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v. STJ: AI 1.030.

469-AgRg
v. STJ: REsp 1.274.515

A interpretação da sentença civil

João Francisco Naves da Fonseca


Mestrando em Direito Processual pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual
Advogado em São Paulo

Endereço: Rua XV de Novembro, n. 331, Centro, São Paulo, SP – CEP 01013-001


Telefones: (11) 3241-2881 ; (11) 9470-3728

Sumário: 1. A P R E S E N T A Ç Ã O 2 . A P L I C A Ç Ã O D A L Ó G I C A D O R A Z O Á V E L N A
INTERPRETAÇÃO DOS PRONUNCIAMENTOS JUDICIAIS 3. PRINCÍPIO DA
CONGRUÊNCIA: MEIO SEGURO DE INTERPRETAÇÃO DOS JULGADOS 4. O
PRINCÍPIO DA EFETIVIDADE DOS COMANDOS JUDICIAIS E A
INTERPRETAÇÃO DO JULGADO 5. CORRELAÇÃO ENTRE O DISPOSITIVO E A
MOTIVAÇÃO 6. INTERPRETAÇÃO DO PRECEDENTE JUDICIAL
7. INTERPRETAÇÃO DAS SENTENÇAS LIQUIDANDA E EXEQÜENDA
8. CONCLUSÕES

1 – APRESENTAÇÃO

O tema da determinação do sentido e alcance de um enunciado normativo já


alcançou relevante importância na ciência do direito. Não se questiona mais a necessidade de
interpretar uma norma jurídica antes de aplicá-la, 1 pois é a interpretação que dá racionalidade
ao direito positivo, atribuindo-lhe características de coerência, univocidade significativa e
completude.
Não tão estudada e debatida como a da lei e dos contratos, a interpretação das
decisões judiciais merece ganhar mais espaço na hermenêutica do direito, uma vez que são
também normas jurídicas, mas de caráter individual e concreto. 2-3 Ademais, a importância de

1
- Está superado o brocardo latino in claris cessat interpretatio, uma vez que “o conceito de clareza é
relativo: o que a um parece evidente, antoalha-se obscuro e dúbio a outro, por ser este menos atilado e culto, ou por
examinar o texto sob um prisma diferente ou diversa orientação” (cf. CARLOS MAXIMILIANO, Hermenêutica e
aplicação do direito, 12ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1992, p. 37). Ademais, até mesmo o mínimo trabalho de captar
o sentido de um texto aparentemente muito claro e coerente já é em si uma interpretação. Ou seja, mesmo nesse caso,
foi a interpretação que revelou ser o texto harmonioso e seguro (cf. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Instituições de
direito processual civil, III, São Paulo, Malheiros, 2001, n. 1.230, p. 674).
interpretá-las cresceu, na medida em que o ordenamento jurídico brasileiro passou a valorizar
mais os precedentes judiciais, aproximando-se do sistema de common law.
Contudo, há escassez de trabalhos científicos sobre “interpretação da sentença”,
tanto no Brasil como nos demais países de civil law. No país, poucos juristas escreveram sobre a
4
“interpretação da sentença” em seus cursos de direito processual e outros poucos dedicaram
artigos sobre a sua exegese nos momentos de liquidação e execução, 5 e quase nada mais. Em
Direito Comparado, percebia-se o mesmo desinteresse visto aqui, tanto por parte da doutrina,
quanto por parte do legislador. Na Itália, só em meados da década de 1980, o interesse sobre o
assunto cresceu. 6
Por isso, o presente trabalho, apesar de não ter a pretensão de esgotar todo o
estudo de tema tão amplo, tem por escopo a sua valorização, a fim de que o intérprete da
sentença 7 seja tão cuidadoso na busca da justiça estabelecida no julgado, quanto o magistrado
na aplicação das normas jurídicas gerais e abstratas ao caso concreto.

2 – APLICAÇÃO DA LÓGICA DO RAZOÁVEL NA INTERPRETAÇÃO DOS PRONUNCIAMENTOS


JUDICIAIS

A sentença, assim como as leis, deve ser interpretada à luz da lógica do


razoável. Essa é a lição de LUIS RECASÉNS SICHES, que também criticou a busca pelo “método
interpretativo mais correto”. É que embora haja uma variedade de métodos de interpretação do
2
- Na verdade, o que se interpreta são os textos normativos (texto da lei, do contrato, da sentença, do
ato administrativo etc). Por isso, a rigor, a norma não é interpretada, mas é o resultado da interpretação do texto
normativo (cf. EROS ROBERTO GRAU, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, São Paulo,
Malheiros, 2002, esp. p. 17). Feita essa ressalva inicial, abre-se a oportunidade para dizer que em outros trechos deste
trabalho essa distinção (norma/texto normativo) não será sempre observada, apenas por uma questão de simplicidade
de escrita.
3
- E tal como a de qualquer enunciado normativo, a interpretação do pronunciamento judicial
também deve visar ao aprimoramento do seu grau de segurança jurídica, de modo a se determinar a sua extensão e
sentido (Cf. HANS KELSEN, Reine Rechtslehre, trad. port. João Baptista Machado, Teoria Pura do Direito, 6ª ed., São
Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 397).
4
- É o caso, por exemplo, de DINAMARCO (Instituições de direito processual civil, III, ob. cit.,
n. 1.230, pp. 674-679) e HUMBERTO THEODORO JR. (Curso de direito processual civil, v. 1, 40ª ed., Rio de Janeiro,
Forense, 2003, n. 496-b, pp. 466-467).
5
- Dentre eles, HUMBERTO THEODORO JR (Execução de sentença: iniciativa do devedor;
interpretação de sentença in Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 50, set. 2002, pp.7-18), JOSÉ MANUEL DE ARRUDA
ALVIM NETTO (Interpretação da sentença liqïiidada - fidelidade ao seu sentido original - multa convencional e
"astreintes" - diferenças e limites, in Revista de Processo, São Paulo, n. 77, jan./mar. 1995, pp. 177-187) e VICENTE
GRECO FILHO (Liquidação, execução e interpretação da sentença, in Revista da Escola Paulista da Magistratura,
São Paulo, v. 2, nov/jun 1998-1999, pp. 99-103).
6
- Foi nessa década que a revista italiana Contratto ed Impresa promoveu dois encontros importantes
nos quais o tema foi discutido (o primeiro em 1987, na cidade de Padova, sobre Il precedente giudiziario
nell’esperienza nazionale e o segundo, no ano seguinte, em Genova, sobre La giurisprudenza per massime e il valore
del precedente). Não por acaso, FRANCESCO GALGANO publicou na revista supracitada o seu L’ interpretazione del
precedente giudiziario (cf. FABIO SANTANGELI, L’ interpretazione della sentenza civile, Milano, Giuffrè, 1996, p. 5).
7
- A propósito, intérpretes dos pronunciamentos judiciais são as partes, os tribunais que julgam
recursos interpostos contra as decisões, ações rescisórias etc., bem como o juiz que dirige as fases de liquidação e
execução do julgado (cf. DINAMARCO, Instituições..., III, ob. cit., n. 1.230, p. 674). MICHELE TARUFFO acrescenta
ainda que são intérpretes das sentenças o público em geral, especialmente quando o caso judicial é de grande
repercussão, e o estudioso do direito atento às tendências jurisprudenciais (La motivazione della sentenza civile,
Padova, CEDAM, 1975, pp. 44-45). Além disso, o magistrado que aplica o precedente ao caso em julgamento
também é um intérprete daquela decisão judicial.

2
8
direito, nenhum deles resolve satisfatoriamente o problema de dar a melhor compreensão
9
possível do significado de um texto. Ainda segundo o jurista espanhol, é “un dislate enorme
pensar en la posibilidad de una interpretación literal”, porque a linguagem não é um mero
conjunto de palavras, mas sim uma série de sentidos expressos simbolicamente, bem ou mal,
mediante vocábulos. Ademais, as palavras têm seu sentido autêntico dentro do contexto interno
da frase e, sobretudo, dentro daquele a que a frase se refere. 10
Também o emprego da lógica tradicional – lógica dedutiva – na interpretação
do direito é bastante criticado pelo jurista, já que o estudioso deve ter em conta o surgimento de
uma nova lógica, que se preocupa mais com as conseqüências e efeitos do resultado do processo
interpretativo do que com as suas premissas. Por isso, essa nova lógica do razoável – da razão
humana ou de lo humano – trataria de previsão de probabilidades, mais do que de dedução de
certezas. 11
À luz desse novo paradigma, CÂNDIDO DINAMARCO apresenta exemplo apoiado
em sentença que condenou o responsável por uma fonte emissora de sons “a abster-se de utilizar
o amplificador que vinha utilizando”. Diz o professor do Largo São Francisco que “só pela
lógica do absurdo poder-se-ia afirmar que o sujeito não estaria proibido de substituir aquele
aparelho por outro de maior potência”. 12
Esse caso assemelha-se ao narrado por RECASÉNS SICHES, segundo o qual, em
uma estação ferroviária da Polônia, havia letreiro cujo texto proibia os passageiros de entrarem
na plataforma da estação com cachorros. Certa vez, alguém quis entrar com um urso, situação
que fez emergir conflito com os vigias da estação. Conforme o jurista, não haveria a menor
dúvida de que, se fossem aplicados estritamente os instrumentos da lógica tradicional, ter-se-ia
que reconhecer que a pessoa que entrava acompanhada do urso tinha o indiscutível direito de se
fazer acompanhada do animal. 13
No entanto, qualquer pessoa com bom senso haveria de refutar essa
interpretação, ainda que do ponto de vista da lógica dedutivo-formal se apresentasse como a
única correta. É que a lógica formal, por ser meramente enunciativa do ser e do não ser, não
tem uma previsão sobre os fins, sobre a congruência entre os meios e os fins, nem sobre a
eficácia dos meios em relação a um certo fim. Por isso, o seu emprego na interpretação dos
conteúdos normativos pode resultar em soluções absurdas.

8
- p. ex., o literal, o subjetivo, o objetivo, o analógico etc.
9
- Tratado general de filosofia del derecho, 9ª ed., México, Porrua, 1986, pp. 629-630. VICENTE
GRECO FILHO, porém, ao contrário de RECASÉNS SICHES, defende a aplicação dos tradicionais métodos de
interpretação das leis e dos contratos também à hermenêutica das decisões judiciais (vide nota de rodapé n. 68 do
presente trabalho).
10
- Tratado general de…, ob. cit., pp. 654-655.
11
- Tratado general de…, ob. cit., p. 638.
12
- Instituições..., III, ob. cit., n. 1.230, p. 675.
13
- Tratado general de…, ob. cit., p. 645.

3
Somente por meio da lógica do humano é que se torna razoável estender a
proibição, no caso narrado, também à entrada com ursos. Afinal, em síntese, a proibição de
entrar na estação com cachorros tinha o objetivo de evitar que eles causassem transtornos aos
demais passageiros, pois são seres que poderiam atacar as pessoas ou lhes contaminar com
doenças. Nesse sentido, os ursos, animais menos dóceis e domesticados do que os cães, também
ofereceriam perigos de ataque e de transmissão de doenças, mas em grau ainda maior, razão
pela qual a sua entrada, a fortiori, também estava proibida. 14
Enfim, a análise dos exemplos do ampliador de som com maior potência e do
transporte de urso no vagão leva o estudioso à conclusão de que a aplicação da lógica do
razoável supera a pluralidade de métodos interpretativos e o emprego da lógica formal na
interpretação dos preceitos jurídicos. 15

3 – PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA: MEIO SEGURO DE INTERPRETAÇÃO DOS JULGADOS

Antes de recorrer à lógica do razoável, todavia, deve o intérprete analisar a


sentença à luz do pedido, conforme o princípio da congruência entre o pedido e a sentença
16 17
(CPC, arts. 128 e 460). - Trata-se de cânone essencial para conferir maior segurança à
atividade interpretativa. 18
O princípio da congruência, em suma, preza pela necessidade de correlação da
sentença com a demanda; satisfeitos os pressupostos processuais e as condições da ação, o juiz
deve analisar todo o pedido. Em uma extensão do princípio, diz-se o mesmo para a causa de
pedir: todas as questões processuais e de mérito devem ser esgotadas. Ou seja, além do eixo
imaginário que liga o pedido posto na inicial e a parte dispositiva da sentença, existe outro eixo,
a interligar os fundamentos do pedido do autor e os da sentença, passando pelos da defesa do
réu. Por isso, assim como tem o autor o ônus de dizer por que entende estar protegido pelo bom
direito, tem também o juiz o dever de dizer, na motivação, por que decide de um modo e não de
outro. 19
14
- Cf. RECASÉNS SICHES, Tratado general de…, ob. cit., p. 646.
15
- Nas palavras de RECASÉNS SICHES, “tan pronto como ponemos pie en el logos de lo razonable o
de lo humano para la elaboración de los contenidos jurídicos – lo mismo de los contenidos de las reglas legislativas
que de los contenidos de las normas individualizadas en la sentencia o en la resolución administrativa -, nos daremos
cuenta de que las clasificaciones tradicionales de los métodos de interpretación (en literal, subjetivo, objetivo,
histórico, analógico etc) ya no tienen razón de ser” (Tratado general de…, ob. cit., p. 661-662). No Brasil,
DINAMARCO também defende a aplicação do logos de lo humano à interpretação sentencial: “O conhecidíssimo
método interpretativo consistente na lógica do razoável foi desenvolvido com vista à interpretação da lei e da
sentença, mas tem plena aplicação a esta” (Instituições..., III, ob. cit., n. 1.230, p. 675).
16
- Art. 128: “O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de
questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”.
17
- Art. 460: “É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem
como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado”.
18
- Ensina DINAMARCO que “a regra da correspondência da tutela jurisdicional à demanda proposta,
expressa nos arts. 128 e 460 do CPC, não se limita aos julgamentos em primeiro grau de jurisdição, mas tem
aplicação em todas as instâncias, observadas as peculiaridades de cada uma delas” (Instituições..., III, ob. cit., n. 950,
p. 291).
19
- Cf. DINAMARCO, Instituições..., III, ob. cit., n. 960, p. 314.

4
Nesse sentido, EMILIO BETTI chamou a atenção para a coerenza della sentenza
col procedimento, isto é, a interpretação do julgado deve enquadrá-lo harmonicamente no
conjunto do processo, tendo em vista que a sentença é o ato pelo qual o juiz dispõe sobre a
demanda conforme o resultado da discussão processual. 20
Traz-se à baila o seguinte caso para ilustrar o que acima foi dito. O Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA – ajuizou demanda desapropriatória de
terras de uma certa fazenda. No entanto, essa ação foi julgada improcedente, porque o juiz
entendeu que a propriedade rural era produtiva. Ocorre que, nesse ínterim, a fazenda fora
ocupada pelos chamados “sem-terra”, em decorrência da inércia do INCRA em cuidar do bem,
após ter conseguido liminarmente o seqüestro em ação cautelar que visava à sua conservação
para uma eventual procedência da demanda expropriatória.
Em razão disso, o proprietário das terras moveu demanda indenizatória em face
21
da autarquia federal, na qual foi elaborado um longo laudo pericial avaliando os danos
sofridos (perda de centenas de cabeças de gado, estragos na sede da fazenda etc), os lucros
cessantes, bem como o valor da terra nua, o qual foi explicitamente aceito pelas partes e
acatado pelo juiz.
O magistrado julgou procedente a indenizatória nos valores apontados pelo
perito, mas deixou de dizer de forma clara que o instituto da desapropriação indireta havia se
operado. Também não disse que após o pagamento ao proprietário, a sentença transitada em
julgado deveria ser transcrita no Registro de Imóveis, para incorporação do bem – que já estava
todo tomado pelos “sem-terra” – ao patrimônio público. Obviamente, também não determinou a
imissão de posse em favor do proprietário.
Por isso, após a prolação da sentença, ficou a “dúvida” acerca da ocorrência ou
não da desapropriação indireta, querendo o proprietário forçar essa última hipótese. O INCRA
então, após deixar transcorrer in albis o prazo de embargos declaratórios para que o Juízo a quo
suprisse a omissão da sentença, apelou para que o tribunal explicitasse a ocorrência da
22
desapropriação. Nesse sentido, conforme a lição de BETTI, para se interpretar o julgado
levando em consideração todo o desenvolvimento do processo, o tribunal deverá dar provimento
ao recurso. Afinal, além do fato de que o valor da terra nua corresponde à grande parte do
montante da condenação, todas as partes – inclusive o autor do processo de indenização –
concordaram integralmente com o valor constante no laudo.

20
- Interpretazione della legge e degli atti giuridici - teoria generale e dogmatica, 2ª ed., Milano,
Giuffrè, 1971, pp. 362 e 369.
21
- A demanda indenizatória foi ajuizada logo depois do trânsito em julgado da sentença de
improcedência do processo de desapropriação.
22
- A negligência da autarquia federal, ao não opor os embargos de declaração, levou-a à interposição
de recurso dispendioso e moroso: apelação. Sobre o uso dos embargos declaratórios como instrumento efetivo a
serviço da interpretação do ato decisório, vide LUIS GUILHERME AIDAR BONDIOLI, Embargos de declaração, São
Paulo, Saraiva, 2005, esp. pp. 84-89 e 300-305.

5
Essa solução iria ao encontro de vários julgados do Superior Tribunal de
Justiça, que têm procurado demonstrar a necessidade de se fazer a correlação da sentença não só
com o pedido, mas também com a causa de pedir e toda a discussão processual. 23
Sobre o princípio em comento, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR afirma que o
pedido torna-se o objeto da prestação jurisdicional sobre o qual a sentença irá operar, motivo
pelo qual ele é o critério mais seguro de interpretação da sentença, visto que esta é justamente a
24 25
resposta do juiz ao pedido do autor. Por isso, é necessário que o objeto do processo fique
bem claro e delimitado para que sobre ele possa se manifestar a defesa do réu. É aí que o
princípio da congruência relaciona-se com as garantias do contraditório, da ampla defesa e do
devido processo legal: sendo o objeto da causa o pedido da parte, não pode o juiz decidir fora
dele, sob pena de surpreender a outra parte e lhe cercear a defesa, impedindo-lhe o exercício do
pleno contraditório. 26-27
Contudo, percebe-se que o princípio da congruência ainda não é completamente
compreendido e aplicado pelos tribunais, conforme se depreende do seguinte caso. Dois
funcionários públicos do Estado de São Paulo ajuizaram mandado de segurança contra o ato que
os afastara de seus cargos, cujo pedido era a sua invalidação, com a conseqüente reintegração
aos cargos e o retorno ao statu quo ante, garantida a igualdade de todas as condições a que
tinham direito, acrescidas daquelas que tinham sido concedidas aos a eles equiparados.
Em recurso ordinário, o Superior Tribunal de Justiça afastou as duas alegações
dos impetrantes que maculariam de ilegalidade o ato praticado pela Administração, mas acolheu
a tese da prescrição da punição, nos seguintes termos: “ante o exposto, conheço do recurso e lhe
23
- Os seguintes julgados são bons exemplos: STJ-4ª T., REsp 233.446, rel. Min. SÁLVIO DE
FIGUEIREDO TEIXEIRA, j. 27.3.01, deram provimento, v.u., DJU 7.5.01, p. 145; STJ-3ª T., REsp 362.820, rel. Min.
NANCY ANDRIGHI, j. 19.11.02, não conheceram, maioria, DJU 10.3.03, p. 187; STJ-5ª T., REsp 259.812, rel. Min.
FELIX FISCHER, j. 26.2.02, não conheceram, v.u., DJU 18.3.02, p. 282.
24
- Curso de direito..., v. 1, ob. cit., n. 496-b, p. 466.
25
- Em sentido mais técnico, deve-se entender por objeto do processo “a soma de todos os pedidos
trazidos pelo autor originário e por outros eventuais demandantes, como o próprio autor ao denunciar a lide a
terceiro, o réu em reconvenção ou também ao denunciar a lide ou chamar terceiro ao processo, ou o terceiro ao
deduzir intervenção litisconsorcial voluntária ou oposição interventiva”. (cf. DINAMARCO, Instituições..., III, ob. cit.,
n. 961, pp. 314-315).
26
- “Conquanto ainda seja reputado um dos baluartes do processo civil contemporâneo, o princípio
dispositivo não possui mais aquela importância do passado, em razão da necessidade do aumento das funções
jurisdicionais para a efetiva tutela, tendo sido por isso mesmo também atingido, por via de conseqüência, o princípio
da correlação entre o decisum e o petitum”. Nesse sentido, pode o juiz aplicar a sanção ao litigante de má-fé ex
officio; proferir sentença fora do pedido, em caso de colusão das partes; determinar efeitos mandamentais de ofício
para se forçar o cumprimento da sentença; conceder uma medida possessória em lugar de outra (CPC, art. 920); levar
em consideração na sentença os fatos, após a propositura da demanda, constitutivo, modificativo ou extintivo do
direito que influir no julgamento da lide (CPC, art. 462) (cf. VALLISNEY DE SOUZA OLIVEIRA, Nulidade da sentença e
o princípio da congruência, São Paulo, Saraiva, 2004, pp. 331 e ss.). Há ainda outras exceções legais ao princípio da
congruência, tais como a do art. 293 do CPC (“Os pedidos são interpretados restritivamente, compreendendo-se,
entretanto, no principal os juros legais”), estendida jurisprudencialmente à correção monetária, e a do art. 20 do CPC
(condenação em custas processuais e honorários advocatícios).
27
- JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA traz preciosa contribuição ao princípio em tela ao afastar a tese
de que em casos de direitos indisponíveis o juiz poderia julgar fora ou além do que foi pedido. Isso seria equivocado,
pois se a parte pode renunciar ao direito fora do âmbito judicial, não há razão para supor que ela não possa fazê-lo
também em juízo, deixando de fazer menção a ele na petição inicial. Por isso, nenhum juiz pode acrescentar na sua
sentença uma disposição, a pretexto de se fundar em direito indisponível, que não tenha sido incluída no pedido
(Correlação entre o pedido e a sentença, in Revista de Processo, n. 83, 1996, pp. 208 e 211).

6
dou parcial provimento para reconhecer a prescrição da pretensão punitiva da Administração,
determinando a reintegração dos recorrentes aos cargos anteriormente ocupados”. Essa decisão
transitou em julgado. Entretanto, a Fazenda do Estado de São Paulo somente os reintegrou aos
cargos anteriormente ocupados, sem os qüinqüênios e outros benefícios e condições a que eles
faziam jus.
Diante disso, os dois funcionários públicos provocaram novamente o tribunal
paulista, mas este considerou que a Fazenda do Estado estava cumprindo a decisão do Superior
Tribunal de Justiça. Ora, quando ao recurso ordinário constitucional foi dado parcial
provimento, foi no sentido de afastar as duas alegações de mérito e acolher a de prescrição; e
bastava o reconhecimento desta para deixar o ato demissório totalmente ineficaz. Em outras
palavras, errou o Tribunal de Justiça de São Paulo, pois apesar de o Superior Tribunal de Justiça
ter se limitado a dar um provimento genérico de reintegração, a interpretação deste à luz do
pedido – tanto da inicial quanto do recurso ordinário – levaria à recondução aos cargos nas
condições requeridas.
Inconformados, os funcionários públicos interpuseram recurso especial, no qual
se decidiu que “não há julgamento extra petita se a parte dispositiva guardar sintonia com o
pedido e a causa de pedir lançados na exordial”. Assim, monocraticamente foi dado
provimento ao recurso para reconhecer que aos recorrentes devem ser garantidos “todos os
direitos a que fariam jus caso não tivessem sido demitidos, tais como tempo de serviço, quintos,
vencimentos e demais vantagens”. 28
Desse modo, o relator lançou mão da chamada “interpretação interna” do
29
julgado, que preza pela coerência do todo da sentença. Afinal, seja na motivação, seja no
próprio dispositivo do acórdão do recurso ordinário, o Superior Tribunal de Justiça não havia
feito ressalva com relação à amplitude da reintegração dos recorrentes. Por isso, o julgado
interpretado deveria ter um único sentido: o de que a reintegração deveria se operar conforme o
pedido.

4 – O PRINCÍPIO DA EFETIVIDADE DOS COMANDOS JUDICIAIS E A INTERPRETAÇÃO DO


JULGADO

O processo deve ser apto a dar a quem tem um direito, na medida do que for
30
praticamente possível, tudo aquilo a que tem direito e precisamente aquilo a que tem direito.
Por isso, em um pronunciamento judicial em que houver duas ou mais interpretações possíveis e

28
- STJ-5ª T., REsp 779.194, rel. Min.GILSON DIPP, j. 13.6.06, negaram provimento, v.u.,
DJU 21.6.06, p. 322.
29
- Cf. EMILIO BETTI, Interpretazione della legge e degli atti giuridici..., ob. cit., p. 362.
30
- Nas palavras de GIUSEPPE CHIOVENDA: “il processo deve dare per quanto è possibile praticamente
a chi ha un diritto tutto quello e proprio quello ch’egli ha diritto di conseguire” de acordo com a lei substancial
(Dell’azione nascente dal contratto preliminare, in Saggi di diritto processuale civile, I, Milano, Giuffrè, 1993, n. 3,
esp. p. 110).

7
razoáveis, todas conforme o importante princípio da congruência, deve ser escolhida aquela
apta a dar maior utilidade à decisão para o caso concreto. Essa idéia foi ressaltada, dentre
outros, por BETTI 31 e GRASSETTI. 32
A título ilustrativo, toma-se o seguinte caso. O autor consegue liminarmente ser
reintegrado na posse do imóvel. Irresignado, o réu agrava dessa decisão e consegue com o
relator o efeito suspensivo, nestes termos: “suspenda-se o cumprimento da decisão agravada”.
Poder-se-ia alegar, em uma interpretação literal do comando, que este seria inócuo, tendo em
vista que a ordem de reintegração já havia sido cumprida.
Entretanto, essa não é a melhor interpretação à luz do princípio da efetividade
do comando judicial, já que também é razoável e conforme o pedido do agravante entender que
a ordem do relator foi no sentido de restaurar as condições anteriores à antecipação dos efeitos
da tutela pelo Juízo de primeiro grau. Aliás, essa solução é ainda mais razoável justamente
porque a demora no julgamento do recurso – e dos processos de uma forma geral – não pode
reverter em dano daquele que precisou valer-se dele para obter o reconhecimento de seu direito.
Portanto, a decisão judiciária portadora desse reconhecimento deve ser tratada como se
houvesse sido proferida no momento em que foi pedida. Essa é a única interpretação que
mantém a imperatividade do decisum do relator.
A projeção da lógica do razoável no campo da interpretação dos julgados tem
levado os tribunais brasileiros a proclamarem que o intérprete tem o dever de procurar evitar a
atribuição de ilegalidades às sentenças ou acórdãos. Ou seja, se em uma decisão houver alguma
ilegalidade ou inconstitucionalidade, caso haja outro meio de interpretá-la, por subsistir uma
ambigüidade no texto, o intérprete deve optar por fazer “como que uma conversão da sentença,
de modo a extrair de suas palavras um significado razoável segundo o direito positivo”. 33
Assim, se houve condenação ao pagamento de juros, mas não for possível
extrair do julgado se ela foi a juros simples ou compostos, o intérprete deve se pautar na lei
civil, a fim de não viciar a sentença de ilegalidade, uma vez que, mesmo passando em julgado,
ela seria rescindível por literal violação à lei (CPC, art. 485, V).
É também em atenção ao princípio da conservação dos atos jurídicos que ainda
está em vigor a súmula n. 254 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “incluem-se os

31
- BETTI diz que em caso de contradição entre a motivação e o dispositivo de uma sentença não mais
sujeita a recurso, deve o julgado ser interpretado no sentido de produzir algum resultado, portanto dá-se prevalência
ao dispositivo, pois é onde se encontra o conteúdo normativo da decisão (Interpretazione della legge e degli atti
giuridici..., ob. cit., p. 367). Essa também é a posição doutrinária de VITTORIO DENTI, conforme se depreende da nota
de rodapé n. 39, p. 367, do mesmo Interpretazione della legge e degli atti giuridici.
32
- CESARE GRASSETTI diz que à interpretação da sentença é aplicável, por analogia, o art. 1.132 do
Código Civil italiano de 1.865, o qual enunciava o princípio da conservação do ato jurídico, a fim de sobrelevar uma
interpretação do julgado que extraia o seu significado útil, em detrimento daquela da qual não resulte nenhum efeito
(L’interpretazione del negozio giuridico – con particolare riguardo ai contrati, Padova, CEDAM, 1938, p. 91). O
art. mencionado corresponde ao art. 1.367 do Código vigente, cujo teor é o seguinte: “Conservazione del contratto -
Nel dubbio, il contratto o le singole clausole devono interpretarsi nel senso in cui possono avere qualche effetto,
anziché in quello secondo cui non ne avrebbero alcuno (1424)”.
33
- Cf. DINAMARCO, Instituições…, III, ob. cit., n. 1.230, p. 676.

8
juros moratórios na liquidação, embora omisso o pedido inicial ou a condenação”. Porque, se a
sentença condenatória omissa quanto aos juros não fosse assim interpretada, haveria uma
infração ao artigo 293 do Código de Processo Civil.
Além disso, se do processo interpretativo surgirem dois ou mais sentidos, um
conforme os limites do pedido e outro exorbitante, a leitura mais correta será a que respeitar o
princípio da congruência, e não aquela que levar ao campo dos julgamentos nulos – extra ou
34
ultra petita. Afinal, “repugna à hermenêutica qualquer interpretação que opte por um
significado que torne o ato jurídico ou a sentença contaminados de ilegalidade, quando haja a
possibilidade de reconhecer-lhe outro sentido, também verossímil, que não padeça nem de
nulidade nem muito menos de ilegalidade”. 35

5 – CORRELAÇÃO ENTRE O DISPOSITIVO E A MOTIVAÇÃO

Outra importante diretriz para a interpretação de um julgado é a que aconselha


sua análise segundo a correlação motivação-dispositivo. Nesse sentido, BETTI afirma que a
máxima hermenêutica da totalidade – também chamada pela doutrina de “interpretação
36
sistemática” – acentua a sua relevância quando se trata de lidar com a interpretação do
direito, porque apresenta “una particolare efficienza in vista della funzione normativa cui è
destinata”. 37
Na teoria bettiana, o cânone hermenêutico da totalidade aplicado à interpretação
da sentença subdivide o processo interpretativo em duas etapas simultâneas de análises: a) a da
coerenza intrinseca della sentenza; e b) a da corrispondenza della sentenza alla domanda
giudiziale. Aquela leva em consideração a sentença como um todo, que deve ser
intrinsecamente coerente: momento lógico e momento normativo. Em geral, afirma BETTI,
pode-se dizer que o nexo entre motivação e dispositivo seja o mesmo que na norma jurídica
abstrata (lei) existe entre a fattispecie (a previsão geral) e o estabelecimento de um
correspondente tratamento jurídico. 38
Aliás, a doutrina italiana que abordou o tema da interpretação da sentença não
descartou, de forma geral, a grande utilidade de realizá-la considerando-a como um todo

34
- No tocante ao julgamento ultra petita com objeto divisível, como ocorre nas condenações
pecuniárias, o intérprete deve ter em conta o princípio do aproveitamento dos atos processuais (CPC, art. 248).
Nesses casos, não convém anular toda a sentença, pois é tecnicamente melhor cortar o excesso e aproveitar o que está
adequado ao pedido, de modo a primar pelos princípios da economia e celeridade processuais, e, em última análise,
pela efetividade do comando judicial.
35
- Cf. HUMBERTO THEODORO JR., Execução de sentença: iniciativa do devedor; interpretação de
sentença, ob. cit., p. 10.
36
- Leciona CARLOS MAXIMILIANO que “a verdade inteira resulta do contexto, e não de uma parte
truncada, quiçá defeituosa, mal redigida” (Hermenêutica e aplicação do direito, ob. cit., pp. 129-130).
37
- Interpretazione della legge e degli atti giuridici..., ob. cit., p. 361.
38
- Interpretazione della legge e degli atti giuridici..., ob. cit., p. 363.

9
coeso, 39 embora se saiba que quase sempre o magistrado primeiro toma a decisão para só
40
depois justificá-la na motivação. Em várias situações, o comando contido no dispositivo pode
ser corrigido até ex officio pelo juiz, quando ele constatar, justamente pela análise da motivação,
que este (dispositivo) contém um erro material. É possível outrossim que a parte oponha
embargos declaratórios para que o erro material seja corrigido ou a contradição ou omissão ou
obscuridade seja sanada.
Tópico importante a ser abordado no tema em comento é o da “falsa carência de
ação” e o do emprego atécnico da expressão “não-conhecimento de um recurso”. Nesses casos
ocorre contradição entre a motivação do julgado (que aborda o meritum causae) e o seu
dispositivo, a qual pode ser corrigida por meio da interpretação sistemática do julgado.
A “falsa carência de ação” é um termo criado por CÂNDIDO DINAMARCO para
se referir às hipóteses em que o juiz declara extinguir o processo sem julgamento do mérito,
quando na verdade, está julgando improcedente a demanda. Essas falsas carências de ação são
muito comuns, por exemplo, (i) nos mandados de segurança denegados por ausência do direito
invocado, (ii) em ações de usucapião quando se verifica que o autor não tinha a seu favor os
requisitos de justo título e de tempus, (iii) em demandas de condenação por danos decorrentes
de acidentes automobilísticos propostas em face de quem já foi, porém não é mais dono do
veículo causador, e (iv) em ações de cobrança em que o réu alega não ser devedor do autor e
imputa tal condição a um terceiro e, o juiz, acolhendo as suas alegações, extingue o processo
sem julgamento do mérito, por ilegitimidade de parte.
Essas supostas carências de ação são falsas porque ou falta a prova dos fatos
alegados pelo autor ou está ausente algum requisito de direito material para a existência do
direito alegado. Em todos eles, o resultado mais correto na técnica processual seria o decreto de
improcedência do pedido. 41
Também muito comum é o emprego pelos tribunais brasileiros da expressão
“não-conhecimento de recurso” em situações em que o órgão ad quem na verdade examinou a
sua substância, logo previamente o conheceu e depois lhe negou provimento. BARBOSA
MOREIRA consigna que um recurso pode ser objeto de apreciação judicial por dois ângulos
diferentes: o da admissibilidade, no qual se trata de saber se é possível dar atenção ao que o
recorrente pleiteia, e o do mérito, que cuida de averiguar se tal impugnação merece ser acolhida
ou rejeitada. E, obviamente, à segunda etapa, só se passa se e depois que na primeira se concluiu

39
- Segundo FRANCESCO CARNELUTTI, por exemplo, a sentença deve ser entendida como um todo, já
que da motivação pode “emergere così una restrizione come un ampliamento del dispositivo” ( Sistema di diritto
processuale civile, v. I, Padova, CEDAM, 1936, p. 273).
40
- Cf., por todos, TARUFFO (Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz in Revista
Forense, Rio de Janeiro, v. 355, maio/jun. 2001, pp. 106-107), PIERO CALAMANDREI (Elogio dei giudici scritto da un
avvocato, 1989, trad. port. Eduardo Brandão, Eles, os juízes, vistos por um advogado, São Paulo, Martins Fontes,
1995, p. 178) e RECASÉNS SICHES (Tratado general de..., ob. cit., pp. 663-664).
41
- Cf. DINAMARCO, Instituições de direito processual civil, II, 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005,
n. 554-A, pp. 319-320.

10
42
pela admissibilidade do recurso. Cada um dos dois juízos tem, portanto, objetos diferentes, o
que acarreta diversidade também de efeitos, especialmente no que tange à formação da coisa
julgada material (CPC, art. 467) e ao ataque via ação rescisória (CPC, art. 485, caput). 43
Em suma, a atecnia do julgador, tanto no decreto de falsa carência de ação,
quanto no uso errado da expressão “não-conhecimento do recurso”, pode causar problemas ao
jurisdicionado, na medida em que (i) somente o julgamento do mérito da demanda impede a sua
repropositura, por estar coberto pela coisa julgada material, e (ii) apenas é cabível ação
rescisória contra sentença – ou acórdão – que tenha analisado o meritum causae.
Por isso, o jurisdicionado pode tentar resolver essa contradição ou erro material
– “julgou o mérito ou conheceu do recurso, mas não expressou adequadamente essa idéia” – por
meio dos embargos de declaração ou por mera petição fundada no artigo 463, I, do Código de
44
Processo Civil. A despeito de ambos poderem levar a parte ao resultado desejado e não se
excluírem, os embargos trazem maior segurança, seja por interromperem o prazo para
interposição de outros recursos, seja por consistirem numa saída dotada de maior
objetividade. 45
Tanto ao forçar uma interpretação autêntica da decisão, 46 por meio de embargos
declaratórios, quanto ao confiar que o julgador corrigirá a inexatidão material pela via
47
interpretativa – p. ex., ao admitir ação rescisória em face de sentença de “falsa carência de
48
ação”, o que se espera é que o intérprete adapte o dispositivo incorreto aos fundamentos do
julgado. Desse modo, o erro material é corrigido por meio da chamada interpretação interna da

42
- Reproduz-se trecho preciso do jurista sobre o tema: “Na técnica do direito brasileiro, o resultado
do juízo de admissibilidade, no órgão ad quem, expressa-se por uma destas duas fórmulas: “conhece-se do recurso”,
quando positivo o resultado, isto é, quando o órgão entende concorrerem todos os requisitos necessários para tornar o
recurso admissível; “não conhece do recurso”, quando, diversamente, considera o órgão que falta algum (ou mais de
um) daqueles requisitos. Já o resultado do juízo de mérito acha expressão noutro par de fórmulas: “dá-se provimento”
ao recurso, quando se apura que assiste razão ao recorrente (isto é, que sua impugnação é fundada); na hipótese
contrária, “nega-se provimento” ao recurso. Tudo aconselha a que essa distinção terminológica seja cuidadosamente
preservada (...)” (Cf. BARBOSA MOREIRA, Que significa “não conhecer” de um recurso? in Temas de direito
processual: sexta série, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 125).
43
- Cf. BARBOSA MOREIRA, Que significa “não conhecer”..., ob. cit., p. 126.
44
- Cf. LUIS GUILHERME AIDAR BONDIOLI, Embargos de declaração, ob. cit., n. 15, p. 88.
45
- Cf. LUIS GUILHERME AIDAR BONDIOLI, Embargos de declaração, ob. cit., n. 15, p. 89.
46
- A interpretação denominada “autêntica” é aquela realizada pelo mesmo órgão ou sujeito que
proferiu o texto a ser interpretado.
47
- LUIS GUILHERME AIDAR BONDIOLI usa a expressão “via interpretativa” em um sentido restrito, de
forma a não incluir nela a interpretação que o próprio órgão julgador faz de sua decisão quando do julgamento dos
embargos declaratórios (Embargos de declaração, ob. cit., n. 15, p. 86-89). É o mesmo sentido que dá BARBOSA
MOREIRA ao termo “via interpretativa”: “(...) pode acontecer que, por defeito de técnica, o órgão ad quem, ao proferir
sua decisão, diga que não conheceu de um recurso por entender infundada a impugnação, apesar de satisfeitos todos
os requisitos de admissibilidade. Corrige-se o equívoco por via de interpretação: a decisão do órgão ad quem,
erroneamente rotulada como de não-conhecimento, deve ser interpretada como de não-provimento, e assim tratada
para todos os efeitos práticos” (O novo processo civil brasileiro, 19ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, § 16,
pp. 116-117).
48
- Não é raro que isso aconteça. Conforme anotam THEOTONIO NEGRÃO e JOSÉ ROBERTO F.
GOUVÊA, cabe ação rescisória “se a decisão foi efetivamente de mérito, embora, por erro de técnica, haja dado pela
carência da ação (RSTJ 36/482; STJ-RT 652/183, maioria; RTFR 128/3; RT 730/317; RJTJESP 91/359)” (Código de
Processo Civil e legislação processual em vigor, 39ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, nota 3b ao art. 485, p. 603).

11
decisão, de que fala BETTI, que corresponde à interpretação sistemática proclamada pelos
jusfilósofos brasileiros. 49

6 – INTERPRETAÇÃO DO PRECEDENTE JUDICIAL

Buscando principalmente acelerar a prestação jurisdicional e aprimorar a


segurança jurídica por meio da uniformização da jurisprudência, as últimas reformas
processuais alteraram o Código de Processo Civil 50 e até a Constituição Federal, 51 para conferir
52
força vinculante ou, ao menos, persuasiva, ao precedente judicial. No entanto, a aplicação do
precedente judicial ao caso em julgamento não prescinde de uma correta interpretação daquele,
especialmente para identificar a sua ratio decidendi, pois, a rigor, é esta que deve ser seguida, e
não o precedente no qual ela está contida.
Com efeito, a aplicação do precedente pressupõe certa semelhança entre os seus
fatos e os do caso em julgamento. Entretanto, essa identidade não precisa ser absoluta, mas deve
ser baseada em critérios de generalidade. Ou seja, aos fatos constantes no precedente deve ser
atribuído um nível de abstração, de modo que eles sejam considerados dentro de uma categoria.
Cabe, assim, ao intérprete analisar se há alguma razão jurídica que recomende a distinção entre
53
o conjunto fático do precedente e o conjunto fático do caso sub judice; se não houver, deve
aquele ser aplicado. Desse modo, por exemplo, se a jurisprudência dominante do tribunal é no
sentido de que o comerciante de refrigerante é responsável pelos danos causados ao consumidor
pela presença de inseto em bebida, o fato de um novo caso de inseto envolver comerciante de
alimentos não impede a aplicação do art. 557 caput.
O intérprete deve ter em conta ainda a diferença entre ratio decidendi e obiter
dictum. Conforme CÂNDIDO DINAMARCO, “as razões de decidir constituem acolhimento de

49
- Sobre a interpretação sistemática, vide nota de rodapé n. 36 supra.
50
- Exemplos de novas disposições normativas nessa linha de valorização do precedente judicial são o
art. 285-A (“Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de
total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se
o teor da anteriormente prolatada”); o art. 518 § 1º (“O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença
estiver em conformidade com súmula do STJ ou do STF”); e o art. 557 (“O relator negará seguimento a recurso
manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência
dominante do respectivo tribunal, do STF, ou de Tribunal Superior - § 1º-A: Se a decisão recorrida estiver em
manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do STF, ou de Tribunal Superior, o relator poderá
dar provimento ao recurso”).
51
- Por exemplo, acrescentando o art. 103-A, que prevê a “súmula vinculante” do Supremo Tribunal
Federal em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas
federal, estadual e municipal. Além disso, pode ser citado o novo § 3º do art. 102 da CF, que prevê a exigência da
repercussão geral no recurso extraordinário. Isso porque “haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar
decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal” (CPC, art. 543-A, § 3º), mas se “negada a
existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos”
(CPC, art. 543-A, § 5º). Ademais, sempre haverá repercussão geral “quando o recurso versar questão cuja
repercussão já houver sido reconhecida pelo Tribunal” (Regimento Interno do STF, art. 323 § 1º).
52
- Essa tendência vai ao encontro da afirmação de KELSEN de que as decisões judiciais são fonte do
direito (Reine Rechtslehre, ob. cit., esp. pp. 258-259 e 277-283).
53
- Cf. MARCELO ALVES DIAS DE SOUZA, Do precedente judicial à súmula vinculante, Curitiba,
Juruá, 2006, pp. 136-137.

12
umas razões das partes e rejeição de outras, segundo o entendimento do juiz, o qual prevalece
54
sobre o daquelas e determina a decisão”. O dictum, por sua vez, é mais fácil de ser definido
negativamente: é a afirmação de fato ou de direito que não integra a ratio decidendi, porque não
constitui questão decidida, apesar de ter sido debatida. Portanto, a sua extirpação não afeta o
55
conteúdo da decisão. Essa distinção também é importante para aferir o cabimento de
embargos de divergência (CPC, art. 546), que só pode se dar entre o cotejo de premissas
indispensáveis da fundamentação – razões de decidir – dos acórdãos. 56
Em síntese, o intérprete do precedente judicial deve se valer das regras
hermenêuticas aqui expostas (princípios da congruência e da efetividade, lógica do razoável e
correlação motivação-dispositivo) para reconhecer a sua ratio decidendi. Deve também saber
identificar se o conjunto fático do caso em julgamento é semelhante, na sua essência, ao do
precedente.

7 – INTERPRETAÇÃO DAS SENTENÇAS LIQUIDANDA E EXEQÜENDA

Quando a sentença condenatória não fixa o quantum debeatur, faz-se necessária


a fase de sua liquidação (CPC, arts. 475-A e ss.), antes de se requerer o seu cumprimento (CPC,
arts. 475-I e ss.). Nesses dois momentos, o intérprete deve se preocupar não só com os cânones
hermenêuticos já exposto neste trabalho, mas também com as regras específicas do Código de
Processo Civil que dispõem sobre a liquidação e o cumprimento do julgado. Merecem especial
57
atenção duas delas: a do artigo 475-G, que exige na liquidação fidelidade ao título executivo,
58
e a do 475-L, V, que estabelece o “excesso de execução” como uma matéria passível de ser
alegada em impugnação à execução.
Sobre o primeiro artigo citado, escreveu ARRUDA ALVIM que mesmo se fosse
nula a sentença liquidanda, “não caberia ao juízo do processo de liquidação o não acatamento da
decisão ou a correção da mencionada nulidade. Não é, de fato, esta a via adequada, nem o
59
momento”. Ainda segundo o jurista, devem ser integralmente respeitados os limites fixados

54
- Instituições..., III, ob. cit., n. 1.223, p. 659.
55
- Tendo em vista a presença não rara de obiter dicta nas ementas dos julgados, é ainda mais
imprescindível que o intérprete leia o inteiro teor da decisão, para não se deixar enganar por este erro material.
56
- Nesse sentido: “Embargos de divergência: descabimento se se pretende solver contradição entre a
ratio decidendi do acórdão padrão e simples obiter dictum constante da decisão embargada: questão de validade das
elevações da alíquota da contribuição exigível das empresas exclusivamente prestadora de serviço não resolvida pelo
acórdão embargado que - embora incluindo obiter dictum a respeito - decidiu a causa como se se tratasse somente de
empresas vendedoras de mercadorias” (STF-Pleno, ED em EDcl em RE 176.437, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE,
j. 5.3.98, não conheceram, v.u., DJU 3.4.98, p. 14).
57
- Art. 475-G: “É defeso, na liquidação, discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a
julgou”.
58
- Art. 475-L: “A impugnação somente poderá versar sobre: (...) V – excesso de execução”. Segundo
DINAMARCO, “o excesso de execução é um pecado mortal que a boa interpretação evita” (Instituições..., III, ob. cit.,
n. 1.230, p. 674).
59
- Liquidação de sentença – interpretação da sentença exeqüenda in Revista de Processo, São
Paulo, n. 76, out./dez. 1994, p. 179.

13
no título judicial liquidando, tenha ou não havido trânsito em julgado, tendo em vista a clareza
da redação do artigo 475-G. 60
Ocorre que há casos em que a total fidelidade à sentença condenatória pode
aparentar ser, na prática, impossível de ser mantida, como, por exemplo, o de sentença que
fixou determinado valor a ser atualizado monetariamente por índice não mais existente à época
de sua liquidação. Nesse caso, deve o juiz, ao liquidar a sentença genérica, ter em conta a lógica
do razoável e o princípio da efetividade das decisões judiciais. Afinal, embora não exista mais o
índice de atualização monetária fixado no decisum liquidando (ou exeqüendo), a correção deve
subsistir, “porque o ponto de relevância hermenêutica dessa disposição é a de que o valor
monetário corresponda, o mais possível, ao valor atual, cabendo ao juiz da execução (ou ao da
liquidação), interpretando essa vontade, determinar a aplicação do índice mais próximo da
realidade monetária, sob pena de ofensa à coisa julgada, porque o que a sentença quer no caso
não é o índice a ou b mas a correção na sua essência”. 61
Além disso, outra regra importante do Código de Processo Civil para a
interpretação da sentença é a do artigo 293, que deve ser lida em conjunto com a dos artigos 128
e 460 (princípio da congruência), na hipótese de dispositivo da sentença que se limita a
condenar o réu “nos termos da inicial”, sem qualquer ressalva ou especificação. Nesse caso, o
operador do direito deve se pautar pela intepretação restritiva do pedido. Porque se lhe fizesse
uma interpretação extensiva, cometeria a mesma ilegalidade processual que teria cometido o
juiz, se de modo expresso tivesse julgado ultra petita. 62
É claro que na interpretação de qualquer julgado, o seu conteúdo deve ser
respeitado, mas por força de regras específicas do Código, a interpretação da sentença
63
liquidanda ou exeqüenda deve ser ainda mais fiel ao comando nela contido. Mas isso não quer
dizer que o dispositivo deve ser lido isoladamente. É interessante narrar o seguinte caso. O
executado percebeu que a instituição financeira incluiu na execução duas parcelas que já
haviam sido pagas por ele. Resolveu então ajuizar ação de cobrança com base no atual artigo
940 do Código Civil. Essa demanda restou procedente e a sentença transitou em julgado,
condenando “o requerido a pagar ao requerente o equivalente ao que foi pedido na
execução”. 64
Munido desse título judicial, ajuizou execução correspondente ao dobro do
valor total cobrado pelo banco. Ao julgar os embargos à execução da instituição financeira,
tanto o juiz quanto o tribunal entenderam não ser “pertinente o revolvimento das questões do
60
- Liquidação de sentença – interpretação..., ob. cit., p. 181. O autor escreveu quando se tratava do
art. 610, mas este foi revogado e o seu teor está identicamente reproduzido no novo art. 475-G.
61
- Liquidação de sentença – interpretação..., ob. cit., p. 101-102.
62
- Cf. DINAMARCO, Instituições..., III, ob. cit., n. 1.230, p. 679.
63
- Essa “estrita fidelidade” ao conteúdo da sentença a ser executada poderia ser considerada
decorrência lógica do fato de ter havido o trânsito em julgado do decisum, se não fosse o fato de o ordenamento
permitir a liquidação e execução provisórias dos julgados (CPC, arts. 475-A, § 2º e 475-I, § 1º, respectivamente).
64
- Este é o teor literal do seu dispositivo.

14
mérito decididas no processo de conhecimento através da via dos embargos que suscitam
suposto 'erro de fato' na decisão recorrida”. Ocorre que a instituição financeira recorreu e o
Superior Tribunal de Justiça, analisando primordialmente a petição inicial da ação de cobrança
(que limitava a pretensão às duas parcelas) e a fundamentação do julgado transitado em julgado
(que tratava exclusivamente das duas parcelas), decidiu dar provimento ao recurso, em atenção
ao cânone hermenêutico da totalidade. 65
O acórdão do Superior Tribunal de Justiça, portanto, deu verdadeira lição sobre
o tema em comento, já que interpretou a sentença exeqüenda, respeitando a “estrita fidelidade”,
à luz do princípio da congruência, da lógica do razoável e da efetividade, sem se esquecer do
cotejo entre a motivação e o dispositivo.

8 – CONCLUSÕES

Para a definição do alcance do significado de um texto normativo, tal como o de


uma decisão judicial, é preciso superar os inevitáveis obstáculos da vagueza e ambigüidade de
66
suas palavras e frases, tendo em vista que as expressões jurídicas não têm a mesma precisão
conceitual que os termos usados pela Geometria para aludir aos seus objetos construídos.
Por isso TARUFFO deu tanta importância à semiótica no estudo da hermenêutica
67
jurídica. Toma-se um exemplo simples que ilustra bem a importância da lingüística na
interpretação. Se uma sentença condenou o réu a “permitir que o autor passe pelo caminho A ou
pelo caminho B”, a conjunção conectiva “ou” in casu contém uma imprecisão semântica
(ambigüidade de sentido). Isso porque o intérprete pode tanto entender que o réu deverá permitir
que o autor passe por ambos os caminhos (considerando “ou” uma conjunção aditiva), quanto

65
- Vale transcrever trechos do voto vencedor: “O acórdão ora impugnado equivocou-se em dois
momentos: primeiro, ao se recusar a enfrentar a questão posta pela recorrente em seus embargos (...) Interpretar a
sentença não equivale a revolver a matéria já julgada (...) Com efeito, ao dizer que é possível discutir, nos embargos,
o excesso de execução nas hipóteses em que ‘o credor pleiteia quantia superior à do título’, ou em que a execução
‘recai sobre coisa diversa daquela declarada no título’ ou mesmo ‘quando se processa de modo diferente do que foi
determinado na sentença’, o que o legislador faz é justamente autorizar que a interpretação dada pelo credor ao título
executivo seja questionada pelo devedor. Em segundo lugar, equivocou-se o Tribunal a quo ao considerar que a
condenação originária foi no sentido da devolução do valor integral cobrado pela instituição financeira na ação de
execução primitiva. A interpretação da sentença, tomada com base não apenas no seu dispositivo, mas em todo o seu
corpo, indica que a devolução ordenada diz respeito apenas aos dois títulos que haviam sido cobrados a mais”.
Nesse caso, é importante notar ainda que o juiz que julgou os embargos à execução do banco foi o
mesmo que havia prolatado a sentença da ação de cobrança que transitara em julgado. Contudo, não foi a sua
“interpretação autêntica” que prevaleceu. Afinal, “após ter proferido e publicado sua sentença, o juiz que a proferiu
permanece, em relação a ela, em posição equivalente à de qualquer outro juiz. É equivocado afirmar que o juiz
sentenciante produz ou faz interpretação mais legítima do que a interpretação de qualquer outro juiz que venha a
conduzir a execução. O importante é não triscar nos limites postos na sentença condenatória” (STJ-3ª T., REsp
818.614, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, j. 26.10.06, deram provimento, v.u., DJU 20.11.06, p. 309).
66
- FERDINAND DE SAUSSURE diz que o signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas uma
imagem acústica (significante) e um conceito (significado) (Cours de linguistique générale, 4ª ed., Paris, Payot, 1949,
p. 98). Essas premissas insinuam considerável arbitrariedade do signo lingüístico, tendo em vista que aquilo que une
um significante ao seu significado é mera convenção. A título explicativo, então, o texto da decisão judicial
representaria o significante, enquanto o seu conteúdo decisório, o sentido normativo que se quer transmitir por meio
da sentença, representaria o significado. Daí se entende por que o discurso jurídico, como qualquer outro, é permeado
de vagueza (imprecisão de significado – ou na extensão) e ambigüidade (imprecisão semântica – ou na intenção).
67
- La motivazione della sentenza civile, ob. cit., pp. 43-45.

15
considerar que a sentença condenou o réu a permitir que o autor escolha apenas um dos
caminhos para passar (considerando “ou” uma conjunção alternativa ou de exclusão).
Seja nessa hipótese, seja em outras nas quais o cerne da questão não é
essencialmente resolvido à luz da semiótica, o intérprete da sentença conta com alguns
parâmetros para solucionar o problema hermenêutico. O principal deles é o do princípio da
congruência da sentença com a causa de pedir e o pedido, segundo o qual, na hipótese acima
exposta, seria preciso verificar se o autor pediu um provimento judicial que lhe permitisse
passar em ambos os caminhos (A e B) ou se pediu uma permissão para passar em apenas um dos
dois caminhos. Além disso, deveria ser levada em consideração a defesa do réu e a instrução
probatória do processo. Por fim, seria necessário olhar com atenção o dispositivo da decisão: se
foi de parcial ou de total procedência ao pedido do autor.
Não menos importante do que o princípio da congruência é a análise do
dispositivo à luz da motivação, que constitui a justificação judicial da decisão tomada, razão
pela qual é indispensável à determinação do seu sentido e alcance. Ainda no que tange à
interpretação sistemática do julgado, os “decretos” de “falsa carência de ação” e o emprego
atécnico da expressão “não-conhecer do recurso” são corrigidos por meio da correlação
motivação-dispositivo, que vai dizer se realmente o juiz analisou o meritum causae ou não.
Trata-se de tema relevante, na medida em que apresenta implicações práticas para o
jurisdicionado.
O presente trabalho também analisou o papel imprescindível da lógica do
razoável na interpretação de um julgado, especialmente quando conjugada com o enfoque da
efetividade das decisões judiciais. Desse modo, a projeção do logos de lo razonable na
hermenêutica das decisões aconselha evitar atribuir-lhes sentidos ilegais.
Especificamente para a interpretação do precedente judicial, antes de sua
aplicação, é de rigor não apenas seguir os cânones hermenêuticos já expostos nestas conclusões,
mas também levar em consideração a semelhança ou não entre os fatos do precedente e aqueles
do caso em julgamento, bem como a diferenciação entre ratio decidendi e obiter dictum.
Por fim, no que tange à interpretação da sentença liquidanda ou exeqüenda, o
intérprete não pode se esquecer de duas regras expressas no Código de Processo Civil (arts.
475-G e 475-L, respectivamente), as quais, em última análise, indicam que o conteúdo da
sentença deve ser fielmente seguido, mas sempre respeitando as demais diretrizes
hermenêuticas.
Em suma, as três principais conclusões a que chega este trabalho são: a) o
primeiro passo para interpretar um julgado é analisá-lo à luz do pedido, da causa de pedir e da
instrução probatória; b) à interpretação das decisões judiciais não se aplicam exatamente os

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mesmos critérios da hermenêutica das leis; e c) todavia, assim como o magistrado deve
perseguir o senso de justiça ao aplicar a lei, o intérprete da decisão judicial deve buscar o
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resultado mais justo ao analisá-la, respeitando o princípio da congruência, a lógica do
razoável, a correlação motivação-dispositivo e o princípio da efetividade dos comandos
judiciais.

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- VICENTE GRECO FILHO, em posição oposta, entende que os tradicionais métodos de interpretação
das leis e dos contratos servem também para a hermenêutica da sentença. Segundo GRECO, aplicar-se-ia à
interpretação da sentença “os conhecidos elementos ou critérios interpretativos, o gramatical, o lógico, o sistemático,
o teleológico e o sociológico” (Liquidação, execução e interpretação da sentença, ob. cit., p. 100). Especificamente
no que tange ao método sociológico-evolutivo, DINAMARCO refuta o seu emprego para a interpretação do julgado.
Ensina ele que a utilização do método evolutivo na interpretação da lei é bastante válida, uma vez que significa
compatibilizar o texto legal com os valores culturais do tempo do fato e não com aqueles vigentes quando da edição
da norma. Entretanto, porque a sentença valorou ao seu tempo os fatos postos em julgamento, aplicar o método
evolutivo na interpretação da sentença seria o mesmo que subverter os fundamentos do julgado, pois se estaria
submetendo os fatos a uma valoração segundo uma escala axiológica provavelmente diferente daquela da data em
que ocorreram (Instituições..., III, ob. cit., n. 1.230, p. 678).
Ademais, a posição de GRECO pode ser rebatida com o argumento de que não há na hermenêutica das
leis, nem na dos contratos, um princípio tal como o da congruência.
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- Cf. DINAMARCO, Instituições..., III, ob. cit., n. 1.230, p. 679.

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