o
alegado e brutal princípio do dura lex, sed lex, o qual,
16
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

como sabemos já, fez a sua aparição na decadência de


Roma, quando só a força mantinha a situação ainda
acima do nível da anomia).
Faz também parte desse paradigma o privilegiar
da norma sobre a sentença, apesar de ser inegável que
em todos os ordenamentos jurídicos, na prática, acabe
por ser a sentença a ditar a última palavra (até que uma
nova lei desautorize os tribunais e os obrigue a julgar
diferentemente). Conta-se que um grande professor
estadunidense proferia calmamente uma palestra
quando foi interrompido pelo ChiefJustice do Supremo
Tribunal, que o apostrofou:
"_ Isso não é o Direito", teria este afirmado, em
tom desaprovador.
E o mestre, prudente, ripostou apenas, com
sutileza que só alguns percebem:
"_ Sem dúvida. A verdade é que o era até que V.
Ex.a se ter pronunciado".
Viesse uma lei a seguir, e o magistrado teria que
curvar-se ao que ela decidisse. Mas ainda assim seria
um tribunal a decidir do seu sentido... O brocardo in
claris non fit interpretatio não é válido: é sempre
necessário interpretar, até para se poder concluir,
depois da interpretação feita, se algo é claro ou
obscuro.
Outro elemento importante neste âmbito diz
respeito mais especificamente ao modus operandi
metodológico. O Direito, como muito certeiramente
sublinhou o malogrado constitucionalista Francisco

16
3
Paulo Ferreira da Cunha

Lucas Pires, é uma episteme de palavras e de


conceitos53. Isso é insofismável. Mas existem diversas
maneiras de encarar essa realidade do saber, e de lidar
com essas entidades do espírito e da cultura. Há
fundamentalmente duas grandes correntes
metodológicas. Uma, privilegia o dogma, a pretensa
cientificidade do Direito, a construção de sistema, a
lógica, a dedução, a racionalidade mais descarnada e
abstrata. O Direito para o pensamento dogmático ou
construtivista é uma espécie de lógica ou de
matemática. E daí que acabe por ser sincera a sua
alegação de não politicidade… Se acaso a recusa da
política não fosse já uma imensamente política opção.
Os juristas que lavam as mãos das opções políticas que
comandam o Direito, e os que estão convencidos de
que se trata apenas de uma ciência ou técnica inócua
ou assética, obviamente tomam partido, que é o partido
do establishment, qualquer que ele seja: serão
demoliberais no demoliberalismo, fascistas no fascismo,
comunistas no comunismo.
Na base de toda a construção, muitas vezes (se
não sempre) está precisamente o voluntarismo da
decisão política (no que frequentemente, se vistas as
coisas com olhos de ver, tudo parece ser um gigantesco
ídolo com pés de barro, por escasso ou perverso ou
corrupto ou débil fundamento). Mas é como que uma
norma fundamental kelseniana (Grundnorm)54 que se
colocasse entre parêntesis, já que tudo, nessa visão
das coisas, pode funcionar sem ela. Aliás, o positivismo
53 PIRES, Francisco Lucas — Teoria da Constituição de 1976. A
Transição dualista, Coimbra, s/e, 1988.
54 KELSEN, Hans — Reine Rechtslehre, trad. port. de João Baptista
Machado, Teoria Pura do Direito, 4.ª ed.. Coimbra, Arménio Amado,
1976.
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

jurídico, de que esta visão é pelo menos solidária (se é


que não será mesmo o fundamento filosófico-
metodológico), pressupõe em grande medida, pelo
menos na sua prática, o esquecimento do fundamento,
das razões, da fundamentação, da legitimidade e da
legitimação do Direito, que é posto (positum), está-aí, e
não se deve discutir... É o ponto fixo de Arquimedes que
se não vai procurar. Porque ele é onde se apoia a
alavanca que faz mover o universo jurídico.
Mas se a política está na base (e não parece
poder deixar de o estar, pois nenhuma transcendência
se reconhece ao Direito no universo positivista legalista,
e a do sociológico e historicista são muito imanentistas:
a sociedade ou a história, ou a ideologia que a uma ou
outra encaram...) deste construtivismo, já uma vez
edificada a estrutura nada de político aparece. Muito
pelo contrário, há como que uma fobia à política,
decerto porque o reconhecimento dessa origem poderia
(ou se pensa que poderia) prejudicar a solidez do
edifício, que deve ter uma autossuficiência ou
autopoeisis, que vale por si, mas não pela sua justiça ou
justeza intrínsecas, antes pela sua existência. E
impressionam as volutas mentais, a filigrana conceitual,
a que se dedicam, por séculos, os cultores das
catedrais góticas do Direito. Quem vai pensar nos
alicerces quando os pináculos ferem os céus?
Uma malha sistemática é argamassa da
construção, alimentada pela lógica clássica, almejando
à solidez e até decerto a provocar no paisano aquele
sentimento de rendição, de esmagamento, que
experimenta o sujeito que contempla as coisas
excessivamente grandes e sólidas (não se fala em vera

16
5
Paulo Ferreira da Cunha

grandiosidade, que essa não está nas dimensões


físicas, materiais).

2 .Pensamento jurídico problemático, tópico,


judicialista e pluralista
Nos antípodas da perspetiva anteriormente
referida, encontra-se o pensamento dialético, tópico,
problemático, que não acredita excessivamente na
subsunção lógica, no dogmatismo definitório, na
sucessão mecânica de patamares da pirâmide
normativa, na razão dogmática e pretensamente
purificada de razões espúrias. Pelo contrário, esta
racionalidade, que alia a razão ao sentimento (portanto,
não é uma pura e simples razão sensível, mas uma
racionalidade por assim dizer holística e pluralista), está
atenta aos diversos fenómenos e determinantes da
ação humana, e não descura a complexidade da
condição do bicho-homem, impossível de reduzir-se a
uma equação, a uma fórmula, a um algoritmo.

A outra forma de proceder metodologicamente é a


atenção às disputas, às divergências, mas também aos
acordos essenciais (sem os quais nenhuma
argumentação se pode fazer ouvir ou compreender),
aos pontos de vista, aos argumentos, e ao seu
combate. Que pensa nos casos concretos e em como
conseguir alcançar para eles uma solução. Muitas
vezes mais pela conciliação, pela mediação, pelo
compromisso (a síntese) que pelo rígido e ríspido cortar
a criança a meio, como faria um juiz que não fosse
salomónico.

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6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

A razão problemática da metodologia tópico-


problemática reconhece a fragilidade das construções
humanas e das próprias motivações humanas, e longe
de querer aplicar uma receita de um monumento de
marca adâmica ou prometeica (como é o Direito
construído, contente de si sobretudo em momentos
codificatórios, em que as leis posam para a História
gravadas em preciosas letras de oiro em tábuas de
mármore cintilante), e por isso, em grande medida,
muitas vezes fadado à mesma sorte do ladrão do fogo
sagrado dos deuses ou mais ainda do menos heroico e
simpático Nemrod ou Nimrod, o construtor da torre de
Babel do Génesis. Recordemos que a confusão e
profusão da língua em línguas foi a raiz do castigo da
ousadia vaidosa desse rei mítico primordial. E como
tudo isso faz sentido, se nos lembrarmos da reflexão de
Confúcio sobre a necessidade de retificar a linguagem,
reencontrar os sentidos, como a primeira tarefa política
a empreender55. E jurídica também.
Assim, o empreendimento metodológico
problemático não se envaidece nem acredita em
panaceias universais, e modestamente procura
soluções de compromisso e o mais ajustadas possível
às situações concretas. Porque a Justiça é justiça de
cada caso, não uma abstração ou uma máquina
dispensadora não de Justiça, mas de decisões de que
cabe desconfiar quanto à adequação, porque vindas de
55 CONFUCIUS — Entretiens de…, trad. do chinês de Anne Cheng,
Paris, Seuil, 1981, p. 102 (XIII, 3). Comentando, Simon Leys (dossier
coordenado por Minh Tran Huy) — De -551 à Aujourd’hui. Confucius les
voies de la sagesse, “Le Magazine Littéraire”, novembro de 2009, n.º
491, p. 66. V. ainda, v.g., CHENG, Anne — Histoire de la Pensée
Chinoise, Paris, Seuil, 1997, pp. 82 et sq.. Cf., sobre o contributo do seu
pensamento para a renovação do pensamento jurisfilosófico ocidental, o
nosso Filosofia do Direito, 3.ª ed., p. 23 et sq..
16
7
Paulo Ferreira da Cunha

uma Justiça realmente cega. Não porque imparcial, mas


porque imprudente, desconhecedora dos factos e das
pessoas intervenientes e implicadas.
Acreditar na lei voluntarista dos políticos com
poder num dado momento, acreditar na norma contra os
juízes, acreditar na abstração e no edifício criado dos
juristas contra os argumentos e os factos da situação
concreta que clama por Justiça são tudo elementos que
constituem o paradigma positivista legalista-
normativista-dogmático em que ainda nos movemos em
muito grande medida, e que tem reflexos na forma
como se ensina, se pensa e se aplica o Direito, até de
forma automática, inconsciente, com reflexo
condicionado. Por isso António Braz Teixeira considerou
o positivismo a filosofia espontânea dos juristas.
Contudo, uma visão alternativa existe.
Antes de mais, de pluralismo, que durante muito
tempo se confundiu com o jusnaturalismo (mas que é
uma realidade mais lata e em si mesma mais plural
ainda), posição em favor do reconhecimento de uma
juridicidade além da positivada (não acreditando que a
lei é a única fonte do Direito, nem a vontade política a
única raiz do Direito, nem sequer a principal). E esse
mesmo pluralismo pode não se identificar com o Direito
Natural, proprio sensu, antes com critérios diversos
como a Justiça, a natureza das coisas, etc..
Depois, de judicialismo (embora com cuidado para
se não cair num Estado-de-juízes, ou numa nova
subjetividade judicatório, do tipo da equidade dos
parlamentos, que eram então tribunais, como na França
do Ancien régime).
16
8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

E finalmente de razão problemática, fundada no


pensamento dialético, tópico, que é também a fonte da
retórica (que muito ganharia em ser estudada de novo
pelos juristas, descartado o preconceito que se lhe
colou pela via da oratória floreada e balofa de outros
tempos). Uma prática jurídica virada para o caso
concreto, para a Justiça do caso, em que até as fontes
do Direito, num tempo, como o nosso, de algum modo
com pluralidade de fontes neo-alto-medieval (como
assinalou Luigi Lombardi Vallauri56) podem funcionar
com tópicos, em diálogo e em disputa dialética.

3 .Síntese das Correntes Jurídicas


Podemos sintetizar algumas oposições nas
correntes jurídicas da seguinte forma.
Por um lado, quanto à crença numa ou noutra
fonte de direito e nos respetivos protagonistas, há, nos
extremos, os judicialistas, que juram pelos tribunais e os
juízes, e os normativistas, que embora possam não se
lembrar que as normas são feitas pelos políticos
(governantes ou deputados e senadores, nos países em
que os haja) têm fé e esperança na norma, na lei.
Evidentemente que há perspetivas intermédias. E
ocorre que algumas experiências mais recentes, como o
ativismo judicial, fizeram a alguns perder algo da sua fé
no judicialismo... Há, portanto, judicialistas moderados e
normativistas moderados.
Por outro lado, no plano da metodologia jurídica,
há os que defendem o pensamento dogmático, lógico,
56 LOMBARDI-VALLAURI, Luigi — Terre. Terra del Nulla. Terra degli
Uomini. Terra dell'oltre, Milão, Vita e Pensiero, 1991.
16
9
Paulo Ferreira da Cunha

sistemático, para o qual o Direito seria uma ciência de


aplicação silogística ou algo semelhante, e os que
defendem, pelo contrário, a justiça do caso concreto,
não vista por forma rígida e abstrata, mas com base na
dialética de argumentos contraditórios, decididos por um
terceiro independente (o juiz, própria ou impropriamente
dito, em cada caso, pois pode nem se tratar de um
processo judicial). Estes últimos defendem o
pensamento problemático ou tópico.
Finalmente, e esta é a dicotomia mais clássica, no
plano do ser intrínseco do Direito (no plano da sua
ontologia), há os que acreditam que o Direito é apenas
o positivado pelos Homens, nas normas (legalistas), ou
na sua ação social (sociologistas), ou na História
(historicistas). Os primeiros, os legalistas, são hoje
largamente maioritários. Em sentido contrário, há os
pluralistas, que acreditam que o Direito pode encontrar-
se além dos frutos do voluntarismo humano. Há neste
grupo muitas modalidades, e por vezes criam-se entre
si clivagens não muito jurídicas, mais políticas. É o caso
da divisão entre jusnaturalistas clássicos (de inspiração
aristotélica, romanística e tomista) e jusnaturalistas
modernos ou mesmo jusracionalistas (estes últimos
sobretudo no séc. XVIII). Obviamente que as ideias
iluministas e por vezes revolucionárias dos
jusracionalistas são diferentes da ordem natural das
coisas dos clássicos e da sua revivescência medieval.
Mas Tomás de Aquino presava também muito a Razão,
e a sede de Justiça, embora com roupagens diversas, é
em muitos casos semelhante. Mas são pluralistas sem
referência específica a um conceito de Direito Natural
muitos ainda: muitos dos que creem na natureza das
coisas, dos que defendem um pensamento tópico-
17
0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

problemático, que procuram uma teoria da justiça, etc. –


insistimos.
Durante muito tempo confundia-se jusnaturalismo
com pluralismo (hoc sensu), mas entende-se hoje que
se pode ser não e até anti-juspositivista e não comungar
de um sistema ou uma mundividência de Direito
Natural, que seria uma outra ordem de Direito,
normalmente entendida como uma fome e sede de
justiça topicamente encontrada, ou então a aplicação de
grandes princípios de Direito, os quais, porém, se
vieram a positivar... desde logo nas Constituições. Com
efeito, a mera defesa da integralidade principial das
Constituições da segunda metade do séc. XXI (grosso
modo) é já uma defesa substancial de princípios que,
estando positivados, em boa medida se identificam com
bandeiras de dignidade jusnaturalista.

17
1
Parte II
Semiótica
Signos jurídicos

1 .Os Signos do Direito: Símbolos e Palavras


Grande parte do significado do Direito e do
trabalho dos juristas nos pode ser revelado pela análise
dos símbolos e das palavras que lhes andam
associados. Como se sabe, um cuidado particular tem
de ser posto nestas investigações, pois as etimologias
não raro são duvidosas, e, ao longo dos tempos, os
símbolos foram perdendo a sua significação inicial,
hibridizando-se, estilizando-se, etc. É, portanto, natural
que haja divergências entre os autores. Procuraremos,
todavia, uma síntese compreensiva, e o mais atualizada
possível.

2.Símbolos do Direito
O principal símbolo do Direito é a Balança, e tal
acontece em várias latitudes, embora ela seja também
símbolo de outras coisas. A verdade é que ela pesa
simbolicamente o bem e o mal jurídicos, e por ela se
procura o equilíbrio entre infração e pena, lesão e
indemnização, etc..

17
2
Paulo Ferreira da Cunha

A Balança é, porém, apenas o elemento mais


saliente da deusa Justiça (Iustitia)57 .
Outros símbolos têm sido propostos, e outras
divindades além das gregas e romanas, como, por
exemplo, Xangô, no Brasil, que tem um machado duplo.
Entretanto, mais classicamente, as "Justiças"
normalmente aparecem com venda, balança, espada.
Porém, tudo indica que a venda está a mais.
Durante muito tempo se disse que a Justiça se
apresentaria vendada. Porém, ainda não apareceram,
que saibamos (e temos procurado), cabais provas disso,
enquanto, pelo contrário, alguns consideram que o
elemento venda é tardio, e teria até correspondido a
uma recuperação dos juristas de uma paródia, em muito
semelhante à da Nave dos Loucos e afins58.
Por aqui se vê como uma representação plástica
que represente a Justiça sentada, ou simultaneamente
ostentando a venda e a espada (e não venda e
balança), como v.g. o monumento alegórico junto do
Palácio da Alvorada, em Brasília, produzindo
eventualmente embora um efeito estético interessante,
propicia uma outra leitura dos elementos componentes,
não retratando nem uma Justiça à romana, nem à
grega.

3.Palavras do 'Direito'
Há duas palavras para este campo semântico:
"Direito", ou de "Jurídico". É uma dualidade que tem um
57 Cf. Mito e Constitucionalismo, ct., pp. 60 et sq, máxime, p. 62.
58 Cf. o nosso Desvendar o Direito, pp. 15-23, p.119 et sq., p. 199 et sq..
17
3
Paulo Ferreira da Cunha

sentido e uma História.


As palavras seguem ideias e símbolos. Veja-se o
que ocorre com ísos. Haveria Direito quando os pratos
de uma balança sem

17
4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

fiel, como a grega, se encontrassem equilibrados, iguais


– ísos. Porque o íson é o igual, o equilibrado. Esse o
sentido popular de justiça na Grécia, em que o processo
era mais “democrático”, não existindo um pretor
(simbolizado em Roma pelo fiel da balança).
Já themistes e dikaion são palavras gregas que
remetem para uma origem mais divina e elitista do estar
ou ser justo, procedendo dos nomes das deusas
Themis e Diké.
Em Roma, estando a balança regida pelo
respetivo fiel, a imagem é vertical e não horizontal, a
nível popular: rectum (provindo talvez do indoeuropeu
REK-TO), enfatizado em derectum, e que evoluiu mais
tarde para directum, designa o fiel a prumo,
verticalíssimo. Tal perspetiva equivale, do lado romano,
à imagem horizontal helénica.
Ius talvez advindo do indo-europeu YEUS, mas
com muitas etimologias possíveis) parece ter uma
origem também erudita e elitista, como essencialmente
o que Jove, Iovis iubet – o que Júpiter ordena.
Munidos desta malha simbólica, dispomos de um
alfabeto e de uma gramática com muitas
potencialidades interpretativas.

17
5
Parte III
Dinâmica:
Dimensões e Funções,
Valores, Princípios e Fins do
Direito

Sumário:

Capítulo I
Dimensões e Funções do
Direito
Capítulo II
Valores, Princípios e Fins do
Direito

16
9
Capítulo I
Dimensões e Funções do Direito

1 .A Dimensão Jurídica – estranheza e ficção


do mundo jurídico
À medida que fomos procurando traçar um
quadro, uma panorâmica (impressionista, é certo) do
fenómeno jurídico, fomos sucessiva e insensivelmente
topando com diversas dimensões por este assumidas, e
também com várias funções que desempenha. É
chegado o momento de, muito brevemente,
consciencializarmos tais dimensões e funções. Ambos
os temas são muito complexos, prendem-se com um
infindável rol de teorizações e aplicações práticas, mas
ficaremos aqui tão somente pela consciencialização do
problema, com as suas várias categorias de subdivisão.
É, antes de mais, evidente que a "dimensão
jurídica", qual "quinta dimensão", constitui muitas vezes
um reino fantástico, de inusitados acontecimentos e
factos. Para o Direito (em Portugal: noutros países não
será bem assim), os ovos e a lã são "frutos" (assim
como os juros, aliás), é impossível alugar casas (só se
arrendam, porque são imóveis), o furto e o roubo são
entidades diferentes (este último implica violência) etc.
Ao nível da teoria, o mundo é "diferente". Mas também
no plano prático: todos sabemos que, se o mundo do
crime é um universo marginal com regras próprias,
também a vida "normal" de quem venha a (culposa ou
17
1
Paulo Ferreira da Cunha

inocentemente) ser apanhado pelas malhas da lei, se


torna num nada lúcido e aprazível pesadelo. Mais
ainda, o homo juridicus ideal, que soubesse todas as
leis regulamentos e ordens individuais, deveria por certo
viver atormentado em permanência com o seu
cumprimento, em plena insanidade mental. Goethe, que
era jurista de formação, apercebeu-se da
impossibilidade, já no seu tempo, de conhecer todas as
leis... Terá mesmo dito que, se tivéssemos que
conhecer todas as leis, não restaria tempo para as
violar. Disse-o no séc. XVIII. Imagine-se o que seria
agora!
Todos sabemos como a rotação da máquina do
mundo acaba por depender das pequenas inovações,
que não poucas vezes serão pelo menos de duvidosa
conformidade jurídica. Há, em vários países, níveis de
conformidade e desconformidade jurídica: por exemplo,
no Brasil, fala-se do “meio proibido” de “leis que não
pegam”, etc.. E em algumas ordens jurídicas começa a
reconhecer- se que há pelo menos alguns grupos
sociais menos integrados no “direito do asfalto”, como
diria Boaventura Sousa Santos, aos quais não pode ser
exigida a pressuposição do conhecimento cabal da lei...
Começa-se por de algum modo tolerar a ignorantia
legis aos povos originários da América, mas poderá vir
a alargar-se esse grupo. O que também acaba por ser o
reconhecimento da falência de um ideal de cidadania.
Precisamos ponderar todas estas questões.

17
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

2 .Da Dimensão Jurídica — habitualidade e


realidade
Não é, todavia, esse reino jurídico de quase
fantasia aquele que procuramos observar. É o mundo
jurídico normal. E este, visto sob o olhar desarmado dos
profanos e dos não-especialistas (já o vimos),
apresenta-se-nos sob diversas facetas, múltiplos
ângulos, sem, contudo, se diluir no que radicalmente
não é. Ninguém confunde, apesar e tudo, o Direito com
a Medicina ou a Engenharia. E mesmo a diferença entre
um juiz e um sacerdote, um deputado e um causídico,
um moralista e um jurisconsulto teórico, se revela nada
embaraçante e muito clara para o comum das pessoas.
Vimos que a pluralidade de visões sobre o Direito
comungava numa unidade. Uma das explicações para
tal é a sua tridimensionalidade fenoménica e funcional.
Que hoje já não é tão claramente trina, mas começou
por sê-lo.

3 .Tridimensionalidade fenoménica e
funcional do Direito
Enquanto fenómeno, o Direito é facto, valor e
norma. É as três coisas e cada uma delas. Avançou-se
mais tarde um quarto elemento fenoménico, mas
diferente conforme os autores (fala de
tetradimensionalidade Paulo Lopo Saraiva): num caso,
remetendo para a Justiça (que, contudo, parece mais
valorativo que propriamente fenoménico), e noutro caso
(que, esse sim, é de índole fenoménica) para o facto de
que o Direito será sempre texto – oral ou escrito. Assim
(afastando o elemento de Justiça não porque ela não
17
3
Paulo Ferreira da Cunha

seja importantíssima, mas pelo facto de que não parece


sistematicamente aqui enquadrar-se) o Direito seria
norma, facto, valor e texto. Contudo, o texto é um
veículo, um suporte, dos outros três elementos, pelo
que, uma vez compreendido isto, podemos
tranquilamente continuar a falar em trifuncionalidade.
Quem elevou esta teoria, burilando-a e universalizando-
a com genialidade, à posição de mega-teoria, foi o
brasileiro Miguel Reale.
Exerce, com efeito, o mundo jurídico
basicamente três funções, as quais, no fundo, são os
meios metodológicos — o que é já uma tautologia —
para as funções-fins parciais referidas: liberdade, paz
social, ordenação, hierarquização, sentido do mundo,
etc. Essas funções são as de medir, dirigir e decidir.
Trata-se, portanto, de uma dupla
tridimensionalidade. Analisemo-la apenas só um pouco
mais já de seguida.
Na perspetiva fenoménica, o Direito é (talvez até
antes de tudo o mais) um facto. É uma realidade social,
cultural e espiritual, como sabemos. Mas não é uma
pura construção abstrata da mente humana. Radica em
factos reais, naturais e/ou humanos, e cria também
factos. No fundo, liga factos “não tratados
juridicamente” a factos com consequências (ou que são
consequências) jurídicas. Como o rei Midas vertia em
oiro aquilo em que sucedia tocar, transforma o Direito
em matéria jurídica aquilo em que mexe. Esta metáfora
de Kelsen continua plenamente válida59.

59 KELSEN, Hans — Reine Rechtslehre, trad. port. e prefácio de João


Baptista Machado, Teoria Pura do Direito, 4.ª ed. port., Coimbra,
Arménio Amado, 1976.
17
4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

O Direito é um facto, lida com factos, cria factos,


pressupõe factos.
Ao conferir ao mundo dos factos um sentido, o
jurídico é valor. Mede, valora, com um diapasão
axiológico. Vimos, porém, que o Direito, tal como o
encaramos, deve ser defendido na sua especificidade e,
portanto, os valores de que curamos são os da
liberdade, igualdade, paz, segurança, ordem, etc.,
subordinados ao valor-fim Justiça. É com vista a esse
fim e na medida desse valor que o Direito "trata'' os
dados, os factos.
Falamos aqui ainda de valores de forma tópica e
não organizada. Seguindo a lição da Constituição
espanhola, que (ainda que não com perfeição total) os
organizou, em 1978, haverá valores jurídico-políticos
superiores (liberdade, igualdade e justiça ou, numa
versão mais francesa e mais axiologicamente elevada,
liberdade, igualdade, fraternidade), sendo que a paz, a
segurança, a ordem, etc., acabam por ser mais
princípios ou valores não superiores. A paz, como se
sabe60, é obra da Justiça (não haverá nunca paz se não
reinar a Justiça: veja-se o que ocorre, a prazo, sempre
que os vencidos numa guerra são humilhados,
espoliados – e tal parece ser frequente). Assim como
cremos que a segurança e a ordem.
A norma é o mais conhecido aspeto do Direito.
Depois da análise dos factos e da sua valoração,
surgirá, naturalmente a norma, que normalmente é
escrita nos nossos dias. Que o Direito tem uma
existência sobretudo normativa provam-no os milhares
60 Isaías, XXXII, 17: “Et erit opus justitiae pax, et cultus justitiae
silentium, et securitas usque in sempiternum.”
17
5
Paulo Ferreira da Cunha

e milhões de normas que todos os dias saem nos


diários oficiais de todos os países, e a invocação de tais
normas, aos milhões e milhões nos pleitos de todos os
Estados do mundo.

4 . As funções jurídicas de avaliar, dirigir e


decidir
Como sabemos, Montesquieu via a lei enquanto
relação. É esta uma perspetiva de grande fôlego
teórico. E Condillac, por seu turno, afirmava a
identidade entre relacionar e medir61. De facto, na
medida em que procura relações, o Direito
frequentemente mede. E medir é uma forma de
conhecer e avaliar.
Além de avaliar há que estabelecer regras e
contextos, ou seja, ordenar: recomendar62 ou impor,
seja por permissão, proibição, etc.
Finalmente o Direito tem de decidir. Não apenas
entre as pretensões de querelantes que vão a um juiz
cada um querendo fazer valer as suas razões, como
nos atos administrativos em que o funcionário (alto ou
61 Cf. MONTESQUIEU — De l’Esprit des Lois, I,I., CONDILLAC,
Logique, I, V. SOURIOUX, Jean-Louis — Introduction au Droit, Paris,
PUF, 1987, p.27.
62 Sobretudo no Direito Internacional e em algum direito da União
Europeia que, todavia, cada vez parece crescer mais em imposições e
não simples recomendações: o que é a natural consequência de uma
mais forte integração, nomeadamente jurídica, hoje com o Tratado de
Lisboa, depois de muitas vicissitudes de desenho e redesenho e
tentativas de mais formal constitucionalização. Cf. Novo Direito
Constitucional Europeu, Coimbra, Almedina, 2005. Mais recentemente, o
nosso livro (em colaboração com Joana de Aguiar e Silva e António
Lemos Soares), História do Direito, Coimbra, Almedina, 2005. A segunda
edição (em preparação) trará já breves atualizações sobre a questão
europeia.
17
6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

baixo) da Administração pública tem de optar por uma


ou outra solução, ainda que seja apenas carimbar ou
não carimbar um documento.
Em correlação com estas dimensões da ação
jurídica não olvidemos que o Direito, analisado a partir
do célebre e profundo brocar de Ulpiano constans
etperpetua… é uma arte de atribuição, concreta, com
rigor, para a Justiça63.

63 Para mais desenvolvimentos, v. o nosso Filosofia do Direito, 3.ª ed.,


p. 350 et sq..
17
7
Capítulo II
Valores, Princípios e Fins do Direito

1 .A Justiça: fundamento, princípio e fim do


Direito
Como temos vindo a observar, a Justiça é, ao
mesmo tempo, princípio (ou fundamento) do Direito e a
sua finalidade ou fim64. Além disso, é ainda valor e
virtude. Porque o Homem é livre, racional e capaz de
Justiça há Direito, tem de haver Direito; e há-o e tem de
havê-lo para que seja feita Justiça. O Direito é objeto da
Justiça e caminho para ela.
A Justiça é, pois, o alfa e o ómega do Direito: o
seu pressuposto a sua razão de ser. Dizia Platão não
poder haver Justiça sem homens justos. Aí está: porque
a Justiça é um ser ao menos latente nos Homens, eles
criaram o Direito, e fizeram-no para que houvesse mais
Justiça, isto é, mais Homens a praticarem- na, mais
64 Note-se que se trata do fundamento e do fim específico do Direito,
sem embargo dos não específicos. Além da Justiça pôde ainda dizer-se
serem fins do Direito, por exemplo, a Segurança ou o Bem Comum. Cf.,
v.g., RADBRUCH, Gustav — Cinco minutos de Filosofia do Direito, in
Filosofia do Direito, p. 417. Porém, a segurança é um fim secundário:
mesmo uma lei injusta (que não é Direito) transporta em si esse valor.
Quanto ao Bem Comum, conceito particularmente rico (e por isso até
ambíguo) sobretudo a partir de S. Tomás de Aquino, pare-ce ser mais
um fim geral da Sociedade e do Estado que especificamente do Direito,
que é apenas uma parcela do social e do normativo, com fim específico.
Definir Lei como a ordenação racional criada para o Bem Comum pelo
sujeito público responsável pela Comunidade (Summa Theologica, Ia
IIae, q. 90, art. 4), seria, nesta perspetiva, economizar uma etapa,
porquanto o Bem Comum se atinge, no que ao Direito respeita, por meio
da obtenção da Justiça. Esta é condição daquele, dado não poder haver
Bem Comum sem que a cada um seja atribuído o que é seu. O Bem
Comum afigura-se-nos mais geral, enquanto a Justiça é individualizável.
E atentemos em Santo Agostinho: " ... nada pode fazer feliz o Estado
senão aquilo que torna feliz o indivíduo."
17
8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Homens justos. Importa sublinhar este aspeto, porque


não há valores que valham se se quedarem no céu dos
conceitos. Têm de ser assumidos pelas Pessoas reais,
concretas, viventes. Não há sociedades felizes sem
indivíduos singulares felizes, não há sociedades justas
sem cidadãos individualmente justos. Pode haver vícios
privados com virtudes públicas. Mas nunca com a
virtude geral. Embora seja necessário muito cuidado
para não exigir juridicamente que as pessoas sejam
santos, heróis, sábios, etc.. O Direito não é moral nem
religião: tem de conviver com algum grau de
imperfeição humana (non mone quod licet honestum
est), sob pena de criar totalitarismos, hipocrisias vis,
monstruosidades – como aliás historicamente já
ocorreu. O clamor por pureza, por ordem, por
honestidade é frequentemente o álibi dos candidatos a
ditadores, que, se individualmente podem por raras
vezes nem ser corruptos, contudo, graças ao estado de
coisas não controlável que criam e permitem que se
instale, são culpados ao menos moralmente por um
clima de alta corrupção e exceção encobertas à sombra
da inexistência de liberdade de expressão.
Também pode existir uma ordem geral
globalmente justa com injustiças particulares e
localizadas de índole jurídica. Por exemplo, hoje em dia
há, em alguns países, a vigência formal e constitucional
de uma macrodemocracia, porém com bolsas pontuais
de falta de democracia civil e ameaças públicas à
macrodemocracia. Há, portanto, um certo déficit de
Justiça. Que, além do mais, é um objeto sempre
distante. E por isso é necessário procurá-la e por ela
lutar com constante e perpétua vontade.

17
9
Paulo Ferreira da Cunha

2 . Justiça: Valor, Princípio e Fim do Direito


Pela palavra Justiça se designam várias
realidades, com lugares diferentes numa análise
anatómica e fisiológica do Direito, como vimos: Ela
pode ser Valor e Virtude (no plano ético 65) e valor
jurídico-político superior, com sede nas Constituições,
pode ser princípio, fim, etc.. Nem sempre se fala da
mesma coisa quando se invoca a Justiça. É, afinal, uma
deusa proteiforme.
Analisemos agora os princípios e fins mais
concretos do Direito. Estes últimos são finalidades
parciais ou instrumentais da Justiça: os fins da
segurança, do equilíbrio (isonomia), da ordem, da paz
social, etc., etc. Os primeiros, mais complexos ainda,
revelam-se problemáticos na definição do seu próprio
elenco, nas relações entre si, etc.
Ao contrário do que sucedia com as funções-
meios do Direito, muito estilizadas e globais, os
princípios jurídicos tendem a concretizar-se um tanto
mais. E para isto terá contribuído o Direito Internacional
Público, que, à falta de legislação comum entre os
Estados, quando é chamado a decidir dos litígios entre
estes, com frequência apela, para as suas concretas
decisões, para tais conceções supremas da
juridicidade. E certos direitos nacionais, como o
brasileiro (na lei de Introdução ao Código Civil, art.º 4º),
preveem até o recurso aos princípios gerais do Direito
em casos de integração de lacunas66.

65 V. o nosso livro Para uma Ética Republicana, Lisboa, Coisas de Ler,


2010.
66 Art. 4.o “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com
a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”
18
0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Há, contudo, alguma divergência – muito natural,


aliás – a propósito de que possam e de quais possam
ser os ditos princípios. E também há divergências
quanto aos fins.
Contudo, os grandes autores dão em geral
sínteses de grande valia. É o caso de Michel Villey, no
seu Manual de Filosofia do Direito: "O Direito não
persegue a utilidade, o bem-estar dos homens, a sua
segurança, o seu enriquecimento, a ordem, o
progresso, o crescimento; pelo menos tal não é o seu
objeto próximo, direto, imediato. Distinguiremos a arte
do Direito da Política e da Economia. O Direito é
medida da partilha dos bens (
... ), o papel do Direito é o de atribuir a cada um o que é
seu.". Essa atribuição, a constante e perpétua vontade
de fazer essa atribuição, é a Justiça. Parece que
andamos em círculos, mas não importa muito, se
sempre nos encontrarmos com a Justiça.

3 .Princípios doutrinais e princípios


essenciais ou
fundamentais
Parece claro que os princípios podem ser (e são,
de facto), duas coisas distintas: por um lado, são
decantações dogmáticas, doutrinais, generalizações ou
similares que, a partir de normas, se produzem
intelectualmente pelos labores da doutrina; por outro,
são grandes ideias-força carregadas de juridicidade que
vêm a ser encarnadas, sob diferentes formas, em
regras concretas, dependendo do tempo e lugar o seu
modus circunstancial, mas referindo-se sempre a tal
18
1
Paulo Ferreira da Cunha

inspiração básica.
É evidente que os princípios de índole dogmática,
doutrinal (os primeiros que acabámos de referir) só têm
interesse de organização metodológica, sistematização,
e importância didática. Muito mais fundantes são os que
realmente polarizam grandes ideias de Justiça, para
além da decantação a partir das regras concretas, e,
pelo contrário, funcionando como inspiração e
imposição do alto da sua auctoritas axiológica superior.
As Constituições principiológicas (estudadas, por
exemplo, por um Paulo Bonavides no Brasil), e o
Estado Constitucional nelas fundado, deram uma
enorme esperança à renovação jurídica, pela decisiva
superação do legalismo pedestre, que sufocava a
respiração da Justiça.
Contudo, em alguns casos, caiu-se num abuso da
invocação de princípios, por vezes a torto e a direito, a
propósito e sem propósito, para justificar tudo e o seu
contrário. Especialmente se esgrimiu com a dignidade
da pessoa humana e o princípio da proporcionalidade,
gazuas abridoras de todas as portas ao serviço de um
ativismo judicial67 nem sempre respeitador de todos os
requisitos jurídicos (desde logo, da separação dos
poderes).
O exagerado uso dos princípios, porém, não
anula a necessidade de os ter em alta conta na
hermenêutica jurídica. Apenas, aqui como em tantos
outros assuntos, se requer uma aplicação segundo o

67 RAMOS, Elival da Silva — Ativismo Judicial. Parâmetros Dogmáticos,


São
Paulo, Saraiva, 2010.
18
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

bom senso68. Não um bom senso mitificado como


meias-tintas ou mediocridade, mas um bom senso que
compreenda realmente as realidades em presença e
atue com prudência. A prudência é, com a Justiça, alta
virtude dos Juristas.

4 .Princípios fundamentais de origem lógico-


construtiva e princípios fundamentais de
origem comparatística
O caso dos princípios fundantes essenciais, ou
fundamentais (os segundos a que aludimos) é bastante
complexo.
Há vários pontos de vista a seu propósito. Uns,
confundindo um tanto princípios doutrinais com
princípios fundamentais, admitem a sua importância e
aplicação numa base lógica, na medida em que a sua
existência se extraia dos textos positivos de um
concreto ordenamento jurídico. É uma posição estreita
e estrita, positivista, e que confunde a importância
relativa dos elementos em presença: o fundamental, o
causante, é o princípio, e a norma, o causado, o
acidental; não o inverso.
Outros, numa visão um pouco mais englobante,
transcendem os horizontes jurídicos de um Estado, e
procuram na comparação de direitos similitudes
passíveis dessa generalização. É uma atitude ainda
positivista, com pressupostos semelhantes aos da
primeira, mas de horizontes bem mais desnublados, a
qual se deve louvar pelo esforço do cotejo. Contudo,
necessariamente sociológica ou antropológica, acabará
68 V. o nosso Desvendar o Direito, p. 149 et sq..
18
3
Paulo Ferreira da Cunha

por também fracassar, sobretudo se levar a


comparação até às suas exaustivas consequências.
Exaustivas e improfícuas, aliás. Porque, se o
positivismo "nacionalista" confinava os princípios gerais
de Direito aos passíveis de dedução dos textos da
ordem jurídica considerada, e não mais, num
reducionismo lógico e chauvin, agora o positivismo
"internacionalista" poderá recusar como geral o que
está largamente difundido e entre os povos civilizacional
(e juridicamente) mais "avançados"63, sob pretexto de
tal não ser aceite (por hipótese) por um ou uma meia
dúzia de povos minúsculos e recônditos, que façam
finca-pé numa interpretação sui generis do mundo, do
Direito e dos direitos... Ou então porque algum ou
vários Estados mais poderosos eventualmente se
recusem, ainda que episodicamente, a submeter-se ao
próprio Direito Internacional, tal a sua imagem de
grandeza e auto-suficiência (não, decerto, o seu
interesse bem entendido).
E não se pense haver aqui qualquer
etnocentrismo69, pois poderá ser o contrário: ou seja, a
afirmação de universalismo. A
63
Por exemplo, os ditos “princípios comuns às nações civilizadas”, do
Direito Internacional – que hoje têm de ser interpretados como os do
direito democrático, das nações democráticas, entendida democracia
69 No limite, sempre os universalismos serão disso acusados, se os
localismos e os particularismos aprenderem bem esse discurso
legitimador do solipsismo – e por vezes até de práticas contrárias aos
Direitos Humanos. Compreende-se que haja globalização muito
incómoda e inestética para folclorismos, exotismos, etc. Mas o
espantalho da Nova Ordem Mundial, da Conspiração Mundial, do
Governo Mundial, com narrativas que lembram o do Protocolo dos
Sábios do Sião (uma falsidade forjada) já começa a cansar os espíritos
mais tranquilos e críticos. O que ocorre é que é preciso universalizar
cada vez mais a democracia, os direitos humanos. E por toda a parte
esse património comum da Humanidade está a ser integrado na
pluralidade das culturas.
18
4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

num sentido mínimo e clássico, não já apenas ocidental, mas universal,


embora com essa raiz. Cf. o nosso Pour une Cour Constitutionnelle
Internationale, em colaboração com Yadh Ben Achour, Oeiras, A Causa
das Regras, 2017.

questão está a tornar-se cada vez mais polémica, mas


não se pode deixar de a encarar.

5 .Os Princípios Fundamentais dos


Jusnaturalismos
O terceiro grupo de posições a propósito desta
questão filia- se nos jusnaturalismos. E tudo fica, assim,
mais clarificado. Que são os princípios gerais
(fundamentais) senão as “normas”, generalíssimas, de
Direito Natural, positivadas e aplicáveis, ou (eventual e
malfadadamente) não?
Nesta perspetiva, obviamente, o problema fica
remetido para a questão do Direito Natural, havendo por
consequência que distinguir entre princípios gerais de
aplicação e vigência mais ou menos imediata.
Referindo-nos exclusivamente aos mais
comummente aceites importa, antes de mais, prevenir
que o conflito entre eles é corrente, devendo os mais
mediatos (e muito em especial o sentido e valor da
Justiça) arbitrar as fricções e antinomias, em cada caso
concreto. Daí, também, a enormíssima importância
atualizadora (e criadora) do Direito que deve ser
cometida a uma sábia esclarecida e bem formada
magistratura judicial.
Como boa parte dos clássicos princípios de
Direito Natural oitocentistas (e alguns mais modernos)
acabaram por ser recebidos pelas Declarações de
18
5
Paulo Ferreira da Cunha

Direitos e pelas Constituições modernas, como


referimos, especialmente pelas constituições a que
poderemos chamar “cidadãs”, o problema de
antinomias entre eles acaba por redundar, na prática,
em problemas de hermenêutica constitucional. Esta
situação retira a discussão do céu dos conceitos mais
filosófico-especulativo, para a fazer operar com
categorias constitucionais, mais técnicas. E assim é
que, em geral, a maioria dessas antinomias terá que ser
resolvida de acordo com princípios hermenêuticos
constitucionais. No caso, fundamentalmente, o princípio
da unidade da Constituição e o princípio da
concordância prática70.
Para alguns é fácil ver nas Constituições,
necessariamente compromissórias, uma parte que
agrada e outra que desagrada, e tentar remeter esta
para revisão constitucional, ou mesmo para um
anátema de normas constitucionais inconstitucionais.
Mas, pelo contrário, o que se pretendeu foi a
convivência dessas perspetivas diferentes: por
exemplo, o individual e o social, a propriedade privada e
a coletiva, social, estadual, conforme os casos, o
liberalismo e a preocupação ou solicitude social, etc.

6 .Princípios fundamentais na ordem jurídica


portuguesa
Vigora entre nós um princípio geral de Justiça e o
princípio geral positivo-regulador do abuso do direito (cf.
art.º 334.º C.C.). Em síntese, talvez se possam referir
70 Sobre os princípios hermenêuticos constitucionais, cf. o nosso Direito
Constitucional Geral, Nova Edição (2.ª), aumentada, revista e atualizada,
Lisboa, Quid Juris, 2013, p. 357 et sq..
18
6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

como princípios fundamentais de Direito (Natural, mas


positivado — tendo, por isso aplicação, e aplicação
superior: e muito menos sujeita a discussão), os
seguintes (agrupados por ramos jurídicos):
Direito Constitucional – antes de mais, o mega-
princípio do respeito pela dignidade da Pessoa
Humana; os princípios do Estado Constitucional (Estado
de Direito democrático, social e cultural, etc.) neles
ressaltando, desde logo, os princípios constitucionais
liberais (essenciais) — direitos fundamentais
(liberdades e garantias); separação dos poderes e
equilíbrio dos poderes (não concentração tendencial do
poder nos mesmos titulares, órgãos, etc. e
independência do poder judicial); princípio do Estado
Social (donde resulta o direito a um mínimo de
subsistência digna, e princípios de garantia de uma
saúde, segurança social, educação, justiça, etc.
consentâneas com o modelos social europeu).
Direito Administrativo e Fiscal — legalidade
dos atos da administração (atuação da Administração
Pública, com vista ao interesse público, dentro do
quadro da lei); contenciosidade (recorribilidade ao poder
judicial) dos atos da administração.
No Direito Fiscal — além dos princípios da
legalidade, igualdade (de todos perante a lei), etc.,
fundamentalmente os da proporcionalidade (não
cobrança de impostos ou taxas senão na medida das
necessidades públicas) e da não retroatividade do
lançamento de tributos (todavia questionados).
Direito Penal — legalidade e tipicidade da
incriminação e da punição (insusceptibilidade de haver
18
7
Paulo Ferreira da Cunha

crime ou pena sem a existência de prévia lei


incriminadora; insusceptibilidade de incriminação ou
penalização retroativa); dependência da pena da culpa
(não pode haver pena sem culpa, sendo esta a medida
daquela).
Direitos Processuais — princípio da jurisdição
(possibilidade de tutela dos direitos, recurso ao tribunal,
obrigação do juiz decidir); princípios da audiência das
partes em litígio; princípio do recurso (para outras
instâncias); princípio do caso julgado; princípio da
independência do poder judicial.
Direito Social e do Trabalho — o carácter
isonómico do Direito social (de proteção do mais fraco,
que nunca terá o sentido de o tornar o mais forte,
desequilibrando de novo, mas de parificar as partes,
permitindo-lhes uma autêntica liberdade contratual); o
princípio coletivo (vários sujeitos contratantes,
tipificação contratual, carácter normativo — geral — do
conteúdo dos contratos coletivos); o princípio da
colaboração ou participação dos trabalhadores na vida
empresarial; o princípio da liberdade sindical; o princípio
da humanização do trabalho, designadamente com o
direito ao salário, ao horário de trabalho, a pausas, a
férias, a aposentadoria (reforma), etc.
Direito Privado — os princípios da personalidade
e capacidade jurídica e direitos de personalidade como
próprios de todas as Pessoas; princípio da autonomia
da vontade e da liberdade contratual, princípio da
responsabilidade civil, princípio da boa fé como
pressuposto de toda a conduta jurídica, e contratual em
particular; princípio do cumprimento das obrigações
assumidas: pacta sunt servanda; princípio do equilíbrio
18
8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

contratual (proscrição dos pactos leoninos,


enriquecimentos sem causa, etc.); princípios da
proscrição dos negócios impossíveis, contrários à lei,
aos bons costumes, ordem pública, etc.; princípios da
proteção da formalização do crédito; princípios do
reconhecimento e proteção da propriedade privada a
par de outras formas de propriedade
constitucionalmente previstas; princípio da autonomia
da família, sua liberdade de constituição, etc.; princípio
da igualdade e não discriminação jurídica entre os
cônjuges, etc.; princípios da sucessão por morte, etc.

7 .Macroanálise e Microanálise dos princípios


fundamentais.
Relatividade e importância
Nenhum ou quase nenhum destes princípios,
porém, alcançará, sem dúvida, uma unanimidade
completa. Foram eles pensados sobretudo a partir da
tradição e da realidade nacionais, e por isso levam o
cunho de origem. Decerto não valem alguns noutras
ordens jurídicas; decerto têm, mesmo entre nós,
sabidas exceções. Outros, ainda são alvo de fortes
abalos pelas sacudidelas ou sismos teóricos da doutrina
especializada. Ao microscópio tudo é um fervilhar
constante. À vista desarmada, macroscopicamente, as
realidades parecem mais consistentes e homogéneas.
Foi isso o que pretendemos mostrar com esta descrição
sumaríssima: uma visão do edifício (que se sabe ter
brechas, orifícios, partes em ruínas e outras em
construção) pelo seu ângulo ainda minimamente visível.
18
9
Paulo Ferreira da Cunha

É sem dúvida um ar de pose. Mas, apesar das críticas


pontuais e dos desajustamentos mais ou menos
localizados, ainda vão sendo basicamente aqueles os
princípios que nos quatro cantos do mundo jurídico vão
sendo nos tratados, nos tribunais e nas assembleias.
Com algumas flutuações, tem sido essencialmente este
o legado do jusnaturalismo não puramente ideado mas
aceite ao menos como denominador comum de
variadas disposições legais, e de muito diversas
realidades jurídicas nacionais. Não é mais o Direito
Natural conceitual, retórico, idealista, é a sua vivência
real, mesmo por quem se obstina em negá-lo.
Evidentemente que algumas novidades
doutrinais, e uma ou outra inovação legislativa poderão
dar lugar à ideação de mais princípios. Cremos,
contudo, que será decerto melhor esperar um pouco
pelo levantar do voo noturno de uma coruja de uma
Minerva jurídica, para ver quais as correntes que se irão
desenhar na doutrina e também na jurisprudência. Não
nos devemos precipitar a enunciar princípios que
podem ter formulações mais elaboradas num futuro
talvez próximo. Atrevemo-nos já a formular a opinião de
que dois importantes princípios (não muito antigos) do
Direito Constitucional, a chamada reserva do possível e
a chamada proibição do retrocesso talvez ganhassem
em ser vistos em perspetiva e equilíbrio, e não em
oposição71.
E talvez haja um mega-princípio ainda não
formulado, que permita não aplicar uma reserva do

71 Cf. o nosso artigo Dos Princípios positivos e dos princípios supremos,


“Collatio”, vol. 11, abr.-junho 2012, pp. 5-16, ed. online:
https://www.academia.edu/1492794/Dos_Princ
%C3%ADpios_Positivos_and_do s_Princ%C3%ADpios_Supremos.
19
0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

possível contra adquiridos sociais e civilizacionais (por


exemplo, a pretexto de crise financeira, fechar o Serviço
Nacional de Saúde) e não aplicar uma proibição do
retrocesso visivelmente ruinosa em tempos de crise
(frente à iminência de uma bancarrota insistir em
gratuitidades de serviços públicos suscetíveis de ter
alguma compensação ou “taxa moderadora”).

19
1
Parte IV
Linguística:
Aceções do termo “Direito”

1 ."Direito": rumo a uma racionalização


sistemática
Agora que já sincreticamente convivemos um
tanto com o Direito, continuemos a consciencializar o
que fomos insensivelmente apercebendo ao longo das
nossas primeiras conversas com o mundo jurídico.
Quem se não deu conta de que há certos pormenores,
ou até dadas realidades patentes, só apercebidas após
um momento de pausa e reflexão, após um
considerável (e por vezes longo) contacto?
Chamar a atenção imediatamente para tais
características, sem um contacto minimamente
significativo (emotivo, até) seria votar o tema ao
esquecimento ou à simples memorização. Agora que
tomámos um certo contacto e nos fomos apegando à
personagem Direito, estamos em condições de a
questionar melhor. Por isso, procurámos ir pondo os
pontos nos ii e racionalizando o que afinal já sabíamos,
talvez de forma não ordenada.
Veremos agora as aceções que o termo foi
assumindo ao longo das páginas já percorridas (e das
que se seguirão), ou seja, mais ou menos os fatos ou
as máscaras da personagem "Direito".
19
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Há pouco era uma entidade em ação, vivente em


situações correntes, problemas atuais, discussões entre
correntes. Agora é um outro tipo de estudo, mais
depurado, com o intuito de saber com estrutura,
princípio, meio e fim. Por isso, é natural que a
temperamental personagem, proteica, de mil faces
nestes últimos capítulos experimente algumas
mutações. Forçoso é tirar alguma vida, organizar em
compartimentos conceituais o vigor e colorido do agora
objeto de análise. Mas é um preço a pagar pelo seu
conhecimento profundo.
As pessoas mais turbulentas também sustêm a
respiração quando se submetem a uma radiografia. E o
que vamos ora fazer é um pouco a microanálise do
Direito: algo semelhante, afinal, à sua radiografia.

2 .Estudo do Direito, trabalho de Sísifo


Como dissemos — e sobretudo como fomos
vendo já, e não apenas no texto, mas no quotidiano —,
a palavra Direito pode ser usada (e é-o) em múltiplos
sentidos. Se tivermos dúvidas, uma releitura atenta das
páginas anteriores bastará para as dissipar. O estudo
do Direito é como a tarefa de Sísifo: rolar a pedra até ao
cimo da montanha, vê-la resvalar até ao sopé, e mais
uma vez iniciar a subida — mas conhecendo o caminho
cada vez melhor. Insensivelmente, fomos utilizando
(vamos utilizando) a palavra para designar realidades
diferentes. Já o sabíamos, temos que estar preparados
para isso no futuro, e é bom que estabeleçamos os
sentidos comuns, corretos e possíveis.

19
3
Paulo Ferreira da Cunha

3 .Definição, descrição, aceção e tópica


Antes de mais, porém, recapitulemos um pouco
como o problema das aceções do Direito se prende à
opção pela noção tópica de Direito, e não pelo conceito
dogmático e definitório de Direito.

Quando se procura compartimentar no acanhado


espaço de uma noção uma ideia ou uma expressão
riquíssima em polissemias, plena de significados e
ressonâncias, multiplicam-se baldados esforços. Uma
única fórmula para encerrar a vastidão do tema está
votada ao insucesso, e ao pior: é que sempre surgirá
uma nova versão criticando e procurando corrigir a
anterior. É assim que as noções de Direito são
caleidoscópicas, infinitas. Cada autor, jogando o jogo de
espelhos com as conhecidas, e procurando um campo
visual outro, um ângulo especial do seu pessoal ponto
de mira, vem propor a sua própria, com escasso
proveito e progresso, no geral72.
Ora, em lugar de se definir o Direito, ou mesmo,
mais modestamente (e afinal com maior rigor), propor
uma noção (que pode também ser uma versão
sincrética, ou a pré-existência de uma definição), dado
ser ele uma realidade factual e cultural
extraordinariamente complexa, há autores que propõem
antes uma descrição do do Direito. Tal descrição
baseia-se num método aproximativo e plural: em vez
de, de um dado ponto de vista, mirar a realidade
pretensamente objetiva "Direito", trata-se de reconstruir
tal realidade à luz de múltiplas focalizações, e de ver

72 Cf. LECLERCQ, Jacques — Do direito natural à sociologia, trad. port.,


São
19
4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

sob as diversas roupagens em que nos vai surgindo.


Isto é, à visão normativa e exclusora do ser ou não ser
Direito, através de listas de atributos positivos e
características negativas, substitui-se uma visão
fenomenológica, que vai aceitando o fenómeno jurídico
tal como ele se vai, em multiplicidade, revelando. Da
noção se passa então, no limite ao elenco de “aceções”
de Direito. Estas aceções são também facetas tópicas
da juridicidade. Ela se manifesta em todas essas formas
de ir vendo o Direito, embora, evidentemente, haja
muito mais tópicos que as aceções.
4 .Principais aceções do termo "Direito"
Claro que o exagero penetrou também esta
conceção, e não só se passou a ter como essência do
jurídico o que dele era simples manifestação, como, no
inventário das epifanias do Direito, se chegou a falar em
mais de duas dúzias de aceções. Entia non sunt
multiplicanda: não fiquemos, pois, nem na tacanhez da
simples divisão entre direito objetivo e direito subjetivo,
como era tradicional (e ainda por cima confundindo o
significado do direito objetivo com o direito normativo),
nem enveredemos pela ínvia senda da floresta eriçada
de preciosismos, de nuances.
Poderemos ver vários usos da expressão direito
neste passo de Carlos Santiago Nino: "A Constituição
garante o direito de peticionar ante as autoridades. O
Direito espanhol estipulava a pena de morte por garrote
para alguns delitos. O Presidente da Nação tem direito
de vetar uma lei do Congresso. O direito penal
argentino ajusta-se a certos princípios liberais. O direito
requer dos seus cultores uma aguda capacidade
analítica para perceber as consequências das normas

19
5
Paulo Ferreira da Cunha

gerais em situações particulares. “Direito” traduz-se' em


alemão por Recht. Diferentes circunstâncias
socioeconómicas podem influir na evolução do direito
de um país. A carreira de direito é mais longa na
Argentina que nos Estados Unidos”73.
Mas certamente meia-dúzia de aceções parecem
bastar-nos para compreendermos os recortes da
realidade Direito, seguindo a lição do nosso mestre
romanista Sebastião Cruz74:

68
NINO, Carlos Santiago —- Introducción al análisis del Derecho, l.ª ed.
espanhola, Barcelona, Ariel, 1983 [2.ª ed. argentina, Buenos Aires,
Astrea, 1980], tradução nossa.

1) - sentido normativo – corpo de normas, texto de


leis e
regras em geral, realidade do corpus iuris.
2) - sentido subjetivo – direitos, pretensões,
posições
subjetivas, pessoais dos entes de Direito. Possibilidade
de agir individual ou coletivamente, em princípio com
base no corpus iuris (sentido anterior), ou com base em
direitos naturais ou humanos.
3) - sentido objetivo – conteúdo do direito subjetivo.
Classicamente a própria coisa justa. Na compra e
venda o preço e a coisa vendida, por exemplo.
4) - sentido topológico – os lugares da Justiça,
especialmente
os tribunais.

73Paulo, Duas Cidades, s/d..


74 CRUZ, Sebastião — Direito Romano, I. Introdução. Fontes, 3.ª ed.,
Coimbra, ed. Autor, 1980.
19
6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

5) - sentido epistemológico – O estudo, o corpo de


saberes, o
Direito enquanto disciplina ou episteme.
6) - sentido patrimonial – o suum de cada um, e,
mais
concretamente, os bens de cada um.

19
7
Parte V
Metodologia:
Fontes de Direito

Sumário:
Capítulo I
Sentidos da expressão “Fontes de Direito”
Capítulo II
Fontes do Direito em sentido técnico-jurídico — análise
global
Capítulo III
Fontes do Direito em Sentido Técnico-jurídico —
análise especial
Capítulo IV
Hierarquia das Fontes de Direito
Capítulo V
Conclusão

19
5
Capítulo I
Sentidos da expressão “Fontes de Direito”

1. Fons juris: a partir de uma metáfora


As palavras têm um grande papel em Direito. E
as imagens, e as metáforas. A própria palavra Direito é,
como bem se reconhece, uma metáfora75.
A técnica, o método e o seu estudo (a
metodologia jurídica), não seriam certamente a mesma
coisa se não baseássemos o nosso conhecimento,
inspiração e hermenêutica neste instrumento ao mesmo
tempo cristalino e tão complexo que são as Fontes do
Direito. E parece que, como veremos, nem sempre se
teve esta intuição genial, tão criativa. Não quer dizer
que não houvesse antes fontes. Mas não seriam
certamente apercebidas como tais. Isso faz a diferença.
Como sucede em várias questões jurídicas,
parece começarmos por estar diante de um conceito
pouco menos que não rigoroso (se formos, da nossa
parte, muito rigorosos na exigência de univocidade
semântica), tal a sua polissemia, decorrente da
variedade de interpretações permitidas para a
designação a elas comum (significante, designação,
comum; mas vários significados) 76. Tudo parece
75 CRUZ, Sebastião — Ius. Derectum (Directum)…, Relectio, Coimbra,
ed. do autor, 1971.
76 Se o ser divertido dependesse da variedade de opiniões, os juristas
seriam certamente os profissionais mais divertidos de entre todos, pois
se multiplicam as doutrinas, já o parece ter lembrado HERVADA, Javier /
ANDRES MUNOZ, Juan — Derecho. Guía de los Estudios Universitarios.
Pamplona, EUNSA, 1984; há uma edição portuguesa: HERVADA,

19
7
Paulo Ferreira da Cunha

derivar, afinal, do facto de a expressão, traduzida do


latim fons juris (a qual deve o seu nascimento ao
célebre orador, tratadista e homem de Estado romano
Cícero), ser, obviamente, uma metáfora. Metáfora é
transposição, transporte. Ainda hoje se podem ver na
Grécia grandes veículos de mudanças com esse nome.
A metáfora transporta ideias de um lado para o outro.
Ou palavras para ideias…
Metáfora, pois, um elemento poético no Direito,
impreciso e polissémico por excelência. Não é de
admirar, assim, que haja de fazer uma criteriosa
subdivisão de tipos ou formas de encarar as fontes
jurídicas. Porque, no essencial, naquilo que a expressão
por si própria diz, que temos? Alguma coisa como isto:
fontes de direito parecem ser os locais onde vamos
colher (e donde jorra) a pura, a cristalina água lustral do
Direito. Ou, valha a verdade, por vezes menos pura.
A expressão não é exclusiva do Direito (desde
logo ela é muito importante na Historiografia, ou
História). O grande escritor e professor de Literatura que
foi Vitorino Nemésio, assim evoca a questão:
“A ideia de fonte é uma ideia geral e técnica da
história, que repousa numa das mais antigas imagens
do mundo. O princípio da causalidade e o conceito de
origem exprimem-se por ela tão vitalmente que fons
vitae (fonte da vida) talvez seja o seu primeiro padrão.
Tudo quanto promana ou flui, flui de algo, e é natural
que a água, como um dos quatro elementos, tivesse
fornecido o símile”77.

Javier / FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Direito. Guia Universitário,


Porto, Rés, s.d. [1990]).
77 NEMÉSIO, Vitorino — Conhecimento de Poesia., Lisboa, Verbo, 1970.
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

E em Direito não se trata, como veremos já, de


uma fonte única, ou, se o fosse, seria como essas
fontes termais de sete bicas, das quais brotam outros
tantos tipos de líquidos milagreiros. Na verdade, de
cada bica ou de cada fonte corre uma variedade ou
qualidade de Direito diferente das outras. É esse o
sentido de haver uma pluralidade de fontes.
A metáfora é, efetivamente, uma das mais
plásticas, das mais sugestivas formas de revelar um
pensamento ou uma realidade complexos. Trata-se,
afinal, de algo de vivo, sempre pronto a dotar-se de
sentidos, a encarnar as facetas que uma ideia- base
possa comportar: tal sucede com fons iuris.
Antes de tudo o mais, antes de pensarmos nas
específicas fontes técnico-jurídicas, das quais nos
chega o Direito na perspetiva que ora nos importa,
como modos de formação, ou nascimento, ou
manifestação do jurídico enquanto jurídico, rectius,
enquanto algo juridicamente positivado, antes disso,
devemos, muito brevemente, aludir a outras aceções da
expressão.

2. Fontes do Direito em sentido histórico


No caso do entendimento das fontes em sentido
histórico, trata-se de aludir a inspirações ou causações
entre normas, institutos ou mesmo instituições e
sistemas de direito (ordens jurídicas) num plano de
encadeamento temporal. E tal pode suceder intra-
sistematicamente (no seio de uma ordem jurídica
nacional-estatal) ou extra-sistematicamente.

19
9
Paulo Ferreira da Cunha

Por exemplo: Numa sucessão não linear de


ordens jurídicas, é claro que o Direito Romano é fonte,
em sentido histórico, do Português ou do Brasileiro. E
também o Direito Visigótico em menor grau, decerto (as
ondas de influência vão-se perdendo com o tempo, a
distância, a interposição de influentes influenciados
“pelo caminho”). Mas já, por exemplo, tem sido o Direito
alemão contemporâneo uma importante fonte imediata
de diplomas legais portugueses, a começar pelo Código
Civil. Outras vezes, é a doutrina moderna de um país
que vai ser acolhida por outro — sucede-nos isso em
matéria penal, por exemplo, onde somos novamente
tributários da influência germânica. Mas as fontes
começam a diversificar-se. E a univocidade delas
começa a ser coisa do passado. Que sentido teria um
país independente apenas ir buscar inspiração neste ou
naquele outro? As comunicações rápidas e plurais
ajudam também a essa tendencial pluri-influência, que é
enriquecedora.
No Brasil, além da origem inicial lusa,
compreensível historicamente, mais tarde ter-se-ão
verificado várias outras influências. Note-se, por
exemplo, a importância do modelo estadunidense em
aspectos do Direito Constitucional78.

78 MONTORO, André Franco — Estudos de Filosofia do Direito, São


Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, desenvolve o tema do “colonialismo
cultural e transplantes de Instituições Jurídicas”, especialmente nas p. 86
et sq. e p. 98 et sq.. O tema é sobretudo atual em países que
experimentaram situações coloniais, e está à espera de grandes,
profundos, inovadores e desempoeirados (sem preconceitos) novos
estudos.
20
0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

3. Colonialismo e estrangeiramento jurídicos.


A globalização jurídica
Não se pode esquecer que na matéria da
influência e da originalidade, há várias questões a ter
presentes. Antes de mais, há teóricos que dela não
partilham, por não a acharem metodologicamente
própria dos estudos jurídicos79.
Mas se acolhermos esse paradigma80, embora
com cuidados e precauções, e submetendo-o a rigorosa
análise pós-disciplinar (acolhendo estudos de outras
áreas do saber), não se deixará de entender que a
influência entre ordens jurídicas ou seus aspetos
particulares, funciona tanto no sentido do influenciador
sobre o influenciado (que é o típico do imperialismo e do
colonialismo jurídicos), como no sentido do influenciado
que está por vezes ávido de imitar o influente (como
manifestação do complexo estrangeirado).
Não deixa de ser interessante e motivo para
meditação que a autonomia e independência da ordem
jurídica de um país por vezes já chegou ao estágio de
libertação de colonialismos, mas nem sempre de
imperialismos e menos ainda de estrangeiramentos. E é
mais complexo e subtil ainda o fenómeno de amor-ódio
(ou ódio- admiração-complexo) face a fontes coloniais
ou imperiais... Ao ponto de um observador imparcial
ficar sem entender bem, em momentos e situações
diferentes, qual o sentimento que prevalece.

79 Cf. BRAZ TEIXEIRA, António — Sentido e Valor do Direito. Introdução


à FilosofiaJurídica. 3.ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2006.
80 Cf. o nosso livro Constitution et mythe, Quebeque, Presses de
l’Université Laval, 2014, p. 27 et sq..
20
1
Paulo Ferreira da Cunha

Contudo, há uma outra dimensão a ter em conta:


a globalização jurídica. A primeira vaga foi, realmente,
com os Descobrimentos e conquistas dos países
ibéricos. Infelizmente, decerto, não foi o direito
propriamente português ou espanhol que eles
universalizaram, mas o direito romano com modulação
germânica, como bem recorda Agostinho da Silva81. Um
direito imperial, e sem dúvida com funções imperialistas.
Embora já com aspetos de plasticidade universal, como
este autor luso-brasileiro iconoclasta também
reconhece.
Na nova vaga de globalização jurídica, ainda a
estudar com mais detença, podem ver-se aspetos
ideológicos claros de neoliberalismo, uma língua
dominante nas expressões e conceitos, o inglês, mas
não se pode dizer que haja uma verdadeira
mundialização do direito local estadunidense,
canadiano, britânico ou sequer da família do common
law. Em alguma medida, além de globalizações gerais82,
há também globalizações locais, a que por vezes se
chama integrações (como a europeia, a sul-americana,
etc.).
No caso da integração jurídica europeia dá-se
realmente, como veremos, a criação de direito
supranacional, que se impõe juridicamente a todos os
membros da União Europeia, que primeiro se chamaria
Direito Comunitário e agora por vezes se chama,
simplesmente, Direito da União Europeia.

81 SILVA, Agostinho da — Ir à Índia sem abandonar Portugal, Lisboa,


Assírio & alvim, 1994, pp. 32-34.
82 HURREL, Andrew — On Global Order, reimp., Oxford et al., Oxford
Univ. Press, 2009.
20
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

A perspetiva um tanto isolacionista de ordens


jurídicas americanas como a estadunidense e a
brasileira, insistindo, afinal, em perspetivas de soberania
jurídica, embora com algumas exceções (como é o
acatamento das decisões do Tribunal de São José da
Costa Rica), talvez não deixe por vezes passar a ideia
de que, por via ao menos doutrinal e judicial, se está
desenvolvendo uma grande fase de aproximação dos
direitos. Há contudo em alguns países (não,
obviamente, nos EUA), um problema: ao mesmo tempo
que enfaticamente se proclama a soberania (e há até
quem fale, por exemplo, em saída do Brasil da ONU),
venera-se o estrangeiro (desde logo tudo o que são
mercadorias caras “importadas”), hipervalorizam-se
férias e estudos fora do país, etc.. E parece haver quem
creia que riquezas como os recursos hídricos, o pré-sal
e a própria Amazónia não devem pertencer ao próprio
país; não por um solidarismo universalista que poria em
comum recursos vitais para o equilíbrio ecológico
planetário, antes defendendo a sua privatização ou
cedência...
A sociedade da informação naturalmente está já
a colocar em rede os julgadores83, havendo assim uma
espécie de “república universal dos juízes”79, antes disso
já havia profusas trocas de ideias entre os obreiros da
doutrina, é de há muito comum o vaivém da
originalidade e da influência entre legislações, e mesmo
o costume (apesar de algumas reticências de alguns,
normalmente ideológicas e pro domo) continua com
83 RAMIRES, Maurício — Diálogo Judicial Internacional: A Influência
recíproca das jurisprudências constitucionais como fator de consolidação
do Estado de Direito e dos Princípios Democráticos, Lisboa, Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa (tese de doutoramento defendida a
30 de setembro de
20
3
Paulo Ferreira da Cunha

uma boa influência ao nível do Direito Internacional


Público80.

4. Fontes do Direito em sentido político


(ou orgânico)
Quando se fala em fontes em sentido político ou
orgânico, estamos perante a formação concreta de uma
norma.
Cura-se de saber quem (que órgãos, que
entidades), na comunidade política em causa, tem
competência para dar carácter normativo, vinculante, a
uma regra. Nos nossos dias, é claramente um problema
de Direito Constitucional, ramo de direito que (além do
mais) arbitra as competências no procedimento
legislativo e naturalmente também na própria hierarquia
jurídica (normativa e não só). Mas isto deve-se
sobretudo ao papel relevantíssimo, praticamente
avassalador, que as normas legais passaram a assumir
na época contemporânea. Embora em muitos casos não
se trate, na sociedade informacional, de grandes leis,
com grande dignidade ética e fonte legislativa, mas
quantas vezes de normativos de que até se duvida do
vínculo com os parlamentos e com a legitimação
popular em última instância. Quando, por exemplo, uma
rede social ou algo parecido na Internet, suspende
alguém ou impede

2014, sob a presidência do Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, tendo


como arguentes o Prof. Doutor Jorge Miranda e nós próprio).
79
V. o nosso artigo Da República Universal dos Juízes. “Revista da
Faculdade de Direito da Universidade do Porto”. Porto: Faculdade de
Direito da Universidade do Porto, Ano XI, 2014, pp. 351-365.

20
4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

80
Cf., por todos, Idem. Direito Internacional: Raízes & Asas, Belo
Horizonte, Forum, 2017.

alguém de fazer algo (por vezes com ar reprovador ou


que sugere violação de algum normativo), sem audição
prévia, aparentemente sem clara legislação que o
permita (e que seja amplamente divulgada) e sem
julgamento real, desde logo com contraditório, nem
sequer se sabe se tal decisão é fruto de um funcionário
e sua vontade, ou se é um procedimento automatizado,
verdadeiro tribunal eletrónico, sentença de algoritmo.
Estamos em crer que também se enquadra
plenamente nesta categoria de fontes em sentido
político a génese normativa decorrente de outras zonas,
não governamentais ou parlamentares. Desde logo, as
normas costumeiras (ou consuetudinárias), que
decorrem desse essencial sujeito político (e não simples
complemento ou objeto) que é a própria comunidade, e
também as criadas pela prática dos Tribunais (que são
órgãos de soberania, encarnação de um dos
tradicionais "poderes" do Estado), etc. Em suma,
estamos perante as fontes existendi do Direito (os
órgãos que dão vida às normas como tais).

5. Fontes do Direito em sentido sociológico


(por vezes chamado material)
Visa-se agora, com as Fontes do Direito em
sentido sociológico, designar o conjunto de
circunstancialismos sociais, políticos, culturais, etc., que
presidiram à criação de dada norma ou sistema
normativo.

20
5
Paulo Ferreira da Cunha

Evidentemente, tais circunstancialismos serão,


por certo, mais patentes para o caso de uma lei-medida,
que vise precisamente atalhar a uma situação concreta
(epidemia, invasão, terramoto, etc.). Nos casos normais,
o estudo das fontes em sentido sociológico é um tanto o
estudo localizado da Sociologia do Direito (ou
Sociologia Jurídica: embora haja autores que
distinguem uma da outra) e até da Sociologia geral.
Com efeito, necessita-se de apreender o sistema
social para entender a génese de dados normativos
nesse contexto. Toda a norma tem um contexto
normativo, e quer este quer a norma concreta possuem
um entorno, um contexto, uma circunstância social. É
impossível dissociar uma coisa da outra. Por isso é que
um habitante de Sirius que lesse apenas as nossas
Constituições, por exemplo, não entenderia realmente a
verdade do sistema político-jurídico de cada país.

6. Fontes do Direito em Sentido Filosófico


Com claras atinências com os sentidos histórico e
sociológico se encontra o sentido filosófico das fontes
do direito. Se aqueles veem, respetivamente, a génese
diacrónica e a sincrónica no plano global, para quem
não subsuma o aspeto filosófico (as ideias-força) no
processo histórico ou no sistema social haverá que
considerar-se uma inspiração filosófica das normas e
dos sistemas.
Por exemplo, com toda a falibilidade e imprecisão
das grandes generalizações, parece certo que a fonte
filosófica (filosófico-política em especial, como aliás
quase sempre e em todos os sistemas) dos direitos da
família de Direito “socialista” foi o materialismo dialético
20
6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

e o materialismo histórico. Simetricamente, de algum


modo, poderá talvez dizer-se que as leis de Allarde e
Chappellier se inspiraram no liberalismo extremado
(embora um pouco então fora de época, de algum modo
avant-la- lettre) da não arregimentação dos indivíduos, e
por isso proibiram o sindicalismo como expressão dessa
massificação e perda de “liberdade” do singular, etc..
Não se pode negar, sublinhe-se, que este sentido
filosófico tem muito de filosófico-político, ou filosófico-
ideológico. Mas pode haver outras dimensões mais
filosóficas “puras”, como as que decorrem, por exemplo,
de conceções de Pessoa, Vida e Morte, com tanta
influência nos domínios de legislação bioética, mas não
só… Naturalmente que conceções sobre Pessoa
também terão grande importância na consideração
jurídica quer dos animais (que deixaram de ser
considerados simples “coisas”), e de máquinas
“inteligentes”, que já alguns começam a ficcionar com
personalidade. Se há grande discussão, hoje, sobre
Direitos dos Animais, não há dúvida de que o passo
seguinte (em que já estamos até: há velocidades
diferentes...) é o de discutir personalidade jurídica e
direitos dos robots e afins. E alguém já sublinhou que o
robot ainda é uma entidade “humanóide”, que nos é
simpática porque de algum modo antropomórfica, e
assim psicologicamente estamos quase preparados
para a considerarmos “afim”. E no caso de entidades
muito mais abstratas e de forma bem diferente da
nossa? Será que teremos que encontrar um design
humano para essas inteligências artificiais que facilite a
sua integração na rede plural de titulares de direitos (e
obrigações sem dúvida: por exemplo, parece plausível
que os seus donos paguem impostos, sobretudo se
trabalharem tirando empregos a humanos)? Todas
estas questões remetem para a problematização
20
7
Paulo Ferreira da Cunha

filosófica do jurídico, e serão teorias filosóficas de índole


ontológica, antropológica, e algumas também teológicas
que sem dúvida se afrontarão nestas polémicas.
Ao sentido filosófico se pode dar ainda um outro
conteúdo, mais geral, mas talvez de maior
especificidade filosófica. Aludir-se- ia nesse caso ao
fundamento da obrigatoriedade da norma (o Estado, o
Poder, para uns, a Justiça, para outros, etc.). Esta
última versão também dá pelo nome de sentido
metafísico. Mas, na verdade, é uma classificação a
nosso ver um pouco excessiva, pois nem todas as
teorizações sobre o ponto de Arquimedes do Direito 84, o
ponto fixo em que deva apoiar-se serão,
necessariamente, de índole metafísica.
7. Fontes de Direito em sentido instrumental
(por vezes confundido com o histórico; mas
perfeitamente autonomizável e também chamado
material)
Finalmente, no elenco de fontes não técnico-
jurídicas, encontram-se aquelas que nos permitem
saber os locais, a documentação, as formas materiais
de positivação do que é Direito. Desde a lei das XII
Tábuas Romanas esculpida em mármore ou granito, ao
microfilme ou à memória do computador que encerra as
decisões judiciais, passando, evidentemente, pelos
nossos mais correntes e mais prosaicos exemplares do
Código Civil, Penal, etc.. São, afinal, as Fontes
cognoscendi (meios de conhecimento jurídico).
Trata-se apenas do suporte físico, quando se fala
em fontes em sentido instrumental. O mundo atual,
sociedade informacional, já multiplicou, desmaterializou

84 V. o nosso livro O Ponto de Arquimedes. Natureza Humana, Direito


Natural, Direitos Humanos. Coimbra: Almedina, 2001.
20
8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

e rematerializou as fontes instrumentais. Poderemos


facilmente imaginar um Vade Mecum (com boa parte
dos códigos e legislação fundamental) implantado em
algum ship na palma da mão… E o mais interessantes
serão as tecnologias que virão em breve e ainda não
conseguimos sondar, imaginando, normalmente com a
antecipação da ficção científica.

8. Fontes de Direito em sentido técnico-


jurídico (também chamado formal)
Ao contrário destes últimos casos de fontes
materiais no sentido instrumental de “matéria” (mas cuja
materialização tende para o virtual), visam as fontes em
sentido técnico-jurídico apenas, na lógica estritamente
interna do jurídico (sem apelos ao extrajurídico, por
norma), indagar das formas ou processos pelos quais
se forma e se revelar direito normativo, objetivo e
positivo. Trata-se, agora, das Fontes manifestandi
(meios de formação ou produção jurídica).

20
9
Capítulo II
Fontes do Direito em sentido técnico-jurídico
— análise global

1. Fontes ideacionais ou conceituais vs.


Fontes institucionais ou legais (Elenco
abstrato ou hipotético das Fontes de Direito)
Com base nos modos historicamente conhecidos
de formação e revelação do Direito, elaborou-se um
catálogo de fontes de Direito (agora apenas no sentido
técnico-jurídico), mas obviamente não unânime entre os
autores. Somente em coisas muito óbvias, e mesmo
assim nem em todas, podemos usufruir de uma vera
communis opinio doctorum.
De entre esta lista de possíveis fontes, cada
ordem jurídica concreta elegeu (nos nossos dias através
da lei — v.g. numa Lei de Introdução, no Brasil, num
Título Preliminar do Código Civil, em Espanha, ou logo
nos primeiros artigos do Código Civil, em Portugal)
aquelas que lhe parecem deverem ser acolhidas, e
estabeleceu entre elas prioridades de atendibilidade, de
aplicação; enfim, hierarquizou-as.
Vamos, pois, sucessivamente observar as fontes
em abstrato, com a sua fortuna relativa em vários
tempos e lugares, e as fontes em concreto, à luz dos
textos legais.

21
0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

2. Fontes ideais ou conceituais — enumeração


Costumam os Autores considerar como possíveis
(ideacionais, conceituais, hipotéticas) fontes de Direito
(mais uma, menos uma), as seguintes: os princípios
gerais do direito, o costume, a jurisprudência, a
doutrina, a lei, as normas corporativas, a equidade.
Obviamente nem todos optam por todas; todos
reconhecem haver algumas caducas ou não vigentes,
todos concordam na existência de hierarquia concreta
entre as que admitam. Mas como admitem teórica e ou
praticamente um elenco diverso, há divergências não
descuráveis na doutrina sobre o assunto. E também,
como se sabe, a legislação dos diversos países tem
posições diferentes. Por exemplo, não é desde logo
indiferente a técnica normativa utilizada. Uma coisa é
explicitar concretamente em Código quais as fontes
mediatas e imediatas, outra coisa é apenas referir como
se faz para colmatar lacunas da lei. Neste último caso,
pode ficar-se com a ideia de que a única fonte imediata
é a lei. E que as demais (ou além delas outros métodos,
não propriamente fontes) apenas entram em ação no
caso de lacuna. Na verdade, tal corresponde a um
direito subsidiário. A técnica vem já, em direitos de
língua portuguesa, das Ordenações.

3. Fontes voluntárias e não voluntárias


É ainda frequente distinguir-se entre fontes
voluntárias e não voluntárias. As primeiras derivam da
vontade de o serem: um propósito dos seus criadores
em que sejam elas fontes. Já as segundas são não
intencionais.
21
1
Paulo Ferreira da Cunha

O caso mais patente de entre estas últimas, seria


o do costume. Apesar de, como veremos, o elemento
constitutivo do costume não simplesmente factual, mas
volitivo, o animus, ter algo
de voluntário. Só que não certamente no grau
necessário para que se esteja perante uma norma.

4. Fontes imediatas e mediatas


É ainda uso estabelecer a diferença entre fontes
imediatas ou mediatas, consoante delas o direito jorre
diretamente ou só por via de “canalização”,
mediatizacão. Assim, nas ordens jurídicas dominantes,
parece que a doutrina (opiniões e trabalhos dos juristas)
só indiretamente e por interpostas vias cria Direito
normativo, objetivo e positivo.
Temos vindo a falar insensivelmente de todas
estas fontes de Direito, e delas já temos, obviamente,
uma pré-compreensão. Cabe agora precisá-la um
pouco.

5. A Lei e o seu Império85


Estamos hoje habituados a uma quase instintiva
identificação de Lei com o Direito86. Tal se deve, como
sabemos, à expansão e imposição do seu império
sobretudo a partir do Iluminismo e, mais ainda, do
Positivismo, cujo racionalismo acreditava na
85 Retomando o título de DWORKIN, Ronald — Law's Empire,
Cambridge, Mass., Belknap, 1986.
86 V. o clássico BASTIT, Michel — Naissance de la Loi Moderne, Paris,
P.U.F., 1990.
21
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

reorganização social por essa via normativa, por


decisão razoável dos homens razoáveis, os
parlamentares burgueses, afinal. O sentido da função
legislativa e do corpo legislativo nas sociedades
contemporâneas (e não se trata de consequência direta
da sociedade informacional, pois lhe é anterior já)
mudou radicalmente87. E hoje está cada vez mais
afastada essa ideia redentora do legislativo que,
infelizmente, acaba por ser, em vários países, o
principal bode expiatório dos desaires e desmandos de
todos os poderes. Há um preconceito antiparlamentar e
antidemocrático, que curiosamente se está a
aparentemente dar bem nos nossos dias com um
"neoliberalismo" que se abstém por vezes até da sua
componente clássica e pluralista, além de demofílica,
para se concentrar num economicismo estrénuo. Um
liberal antigo (veteroliberal) como Thomas Hill Green,
para citar só um exemplo, revolver-se-á certamente no
túmulo.
Mesmo depois das críticas ao Positivismo (e tanto
se fala hoje de Pós-Positivismo, o que não deixa de
revelar que o paradigma de referência ainda é o
Positivismo que se procura “superar”), o Estado
continuou a não abdicar do quase monopólio da
normatividade, em nome da segurança e certeza
jurídicas, etc. E até mesmo em nome da legitimidade
democrática, evidentemente.
E essa é a situação ainda vigente... E cremos que
dificilmente a situação mudará. A liberdade da
informação tende a padronizar e a tipificar. O filósofo
87 Cf. o excelente estudo de EHRHARDTSOARES, Rogério — Sentido e
Limites da Função legislativa no Estado Contemporâneo, in A Feitura das
Leis,
21
3
Paulo Ferreira da Cunha

checo radicado no Brasil Vilém Flusser chega a prever a


efetivação do juízo eletrônico85 (ficcionado literalmente
por Papini há anos já86). É um autor a ter muito em
consideração neste debate, embora algumas das suas
profecias sejam de arrepiar, e nem sempre o possamos
acompanhar nas suas indubitavelmente brilhantes
considerações.

coord. de Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa, Lisboa, Instituto


Nacional de Administração, 1986, 2 vols, vol. II , p. 429 et sq..
85
FLUSSER, Vilém — O Universo das Imagens Técnicas. Elogio da
Superficialidade, Revisão técnica de Gustavo Bernardo, São Paulo,
Annablume, 2008.
86
PAPINI, Giovanni — “O Tribunal electrónico“, in O Livro Negro. Novo
Diário de Gog, trad. port., Lisboa, Livros do Brasil, s/d..
6. Fontes não legais: princípios fundamentais,
costume
O Legalismo hoje impera. Mas que nem sempre
foi assim, que nem sempre houve a todo-poderosa
prevalência da lei, é algo que salta aos olhos. Muito
antes e acima da lei (decisão reguladora geral, abstrata,
estatal, etc.; existiram (e de certo modo existem) outras
fontes jurídicas.
Desde logo, os princípios fundamentais do direito,
entidades que alguns associam a um Direito Natural
que, antes de tudo o mais, se devem ter feito sentir
como exigências (progressivas, em contínua
descoberta) de Justiça. E, como observância diuturna e
convicção da juridicidade de comportamentos retos, o
costume começou por se impor como a primordial fonte
de Direito. Ainda hoje é com base nos seus princípios
21
4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

jurídicos fundamentais, positivados em costumes de


índole jurídica, que muitos povos pré-industrializados,
dotados de sociedades mais ou menos arcaicas, se
regem no plano do Direito. Pelo menos assim podemos
encarar algumas sociedades de pré- Direito.
E ainda há não muito houve um choque (choque
cultural, desde logo, mas também antinomia jurídica,
entre ordens jurídicas coincidentes no mesmo território),
no Brasil, entre uma pena aplicada por uma formação
social tradicional e o “direito do asfalto”88, do Estado.
Alguém já sancionado no seu ambiente tradicional de
origem não poderia de novo ser sentenciado por um
tribunal oficial, da entidade “moderna” Brasil… Isso, de
algum modo (mutatis mutandis), feriria o princípio da
não duplicação ou multiplicação dos julgamentos,
depois de esgotados os recursos (o non bis in idem).
Outro aspeto interessante a considerar é que o
costume é considerado por alguns autores (como José
Adelino Maltez89) como o verdadeiro, radical e primeiro
fundamento da obrigatoriedade de todas as outras
fontes, e nomeadamente da lei. É por que há o costume
de obedecer à lei que a ela se obedece e se interiorizou
a necessidade jurídica dessa obediência. Poderia, num
mundo alternativo (numa utopia, por exemplo), pensar-
se que as leis seriam apenas padrões de conduta
facultativos, sempre, e não, como ocorre em geral,
imperativos (até na sua eventual supletividade,

88 SOUSA SANTOS, Boaventura de — O Discurso e o Poder. Ensaio


sobre a sociologia da retórica jurídica, Coimbra, Separata do "Boletim da
Faculdade de Direito", 1980.
89 MALTEZ, José Adelino — Princípios de Ciência Política: o Problema
do Direito, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas,
1998; Idem — Princípios Gerais de Direito: uma perspectiva politológica,
Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1992.
21
5
Paulo Ferreira da Cunha

alternativa de condutas ou afins).

7. Fontes não legais: jurisprudência


Com a necessidade de conferir a um terceiro
independente (e, em última análise ao Estado ou à
entidade que as suas vezes fizesse: Federação,
Império, etc.) a resolução dos litígios, passo
importantíssimo para evitar a guerra de todos contra
todos, a permanente e imparável vingança, com a
instituição da função judicial (ou judiciária), começou a
constituir-se um acervo de resoluções de casos
concretos (sentenças), muitas delas versando situações
análogas.
Chamado a resolver urna lide semelhante a uma
já decidida por si (ou por um seu colega), o juiz tem
tendência natural a não se afastar do já resolvido
(atentas, é claro, as particularidades do problema sub
judice). Assim seguindo os juízes uns aos outros,
surgem correntes jurisprudenciais. Também a existência
de recurso para tribunais superiores pesa, pelo prestígio
(e auctoritas) destes, sobre os magistrados, que tendem
a repetir as decisões dos seus confrades mais
experimentados e mais elevadamente posicionados na
carreira. E pode haver casos em que tais decisões são
mais ou menos vinculativas.
Assim, insensível e mediatamente, a
jurisprudência se vai tornando fonte de Direito. Mas
onde ela assume maior relevo é naquelas ordens
jurídicas (como as dos países anglo-saxónicos) em que
o precedente faz regra. Onde não é apenas uma
reverencial aceitação ou um costume jurisprudencial
21
6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

julgar certos casos como foi sendo hábito fazer, mas


antes se impõe ao juiz o dever de respeitar a "tradição",
prosseguindo na mesma linha (rule of precedent).
O Direito anglo-saxónico, da Common Law,
contudo, está a aproximar-se do continental europeu, e
este, por via da jurisprudência da União Europeia
também, por sua vez, se vai judicializando. O Brexit,
porém, apanharia todos de surpresa e ainda se estão
para ver as suas consequências (que quase todos
preveem nefastas para ambas as partes). Pode ser que
também as haja no processo de diálogo de
metodologias jurídicas...
No Brasil, a importância da Jurisprudência é
enorme, em termos sociais. Sabem-se os nomes dos
onze ministros da Corte Suprema, o STF (Supremo
Tribunal Federal), talvez mais que dos jogadores da
delegação de futebol (diz-se, com alguma graça, sem
dúvida, na vox populi). Para isso terá também
contribuído a original e inédita decisão de transmitir
televisivamente os julgados. Mais um efeito de
publicização da sociedade informacional. Seria na
verdade muito interessante e esclarecedor fazer
estudos de knowledge and opinion about law (KOL)90
sobre a enorme presença de vários órgãos juridicionais
na televisão no Brasil.
8. Fontes não-legais: doutrina
Em torno de todos estes problemas e facetas da
vida do Direito, logo que este foi alcançando um relevo
e autonomia suficientes (especialmente na Roma

90 PODGÓRECKI, Adam et alii (org) — Knowledge and opinion about


law, Londres, Martin Robertson, 1973.
21
7
Paulo Ferreira da Cunha

Antiga91), surgiram os cientistas, técnicos e sapientes do


Direito, os jurisconsultos, não simples causídicos, mas
autênticos conhecedores profundos, que em consultas
pontuais (hoje, sobretudo pareceres e consultas
escritas; mas também já em entrevistas dos vários
media, os mais diversos – se a sua mensagem não for
truncada ou adulterada: mas aí a culpa não é do meio,
será “erro humano”) e em obras de fundo, tratados, ou
artigos monográficos, passando por manuais e lições
universitárias, foram impondo visões, construções,
dogmáticas, teorias jurídicas, quer sobre o direito
vigente (de jure constituto), quer sobre o que este
devesse passar a ser (de jure constituendo).
Tais estudos constituem a doutrina, fonte
mediata, salvo em épocas de seu especial florescimento
e reconhecimento público (e estatal),emque já foram
fonte imediata. De facto, a opinião dos doutores (e
sobretudo a comum: a communis oprinio doctorum) já
valeu diretamente como Direito: foi o tempo do jus
(publice) respondendi (do Imperador Augusto ao
Imperador Adriano, com valor de facto; a partir de
Adriano, torna-se fonte imediata de Direito, de carácter
geral: portanto, fonte imediata de iure).
Importa, contudo, precisar desde já alguns dados
semânticos. A doutrina (opinião dos jurisconsultos, ou
jurisprudentes) começou por ser designada, por essa
mesma razão, precisamente "Jurisprudentia"
(Jurisprudência). Como a doutrina se exercia, em Roma,
sobretudo na prática do foro e na função de julgar (a
qual era sancionada pelo poder, constituindo uma

91 Cf, sobre a doutrina (e a jurisprudência) CRUZ, Sebastião — Direito


Romano, vol. I, 3.ª. ed., cit., p. 292 et sq..
21
8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

parcela de soberania) a expressão "jurisprudência"


passou a designar as decisões dos tribunais.
Finalmente, dado o papel fundamental destes na
decisão do que é o Direito, também se designa a própria
ciência do Direito ou Jurística (ou Direito tout court, o
seu sentido epistemológico) por "Jurisprudência” (com
maiúscula). Em Itália, as faculdades de Direito chamam-
se ainda de “Giurisprudenza”. Hoje, a primitiva
Jurisprudência não forense (não designando sentenças,
mas pareceres, obras teóricas, etc.) já não tem esse
nome. É doutrina. A Jurisprudência, numa dada visão
(que já teve acolhimento legal em Portugal até, no
Código Civil, ao tratar dos Assentos), seria mesmo (e só
quando fosse doutrina seria jurisprudência?) “doutrina”,
embora com força obrigatória (entre partes e seus
efeitos colaterais), ou “geral” (no caso dos ditos
Assentos).

9. As normas corporativas
A questão, nos seus recortes tradicionais, não
parece ser de enorme atualidade e muito menos
universal. Ela resultará da consagração legal autónoma
de um tipo de normativos, que são, lato sensu, leis,
embora lhes possa faltar o caráter de estadualidade.
Porém, o mundo informacional tende para a criação de
entidades mais ou menos autónomas, efémeras
algumas, que possuem, pela própria natureza das
coisas, uma vocação e uma ação normativa.
Certamente teremos de considerar, pelo menos numa
fase de transição, certos aglomerados de associação
humana ("comissões especiais" numa designação
clássica, certamente) como verdadeiras pessoas morais
21
9
Paulo Ferreira da Cunha

que funcionam como "legisladores" hoc sensu,


produtores de normas corporativas... Há entidades do
tipo “agências reguladoras” que, como o próprio nome
indica, possuem uma vocação para a produção
normativa. A complexidade da normogénese atualmente
cresce, e, evidentemente, o problema da hierarquia
normativa se põe. As regras clássicas, porém, não
podem permitir que uma entidade pública ou privada
afaste os preceitos constitucionais, e designadamente
os respeitantes a direitos, liberdades e garantias, que
são diretamente aplicáveis e vinculam tanto o Estado e
seus entes como os particulares (art.º 18.º, n.º 1 CRP).
O problema das normas corporativas, como
veremos, ganharia antes de mais com a
desdramatização do nome. A nosso ver, trata-se do
Direito em geral não fundamentalmente estatal, mas
produzido voluntariamente (fonte intencional) através de
instrumentos normativos gerais — desde os estatutos
de um sindicato aos de uma sociedade comercial,
passando por um contrato coletivo de trabalho. Mas não
deixando de ter de considerar-se incluídas na categoria,
lato sensu, as normas de uma comunidade de
internautas num ou noutro aspeto da vida e seus
interesses comungando, algures num nicho qualquer do
universo virtual.
Sempre existiram este tipo de normas de grupos
sociais organizados, desde que na sociedade se foram
constituindo pessoas coletivas, grupos de interesses
associativos do mais diverso cariz. Também se podendo
designar por pessoas morais.
Hoje em dia, porém, há o muito discutível hábito
de “aportuguesar”” como “corporação” a palavra inglesa
22
0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

“Corporation”. Ora não é de modo nenhum dessas


“corporações” que se trata quando, em sede de fontes,
se fala ainda em “corporações”. Mas fala-se hoje cada
vez menos.
Porém, não há dúvida também de que as
verdadeiras e próprias "Corporations", empresas e
redes de empresas, e afins, são grandes produtores de
normatividade, e parceiros em novas geometrias e
geografias normativas relacionais. A questão é de saber
se têm autonomia para essas fórmulas contratuais para
além da liberdade contratual clássica e com as suas
limitações de bons costumes, ordem pública, e as gerais
que proscrevem o abuso do direito, obrigam à boa fé,
etc., e se têm poder legítimo para a normatividade
praeter legem e eventualmente contra legem que
editem.
Por exemplo: uma empresa nacional x ou y do
país x ou y, que tem a língua oficial n, e só essa língua
oficial, poderá impor na comunicação interna na
empresa, oralmente e ou por escrito, uma língua
diferente da língua oficial do país em que está sediada,
e aos seus funcionários da mesma nacionalidade? Este
exemplo comporta variantes específicas, e todas elas
colocarão problemas. Estamos em crer que nem por
motivos de marketing, show off, e muito menos por
preconceito linguístico ou nacional, nenhuma empresa
pode mudar a língua oficial do seu país num reduto
utópico ou enclave corporativo. Coisa diferente, e a
ponderar, é uma multinacional, com pessoal de muitos
países, operando em muitos estados, que determine
uma língua oficial muito conhecida (no caso, seria
certamente o Inglês, no momento) para comunicações

22
1
Paulo Ferreira da Cunha

gerais, salvo se outra língua não for do melhor


conhecimento de todos os intervenientes numa dada
conversa, oral ou escrita. Porque é óbvio que entre dois
nacionais do mesmo país (ou de um brasileiro e um
português, por exemplo) uma empresa de qualquer país
não poderá razoavelmente impor uma terceira língua.

10. A equidade
A equidade refere-se a uma particular forma de
adaptação do geral ao concreto, de suavização e
adequação das normas, de atenuação do brocardo da
decadência romana dura lex, sed lex. Numa perspetiva
positivista, é, sem dúvida, um amortecedor da dureza da
lei. Já, contudo, para quem entenda o Direito como
subordinado a princípios fundamentais e à Justiça, pode
parecer tautológico92. Toda a Justiça é, por natureza,
équa. Só um direito estritamente legal necessita dessa
válvula de segurança, como entidade autónoma.
Porém, como se vai tornando complicado e
certamente não muito usual resolver casos concretos
com invocação direta à Justiça, parece que será, na
prática, certamente melhor prescindir do rigor conceitual
neste ponto, e admitir a utilização autónoma da
equidade. Os resultados práticos poderão ser,
certamente, mais positivos.

11. O negócio jurídico


No elenco abstrato das fontes de Direito, poder-
92 Cf. BRAZ TEIXEIRA, António — Reflexão sobre aJustiça. in "Nomos'',
n.º 1, Lisboa, 1986, p. 55 et sq..
22
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

se-ia ainda pensar na hipótese de considerar o negócio


jurídico. E há quem o sugira. De fato, é ele um facto
normal de que derivam direitos e obrigações. Uma
doutrina francesa tradicional lembra (com alguma razão)
que o contrato (o mais “célebre” negócio jurídico, nisso
não há qualquer dúvida) é lei entre as partes.
Simplesmente, à exceção do caso (já
contemplado noutra(s) fonte(s)) dos contratos coletivos,
por norma os direitos que dele resultam são direitos
subjetivos de indivíduos mais ou menos singulares hoc
sensu (ainda que possam ser pessoas coletivas, claro),
isto é, não criam normas com generalidade e abstração,
mas imposições (ou faculdades, prerrogativas...)
concretas, para pessoas determinadas e em dada
situação. Parece, pois, estar-se a confundir duas
situações distintas. Uma fonte de Direito, lembremo-lo, é
um modo de formação ou manifestação de Direito em
sentido normativo, não meramente subjetivo, não
meramente pessoal ou circunscrito a um grupo, um
contrato, um negócio jurídico, etc.. Esses direitos e
obrigações concretamente nascentes, modificados,
extintos, etc., por essas vias, acabam por ter como fonte
outra norma mais a montante. Ainda que seja somente
Lei geral que os permite… Mesmo que apenas com o
princípio (legal) da liberdade contratual como regra.

12. As fontes e os "regatos"


Em síntese, admitimos como fontes de Direito
todas as referidas, menos a equidade e o negócio
jurídico. E mesmo a equidade se acaba por admitir
como exceção prática. Há legislações que tomam

22
3
Paulo Ferreira da Cunha

posição diversa. Ou deixam margem para que tal se


pense. Cumpre agora rapidamente fixar os termos de
cada fonte referida, numa aproximação mais técnica.

22
4
Capítulo III
Fontes do Direito em Sentido Técnico-jurídico — análise
especial

1 . Princípios Fundamentais do Direito


Os Princípios Fundamentais do Direito são
ditames gerais e estruturadores da própria Ordem
Jurídica, que alguns consideram com profunda
componente jusnaturalística (de Direito Natural),
enformadores das concretas regras positivas, e por
vezes aflorados em normas fundamentais de bases, leis
constitucionais, Constituição, etc., ou em cláusulas
gerais e conceitos indeterminados, dois conceitos a
repensar também, no âmbito das fórmulas e técnicas
normativas, que em língua portuguesa bem
desenvolvidos foram por Baptista Machado93.
Antes de mais, importará convocar a doutrina
internacionalista para esclarecer que não é indiferente
aludir-se a Princípios Gerais do Direito e Princípios
Gerais de Direito. Remetem para questões diversas.
Os segundos, são princípios de direito interno. E
assim os enuncia, por exemplo, Ferreira de Almeida:
“Assim, são princípios gerais de direito, v.g.: o
princípio do enriquecimento sem causa, o princípio da
93 BAPTISTA MACHADO, João — Introdução ao Direito e ao discurso
legitimador, reimp., Coimbra, Almedina, 1985.
22
5
Paulo Ferreira da Cunha

boa fé; o princípio da responsabilidade baseada na


culpa; o princípio da reparação integral do prejuízo; o
princípio segundo o qual a lei especial prevalece sobre
a lei geral; o princípio do ónus da prova; o princípio da
igualdade das partes; o princípio dos direitos adquiridos;
o princípio de estoppel (ninguém se pode prevalecer
das suas próprias faltas ou, num processo, adoptar uma
atitude contrária a algo previamente, por si, admitido,
com prejuízo para a contraparte – venire contra factum
proprium non valet); princípio do efeito útil; o princípio
do caso julgado; princípio da segurança jurídica; etc.”94.
Mas esta enunciação é meramente
exemplificativa.
Já os princípios de índole internacional, são os
primeiros que também assim podem ser apresentados,
embora apenas exemplificativa ou ilustrativamente:
“(...) os princípios de não intervenção, da não
ingerência em assuntos particulares dos Estados, da
obrigação da cooperação dos Estados entre si, primazia
dos tratados sobre as leis internas, prévio esgotamento
dos recursos internos, proibição do uso da força contra
a integridade territorial ou a independência política de
qualquer Estado, solução pacífica as controvérsias,
igualdade soberana entre Estados, o direito de
passagem inocente para navios mercantes em tempo
de paz, a liberdade dos mares, a autodeterminação dos
povos, a boa-fé, o respeito universal e efetivo dos
direitos humanos, as normas de jus cogens, entre
outros (...)” 94 .
Afirma ainda, sintetizando a dicotomia, Valerio
Mazzuoli:
“(...) os princípios gerais de direito provêm de
baixo (da ordem estatal) e ascendem à ordem superior
94 FERREIRA DE ALMEIDA, Francisco — Direito Internacional Público,
Parte I., Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 178.
22
6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

(internacional) quando da sua aplicação pela CIJ num


caso concreto, ao passo que os segundos – os
princípios gerais do direito – já nascem da ordem de
cima (da ordem internacional) e são diretamente
aplicados por ela”.
Atentemos que quando falamos de princípios que
ascendem ou descendem, num vaivém entre ordem
interna e internacional, talvez nos seja ainda lícito
pensar em depurações de regras, ou em concretizações
de grandes padrões. Embora certamente a
concretização nacional de princípios internacionais
possa talvez mais facilmente ser assimilada à
concretização e a elevação do nacional ao internacional
aproximada de uma generalização. Esta é menos
carregada de eticidade que a segunda, podendo ser
uma mera operação mental de generalização.
Há, realmente. duas formas de encarar os
princípios, e certamente se os considerarmos a todos
ficará claro que uns decorrerão mais de uma e outros
mais de outra génese. Mas em sede geral e mais
teórica, uns consideram que a lei deriva do princípio,
como concretização. Outros que o princípio deriva da lei
como generalização.
O problema não são casos concretos em que se
pode seguir geneticamente ou historicamente a real
derivação. O problema é o espírito com que se encaram
os princípios.
Num caso, o de uma derivação das leis a partir
dos princípios, estes são realmente decorrências de
grandes valores. Na verdade, são uma espécie de
valores de segundo grau, ou mais concretos: por
exemplo, o princípio do pluralismo político é, realmente,
22
7
Paulo Ferreira da Cunha

uma decorrência do valor jurídico-político da liberdade –


e por isso a Constituição espanhola não terá andado
bem ao colocá-los a ambos como valores políticos
superiores.
No outro caso, da construção de princípios por
generalização, precisa haver leis no terreno, de iure
constituto, ou pelo menos tê-las havido, para,
abstraindo, idealizar o princípio que as englobe. Ora
uma das funções mais importantes dos princípios é
poderem agir antes de haver lei, e para que a haja.
Neste sentido, somos partidário da teoria de que o
princípio vem antes da norma. E que antes deste, com
uma vibração ética maior, está o valor.
Desenvolvamos um pouco mais a questão.
Há países em que há (Brasil — art. 4. da Lei de
Introdução e no Código Civil de Espanha, por exemplo)
referência expressa aos princípios fundamentais ou
gerais do Direito, e outros em que não há tal referência
(Portugal atualmente, por exemplo). Mas nem por isso
os princípios, nos países em que não haja referência
explícita no Código Civil ou afim diploma, deixam de ser,
realmente e de jure, fontes de Direito.
O facto de um Código Civil silenciar a expressão
parece-nos mais uma escolha de prudência (a qual não
é, de resto, caso único), modo de evitar uma polémica
algo nominalista entre pluralismo e monismo, do que
uma rejeição do que, em boa vontade, não poderia
rejeitar.
Acolhidos expressamente ou não, o certo é que
os princípios fundamentais e gerais, se não porejam em
cada linha da Lei, pelo menos se pressentem como
22
8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

essência na sua globalidade. E é curioso notar-se como,


calando o todo, o Código português, por exemplo, vem
a aceitar expressamente uma boa parte de tais
princípios: de facto, ao referir-se ao valor da equidade,
outra coisa não está fazendo que realçar a importância
dum desses princípios, o princípio dos princípios, a
Justiça, a qual não existe sem equidade.
Por outro lado, é evidente que aqueles princípios
se encontram acolhidos positivamente (e em não
despicienda medida) pelos vários diplomas legais
específicos (os princípios constitucionais na
Constituição, os Processuais nos códigos respetivos, os
princípios penais no Código Penal, etc.). E o próprio
Código Civil inclui bastantes, não apenas de índole
privatística ou civilística específica, como também de
vocação global.
Veja-se, por exemplo, o caso da integração das
lacunas. No Brasil, o art.º 4.º da Lei de Introdução diz
claramente que "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá
o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito". A lei portuguesa remete
para um procedimento mais complexo, mas os
princípios acabam por estar lá: Quando, para os casos
omissos, se possibilita ao intérprete resolver o caso
subjudice segundo a norma que ele criaria "se houvesse
de legislar dentro do espírito do sistema" (art. 10.º, n.º 3
do Código Civil português) não se remete aquele para
uma simples operação lógica, antes haverá que ter ele
em conta, precisamente como espírito do sistema, os
princípios fundamentais de que a ordem jurídica se
encontre impregnada. Além disso, e no mesmo código,
atente-se na profusão de princípios fundamentais que
afloram sob a forma de cláusulas gerais e conceitos
22
9
Paulo Ferreira da Cunha

indeterminados — casos como “bons costumes",


"ordem pública", "dever de justiça", "boa fé', "causa
justificativa", "justa causa”, "interesse público"
encontram-se nesta sede.
O problema mais complicado não é, pois, o de
reconhecer os princípios fundamentais de Direito como
fonte (tacitamente aceite), positiva e até imediata de
Direito. A questão põe-se noutros termos: serão válidos
tais princípios contra lei expressa, i.e. qual o seu lugar
em termos de hierarquia das fontes de Direito? Como é
evidente, o problema terá solução diversa consoante a
opção pluralista ou monista de quem se lhe proponha
responder.
Note-se que no Brasil a referência está sediada
em contexto de lacunas. Assim, também no Brasil se
colocaria o problema, aliás tão atual, em tempos de
neoconstitucionalismo e ativismo judicial: será possível
afastar lei expressa em nome de um princípio (ainda
que podendo ele ser até muito geral, como o da
proporcionalidade, ou o mega-princípio da dignidade da
pessoa humana)? Dizer que se pode preterir lei por
princípio afirma o lugar hierárquico dos princípios como
superior, sim, mas criará em muitos casos certamente
insegurança jurídica. E a segurança jurídica certamente
é um valor (superior a um princípio), ainda que não um
valor político-constitucional, mas pano de fundo de todo
o Direito, o “grau zero” da juridicidade.
Dizer que a lei sempre passa à frente de um
princípio quando o pretende concretizar a ele ou a outro,
opondo-se-lhe, deixa os princípios relegados para o
plano do art.º 4.º da Lei de Introdução brasileira, que é o
das lacunas. Não é fácil optar, e talvez alguns sejam
23
0
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

tentados a dizer que tal só poderá fazer-se perante o


caso concreto. Contudo, perante o caso concreto há um
enorme risco de subjetividade na aplicação ou não
desta questão de antinomia normativa.
Em Portugal, afigura-se-nos que o excesso de
principiologia ainda não terá chegado, e espera-se que
se aprenda com a experiência alheia. A verdade é que,
sendo os princípios mais vastos e profundos que as leis,
não se pode prescindir destas. De novo a remissão para
o equilíbrio, a prudência e o bom senso terá que fazer-
se.

2 .Os Valores
Embora não seja habitual considerar os valores
em sede de fontes de Direito, parece um pouco
estranha essa ausência, porquanto noutros contextos
eles são considerados (naturalmente) como de grau
superior aos próprios princípios e, portanto, mais
importantes ainda, a fortiori, que as leis.
Os valores jurídicos são múltiplos. Houve tempo
em que classicamente se fazia uma dicotomia entre o
Valor da Justiça, ou simplesmente o Valor Justiça, e a
segurança, ou o valor da segurança. São, na verdade,
valores que estão num nível muito diferente, e também
sempre se poderá dizer que a Justiça, para o ser, já
implica pelo menos alguma segurança jurídica. É
necessária alguma certeza ou pelo menos alguma
previsibilidade. É preciso, para usar uma linguagem
simples, “saber em que lei se vive”. E isto implica, muito,
saber um pouco antecipar o que será a decisão dos
juízes com base na mesma lei.
23
1
Paulo Ferreira da Cunha

Mas a segurança é também, lato sensu, a


vigência de um clima de paz, de tranquilidade, de
respeito pela integridade física e moral das pessoas, a
sua liberdade de movimentos, o respeito pelas suas
opiniões e opções, o que implica o respeito
generalizado pela legalidade democrática e autoridade
democrática capaz se se tornar efetiva e prontamente
reprimir as agressões, os crimes, etc., sem olhar a
quem é o agente, e protegemdo assim todos. Só assim
a segurança das leis e das sentenças é eficaz, é efetiva.
Só com “segurança pública” (obviamente sem repressão
e sem abusos por parte das forças de policiamento e do
próprio poder judicial) há a concretização do valor
segurança.
Voltemos aos valores em geral. A partir do
momento em que a Constituição Espanhola de 1978,
inspirada mais diretamente decerto na Constituição
Portuguesa de 1976, e mais remotamente em todo o
constitucionalismo moderno, e desde logo no lema
revolucionário Liberté, Égalité, Fraternité, resolveu
colocar em ordem e constitucionalizar formalmente os
valores jurídico- políticos superiores, a questão dos
valores jurídicos parece ficar mais concreta.
A Constituição Espanhola positivou no seu início
os ditos valores. Considerou a Liberdade e a Igualdade,
mas preferiu a Justiça à Fraternidade como terceiro
elemento. No lema do Rio Grande do Sul o eleito para
esse lugar foi a Humanidade. A Constituição portuguesa
tinha falado em país mais livre, mais justo e mais
fraterno – fazendo assim a Justiça as vezes da
Igualdade. É certo que numa fase não inicial dos
trabalhos, e certamente com apreensões quanto a um

23
2
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

possível revanchismo ditatorial, a constituinte espanhola


acabaria por elevar a valor o simples princípio do
“pluralismo político”, como aflorámos já.
A Constituição brasileira de 1988, certamente
tendo visto e analisado o legado das anteriores,
acabaria por ter, no seu Preâmbulo, uma muito criativa
e ponderada fórmula:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos
em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL.”
Parece, portanto, que a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
serão os valores supremos acolhidos pela Constituição
Federal brasileira.
Entretanto, recordem-se algumas passagens o
Preâmbulo da Constituição da República Portuguesa,
que foi a grande inspiradora de fundo das da brasileira e
da espanhola, em muitos aspetos, mas obviamente não
em tudo. Desde logo nas formas de governo. Trata-se
de um Preâmbulo em que a dimensão histórica está
muito presente, pelo que limitamos a citação ao
parágrafo que cura dos aspetos mais programáticos e

23
3
Paulo Ferreira da Cunha

prospetivos:

“ (...) A Assembleia Constituinte afirma a decisão


do povo português de defender a independência
nacional, de garantir os direitos fundamentais dos
cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da
democracia, de assegurar o primado do Estado de
Direito democrático e de abrir caminho para uma
sociedade socialista, no respeito da vontade do povo
português, tendo em vista a construção de um país mais
livre, mais justo e mais fraterno. (...)”

Tem sido ultimamente interpretada restritivamente


a fórmula “sociedade socialista” como significando, ao
menos hoje (interpretação atualista) “Estado Social”. E
ele é largamente consensual, nele confluindo, pelo
mundo fora, desde tradicionalistas monárquicos à
extrema esquerda, passando por todos os matizes da
direita e da esquerda sociais e democráticas. Apenas
obviamente se afastam dele os neoliberais, como não
poderia deixar de ser. Por algum motivo este Preâmbulo
tem resistido a todas as revisões constitucionais. E,
como afirma Gomes Canotilho, ele é o bilhete de
identidade (hoje diríamos o cartão de cidadão) da
Constituição. Alterado o Preâmbulo, teríamos rompido
com a nossa Lei fundamental.
Depois desta análise crítica doutrinal ao legado
destas constituições da segunda metade do séc. XX,
chega-se à conclusão de que a matriz essencial e pano
de fundo de todas será ainda o motu francês, contudo
adaptado e desenvolvido95.

95 Para mais desenvolvimentos, cf. o nosso Direito Constitucional Geral.


2.ª ed., Lisboa, Quid Juris, 2013; Idem — Para uma Ética Republicana,
Lisboa, Coisas de Ler, 2010.
23
4
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

3 .A Lei e o Legalismo
A Lei, mesmo falando apenas no seu sentido
jurídico (excluindo a lei eterna, divina, e as leis
científicas, etc.), pode comportar vários sentidos. Assim,
pode ser sinónimo de Direito (em sentido normativo,
especialmente); identificar-se com a autoridade do
Estado ou com o ordenamento jurídico (assim
retornando a primeira aceção); referir-se a certas
normas, enquanto fonte de Direito. Obviamente que é
este último o sentido que nos importa.
Mas mesmo nesta aceção se pode entender lei
de forma mais ou menos ampla. Assim, lato sensu, lei
opor-se-á, como fonte intencional, especialmente ao
costume (fonte não voluntária), abrangendo um conjunto
vasto de atos legislativos, e ainda regulamentos
administrativos, convenções coletivas de trabalho, etc.
Num sentido menos lato, abarca apenas "todas as
disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais
competentes", deixando de fora os atos normativos
gerais, abrangentes, de cariz privatístico, não estadual.
Finalmente, numa última e ainda mais
especializada aceção, só será lei a lei em sentido
formal, material e orgânico: uma disposição genérica,
abstrata, inovadora, suficientemente digna para tal,
imperativa, coerciva e provinda do órgão por excelência
legislativo, o Congresso (ou Parlamento). É a visão
racionalista- liberal de lei. Talvez se lhe possa
acrescentar ainda: justa.
Dentro destas várias aceções parece dever
considerar-se lei, para efeitos de interpretação quanto
às fontes de Direito, o segundo sentido.

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5
Paulo Ferreira da Cunha

Debrucemo-nos agora um pouco sobre o


fenómeno do legalismo.
Aparentemente, teríamos na generalidade dos
sistemas jurídicos de raiz romano-germânica, pelo
menos, uma estrita posição estadualista, voluntarista e
positivista. Isto é, fontes sobretudo de proveniência
estatal, queridas, desejadas como tais, ou seja,
intencionais e só se admitindo como Direito o
claramente positivado no texto da lei. Embora seja
fantasiosa a posição contrária (de que a Lei de
Introdução brasileira, ou os Códigos Civis de vários
países, já em si leis, se subordinariam por completo à lei
natural e não escrita, ao costume, etc.), haverá que
moderar uma tal ideia de estrito positivismo legalista. De
facto, há aberturas da lei positiva a outros valores e a
outras influências, embora haja de reconhecer-se uma
tendência predominante algo avessa ao pluralismo das
fontes, e privilegiadora da lei.
O grande perigo é o esquecimento da lei pelos
vários poderes, e, sobretudo, o esquecimento da
Constituição. Mas é interessante como alguns dos mais
extremos legalistas prestam afinal pouca atenção e
nenhuma reverência prática às Constituições. E quiçá
menos ainda à normatividade internacional, que se
aplica nos estados por sua própria vontade: tratados
devidamente ratificados.

4 .Costume
Trata-se não dos meros usos, da prática habitual
de dados atos, mas, especificamente, de diuturnos
comportamentos, observados com a convicção de quem
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6
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

os pratica estar vinculado à sua obrigatoriedade jurídica


(não simples uso, hábito, ou mera cortesia, ou simples
inércia social). É, pois, uma fonte não intencional.
Há quem obrigue o costume a ser racional (entre
nós, a Lei da Boa Razão, no séc. XVIII, ou espontâneo
para poder ser atendível. Se o primeiro requisito é de
algum modo evidente (e também deve estender-se v.g.
à lei) e, logo, certamente desnecessário de
autonomizar, o segundo está abrangido pela própria
definição de costume – um costume imposto não será
costume.
Segundo a sua relação com a lei, podem os
costumes concordar com ela (secundum legem),
contrariá-la (contra legem), ou extravasar o âmbito
daquela (praeter legem).
Tudo indica que costumes contra legem não
podem valer como fontes legítimas... Mas aí pode
colocar-se todo um outro leque de problemas.
Nomeadamente os que decorrem da consideração de
enclaves ou bolsas de direitos tradicionais, de povos
autóctones, de sociedades arcaicas, etc., dentro da
ordem jurídica moderna, e até “pós-moderna”. Se a
própria sociedade técnica de massas ameaçava a
simples individualidade e personalidade livre do
cidadão, padronizando-o (os simples contratos de
adesão foram um dos primeiros sinais dessa
desconsideração da singularidade do indivíduo e uma
entorse de monta à liberdade de estipulação contratual),
o curioso e paradoxal (e não se sabe até quando durará
a tendência) é que nessa mesma sociedade e na
sociedade informacional, que de algum modo se pode
dizer lhe sucedeu, integrando-a, há algumas aberturas
23
7
Paulo Ferreira da Cunha

para algum pluralismo jurídico.


Assim, se por um lado os cidadãos do direito do
asfalto citadino são crescentemente funcionalizados e
burocratizados, em alguns casos (interessante saber é
até que ponto não se trata de casos inexpressivos,
folclorizados, e mediatizados como curiosidades) há da
parte do Direito oficial, estatal, formal, legalista, e dos
seus múltiplos órgãos e agentes alguma abertura ou
simpatia para com direitos-outros, que vão desde os da
Mãe-Terra (veja-se a respetiva Declaração96) e da
natureza até a fórmulas de organização e jurisdição
autónomas, de povos que mantiveram as suas
tradições. Na América Latina há, apesar da vaga
fascista97 no Brasil (que, contudo, também despertou
muitas consciências democráticas), um
constitucionalismo inovador, respeitador dos povos
originais e dos direitos da natureza98.

5 . jurisprudência
Quando se fala em jurisprudência (com
minúscula para distinguir da episteme jurídica, essa com
maiúscula), como se sabem trata-se das decisões
verdadeiramente pertinentes aos processos nos
tribunais, as sentenças. Há muitas decisões
96 Cf., v.g., http://rio20.net/pt-br/propuestas/declaracao-universal-dos-
direitos-da- mae-terra/ - Consultado em 11 de outubro de 2016.
97 Embora haja quem tenha pudor em usar a expressão, ela é
perfeitamente adequada. V., especialmente, RIEMEN, Rob — De
eeuwige terugkeer van het fascisme, trad. port. de Maria Carvalho, O
Eterno Retorno do Fascismo, trad. port., Lisboa, Bizâncio, 2012. E não se
trata de uma curiosidade ou de um distante facto político, mas de real
ameaça ao Estado de Direito, ou seja, a pessoas concretas.
98 AVRITZER, Leonardo et al. — O Constitucionalismo democrático
latino- americano em debate, Belo Horizonte, Autêntica, 2017.
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8
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

administrativas nos tribunais, certamente. Mas elas não


são jurisprudência propriamente dita. E a jurisprudência
só é fonte imediata de Direito enquanto as suas
sentenças tenham força obrigatória geral (o que se
aproxima mais do caso dos países da Common Law,
família de direito anglo-saxônica).
Será interessante ponderar até que ponto as
súmulas vinculantes e outros institutos afins, noutros
países, poderão ter essa função e enquadramento. O
caso português dos Assentos foi já muito polémico, e
culminou com a inconstitucionalidade de pelo menos
parte do instituto, como aflorámos já99.

6 .Normas corporativas
As normas corporativas, normas das pessoas
morais, são fontes intencionais e imediatas do Direito de
origem em geral não estatal (porque pode haver
pessoas coletivas estatais por vezes ou sempre não
emitindo normas por “lei” formal: aliás, em rigor dos
rigores só o Parlamento emite verdadeiras leis),
representando a autonomia nomogenética das
entidades privadas (ou pelo menos com alguma
autonomia), embora possa englobar também pessoas
coletivas públicas.
De todo o modo, o problema é muito complexo,
prendendo-se com a classificação (hoje uma selva
conceitual e inextricável na prática, a não ser caso a
caso) dos entes coletivos. Mas o que não estiver no
âmbito das normas editadas pelos organismos
99 CASTANHEIRA NEVES, António — O Instituto dos Assentos e a
função jurídica dos supremos tribunais, Coimbra, Coimbra Editora, 1983.
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Paulo Ferreira da Cunha

corporativos (lato sensu, que não se esgota no sentido


de Corporativismo), no plano privado, caberá decerto no
conceito lato de lei, no qual cabem os atos normativos
de entes públicos menores.
O único problema será o da hierarquia das fontes,
sabendo- se, como se sabe, que as normas
corporativas devem não contrariar as leis. Em suma,
certo é que as normas corporativas continuam como
fonte de Direito em Portugal, mesmo depois da abolição
de um regime autoritário que se dizia "corporativo", mas
que era um simples corporativismo anacronicamente
folclórico e de Estado. O facto de, em Portugal, os
chamados "organismos corporativos`" (hoc sensu)
terem sido extintos pelo Decreto-lei nº 443/74 de 12 de
Setembro não parece relevante, pois, para a nossa
questão presente, conceitual e classificatória.
Recorde-se que a manutenção da norma do
Código Civil seria já a intenção de Manuel de Andrade
no seu Anteprojeto, que previa a subsistência do
normativo em causa, mesmo para ''possíveis
contingências futuras"100 englobando as convenções
coletivas de trabalho, os estatutos e regulamentos das
pessoas coletivas, etc. Até que ponto o problema se põe
noutros países é questão que não parece ter
incentivado muito visivelmente o labor dos
comparatistas e historiadores do Direito... E, contudo,
não deixa de ser uma questão pelo menos interessante.
Finalmente, a equidade, adequação do Direito ao
caso e suavização da sua dureza, bem como o negócio
jurídico, fato voluntário por excelência que dá lugar aos
100 Cf. BIGOTTE CHORÃO, Mário — Temas Fundamentais de Direito,
Coimbra, Almedina, 1986, p. 209, nota 11.
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

direitos subjetivos e à relação jurídica, não nos parecem


ser, como vimos, fontes de Direito, em rigor. Mas por
motivos práticos pensamos que se pode fazer recurso
autónomo à equidade, como uma forma mais facilmente
admissível de invocá-la apenas como um aspeto
essencial da Justiça.

24
1
Capítulo IV
Hierarquia das Fontes de Direito

1. O Problema do vértice da pirâmide


normativa:
Constituição positiva ou natural (material,
ordem de valores, etc.)?
Como temos vindo a observar, a hierarquia das
Fontes, considerada de um ponto de vista doutrinal,
varia consoante o posicionamento filosófico-jurídico dos
jurisconsultos.
Se um positivista colocará no topo da pirâmide
normativa, como norma fundamental, a Lei
(provavelmente a Constituição, lei das leis — embora
muitos legalistas não gostem muito das novas
Constituições "cidadãs", pelo mundo fora, já que são,
em grande medida, aberturas positivas para dimensões
transpositivas, pluralistas...), um jusnaturalista ou
pluralista pode dar o primado aos valores, aos
princípios fundamentais do Direito, ou (um pouco mais
dificilmente) ao costume. Um não positivista legalista,
mesmo que se decida pelo primado da Constituição (e
esta tem vários sentidos, desde logo o material, que
remete para alma, para espírito), poderá ver acima da
Constituição escrita normas supraconstitucionais, no
fundo uma Ordem de Valores (Wertordnung), ou seja,
uma estruturada articulação de princípios fundamentais
hierarquizados, ou então dos valores.
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Mas uma ordem de valores constitucionais, não é


necessariamente uma tabela pré-definida, em que os
valores estejam absolutamente hierarquizados. Pode
haver uma valoração ponderada em cada caso, entre
uma lista de valores. Daí que possa falar-se, com
propriedade, de normas constitucionais
101
inconstitucionais : isto é, normas da Constituição
escrita atentatórias dos princípios ou valores
(jusnaturais, ou, de todo o modo, suprapositivos) ou
meramente positivados (na própria Constituição ou
normas internacionais, ou na Doutrina) da Constituição
supra-positiva. O conjunto dessas mais fundas
realidades que determinam e mesmo julgam o valor de
uma Constituição positiva, essa Constituição que reside
no coração do Povo, pode ser considerada a
Constituição material. Mas evidentemente que há uma
multidão de teorias sobre a questão102.

2. Abertura (ao menos tácita) do Direito


monista ao Direito pluralista
O direito positivo hodierno (monista), em geral,
não tendo querido entrar expressamente nestas
polémicas, não tomou por norma partido; embora,
positivo que é, tivesse de acautelar o seu próprio valor
de jus positum. Se não pôde deixar de dar prevalência
à lei e implicitamente ao estatalismo, não o fez,
contudo, de forma rígida e unilateral, permitindo outras
101 BACHOF, Otto — Normas Constitucionais Inconstitucionais? trad.
portuguesa de J. M. Cardoso da Costa, Coimbra, Atlântida, 1977.
102 Cf., v.g., MORTATI, Costantino — La Costituzione in Senso
Materiale, Milão, Giuffrè, 1940, reed. 1998, com um Prólogo de Gustavo
Zagrebelsky; BARTOLE, Sergio — Costituzione Materiale e
Ragionamento Giuridico, “Dirito e Società”, 1982, p. 605 et sq.
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Paulo Ferreira da Cunha

aberturas (normas corporativas, assentos, usos,


equidade). Em última análise, não se pode sequer dizer
que proíba o uso de vários instrumentos conceituais de
Direito Natural (visão pluralista).
Pelo contrário, até o "espírito do sistema"
constituído pela ordem jurídica vigente claramente
aponta para a validade e aplicação dos princípios
fundamentais. Estamos em crer que também a
Constituição, enquanto texto, se encontra sob
julgamento daqueles princípios, até porque ela é fruto
do poder constituinte originário que reside e deriva do
Povo, o qual refletirá, nesse especifico domínio, a
consciência jurídica geral, impregnada do princípio de
Justiça, foco irradiador do Direito Natural, ou dos
valores político-jurídicos superiores, constitucionais ou
republicanos que são hoje, como sabemos e em
síntese, Liberdade, Igualdade e Fraternidade (lema que
pode ter variantes, como fomos vendo já).
De todo o modo, e podendo eventualmente (em
casos contados) fazer-se apelo a estas
hierarquizacões, os mais correntes problemas de
hierarquia das fontes encontram-se resolvidos pela lei.

3. Importância da hierarquização normativa


Importa analisar mais detidamente a hierarquia
das normas englobadas na entidade lei (hoc sensu) por
duas ordens de razões.
A primeira, diz respeito ao juízo sobre a validade
de um diploma legal. Assim, a desconformidade de uma
norma ou conjunto de normas relativamente à(s)
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

hierarquicamente superior(es) acarreta invalidade


normativa: um regulamento contrário à lei é ilegal; uma
lei que esteja desconforme (na sua forma, ou
procedimento legislativo, no órgão que a produz, ou no
conteúdo do que dispõe) à Constituição é
inconstitucional (respetivamente ferida de
inconstitucionalidade formal, orgânica ou material). Já
meras declarações ou afins que firam a letra ou o
espírito da Constituição se dirão, pelo menos em alguns
países, mais propriamente anticonstitucionais que
inconstitucionais, expressão esta que alguns reservam
para uma desconformidade entre atos normativos, e
apenas esses. E cremos que faz sentido, sobretudo
num país, como o nosso, em que a
inconstitucionalidade se refere a normas (ou tratados)
que infrinjam a Constituição ou os seus princípios (art.ª
277.º, n.º 1 e n.º 2).
A segunda ordem de razões, conexa com a
primeira, respeita à suscetibilidade de revogação entre
normas. É lógico que um diploma de grau superior
possa revogar um de grau inferior (uma lei pode
obviamente revogar um regulamento), e que diplomas
de grau análogo se possam revogar mutuamente,
enquanto as normas inferiores são insuscetíveis de
revogar as superiores (um regulamento não pode
revogar nem leis, nem decretos-leis, nem a
Constituição). Resta, contudo, a possibilidade de uma
lei especial apresentar solução diferente da geral, pela
sua especialidade, naturalmente. Contudo, o jogo
interpretativo entre o geral / particular e o geral /
especial pode ser bem complexo e prestar-se a
algumas manipulações.

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Paulo Ferreira da Cunha

4. Direito Constitucional, Internacional e da


União Europeia
Acima de todas as normas está a Constituição (e
os princípios e leis constitucionais, o “bloco de
constitucionalidade”, que no limite remete para a
Constituição material) sendo apenas para alguns
problemático o lugar de certas convenções
internacionais na ordem interna: constitucional ou
equiparado, ou supraconstitucional, ou
infraconstitucional mas supralegal (ou isso só para
tratados de Direitos Humanos, como ocorre, em tese,
no Brasil)? O problema é complexo e sobretudo muito
delicado, porque mexe com convicções e sentimentos
transjurídicos. Não haverá dúvida, em algumas ordens
jurídicas, da primazia de normas internacionais
regularmente aceites pelos Estados face à lei ordinária.
No Brasil, por exemplo, em geral a perspetiva é ainda
bastante soberanista, pelo que a dimensão normativa
internacional terá que passar muito pelos filtros da
estadualidade.
Noutros horizontes, alguns pensam mesmo que
algumas normas de Direito Internacional podem
prevalecer sobre Direito Interno. Na verdade, que
sentido fará haver milhares e milhares de tratados
internacionais com belas declarações se os Estados as
incumprem sobranceiramente? E é sintomático o artigo
de alerta, verdadeiro manifesto, de Monique Gemillier-
Gendreau: Obliger les États à tenir parole, no
prestigiado “Le Monde Diplomatique”103.
103 CHEMILLIER-GENDREAU, Monique: Obliger les États à tenir
parole, “Le Monde Diplomatique”, setembro de 2013, p. 12, ed. Online:
https://www.monde-
diplomatique.fr/2013/09/CHEMILLIER_GENDREAU/49597.
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Embora não seja já propriamente Direito


Internacional, na União Europeia vigora o princípio do
primado do Direito Europeu sobre o de cada país.
Certamente pelo repetido ensino deste princípio nas
Faculdades, em Portugal não causa enorme estranheza
a possibilidade de o juiz nacional aplicar direito
supranacional, ou estrangeiro até, como sempre
aplicou, aliás, desde que se remeteu, nas Ordenações,
para o Direito Romano, ou para o Direito Canónico...
No futuro, certamente, cada vez será mais
corrente o diálogo não só doutrinal como entre tribunais
e fontes legais até... Muito já se pratica e nem se está a
ver...

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Capítulo V
Conclusão

A partir do momento em que a Babel da


imensidão normativa e de outros produtos jurídicos
conseguiu começar a ser posta em melhor ordem pela
informatização, a esperança de o jurista comum
conseguir traçar uma via pelos caminhos de floresta
(mesmo selva oscura) do prolífico Direito começou a
despontar. Porém, essa possibilidade não deveria de
modo algum afastar o ideal do inutilia truncat. Munido
de uma nova navalha monumental de Ockham, o novo
jurista, e em especial o legislador do futuro já presente,
deveria cortar a imensidão de normas inúteis, e criar
normas consolidadas, codificadas em novos códigos
com ductilidade para a mutabilidade fugacíssima da
realidade de hoje e de amanhã. Não nos podemos
contentar com a facilidade de armazenamento e a
relativa facilidade de busca. É necessária uma
concentração das fontes, num sentido de fraternidade,
de ductilidade, de conciliação, de mediação, um direito
sutil.
Por outro lado, importa fazer um grande balanço
do papel das diferentes fontes na sociedade da
informação. Enfrentar diretamente e sem subterfúgios
quer as questões do topo da hierarquia, quer as fontes
aparentemente mais antigas e residuais.
Ou seja: vamos determinar a sério, e a um nível
ao menos regional (a União Europeia, uma União
jurídica efetiva da América Latina, etc..), se valores e
princípios valem mesmo, e em que medida, se podem
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

como que vetar leis (pelo menos nas mãos de juízes, e


que juízes, por exemplo em que instância), se o Direito
Internacional tem mesmo alguma entrada, e com que
valor, na ordem interna. São problemas que a doutrina
vai opinando (alguns possuem solução constitucional,
mas nem sempre bem interpretada e aplicada), mas
que precisariam da auctoritas e da potestas das
Constituições vivas, em práticas. Só Constituições
vivas, aplicadas, normativas (e não simplesmente
nominais ou semânticas) poderão resolver eficazmente
estas polémicas.
Em grande medida, trata-se apenas de juntar fios
soltos em vários documentos nacionais e
internacionais. Mas é de todo o modo urgente encontrar
ou uma pirâmide normativa com alguma abrangência e
rigidez, ou então, algumas abrangência e rigidez para
uma rede tópica de fontes, dando ao juiz certa liberdade
na sua manipulação. Cremos que embora haja sempre
que confiar mais em pessoas que em silogismos ou
algoritmos abstratos, capazes das maiores
barbaridades lógicas, também não de pode confiar
cegamente a justiça à subjetividade de julgadores
singulares. São importantes decisões em colégio e em
permanente sindicabilidade por outros (recorribilidade).
A necessidade de poderes travarem e vigiarem
abuso de poderes não se garante hoje, parece provado,
meramente pela intervenção de um poder
pretensamente puro e acima de toda a suspeita,
qualquer que ele seja, mas pela efetiva participação e
partilha por todos dos freios e contrapesos necessários,
que se podem subtilizar em sociedade informacional...
A História mostra que qualquer unilateralismo criando

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Paulo Ferreira da Cunha

poderes todo-poderosos, na interpretação e aplicação


da Lei e do Direito resulta mal. Há que ser modesto e
não acreditar, como diria Todorov, em jardins (jurídicos)
perfeitos, mas em jardins realmente imperfeitos, mas
perfetíveis104.
E ainda: costume, equidade, normas de pessoas
morais ou coletivas, em que medida são coisa pré-
moderna, ou, pelo contrário, adquiriram na sociedade
da informação novas cores, mas continuam atuais?
Estamos a precisar, certamente, de pontes explicativas,
que sejam boas transmissoras de metáforas. Na
verdade, cremos que novos costumes se estão criando,
a equidade necessita de ser válvula reguladora em
casos de cada vez maior estrangulamento de
excecionalidade e emergência, e cada dia surgem mais
conglomerados pessoais, nem sempre com associação
física e presencial de pessoas, mas por laços virtuais
que podem necessitar de tutela, e cujas determinações
não podem ficar de todo alheias à sabedoria do Direito.
Ainda que seja apenas para ir acompanhando, sem
uma intervenção legalista...em certos casos.
Quem prognosticou que no futuro não haveria
Direito, muito se enganou. O direito da sociedade do
futuro terá que conhecer muito mais realidades
complexas, técnicas e tecnologias a exigir muita
especialização, mas a vontade do Direito persistirá,
sempre, como constante e perpétua. E sempre de
retamente atribuir o que é seu a quem seja o verdadeiro
e justo titular.
94
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira — Curso de Direito Internacional
Público, 10.ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo, Ed. RT, 2016, p. 155.

104 TODOROV, Tzvetan — Les jardins imparfaits, Paris, Grasset, 1998.


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