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D635
Direito, mito e sociedade : estudos antropológicos e sociológicos
do fenômeno jurídico / organização Pietro Nardella-Dellova ;
coorganizadores e coautores José Antonio Callegari ... [et al.]. -
1. ed. - São Paulo : Scortecci, 2021.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5529-433-0
21-70803
CDU: 34:572
173
SHIRLEY, R. W. Antrop. jurídica. SP: Saraiva, 1987, p. 15.
174
COLAÇO, Thaís Luzia. “O despertar da antropologia jurídica”. Em: _____
164 (org.). Elementos de antropologia jurídica. Florianópolis: Conceito Ed., 2008, p. 29.
jurídica, antes marcadas pelo positivismo e evolucionismo.
Ao buscar responder a questão “o que é antropologia legal?”,
inicia dizendo que “para examinarmos os conceitos de an-
tropologia legal, devemos discutir o problema do direito em
si”.175 Ocorre que para fazê-lo apela para dicotomização cla-
ro-escura de sociedades sem e com estado, sendo que nas
primeiras se apresentava o direito “primitivo”. Para a com-
preensão do direito em sociedades onde o estado já exista (e,
lembremos, que não há de se confundir o estado, em geral,
com o estado-moderno, em particular) recorre aos modelos
que se iniciam com a tradição kelseniana da teoria do direito
(além de Kelsen, também Hart é citado). Não que se reduza
a esta tradição sua proposta, mas com ela inicia. E após insis-
tir em análises referentes a “povos primitivos” (ou seja, sem
estado), Shirley conclui aludindo a outro aspecto importante
da antropologia jurídica, complementar ao estudo do “direito
em si”. Diz ele que “há certas distinções básicas no tipo de
pesquisa que os antropólogos fazem no domínio da lei”176 e
elas se referem aos aludidos componentes citados anterior-
175
SHIRLEY, R. W. Antropologia jurídica, p. 9.
176
SHIRLEY, R. W. Antropologia jurídica, p. 14. 165
totalidade, dentro da totalidade das relações sociais. Uma vez
mais, ficou ressaltado o campo de pesquisa e não o objeto
pesquisado.
É por isso que, para este campo de investigações, pro-
pomos apresentá-lo a partir de suas grandes preocupações
que, na realidade, representam seus quatro grandes ramos
de estudo, seguindo a senda das definições acima apresen-
tadas. Assim, o campo da antropologia jurídica se dedica ao
estudo da chamada “antropologia legal” que aparece como
ramo preocupado com o direito das sociedades simples (de-
nominação antropológica clássica, em sentido inclusive pe-
jorativo, para sociedades antigas ou primitivas, sem estado
e sem escrita); da “antropologia jurídica propriamente dita”
ou “em sentido estrito”, a qual, por sua vez, tem por escopo
operacionalizar o estranhamento e refletir sobre as institui-
ções do direito da sociedade atual (que, na dicotomia com as
sociedades simples, seriam sociedades complexas); do “direi-
to comparado”, que fricciona (quer dizer, compara) formas
de juridicidade e ordenamentos jurídicos; e da “pluralidade
jurídica” cujas problemáticas se dão em torno da diversidade
jurídica dentro de um mesmo contexto sociopolítico.
Tradicionalmente, somente os três primeiros ramos
ou preocupações são explicitados pelo campo. A questão da
“pluralidade jurídica” é contribuição evidente de realidades
coloniais que forjaram uma antropologia jurídica periférica.
Subsidiam-na, notadamente, os desenvolvimentos teóricos
no continente africano e no latino-americano.
10.1 O estudo do direito das assim chamadas socieda-
Direito, Mito e Sociedade
des simples
Em franco diálogo com a história do direito, a área que
mais notabilizou a antropologia jurídica foi a que se preo-
cupou com o “direito arcaico”. Aqui, há todo um desenvol-
vimento teórico oriundo das principais escolas antropológi-
cas modernas. Na realidade, referidas escolas são reflexo do
desenvolvimento do capitalismo, a partir de sua irradiação
europeia. O processo de expansão colonial, iniciado com as
grandes navegações, após a primeira consolidação das rotas
166
marítimas comerciais, levou a um sistema mundial de domi-
nação geopolítica conhecida por imperialismo. As grandes
escolas antropológicas modernas, portanto, são desdobra-
mentos do imperialismo, como fase mais avançada do capita-
lismo até então, no século XIX.
Na construção epistêmica das ciências sociais, assim,
adentra uma operação que marcaria a antropologia em defi-
nitivo: a oposição sofisticada entre o simples e o contempo-
râneo. Dualidade comparativa que se apresenta com sofisti-
cação porque as sociedades não desenvolvidas do ponto de
vista capitalista recebem a caracterização de “simples”, em
contraposição à complexidade da sociedade industrial e colo-
nial europeia, a qual, como que sintomaticamente assumindo
a filosofia da história de Hegel, teria por ápice o seu tempo
“presente”, oitocentista.
É dessa maneira que a Henry Summer Maine se torna
possível escrever seu clássico “O direito antigo”177, a partir de
estudos de índole colonial sobre a Índia. A escola britânica,
convivendo mais benfazejamente ainda que nem por isso me-
177
Ver MAINE, H. Summer. Ancient Law. NY: Cosimo, 2005.
178
Ver MALINOWSKI, B. Crime e costume na sociedade selvagem. Trad. de
Maria Clara C. Dias. 2 ed. Brasília: UnB, 2008.
179
Ver RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estr. e funç. na soc. primitiva. Td. de
Nathanael C. Caixeiro. Petrópolis: Vozes, 1973. 167
advêm as importantes contribuições de Émile Durkheim180
e, posteriormente, de seu sobrinho, Marcel Mauss181, dedi-
cando-se, por exemplo, ao estudo dos polinésios. Menos co-
nhecidas entre nós, as escolas holandesa e estadunidense têm
papel de relevo nesta história. As obras de Vollenhoven182 e
Ter Haar183, este último dedicado à compreensão do direito
na Indonésia, e de Roy Barton184, Hoebel e Llewelyn185, com
etnografias sobre populações filipinas e nativas da América
do Norte, assinalam o reconhecimento que a literatura da
história da antropologia confere, para os desdobramentos da
antropologia jurídica.
Em toda esta discussão, destaca-se a possibilidade de
se encontrar o direito em qualquer sociedade antiga, sendo
que esta constatação nos leva à reflexão sobre a universalida-
de do fenômeno jurídico como uma construção das ciências
sociais modernas. De outra banda, podemos enfatizar o fato
de que o direito é buscado para além de a realidade estatal.
Assim, o direito é encontrado em regras e costumes, havendo
uma identificação última entre direito e lei. É por isso que
esta preocupação recebe a denominação de “antropologia le-
gal”. Enfim, se, por um lado, é possível encontrar o direito
em sociedades sem estado, por outro lado, isto só se dá em
sociedades que justamente não têm a marca da estatalidade,
180
Ver DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. Tradução de Eduar-
do Brandão. 3 ed. SP: Martins Fontes, 2008.
181
Ver MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas socie-
Direito, Mito e Sociedade
186
SHIRLEY, R. W. Antropologia jurídica, p. 12. 169
sensibiliza o campo antropológico preocupado com o estu-
do do “direito” das sociedades simples: normas sociais, éticas
ou morais, e jurídicas se entrelaçam, realçando a totalidade do
“objeto”, visualizado de maneira indiscriminada. A afirmação
científica contextual de um subcampo, como o da antropologia
legal, ocorre, porém, independentemente dos avanços da teoria
do direito. Se é verdade que a antropologia jurídica, como seg-
mento da antropologia geral, não faz prevalecer os interesses de
estudos do subcampo antropológico-legal, é verdade que man-
tém intacto seu pressuposto, o universalismo jurídico, presente
em toda e qualquer norma social, costume ou moralidade.
187
Ver, por exemplo: LATOUR, Bruno. La fabrique du droit: une etnographie du
Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2004; OLIVEIRA, Luís R. Cardoso de.
“Da moral à eticidade via questões de legitimidade e eqüidade”. Em: OLIVEIRA,
Roberto Cardoso de; _____. Ensaios antrop. sobre moral e ética. RJ: Tempo Brasi-
leiro, 1996, p. 105-142.
188
Ver SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Jogo, ritual e teatro: um estudo
antropológico do tribunal do júri. SP: Terceiro Nome, 2012.
189
SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça: antrop. dos modos de governo da infância
e da juventude no contexto pós-ECA. PA: UFRGS, 2009.
190
BEVILAQUA, Ciméa B. Consumidores e seus direitos: um estudo sobre conf.
no mercado de consumo. SP: Humanitas; NAU/USP, 2008.
191
Ver LIMA, Roberto Kant de. A antrop. da acad.: quando os índios somos nós.
Petrópolis: Vozes; Niterói: UFF, 1985. 171
científico, por medrar linguagem, preocupação e reconheci-
mento próprios, sendo de se ressaltar o fato de que tal au-
tonomização se deu em contextos onde a própria tradição
metropolitana o exigiu.
Apesar de ser nota indelével da própria antropologia
o método comparativo, a autonomia do direito comparado
se dá por enfatizar a demonstração de semelhanças e dife-
renças entre institutos jurídicos específicos ou mesmo orde-
namentos completos, contrastando-se realidades sociais dis-
tintas. Poderíamos dizer que se trata de estabelecer o ciclo
completo tanto da antropologia legal quanto da antropologia
jurídica em sentido estrito, absorvendo estas preocupações e
subordinando-as à totalidade comparativa. No fundo, as duas
primeiras preocupações são antropologias jurídicas “em si”;
o direito comparado é “entre si”.
A análise comparativa levou a, por exemplo, estabe-
lecer-se a compreensão aproximativa de institutos jurídicos
específicos, conforme o desenvolvimento de etnografias so-
bre realidades sob a mira dos antropólogos. Assim, o estu-
do da dívida-contrato, o injô, entre os Tiv, realizado por Paul
Bohannan192, permitiu a comparação com a cláusula-dívida,
presente no imaginário ocidental.
Em termos de antropologia jurídica para os cursos de
direito, todavia, mais eloquente talvez seja o fato de que te-
nhamos de colocar em seu devido lugar a tradição jurídica
europeia. E isto é possível de se visualizar não por conta de
análises cirúrgicas a respeito de institutos específicos passí-
veis de comparação de sociedades para sociedade, mas pela
Direito, Mito e Sociedade
192
BOHANNAN, Paul. “A categoria injô na sociedade Tiv”. Td. Alba Zaluar
Guimarães. Em: DAVIS, Shelton H. (org.). Antrop. do direito: estudo comp. de
172 categ. de dívida e contrato. RJ: Zahar, 1973, p. 57-69.
legalidade e das codificações, não só não é o único a contras-
tar com o direito anglo-saxão, em que prevalece o costume e
o precedente, como também não é a melhor designação para
o conhecimento da tradição jurídica na América Latina.
Mario Losano, em seu estudo comparativo dos gran-
des sistemas jurídicos193, notou muito bem, até por ser um
“brasilianista”, que o direito continental europeu influencia
decisivamente, mas não se confunde com o direito sul-ameri-
cano (poderíamos chamar, sem grandes prejuízos de intelec-
ção, direito latino-americano), uma vez que este se distingue
pela sua marca colonial, que gera uma pluralidade jurídica su-
bordinada a um centro difusor da “legitimidade” jurídica, as
regras oriundas do estado metropolitano.
Assim, a teoria do direito, especialmente no estudo da
teoria do direito latino-americana, não pode se reduzir às ma-
trizes do Common Law ou do Civil Law, pois tem de abrir-se a
sua margem externa, o direito latino-americano. Além disso,
no ocidente um outro sistema precisa ser considerado, ainda
que de sobrevida extemporânea – o direito soviético e sua
193
Conferir LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sis-
temas jurídicos europeus e extra-europeus. Tradução de Marcela Varejão. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. 173
sim fazê-los presentes para que notemos a necessidade de
localizar a nossa construção teórica ocidental e colonizada,
de um direito que vem ou da “lei” ou do “costume”. Esta é
uma falsa dualidade, fruto de mitologemas heleno-romano-
cêntricos, do eurocentrismo das ciências sociais e do etno-
centrismo ocidental que fundamenta os limites ideológicos
de nosso tempo.
194
O tema da pluralidade jurídica tem vasta literatura e, no Brasil, costuma ser
referenciado pela obra de WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: funda-
mentos de uma nova cultura no direito. 4 ed. rev. e atualiz. São Paulo: Saraiva, 2015.
Ver também SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. “Autodeterminação dos
povos e jusdiversidade”. Em: ALMEIDA, Ileana y ARROBO RODAS, Nidia
(orgs.). En defesa del pluralismo y la igualdad: los derechos de los pueblos indios y el
174 estado. Quito: Abya-Yala, 1998, p. 179-241.
não é fonte exclusiva de normatividade. Apesar de abrir espaço
para uma análise insurgente da gênese do direito, não encami-
nha a discussão naturalmente para uma crítica do direito es-
tatal, pois por vezes legitima a convivência com este. Em um
mesmo espaço geopolítico cabem várias ordens normativas,
inclusive com fontes distintas em suas legitimidades. Diante
disso, a tendência da análise jurídica – e nisso a antropologia
jurídica segue a tendência – é traduzir na linguagem do direito
moderno as demais normatividades. Daí a noção de plurali-
dade jurídica (um silogismo: se há pluralidade social e se para
cada “social” há uma fonte jurídica, logo há uma pluralidade
jurídica). Mesmo que sejam várias ordens em um mesmo es-
paço, o contemporâneo tem sua fronteira com o espaço alheio
– e para o “direito estatal” este alheio são as realidades sociais
que não se harmonizam com seus pressupostos, desde as et-
nias não brancas até as práticas anômicas ou subversivas.
Por tudo isso, são formas gerais da pluralidade jurídica
a sua intra, extra e não-estatalidade. A pluralidade jurídica in-
traestatal reside no confronto normativo de instituições ofi-
195
Para uma aproximação, ainda que tangencial, a esta problemática, ver PA-
ZELLO, Ricardo Prestes. “Acumulação originária do capital e direito”. Em: In-
SURgência: revista de direitos e movimentos sociais. Brasília: IPDMS; PPGDH/
UnB; Lumen Juris, vol. 2, n. 1, janeiro-junho de 2016, p. 66-116.
176 196
Vide dados biográficos e produção de Wilson Madeira Filho no final do livro.