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Teixeira de Sousa
II/1
I. Preliminares
Complexos de actos destinados à tutela de certas situações subjectivas através do
acolhimento ou rejeição da pretensão de um dos interessados e mediante a intervenção de
tribunais – ou seja, processos jurisdicionais – há muitos e de muitos modelos, de sorte que
convém apresentar algumas classificações. Importa considerar três classificações, que dividem as
categorias de processos civis atendendo ao fim, ao critério da decisão e à forma.
2. Acções declarativas
2.1. Generalidades
O art. 10.º, n.º 1, começa por estabelecer que as acções são declarativas ou executivas. As
acções declarativas, diz o art. 10.º, n.º 2, podem ser de simples apreciação, de condenação ou
constitutivas.
Esta classificação, embora gizada primariamente para os pedidos, reporta-se mediatamente
ao direito de pedir (acção) e ao processo. Quanto a este, há porém que fazer as seguintes
ressalvas. Antes do mais, a distinção dos processos declarativos em três tipos não implica
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nenhuma diferença na sua marcha. Acresce ainda que é possível cumular num único processo
vários pedidos (cf. art. 555.º), até de natureza diferente, pelo que pode haver processos mistos,
em que se peça, por exemplo, a declaração da propriedade de certa coisa (pedido de sim ples
apreciação: cf. art. 10.º, n.º 3, al. a)), a anulação por dolo de um contrato transmissivo de um
direito real menor sobre ela (pedido constitutivo: cf. art. 10.º, n.º 3, al. c)) e ainda a condenação
numa indemnização de perdas e danos (pedido de condenação: cf. art. 10.º, n.º 3, al. b)).
A enumeração que consta do art. 10.º, n.º 2 e 3, é, acima de tudo, de ordem doutrinária, pois
que, em parte alguma, a legislação processual retira consequências da distinção entre os diversos
tipos de acção declarativa, pelo que essa enumeração não pode ser considerada taxativa 1. Pode
nomeadamente suscitar algumas dúvidas a qualificação das chamadas acções mandamentais, isto
é, das acções que, através das sentenças mandamentais ( Anordnungsurteile), visam impor a um
órgão do Estado ou a uma autoridade pública que pratique ou omita determinado acto 2.
a) As acções de simples apreciação são definidas pelo art. 10.º, n.º 3, al. a), como aquelas
que têm por fim obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de
um facto. Este tipo de acção tem como antecedente remoto as actiones praeiudiciales do direito
romano (cf. GAIUS, I. 4.44)3, mas só tardiamente foi admitido como figura geral 4, pois que a acção
meramente declarativa apenas surgiu na doutrina oitocentista a partir da construção de uma
pretensão à declaração ou ao reconhecimento de um facto ou de um direito 5. Em Portugal, ainda
no domínio do Código de Processo Civil de 1876 se duvidava da admissibilidade geral da acção
de simples apreciação, tendo o art. 4.º CPC/1939 – correspondente ao actual art. 10.º – visado
dissipar essas dúvidas6.
1
Crítico perante a tripartição, cf. RÖDIG, Die Theorie des gerichtlichen Erkenntnisverfahrens (1973), 64 ss.
2
KUTTNER, Urteilswirkungen auβerhalb des Zivilprozesses (1914), 22; na doutrina brasileira, cf. S. MURITIBA, Ação
executiva lato sensu e Ação Mandamental (2006), 219 ss.; defendendo a desnecessidade da autonomização das
Anordnungsklage, cf, Lüke, ZZP 107 (1994), 157.
3
Cf., em referência ao processo formulário, KASER/HACKL, Das römische Zivilprozessrecht 2 (1996), 347 ss.; cf.
também BEKKER, Die Aktionen des Römischen Privatrechts I (1871), 283 ss.; KELLER/WACH, Der römische
Civiprocess und die Actionen in summarischer Darstellung 6 (1883), 189 ss.
4
Sobre a evolução da acção de simples apreciação, cf. BORCHARD, Declaratory Judgments 2 (1941), 87 ss.; KADEL,
Zur Geschichte und Dogmengeschichte der Feststellungsklage nach § 256 der Zivilprozeβordnung (1967), 11
ss.; STOLL, FS Eduard Bötticher (1969), 341 ss.; JACOBS, Der Gegenstand des Feststellungsverfahrens (2005), 103
ss.
5
DEGENKOLB, Einlassungszwang und Urteilsnorm (1877), 129 ss.; WEISMANN, Die Feststellungsklage./Zwei
Abhandlungen (1879), 1 ss. e 113 ss.; WACH, Der Feststellungsanspruch. Ein Beitrag zur Lehre vom
Rechtsschutzanspruch., FG Bernhard Windscheid (1888), 106 ss. e 116 ss. = (1889), 34 ss. e 44 ss.
6
Cf. ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil I 2 (1960), 19.
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7
Sobre os conteúdos possíveis das acções de simples apreciação, cf. STOLL, FS Eduard Bötticher, 345 ss.
8
Cf. SCHUMANN, FS Apostolos Georgiades (2006), 544 ss.
9
Diferentemente, JACOBS, Der Gegenstand des Feststellungsverfahrens, 127 ss.
10
Cf. BALTZER, Die negative Feststellungsklage aus § 256 ZPO (1980), 82 ss.; TEIXEIRA DE SOUSA, RDES 25 (1978),
127 ss.
11
Cf. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil I (1982), 211 ss.
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Podia julgar-se ver uma confirmação desta última posição no disposto no art. 343.º, n.º 1,
CC: “nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos
constitutivos do direito que se arroga”. Esta solução seria própria da construção da acção de
simples apreciação negativa. Assim, por exemplo, se certa pessoa anda a afirmar “Não pago, o
contrato é nulo”; “A é meu devedor” ou “Sou filho de B”, a lei dá ao autor a possibilidade de propor
uma acção em que constrange essa pessoa a definir in iudicio a sua posição: “Eu afirmo
genericamente que o contrato não é nulo – venha o réu concretizar e provar por que o julga nulo”;
“Eu afirmo genericamente que nada devo – venha o réu concretizar por que se julga credor, e
prová-lo”, “Eu afirmo genericamente que não sou pai do réu; venha o réu alegar e provar porque se
julga meu filho”. É uma acção de um tipo, de origem germânica, a que os antigos chamavam
provocatio ad agendum (ou acção de jactância ou de provocação), pois que coloca outra pessoa
(mas sibi imputet, pela sua “arrogância”) em situação semelhante à do autor, com o ónus e o risco
de fundamentar e de provar o seu direito12.
Hoje, esta concepção deve considerar-se ultrapassada: a acção de provocação constitui um
antecedente, mas não corresponde à actual fisionomia da acção de apreciação negativa 13. Aliás, já
na época do processo comum alguma doutrina considerava que os Provocationsprozeβe
(instaurados pelo provocado a instância do provocante) eram excepcionais, sendo apenas admitidos
em duas situações: quando o difamante era chamado a provar em juízo as alegações que propala
quanto ao provocante (provocactio ex lege Difamarii) e quando alguém é intimado a propor uma
acção para que o provocante não perca certas excepções pela demora na demanda ( provocatio ex
lege Si contendat)14. Uma interpretação do disposto no art. 343.º, n.º 1, CC que, genericamente, dê
cobertura à admissibilidade das acções de jactância vai ainda mais além, quanto ao âmbito destas
acções, do que era aceite por alguma doutrina do processo comum.
A circunstância de o réu se arrogar injustificadamente certo direito, afirmando-o
extrajudicialmente em detrimento do autor, é necessária para assegurar o interesse processual (ou
em agir) do autor, mas nenhum autor está dispensado de alegar e provar os factos impeditivos,
modificativos ou extintivos que constituem a causa de pedir da acção de simples apreciação
negativa. Assim, se o autor em juízo vier dizer, por exemplo, “Declare o tribunal que nada devo ao
réu”, formula uma petição inepta (art. 186.º, n.º 2, al. a)); o que o autor pode é di zer: “Celebrei um
contrato com o réu pelo qual, aparentemente, devo x, mas este contrato foi simulado – declarem
que nada devo”; interpretando o regime constante do art. 343.º, n.º 1, CC, neste caso, o ónus da
prova daquele facto impeditivo cabe ao autor.
a) Segundo a definição do art. 10.º, n.º 3, al. b), as acções de condenação são as que têm
por fim exigir a prestação duma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação dum
direito. As acções de condenação correspondem ao que o Código Civil chama acções de
12
Cf., por exemplo, GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen Prozesses IV (1803), 173 ss.; SCHMID, Handbuch
7
des gemeinen deutschen Civilprocesses III (1845), 24 ss.; BAYER, Theorie der summarischen Processe (1859),
3
128 ss.; WETZELL, System des ordentlichen Civilprocesses (1878), 103 ss.
13
Já na fundamentação da Zivilprozessordnung alemã se referia que a consagração geral de uma acção para o
reconhecimento da existência ou inexistência de uma relação jurídica tornava dispensáveis as acções de
jactância: cf. HAHN (Ed.), Die gesammten Materialien zu den Reichs-Justizgesetzen II/1 (1880), 256; convém
4
recordar as palavras de CHIOVENDA, Principii di diritto processuale civile (1928), 166: “A importância prática da
doutrina relativa à acção de simples apreciação consiste em ter definitivamente dissipado o equívoco sobre as
relações entre estas acções e os já abolidos juízos de jactância”; sobre a evolução dogmática das acções de
apreciação negativa, cf. CARIGLIA, Profili generali delle azioni di accertamento negativo (2013), 17 ss.
14
Cf., por exemplo, SCHMID, Handbuch des gemeinen deutschen Civilprocesses II, 24 ss.
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cumprimento (cf. a epígrafe da subsecção que começa no art. 817.º CC) e nelas pede-se a
declaração do direito a uma prestação, mas pede-se mais do que isso: pede-se que o tribunal faça
seguir essa declaração de uma ordem para que o réu cumpra (condenação)15. Note-se que esta
análise não significa que sejam propostas duas acções ou formulados dois pedidos: o pedido
unitário de condenação analisa-se em ambos os referidos elementos.
As acções condenatórias podem ser acções ex praeterito, quando pressupõem a violação
de um direito e visam obter a condenação no cumprimento de uma prestação já vencida, ou in
futurum, quando prevêem a violação de um direito e procuram obter a condenação do réu no
cumprimento de uma prestação no momento em que esta se vencer (cf. art. 10.º, n.º 3, al. b)). As
acções de condenação in futurum são admissíveis nas condições previstas no art. 557.º, n.º 1
(quanto a prestações periódicas) e 2 (quanto a prestações futuras).
b) Uma modalidade específica das acções condenatórias é constituída pelas acções
inibitórias, que são aquelas através das quais se exige a alguém a omissão da violação de um
direito16: é o caso, por exemplo, da acção destinada a evitar a ofensa a direitos da personalidade
(cf. art. 70.º, n.º 2, CC), da acção de prevenção da perturbação ou esbulho da posse (cf. art. 1276.º
CC), da acção destinada a proibir a emissão de fumo e a produção de ruídos (art. 1346.º CC) ou
ainda da acção que visa a inibição do uso ou recomendação de cláusulas contratuais gerais (art.
25.º DL 446/85, de 25/10) 17. Estes exemplos são apenas concretizações legais de acções inibitórias
(e não termos de uma enunciação taxativa), pois que essas acções devem ser consideradas
admissíveis sempre que exista o fundado receio da violação de um direito18.
As acções inibitórias não devem ser confundidas com as acções de condenação in futurum. A
distinção pode ser estabelecida da seguinte forma:
15
Esta circunstância já conduziu alguma doutrina a atribuir à sentença condenatória um efeito constitutivo: cf .
SOHM, Wesen und Voraussetzungen der Widerspruchsklage (1908), 32; SCHLOSSER, Gestaltungsklagen und
Gestaltungsurteile (1966), 104.
16
Diferentemente, integrando as acções inibitórias nas acções de apreciação negativa, STJ 26/9/2013
(15/10.0TJLSB.L1.S1).
17
Sobre a evolução histórica da acção inibitória, cf. STEPHAN, A., Die Unterlassungsklage (1908), 4 ss.; sobre
4
alguns problemas suscitados pelas acções inibitórias, cf. L. G. MARINONI, Tutela Inibitória/Individual e coletiva
(2006), 34 ss.; especificamente sobre a acção que visa a inibição do uso ou recomendação de cláusulas
contratuais gerais, e acentuando a sua vertente “cívico/social”, cf. STJ 31/5/2011 (854/10.2TJPRT.S1).
18
Cf. OPPERMANN, Unterlassungsanspruch und materielle Gerechtigkeit im Wettbewerbsprozeβ (1993), 103 ss.
19
Cf. ZEUNER, FS Hans Dölle I (1963), 310 ss.
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a) As acções constitutivas são definidas pelo art. 10.º, n.º 3, al. c), como as que têm por fim
autorizar uma mudança na ordem jurídica existente. A relação material nestas acções é uma
relação potestativa: o autor exerce (ou pretende exercer) um direito potestativo, estando os efeitos
de tal exercício sujeitos à condicio juris de uma sentença favorável que reconheça e declare o
direito, implicitamente autorizando ou desencadeando tais efeitos. Assim, são acções constitutivas
todas aquelas em que sejam exercidos direitos potestativos, como, por exemplo, aqueles que se
referem à impugnação ou revogação de actos jurídicos, à impugnação ou dissolução de estados
pessoais, à dissolução, denúncia ou resolução de negócios jurídicos, à destituição de cargos
sociais ou ao exercício de direitos de preferência.
Embora não se baseiem num direito potestativo, também podem ser consideradas acções
constitutivas algumas acções que visam modificar ou impedir a produção de certos efeitos
jurídicos. É o caso, por exemplo, das acções que visam modificar a prestação de alimentos ou
outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua
duração (cf. art. 619.º, n.º 2), assim como da oposição à execução (cf. art. 728.º, n.º 1), dos
embargos de terceiro (cf. art. 342.º, n.º 1) e da acção de anulação da sentença arbitral (cf. art. 46.º
LAV).
20
Cf., por exemplo, SIBER, Der Rechtszwang im Schuldverhältnis (1903), 99 ss. e 108 ss.; NIKISCH,
2
Zivilprozeβrecht (1952), 149; VON CAEMMERER, FS zum hundertjährigen Bestsehen des Deutschen Juristentages II
(1960), 53.
21
Cf. BÖHM, Unterlassungsanspruch und Unterlassungsklage (1979), 9 ss. e 67 ss.; FRITZSCHE,
Unterlassungsanspruch und Unterlassungsklage (2000), 114 ss. e 535 ss.; WIESEN, Zivilprozeβrechtliche
Probleme der Unterlassungsklage (2005), 64 ss. e 89 ss.; na bibliografia mais antiga, cf. ELTZBACHER, Die
Unterlassungsklage, 150 SS.; LEHMANN, Die Unterlassungspflicht Im Bürgerlichen Recht (1906), 116 ss.
22
HENCKEL, AcP 174 (1974), 144, atribui a essa pretensão apenas a função de “remédio jurídico” ou de “meio de
protecção”.
23
Cf. ELTZBACHER, Die Unterlassungsklage, 5 SS.; WENGER, Institutionen des römischen Zivilprozessrechts (1925),
2
237 ss.; KASER/HACKL, Das römische Zivilprozessrecht (1996), 408 ss.
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WACH (1843-1926) ainda se referia a uma espécie de acções condenatórias em que os efeitos
da condenação se produziam com o caso julgado da decisão e dispensavam a execução,
exemplificando, entre outras, com a acção de suprimento do consentimento, a acção de revogação
de uma relação jurídica e a acção de divórcio24. Coube a V. SCHRUTKA-RECHTENSTAMM (1852-1918) –
curiosamente na recensão de um trabalho de WACH – cunhar a expressão Rechtsgestaltungsklage25,
mas foi LANGHEINEKEN (1865-1930) o primeiro a individualizar, com clareza, as acções constitutivas
(Bewirkungsklagen) perante as acções de simples apreciação e a as acções condenatórias 26. Tem
também interesse lembrar que os direitos potestativos ( Gestaltungsrechte) foram construídos por
SECKEL (1864-1924) como a “contrapartida de direito privado” das sentenças constitutivas 27.
Portanto, foi o conteúdo constitutivo de certas sentenças que ajudou a delimitar e a precisar o
âmbito dos direitos potestativos.
Não deixam de se apresentar, nesta matéria das classificações das acções, alguns casos
duvidosos. Importa analisar os seguintes:
24
WACH, Handbuch des Deutschen Civilprozessrechts I (1885), 12, afirmando que em tais acções “ es [handelt]
sich lediglich um Rechtsnormirung, nicht um Thatbestandsveränderung ”.
25
SCHRUTKA-RECHTENSTAMM, GrünhutsZ 16 (1889), 619; mais tarde, Hellwig, Anspruch und Klagrecht (1900), 120,
preferiu falar em “konstitutive Urteile” para designar aquelas sentenças “que, segundo o seu conteúdo,
pretendem produzir uma alteração na situação jurídica existente”.
26
LANGHEINEKEN, Der Urteilsanspruch (1899), 98 e 220 ss.; a categoria das acções constitutivas foi rejeitada por
alguma doutrina italiana: cf. MORTARA, Commentario del Codice e delle Leggi di Procedura Civile IV (s. d.), 62 ss.;
ROCCO, La sentenza civile/Studi (1906), 144 ss.
27
SECKEL, FG Richard Koch (1903), 210; sobre a relação das sentenças constitutivas com o direito material, cf.
HELLWIG, Anspruch und Klagrecht, 443 ss. e 467; KISCH, Beiträge zur Urteilslehre (1903), 45 ss.
28
Cf., por exemplo, ROSENBERG/SCHWAB/GOTTWALD, Zivilprozessrecht 17 (2010), 503 e 864.
29
Cf. KIPP, FG Rudolf v. Jhering (1892), 53 ss.; note-se que o actual § 894 ZPO impõe outra solução: cf.
GAUL/SCHILKEN/BECKER-EBERHARD, Zwangsvollstreckungsrecht 12 (2010), 1189.
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3. Acções executivas
3.1. Generalidades
A acção executiva tem uma característica fundamental: toda a execução tem por base um
título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (art. 10.º, n.º 5). O tribunal
não pode tomar providências executivas de carácter material, sem primeiro se assegurar de que o
direito assim coercivamente satisfeito existe realmente. A lei, neste ponto capital, fixa por que
meios pode ser realizada esta demonstração da existência do direito. Tais meios traduzem-se
sempre em documentos e vêm taxativamente enumerados no art. 703.º, n.º 1: são as várias
espécies de título executivo constantes deste preceito.
Nos termos do art. 10.º, n.º 6, a acção executiva apresenta três subespécies,
profundamente diferentes em termos de tramitação: a execução para pagamento de quantia certa
30 17
Cf. LENT, AcP 152 (1952/1953), 416; ROSENBERG/SCHWAB/GOTTWALD, Zivilprozessrecht , 495.
31
BETTERMANN, in Miscellany in Honor of Charalambos N. Fragistas (1967), 52.
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(cf. art. 724.º a 858.º), a execução para entrega de coisa certa (cf. art. 859.º a 867.º) e a execução
para prestação de facto (cf. art. 868.º a 877.º).
A uma acção declarativa não se segue necessariamente uma acção executiva. Se a acção
for julgada improcedente e se nela não for proferida nenhuma condenação, nada há a executar.
Mas, mesmo que a acção declarativa termine com uma sentença condenatória, também não se
segue a execução se aquela sentença for voluntariamente cumprida pela parte condenada.
Acresce que, considerado o elenco dos títulos executivos que consta do art. 703.º, n.º 1,
nem toda a execução pressupõe uma anterior acção declarativa. A execução pode iniciar-se com
base, por exemplo, num título de carácter negocial, como, por exemplo, uma escritura pública (cf.
art. 703.º, n.º 1, al. b)).
4. Acção popular
Em várias ordens jurídicas, multiplicam-se as formas de tutela colectiva de direitos: uma das
mais conhecidas é constituída pelas class actions norte-americanas, reguladas na rule 23
F.R.Civ.P32. No ordenamento jurídico português, na sequência do disposto no art. 52.º, n.º 3, CRP,
encontra-se prevista uma acção popular para a defesa dos interesses difusos, tanto na área civil,
como na área administrativa (cf. art. 12.º LPPAP).
A acção popular pode ser proposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e
políticos, bem como por qualquer associação ou fundação defensora do respectivo interesse
difuso (art. 2.º, n.º 1, e 3.º LPPAP). O autor popular representa todos os titulares do interesse
difuso (art. 14.º LPPAP), embora a estes seja reconhecido o direito de se auto-excluírem dessa
representação (art. 15.º, n.º 1, LPPAP). Na hipótese de a acção popular ser julgada procedente, o
caso julgado da respectiva sentença beneficia todos os titulares do interesse difuso, apenas com
excepção daqueles que tenham exercido o direito de auto-exclusão (art. 19.º, n.º 1, LPPAP).
5. Opção político-legislativa
32
Cf., por exemplo, GIDI, A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos (2007), 67 ss.
33
Cf. CASTRO MENDES, Direito de Acção Judicial (1959), 129 s.
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45.º a 60.º CPC/1961). Isto demonstra que, naqueles Códigos, os quadros gerais do processo eram
concebidos sem procurar abranger a acção executiva. O Código de 2013 atenua esta característica:
o Livro I (“Da ação, das partes e do tribunal” (art. 1.º a 129.º) trata de aspectos respeitantes tanto à
acção declarativa e à acção executiva (apesar de, mostrando que a regra ainda é a acção declarativa,
se referir a “Disposições especiais sobre execuções” (art. 53.º a 58.º e 85.º a 90.º)). Porém, não há
dúvida de que, muitas vezes, a continua a exprimir-se em termos de deixar transparecer que só
pensou na acção e no processo declarativo: é o que sucede, por exemplo, com o art. 277.º, que, ao
tratar das causas de extinção da instância, não refere a causa de extinção da execução constante do
art. 849.º, n.º 1.
Daí que continue a ser muito duvidosa a aplicabilidade à acção executiva de algumas figuras
e disposições que a lei processual parece apresentar como gerais: basta citar, a título de exemplo, a
competência internacional regulada no art. 62.º e a reconvenção prevista no art. 266.º. Para apurar
se estes preceitos são aplicáveis à acção executiva é necessário determinar se, como estabelece o
art. 551.º, n.º 1, aquelas disposições se mostram compatíveis com a natureza daquela acção.
34
Sobre a distinção entre a iurisdictio contentiosa e a voluntaria no direito romano, cf. WACKE, ZRG (Röm. Abt.)
106 (1989), 180 ss.
35
Esta justificação é bastante antiga: cf., por exemplo, GLÜCK, Ausführliche Erläuterung der Pandecten nach
2
Hellfeld III/1 (1806), 92; H. W. PUCHTA, Handbuch des gerichtlichen Verfahrens in nichtstreitigen bürgerlichen
Rechtssachen, namentlich bei den sogenannten Handlungen der freiwilligen Gerichtsbarkeit, dann bei dem
Vormundschafts- und Hypothekenwesen I (1821), 3.
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de decisão tem origem nas antigas concepções que atribuíam natureza administrativa
à jurisdição voluntária;
– Predomínio, quanto ao objecto do processo, do princípio inquisitório sobre o
dispositivo, dado que “o tribunal pode […] investigar livremente os factos” (art. 986.º,
n.º 2), não estando limitado aos factos articulados pelas partes, como sucede, em
regra, no processo contencioso (cf. art. 5.º, n.º 1) 37; assim, por exemplo, se, num
processo de suprimento do consentimento de um dos cônjuges para alienação de
imóveis em regime de comunhão (art. 1000.º; cf. art. 1682.º-A, n.º 1, e 1684.º, n.º 3,
CC), ninguém alegar que o requerente está crivado de dívidas e que isso pode
justificar a não alienação, mas a entidade decisória suspeitar do facto, pode investigá-
lo livremente e tomá-lo em conta para negar o suprimento que é requerido; esta
característica dos processos de jurisdição voluntária deve ser vista em ligação com o
critério de decisão: é porque o juiz decide segundo um critério de discricionariedade
que lhe são atribuídos poderes inquisitórios;
– Inadmissibilidade da interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das
resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade (art. 988.º,
n.º 2); actualizando a doutrina definida no Ass. STJ de 6/5/1965 38, há que entender
que, nos processos de jurisdição voluntária em que se faça a interpretação e
aplicação de preceitos legais em relação a determinadas questões de direito, as
respectivas decisões podem ser impugnadas através do recurso para uniformização
de jurisprudência (cf. art. 688.º, n.º 1, e 691.º);
– Livre modificabilidade das resoluções, dado que estas podem ser alteradas, sem
prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes
(art. 988.º, n.º 1).
3. Critério da distinção
3.1. Preliminares
Antigamente, era muito comum distinguir os dois tipos de jurisdição da seguinte forma: a
contenciosa desenrola-se entre pessoas que não estão de acordo, inter nolentes ou inter invitos; a
graciosa decorre entre pessoas que estão de acordo, inter volentes: Assim, o art. 1.º § 1.º,
CPC/1876 estabelecia: “O processo é contencioso quando mantém os direitos que são
contestados; gracioso, quando regula os actos jurídicos sem contestação de parte” 39.
37
Referindo-se a um officium iudiciis directorium próprio da jurisdição voluntária, por oposição ao officium
iudiciis suppletorium próprio da jurisdição contenciosa, cf. W. H. PUCHTA, Über die Grenzen des Richteramts in
bürgerlichen Rechtssachen (1819), 16.
38
DG, I, de 28/4/1965 = BMJ 146, 325.
39
Costuma fazer-se remontar os termos desta distinção a MARCIANUS, D. 1.16.2 pr.: Omnes proconsules statin
quam urbem egressi fuerint habent iurisdictionen, sed non contentiosam, sed voluntariam ; para uma parte da
doutrina, na jurisdição voluntária não há litígio entre as partes: cf., por exemplo, CARNELUTTI, Diritto e processo
(1958), 62, considerando que a jurisdição voluntaria é “tipicamente un processo senza lite”.
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II/13
a) O art. 987.º – apesar de ser um preceito que coloca dificuldades interpretativas – contém
o critério da distinção entre os processos graciosos e contenciosos: são processos de jurisdição
voluntária, aqueles em que as resoluções são tomadas segundo critérios de conveniência e
oportunidade. Dito de outro modo: são processos de jurisdição voluntária aqueles em que o critério
de decisão é a discricionariedade. Segundo este critério, o processo especial de tutela da
personalidade (cf. art. 878.º a 880.º) também é um processo de jurisdição voluntária, porque,
independentemente de qualquer pedido relativo à responsabilidade civil, o autor pode requerer as
providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça
ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida (art. 70.º, n.º 2, CC).
O referido critério tem de ser entendido, no entanto, em termos cautelosos. Poder-se-ia
afirmar que a lei determina que, nos processos graciosos, não se deve aplicar tanto o direito,
como critérios de conveniência e oportunidade. Esta ideia é, no entanto, algo simplista e, por isso,
o preceito do art. 987.º quadra mal a diversas situações que se podem configurar: por exemplo, o
juiz ou o conservador do registo civil não pode decretar o divórcio ou a separação por mútuo
consentimento sem se verificarem os requisitos dos art. 1775.º, n.º 1, e 1794.º CC, justificando
essa medida pelo facto de a achar “conveniente e oportuna”. Uma interpretação literal do art. 987.º
negaria praticamente a jurisdicidade (dado que nega a imperatividade em face do mais importante
órgão de aplicação do direito, o tribunal) a vastas zonas de direito privado – sobretudo de direito
da família e de direito comercial – que se actuam através de processos graciosos. A relevância do
art. 987.º não pode ser tão profunda.
A interpretação a dar a esta disposição é outra. O processo de jurisdição voluntária termina
por resolução (art. 988.º) ou sentença (art. 986.º, n.º 3). Ora o art. 987.º não diz que o tribunal de
jurisdição graciosa escapa ao império da lei sempre que profere quaisquer resoluções ou
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/14
sentenças, mas só quando toma providências. Este termo dá uma ideia geral de decisão tomada
para certo fim, dentro de uma medida de prudente arbítrio concedida a quem tem de a tomar. Há
condicionalismos face aos quais a lei só reconhece uma solução como admitida e lícita: por
exemplo, se os cônjuges não acordarem sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles
careça, o exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos menores e o destino
da casa de morada de família, eles não se podem divorciar ou separar por mútuo consentimento
(art. 994.º; cf. art. 1778.º CC). Em face destas regras imperativas (preceptivas ou proibitivas) e
concretas, a entidade decisória está vinculada à solução legal, sem lhe aproveitar o art. 987.º.
Pode suceder, porém, que a lei tenha um sentido permissivo ou genérico: então funciona o
art. 987.º. Assim, se se verificar o condicionalismo do art. 994.º, a lei não impõe o divórcio:
permite-o, sendo possível quer a persistência do casamento, quer o divórcio. Acresce ainda que
há casos em que o conteúdo da decisão fica, em larga medida, na dependência da entidade
decisória, pelo que, de novo, existem várias alternativas de solução, todas elas possíveis e
jurídicas: por exemplo, na fixação judicial do prazo (art. 1026.º e 1027.º), o juiz pode fixar,
consoante o caso e dentro do pedido pelo requerente, um, dois ou três meses; no caso da tutela
da personalidade, a determinação da medida adequada não é feita pela lei, mas deixada às
circunstâncias do caso, naturalmente sem extravasar daquilo que o requerente solicitar (art. 878.º;
cf. art. 70.º a 81.º CC). É quanto à escolha entre vários consequentes (todos eles) permitidos que
o art. 987.º determina não dever a entidade decisória preocupar-se com razões legais (integrando
uma pretensa lacuna), mas antes julgar por conveniência e oportunidade. Neste caso, aquela
entidade pode negar, em nome destas razões, o divórcio ou a separação por mútuo
consentimento e pode atender a essas razões para fixar o prazo ou para tutelar a personalidade.
É assim também quando a entidade decisória deva aplicar alguns conceitos indeterminados
que se encontram tanto na previsão da regra (por exemplo, “dentro do período que se julgue
razoável”, art. 1218.º, n.º 2, CC), como na sua estatuição (“providências adequadas às
circunstâncias do caso”, art. 70.º, n.º 2, CC, com referência aos art. 878.º a 880.º). Na subsunção de
casos concretos a esses conceitos indeterminados e na sua aplicação a esses casos pode
igualmente aquela entidade deixar-se guiar por critérios de conveniência e de oportunidade, ao
abrigo do art. 987.º. Muitas vezes, aliás, é a própria lei que inculca remeter-se uma determinada
decisão ao prudente arbítrio do juiz (cf., por exemplo, art. 1901.º, n.º 2, e 2007.º, n.º 1, CC).
b) Atendendo a que o processo especial de tutela da personalidade (cf. art. 878.º a 880.º)
não se encontra integrado nos processos de jurisdição voluntária (cf. art. 986.º a 1081.º), a sua
inclusão doutrinária nestes processos atendendo ao critério de decisão que nele pode ser utilizado
– que é a adequação das providências às circunstâncias do caso (cf. art. 70.º, n.º 2, CC) – não
permite aplicar (aliás, de forma discutível) àquele processo as características gerais dos processos
graciosos (cf. art. 986.º a 988.º). Em todo o caso, aquele critério de decisão não permite a
interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, dado que a revista exige, como
fundamento específico, a alegação da violação de lei substantiva (cf. art. 674.º, n.º 1, al. a)).
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/15
40
Negando o carácter jurisdicional à jurisdição voluntária, cf. GLÜCK, Ausführliche Erläuterung der Pandecten
2
nach Hellfeld III/1, 93, incluindo-a, segundo a terminologia da época, na Policeygewalt; WACH, Handbuch des
Deutschen Civilprozessrechts I, 49 ss.; HELLWIG, System des Deutschen Zivilprozessrechts I (1912), 55;
CALAMANDREI, Rdcom 15 (1917), 780 s., com o argumento de que, quando a lei tem o juiz por destinatário
directo, isto é, quando lhe concede um poder discricionário de decisão, “trata-se sempre de actividade
pertencente à função administrativa”; CHIOVENDA, Principii di diritto processuale civile 4, 314 s.; CHIOVENDA,
Istituzioni di diritto processuale civile II/1 (1934), 14; ALLORIO, Rtdpc 2 (1948), 487 ss., concebendo a jurisdição
voluntária como uma “actividade administrativa desenvolvida por órgãos jurisdicionais” (para uma crítica desta
orientação, cf. MICHELI, in Scritti giuridici in onore di Francesco Carnelutti II (1950), 381 ss.); SMID,
Rechtsprechung – Zur Unterscheidung von Rechtsfürsorge und Prozeβ (1990), 208, entendendo que a jurisdição
voluntária é “administração material”.
41
Cf. ZANOBINI, Rdpubb 10 (1918-I), 183 s.
42 2
Sobre o sentido da forma em processo cf. SANTOS BEDAQUE, Efectividade do Processo e Técnica Processual
(2007), 91 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/16
Para se determinar se, em certo caso, se deve usar o processo especial ou o processo
comum, deve utilizar-se o seguinte critério: vê-se no Código de Processo Civil – sobretudo no
Livro V (art. 878.º a 1081.º) – e em leis avulsas se algum dos tipos de processos especiais aí
contemplados abrange, no seu âmbito de aplicação, a hipótese em causa; em caso negati vo,
recorre-se ao processo comum.
3. Processo de declaração
3.1. Generalidades
43
Cf., por exemplo, ENDEMANN, Das deutsche Prozeβrecht (1868), 1026 ss.; MENGER, System des
oesterreichischen Civilprocessrechts I (1876), 29 ss.; WACH, Handbuch des Deutschen Civilprozessrechts I
(1885), 40 ss.
44
Já referindo esta dualidade, cf. DURANDI, Speculum Juris cum Ioan. Andreae Baldi II (Francoforti 1612), 146;
4
mais tarde, cf. CLAPROTH’s Einleitung in sämtliche summarische Processe (Ed. WILLICH) (1808), 23 ss.
45
Já antes, FASOLUS, De sumariis cognitionibus, in WAHRMUND (Ed.), Quellen zur Geschichte des römisch-
kanonischen Prozesses im Mittelalter IV/V (1928), 9, afirmava que de plano significa apenas sine scriptura vel
libello (cf. NÖRR, ZRG (Kan. Abt.) 112 (1995), 5 ss.); sobre a matéria, cf. SALVIOLI, Storia della procedura civile e
criminale, in DEL GIUDICE (Ed.), Storia del Diritto Italiano III/2 (1927), 337 ss.; FAIRÉN GUILLÉN, El Juicio Ordinario y
Plenarios Rapidos (1953), 41 ss.; NÖRR, Romanisch-kanonisches Prozessrecht (2012), 211 ss.; em particular
sobre a Clementina, cf. também Nörr, in VAN RHEE (Ed.), The Law´s Delay/Essays on Undue Delay in Civil
Litigation (2004), 203 ss.; DESCAMPS, in MAUSEN/CONDORELLI/ROUMY/SCHMOECKEL (Eds.), Der Einfluss der Kanonistik
auf die Europäische Rechtskultur IV (2014), 45 ss.
46
Cf. GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen Prozesses IV (1803), 112 s.; DANZ, Grundsätze der
summarischen Prozesse 3 (Ed. GÖNNER) (1806), 3 ss.; LINDE, Lehrbuch des deutschen gemeinen Civilprozesses
(1825), 426; SCHERING, Der Mandats-summarische und Bagatell-Prozeß nach der Verordnung vom 1. Juni 1833
und den späteren darüber ergangenen Bestimmungen (1843), 180 s.; em referência ao processo documental ou
cambiário, cf. CHIOVENDA, Rdcom 15 (1917), 623 ss. = CHIOVENDA, Saggi di diritto processuale civile I (1930), 130
ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/17
entre a forma sumária, uma semiplena cognitio e uma semiplena probatio foi estabelecida por Azo
(1150-1230)47, tendo-se a doutrina posterior dividido entre as orientações que encontravam neste
processo sumário uma prima-facie-Cognition decorrente da limitação do objecto e dos meios de
prova48 e as orientações que baseavam a cognição sumária ( summatim cognoscere) num juízo de
probabilidade49. No actual direito português, esta característica só se encontra nos procedimentos
cautelares (cf. art. 384.º, n.º 1, e 387.º, n.º 1) 50.
a) Apesar de todo o processo declarativo comum seguir uma única forma (cf. art. 548.º), há
algumas especialidades no respectivo procedimento em função do valor da causa. Assim:
– Nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação a tramitação
posterior à fase dos articulados é distinta da tramitação das acções cujo valor exceda
esse quantitativo (art. 597.º);
– Nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, a perícia é
realizada por um único perito (art. 468.º, n.º 5);
47
Summa AZONIS (Venetis 1566), III.1.19: Sed in casibus semiplena, vel summaria sit cognitio :
48
Cf. BRIEGLEB, Summatin cognoscere quid et quale fuerit apud Romanos (1843), 7 s.; BRIEGLEB, Einleitung in die
Theorie der summarischen Processe (1859), 169 ss.; WACH, Der Arrestprocess in seiner geschichtlichen
Entwicklung I (1868), 130 ss.
49
LINDE, Lehrbuch des deutschen gemeinen Civilprozesses, 428; SAVIGNY, ZGR 6 (1828), 229 ss.; WETZELL, System
des ordentlichen Civilprocesses 3, 302 ss.
50
Cf., na história dogmática do instituto, BRIEGLEB, Einleitung in die Theorie der summarischen Processe, 343 ss.;
diferentemente, WACH, Der Arrestprozess in seiner geschichtlichen Entwicklung I, 166 ss., criticando a
orientação de que, em comparação com o processo ordinário, no processo sumário se conhece de um aliud ius
actoris; cf. também WACH, FG Bernhard Windscheid (1888), 89 ss. = WACH, Der Feststellungsanspruch (Leipzig
1888), 18 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/18
– Nas acções de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, o limite do
número de testemunhas é reduzido para metade do que é admissível nas causas de
valor superior a essa alçada (art. 511.º, n.º 1 2.ª parte);
– Nas acções de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, os períodos de
tempo previstos para as alegações orais dos advogados e respectivas réplicas são
reduzidos para metade daqueles que valem para as demais acções (art. 604.º, n.º 5
2.ª parte).
b) O entendimento destes regimes depende da análise de duas noções: a de valor da causa
e a de alçada do tribunal.
a) O art. 296.º, n.º 1, estabelece que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo,
expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido; nenhuma
petição inicial é recebida se dela não constar a indicação do valor da causa (cf. art. 558.º, al. e)).
Todo o processo tem um valor em dinheiro, determinado quer naturalmente pela avaliação dos
interesses em causa (segundo as regras dos art. 297.º a 310.º), quer, quando se trate de
interesses não patrimoniais e não avaliáveis em dinheiro, artificialmente (segundo a regra do art.
303.º).
O valor em referência é o valor processual, havendo ainda o valor tributário, em regra
coincidente com aquele (cf. art. 11.º RCP), mas que pode divergir daquele valor processual por ser
fixado segundo as regras que constam dos art. 11.º e 12.º RCP. O valor processual interessa para
determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da
causa com a alçada do tribunal (art. 296.º, n.º 2); o valor tributário interessa para efeito de custas
(art. 296.º, n.º 3).
II/19
A base da organização judiciária dos tribunais judiciais é o tribunal de 1.ª instância, que é,
em regra, um tribunal de comarca (cf. art. 210.º, n.º 3, CRP; art. 29.º, n.º 3, e 79.º LOSJ); além dos
tribunais de 1.ª instância, existem tribunais superiores – os tribunais da Relação (cf. art. 210.º, n.º
4, CRP; art. 29.º, n.º 2, e 67.º, n.º 1, LOSJ) e o Supremo Tribunal de Justiça (cf. art. 210.º, n.º 1,
CRP; art. 29.º, n.º 1, al. a), e 31.º, n.º 1, LOSJ). Efeito fundamental desta hierarquia é a
possibilidade de se recorrer para um tribunal mais alto na escala hierárquica das decisões de um
tribunal menos situado nessa escala. Dos tribunais de 1.ª instância, em tese geral, pode
recorrer-se para os tribunais da Relação e destes para o Supremo Tribunal de Justiça.
A lei não permite sempre a interposição de recurso. Muitas vezes, a lei estabelece um limite
até ao qual o tribunal menos categorizado julga sem recurso, só cabendo recurso para o tribunal
mais elevado em categoria a partir desse limite (cf. art. 629.º, n.º 1). Ao limite até ao qual certo
tribunal julga sem recurso chama-se alçada desse tribunal. Em matéria civil, a alçada dos
Tribunais da Relação é de € 30000 e a dos tribunais de 1.ª instância é de € 5000 (art. 44.º, n.º 1,
LOSJ).
4. Processo de execução
5.1. Generalidades
II/20
única (art. 550.º, n.º 4). Existe, assim, uma pluralidade de formas de execução, que resulta da
combinação de dois critérios distintos:
– Um dos critérios atende ao fim da execução e distingue entre execuções para
pagamento de quantia certa, para entrega de coisa certa e para prestação de facto
(cf. art. 10.º, n.º 6); ao contrário do que sucede na classificação pelo fim do processo
declarativo em acções de simples apreciação, de condenação e constitutivas (cf. art.
10.º, n.º 2), a classificação das execuções pelo fim tem profunda repercussão na
marcha por que se desenvolvem (cf. art. 724.º a 858.º, 859.º a 867.º e 868.º a 877.º).
– O outro critério atende à forma da execução para pagamento de quantia certa e está
contido no art. 550.º, n.º 1; em regra, aplica-se o processo sumário quando o título
executivo fornece algumas garantias da existência do dever de prestar pelo devedor
(cf. art. 550.º, n.º 2 e 3).
I. Interpretação e integração
O grande princípio geral que domina a matéria da interpretação e integração do direito
processual civil é o de que este ramo de direito se integra quase completamente, com pequenas
diferenças, na teoria geral do direito. Designadamente, são aplicáveis ao processo civil as
soluções que, naquela teoria, forem dadas aos problemas levantados pela interpretação e
integração da lei. Em especial, as disposições comummente entendidas como de teoria geral
sobre o assunto – maxime, as constantes dos art. 9.º e 10.º CC – são plenamente aplicáveis em
processo civil. Apenas importa acrescentar que, atendendo à função instrumental do processo
civil, a interpretação das regras processuais civis deve facilitar a tutela das situações decorrentes
do direito material51.
Desta ordem de ideias resulta ainda uma consequência de interesse: podem considerar-se
como regras de teoria geral do direito certas regras que despontaram no direito processual sobre a
interpretação e a integração da lei. É o caso designadamente do art. 8.º CC, que versa sobre a
obrigação de julgar e o dever de obediência à lei.
51
Cf. SCHUMANN, FS Karl Larenz (München 1983), 571 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/21
2. Concretização
2.1. Regime geral
a) Em regra, todas as leis são de aplicação imediata (cf. art. 12.º, n.º 1 1.ª parte, CC), pois
que todas as leis entram em vigor para se aplicarem de imediato às situações que elas abrangem.
As leis novas devem aplicar-se, todavia, com respeito do domínio regido pela lei antiga, ou seja,
não devem aplicar-se de forma retroactiva (art. 12.º, n.º 1 2.ª parte, CC). Estes princípios são
válidos na teoria geral do direito e válidos, precisamente nos mesmos termos, em direito
processual civil.
Como explica BAPTISTA MACHADO (1927-1991): “O princípio da aplicação imediata das leis
processuais tem um duplo sentido. Num primeiro sentido, significa que se não tem que atender à
lei processual vigente ao tempo em que se constituiu ou extinguiu o direito ou relação jurídica
litigada, mas à lei vigente ao tempo do processo. […] Para justificar o princípio nesta primeira
acepção basta salientar a natureza instrumental das normas processuais.
Num segundo sentido, significa que a nova lei processual se aplica imediatamente aos
processos pendentes, pelo que respeita aos actos que de futuro neles hajam de ser praticados. Aqui
o termo de referência é a SJ [situação jurídica] processual em curso, enquanto SJ complexa de
formação sucessiva. Neste sentido as leis processuais são de aplicação imediata justamente por
serem as leis em vigor ao tempo da realização dos actos a que se referem. Como, porém, o
processo é uma SJ em curso, bem pode acontecer que a aplicação da LN possa, indirectamente, e SR
[sem retroactividade], inutilizar actos processuais passados” 52.
b) A ideia expressa no art. 12.º CC é a seguinte: deve ver-se com atenção que ponto regula
a lei nova; entende-se, em princípio, que esse ponto é regulado pela lei nova só do momento da
sua entrada em vigor em diante. Se este ponto for um facto ou um efeito jurídico de um facto, a lei
nova só se aplica aos factos posteriores, respeitando-se plenamente os factos anteriores em todos
os seus efeitos (cf. art. 12.º, n.º 1, CC); mas se a lei nova regular directamente efeitos jurídicos,
aplica-se aos efeitos que existam após a sua entrada em vigor, ainda que produzidos por factos
passados (cf. art. 12.º, n.º 2 2.ª parte, CC) 53.
A regra da aplicação imediata da lei processual nova é justificada por ALBERTO DOS REIS (1875-
1955) desta maneira: “O princípio que domina a aplicação das leis de processo quanto ao tempo é
este: as leis de processo são, pela sua própria natureza, de aplicação imediata. Isto quer dizer que a
lei nova se aplica a todos os actos que se realizarem a partir do momento em que ela entre em
vigor.
52
BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil (1968), 273 n. 210.
53
Para maiores desenvolvimentos, cf. TEIXEIRA DE SOUSA, CDP 18 (2007), 3 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/22
O princípio que fica enunciado deriva […] da própria natureza das leis de processo e
justifica-se, qualquer que seja a doutrina que se adopte quanto ao problema geral da
retroactividade das leis. As leis de processo referem-se, em última análise, ao exercício duma das
funções do Estado – a função jurisdicional ou judiciária; quando se publica uma lei nova, isso
significa que o Estado considera a lei anterior imperfeita e defeituosa para a administração da
justiça ou para o regular funcionamento do poder judicial. Tanto basta para que a lei nova deva
aplicar-se imediatamente”54.
O princípio da aplicabilidade imediata da lei processual deriva, talvez subconscientemente,
da antiga consideração do processo como uma sucessão de actos e de formalidades e está pensado
fundamentalmente para os actos e as formalidades que devem ser praticados em acções que estão
pendentes no momento da entrada em vigor da lei nova. No entanto, os actos processuais são mais
do que forma e nem sempre são praticados num processo pendente, pelo que o princípio da
aplicabilidade imediata da lei nova é insuficiente para dirimir o problema da aplicação no tempo das
leis que os regem e disciplinam.
54 2
ALBERTO DOS REIS, Processo ordinário e sumário I (1928), 32.
55
Cf. SIEG, ZZP 65 (1952), 254.
56
Cf. SIEG, ZZP 65 (1952), 256 e 259; SCHWEIGER, Intertemporales Zivilprozessrecht (2011), 419; propondo, em
alternativa, a regra tempus regit processum e, portanto, a aplicação da lei nova somente a processos (e não a
actos) posteriores à sua entrada em vigor, cf. CAPONI, Rdp 61 (2006), 456 ss.; sobre o problema da influência da
modificação da jurisprudência nos actos anteriormente praticados de acordo com a jurisprudência então
dominante, cf. COMOGLIO, Rtdpc 67 (2013), 525 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/23
À validade dos negócios processuais aplica-se, sem qualquer dificuldade, o disposto no art.
12.º, n.º 2 1.ª parte, CC: a validade, substancial ou formal, desses negócios é regulada, em regra,
pelo regime vigente no momento da sua celebração.
Todas as teorias sobre a aplicação da lei no tempo ressalvam, antes de considerações gerais,
que a regra jurídica pode vir dar solução legal aos problemas dessa aplicação, através de
disposições transitórias, podendo fazê-lo por duas formas: por disposições transitórias, quanto a
certos problemas de aplicação das leis no tempo, e por disposições transitórias, quanto a uma certa
sucessão de leis no tempo.
Há problemas de direito processual intertemporal legislativamente resolvidos. Alguns são-no
de modo expresso, como é o caso do art. 136.º, quanto à lei aplicável à forma dos actos e do
processo, do art. 297.º CC, quanto à alteração de prazos, do art. 38.º, n.º 2, LOSJ, acerca da matéria
de competência, ou do art. 44.º, n.º 3, LOSJ, quanto à admissibilidade dos recursos por efeito da
alteração das alçadas. Outros problemas são resolvidos de modo implícito , entendendo que de
certa disposição se deduz uma solução de direito intertemporal: assim, quanto às regras sobre o
valor da causa, o art. 299.º, n.º 1, parece implicar que as leis novas sobre esse valor não se aplicam
aos processos pendentes. Em certos casos de sucessão de leis, a lei nova contém disposições
transitórias: é o caso, por exemplo, dos art. 17.º a 29.º DL 329-A795, de 12/12, do art. 6.º L
14/2006, de 26/459, do art. 11.º DL 303/2007, de 24/8, e dos art. 5.º a 7.º L 41/2013, de 26/6.
57
Cf. SCHWEIGER, Intertemporales Zivilprozessrecht, 95.
58
Cf. TC 287/90 (30/10/1990).
59
Cf. Ac. STJ 12/2007, de 6/12.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/24
2. Concretização
2.1. Princípio da territorialidade
Alguns casos que parecem excepções legais ao princípio da territorialidade exclusiva da lei
processual deixam de poder ser como tal considerados após uma análise mais cuidadosa. Do art.
36.º CC resulta que, em princípio, “a forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à
substância do negócio”; portanto, pode aplicar-se em Portugal o direito de um Estado em que o
mútuo civil de quantia superior a € 20000 (cf. art. 1143.º CC) seja passível de prova testemunhal, a
qual deverá será aceite pelos tribunais portugueses. Em casos como o descrito, parece que se
afastam as regras processuais portuguesas e se aplicam as regras de um processo estrangeiro.
Contudo, é claro que a preterição do art. 1143.º CC e a aplicação extraterritorial de uma lei
estrangeira se referem, neste caso, a uma matéria de direito substantivo: as formalidades ( ad
substantiam mais que ad probationem) de um acto jurídico regulador de interesses privados, pelo
que se trata da aplicação de uma regra de direito probatório material. Porém, o modo de produzir
em juízo a prova deste acto só pode ser regulada pela lei do tribunal onde a prova se produz.
Assim, ainda que no país onde foi celebrado o mútuo seja admissível a prova deste acto por
juramento, não o será perante o direito português, porque, neste direito, o juramento não é um
meio admissível de produção de prova. Esta disposição é de direito processual (é, em concreto, uma
regra de direito probatório formal) e, por isso, impreterível por lei estrangeira.
Diz o art. 25.º CC que “o estado dos indivíduos, a capacidade das pessoas, as relações de
família e as sucessões por morte são regulados pela lei pessoal dos respectivos sujeitos”. Como o
art. 15.º, n.º 2, estabelece o princípio da correspondência entre a capacidade de exercício de
direitos substantivos e a capacidade de exercício de direitos processuais (capacidade judiciária),
daqui poder-se-ia tirar a conclusão de que, em matéria de capacidade judiciária, haveria que
preterir, muitas vezes, a lei processual portuguesa e aplicar extraterritorialmente uma lei
estrangeira. De novo a conclusão é precipitada. Por força do art. 25.º CC pode haver que preterir a
lei portuguesa e aplicar uma lei estrangeira em matéria de capacidade civil (de direito substantivo);
60
Crítico perante a aplicação irrestrita deste princípio, cf. GRUNSKY, ZZP 89 (1976), 241 ss. e 249 ss.
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II/25
mas, uma vez fixada esta, a regra processual que se aplica no ordenamento português é sempre a
do art. 15.º, n.º 2. Assim, se, num país estrangeiro, não vigorar a regra da correspondência,
havendo pessoas civilmente capazes mas judiciariamente incapazes, num foro português essas
pessoas consideram-se civilmente capazes, por força do art. 25.º CC, e judiciariamente capazes
também, por força do art. 15.º, n.º 2; a inversa é igualmente verdadeira: ainda que a sua lei pessoal
não lhes atribua capacidade judiciária, todas as pessoas com capacidade de exercício possuem, em
Portugal, capacidade judiciária.
As leis processuais envolvidas na resolução destes problemas são de aplicação territorial, não
podendo ser preteridas por leis estrangeiras. Assim, por exemplo, as pessoas meramente
judiciárias – que são aquelas que têm personalidade judiciária sem terem personalidade jurídica (cf.
art. 12.º e 13.º) – gozam de personalidade judiciária, ainda que provenientes de um país que lhes
não reconheça tal atributo. Outras hipóteses que igualmente se poderiam invocar, com a do art.
182.º, n.º 2, também se revelam, após um estudo atento, em nada derrogatórias do prin cípio da
territorialidade da lei processual
II/26
O princípio da aplicação da lex fori não obsta a que existam, no ordenamento processual
português, algumas regras que só são aplicáveis quando a acção apresenta uma conexão com
várias ordens jurídicas. Nesta hipótese, há, por vezes, que recorrer a regras de conflitos de
jurisdições para determinar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para
apreciar a acção (cf., no âmbito do direito interno, art. 59.º) e há que aplicar regras específicas para
verificar a relevância da pendência da acção num tribunal estrangeiro (cf., no mesmo âmbito, art.
580.º, n.º 3). É também através de regras próprias do processo civil internacional que se analisa se
uma sentença estrangeira pode ser reconhecida em Portugal (cf., ainda no mesmo âmbito, art.
978.º a 985.º).
I. Preliminares
1. Modelos processuais
1.1. Generalidades
61 2
STEIN/JUNCKER, Grundriβ des Zivilprozeβrechts und des Konkursrechts (1924), XIV.
62
Sobre as relações entre a cultura e o processo, cf. TARUFFO, Rtdpc 63 (2009), 63 ss.; em especial, CHASE, Law,
Culture and Ritual/Disputing Systems in Cross-Cultural Context (2005), 1 ss.; foi essencialmente com
argumentos de natureza cultural que alguns juristas norte-americanos se opuseram à introdução, no seu
sistema processual, da chamada German Advantage: cf. ALLEN/KÖCK/RIECHENBERG/ROSEN, Nw. U. L. Rev. 82
(1987/1988), 705 ss.; REITZ, Iowa L. Rev. 75 (1989/1990), 987 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/27
É por isso que o regime processual civil constitui um espelho de algumas características
fundamentais do sistema jurídico63.
1.2. Concretização
63
Cf. Habermas, Faktizität und Geltung (1992), 241: “Weil alle Rechtskommunikationen auf einklagbare
Ansprüche verweisen, bildet das Gerichtsverfahren den Fluchtpunkt für die Analyse des Rechtssystems “.
64
TARELLO, Dottrine del processo civile/Studi storici sulla formazione del diritto processuale civile (1989), 10 ss.
65
Einl. § 6: “Der vom Staat geordnete Richter, welcher den Streit durch richtige Anwendung des Gesetzes auf die
dabei zum Grunde liegenden Thatsachen entscheiden soll, hat die nächste Pflicht, folglich auch das nächste
Recht, sich von der wahren und eigentlichen Bewandniß dieser Thatsachen zu versichern “.
66
Cf. CADIET/CANIVET (Eds.), 1806-1976-2006/De la commémoration d’un code à l’autre : 200 ans de procédure
civile en France (2006).
67
Cf. FAZZALARI, Rdp 20 (1965), 491 ss.; TARUFFO, La giustizia civile in Italia dal ’700 a oggi (1980), 107 ss. e 151
ss.
68
Cf. BETTERMNANN, ZZP 91 (1978), 365 ss.; HENCKEL, GS Rudolf Bruns (1980), 111 ss.; PRÜTTING, Liber Amicorum
Walter F. Lindacher (2007), 91 ss.; AHRENS, Prozessreform und einheitlicher Zivilprozess (2007), 12 ss.
69
Cf. SPRUNG, Rdp 34 (1979), 24 ss.; CIPRIANI, Rdp 50 (1995), 969 ss. = CIPRIANI, Ideologie e modelli del processo
civile, 27 ss.
70
Cf. DAMAŠKA, The Faces of Justice and State Authority/A Comparative Approach to the Legal Process (1986), 88
ss., 97 ss., e 147 ss.; cf. também TARUFFO , Legal Cultures and Models of Civil Justice, FS Hideo Nakamura (1996),
624 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/28
a) O modelo social do processo (cujas origens remontam aos trabalhos pioneiros de MENGER
(1841-1906)72 e KLEIN (1854-1926)73 e à Zivilprozessordnung austríaca de 189574) caracteriza-se,
no essencial, quer pelo aumento dos poderes do tribunal – nomeadamente no que se refere à
produção e à avaliação da prova75, bem como no que respeita à contribuição para assegurar a
igualdade entre as partes –, quer pela exigência de padrões de veracidade nas alegações das partes.
Alguma doutrina – adepta de um “neoprivatismo no processo civil” 76 – tem vindo a defender
que o aumento dos poderes do juiz é próprio de uma visão autoritária do processo. Como afirma
MONTERO AROCA: “Ao conceder amplos poderes discricionários ao juiz, e precisamente a alguns
juízes, como o austríaco, o soviético, o alemão ou o italiano, nas suas épocas fortemente sujeitos
ao poder executivo, isso só se explica se, ao mesmo tempo, se priva as partes desses poderes,
poderes que, na realidade, se traduzem em garantias das mesmas no início e no desenvolvimento
do processo civil. [/] Os que propugnaram o aumento dos poderes do juiz foram, na sua origem,
aqueles que limitaram a independência desse juiz, por vezes suprimindo-a até de raiz. Na
actualidade, os que continuam a sustentar esse aumento não aludem à independência e, sobretudo,
negam a realidade histórica ou, pelo menos, não querem recordar que modelo político de juiz foi
aquele que teve maiores poderes”77.
Não faltam os exemplos históricos da ligação entre os regimes absolutistas e o reforço dos
poderes do juiz. Basta lembrar que o princípio do inquisitório nasceu no Corpus Iuris Fridericianum
71
Cf. WASSERMANN, Der soziale Zivilprozeβ (1978), 49 ss.
72 3
Cf. MENGER, Das Bürgerliche Recht und die besitzlosen Volksklassen (1904), 26 ss.
73
Cf. KLEIN, Pro futuro, 3 ss.
74
Cf. SCHÖNIGER-HEKELE, Die österreichische Zivilprozessform 1895/Wirkung im Inland bis zum Ausbruch des
Ersten Weltkrieges 1914 (2000).
75
Espelhando uma concepção publicística do processo, cf. TISSIER, Rtdc 5 (1906), 651 e 652: “ Un procès n’est
pas tout à fait la chose des parties, du moins quand il est porté devant les juges. […] quand le procès est devant
le tribunal, il n’est pas rationnel que les parties soient absolument maîtresses de l’instruire à leur guise et libres
de faire venir le jour où il leur plaira ”; CHIOVENDA, Rdc 2 (1910), 71 ss. = CHIOVENDA, Saggi di diritto processuale
civile I, 423 ss.
76
Cf. BARBOSA MOREIRA, CDP 10 (2005), 3 ss.; para uma conhecida concepção privatística do processo civil, cf.
SATTA, Rdp 14 (1937-I), 49: “La tutela degli interessi di parte è il solo elemento essenziale del processo, punto di
partenza e punto di arrivo”; esta concepção mereceu uma resposta de CRISTOFOLINI (Rdp 14 (1937-I), 105 ss.), à
qual retorquiu SATTA (Foro it. 1937-IV, 275 ss.) e novamente CRISTOFOLINI (Rdp 14 (1937-I), 282 ss.); igualmente
crítico, cf. ALLORIO, Rdcom 35 (1937-II), 326 ss.
77
MONTERO AROCA, Los principios políticos de la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil/Los poderes del juez y la
oralidad (2001), 71 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/29
prussiano de 1781 (cf. 1, 10, § 2), um exemplo perfeito de legislação absolutista no domínio
processual (que, entre outros aspectos, se caracterizava por, ao mesmo tempo que continha a
proibição da representação das partes por advogados 78, impor a sua representação por um auxiliar
do tribunal – o Aβistenzrath79 (cf. 1, 3, § 1 ss., e 1, 7, § 1 ss.). É também indiscutível que a
Zivilprozessordnung austríaca de 1895 nasceu num ambiente político que não era liberal e que
alguma legislação processual civil posterior – como, por exemplo, o Código de Processo Civil
português de 1939 e o Codice di procedura civile italiano de 194080 – foi elaborada durante épocas
autoritárias. É igualmente indiscutível que o intervencionismo do juiz consagrado nessas legislações
podia ser visto como um reflexo de visões políticas autoritárias: no fundo, o controlo do Estado
sobre o juiz era completado pelo controlo do juiz sobre o processo. Mais discutível é defender que
seja comprovável qualquer relação entre os poderes do juiz e as ideologias políticas. Efectivamente,
podem ser encontrados exemplos da vigência quer de códigos liberais em regimes autoritários –
pense-se no Code de procédure civile napoleónico, no Codice di procedura civile de 1865 durante a
época fascista ou na Ley de Enjuiciamiento Civil de 1881 durante o regime franquista –, quer de
códigos “autoritários” em regimes democráticos – pense-se no Codice di procedura civile de 1940,
no Nouveau code de procédure civile francês ou na actual Zivilprozessordnung alemã. É assim
inaceitável defender que qualquer intervencionismo do juiz seja incompatível com ideologias
políticas liberais e democráticas e, em especial, com a autonomia privada que subjaz a muitos
aspectos do direito civil e comercial81.
Afinal, o que se pede ao juiz é o exercício da função jurisdicional, e não a certificação,
através da sentença, do que uma das partes conseguiu impor ou obter da outra em juízo. O objecto
do processo pode ser um “assunto das partes”; mas a administração da justiça “em nome do povo”
(cf. art. 202.º, n.º 1, CRP) não pode deixar de ser um “assunto de todos”. Portanto, não é crível que
a legislação processual civil do futuro venha a afastar-se do referido modelo social.
b) O modelo social de processo civil assenta numa repartição de funções entre as partes e o
tribunal. Esta repartição traduz-se na atribuição de importantes poderes ao juiz da causa, seja no
que respeita à condução da causa, seja no que se refere à matéria de facto 82. Fala-se, a este
propósito, de um “processo civil dialógico” 83; mas, porque o diálogo se verifica entre o juiz e as
duas partes, melhor seria falar de um “processo civil trialógico”.
2. Princípios processuais
O processo civil é regulado por regras e por princípios jurídicos. Como princípios do direito
processual civil há que analisar o princípio dispositivo, o princípio da boa fé, o princípio da
cooperação, o princípio da igualdade das partes, o princípio da instrumentalidade, o princípio da
legalidade e o princípio da auto-suficiência.
78
Cf. Corpus Iuris Fridericianum I/1/Von der Prozess-Ordnung (Berlin 1781), XXV: “Die bisherigen Advocaten
sind […] gänzlich abgeschafft”.
79
Cf. Corpus Iuris Fridericianum I/1, XXV: “Dagegen werden […] Aβistenz-Räthe bestellt, deren Amt in so fern,
als von der Untersuchung der Facti die Rede, ein würkliches richterliches Amt ist”.
80
Cf. CIPRIANI, Rdc 49 (2003), 45 ss.
81
Cf. RICCI, Rtdpc 49 (2005), 79 ss., apreciando a posição dos “ detti «revisionisti» del sistema del codice di
procedura civile del 1940”; TARUFFO, Rtdpc 60 (2006), 452 ss.; em sentido distinto, cf. MONTELEONE, Rdp 64
(2009), 5 ss. (cf. a resposta de TARUFFO, Rtdpc 63 (2009), 723 ss.).
82
Cf., numa perspectiva comparada, YESSIOU-FALTSI/TAMAMIDIS, RHDI 52 (1999), 459 ss.; STÜRNER, ZZP 123 (2010),
147 ss.
83
STÜRNER, ZZP 123 (2010), 152 e 153.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/30
2. Consequências
2.1. Generalidades
a) Os efeitos jurídicos que não estão na disponibilidade das partes são efeitos jurídicos
indisponíveis, falando a lei, por vezes, de direitos indisponíveis (art. 345.º n.º 1, e 354.º, al. b), CC);
art. 94.º, n.º 3, al. a), e 289.º, n.º 1), de relações jurídicas indisponíveis (cf. art. 4.º, al. b), CC) ou
de matéria excluída da disponibilidade das partes (art. 333.º e 602.º CC). O princípio da
instrumentalidade implica não só que não podem ser válidos os negócios processuais de
desistência ou de confissão do pedido (cf. art. 283.º, n.º 1, e 289.º, n.º 1) e de transacção (cf. art.
283.º, n.º 2, e 289.º, n.º 1) celebrados nas acções que tenham por objecto direitos indisponíveis,
mas também que, nessas mesmas acções, a revelia do réu não pode ser operante (cf. art. 567.º,
n.º 1, e 568.º, al. c)). É ainda pelo receio de se transformarem em meios indirectos de conseguir
um efeito indisponível que a lei proíbe nestes casos o julgamento segundo a equidade (cf. art. 4.º,
al. b), CC).
Para melhor compreensão do princípio da instrumentalidade, considerem-se os exemplos
seguintes:
– O art. 2008.º, n.º 1, CC estatui que “o direito a alimentos não pode ser renunciado”;
trata-se, portanto, de uma relação jurídica indisponível, nomeadamente por renúncia
do credor; ora, se uma pessoa propusesse uma acção de alimentos contra outra, e
seguidamente desistisse do pedido, obtinha, com esta actuação, em face do disposto
no art. 285.º, n.º 1, o mesmo resultado que obteria com uma renúncia ao seu direito; o
princípio da instrumentalidade impõe que, nesta hipótese, a desistência do pedido
seja nula (cf. art. 289.º, n.º 1);
– Proposta uma acção de investigação da paternidade, poderia o réu confessar, não o
pedido em si, mas os factos em que tal pedido se funda; se tal confissão, como é
normal, fizesse prova de tais factos (cf. art. 358.º, n.º 1, CC), dar-se-ia, embora
indirectamente, o estabelecimento voluntário da paternidade; daí que, em obediência
ao princípio da instrumentalidade, a lei recuse a esta confissão o valor probatório
pleno (cf. art. 354.º, al. b), CC); por essa mesma razão, naquela acção a falta de
contestação do réu não implica a confissão dos factos articulados pelo autor (cf. art.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/31
567.º, n.º 1, 568.º, al. c)) e a não impugnação destes factos também não determina a
sua admissão por acordo (cf. art. 574.º, n.º 2).
b) A lei leva mais longe ainda o seu cuidado: quando um efeito jurídico for indisponível, a lei
chega mesmo a restringir as acções de que esse efeito jurídico seja mera consequência eventual.
Tome-se como exemplo o limite substantivo constante do art. 1682.º-A, n.º 1, al. a), CC: fora do
caso de casamento em regime de separação de bens, nenhum cônjuge pode alienar imóveis,
mesmo próprios, sem o consentimento do outro; por força do princípio da instrumentalidade, o art.
34.º, n.º 1, impõe que, mesmo só para pôr em risco um imóvel através de uma acção (reivindicado
um imóvel, se o autor perder, fica assente que o imóvel não é dele), é necessário que ambos os
cônjuges estejam em juízo ou que um deles dê o seu consentimento ao cônjuge autor (cf. também
art. 786.º, n.º 1, al. a)).
Estas são as linhas muito gerais de uma matéria algo melindrosa e bastante difícil. Razões
principais dessa dificuldade são a de que, regra geral, as relações jurídicas são apenas
relativamente indisponíveis e a de que nem sempre é fácil determinar se certa relação jurídica é
disponível ou indisponível.
II/32
mútuo consentimento (cf. art. 1773.º, n.º 1, CC). No entanto, contra a admissibilidade daquela
confissão parece poder alegar-se que o divórcio por mútuo consentimento só é admissível se
estiverem preenchidas as condições previstas no art. 1775.º, n.º 1, CC ou 994.º, n.º 1, condições
que não se satisfazem com a mera confissão do pedido formulado num processo de divórcio sem
consentimento de um dos cônjuges. Dito de outro modo: o divórcio através da via processual
“acção litigiosa, seguida de confissão do pedido” frustraria diligências essenciais do divórcio por
mútuo consentimento, nomeadamente o controlo sobre os acordos exigíveis pelo art. 1775.º, n.º 1,
CC ou pelo art. 994.º, n.º 1.
II/33
– Acção de anulação do casamento por falta de testemunhas (art. 1642.º CC): não
é admissível nem a desistência do pedido, nem a confissão do pedido, nem a
transacção;
– Acções de anulação ou declaração de nulidade de convenções antenupciais
(celebrado o casamento): é admissível a desistência do pedido, mas não a confissão do
pedido, nem a transacção (cf. art. 1701.º, n.º 1, e 1714.º CC);
– Acção de simples separação judicial de bens (art. 1767.º CC): é admissível a
desistência do pedido; não é admissível nem a confissão do pedido (cf. art. 1714.º CC),
nem a transacção;
– Acção de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens sem
consentimento de um dos cônjuges (art. 1779.º e 1794.º CC): é admissível a
desistência do pedido (art. 289.º, n.º 2); não é admissível nem a confissão do pedido,
nem a transacção;
– Acção (de simples apreciação) destinada a fixar a data provável da concepção
(art. 1800.º, n.º 1, CC): é admissível a desistência do pedido; não é admissível
confissão do pedido, nem transacção;
– Acção de impugnação da maternidade (art. 1807.º CC): é admissível a
desistência do pedido; não é admissível a confissão do pedido, nem a transacção;
– Acção de investigação de maternidade (oficiosa ou particular) (art. 1808.º e
1814.º CC): não parece admissível nem a desistência do pedido, nem a transacção;
todavia, na acção de investigação oficiosa, a pretensa mãe pode confirmar a
maternidade (cf. art. 1808.º, n.º 3, CC), o que equivale a uma confissão do pedido; por
analogia, o mesmo pode suceder numa acção de investigação particular;
– Acção de impugnação da paternidade presumida (art. 1838.º CC): é admissível a
desistência do pedido; não é admissível nem a confissão do pedido, nem a transacção;
– Acção de investigação de paternidade (oficiosa ou particular) (art. 1864.º e
1869.º CC): não parece admissível nem a desistência do pedido, nem a transacção; no
entanto, nesta acção é admissível o reconhecimento da paternidade através da
perfilhação (cf. art. 1853.º, al. d), e 1865.º, n.º 3, CC), o que equivale a uma confissão
do pedido;
– Acção de alimentos: não é admissível a desistência do pedido (cf. art. 2008.º, n.º
1, CC); são admissíveis a confissão do pedido e a transacção.
84
Cf. BECKER-EBERHARD, Grundlagen und Grenzen des Verhandlungsgrundsatzes, in YILDIRIM (Ed.),
Zivilprozessrecht im Lichte der Maximen (2001), 15 ss.; KAWANO, FS Kostas E. Beys I (2003), 675 ss.; JOLOWICZ,
I.C.L.Q. 52 (2003), 281 ss.; sobre as bases ideológicas do princípio dispositivo, cf. LEIPOLD, JZ 1982, 441 ss.
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II/34
2. Âmbito
2.1. Concepção privatística
85 2
WACH, Vorträge über die Reichs-Civilprocessordnung (1896), 2, referia-se à “falta de interesse do Estado e,
3
portanto, do seu órgão, o juiz, no litígio”; antes, WETZELL, System des ordentlichen Civilprocesses (1878), 97,
afirmava o seguinte: “Wie die privatrechtlichen Verhältnisse im Allgemeinen der freien Disposition ihrer Träger
unterworfen sind, so ist nach gemeinem Recht insbesondere auch die Proceβführung auf die
Willensentschlieβung der Parteien gestellt […]”.
86
POUND, in Report of the Twenty-Ninth Annual Meeting of the American Bar Association (1906), 404 = Am. Law.
14 (1906), 447.
87
Cf. TARUFFO , Rdp 32 (1977), 596 ss.; HAZARD/TARUFFO , American Civil Procedure/An Introduction (1993), 87 ss.;
DENTI, in Estudios en Homenaje al Doctor Héctor Fix-Zamudio III (1988), 1875 ss.; para uma apreciação do
adversary system, cf. GERBER, Ariz. St. L.J. 19 (1987), 3 ss.
88
GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen Prozesses I (1801), 261; GÖNNER, Handbuch des deutschen
gemeinen Prozesses I 2 (1804), 183.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/35
de ser aceite como verdadeiro pelo tribunal, sem que, aliás, ela se tenha de preocupar com a
veracidade da confissão”89.
Isto determina que a lei processual, no âmbito de uma tendência para o reforço do papel do
juiz (mesmo nos sistemas de common law, tradicionalmente arreigados ao adversarial principle91),
confira a este importantes poderes de iniciativa processual, traduzidos na admissão limitada dos
princípios do inquisitório e da oficiosidade92. Entre esses poderes avultam os que estão
consagrados no art. 411.º (como expressão do princípio do inquisitório 93) e nos art. 6.º, n.º 2, e
578.º (como manifestação do princípio da oficiosidade). A posição passiva que o juiz assumia, em
tempos passados, no processo, resquício de uma característica essencial do processo germânico
e comum, encontra-se hoje profundamente atenuada. Predomina hoje, na doutrina e na legislação,
uma concepção publicística, não contratualista ou social do processo que encontra a sua
expressão mais vincada no dever de gestão processual (cf. art. 6.º) 94.
89
GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen Prozesses I, 257 s.; GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen
Prozesses I 2, 180 s.; para uma interessante exposição sobre o alcance da Verhandlungsmaxime, cf. MITTERMAIER,
3
Der gemeine deutsche bürgerliche Prozess I (1838), 94 ss.; cf. CHIOVENDA, Saggi di diritto processuale civile I,
157 ss.; CARNACINI, in Studi in onore di Enrico Redenti II (1951), 695 ss.; BOMSDORF, Prozeβmaximen und
Rechtswirklichkeit (1971), 111 ss.; NÖRR, Naturrecht und Zivilprozeβ (1976), 41 ss.; BÖHM, Ius commune 8
(1978), 136 ss.
90
KLEIN, Pro futuro. Betrachtungen über Probleme der Civilprozeβreform in Österreich. (1891), 13.
91
Cf. HAZARD/DONDI, Cornell Int’l L. J. 59 (2006), 68 ss.
92
Cf. JOLOWICZ, in CAPPELLETTI/JOLOWICZ, Public Interest Parties and the Active Role of the Judge in Civil Litigation
(1975), 155 ss.; JOLOWICZ, On Civil Procedure (2000), 175 ss.; numa perspectiva comparativa, cf. STÜRNER, ZZP
123 (2010), 149 ss.
93
Cf. PESSOA VAZ, Atendibilidade de factos não alegados (1978), 62 ss.
94
Cf. BRÜGGEMANN, Judex statutor und judex investigator (1968), 47 ss. e 91 ss.; PESSOA VAZ, Direito Processual
2
Civil (2002), 311 ss.; tem interesse conhecer o Princípio 3 da Recomendação R (84) 5 do Conselho da Europa,
de 28/2/1984: “The court should, at least during the preliminary hearing but if possible throughout the
proceedings, play an active role in ensuring the rapid progress of the proceedings, while respecting the rights of
the parties, including the right to equal treatment. In particular, it should have proprio motu powers to order the
parties to provide such clarifications as are necessary; to order the parties to appear in person; to raise
questions of law; to call for evidence, at least in those cases where there are interests other than those of the
parties at stake; to control the taking of evidence; to exclude witnesses whose possible testimony would be
irrelevant to the case; to limit the number of witnesses on a particular fact where such a number would be
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/36
Esta concepção significa que o princípio dispositivo deixou de poder ser entendido como um
princípio constitutivo do processo civil e passou a ser concebido como um princípio operativo: o
processo está na disponibilidade das partes sempre que o interesse público não seja afectado
pela disponibilidade dos titulares sobre o “se”, o “quando” e o “como” da tutela das suas situações
subjectivas. Quando a ordem jurídica entende que a tutela de situações privadas não deve ficar na
disponibilidade dos respectivos titulares atribui um poder de tutela a um órgão próprio e distinto do
tribunal – o Ministério Público (cf. art. 5.º, n.º 1, al. c), d), e 4, al. a), EMP) 95.
b) A concepção publicística do processo tem também uma vertente económica que não
pode ser descurada. Os poderes conferidos ao juiz como consequência dos princípios do
inquisitório e da oficiosidade destinam-se a permitir a optimização dos resultados do processo.
3. Princípio do impulso
Em processo civil, o tribunal não pode decidir iniciar um processo – é sempre uma parte que
tem de o fazer (art. 3.º, n.º 1). É o sub-princípio da disponibilidade do início do processo, princípio
do pedido, do impulso processual inicial ou da iniciativa processual, expresso nos brocardos
latinos nemo iudex sine actore, ne iudex procedat ex officio, ubi non est actio, ibi non est iurisdictio
ou ainda Wo kein Kläger ist, da ist kein Richter 96. O tribunal superior também não se ocupa da
causa sem a parte legitimada interpor o competente recurso (art. 637.º, n.º 1).
Às partes também incumbe o impulso subsequente do processo. A falta deste impulso pode
conduzir, entre outras consequências (cf. art. 281.º, n.º 2, 648, n.º 1, e 763.º, n.º 1), à deserção da
instância (cf. art. 281.º, n.º 1). Em regra, as partes também podem pôr termo ao processo,
nomeadamente através de um negócio processual concluído numa causa (cf. art. 277.º, al. b) e d),
280.º e 291.º) ou num recurso pendente (cf. art. 632.º, n.º 5).
4. Princípio da disponibilidade
4.1. Generalidades
excessive. These powers should be exercised without going beyond the object of the proceedings ”.
95
Sobre o sentido desta solução, cf. LIEBMAN, Rdp 15 (1960), 555 ss.
96
É possível circunscrever o princípio dispositivo à disponibilidade da parte sobre um processo já instaurado, o
que afasta o princípio do impulso processual da esfera do princípio dispositivo: com esta perspectiva (pelo
menos implicitamente), cf. CARNACINI, in Studi in onore di Enrico Redenti II, 716 ss. e 752.
97
Cf., ainda com muito interesse, CAPPELLETTI, La testimonianza della parte nel sistema dell’ oralità I (1962), 303
ss.; cf. também; STÜRNER, FS Helmut Kollhosser II (2004), 727 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/37
4.2. Pedido
98
Sobre os problemas suscitados no âmbito das acções inibitórias, cfr. BACKSMEIER, Das „Minus“ beim
unterlassungsrechtlichen Globalantrag (2000), 101 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/38
Note-se que, sem o pedido da contraparte, o minus se torna um aliud e a sentença que o
reconhece é nula (cf. art. 615.º, n.º 1, al. e)).
b) Por vezes, as partes formulam pedidos em que quantificam o montante que pretendem
conseguir em “pelo menos € ….”. Em regra, o montante indicado determina o limite da
condenação do demandado, a menos que se possa concluir que esse montante é apenas uma
parcela de um montante mais elevado e ainda não liquidável no momento da formulação do
pedido (cf. art. 609.º, n.º 2).
O tribunal deve conhecer de todos os factos invocados pelas partes no momento processual
adequado, sejam eles factos principais – isto é, factos que constituem a causa de pedir ou factos
que fundamentam a excepção – ou factos complementares – isto é, factos que complementam ou
concretizam os factos principais (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b)) 99.
Note-se que o tribunal deve conhecer de todos os factos alegados pelas partes,
independentemente de eles serem favoráveis ou desfavoráveis à parte que os alegou em juízo.
Se, por exemplo, o réu invocar factos dos quais resulta o reconhecimento do crédito do autor,
ainda assim o tribunal pode utilizar esses factos como fundamento da procedência da acção
contra essa mesma parte. Pode falar-se de um princípio de aquisição processual: factos alegados
por qualquer das partes são sempre factos adquiridos para o processo, não importando se eles
são favoráveis ou desfavoráveis à parte que os invocou em juízo.
A situação também é possível quanto ao autor. Suponha-se, por exemplo, que o autor alega
factos dos quais resulta a nulidade do contrato que celebrou com o réu; em princípio, o tribunal
também se pode servir desses factos para declarar a nulidade do contrato. No entanto, quando o
autor, na petição inicial, alega factos favoráveis ao réu, verificar-se-á normalmente uma ineptidão
da petição inicial por contradição entre a causa de pedir (a nulidade do contrato, por exemplo) e o
pedido (a condenação do réu no cumprimento da respectiva prestação contratual, por exemplo)
(cf. art. 186.º, n.º 2, al. b)), o que conduz, em regra, ao indeferimento liminar daquela petição (cf.
art. 186.º, n.º 1, 577.º, al. b), e 590.º, n.º 1). Trata-se de uma situação em que a posição do autor é
de tal forma inconcludente que obsta a que o processo possa continuar.
99 2
Cf. MONTALVÃO MACHADO, O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à Luz do Novo Código de Processo Civil
(2001), 159 ss. e 333 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/39
b) Desta limitação resulta que o juiz só pode servir-se, em regra, dos factos articulados
pelas partes como causa de pedir ou como fundamento da excepção. Uma das consequências
deste regime é o de que o juiz não pode utilizar factos que resultem do seu conhecimento privado
(iudex secundum allegata et probata judicare debet, non secundum conscientiam suam100),
100
Já assim DURANDi, Speculum Juris cum Ioan. Andreae Baldi II (Francoforti 1612), 423: secundum allegata &
probata, & non secundum conscientiam ; sobre alguns aspectos históricos deste brocardo, cf. NÖRR, Romanisch-
kanonisches Prozessrecht, 188 ss.; NÖRR, Zur Stellung des Richters im gelehrten Prozess der Frühzeit: Iudex
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/40
diferentemente do que acontece quanto aos factos de conhecimento funcional (cf. art. 5.º, n.º 1, al.
c)): o juiz que entende dever considerar factos do seu conhecimento privado deve declarar-se
impedido e oferecer-se para depor como testemunha sobre esses factos (cf. art. 115.º, n.º 1, al. h),
e 116.º, n.º 1).
Esta solução teve origem na doutrina do processo comum 101. Antes, o conhecimento privado
do juiz era irrelevante e este só tinha de decidir segundo os elementos fornecidos pelo processo
(mesmo que contra o seu conhecimento privado) 102. Como se estabelecia nas OA 3.31.1 pr.: “Todo
Julgador, e Juiz deve ser avisado que sempre julgue segundo que achar no feito alegado, e provado
por as partes, assim Autor, como Réu, tendo sempre maneira em como sua Sentença seja sempre
conforme à substância, fundando-se nas provas dadas por as partes, como direito é; e não deve
julgar segundo sua consciência, salvo em quanto ela fosse formada por as alegações, e provas
feitas por as ditas partes […]”; continuava, dizendo-se em OA 3.31.1, que “E achamos por Direito,
que somente ao Príncipe, que não conhece superior, é dada Autoridade, que em todo o caso possa
julgar segundo sua consciência, deixando qualquer outra prova, ou alegação feita por cada uma das
partes em contrário”103.
secundum allegata non secundum conscientiam iudicat (1967), 16 ss.; PICÓ I JUNOY, ZZPInt 11 (2006), 37 ss.; PICÓ
I JUNOY, Rdp 62 (2007), 1497 ss.; PICÓ I JUNOY, El Juez y la Prueba/Estudio de la errónea recepción del brocardo
iudex iudicare debet secundum allegata et probata, non secundum conscientiam y su repercusión actual (2007),
19 ss e 53 ss. (defendendo que o brocardo foi interpolado na segunda metade do Século XIX, tendo nele sido
acrescentada, de forma equívoca, a referência à prova pelas partes: cf. a formulação fornecida por WACH,
Vorträge über die Reichs-Civilprocessordnung 2, 61: “Er [der Richter] urteilt secundum allegata et probata
partium, nicht secundum suam conscientiam”); CAVALLONE, Rdp 64 (2009), 861 ss.; na bibliografia mais antiga,
cf. SCHMIDT, Sächs. Arch. 2 (1892), 279 ss.
101
Cf. LIPP, Das private Wissen des Richters (1995), 18 ss.
102
Cf. LIPP, Das private Wissen des Richters, 9 ss.
103
Cf. também OM 3.50 pr.; OF 3.66. pr.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/41
II/42
entender ser mais conveniente e oportuno (art. 987.º), isto é, segundo um critério de
discricionariedade.
Num plano mais restrito, embora transversal à generalidade dos processos, incumbe ao juiz,
como expressão do princípio do inquisitório, realizar ou ordenar todas as diligências necessárias
ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que pode
conhecer (art. 411.º). Estes factos sobre os quais o tribunal possui poderes instrutórios têm as
seguintes características:
– São factos alegados pelas partes ou factos complementares desses factos (cf. art.
5.º, n.º 1 e 2, al. b));
– São, além disso, factos controvertidos, isto é, factos que não se encontram admitidos
por acordo por falta de impugnação (cf. art. 574.º, n.º 2) ou que não se encontram
assentes por confissão do réu revel (cf. art. 567.º, n.º 1)104.
b) Como se pode concluir do exposto, não se verifica, no processo civil português, nenhuma
relação entre a indisponibilidade sobre o objecto (por este se referir a uma relação jurídica
indisponível) e o processo inquisitório, dado que em parte alguma se estabelece que, quando as
partes não podem dispor do objecto do processo o juiz tem poderes inquisitórios. As
consequências da indisponibilidade sobre o objecto são puramente unilaterais: apenas as partes
ficam limitadas na sua actuação em processo, dado que, quando o objecto é indisponível, não é
admissível a confissão, a desistência ou transacção (cf. art. 289.º, n.º 1), sem que isso se reflicta
num correspondente aumento dos poderes do tribunal.
5. Princípio da oficiosidade
5.1. Matéria de direito
a) O tribunal conhece oficiosamente do direito aplicável (iura novit curia105, da mihi facta,
dabo tibi ius, la cour sait le droit: art. 5.º, n.º 3). Deste postulado decorrem três corolários:
– Um de carácter negativo: o tribunal não pode ser vinculado pelas partes (nem mesmo
por um acordo destas) quanto ao direito aplicável na decisão da causa 106; daí que o
tribunal possa corrigir uma deficiente qualificação jurídica fornecida pelas partes 107;
– Um outro igualmente de carácter negativo: as partes não podem afastar a aplicação
pelo tribunal das regras de carácter imperativo, apesar de, naturalmente, poderem
104
Sobre os poderes instrutórios do juiz, cf., numa perspectiva comparativa, BARBOSA MOREIRA, Os poderes do juiz
na direção e na instrução do processo, in BARBOSA MOREIRA, Temas de Direito Processual (Quarta Série) (1989), 45
ss.; TARUFFO , Rtdpc 60 (2006), 451 ss.; VÁSQUEZ SOTELO, RePro 177 (2009), 93 ss.; numa perspectiva histórico-
dogmática, cf. CAVALLONE, Il giudice e la prova nel processo civile (1991), 3 ss.
105
Cf. SENTIS MELENDO, El Juez y el Derecho (1957), 9 ss., referindo as opiniões que atribuem a origem do
brocardo à interpelação de um juiz que, cansado com as deambulações do advogado, o intimou “ Venite ad
factum. Curia ius novit.”
106
Diferentemente, SCHLOSSER, Einverständliches Parteihandeln im Zivilprozeβ (1967), 33 ss.; BAUR, FS Eduard
Bötticher (1969), 3 ss.; WÜRTHWEIN, Umfang und Grenzen des Parteienflusses auf die Urteilsgrundlagen im
Zivilprozess (1977), 103 ss.
107
Cf. Ac. STJ 3/2001, de 9/2.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/43
dispor das regras de natureza supletiva através de estipulações que as substituem 108;
assim, por exemplo, as partes não podem pretender que o tribunal aprecie apenas a
justificação para a denúncia de um contrato se o mesmo houver de ser considerado
inválido por violação da forma legal109;
– Ainda um outro de carácter positivo: o tribunal deve analisar os factos alegados pelas
partes segundo todas as possíveis qualificações legais 110; este dever de esgotamento
das qualificações jurídicas é, em regra, irrelevante quando a acção proceder, porque
para o autor é, em princípio, indiferente o fundamento dessa procedência, mas é
sempre relevante quando a acção houver de ser julgada improcedente, porque, neste
caso, há que esgotar todas as possibilidades de procedência da acção.
Os factos que individualizam a pretensão material alegada pelo autor – isto é, os factos que
constituem a causa de pedir –, os factos que fundamentam a excepção invocada pelo réu e os
factos complementares estão submetidos ao princípio da disponibilidade (cf. art. 5.º, n.º 1 e 2, al.
b)): aqueles factos só podem ser considerados pelo tribunal se forem alegados pelas partes; estes
factos complementares podem ser considerados se forem alegados pelas partes ou se, tendo
esses factos surgido na instrução da causa, depois de as partes terem tido a possibilidade de
sobre eles se pronunciarem.
Diferente é o regime definido para os factos instrumentais (ou probatórios), isto é, para os
factos que indiciam, através de presunções legais ou judiciais (cf. art. 349.º a 351.º CC), os factos
108
Sobre o problema, cf. CAHN, AcP 198 (1998), 35 ss. e 43 ss.
109
Cf. HÄSEMEYER, ZZP 85 (1972), 207 ss.
110
Cf. ROSENBERG, ZZP 49 (1925), 38 ss.
111
Cf. CHIARLONI, Giur. it. 2002, 1363.
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II/44
Os factos que as partes têm o ónus de alegar são os factos que são subsumíveis à previsão
de uma regra jurídica ( Subsumtionstatsachen), isto é, que são necessários para a aplicação de uma
regra jurídica113. Mas nem todos os factos que são relevantes para a apreciação de uma causa têm
de ser alegados pelas partes. Entre eles há que destacar os seguintes:
Como excepção ao princípio da disponibilidade das partes sobre o pedido (cf. art. 609.º, n.º
1) e à regra da nulidade da decisão que conhece de pedido não formulado pelas partes (cf. art.
615.º, n.º 1, al. e)), o art. 2007.º, n.º 1, CC permite que o tribunal conceda oficiosamente alimentos
provisórios a um alimentando menor. Algo de semelhante se encontra previsto no art. 931.º, n.º 7,
quanto aos alimentos devidos a um dos cônjuges.
Há ainda que admitir que o tribunal possa retirar da decisão proferida as respectivas
consequências legais. Assim, o Supremo Tribunal de Justiça definiu que, quando o tribunal
conhecer oficiosamente da nulidade de um negócio jurídico invocado no pressuposto da sua
validade e quando na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, a parte deve ser
112
Para uma visão mais analítica, cf. SOARES GOMES, Rev. CEJ 3 (2005), 139 e 143 ss.; LEBRE DE FREITAS, Introdução
2
, 150 s.
113
SEITER, FS Fritz Baur (1981), 573.
114
SEITER, FS Fritz Baur, 574 s.
115
SCHMIDT, FS Rudolf Wassermann (1985), 811; LAMES, Rechtsfortbildung als Prozeβzweck (1993), 57 ss.
116
SANDER, Normtatsachen im Zivilprozeβ (1998), 17 ss.
117
Já assim STEIN, Das private Wissen des Richters (1893), 74 ss.
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II/45
118
Ass. 4/95, de 17/5.
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II/46
2. Aspecto substancial
2.1. Generalidades
Sem prejuízo do impulso que incumbe às partes, cumpre ao juiz, no âmbito do dever de
gestão processual, providenciar pelo andamento regular e célere do processo (art. 6.º, n.º 1). Os
poderes de impulso concedidos ao tribunal decorrem de um modelo publicístico do processo 122 e
destinam-se a evitar a situação de inactividade criticada com ironia por MENGER (1841-1906), um
dos expoentes do “socialismo jurídico”: “[…] segundo todos os códigos de processos civis das
nações cultas, o tribunal tem, depois do início do litígio, de ser levado, de forma específica, a
praticar todos os passos mais importantes, do mesmo modo que um relógio estragado tem de ser
constantemente abanado e sacudido para entrar de novo em funcionamento durante algum
tempo”123.
2.2. Concretização
119
Cf. ANDREWS, The Modern Civil Process (2008), 48 ss.; ANDREWS, C.J.Q. 19 (2000), 20, afirma, em referência às
Civil Procedural Rules de 1998, que, o case management é “the jewel in the new procedural crown ”; na
perspectiva norte-americana, cf., ainda com interesse, RESNIK, Harv. L. R. 96 (1982/1983), 376 ss.
120
Cf. ZUCKERMAN, Rtdpc 62/Supl. 3 (2008), 123: “There are three preconditions to good civil justice
management: i) a clear objective; ii) that managers have adequate powers to achieve the objective; iii) judges
who understand the objective and are willing to use their powers in order to achieve it ”.
121
Cf., numa formulação algo distinta, ZUCKERMAN, in TROCKER/VARANO (Eds.), The Reforms of Civil Procedure in
Comparative Perspective (2005), 149: “The overriding objective of dealing with cases justly represents [...] a
three-dimensional strategy of justice: the court must aim to achieve not just a correct outcome, but must do so
within a reasonable time and by a reasonable and proportionate use of procedural recourses ”.
122
Cf. STÜRNER, FS Walter Gerhard (2004), 967 ss.
123
MENGER, Das Bürgerliche Recht und die besitzlosen Volksklassen 3, 32.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/47
3. Aspecto instrumental
3.1. Generalidades
a) O dever de condução do processo que recai sobre o juiz serve-se, como instrumento, do
poder de simplificar e de agilizar o processo, isto é, do poder de modificar a tramitação processual
ou os actos processuais: o case management atribui ao juiz o poder de adequar o procedimento à
pequena ou grande complexidade da causa126. A simplificação e agilização são aferidas,
naturalmente, em referência ao standard legal (nomeadamente, em relação à tramitação do
processo declarativo comum, quer em 1.ª instância, quer na fase de recurso). Assim, a
simplificação implica uma tramitação menos pesada do que aquela que consta da lei; a agilização,
em contrapartida, envolve uma forma mais fácil de atingir a justa composição do litígio: nuns
casos, a agilização pode traduzir-se numa simplificação da tramitação, mas, noutros, a agilização
pode envolver a prática de actos não previstos na lei. A maneira mais fácil de resolver um
processo complexo (como é aquele que comporta uma pluralidade de partes e ou de pedidos ou
que tem como objecto uma questão jurídica complicada) pode ser, por exemplo, a de apreciar, de
forma gradual e sucessiva (algo à semelhança da Stufenklage alemã (§ 254 ZPO)), determinadas
124
WACH, KritV 14 (1872), 339; cf., antecipando a distinção, GROLMAN, Theorie des gerichtlichen Verfahrens in
bürgerlichen Rechtsstreitigkeiten (1800), 181; sobre alguns aspectos históricos do poder de direcção do juiz, cf.
HENKE, JZ 2005, 1028.
125
Esta programação pactuada da audiência final apresenta semelhanças com os contrats de procédure do
direito francês (art. 764, § 3, NCPC: [Le juge] peut, après avoir recueilli l'accord des avocats, fixer un calendrier de la
mise en état): cf. FERRAND, in TROCKER/VARANO (Eds.), The Reforms of Civil Procedure in Comparative Perspective
(2005), 21; CADIET, Rtdpc 62/Supl. 3 (2008), 24.
126
CALAMANDREI, Opere Giuridiche IV (1970), 204 ss., refere-se, embora num enquadramento algo diferente, a
um “principio della adattabilità del procedimento alle esigenze della causa ”.
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questões específicas. Nos art. 37.º, n.º 4, e 266.º, n.º 5, encontra-se uma forma radical da
agilização processual: é com base nesta agilização que se permite que o juiz determine a
separação de várias causas que se encontram reunidas num único processo.
Para obter a simplificação ou agilização o juiz dispõe do poder de adequação formal. O juiz
deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o
conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo
equitativo (art. 547.º). Portanto, o juiz pode alterar a tramitação legal da causa – tanto prescindindo
da realização de certos actos impostos pela lei, como impondo a prática de actos não previstos na
lei – e pode ainda modificar o conteúdo e a forma dos actos127.
Em algumas ordens jurídicas é concedida ao juiz uma opção entre várias alternativas
definidas na lei: por exemplo, no direito inglês, o juiz, de acordo com o valor da causa e outros
factores, pode escolher o small claims track (Rule 27.1 CPR), o fast track (Rule 28.2 CPR) ou o
multi-track (Rule 29.2 CPR); no direito francês, o juiz pode escolher, em alternativa ao circuit long
(art. 763 a 787 NCPC), um circuit moyen (art. 761 NCPC) ou um circuit court (art. 760 NCPC)128. É
outra a orientação do direito português, dado que este limita-se a fornecer, como critério para o
exercício do poder de adequação formal, o parâmetro do processo equitativo (art. 547.º in fine).
Este critério tem de ser visto em conjugação com o overriding objective estabelecido no art. 6.º, n.º
1 in fine: a justa composição do litígio em prazo razoável, isto é, num prazo que garanta a utilidade
da tutela requerida. Isto justifica que aquele critério deve ser aplicado pelo juiz numa dupla
vertente: o processo equitativo deve servir de limite à adequação formal, no sentido de que esta
adequação não pode violar as garantias daquele processo, mas também deve ser utilizado como
orientador da decisão do juiz, na acepção de que este deve utilizar o poder de adequação formal
para construir, segundo a complexidade e as particularidades da causa, um processo equitativo.
Neste sentido, pode dizer-se que a adequação formal impõe ao juiz da causa uma “optimização”
do processo equitativo.
Do exposto decorre que o tempo do procedimento não é tudo o que importa considerar na
determinação pelo juiz de uma tramitação alternativa, dado que não só não se pode sacrificar a
equidade processual à celeridade, como pode suceder que esta equidade exija mais tempo. O
critério que deve orientar a adequação formal é um critério de proporcionalidade: o processo deve
ter uma tramitação com uma estrutura proporcional à complexidade da causa, pelo que causas de
menor complexidade devem ter uma tramitação mais simples do que a legalmente definida e
causas de maior complexidade podem ter uma tramitação mais pesada do que aquela que se
encontra estabelecida na lei. Noutras palavras: a complexidade do procedimento deve ser
proporcional à complexidade da causa. No fundo, há que utilizar na adequação formal um critério
de proporcionalidade semelhante àquele que orienta quer a fixação da taxa de justiça (cf. art.
529.º, n.º 2, e 530.º, n.º 7), quer a admissibilidade do recurso em função da relação do valor da
127
Cf., ainda em relação ao direito anterior, MADEIRA DE BRITO, in AAVV, Aspectos do Novo Processo Civil (1997),
31 ss.
128
Cf. CADIET, Rtdpc 62 (2008), 1314 s.
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II/49
causa com a alçada do tribunal recorrido (cf. art. 629.º, n.º 1): só as causas de valor mais elevado
admitem uma tramitação mais complexa que inclui a fase de recurso.
A adequação formal permite estabelecer uma tramitação construída à medida da
complexidade da causa129. Com a possibilidade desta adequação, a exigência do processo
equitativo ganha uma nova dimensão: a equidade processual passa também a impor uma
tramitação adequada à complexidade da causa.
129
Cf. ANDREWS, C.J.Q. 19 (2000), 24 (“litigation must be tailored to the size and nature of dispute ”); CADIET,
Rtdpc 62 (2008), 1316 (“ non più secondo un modello, per cosi dire prêt a porter, ma, piuttosto, secondo un
modello «su misura»”); DE CRISTOFARO, Rdp 65 (2010), 282 (“ripensamento della disciplina procedimentale non
più secondo un modello prêt a porter, bensì con un «abito» tagliato alla misura”).
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II/50
A adequação formal requer a prévia audição das partes (art. 6.º, n.º 1), pelo que comete
uma nulidade processual o juiz que determinar essa adequação sem previamente ouvir as partes
(cf. art. 195.º, n.º 1). Num certo sentido, pode dizer-se que a adequação formal é expressão da
cooperação entre o tribunal e as partes.
Ocorre uma nulidade processual (inominada) quando é praticado um acto que a lei não
admite ou quando é omitido um acto que a lei prescreve (cf. art. 195.º, n.º 1). Verificando-se a
adequação formal da tramitação legal, o parâmetro passa a ser o procedimento definido em
função dessa adequação. Sendo assim, constitui uma nulidade processual a realização de um
acto não estabelecido nessa tramitação, bem como a omissão de um acto nela previsto 130.
A tramitação do processo declarativo comum comporta, depois da fase dos articulados, uma
fase de gestão processual. Nesta encontra-se regulada quer uma gestão inicial – destinada,
designadamente, a providenciar pelo suprimento das excepções dilatórias (cf. art. 590.º, n.º 2, al.
a)) e a controlar os articulados das partes (cf. art. 590.º, n.º 1, e 2, al. b), 3 e 4) –, quer uma gestão
subsequente – respeitante, nomeadamente, à dispensa da audiência prévia (cf. art. 593.º, n.º 1), à
escolha de uma ou várias opções nas acções de valor não superior a metade da alçada da
Relação (cf. art. 597.º) e à programação da audiência final (cf. art. 591.º, n.º 1, al. g)).
A adequação formal, enquanto acto de gestão processual, pode ser ordenada pelo juiz a
qualquer momento da tramitação da causa, mas ela é normalmente determinada na fase da
gestão processual. Na verdade, a adequação pode ser decidida quer na audiência prévia (art.
590.º, n.º 1, al. e)), quer no despacho que substitui essa audiência (art. 593.º, n.º 2, al. b), e 597.º,
al. d)). Nesta última hipótese, há que entender, nomeadamente pela remissão daqueles preceitos
para o art. 6.º, n.º 1, que a agilização processual não é válida sem a prévia audição das partes.
4. Limites legais
4.1. Pressupostos da adequação
130
Cf. MADEIRA DE BRITO, in AAVV, Aspectos do Novo Processo Civil, 63 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/51
A resposta mais óbvia parece ser a de que, na decisão de adequação formal, não podem
ser afastadas pelo juiz regras imperativas. No entanto, não parece que a adequação formal se
deva orientar pelo carácter disponível ou supletivo das regras de procedimento. O que importa
assegurar é que a tramitação alternativa continue a garantir um processo equitativo, pelo que há
que determinar (um pouco à semelhança das substantialia iudicii dos glosadores131) qual é o
standard mínimo que resulta da tramitação legal e que deve ser respeitado em qualquer
procedimento alternativo definido pelo juiz. Nesta perspectiva, pode dizer-se que em qualquer
tramitação tem de estar assegurada a possibilidade de as partes alegarem as suas razões de
facto e de direito e de realizarem a prova dos factos controvertidos, bem como a oportunidade de
o tribunal se pronunciar tanto sobre a matéria de facto, como sobre a de direito e, quanto a esta
última, quer numa perspectiva processual, quer numa óptica substantiva. Respeitado este
standard mínimo, toda a tramitação determinada pelo juiz está em condições de ser válida.
131
Cf. NÖRR, ZRG (Kan. Abt.), 78 (1992), 192 ss. = NÖRR, Iudicium est actus trium personarm (1993), 96 ss.
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II/52
V. Princípio da cooperação
1. Caracterização
Segundo o princípio da cooperação, as partes e o tribunal devem colaborar entre si na
resolução do conflito de interesses subjacente à acção 132.
2. Concretização
2.1. Posição das partes
O dever de cooperação assenta, quanto às partes, num dever de actuação orientado pela
eficiência e proporcionalidade. Em concreto, o dever de cooperação traduz-se no dever de
litigância de boa fé (cf. art. 8.º), bem como no dever de fornecer, a convite do juiz, os
esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes (art. 7.º, n.º
2)133. A infracção do dever de cooperação implica, quando seja grave, a litigância de má fé da
parte (art. 542.º, n.º 2, al. c)).
O dever de cooperação das partes estende-se igualmente à área da prova. O art. 417.º, n.º
1, estabelece, na sequência do direito do tribunal à coadjuvação de outras entidades (art. 202.º,
n.º 3, CRP; art. 23.º, n.º 1, LOSJ), que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o
dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for
perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e
praticando os actos que forem determinados.
132
Sobre os aspectos ideológicos do princípio da cooperação, cf. DEREN-YILDIRIM, FS Walter H. Rechberger (2005),
103 ss.
133
Sobre o conteúdo possível deste dever de cooperação, cf. STÜRNER, Die Aufklärungspflicht der Parteien im
Zivilprozess (1976), 134 ss.
134
Cf. LAUMEN, Das Rechtsgespräch im Zivilprozeβ (1984), 120 ss.
135
STÜRNER, ZZP 123 (2010), 153.
136
Cf. STÜRNER, Die richterliche Aufklärung im Zivilprozeβ (1982), 28 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/53
137
Cf. STÜRNER, Die richterliche Aufklärung im Zivilprozeβ, 43 ss.; PETERS, Richterliche Hinweispflichten und
Beweisinitiativen im Zivilprozeβ (1983), 109 ss.; PETERS, FS Kostas E. Beys II (2003), 1243 ss.; REISCHL, ZZP 116
(2003), 81 ss.; este dever de prevenção já se encontrava consagrado no direito justinianeu: cf. BETHMANN-
HOLLWEG, Der Civilprozeβ des gemeinen Rechts in geschichtlicher Entwicklung III (1866), 290.
138
Cf. CALAMANDREI, in Studi di diritto processuale in onore di Giuseppe Chiovenda (1927), 147.
139
Entendendo que a richterliche Hinweispflicht implica o dever de o juiz prevenir as partes sobre um ius cogens
aplicável, cf. SPICKHOFF, Richterliche Aufklärungspflicht und materielles Recht (1999), 46 ss., 52, 73 s. e 75 s.
140
WACH, Vorträge über die Reichs-Civilprocessordnung 2, 72; da admissibilidade de uma Fragestellung fala
10
BAYER, Vorträge über den deutschen gemeinen ordentlichen Civilproceβ (1869), 35; sobre a evolução histórica
do direito romano ao processo comum, cf. STRODTHOFF, Die richterliche Frage- und Erörterungspflicht im
deutschen Zivilprozeβ in historischer Perspektive (2004), 22 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/54
141
Cf. LAUMEN, Das Rechtsgespräch im Zivilprozeβ, 273; LIU, Die richterliche Hinweispflicht/Dogmatik und
Rechtskultur (2009), 98 ss.
142
Cf. DEUBNER, FS Gerhard Schiedermaier (1976), 86 s.
143
Sobre o problema, cf. STÜRNER, Die richterliche Aufklärung im Zivilprozeβ, 19 ss.
144
TEDH 31/1/2012 (61226/08, Assunção Chaves).
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/55
a) As partes devem situar-se numa posição de plena igualdade entre si e ambas devem ser
iguais perante o tribunal: como afirmava ULPIANUS, D. 50.17.41, non debet actori licere, quod reo
non permittitur. É nisto que consiste o princípio da igualdade das partes (ou da isonomia
processual), que é um dos corolários dos princípios da igualdade perante a lei (cf. art. 13.º, n.º 1,
CRP) e da imparcialidade do órgão incumbido de compor o litígio. Perante este órgão, tanto vale
uma parte como a outra, pelo que ambas devem ter igual tratamento.
Em concreto, o princípio da igualdade das partes traduz-se, antes do mais, numa igualdade
de chances e de riscos: ambas as partes devem ter as mesmas chances de obter uma decisão
favorável e sobre ambas as partes deve recair o mesmo risco de o tribunal vir a proferir uma
decisão desfavorável. Durante o desenrolar do processo, ambas as partes devem ter as mesmas
oportunidades de influenciar o seu resultado: é o que, por vezes, acentuando uma concepção
“duelística” do processo, se designa por igualdade de armas 145.
b) A igualdade entre as partes não pode fazer esquecer que as consequências da acção
podem ser muito distintas para ambas as partes: o autor não fica em pior situação daquela em que
se encontrava se a acção for julgada improcedente; em contrapartida, o réu, se for condenado,
fica em pior situação do que aquela em que se encontrava antes da acção.
O princípio da igualdade das partes implica que as partes têm de ser tratadas de forma
igual, sem qualquer distinção entre parte activa e parte passiva. Esta igualdade formal não obsta a
que as partes não possam criar, através do seu comportamento em juízo, situações de
desigualdade. Estas situações são um corolário directo dos ónus que recaem sobre cada uma das
partes processuais e das consequências do seu não cumprimento.
Os ónus são situações subjectivas de cujo cumprimento depende a aquisição de uma
posição favorável para a parte; o não cumprimento do ónus implica a não aquisição dessa posição
favorável e, consequentemente, a não colocação da parte contrária na posição desfavorável de ter
de cumprir um contra-ónus. Por exemplo: (i) se o autor não provar os factos constitutivos do direito
que alega, o réu é absolvido do pedido (cf. art. 342.º, n.º 1, CC; art. 414.º); há um ónus de prova
do autor que, quando não cumprido, dispensa o réu do ónus da contraprova ou da prova do facto
contrário; (ii) se o réu não contestar, o autor é dispensado de provar os factos por ele alegados (cf.
art. 567.º, n.º 1); há um ónus de contestação do réu que, quando não cumprido, dispensa o autor
de provar os factos constitutivos do seu direito. Pode assim concluir-se que os ónus processuais
145
Cf. BARBOSA MOREIRA, in Estudios en Homenaje al Doctor Héctor Fix-Zamudio III (1988), 1647 ss.; VOLLKOMMER,
FS Karl Heinz Schwab (1990), 503 ss.; cf. TEDH 19/4/1994 (16034/90, van de Hurk); no enquadramento da
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, cf. SCHLOSSER, NJW 1995, 1404 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/56
criam uma assimetria entre as partes, dado que apenas quando uma das partes cumpre o
respectivo ónus nasce na contraparte um contra-ónus146.
2. Relevância da igualdade
2.1. Generalidades
O art. 4.º impõe que o tribunal assegure, durante todo o processo, um estatuto de igualdade
substancial (ou material) entre as partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de
meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais. Esta igualdade
substancial implica, para o tribunal, um duplo dever: o dever de corrigir factores de desigualdade e
o dever de não criar situações de desigualdade.
b) No problema da igualdade das partes há que considerar que um dos factores que mais
pode influenciar uma desigualdade entre elas é aquele que se refere à diferença entre as partes que
recorrem ocasionalmente ao tribunal (os litigantes esporádicos) e aquelas que utilizam os serviços
do tribunal de forma reiterada (os litigantes frequentes ou habituais) 149.
146
Entendendo que a história mostra a passagem (que teria ocorrido no século XIII) de um processo subordinado
a um ordine isonomico para um processo regido por um ordine asimmetrico, cf. GIULIANI, Soc. Dir. 13 (1986-
2/3), 81 ss.; cf. também GIULIANI, Rdp 43 (1988), 598 ss.; na área da prova, GIULIANI, EncD 37 (1988), 523 ss. e
526 ss.
147 2
Diferentemente, LEBRE DE FREITAS/J. REDINHA/R. PINTO, Código de Processo Civil I (2008), 11.
148
Cf. VOLLKOMMER, FS Karl Heinz Schwab, 518 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/57
3. Princípio do contraditório
3.1. Caracterização
3.2. Fundamento
O princípio do contraditório – que pode ser considerado como “o direito processual original
(prozessuales Urrecht) da pessoa”152 – deriva do princípio da igualdade das partes, dado que este
último impõe que ambas as partes tenham iguais oportunidades de expor as suas razões,
procurando convencer o tribunal a decidir a seu favor 153. Já SÉNECA (ca. 4 a. C.-65) afirmava que
Qui statuit aliquid parte inaudita altera, aequum licet statuerit, haud aequus fuit 154. Esta dialéctica
149
Cf. SOUSA SANTOS/LEITÃO MARQUES/J. PEDROSO/LOPES FERREIRA , Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas/O
caso português (1996), 70 ss.; RIBEIRO MENDES, A Concentração e a Selectividade da Litigância, in CONSELHO
ECONÓMICO E SOCIAL (Ed.), Colóquio “A Justiça em Portugal” (1999), 94 ss.
150
GALANTER, LSR 9 (1974/1975), 97 s.; cf. também WASSERMANN, Der soziale Zivilprozess (1978), 158 ss.
151 3
Cf. TROCKER, Processo civile e Costituzione (1974), 367 ss.; CHIAVARIO , Processo e garanzie della persona II
(1984), 171 ss.; PICARDI, Rdp 53 (1998), 673 ss.; GENTILI, Rtdpc 63 (2009), 745 ss.; sobre a história do princípio
do contraditório, cf. WACKE, FS Wolfgang Waldstein (1993), 369 ss.; BECKER, FS Wolfgang Sellert (2000), 67 ss.;
entendendo o contraditório como um dos elementos, a par da pronúncia de uma decisão em prazo razoável, da
efectividade do processo, cf. FROHN, Rechtliches Gehör und richterliche Entscheidung (1989), 28 ss. e 162;
entendendo que a indispensabilidade de garantir o contraditório pode implicar a necessidade de recorrer a um
processo judicial, cf. CHASE, N.Y.U. Rev. L. & Soc. Change 23 (1997), 572 ss.
152
BVerfG 9/7/1980, BVerfGE 55, 6.
153
Cf. FULLER, Harv. L. Rev. 92 (1978), 369: “Adjudication is a process of decision that grants to the affected
party a form of participation in the decision that consists in the opportunity to present proofs and reasoned
arguments.”
154
SÉNECA, Medea, 199-200 = SÉNECA, Medeia (trad. port., 2011), 199-200: “Quem decide o que quer que seja
sem ouvir a outra parte, mesmo que decida com justiça, não é justo”.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/58
entre as partes, esta recíproca fiscalização de afirmações e este “direito de influência” 155
constituem, aliás, um dos meios mais eficazes para assegurar a vitória da verdade e da justiça em
processo.
3.3. Consequências
c) A não audição prévia das partes constitui uma nulidade processual (por omissão de uma
formalidade que a lei impõe: cf. art. 195.º, n.º 1), normalmente consumida pela nulidade de uma
decisão: se, apesar de não ter ouvido previamente as partes, o tribunal considerar a questão na
155
PASSO CABRAL, Rdp 60 (2005), 453 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/59
sua decisão, esta é nula por excesso de pronúncia (porque o tribunal conhece nela de uma
questão de que não podia conhecer: cf. art. 615.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte).
3.4. Exercício
3.5. Excepções
II/60
2. Concretização
2.1. Má fé unilateral
a) A litigância de má fé pressupõe que a parte actua de forma diferente daquela que era a
devida e a esperada. Em concreto, actua com má fé a parte que, com dolo ou negligência grave:
– Deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (art. 542.º,
n.º 2, al. a)); é o que sucede, por exemplo, quando é deduzido um pedido infundado
de declaração de insolvência (cf. art. 22.º CIRE) 157, quando o réu, que anteriormente
invocara a preterição de tribunal arbitral, vem arguir, uma vez instaurada a acção no
tribunal arbitral, a incompetência deste tribunal (hipótese qualificável como venire
contra factum proprium158) ou ainda quando o senhorio, que tinha contemporizado
durante longos anos com um fundamento de despejo, vem instaurar a acção de
despejo (hipótese reconduzível à chamada Verwirkung ou supressio)159;
– Praticar omissão grave do dever de cooperação (art. 542.º, n.º 2, al. c); cf. art. 7.º);
– Fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com
o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a
acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão
(art. 542.º, n.º 2, al. d))160; é o que se verifica, por exemplo, quando a parte apresente
156
Cf. Cf. TARUFFO, in TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights: Comparative Standards of Procedural Fairness
(1999), 3 ss. = RePRo 177 (2009), 153 ss. (trad. bras.); sobre o direito romano, cf. BUZZACCHI, L’abuso del
processo nel diritto romano (2002), 1 ss.; sobre a evolução da responsabilidade processual, cf. MENEZES
3
CORDEIRO, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e culpa in agendo (2014), 45 ss.; P. DE ALBUQUERQUE,
Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de
Actos Praticados no Processo (2006), 15 ss.; com grande desenvolvimento, COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé
(2008), 31 ss. e 185 ss.; sobre o direito romano, cf. KLEIN, Die Schuldhafte Parteihandlung./Eine Untersuchung
aus dem Civilprocessrechte (1885), 65 ss.; mais recente, BUZZACCHI, L’abuso del processo nel diritto romano
(2002), 1 ss.
157
Diferentemente, entendendo que a situação não se esgota na litigância de má fé, cf. P. DE ALBUQUERQUE,
Responsabilidade Processual por Litigância de Má fé, 163 ss.; MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé 3, 241 ss.
158
Entendendo que a proibição do venire contra factum proprium é incompatível com a estrutura do processo
civil, cf. BAUMGÄRTEL, ZZP 86 (1973), 363 ss.
159
Cf. ZEISS, Die arglistige Prozesspartei (1967), 100 ss. e 123 ss.; considerando, por referência ao disposto no
art. 446.º, n.º 2, al. a), que a sanção aí prevista se restringe aos ilícitos praticados no processo e não se estende
aos ilícitos anteriores à sua instauração, cf. STJ 17/5/2011 (3813/07.9TVLSB.L1.S1).
160
Cf. COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, 392 ss.; TARUFFO , in TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights, 12:
“[…] that I am vested with the fundamental right of access to justice does not mean that I am entitled to file any
claim without any legal interest (i.e.: to pursue frivolous contentions […]), just with the aim of harassing another
person”.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/61
a) O dever de verdade implica que a parte não deve alegar factos que sabe que não são
verdadeiros e não deve impugnar factos que sabe que são verdadeiros, ou seja, esse dever
161
Cf. ZEISS, Die arglistige Prozesspartei, 150 ss.
162
STJ 26/9/2013 (305/10.2TBFAR.E2.S1)
163
A expressão é atribuída a M. PEREIRA RAMOS, Juíza Federal da 63.ª Vara do Trabalho da Seção Judiciária da
Comarca de São Paulo, que a definiu assim num processo: “Denomino assedio processual a procrastinação por
uma das partes no andamento do processo, em qualquer uma de suas fases, negando-se a cumprir decisões
judiciais, amparando-se ou não em norma processual, para interpor recursos, agravos, embargos,
requerimentos de provas, petições despropositadas, procedendo de modo temerário e provocando incidentes
manifestamente infundados, tudo objetivando obstaculizar a entrega da prestação jurisdicional à parte
contraria”.
164
Cf. OLZEN, ZZP 98 (1985), 419.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/62
implica uma correlativa proibição de mentira consciente (ou, na expressão do art. 542.º, n.º 2 pr.,
dolosa ou gravemente negligente)165. Assim, o dever de verdade é violado quando a parte alega
factos que sabe que não são verdadeiros, não quando a parte alega factos que está convencida
de que são verdadeiros mas que não tem a certeza de que são verdadeiros, nem quando a parte
contesta factos alegados pela contraparte de que não tem a certeza de que não são verdadeiros.
Neste sentido, mais do que um dever de verdade (objectiva) deve falar-se de um dever de
veracidade (subjectiva).
Lembre-se que é esta circunstância de ser imposto à parte que não minta, mas não que
tenha a certeza do que afirma, que justifica a admissibilidade da formulação de um pedido
subsidiário sem que a parte possa ser acusada de violar o dever de verdade. Por exemplo: o autor
pode pedir a condenação do réu na restituição de uma quantia, invocando que a emprestou ao
réu; para o caso de tal não ser reconhecido e de se entender que a quantia foi entregue ao réu a
título de doação, o autor pode pedir a restituição dessa mesma quantia alegando a invalidade
deste contrato; ainda que o pedido principal fundado no mútuo seja considerado improcedente,
isso não justifica a condenação do autor como litigante de má fé por violação do dever de verdade,
excepto se se demonstrar que o autor sabia que a quantia não tinha sido emprestada ao réu.
Portanto, a admissibilidade da formulação de um pedido subsidiário demonstra que não viola o
dever de verdade a parte que alega algo de que não tem a certeza.
É pelo mesmo parâmetro de proibição da mentira que há que analisar a alegação de factos
que a parte não pode saber se são verdadeiros. Assim, a afirmação de meras hipóteses ou
conjecturas, a descrição de estados anímicos alheios ou a formulação de uma prognose sobre
acontecimentos futuros não violam o dever de verdade se a parte fornecer alguns indícios para
corroborar o que afirma, descreve ou formula e se esses indícios se revestirem de alguma
plausibilidade166. Em contrapartida, dificilmente a parte que alega factos “a ver se pega” ou afirma
algo “ao acaso” desconhece que não é verdade o que expõe; portanto, essa parte viola o dever de
verdade.
b) Pode discutir-se se o dever de verdade exige que a parte reponha a verdade quanto a
uma afirmação inexacta realizada pela parte contrária e desfavorável a esta parte. Por exemplo: o
autor afirma que emprestou € 5000 ao réu; esta parte sabe que o empréstimo foi de € 10000; pode
perguntar-se se o dever de verdade é violado se o réu não corrigir o autor. Realisticamente, há
que entender que o dever de verdade só impõe que a parte não minta em afirmações próprias e a
seu favor, não que diga a verdade sobre uma afirmação errada que lhe é favorável mas
desfavorável para a contraparte que a profere. Assim, se, por exemplo, o autor afirmar, por
165
Referindo que o dever de boa fé processual impõe que a parte só deva alegar factos de que esteja convencida
da verdade e só deva contestar factos de que esteja convencida da não verdade, cf. TRUTTER, Bona fides im
Civilprozesse (1892), 59 ss. e 292 ss.; sobre o conteúdo do dever de verdade, cf. VON HIPPEL, Wahrheitspflicht
und Aufklärungspflicht der Parteien im Zivilprozess (1939), 144 s.; sobre a evolução histórica desse dever, cf.
OLZEN, ZZP 98 (1985), 403 ss.
166
Cf. STÜRNER, Die Aufklärungspflicht der Parteien im Zivilprozess, 112 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/63
equívoco, que o réu já lhe pagou parte da dívida, não viola o dever de verdade o réu que não
desfaz esse equívoco do autor.
O dever de completude impõe que a parte tem o dever de alegar todos os factos que são
relevantes para a apreciação da causa, abrangendo, assim, tanto os factos que lhe são favoráveis,
como os factos que lhe são desfavoráveis 167. A parte tem o dever de alegar toda verdade, pelo que
a parte não pode omitir um facto que sabe ser verdadeiro, ainda que o mesmo lhe seja adverso,
designadamente por ser um facto impeditivo, modificativo ou extintivo e, por isso, por fundamentar
uma excepção da contraparte. Assim, verifica-se uma violação do dever de completude se, por
exemplo, o autor, contra aquilo que sabe ser a verdade dos factos, não afirmar que o réu já lhe
pagou parte da dívida ou ignorar a moratória acordada com o réu e pedir a condenação imediata
desta parte no cumprimento da obrigação.
O dever de completude tem como limite a faculdade de recusa da colaboração da parte em
matéria probatória. Por exemplo: nenhuma parte é obrigada a revelar factos da sua vida privada
ou familiar (cf. art. 417.º, n.º 3, al. b)), nem factos relativos a segredo profissional ou de Estado (cf.
art. 417.º, n.º 3, al. c)), nem ainda factos criminosos ou torpes (cf. art. 454.º, n.º 2) 168. Isto significa
não só que a parte não tem o ónus de alegar esses factos (e, no caso do segredo, tem mesmo o
dever de os não alegar), mas também que a parte não tem o ónus de impugnar esses factos
quando alegados pela parte contrária. Por exemplo: admita-se que, numa acção de despejo, é
alegado pelo autor que o réu manteve uma relação adulterina com uma vizinha; a não impugnação
deste facto não pode implicar a sua admissão por acordo.
167
Sobre o dever de completude, cf. SCARSELLI, Rtdpc 52 (1998), 102 ss.
168
Com outra sensibilidade quanto a estes últimos factos, cf. STÜRNER, Die Aufklärungspflicht der Parteien im
Zivilprozess, 175 ss.
169
Assim, COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, 524 ss.; diferentemente, MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé 3,
1195 ss.; P. DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, 108 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/64
judicial da parte (cf. art. 545.º)170. Atendendo à proibição da indefesa, o tribunal deve ouvir
previamente a parte, o representante ou o mandatário 171.
A esta consequência geral podem acrescer outras consequências. Assim, no caso da
tentativa ilícita de desaforamento, o tribunal deve declarar-se incompetente (cf. art. 107.º) e, na
hipótese da propositura indevida de uma acção prejudicial, o tribunal da acção dependente não
deve decretar a suspensão da instância (cf. art. 272.º, n.º 2). Pode assim estabelecer-se a regra
segundo a qual, para além da multa e da indemnização, a litigância de má fé implica que o acto
praticado pela parte contra os ditames da boa fé não pode produzir nenhuns efeitos em juízo.
b) Ao contrário do que sucede no regime geral – que exige uma actuação dolosa ou
gravemente negligente da parte (art. 542.º, n.º 2 pr.) –, os regimes especiais previstos nos art.
374.º, n.º 1, 858.º e 866.º operam com a mera negligência, o que aumenta as hipóteses de
responsabilização da parte. Como é evidente, estes regimes especiais continuam aplicáveis
quando a parte actua com negligência grave ou mesmo com dolo e não obstam à aplicação do
regime geral em hipóteses por eles não abrangidas.
2.5. Má fé bilateral
3. Abuso de direito
3.1. Generalidades
O conceito de acção abusiva diz respeito ao autor que faz a acção desempenhar uma
função diversa da obtenção de tutela jurisdicional, designadamente a de prejudicar ou incomodar o
réu172. Por exemplo: (i) A, apenas para fatigar B, move-lhe continuamente acções declarativas da
propriedade de todos os objectos que possui; A abusa do seu direito de acção, porque utiliza os
meios processuais para obter uma finalidade ilegal; (ii) C é credor de D no montante de € 20000;
em vez de demandar D numa única acção, C vai propondo sucessivamente várias acções
respeitantes a montantes parcelares, procurando não só importunar D, mas também evitar que a
acção tenha um valor que permita a D interpor um eventual recurso; C abusa do direito de acção,
porque se serve da acção para a prossecução de objectivos ilegais; (iii) E instaura uma acção de
170
Sobre o problema da responsabilidade do advogado perante a contraparte da parte por ele representada por
violação do dever de verdade, cf. LINDENBERG, Wahrheitspflicht und Dritthaftung des Rechtsanwalts im
Zivilverfahren (2002), 92 ss.
171
Cf. TC 440/94 (7/6/1994).
172
Cf. TARUFFO, in TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights, 12 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
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173
Distinguindo, no entanto, o “abuso del processo” do “abuso che viene commesso nel processo”, cf. TARUFFO ,
Rtdpc 66 (2012), 117.
174
Cf. MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé 3, 149 ss.; P. DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade Processual por
Litigância de Má Fé, 92 ss.; Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, 617 ss.
175
Sobre esta taxa sancionatória, cf. COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, 267 ss. e 441 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa
II/66
qualificado) e aquela em que o abuso de direito não é acompanhado do abuso do direito de acção
(abuso simples).
No direito português, o abuso do direito de acção é mais amplo do que o exercício abusivo
de um direito em juízo: aquele abuso abrange todas as hipóteses reguladas no art. 542.º, n.º 2, o
exercício abusivo de um direito em processo só é subsumível ao disposto no art. 542.º, n.º 2, al. a)
(dedução de pretensão ou oposição com conhecimento da falta da sua fundamentação). Dito de
outro modo: na óptica da conduta processual das partes, o art. 542.º é mais amplo do que o art.
334.º CC: aquele preceito envolve situações de exercício abusivo de um direito em processo (cf.
art. 542.º, n.º 2, al. a)) e hipóteses que são apenas de abuso do processo (cf. art. 542.º, n.º 2, al.
b), c) e d)); o art. 334.º CC só se refere ao exercício abusivo de um direito.
Basta esta conclusão para demonstrar que o direito positivo trata o exercício abusivo de um
direito em processo como uma (possível) situação de litigância de má fé: em concreto, é esse o
sentido do disposto no art. 542.º, n.º 2, al. a) 176. Aliás, se assim não se entendesse, o art. 542.º, n.º
2, al. a), ficaria sem campo de aplicação possível, porque o preceito só se pode referir a situações
de exercício abusivo de um direito. Deste modo, tal como nenhuma das outras situações de abuso
do direito de acção pode relevar se não estiverem preenchidas as condições necessárias para a
litigância de má fé (nomeadamente, a actuação da parte com dolo ou negligência grave: cf. art.
542.º, n.º 2 pr.), também o exercício abusivo de um direito em processo só pode ter relevância se
for subsumível ao regime da litigância de má fé.
Não se deve entender que todo o abuso de direito corresponde a um abuso do direito de
acção que deve ser sancionado com a condenação da parte como litigante de má fé: a acção
também pode improceder, simplesmente porque o tribunal entende que o que o autor pede é
abusivo, sem que haja motivo para condenar esta parte como litigante de má fé com base numa
actuação gravemente negligente ou dolosa, ou seja, sem que se justifique sancionar essa parte
por abuso do direito de acção. Por exemplo: (i) as partes celebraram um contrato de mútuo que é
nulo por falta de forma; no entanto, o devedor pagou, durante vários anos, os juros do empréstimo;
é abusivo o pedido feito por este devedor de devolução da quantia paga em consequência da
nulidade do contrato177; (ii) um banco accionou uma livrança, que os executados tinham avalizado
176
Partindo da mesma premissa, cf. RAMOS MÉNDEZ, in TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights, 181 ss.; num
plano mais geral, fazendo equivaler o abuso do processo a situações de litigância de má fé, cf. TARUFFO, in
TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights, 21 s.; diferentemente, MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé 3, 139
ss.; P. DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, 92 ss. e 150 ss.; P. ALBUQUERQUE,
ROA 66 (2006), 901 ss.; COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, 617 ss.; sobre o problema na doutrina italiana, cf.
NICÒTINA, L’abuso nel processo civile (2005), 169 ss.; SCARSELLI, Rdp 67 (2012), 1450 ss., negando a autonomia
2
do abuso del processo; na doutrina espanhola, cf. PICÓ I JUNOY, El Principio de la Buena Fe Procesal (2013), 98
ss.
177
Cf. STJ 27/5/2010 (148/06.8TBMCN.P1.S1).
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em branco, vários anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora; aquele
exequente actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, se tinha
conhecimento de que os executados só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse
na sociedade subscritora e se, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era
bastante a garantia dos restantes avalistas, ainda assim continuou a conceder crédito à sociedade
através da renovação do contrato de abertura de crédito 178. Em qualquer destes casos, se não
houver abuso do direito de acção, não há motivo para condenar o demandante como litigante de
má fé.
2. Formas processuais
2.1. Tramitação processual
O princípio da legalidade das formas processuais pode ser visto em dois domínios: no
domínio do esquema da marcha do processo, em geral, e no domínio da forma de cada acto
processual, em particular. Quanto ao esquema da marcha do processo, este pode ser rígido (por
ter a sua marcha fixada na lei) ou flexível (por a sua marcha ser estabelecida pelo juiz ou pelas
próprias partes). O processo civil português é um processo flexível – a marcha do processo não é
necessariamente aquela que estiver fixada pela lei, dado que o juiz, fazendo uso dos seus
poderes de gestão processual, pode tomar as medidas de agilização e simplificação que
assegurem a justa composição do litígio num prazo razoável (cf. art. 6.º, n.º 1) 179.
178
STJ 12/11/2013 (1464/11.2TBGRD-A.C1.S1).
179
Cf. CARNELUTTI, Diritto e processo (1958), 156 ss., referindo-se a um “principio di elasticità”; sobre a matéria
dos acordos processuais, cf. CAPONI, Rtdpc 62 (2008-3 supl.), 99 ss.
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Quanto à forma de cada acto processual, também não se aplica o princípio da legalidade.
Embora a lei regule efectivamente muitíssimos pontos de forma dos actos processuais, a regra
ainda é a que resulta do art. 130.º, n.º 1: os actos processuais têm a forma que, nos termos mais
simples, melhor corresponda ao fim que visam atingir.
3. Conteúdo da decisão
O princípio da legalidade do conteúdo da decisão exprime-se desta forma: em regra, o
tribunal deve decidir segundo a lei, ou seja, como diz o art. 607.º, n.º 3, deve indicar, interpretar e
aplicar as normas jurídicas correspondentes. O princípio da legalidade relaciona-se com o da
independência dos juízes (embora se não confunda com ele): esta conexão resulta com clareza do
disposto no art. 203.º CRP: os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.
O princípio da legalidade do conteúdo da decisão apresenta algumas excepções, de que
importa destacar as seguintes:
– As excepções resultantes do princípio dispositivo; em regra, as partes podem
determinar, por desistência da instância ou do pedido, por confissão do pedido ou por
transacção, o conteúdo da decisão do tribunal da causa (cf. art. 283.º a 291.º);
– A excepção decorrente do chamado juízo de equidade; nos termos previstos no art.
4.º CC e no art. 39.º, n.º 1, LAV, as partes podem pedir que a solução para uma
questão seja determinada, não ex iure stricto, mas ex aequo et bono;
– A excepção própria dos processos de jurisdição voluntária; nestes processos, as
resoluções assentam em critérios de conveniência e de oportunidade (art. 987.º).
180
Cf. METTENHEIM, Der Grundsatz der Prozeβökonomie im Zivilprozeβ (1970), 15 ss.; E. SCHMIDT, Der Zweck des
Zivilprozesses und seine Ökonomie (1973), 39 ss.; Hoffmann, ZZP 126 (2013), 85 ss.; para maiores
desenvolvimentos, cf., com especial consideração dos bens e valores constitucionais, PFLUGHAUPT,
Prozessökonomie/Verfassungsrechtliche Anatomie und Belastbarkeit eines gern bemühten Arguments (2011),
68 ss.
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2. Plano individual
No plano individual – isto é, no plano de cada processo em concreto –, o princípio da
economia processual proíbe a prática de actos inúteis (cf. art. 130.º). Este princípio obsta a que se
pratiquem em juízo actos tanto objectiva, como subjectivamente inúteis num processo pendente:
os actos objectivamente inúteis são aqueles que não respeitam à matéria discutida no processo;
os actos subjectivamente inúteis são aqueles que, pressupostamente, nada acrescentam para a
convicção já formada do juiz.
A inutilidade objectiva é facilmente demonstrável (se se discute x, não interessa praticar um
acto relativo a y), mas a inutilidade subjectiva tem na base um pressuposto indemonstrável: o acto
é inútil na pressuposição de que nada vai acrescentar ao que já está adquirido para a convicção
do juiz, mas, se o acto não é realizado, nunca se pode saber se ele seria realmente inútil, porque
nunca se pode ter a certeza de que o acto omitido (como, por exemplo, a audição de uma
testemunha), se tivesse sido realizado, não iria abalar a convicção do juiz. A
economia processual fundamenta, por isso, a irrelevância virtual de um acto, isto é, a irrelevância
de um acto que, apesar de ser admissível, é considerado irrelevante antes mesmo de ser
praticado: o juiz que já adquiriu a convicção sobre uma questão pode dispensar um
acto processual a ela respeitante, sem que tenha de se preocupar com o que poderia ter resultado
desse acto e com a possível utilidade do acto omitido para um outro tribunal (nomeadamente, de
recurso).
X. Princípio da auto-suficiência
1. Caracterização
O princípio da auto-suficiência do processo pode exprimir-se do seguinte modo: em
processo civil, a aparência vale como realidade para o efeito de determinar se o é ou não e esta
determinação é realizada no próprio processo.
2. Concretização
A mera invocação de um direito permite à parte instaurar uma causa, o que, em rigor, só
deveria ser permitido àquele que fosse efectivamente titular desse direito; mas a causa visa
precisamente averiguar se o autor é ou não titular do direito que invoca. O mesmo se passa no
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