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J. de Castro Mendes / M.

Teixeira de Sousa

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II. ASPECTOS GERAIS

§ 7.º Classificações do processo civil

I. Preliminares
Complexos de actos destinados à tutela de certas situações subjectivas através do
acolhimento ou rejeição da pretensão de um dos interessados e mediante a intervenção de
tribunais – ou seja, processos jurisdicionais – há muitos e de muitos modelos, de sorte que
convém apresentar algumas classificações. Importa considerar três classificações, que dividem as
categorias de processos civis atendendo ao fim, ao critério da decisão e à forma.

II. Classificação pelo fim


1. Generalidades
Todos os processos civis prosseguem um mesmo fim: a tutela de situações subjectivas.
Porém, esta tutela pode fazer-se de várias formas, que dão origem a diversos tipos de processo
civil. A tutela de uma situação subjectiva é o conteúdo do pedido que o autor ou o exequente dirige
ao tribunal, pelo que essa situação constitui o objecto do direito que a parte exerce quando a ele
recorre, exigindo a sua intervenção – o direito de acção judicial ou somente acção. Os diferentes
tipos de tutela de situações subjectivas originam diferentes tipos de processos, diferentes tipos de
pedidos e ainda diferentes tipos de acções.
A diferença entre alguns destes tipos não tem relevância na sequência processual: o
processo através do qual se pede a condenação, por exemplo, é idêntico àquele em que se pede
a simples apreciação de um facto ou de um direito. Talvez por isso a classificação fundamental
que o art. 10.º apresenta e que se baseia nos diferentes tipos de tutela de situações subjectivas é
referida ao plano da acção e não do processo: o art. 10.º, na verdade, tem como epígrafe
“espécies de acções, consoante o seu fim”. Simplesmente, no art. 10.º o termo acção tem o
sentido de pedido, pelo que este preceito contém primariamente uma classificação de pedidos, a
qual pode, aliás, ser facilmente reportada, sem alteração de termos, ao plano do processo e ao
plano do direito de acção.

2. Acções declarativas
2.1. Generalidades

O art. 10.º, n.º 1, começa por estabelecer que as acções são declarativas ou executivas. As
acções declarativas, diz o art. 10.º, n.º 2, podem ser de simples apreciação, de condenação ou
constitutivas.
Esta classificação, embora gizada primariamente para os pedidos, reporta-se mediatamente
ao direito de pedir (acção) e ao processo. Quanto a este, há porém que fazer as seguintes
ressalvas. Antes do mais, a distinção dos processos declarativos em três tipos não implica
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nenhuma diferença na sua marcha. Acresce ainda que é possível cumular num único processo
vários pedidos (cf. art. 555.º), até de natureza diferente, pelo que pode haver processos mistos,
em que se peça, por exemplo, a declaração da propriedade de certa coisa (pedido de sim ples
apreciação: cf. art. 10.º, n.º 3, al. a)), a anulação por dolo de um contrato transmissivo de um
direito real menor sobre ela (pedido constitutivo: cf. art. 10.º, n.º 3, al. c)) e ainda a condenação
numa indemnização de perdas e danos (pedido de condenação: cf. art. 10.º, n.º 3, al. b)).
A enumeração que consta do art. 10.º, n.º 2 e 3, é, acima de tudo, de ordem doutrinária, pois
que, em parte alguma, a legislação processual retira consequências da distinção entre os diversos
tipos de acção declarativa, pelo que essa enumeração não pode ser considerada taxativa 1. Pode
nomeadamente suscitar algumas dúvidas a qualificação das chamadas acções mandamentais, isto
é, das acções que, através das sentenças mandamentais ( Anordnungsurteile), visam impor a um
órgão do Estado ou a uma autoridade pública que pratique ou omita determinado acto 2.

2.2. Acções de simples apreciação

a) As acções de simples apreciação são definidas pelo art. 10.º, n.º 3, al. a), como aquelas
que têm por fim obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de
um facto. Este tipo de acção tem como antecedente remoto as actiones praeiudiciales do direito
romano (cf. GAIUS, I. 4.44)3, mas só tardiamente foi admitido como figura geral 4, pois que a acção
meramente declarativa apenas surgiu na doutrina oitocentista a partir da construção de uma
pretensão à declaração ou ao reconhecimento de um facto ou de um direito 5. Em Portugal, ainda
no domínio do Código de Processo Civil de 1876 se duvidava da admissibilidade geral da acção
de simples apreciação, tendo o art. 4.º CPC/1939 – correspondente ao actual art. 10.º – visado
dissipar essas dúvidas6.

b) As acções de simples apreciação podem ser positivas ou negativas:


– A acção é positiva quando tiver por fim obter a declaração da existência de um direito
ou de um facto; é o que sucede, por exemplo, com a acção de declaração de
nulidade de um negócio jurídico ou com a acção de declaração da propriedade de um
imóvel;

1
Crítico perante a tripartição, cf. RÖDIG, Die Theorie des gerichtlichen Erkenntnisverfahrens (1973), 64 ss.
2
KUTTNER, Urteilswirkungen auβerhalb des Zivilprozesses (1914), 22; na doutrina brasileira, cf. S. MURITIBA, Ação
executiva lato sensu e Ação Mandamental (2006), 219 ss.; defendendo a desnecessidade da autonomização das
Anordnungsklage, cf, Lüke, ZZP 107 (1994), 157.
3
Cf., em referência ao processo formulário, KASER/HACKL, Das römische Zivilprozessrecht 2 (1996), 347 ss.; cf.
também BEKKER, Die Aktionen des Römischen Privatrechts I (1871), 283 ss.; KELLER/WACH, Der römische
Civiprocess und die Actionen in summarischer Darstellung 6 (1883), 189 ss.
4
Sobre a evolução da acção de simples apreciação, cf. BORCHARD, Declaratory Judgments 2 (1941), 87 ss.; KADEL,
Zur Geschichte und Dogmengeschichte der Feststellungsklage nach § 256 der Zivilprozeβordnung (1967), 11
ss.; STOLL, FS Eduard Bötticher (1969), 341 ss.; JACOBS, Der Gegenstand des Feststellungsverfahrens (2005), 103
ss.
5
DEGENKOLB, Einlassungszwang und Urteilsnorm (1877), 129 ss.; WEISMANN, Die Feststellungsklage./Zwei
Abhandlungen (1879), 1 ss. e 113 ss.; WACH, Der Feststellungsanspruch. Ein Beitrag zur Lehre vom
Rechtsschutzanspruch., FG Bernhard Windscheid (1888), 106 ss. e 116 ss. = (1889), 34 ss. e 44 ss.
6
Cf. ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil I 2 (1960), 19.
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– A acção é negativa quando tiver por fim obter a declaração da inexistência de um


direito ou de um facto; é o caso, por exemplo, da acção destinada a obter a
declaração de que o autor não é devedor do réu7.
Uma modalidade específica das acções de simples apreciação é a acção de apreciação
incidental8. Qualquer das partes pode requerer que uma questão ou um incidente que tenha sido
suscitado numa acção pendente seja decidido com força de caso julgado material – ou seja, com
força de caso julgado dentro e fora do processo (cf. art. 619.º, n.º 1) –, desde que o tribunal da
acção tenha competência internacional, material e hierárquica para essa apreciação (art. 91.º, n.º
2). Por exemplo: numa acção destinada a obter o pagamento das rendas em atraso, o réu invoca
a denúncia do contrato de arrendamento; o autor, ao contestar essa denúncia, pode pedir que esta
questão seja apreciada com força de caso julgado material, situação em que, na hipótese de o
tribunal da causa entender que não houve nenhuma denúncia, este facto fica coberto pela força de
caso julgado material em qualquer acção posterior entre as mesmas partes.

c) A acção de simples apreciação levanta questões e problemas específicos, quer no caso da


acção de apreciação positiva, quer no caso da acção de apreciação negativa. Antes de mais, não
parece ser possível encontrar um fundamento substantivo para as acções de simples apreciação,
pois que não existe um direito à declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um
facto9. Por exemplo: o direito do credor ou o direito do proprietário permitem exigir a prestação ao
devedor ou reivindicar a coisa do esbulhador, mas esses direitos não comportam o direito a ser
declarado credor ou proprietário; também não há nenhum direito à declaração de que não se é pai
ou filho de determinada pessoa.
Além disso, tendo a acção de simples apreciação por objecto meros factos (cf. art. 10.º, n.º 3,
al. a)), podem suscitar-se dificuldades na delimitação dos factos susceptíveis de declaração em
juízo. Por exemplo: é absurdo pretender que o tribunal declare que choveu em certo dia. Só pode
ser objecto de uma acção de simples apreciação um facto que constitua, em si, um bem disputável
em litígio; a lei fornece um exemplo no art. 1800.º, n.º 1, CC.
d) A acção de simples apreciação negativa levanta ainda outras dificuldades. Em doutrina,
esta acção pode ser vista:
– Como uma acção normal, com um pedido determinado (inexistência de certo
facto ou de certo direito) e uma causa de pedir, igualmente determinada, do facto ou
direito negado pelo autor (cf. art. 186.º, n.º 2, al. a), e 581.º, n.º 4), que o autor deve
alegar e provar; por exemplo: “Declare o tribunal que eu, autor, não devo x ao réu,
porque o contrato que com ele celebrei é nulo por simulação, como provarei”10;
– Como uma acção peculiar, em que o autor se pode limitar a negar certa relação
(possivelmente até determinada em abstracto: “Nada devo ao réu”), não invocando
nenhum fundamento, antes empurrando para o réu o ónus de precisar e de provar o
que impugna nessa negação e o respectivo fundamento (“O autor deve-me y, que eu
lhe emprestei, como provarei”)11.

7
Sobre os conteúdos possíveis das acções de simples apreciação, cf. STOLL, FS Eduard Bötticher, 345 ss.
8
Cf. SCHUMANN, FS Apostolos Georgiades (2006), 544 ss.
9
Diferentemente, JACOBS, Der Gegenstand des Feststellungsverfahrens, 127 ss.
10
Cf. BALTZER, Die negative Feststellungsklage aus § 256 ZPO (1980), 82 ss.; TEIXEIRA DE SOUSA, RDES 25 (1978),
127 ss.
11
Cf. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil I (1982), 211 ss.
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Podia julgar-se ver uma confirmação desta última posição no disposto no art. 343.º, n.º 1,
CC: “nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos
constitutivos do direito que se arroga”. Esta solução seria própria da construção da acção de
simples apreciação negativa. Assim, por exemplo, se certa pessoa anda a afirmar “Não pago, o
contrato é nulo”; “A é meu devedor” ou “Sou filho de B”, a lei dá ao autor a possibilidade de propor
uma acção em que constrange essa pessoa a definir in iudicio a sua posição: “Eu afirmo
genericamente que o contrato não é nulo – venha o réu concretizar e provar por que o julga nulo”;
“Eu afirmo genericamente que nada devo – venha o réu concretizar por que se julga credor, e
prová-lo”, “Eu afirmo genericamente que não sou pai do réu; venha o réu alegar e provar porque se
julga meu filho”. É uma acção de um tipo, de origem germânica, a que os antigos chamavam
provocatio ad agendum (ou acção de jactância ou de provocação), pois que coloca outra pessoa
(mas sibi imputet, pela sua “arrogância”) em situação semelhante à do autor, com o ónus e o risco
de fundamentar e de provar o seu direito12.
Hoje, esta concepção deve considerar-se ultrapassada: a acção de provocação constitui um
antecedente, mas não corresponde à actual fisionomia da acção de apreciação negativa 13. Aliás, já
na época do processo comum alguma doutrina considerava que os Provocationsprozeβe
(instaurados pelo provocado a instância do provocante) eram excepcionais, sendo apenas admitidos
em duas situações: quando o difamante era chamado a provar em juízo as alegações que propala
quanto ao provocante (provocactio ex lege Difamarii) e quando alguém é intimado a propor uma
acção para que o provocante não perca certas excepções pela demora na demanda ( provocatio ex
lege Si contendat)14. Uma interpretação do disposto no art. 343.º, n.º 1, CC que, genericamente, dê
cobertura à admissibilidade das acções de jactância vai ainda mais além, quanto ao âmbito destas
acções, do que era aceite por alguma doutrina do processo comum.
A circunstância de o réu se arrogar injustificadamente certo direito, afirmando-o
extrajudicialmente em detrimento do autor, é necessária para assegurar o interesse processual (ou
em agir) do autor, mas nenhum autor está dispensado de alegar e provar os factos impeditivos,
modificativos ou extintivos que constituem a causa de pedir da acção de simples apreciação
negativa. Assim, se o autor em juízo vier dizer, por exemplo, “Declare o tribunal que nada devo ao
réu”, formula uma petição inepta (art. 186.º, n.º 2, al. a)); o que o autor pode é di zer: “Celebrei um
contrato com o réu pelo qual, aparentemente, devo x, mas este contrato foi simulado – declarem
que nada devo”; interpretando o regime constante do art. 343.º, n.º 1, CC, neste caso, o ónus da
prova daquele facto impeditivo cabe ao autor.

2.3. Acções de condenação

a) Segundo a definição do art. 10.º, n.º 3, al. b), as acções de condenação são as que têm
por fim exigir a prestação duma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação dum
direito. As acções de condenação correspondem ao que o Código Civil chama acções de
12
Cf., por exemplo, GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen Prozesses IV (1803), 173 ss.; SCHMID, Handbuch
7
des gemeinen deutschen Civilprocesses III (1845), 24 ss.; BAYER, Theorie der summarischen Processe (1859),
3
128 ss.; WETZELL, System des ordentlichen Civilprocesses (1878), 103 ss.
13
Já na fundamentação da Zivilprozessordnung alemã se referia que a consagração geral de uma acção para o
reconhecimento da existência ou inexistência de uma relação jurídica tornava dispensáveis as acções de
jactância: cf. HAHN (Ed.), Die gesammten Materialien zu den Reichs-Justizgesetzen II/1 (1880), 256; convém
4
recordar as palavras de CHIOVENDA, Principii di diritto processuale civile (1928), 166: “A importância prática da
doutrina relativa à acção de simples apreciação consiste em ter definitivamente dissipado o equívoco sobre as
relações entre estas acções e os já abolidos juízos de jactância”; sobre a evolução dogmática das acções de
apreciação negativa, cf. CARIGLIA, Profili generali delle azioni di accertamento negativo (2013), 17 ss.
14
Cf., por exemplo, SCHMID, Handbuch des gemeinen deutschen Civilprocesses II, 24 ss.
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cumprimento (cf. a epígrafe da subsecção que começa no art. 817.º CC) e nelas pede-se a
declaração do direito a uma prestação, mas pede-se mais do que isso: pede-se que o tribunal faça
seguir essa declaração de uma ordem para que o réu cumpra (condenação)15. Note-se que esta
análise não significa que sejam propostas duas acções ou formulados dois pedidos: o pedido
unitário de condenação analisa-se em ambos os referidos elementos.
As acções condenatórias podem ser acções ex praeterito, quando pressupõem a violação
de um direito e visam obter a condenação no cumprimento de uma prestação já vencida, ou in
futurum, quando prevêem a violação de um direito e procuram obter a condenação do réu no
cumprimento de uma prestação no momento em que esta se vencer (cf. art. 10.º, n.º 3, al. b)). As
acções de condenação in futurum são admissíveis nas condições previstas no art. 557.º, n.º 1
(quanto a prestações periódicas) e 2 (quanto a prestações futuras).
b) Uma modalidade específica das acções condenatórias é constituída pelas acções
inibitórias, que são aquelas através das quais se exige a alguém a omissão da violação de um
direito16: é o caso, por exemplo, da acção destinada a evitar a ofensa a direitos da personalidade
(cf. art. 70.º, n.º 2, CC), da acção de prevenção da perturbação ou esbulho da posse (cf. art. 1276.º
CC), da acção destinada a proibir a emissão de fumo e a produção de ruídos (art. 1346.º CC) ou
ainda da acção que visa a inibição do uso ou recomendação de cláusulas contratuais gerais (art.
25.º DL 446/85, de 25/10) 17. Estes exemplos são apenas concretizações legais de acções inibitórias
(e não termos de uma enunciação taxativa), pois que essas acções devem ser consideradas
admissíveis sempre que exista o fundado receio da violação de um direito18.
As acções inibitórias não devem ser confundidas com as acções de condenação in futurum. A
distinção pode ser estabelecida da seguinte forma:

– As acções inibitórias impõem, de imediato, o cumprimento de um dever de


omissão;
– As acções de condenação in futurum impõem, no momento em que a obrigação
se tornar exigível, o seu cumprimento19.
As acções inibitórias também não se confundem com as providências cautelares de conteúdo
inibitório:
– As acções inibitórias fornecem uma tutela definitiva;
– As providências cautelares de conteúdo inibitório – como, por exemplo, uma
providência não especificada (cf. art. 362.º, n.º 1) ou o embargo de obra nova (cf. art.
397.º, n.º 1) – fornecem uma tutela provisória até à definição da situação através da
decisão que virá a ser proferida na acção principal.

15
Esta circunstância já conduziu alguma doutrina a atribuir à sentença condenatória um efeito constitutivo: cf .
SOHM, Wesen und Voraussetzungen der Widerspruchsklage (1908), 32; SCHLOSSER, Gestaltungsklagen und
Gestaltungsurteile (1966), 104.
16
Diferentemente, integrando as acções inibitórias nas acções de apreciação negativa, STJ 26/9/2013
(15/10.0TJLSB.L1.S1).
17
Sobre a evolução histórica da acção inibitória, cf. STEPHAN, A., Die Unterlassungsklage (1908), 4 ss.; sobre
4
alguns problemas suscitados pelas acções inibitórias, cf. L. G. MARINONI, Tutela Inibitória/Individual e coletiva
(2006), 34 ss.; especificamente sobre a acção que visa a inibição do uso ou recomendação de cláusulas
contratuais gerais, e acentuando a sua vertente “cívico/social”, cf. STJ 31/5/2011 (854/10.2TJPRT.S1).
18
Cf. OPPERMANN, Unterlassungsanspruch und materielle Gerechtigkeit im Wettbewerbsprozeβ (1993), 103 ss.
19
Cf. ZEUNER, FS Hans Dölle I (1963), 310 ss.
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c) A configuração da acção inibitória (de base não contratual) é bastante controversa. Há


quem tenha entendido, em conjugação com a rejeição de uma pretensão erga omnes ou de uma
obrigação passiva universal, que a acção inibitória, destinada a proteger direitos absolutos, é um
instituto processual20; tende a prevalecer, no entanto, a orientação de que à acção inibitória está
subjacente uma pretensão à omissão 21. A controvérsia parece dever ser resolvida no plano da
instrumentalidade. Pode entender-se que a tutela inibitória, por ser um instrumento de defesa de
um direito, só pode ter uma natureza processual; mas também se pode conceber que há direitos
que são instrumentos de defesa de outros direitos (algo que é característico de muitos direitos
potestativos) e que também há pretensões que são instrumentos de defesa de direitos. Parece ser
este o caso da pretensão à omissão (não contratual), dado que é o seu carácter instrumental que
explica, por exemplo, que essa pretensão não seja susceptível de ser cedida ou de se extinguir por
prescrição22.
A atestar a especialidade da omissão perante a acção, tem interesse referir que, no direito
romano, a omissão de alguns actos era objecto quer de actiones (como a actio negatoria e a actio
confessoria), quer de interdicta isto é, de ordens do pretor 23. Assim, por exemplo, o interdictum uti
possidetis impunha a abstenção do uso da força contra o legítimo possuidor de uma coisa.

2.4. Acções constitutivas

a) As acções constitutivas são definidas pelo art. 10.º, n.º 3, al. c), como as que têm por fim
autorizar uma mudança na ordem jurídica existente. A relação material nestas acções é uma
relação potestativa: o autor exerce (ou pretende exercer) um direito potestativo, estando os efeitos
de tal exercício sujeitos à condicio juris de uma sentença favorável que reconheça e declare o
direito, implicitamente autorizando ou desencadeando tais efeitos. Assim, são acções constitutivas
todas aquelas em que sejam exercidos direitos potestativos, como, por exemplo, aqueles que se
referem à impugnação ou revogação de actos jurídicos, à impugnação ou dissolução de estados
pessoais, à dissolução, denúncia ou resolução de negócios jurídicos, à destituição de cargos
sociais ou ao exercício de direitos de preferência.
Embora não se baseiem num direito potestativo, também podem ser consideradas acções
constitutivas algumas acções que visam modificar ou impedir a produção de certos efeitos
jurídicos. É o caso, por exemplo, das acções que visam modificar a prestação de alimentos ou
outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua
duração (cf. art. 619.º, n.º 2), assim como da oposição à execução (cf. art. 728.º, n.º 1), dos
embargos de terceiro (cf. art. 342.º, n.º 1) e da acção de anulação da sentença arbitral (cf. art. 46.º
LAV).
20
Cf., por exemplo, SIBER, Der Rechtszwang im Schuldverhältnis (1903), 99 ss. e 108 ss.; NIKISCH,
2
Zivilprozeβrecht (1952), 149; VON CAEMMERER, FS zum hundertjährigen Bestsehen des Deutschen Juristentages II
(1960), 53.
21
Cf. BÖHM, Unterlassungsanspruch und Unterlassungsklage (1979), 9 ss. e 67 ss.; FRITZSCHE,
Unterlassungsanspruch und Unterlassungsklage (2000), 114 ss. e 535 ss.; WIESEN, Zivilprozeβrechtliche
Probleme der Unterlassungsklage (2005), 64 ss. e 89 ss.; na bibliografia mais antiga, cf. ELTZBACHER, Die
Unterlassungsklage, 150 SS.; LEHMANN, Die Unterlassungspflicht Im Bürgerlichen Recht (1906), 116 ss.
22
HENCKEL, AcP 174 (1974), 144, atribui a essa pretensão apenas a função de “remédio jurídico” ou de “meio de
protecção”.
23
Cf. ELTZBACHER, Die Unterlassungsklage, 5 SS.; WENGER, Institutionen des römischen Zivilprozessrechts (1925),
2
237 ss.; KASER/HACKL, Das römische Zivilprozessrecht (1996), 408 ss.
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WACH (1843-1926) ainda se referia a uma espécie de acções condenatórias em que os efeitos
da condenação se produziam com o caso julgado da decisão e dispensavam a execução,
exemplificando, entre outras, com a acção de suprimento do consentimento, a acção de revogação
de uma relação jurídica e a acção de divórcio24. Coube a V. SCHRUTKA-RECHTENSTAMM (1852-1918) –
curiosamente na recensão de um trabalho de WACH – cunhar a expressão Rechtsgestaltungsklage25,
mas foi LANGHEINEKEN (1865-1930) o primeiro a individualizar, com clareza, as acções constitutivas
(Bewirkungsklagen) perante as acções de simples apreciação e a as acções condenatórias 26. Tem
também interesse lembrar que os direitos potestativos ( Gestaltungsrechte) foram construídos por
SECKEL (1864-1924) como a “contrapartida de direito privado” das sentenças constitutivas 27.
Portanto, foi o conteúdo constitutivo de certas sentenças que ajudou a delimitar e a precisar o
âmbito dos direitos potestativos.

b) Os efeitos das acções constitutivas podem produzir-se ex tunc, isto é, retroactivamente


(como acontece, por exemplo, na acção de anulação de um acto jurídico: cf. art. 289.º, n.º 1, CC),
ou apenas ex nunc (como sucede, por exemplo, na acção de divórcio ou de separação de pessoas
e bens: cf. art. 1788.º, 1789.º e 1794º CC).
A doutrina alemã defende que as acções constitutivas produzem, além do efeito de caso
julgado material, um efeito constitutivo (Gestaltungswirkung), que se caracteriza pela sua eficácia
erga omnes28. É indiscutível que os efeitos das acções constitutivas têm de valer erga omnes: é
claro que a anulação ou dissolução do casamento não pode valer apenas entre os cônjuges ou que
a impugnação da paternidade não pode vincular somente as partes da acção. Discutível é, no
entanto, que esta vinculação erga omnes não possa ser obtida através do caso julgado, como, aliás,
é comprovado pelo disposto no art. 622.º quanto aos limites subjectivos do caso julgado das
sentenças proferidas nas acções relativas a estados pessoais.

2.5. Hipóteses duvidosas

Não deixam de se apresentar, nesta matéria das classificações das acções, alguns casos
duvidosos. Importa analisar os seguintes:

– A execução específica; verificadas certas condições, o contrato-promessa pode,


nos termos do art. 830.º CC, ser passível de “execução específica”, através de
“sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso”; esta execução
específica, apesar do seu nome, opera mediante uma acção constitutiva29;

24
WACH, Handbuch des Deutschen Civilprozessrechts I (1885), 12, afirmando que em tais acções “ es [handelt]
sich lediglich um Rechtsnormirung, nicht um Thatbestandsveränderung ”.
25
SCHRUTKA-RECHTENSTAMM, GrünhutsZ 16 (1889), 619; mais tarde, Hellwig, Anspruch und Klagrecht (1900), 120,
preferiu falar em “konstitutive Urteile” para designar aquelas sentenças “que, segundo o seu conteúdo,
pretendem produzir uma alteração na situação jurídica existente”.
26
LANGHEINEKEN, Der Urteilsanspruch (1899), 98 e 220 ss.; a categoria das acções constitutivas foi rejeitada por
alguma doutrina italiana: cf. MORTARA, Commentario del Codice e delle Leggi di Procedura Civile IV (s. d.), 62 ss.;
ROCCO, La sentenza civile/Studi (1906), 144 ss.
27
SECKEL, FG Richard Koch (1903), 210; sobre a relação das sentenças constitutivas com o direito material, cf.
HELLWIG, Anspruch und Klagrecht, 443 ss. e 467; KISCH, Beiträge zur Urteilslehre (1903), 45 ss.
28
Cf., por exemplo, ROSENBERG/SCHWAB/GOTTWALD, Zivilprozessrecht 17 (2010), 503 e 864.
29
Cf. KIPP, FG Rudolf v. Jhering (1892), 53 ss.; note-se que o actual § 894 ZPO impõe outra solução: cf.
GAUL/SCHILKEN/BECKER-EBERHARD, Zwangsvollstreckungsrecht 12 (2010), 1189.
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– A acção de investigação de paternidade ou de maternidade; a sentença proferida


nesta acção faz mais que declarar a filiação natural: ela constitui a filiação jurídica;
trata-se, por isso, de uma acção constitutiva;
– A acção de simples apreciação de direitos potestativos; embora possa ser
defendida a admissibilidade de uma acção de simples apreciação sobre um direito
potestativo30, parece ser de rejeitar tal admissibilidade; por exemplo: não é admissível
pedir a simples declaração de que certo contrato é anulável ou de que há razões para
requerer o divórcio, sem formular o correspondente pedido de anulação ou de
divórcio.
Algumas acções em que se pede a declaração de nulidade também podem levantar alguns
problemas. Pense-se, por exemplo, na acção de declaração de nulidade do registo de uma
hipoteca; na respectiva sentença não se trata de reconhecer um nihil, mas de “desconstituir” um
quid (cf. art. 687.º CC) Num contexto próximo deste, há quem fale de “sentenças declarativas
constitutivas”31.

3. Acções executivas
3.1. Generalidades

As acções executivas são aquelas em que o autor requer as providências adequadas à


realização coactiva de um dever de prestação (cf. art. 10.º, n.º 4). A palavra “execução”, quando
referida a uma sentença, tem dois sentidos possíveis:
– Um sentido lato, em que se abrange qualquer acto pelo qual se dá cumprimento à
sentença, seja através dos tribunais, seja voluntariamente (o réu condenado, por
exemplo, paga aquilo que o tribunal declarou dever), seja ainda através de outras
repartições e serviços do Estado, designadamente o registo;
– Um sentido restrito, pelo qual se exprime a acção executiva através da qual se dá à
sentença cumprimento coercivo judicial.

3.2. Título executivo

A acção executiva tem uma característica fundamental: toda a execução tem por base um
título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (art. 10.º, n.º 5). O tribunal
não pode tomar providências executivas de carácter material, sem primeiro se assegurar de que o
direito assim coercivamente satisfeito existe realmente. A lei, neste ponto capital, fixa por que
meios pode ser realizada esta demonstração da existência do direito. Tais meios traduzem-se
sempre em documentos e vêm taxativamente enumerados no art. 703.º, n.º 1: são as várias
espécies de título executivo constantes deste preceito.

3.3. Modalidades da execução

Nos termos do art. 10.º, n.º 6, a acção executiva apresenta três subespécies,
profundamente diferentes em termos de tramitação: a execução para pagamento de quantia certa

30 17
Cf. LENT, AcP 152 (1952/1953), 416; ROSENBERG/SCHWAB/GOTTWALD, Zivilprozessrecht , 495.
31
BETTERMANN, in Miscellany in Honor of Charalambos N. Fragistas (1967), 52.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/9

(cf. art. 724.º a 858.º), a execução para entrega de coisa certa (cf. art. 859.º a 867.º) e a execução
para prestação de facto (cf. art. 868.º a 877.º).

3.4. Formas de articulação

A uma acção declarativa não se segue necessariamente uma acção executiva. Se a acção
for julgada improcedente e se nela não for proferida nenhuma condenação, nada há a executar.
Mas, mesmo que a acção declarativa termine com uma sentença condenatória, também não se
segue a execução se aquela sentença for voluntariamente cumprida pela parte condenada.
Acresce que, considerado o elenco dos títulos executivos que consta do art. 703.º, n.º 1,
nem toda a execução pressupõe uma anterior acção declarativa. A execução pode iniciar-se com
base, por exemplo, num título de carácter negocial, como, por exemplo, uma escritura pública (cf.
art. 703.º, n.º 1, al. b)).

4. Acção popular
Em várias ordens jurídicas, multiplicam-se as formas de tutela colectiva de direitos: uma das
mais conhecidas é constituída pelas class actions norte-americanas, reguladas na rule 23
F.R.Civ.P32. No ordenamento jurídico português, na sequência do disposto no art. 52.º, n.º 3, CRP,
encontra-se prevista uma acção popular para a defesa dos interesses difusos, tanto na área civil,
como na área administrativa (cf. art. 12.º LPPAP).
A acção popular pode ser proposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e
políticos, bem como por qualquer associação ou fundação defensora do respectivo interesse
difuso (art. 2.º, n.º 1, e 3.º LPPAP). O autor popular representa todos os titulares do interesse
difuso (art. 14.º LPPAP), embora a estes seja reconhecido o direito de se auto-excluírem dessa
representação (art. 15.º, n.º 1, LPPAP). Na hipótese de a acção popular ser julgada procedente, o
caso julgado da respectiva sentença beneficia todos os titulares do interesse difuso, apenas com
excepção daqueles que tenham exercido o direito de auto-exclusão (art. 19.º, n.º 1, LPPAP).

5. Opção político-legislativa

Há dois tipos fundamentais de concepções gerais do processo civil:


– Uma concepção declarativista, que toma como paradigma o processo de
declaração e que traça, em atenção a ele, quadros e construções aos quais o processo
de execução se acomoda, necessariamente com dificuldades;
– Uma concepção executivista, que toma a execução como modelo processual e
em face da qual o processo declarativo fica sujeito a uma conceptologia que
dificilmente a ele se acomoda33.
Os Códigos de 1939 e de 1961 eram nitidamente declarativistas . Basta notar a
sistematização dos seus Livros I: o Título I, “Da acção em geral” (art. 1.º a 44.º CPC/1961), deveria,
em rigor, conter a acção executiva, acção a tão justo título como a declarativa (como, aliás, resulta
do art. 4.º, n.º 1, CPC/1961), mas esta só aparecia regulada no Título II, “Da acção executiva” (art.

32
Cf., por exemplo, GIDI, A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos (2007), 67 ss.
33
Cf. CASTRO MENDES, Direito de Acção Judicial (1959), 129 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

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45.º a 60.º CPC/1961). Isto demonstra que, naqueles Códigos, os quadros gerais do processo eram
concebidos sem procurar abranger a acção executiva. O Código de 2013 atenua esta característica:
o Livro I (“Da ação, das partes e do tribunal” (art. 1.º a 129.º) trata de aspectos respeitantes tanto à
acção declarativa e à acção executiva (apesar de, mostrando que a regra ainda é a acção declarativa,
se referir a “Disposições especiais sobre execuções” (art. 53.º a 58.º e 85.º a 90.º)). Porém, não há
dúvida de que, muitas vezes, a continua a exprimir-se em termos de deixar transparecer que só
pensou na acção e no processo declarativo: é o que sucede, por exemplo, com o art. 277.º, que, ao
tratar das causas de extinção da instância, não refere a causa de extinção da execução constante do
art. 849.º, n.º 1.
Daí que continue a ser muito duvidosa a aplicabilidade à acção executiva de algumas figuras
e disposições que a lei processual parece apresentar como gerais: basta citar, a título de exemplo, a
competência internacional regulada no art. 62.º e a reconvenção prevista no art. 266.º. Para apurar
se estes preceitos são aplicáveis à acção executiva é necessário determinar se, como estabelece o
art. 551.º, n.º 1, aquelas disposições se mostram compatíveis com a natureza daquela acção.

II. Classificação pelo critério de decisão


1. Jurisdição contenciosa e voluntária
A diferença entre os processos de jurisdição contenciosa ou litigiosa e os processos de
jurisdição voluntária ou graciosa é extremamente delicada e origina frequentes dúvidas 34. A
jurisdição voluntária assenta na possibilidade de um ou mais interesses particulares se
encontrarem em situações anómalas que, sem serem necessariamente de litígio, justificam que a
prossecução dos mesmos interesses seja condicionada pela intervenção de uma entidade
desinteressada35. Para fazer as vezes de tal entidade, a ordem jurídica recorre a uma entidade
decisória, que pode ser quer um tribunal, quer, em certos casos, o Ministério Público ou um
conservador do registo civil (cf. art. 2.º a 4.º e 5.º a 15.º DL 272/2001, de 13/10). Assim, mesmo
que o processo decorra inter volentes, a lei impõe a intervenção de um terceiro com função
decisória.
Os processos de jurisdição voluntária encontram-se regulados nos art. 986.º a 1081.º. Fora
do Código de Processo Civil importa referir os processos tutelares cíveis (art. 146.º a 210.º OTM) –
de que são exemplo o processo de adopção (cf. art. 162.º a 173.º-G OTM), o processo de
regulação do poder paternal (cf. art. 174.º a 185.º OTM) e ainda o processo de averiguação de
maternidade ou de paternidade (cf. art. 202.º a 207.º OTM) –, aos quais o art. 150.º OTM atribui
expressamente a qualidade de processos de jurisdição voluntária.

34
Sobre a distinção entre a iurisdictio contentiosa e a voluntaria no direito romano, cf. WACKE, ZRG (Röm. Abt.)
106 (1989), 180 ss.
35
Esta justificação é bastante antiga: cf., por exemplo, GLÜCK, Ausführliche Erläuterung der Pandecten nach
2
Hellfeld III/1 (1806), 92; H. W. PUCHTA, Handbuch des gerichtlichen Verfahrens in nichtstreitigen bürgerlichen
Rechtssachen, namentlich bei den sogenannten Handlungen der freiwilligen Gerichtsbarkeit, dann bei dem
Vormundschafts- und Hypothekenwesen I (1821), 3.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/11

2. Tipologia da jurisdição graciosa


2.1. Enunciado da tipologia

Os processos de jurisdição graciosa apresentam uma contextura muito variada, o que


explica, em grande medida, a dificuldade da elaboração de uma teoria geral da jurisdição graciosa.
Podem indicar-se três tipos principais de processos de jurisdição graciosa:

– Casos em que o objecto do processo é um interesse, ou grupo de interesses


independentes (recaindo sobre bens autónomos) de uma única pessoa, interesse ou
interesses cuja forma de prossecução é submetida às determinações da entidade
decisória; esta submissão pode resultar das circunstâncias especiais em que se
encontra o titular dos interesses – ausência (processo de nomeação de um curador
provisório, art. 1021.º a 1025.º), incapacidade (processos que se desenrolam perante o
conselho de família, art. 1016.º a 1020.º), inexistência ou indeterminação (processo de
declaração de aceitação ou repúdio da herança, art. 1039.º a 1041.º), processo para
escusa ou remoção do testamenteiro, art. 1042.º a 1044.º);
– Casos em que o objecto do processo de jurisdição voluntária é composto por
interesses de duas pessoas – mas interesses solidários e não em conflito; exemplo
típico é o da separação ou divórcio por mútuo consentimento (art. 994.º a 999.º);
neste grupo cabe também o processo de notificação para preferência (art. 1028.º a
1038.º);
– Casos de desarmonia de interesses, isto é, casos em que se entrecruzam
interesses contrapostos, mas não no mesmo plano – um deles tem necessariamente
uma posição de primazia perante o outro; é o que sucede com as providências
relativas aos filhos e aos cônjuges, art. 989.º a 993.º (os interesses dos pais ou de um
dos cônjuges são tomados em conta só em segundo plano perante os interesses dos
filhos ou do outro cônjuge) e com alguns dos processos relativos ao exercício de
direitos sociais: assim, no processo de destituição de administrador (de sociedade),
art. 1053.º a 1056.º, há a contar com o interesse do administrador e o da sociedade;
mas é claro que o primeiro não se pode fazer valer contra o segundo.
Estes são os principais tipos de situações que justificam a criação de um processo de
jurisdição voluntária para as resolver. Estas situações estão próximas das que as próprias partes
levam ao notariado e aos registos, a fim de ficar aí consignada, determinada e esclarecida uma
regulamentação dos interesses que é o produto da autonomia da vontade 36. A diferença
fundamental está em que, nestas últimas hipóteses, o notário e o conservador se ocupam de
situações normais de regulamentação de interesses (A quer transferir para B o direito ao imóvel x,
ou registar essa transferência), ao passo que o tribunal ou a entidade decisória perante a qual
decorre o processo de jurisdição voluntária se ocupam de situações anormais ou anómalas.

2.2. Características gerais

A distinção entre os processos graciosos e contenciosos tem importância sobretudo porque


aqueles processos de jurisdição graciosa são sujeitos a um regime peculiar, que diverge do
regime geral dos processos contenciosos em quatro pontos fundamentais. São eles os seguintes:
– Predomínio da conveniência sobre a legalidade, porque, “nas providências a tomar o
tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em
cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (art. 987.º); este critério
36 2
Cf. SCHMID, Lehrbuch des Deutschen Zivilprozessrechts (1906), 163 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/12

de decisão tem origem nas antigas concepções que atribuíam natureza administrativa
à jurisdição voluntária;
– Predomínio, quanto ao objecto do processo, do princípio inquisitório sobre o
dispositivo, dado que “o tribunal pode […] investigar livremente os factos” (art. 986.º,
n.º 2), não estando limitado aos factos articulados pelas partes, como sucede, em
regra, no processo contencioso (cf. art. 5.º, n.º 1) 37; assim, por exemplo, se, num
processo de suprimento do consentimento de um dos cônjuges para alienação de
imóveis em regime de comunhão (art. 1000.º; cf. art. 1682.º-A, n.º 1, e 1684.º, n.º 3,
CC), ninguém alegar que o requerente está crivado de dívidas e que isso pode
justificar a não alienação, mas a entidade decisória suspeitar do facto, pode investigá-
lo livremente e tomá-lo em conta para negar o suprimento que é requerido; esta
característica dos processos de jurisdição voluntária deve ser vista em ligação com o
critério de decisão: é porque o juiz decide segundo um critério de discricionariedade
que lhe são atribuídos poderes inquisitórios;
– Inadmissibilidade da interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das
resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade (art. 988.º,
n.º 2); actualizando a doutrina definida no Ass. STJ de 6/5/1965 38, há que entender
que, nos processos de jurisdição voluntária em que se faça a interpretação e
aplicação de preceitos legais em relação a determinadas questões de direito, as
respectivas decisões podem ser impugnadas através do recurso para uniformização
de jurisprudência (cf. art. 688.º, n.º 1, e 691.º);
– Livre modificabilidade das resoluções, dado que estas podem ser alteradas, sem
prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes
(art. 988.º, n.º 1).

3. Critério da distinção
3.1. Preliminares

Antigamente, era muito comum distinguir os dois tipos de jurisdição da seguinte forma: a
contenciosa desenrola-se entre pessoas que não estão de acordo, inter nolentes ou inter invitos; a
graciosa decorre entre pessoas que estão de acordo, inter volentes: Assim, o art. 1.º § 1.º,
CPC/1876 estabelecia: “O processo é contencioso quando mantém os direitos que são
contestados; gracioso, quando regula os actos jurídicos sem contestação de parte” 39.

37
Referindo-se a um officium iudiciis directorium próprio da jurisdição voluntária, por oposição ao officium
iudiciis suppletorium próprio da jurisdição contenciosa, cf. W. H. PUCHTA, Über die Grenzen des Richteramts in
bürgerlichen Rechtssachen (1819), 16.
38
DG, I, de 28/4/1965 = BMJ 146, 325.
39
Costuma fazer-se remontar os termos desta distinção a MARCIANUS, D. 1.16.2 pr.: Omnes proconsules statin
quam urbem egressi fuerint habent iurisdictionen, sed non contentiosam, sed voluntariam ; para uma parte da
doutrina, na jurisdição voluntária não há litígio entre as partes: cf., por exemplo, CARNELUTTI, Diritto e processo
(1958), 62, considerando que a jurisdição voluntaria é “tipicamente un processo senza lite”.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/13

No entanto, não é a verificação ou não verificação de controvérsia (isto é, de um conflito de


opiniões), nem sequer a sua possibilidade ou impossibilidade, que caracteriza os dois tipos de
jurisdição e processo. Pode não haver controvérsia em processo contencioso, se o réu não
contestar ou até confessar logo o pedido; pode nem ser admitida a controvérsia em processo
contencioso, em certos casos excepcionais em que se dispensa a audição prévia da contraparte
(cf. art. 3.º, n.º 2, e, por exemplo, art. 378.º). Paralelamente, apesar de haver processos graciosos
que excluem a controvérsia – como sucede na separação ou divórcio por mútuo consentimento
(cf. art. 994.º a 999.º) –, outros há em que ela se pode verificar: assim, por exemplo, se um dos
cônjuges quiser pedir ao tribunal o suprimento do consentimento do outro cônjuge para vender um
bem imóvel (art. 1682.º-A, n.º 1, e 1684.º, n.º 3, CC), intenta um processo de jurisdição voluntária
no qual pode haver contestação da parte demandada (art. 1000.º, n.º 1 e 2); a possibilidade de
contestação verifica-se, aliás, em muitos outros processos de jurisdição voluntária (cf., por
exemplo, art. 990.º, n.º 2, 993.º, n.º 3, 1002.º, n.º 2, 1014.º, n.º 2, 1021.º, n.º 2, 1027.º, n.º 2,
1046.º, n.º 1, 1048.º, n.º 2, 1059.º, n.º 2, e 1070.º, n.º 2).

3.2. Critério proposto

a) O art. 987.º – apesar de ser um preceito que coloca dificuldades interpretativas – contém
o critério da distinção entre os processos graciosos e contenciosos: são processos de jurisdição
voluntária, aqueles em que as resoluções são tomadas segundo critérios de conveniência e
oportunidade. Dito de outro modo: são processos de jurisdição voluntária aqueles em que o critério
de decisão é a discricionariedade. Segundo este critério, o processo especial de tutela da
personalidade (cf. art. 878.º a 880.º) também é um processo de jurisdição voluntária, porque,
independentemente de qualquer pedido relativo à responsabilidade civil, o autor pode requerer as
providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça
ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida (art. 70.º, n.º 2, CC).
O referido critério tem de ser entendido, no entanto, em termos cautelosos. Poder-se-ia
afirmar que a lei determina que, nos processos graciosos, não se deve aplicar tanto o direito,
como critérios de conveniência e oportunidade. Esta ideia é, no entanto, algo simplista e, por isso,
o preceito do art. 987.º quadra mal a diversas situações que se podem configurar: por exemplo, o
juiz ou o conservador do registo civil não pode decretar o divórcio ou a separação por mútuo
consentimento sem se verificarem os requisitos dos art. 1775.º, n.º 1, e 1794.º CC, justificando
essa medida pelo facto de a achar “conveniente e oportuna”. Uma interpretação literal do art. 987.º
negaria praticamente a jurisdicidade (dado que nega a imperatividade em face do mais importante
órgão de aplicação do direito, o tribunal) a vastas zonas de direito privado – sobretudo de direito
da família e de direito comercial – que se actuam através de processos graciosos. A relevância do
art. 987.º não pode ser tão profunda.
A interpretação a dar a esta disposição é outra. O processo de jurisdição voluntária termina
por resolução (art. 988.º) ou sentença (art. 986.º, n.º 3). Ora o art. 987.º não diz que o tribunal de
jurisdição graciosa escapa ao império da lei sempre que profere quaisquer resoluções ou
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II/14

sentenças, mas só quando toma providências. Este termo dá uma ideia geral de decisão tomada
para certo fim, dentro de uma medida de prudente arbítrio concedida a quem tem de a tomar. Há
condicionalismos face aos quais a lei só reconhece uma solução como admitida e lícita: por
exemplo, se os cônjuges não acordarem sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles
careça, o exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos menores e o destino
da casa de morada de família, eles não se podem divorciar ou separar por mútuo consentimento
(art. 994.º; cf. art. 1778.º CC). Em face destas regras imperativas (preceptivas ou proibitivas) e
concretas, a entidade decisória está vinculada à solução legal, sem lhe aproveitar o art. 987.º.
Pode suceder, porém, que a lei tenha um sentido permissivo ou genérico: então funciona o
art. 987.º. Assim, se se verificar o condicionalismo do art. 994.º, a lei não impõe o divórcio:
permite-o, sendo possível quer a persistência do casamento, quer o divórcio. Acresce ainda que
há casos em que o conteúdo da decisão fica, em larga medida, na dependência da entidade
decisória, pelo que, de novo, existem várias alternativas de solução, todas elas possíveis e
jurídicas: por exemplo, na fixação judicial do prazo (art. 1026.º e 1027.º), o juiz pode fixar,
consoante o caso e dentro do pedido pelo requerente, um, dois ou três meses; no caso da tutela
da personalidade, a determinação da medida adequada não é feita pela lei, mas deixada às
circunstâncias do caso, naturalmente sem extravasar daquilo que o requerente solicitar (art. 878.º;
cf. art. 70.º a 81.º CC). É quanto à escolha entre vários consequentes (todos eles) permitidos que
o art. 987.º determina não dever a entidade decisória preocupar-se com razões legais (integrando
uma pretensa lacuna), mas antes julgar por conveniência e oportunidade. Neste caso, aquela
entidade pode negar, em nome destas razões, o divórcio ou a separação por mútuo
consentimento e pode atender a essas razões para fixar o prazo ou para tutelar a personalidade.
É assim também quando a entidade decisória deva aplicar alguns conceitos indeterminados
que se encontram tanto na previsão da regra (por exemplo, “dentro do período que se julgue
razoável”, art. 1218.º, n.º 2, CC), como na sua estatuição (“providências adequadas às
circunstâncias do caso”, art. 70.º, n.º 2, CC, com referência aos art. 878.º a 880.º). Na subsunção de
casos concretos a esses conceitos indeterminados e na sua aplicação a esses casos pode
igualmente aquela entidade deixar-se guiar por critérios de conveniência e de oportunidade, ao
abrigo do art. 987.º. Muitas vezes, aliás, é a própria lei que inculca remeter-se uma determinada
decisão ao prudente arbítrio do juiz (cf., por exemplo, art. 1901.º, n.º 2, e 2007.º, n.º 1, CC).

b) Atendendo a que o processo especial de tutela da personalidade (cf. art. 878.º a 880.º)
não se encontra integrado nos processos de jurisdição voluntária (cf. art. 986.º a 1081.º), a sua
inclusão doutrinária nestes processos atendendo ao critério de decisão que nele pode ser utilizado
– que é a adequação das providências às circunstâncias do caso (cf. art. 70.º, n.º 2, CC) – não
permite aplicar (aliás, de forma discutível) àquele processo as características gerais dos processos
graciosos (cf. art. 986.º a 988.º). Em todo o caso, aquele critério de decisão não permite a
interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, dado que a revista exige, como
fundamento específico, a alegação da violação de lei substantiva (cf. art. 674.º, n.º 1, al. a)).
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3.3. Natureza jurídica

Apesar de nos processos de jurisdição voluntária o critério de decisão ser a


discricionariedade e de esta ser tipicamente um critério de decisão característico da área
administrativa, não se pode concluir – aliás, contra uma antiga e importante corrente doutrinária –
que aquela jurisdição tenha natureza administrativa 40. Contra esta caracterização vale a
circunstância de a ponderação do tribunal não incidir sobre o interesse público, mas sobre o
interesse privado de cada um dos particulares41. Por exemplo: quando o tribunal decide acerca da
atribuição da casa de morada de família após o divórcio (cf. art. 990.º, n.º 1 e 3), o que releva é o
interesse de cada um dos ex-cônjuges na permanência nessa casa.
A utilização do critério de decisão para distinguir a jurisdição voluntária da jurisdição
contenciosa permite concluir que pertencem materialmente à jurisdição voluntária aqueles
procedimentos que, por virtude de movimentos de desjudicialização, passaram a ser da
competência do Ministério Público (cf. art. 2.º e 4.ª DL 272/2001, de 13/10) ou dos conservadores
do registo civil (cf. art. 5.º e 6.º, n.º 1, DL 272/2001).

3.4. Consequências da distinção

As especialidades e características da jurisdição voluntária permitem concluir que ela


constitui, em conjunto com o processo declarativo e o processo executivo, um verdadeiro tertium
genus do processo civil.

III. Classificação pela forma


1. Processo comum e especial
Os processos classificam-se, quanto à forma, em especiais e comuns (art. 546.º, n.º 1) 42. O
processo especial é aquele que se aplica aos casos expressamente designados na lei e o
processo comum o que é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial
(art. 546.º, n.º 2). Por conseguinte, o processo especial é a forma de processo cujo âmbito de
aplicação está definido na lei; o processo comum, a forma de processo cujo âmbito de aplicação
se alarga a todos os casos para que não esteja previsto processo especial.

40
Negando o carácter jurisdicional à jurisdição voluntária, cf. GLÜCK, Ausführliche Erläuterung der Pandecten
2
nach Hellfeld III/1, 93, incluindo-a, segundo a terminologia da época, na Policeygewalt; WACH, Handbuch des
Deutschen Civilprozessrechts I, 49 ss.; HELLWIG, System des Deutschen Zivilprozessrechts I (1912), 55;
CALAMANDREI, Rdcom 15 (1917), 780 s., com o argumento de que, quando a lei tem o juiz por destinatário
directo, isto é, quando lhe concede um poder discricionário de decisão, “trata-se sempre de actividade
pertencente à função administrativa”; CHIOVENDA, Principii di diritto processuale civile 4, 314 s.; CHIOVENDA,
Istituzioni di diritto processuale civile II/1 (1934), 14; ALLORIO, Rtdpc 2 (1948), 487 ss., concebendo a jurisdição
voluntária como uma “actividade administrativa desenvolvida por órgãos jurisdicionais” (para uma crítica desta
orientação, cf. MICHELI, in Scritti giuridici in onore di Francesco Carnelutti II (1950), 381 ss.); SMID,
Rechtsprechung – Zur Unterscheidung von Rechtsfürsorge und Prozeβ (1990), 208, entendendo que a jurisdição
voluntária é “administração material”.
41
Cf. ZANOBINI, Rdpubb 10 (1918-I), 183 s.
42 2
Sobre o sentido da forma em processo cf. SANTOS BEDAQUE, Efectividade do Processo e Técnica Processual
(2007), 91 ss.
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Para se determinar se, em certo caso, se deve usar o processo especial ou o processo
comum, deve utilizar-se o seguinte critério: vê-se no Código de Processo Civil – sobretudo no
Livro V (art. 878.º a 1081.º) – e em leis avulsas se algum dos tipos de processos especiais aí
contemplados abrange, no seu âmbito de aplicação, a hipótese em causa; em caso negati vo,
recorre-se ao processo comum.

2. Regime do processo especial


Nos termos do art. 549.º, n.º 1, os processos declarativos especiais regulam-se, antes do
mais, pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo
quanto não estiver regulado naquelas disposições, pelo que se encontra estabelecido para o
processo comum.

3. Processo de declaração
3.1. Generalidades

O processo comum de declaração segue a forma única (art. 548.º).


O actual processo civil português não comporta, no âmbito do processo declarativo, uma
forma sumária. O processo sumário desempenhou um relevante papel na história do processo civil,
que importa recordar43: algumas das suas modalidades distinguiam-se do processo ordinário
apenas pela sua formalidade; outras divergiam do processo ordinário por uma menor exigência no
grau de prova e no âmbito do conhecimento do tribunal 44. O chamado “processo sumário
indeterminado” ou “regular” era um processo de cognição plena que podia ser utilizado para
qualquer forma de tutela (daí o seu carácter indeterminado), pois era apenas uma simplificação
formal do processo ordinário; a sua origem encontra-se na bula Saepe contingit ou Clementina
Saepe (1314 (?)), na qual se mandava que os processos fossem tramitados simpliciter et de plano,
ac sine strepitu et figura iudicii (Clementina 5.11.2; quanto ao antigo direito português, cf. OA 3.24
pr.; OM 1.44.69; OF 1.65.7) 45. O designado “processo sumário determinado” ou “irregular” era um
processo de cognição limitada e destinava-se a obter determinadas formas de tutela 46; a relação

43
Cf., por exemplo, ENDEMANN, Das deutsche Prozeβrecht (1868), 1026 ss.; MENGER, System des
oesterreichischen Civilprocessrechts I (1876), 29 ss.; WACH, Handbuch des Deutschen Civilprozessrechts I
(1885), 40 ss.
44
Já referindo esta dualidade, cf. DURANDI, Speculum Juris cum Ioan. Andreae Baldi II (Francoforti 1612), 146;
4
mais tarde, cf. CLAPROTH’s Einleitung in sämtliche summarische Processe (Ed. WILLICH) (1808), 23 ss.
45
Já antes, FASOLUS, De sumariis cognitionibus, in WAHRMUND (Ed.), Quellen zur Geschichte des römisch-
kanonischen Prozesses im Mittelalter IV/V (1928), 9, afirmava que de plano significa apenas sine scriptura vel
libello (cf. NÖRR, ZRG (Kan. Abt.) 112 (1995), 5 ss.); sobre a matéria, cf. SALVIOLI, Storia della procedura civile e
criminale, in DEL GIUDICE (Ed.), Storia del Diritto Italiano III/2 (1927), 337 ss.; FAIRÉN GUILLÉN, El Juicio Ordinario y
Plenarios Rapidos (1953), 41 ss.; NÖRR, Romanisch-kanonisches Prozessrecht (2012), 211 ss.; em particular
sobre a Clementina, cf. também Nörr, in VAN RHEE (Ed.), The Law´s Delay/Essays on Undue Delay in Civil
Litigation (2004), 203 ss.; DESCAMPS, in MAUSEN/CONDORELLI/ROUMY/SCHMOECKEL (Eds.), Der Einfluss der Kanonistik
auf die Europäische Rechtskultur IV (2014), 45 ss.
46
Cf. GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen Prozesses IV (1803), 112 s.; DANZ, Grundsätze der
summarischen Prozesse 3 (Ed. GÖNNER) (1806), 3 ss.; LINDE, Lehrbuch des deutschen gemeinen Civilprozesses
(1825), 426; SCHERING, Der Mandats-summarische und Bagatell-Prozeß nach der Verordnung vom 1. Juni 1833
und den späteren darüber ergangenen Bestimmungen (1843), 180 s.; em referência ao processo documental ou
cambiário, cf. CHIOVENDA, Rdcom 15 (1917), 623 ss. = CHIOVENDA, Saggi di diritto processuale civile I (1930), 130
ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/17

entre a forma sumária, uma semiplena cognitio e uma semiplena probatio foi estabelecida por Azo
(1150-1230)47, tendo-se a doutrina posterior dividido entre as orientações que encontravam neste
processo sumário uma prima-facie-Cognition decorrente da limitação do objecto e dos meios de
prova48 e as orientações que baseavam a cognição sumária ( summatim cognoscere) num juízo de
probabilidade49. No actual direito português, esta característica só se encontra nos procedimentos
cautelares (cf. art. 384.º, n.º 1, e 387.º, n.º 1) 50.

3.2. Âmbito de aplicação

O âmbito de aplicação do processo declarativo comum é afectado por processos especiais


e procedimentos (naturalmente prevalecentes: cf. art. 546.º, n.º 2 2.ª parte). São eles os seguintes:
– A acção declarativa especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias
emergentes de contratos (aprovada pelo art. 1.º DL 269/98, de 1/9), que se destina a
exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor
não superior a € 15000 (art. 1.º a 5.º RPOP);
– A injunção (também aprovada pelo art. 1.º DL 269/98); a injunção visa conferir força
executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias
emergentes de contratos de valor não superior a € 15000 (art. 7.º a 21.º RPOP); se o
incumprimento respeitar a uma transacção comercial, o credor tem direito a recorrer à
injunção, independentemente do valor da causa (art. 7.º, n.º 1, DL 32/2003, de 17/2);
– O regime especial relativo aos atrasos de pagamento em transacções comerciais,
constante do DL 32/2003, de 17/2;
– O procedimento europeu de injunção de pagamento, regido pelo Reg. 1896/2006;
– O processo europeu para acções de pequeno montante, regido pelo Reg. 861/2007.

3.3. Regimes especiais

a) Apesar de todo o processo declarativo comum seguir uma única forma (cf. art. 548.º), há
algumas especialidades no respectivo procedimento em função do valor da causa. Assim:
– Nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação a tramitação
posterior à fase dos articulados é distinta da tramitação das acções cujo valor exceda
esse quantitativo (art. 597.º);
– Nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, a perícia é
realizada por um único perito (art. 468.º, n.º 5);
47
Summa AZONIS (Venetis 1566), III.1.19: Sed in casibus semiplena, vel summaria sit cognitio :
48
Cf. BRIEGLEB, Summatin cognoscere quid et quale fuerit apud Romanos (1843), 7 s.; BRIEGLEB, Einleitung in die
Theorie der summarischen Processe (1859), 169 ss.; WACH, Der Arrestprocess in seiner geschichtlichen
Entwicklung I (1868), 130 ss.
49
LINDE, Lehrbuch des deutschen gemeinen Civilprozesses, 428; SAVIGNY, ZGR 6 (1828), 229 ss.; WETZELL, System
des ordentlichen Civilprocesses 3, 302 ss.
50
Cf., na história dogmática do instituto, BRIEGLEB, Einleitung in die Theorie der summarischen Processe, 343 ss.;
diferentemente, WACH, Der Arrestprozess in seiner geschichtlichen Entwicklung I, 166 ss., criticando a
orientação de que, em comparação com o processo ordinário, no processo sumário se conhece de um aliud ius
actoris; cf. também WACH, FG Bernhard Windscheid (1888), 89 ss. = WACH, Der Feststellungsanspruch (Leipzig
1888), 18 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/18

– Nas acções de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, o limite do
número de testemunhas é reduzido para metade do que é admissível nas causas de
valor superior a essa alçada (art. 511.º, n.º 1 2.ª parte);
– Nas acções de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, os períodos de
tempo previstos para as alegações orais dos advogados e respectivas réplicas são
reduzidos para metade daqueles que valem para as demais acções (art. 604.º, n.º 5
2.ª parte).
b) O entendimento destes regimes depende da análise de duas noções: a de valor da causa
e a de alçada do tribunal.

3.4. Valor da causa

a) O art. 296.º, n.º 1, estabelece que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo,
expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido; nenhuma
petição inicial é recebida se dela não constar a indicação do valor da causa (cf. art. 558.º, al. e)).
Todo o processo tem um valor em dinheiro, determinado quer naturalmente pela avaliação dos
interesses em causa (segundo as regras dos art. 297.º a 310.º), quer, quando se trate de
interesses não patrimoniais e não avaliáveis em dinheiro, artificialmente (segundo a regra do art.
303.º).
O valor em referência é o valor processual, havendo ainda o valor tributário, em regra
coincidente com aquele (cf. art. 11.º RCP), mas que pode divergir daquele valor processual por ser
fixado segundo as regras que constam dos art. 11.º e 12.º RCP. O valor processual interessa para
determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da
causa com a alçada do tribunal (art. 296.º, n.º 2); o valor tributário interessa para efeito de custas
(art. 296.º, n.º 3).

b) Os mais importantes critérios de aferição do valor da causa são os seguintes:


– Se a acção tiver por objecto qualquer quantia certa em dinheiro, o valor da causa
corresponde a esse montante (art. 297.º, n.º 1 1.ª parte);
– Se a acção tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor
desta determina o valor da causa (art. 302.º, n.º 1);
– Se a acção versar sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais, o valor
da causa é o equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01 (art. 303.º, n.º 1);
– Se a acção tiver por objecto a apreciação da existência, validade, cumprimento,
modificação ou resolução de um acto jurídico, o valor da causa é aferido pelo valor do
acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes (art. 301.º, n.º 1);
– Se na acção se pedirem prestações vencidas e prestações vincendas, o valor da
causa é determinado pelo valor de umas e de outras (art. 300.º, n.º 1);
– Nas acções de alimentos definitivos e nas de contribuição para despesas domésticas,
o valor da causa é o quíntuplo da anuidade correspondente ao pedido (art. 298.º, n.º
3);
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/19

– Nos outros processos relativos a prestações periódicas tem-se em consideração o


valor das prestações relativas a um ano multiplicado por 20 ou pelo número de anos
que a decisão abranger, se for inferior; caso seja impossível determinar o número de
anos, o valor é o da alçada da Relação e mais 0,01€ (art. 300.º, n.º 2);
– Nos processos referentes a contratos de locação financeira, o valor é o equivalente
ao da soma das prestações em dívida até ao fim do contrato acrescidos dos juros
moratórios vencidos (art. 298.º, n.º 2);
– Nas acções de despejo, o valor da causa é o da renda anual, acrescido das rendas
em dívida e da indemnização requerida (art. 298.º, n.º 1).

c) Se, em conjunto com o pedido de condenação na prestação de um tacto infungível, for


pedida a condenação do demandado no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória (cf.
art. 829.º-A, n.º 1, CC), este pedido é irrelevante para a fixação do valor da causa, dado que, no
momento da sua formulação, o pagamento daquela sanção é apenas eventual.

3.4. Alçada do tribunal

A base da organização judiciária dos tribunais judiciais é o tribunal de 1.ª instância, que é,
em regra, um tribunal de comarca (cf. art. 210.º, n.º 3, CRP; art. 29.º, n.º 3, e 79.º LOSJ); além dos
tribunais de 1.ª instância, existem tribunais superiores – os tribunais da Relação (cf. art. 210.º, n.º
4, CRP; art. 29.º, n.º 2, e 67.º, n.º 1, LOSJ) e o Supremo Tribunal de Justiça (cf. art. 210.º, n.º 1,
CRP; art. 29.º, n.º 1, al. a), e 31.º, n.º 1, LOSJ). Efeito fundamental desta hierarquia é a
possibilidade de se recorrer para um tribunal mais alto na escala hierárquica das decisões de um
tribunal menos situado nessa escala. Dos tribunais de 1.ª instância, em tese geral, pode
recorrer-se para os tribunais da Relação e destes para o Supremo Tribunal de Justiça.
A lei não permite sempre a interposição de recurso. Muitas vezes, a lei estabelece um limite
até ao qual o tribunal menos categorizado julga sem recurso, só cabendo recurso para o tribunal
mais elevado em categoria a partir desse limite (cf. art. 629.º, n.º 1). Ao limite até ao qual certo
tribunal julga sem recurso chama-se alçada desse tribunal. Em matéria civil, a alçada dos
Tribunais da Relação é de € 30000 e a dos tribunais de 1.ª instância é de € 5000 (art. 44.º, n.º 1,
LOSJ).

4. Processo de execução
5.1. Generalidades

O fim da execução, para efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de


quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, positivo ou negativo (art.
10.º, n.º 6). O processo executivo também pode ser comum ou especial (art. 546.º, n.º 1): o
processo comum para pagamento de quantia certa pode ser ordinário ou sumário (art. 550.º, n.º
1), mas o processo comum para entrega de coisa certa e para prestação de facto segue forma
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/20

única (art. 550.º, n.º 4). Existe, assim, uma pluralidade de formas de execução, que resulta da
combinação de dois critérios distintos:
– Um dos critérios atende ao fim da execução e distingue entre execuções para
pagamento de quantia certa, para entrega de coisa certa e para prestação de facto
(cf. art. 10.º, n.º 6); ao contrário do que sucede na classificação pelo fim do processo
declarativo em acções de simples apreciação, de condenação e constitutivas (cf. art.
10.º, n.º 2), a classificação das execuções pelo fim tem profunda repercussão na
marcha por que se desenvolvem (cf. art. 724.º a 858.º, 859.º a 867.º e 868.º a 877.º).
– O outro critério atende à forma da execução para pagamento de quantia certa e está
contido no art. 550.º, n.º 1; em regra, aplica-se o processo sumário quando o título
executivo fornece algumas garantias da existência do dever de prestar pelo devedor
(cf. art. 550.º, n.º 2 e 3).

5.2. Regime aplicável

Ao processo de execução são subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações,


as disposições reguladoras do processo de declaração que se mostrem compatíveis com a
natureza da acção executiva (art. 551.º. n.º 1). Como a execução para pagamento de quantia certa
é a execução paradigmática, à execução para entrega de coisa certa e para prestação de facto
são aplicáveis, na parte em que o puderem ser, as disposições relativas àquela primeira execução
(art. 551.º, n.º 2).

§ 8.º Aplicação da lei processual civil

I. Interpretação e integração
O grande princípio geral que domina a matéria da interpretação e integração do direito
processual civil é o de que este ramo de direito se integra quase completamente, com pequenas
diferenças, na teoria geral do direito. Designadamente, são aplicáveis ao processo civil as
soluções que, naquela teoria, forem dadas aos problemas levantados pela interpretação e
integração da lei. Em especial, as disposições comummente entendidas como de teoria geral
sobre o assunto – maxime, as constantes dos art. 9.º e 10.º CC – são plenamente aplicáveis em
processo civil. Apenas importa acrescentar que, atendendo à função instrumental do processo
civil, a interpretação das regras processuais civis deve facilitar a tutela das situações decorrentes
do direito material51.
Desta ordem de ideias resulta ainda uma consequência de interesse: podem considerar-se
como regras de teoria geral do direito certas regras que despontaram no direito processual sobre a
interpretação e a integração da lei. É o caso designadamente do art. 8.º CC, que versa sobre a
obrigação de julgar e o dever de obediência à lei.

51
Cf. SCHUMANN, FS Karl Larenz (München 1983), 571 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/21

II. Aplicação no tempo


1. Generalidades
O princípio tributariedade em face da teoria geral do direito também domina a solução do
problema da aplicação da lei processual no tempo. Este problema é, porém, mais melindroso:
antes do mais, porque a própria teoria geral do direito ainda lhe não deu uma resposta isenta de
dúvidas; depois, porque crê-se que, neste ponto, o direito processual civil contém uma regra
peculiar – a da aplicação imediata da lei nova.

2. Concretização
2.1. Regime geral

a) Em regra, todas as leis são de aplicação imediata (cf. art. 12.º, n.º 1 1.ª parte, CC), pois
que todas as leis entram em vigor para se aplicarem de imediato às situações que elas abrangem.
As leis novas devem aplicar-se, todavia, com respeito do domínio regido pela lei antiga, ou seja,
não devem aplicar-se de forma retroactiva (art. 12.º, n.º 1 2.ª parte, CC). Estes princípios são
válidos na teoria geral do direito e válidos, precisamente nos mesmos termos, em direito
processual civil.
Como explica BAPTISTA MACHADO (1927-1991): “O princípio da aplicação imediata das leis
processuais tem um duplo sentido. Num primeiro sentido, significa que se não tem que atender à
lei processual vigente ao tempo em que se constituiu ou extinguiu o direito ou relação jurídica
litigada, mas à lei vigente ao tempo do processo. […] Para justificar o princípio nesta primeira
acepção basta salientar a natureza instrumental das normas processuais.
Num segundo sentido, significa que a nova lei processual se aplica imediatamente aos
processos pendentes, pelo que respeita aos actos que de futuro neles hajam de ser praticados. Aqui
o termo de referência é a SJ [situação jurídica] processual em curso, enquanto SJ complexa de
formação sucessiva. Neste sentido as leis processuais são de aplicação imediata justamente por
serem as leis em vigor ao tempo da realização dos actos a que se referem. Como, porém, o
processo é uma SJ em curso, bem pode acontecer que a aplicação da LN possa, indirectamente, e SR
[sem retroactividade], inutilizar actos processuais passados” 52.

b) A ideia expressa no art. 12.º CC é a seguinte: deve ver-se com atenção que ponto regula
a lei nova; entende-se, em princípio, que esse ponto é regulado pela lei nova só do momento da
sua entrada em vigor em diante. Se este ponto for um facto ou um efeito jurídico de um facto, a lei
nova só se aplica aos factos posteriores, respeitando-se plenamente os factos anteriores em todos
os seus efeitos (cf. art. 12.º, n.º 1, CC); mas se a lei nova regular directamente efeitos jurídicos,
aplica-se aos efeitos que existam após a sua entrada em vigor, ainda que produzidos por factos
passados (cf. art. 12.º, n.º 2 2.ª parte, CC) 53.
A regra da aplicação imediata da lei processual nova é justificada por ALBERTO DOS REIS (1875-
1955) desta maneira: “O princípio que domina a aplicação das leis de processo quanto ao tempo é
este: as leis de processo são, pela sua própria natureza, de aplicação imediata. Isto quer dizer que a
lei nova se aplica a todos os actos que se realizarem a partir do momento em que ela entre em
vigor.
52
BAPTISTA MACHADO, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil (1968), 273 n. 210.
53
Para maiores desenvolvimentos, cf. TEIXEIRA DE SOUSA, CDP 18 (2007), 3 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/22

O princípio que fica enunciado deriva […] da própria natureza das leis de processo e
justifica-se, qualquer que seja a doutrina que se adopte quanto ao problema geral da
retroactividade das leis. As leis de processo referem-se, em última análise, ao exercício duma das
funções do Estado – a função jurisdicional ou judiciária; quando se publica uma lei nova, isso
significa que o Estado considera a lei anterior imperfeita e defeituosa para a administração da
justiça ou para o regular funcionamento do poder judicial. Tanto basta para que a lei nova deva
aplicar-se imediatamente”54.
O princípio da aplicabilidade imediata da lei processual deriva, talvez subconscientemente,
da antiga consideração do processo como uma sucessão de actos e de formalidades e está pensado
fundamentalmente para os actos e as formalidades que devem ser praticados em acções que estão
pendentes no momento da entrada em vigor da lei nova. No entanto, os actos processuais são mais
do que forma e nem sempre são praticados num processo pendente, pelo que o princípio da
aplicabilidade imediata da lei nova é insuficiente para dirimir o problema da aplicação no tempo das
leis que os regem e disciplinam.

2.2. Actos processuais

Em processo, importa considerar não só os actos necessários ao desenvolvimento da


instância, mas também os efeitos processuais de actos processuais ou extraprocessuais 55. Quanto
àqueles actos, a regra é a aplicação imediata da lei nova aos processos pendentes (art. 12.º, n.º 1
1.ª parte, CC), o que implica a observância do princípio tempus regit actum na sua dupla vertente:
a de que os actos processuais são regidos pela lei vigente no momento da sua realização e a de
que, sem a retroactividade da lei nova, os actos praticados no domínio da lei antiga permanecem
válidos56.
Quanto aos efeitos de actos, há que aplicar igualmente as regras de direito transitório formal
que constam do art. 12.º CC. Assim, por exemplo: (i): suponha-se que a lei nova afasta os títulos
de crédito do campo dos títulos executivos (cf. art. 703.º, n.º 1, al. c)); pode fazê-lo, incidindo a sua
regulamentação sobre a criação do título – hipótese em que os títulos de crédito já existentes
permanecem exequíveis (art. 12.º, n.º 1, CC) –, ou sobre a própria exequibilidade dos títulos de
crédito, retirando-lhes a qualidade de títulos executivos – caso em que, mesmo os documentos
existentes, perdem a sua exequibilidade (art. 12.º, n.º 2 2.ª parte, CC); (ii) admita-se que a lei
nova, modificando o disposto no art. 279.º, n.º 2, aumenta as condições em que se mantêm os
efeitos civis derivados da causa em que se verificou a absolvição da instância; a lei nova só é
aplicável às absolvições da instância proferidas após a sua entrada em vigor (art. 12.º, n.º 2 1.ª
parte, CC).

54 2
ALBERTO DOS REIS, Processo ordinário e sumário I (1928), 32.
55
Cf. SIEG, ZZP 65 (1952), 254.
56
Cf. SIEG, ZZP 65 (1952), 256 e 259; SCHWEIGER, Intertemporales Zivilprozessrecht (2011), 419; propondo, em
alternativa, a regra tempus regit processum e, portanto, a aplicação da lei nova somente a processos (e não a
actos) posteriores à sua entrada em vigor, cf. CAPONI, Rdp 61 (2006), 456 ss.; sobre o problema da influência da
modificação da jurisprudência nos actos anteriormente praticados de acordo com a jurisprudência então
dominante, cf. COMOGLIO, Rtdpc 67 (2013), 525 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/23

2.3. Pressupostos processuais

Os pressupostos processuais terão de estar verificados até ao termo da audiência de


discussão e julgamento (cf. art. 611.º, n.º 1), pelo que eles são apreciados segundo a lei vigente
no momento da decisão do tribunal sobre o seu preenchimento 57. Há, no entanto, uma excepção,
constituída pela chamada perpetuatio fori: a competência fixa-se no momento em que a acção se
propõe (art. 38.º, n.º 1, LOSJ), sendo, em regra, irrelevantes quaisquer modificações legislativas
que ocorram posteriormente a esse momento (art. 38.º, n.º 2, LOSJ). Portanto, a lei nova sobre a
competência do tribunal não é, em regra, de aplicação imediata às acções pendentes.
A protecção da confiança das partes justifica que a expectativa do recurso não seja
frustrada por um aumento da alçada do tribunal durante a pendência da causa. É por isso que o
art. 44.º, n.º 3, LOSJ estabelece que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é
regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção. Isto significa que um recurso
que era admissível no momento da propositura da acção não deixa de ser admissível se, durante
a pendência da mesma, o montante da alçada aumentar e se, por esse motivo, o valor da causa
passar a ser inferior ao montante da alçada (cf. art. 629.º, n.º 1) 58.

2.4. Negócios processuais

À validade dos negócios processuais aplica-se, sem qualquer dificuldade, o disposto no art.
12.º, n.º 2 1.ª parte, CC: a validade, substancial ou formal, desses negócios é regulada, em regra,
pelo regime vigente no momento da sua celebração.

2.5. Direito transitório

Todas as teorias sobre a aplicação da lei no tempo ressalvam, antes de considerações gerais,
que a regra jurídica pode vir dar solução legal aos problemas dessa aplicação, através de
disposições transitórias, podendo fazê-lo por duas formas: por disposições transitórias, quanto a
certos problemas de aplicação das leis no tempo, e por disposições transitórias, quanto a uma certa
sucessão de leis no tempo.
Há problemas de direito processual intertemporal legislativamente resolvidos. Alguns são-no
de modo expresso, como é o caso do art. 136.º, quanto à lei aplicável à forma dos actos e do
processo, do art. 297.º CC, quanto à alteração de prazos, do art. 38.º, n.º 2, LOSJ, acerca da matéria
de competência, ou do art. 44.º, n.º 3, LOSJ, quanto à admissibilidade dos recursos por efeito da
alteração das alçadas. Outros problemas são resolvidos de modo implícito , entendendo que de
certa disposição se deduz uma solução de direito intertemporal: assim, quanto às regras sobre o
valor da causa, o art. 299.º, n.º 1, parece implicar que as leis novas sobre esse valor não se aplicam
aos processos pendentes. Em certos casos de sucessão de leis, a lei nova contém disposições
transitórias: é o caso, por exemplo, dos art. 17.º a 29.º DL 329-A795, de 12/12, do art. 6.º L
14/2006, de 26/459, do art. 11.º DL 303/2007, de 24/8, e dos art. 5.º a 7.º L 41/2013, de 26/6.

57
Cf. SCHWEIGER, Intertemporales Zivilprozessrecht, 95.
58
Cf. TC 287/90 (30/10/1990).
59
Cf. Ac. STJ 12/2007, de 6/12.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/24

III. Aplicação no espaço


1. Generalidades
Quanto ao problema da aplicação no espaço das leis, vigora um princípio da territorialidade:
as leis emanadas de órgãos de um Estado aplicam-se, em princípio, apenas dentro do território
desse mesmo Estado. Também aqui o direito processual civil é tributário da teoria geral, embora
ofereça uma especialidade importante: ao passo que, nos outros ramos de direito, há frequentes e
importantes excepções ao princípio da territorialidade, em direito processual civil não há nenhuma
excepção resultante da lei, pois que as regras de processo são de aplicação exclusivamente
territorial.
Assim, mesmo que as partes sejam estrangeiras ou o objecto da causa apresente uma
qualquer conexão com outras ordens jurídicas, dentro do território português só se aplica o direito
processual civil vigente em Portugal: é a consagração do princípio da lex fori60. Deve ainda
salientar-se que, mesmo em instrumentos de harmonização legislativa, é comum a consagração
do princípio da territorialidade: veja-se, por exemplo, o disposto no art. 10.º, n.º 2, Reg. 1206/2001
ou no art. 7.º, n.º 1, Reg. 1393/2007.

2. Concretização
2.1. Princípio da territorialidade

Alguns casos que parecem excepções legais ao princípio da territorialidade exclusiva da lei
processual deixam de poder ser como tal considerados após uma análise mais cuidadosa. Do art.
36.º CC resulta que, em princípio, “a forma da declaração negocial é regulada pela lei aplicável à
substância do negócio”; portanto, pode aplicar-se em Portugal o direito de um Estado em que o
mútuo civil de quantia superior a € 20000 (cf. art. 1143.º CC) seja passível de prova testemunhal, a
qual deverá será aceite pelos tribunais portugueses. Em casos como o descrito, parece que se
afastam as regras processuais portuguesas e se aplicam as regras de um processo estrangeiro.
Contudo, é claro que a preterição do art. 1143.º CC e a aplicação extraterritorial de uma lei
estrangeira se referem, neste caso, a uma matéria de direito substantivo: as formalidades ( ad
substantiam mais que ad probationem) de um acto jurídico regulador de interesses privados, pelo
que se trata da aplicação de uma regra de direito probatório material. Porém, o modo de produzir
em juízo a prova deste acto só pode ser regulada pela lei do tribunal onde a prova se produz.
Assim, ainda que no país onde foi celebrado o mútuo seja admissível a prova deste acto por
juramento, não o será perante o direito português, porque, neste direito, o juramento não é um
meio admissível de produção de prova. Esta disposição é de direito processual (é, em concreto, uma
regra de direito probatório formal) e, por isso, impreterível por lei estrangeira.
Diz o art. 25.º CC que “o estado dos indivíduos, a capacidade das pessoas, as relações de
família e as sucessões por morte são regulados pela lei pessoal dos respectivos sujeitos”. Como o
art. 15.º, n.º 2, estabelece o princípio da correspondência entre a capacidade de exercício de
direitos substantivos e a capacidade de exercício de direitos processuais (capacidade judiciária),
daqui poder-se-ia tirar a conclusão de que, em matéria de capacidade judiciária, haveria que
preterir, muitas vezes, a lei processual portuguesa e aplicar extraterritorialmente uma lei
estrangeira. De novo a conclusão é precipitada. Por força do art. 25.º CC pode haver que preterir a
lei portuguesa e aplicar uma lei estrangeira em matéria de capacidade civil (de direito substantivo);

60
Crítico perante a aplicação irrestrita deste princípio, cf. GRUNSKY, ZZP 89 (1976), 241 ss. e 249 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/25

mas, uma vez fixada esta, a regra processual que se aplica no ordenamento português é sempre a
do art. 15.º, n.º 2. Assim, se, num país estrangeiro, não vigorar a regra da correspondência,
havendo pessoas civilmente capazes mas judiciariamente incapazes, num foro português essas
pessoas consideram-se civilmente capazes, por força do art. 25.º CC, e judiciariamente capazes
também, por força do art. 15.º, n.º 2; a inversa é igualmente verdadeira: ainda que a sua lei pessoal
não lhes atribua capacidade judiciária, todas as pessoas com capacidade de exercício possuem, em
Portugal, capacidade judiciária.
As leis processuais envolvidas na resolução destes problemas são de aplicação territorial, não
podendo ser preteridas por leis estrangeiras. Assim, por exemplo, as pessoas meramente
judiciárias – que são aquelas que têm personalidade judiciária sem terem personalidade jurídica (cf.
art. 12.º e 13.º) – gozam de personalidade judiciária, ainda que provenientes de um país que lhes
não reconheça tal atributo. Outras hipóteses que igualmente se poderiam invocar, com a do art.
182.º, n.º 2, também se revelam, após um estudo atento, em nada derrogatórias do prin cípio da
territorialidade da lei processual

2.2. Confirmação do princípio

a) Convém comparar algumas regras de carácter processual com o princípio da


territorialidade da lei processual, para mostrar como, na realidade, se movem em planos distintos,
sem interferirem entre si. É o caso das regras que versam sobre os seguintes pontos:

– O da eficácia de actos processuais praticados no estrangeiro;


– O da cooperação internacional dos Estados no plano processual;
– O da recepção do direito internacional.
b) Do princípio da territorialidade das leis processuais não deve retirar-se que os actos
processuais validamente praticados à sombra de uma lei estrangeira não possam ser igualmente
reconhecidos como eficazes na nossa ordem jurídica. Pelo contrário: no direito interno português,
reconhece-se eficácia executiva às sentenças proferidas no estrangeiro, nomeadamente desde que
revistas e confirmadas por um tribunal da Relação (art. 706.º, n.º 1, e 978.º a 985.º); e reconhece-
se mesmo eficácia meramente probatória sem quaisquer formalidades prévias (art. 978.º, n.º 2).
Trata-se de um valor extraterritorial, por força da lei portuguesa, das sentenças, não das regras à
luz das quais elas foram proferidas.
A territorialidade das leis de processo também não obsta a que os tribunais dos vários
Estados cooperem no plano processual. No direito processual português, a lei permite que os
tribunais estrangeiros solicitem aos tribunais portugueses, através de cartas rogatórias, a prática de
actos processuais (art. 172.º, n.º 1, e 180.º a 183.º). Isto não quer dizer que a lei processual
portuguesa deixe de ser territorial, porque nos casos indicados – actos praticados no tribunal de
um Estado a rogo de outro Estado – observam-se as faculdades previstas na lei do país onde o acto
é praticado. Mesmo nos casos previstos no art. 7.º, n.º 1, Reg. 1393/2007, no art. 10.º, n.º 3, Reg.
1206/2001 ou no art. 182.º, n.º 2, o que se permite, não é que o tribunal português ace da a aplicar
uma lei estrangeira, mas que aceda a observar formalidades que não repugnem à lei portuguesa.
A lei processual civil remete, em certas matérias, para o direito internacional, através de
cláusulas gerais de recepção do direito internacional, nomeadamente de origem convencional ou
comunitária (cf. art. 8.º, n.º 2 e 4, CRP): é o que faz designadamente nos art. 59.º, n.º 1, 181.º, n.º
1, 239.º, n.º 1, 580.º, n.º 3, e 978.º, n.º 1. A lei portuguesa remete para o direito internacional ou
europeu, pelo que não há quebra do princípio da territorialidade da lei processual.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/26

2.3. Excepções convencionais

Se o princípio da territorialidade da lei processual não apresenta excepções legais, ele


comporta, no entanto, uma excepção convencional. Em regra, as partes podem confiar o seu pleito
a um tribunal arbitral (voluntário), nos termos do art. 280.º e do art. 1.º, n.º 1, LAV, podendo, na
convenção de arbitragem ou em escrito posterior, acordar sobre as regras do processo a observar
na arbitragem. Ora, parece que nada proíbe que as partes o façam por remissão para uma lei
processual estrangeira, que assim se torna aplicável em Portugal (embora não ex lege, mas ex
voluntate). É claro que a lei só será aplicável se não repugnar aos princípios fundamentais do direito
processual civil português (princípios de ordem pública processual internacional), entre os quais é
de contar os princípios da igualdade das partes e do contraditório (cf. art. 30.º, n.º 1, al. b) e c),
LAV).

2.4. Processo civil internacional

O princípio da aplicação da lex fori não obsta a que existam, no ordenamento processual
português, algumas regras que só são aplicáveis quando a acção apresenta uma conexão com
várias ordens jurídicas. Nesta hipótese, há, por vezes, que recorrer a regras de conflitos de
jurisdições para determinar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para
apreciar a acção (cf., no âmbito do direito interno, art. 59.º) e há que aplicar regras específicas para
verificar a relevância da pendência da acção num tribunal estrangeiro (cf., no mesmo âmbito, art.
580.º, n.º 3). É também através de regras próprias do processo civil internacional que se analisa se
uma sentença estrangeira pode ser reconhecida em Portugal (cf., ainda no mesmo âmbito, art.
978.º a 985.º).

§ 9.º Princípios fundamentais

I. Preliminares
1. Modelos processuais
1.1. Generalidades

STEIN (1859-1923) – um discípulo de WACH (1843-1926) – afirmou que “o processo é o


«direito técnico» na sua mais acurada expressão, dominado por conveniências mutáveis e sem
quaisquer valores de perenidade”61. A verdade é que o processo, ao contrário do que esta
afirmação pode levar a entender, não é algo nem de constantemente mutável, nem de desligado
de fundamentos ideológicos62. Longe de ser impermeável à ideologia, o processo é um reflexo
muito fiel de certas opções ideológicas, nomeadamente porque as regras que o regem são
simultaneamente aquelas que o constituem: o direito processual civil não regula algo que existe
fora dele, antes constitui a própria realidade que regula. Ao contrário, por exemplo, do direito da
família e do direito dos contratos – que regulam, sob o ponto de vista jurídico, uma realidade que
não é apenas jurídica –, o direito processual regula e, ao mesmo tempo, constitui o processo civil.

61 2
STEIN/JUNCKER, Grundriβ des Zivilprozeβrechts und des Konkursrechts (1924), XIV.
62
Sobre as relações entre a cultura e o processo, cf. TARUFFO, Rtdpc 63 (2009), 63 ss.; em especial, CHASE, Law,
Culture and Ritual/Disputing Systems in Cross-Cultural Context (2005), 1 ss.; foi essencialmente com
argumentos de natureza cultural que alguns juristas norte-americanos se opuseram à introdução, no seu
sistema processual, da chamada German Advantage: cf. ALLEN/KÖCK/RIECHENBERG/ROSEN, Nw. U. L. Rev. 82
(1987/1988), 705 ss.; REITZ, Iowa L. Rev. 75 (1989/1990), 987 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

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É por isso que o regime processual civil constitui um espelho de algumas características
fundamentais do sistema jurídico63.

1.2. Concretização

a) Segundo TARELLO (1934-1987), a história do processo civil mostra três modelos de


processo64:

– O “processo do despotismo iluminado”, de que são exemplo a Allgemeine


Gerichtsordnung für Böheim, Mähren, Schlesien, Oesterreich de 1781 e a Allgemeine
Gerichtsordnung für die Preußischen Staaten de 1791; este modelo parte da concepção
de que a administração da justiça é uma graça concedida pelo soberano e traduz uma
“concepção burocrático-administrativa da justiça”, concretizada na prévia aprovação
da acção pelo juiz e na atribuição ao juiz de poderes de direcção do processo e de
inquirição de factos65;
– O “processo napoleónico-liberal”, de que constituem exemplo o Code de
procédure civile de 180666, o Codice de procedura civile de 186567 e a
Zivilprozessordnung alemã de 187768; este modelo assenta no princípio de que a
administração da justiça é um serviço prestado pelo Estado aos cidadãos e baseia-se
no domínio das partes sobre o processo;
– O “processo autoritário”, de que é exemplo a Zivilprozessordnung austríaca de
69
1895 ; este modelo atribuiu poderes de direcção (tanto no impulso do processo,
como na instrução da causa) ao juiz da causa e constrói um processo baseado na
oralidade, na livre apreciação da prova e na publicidade.
b) Numa outra óptica, DAMAŠKA considera que os processos judiciais podem ser organizados
em torno de duas perspectivas:
– Segundo uma perspectiva, o processo é orientado para a resolução dos
conflitos; esta concepção atribui às partes o domínio do processo e é própria de uma
justiça “reactiva”;
– Segundo uma outra perspectiva, o processo é orientado para implementar, na
resolução dos litígios, políticas estaduais; esta concepção cerceia o domínio das partes
sobre o processo e é característica de uma justiça “activa” 70.

63
Cf. Habermas, Faktizität und Geltung (1992), 241: “Weil alle Rechtskommunikationen auf einklagbare
Ansprüche verweisen, bildet das Gerichtsverfahren den Fluchtpunkt für die Analyse des Rechtssystems “.
64
TARELLO, Dottrine del processo civile/Studi storici sulla formazione del diritto processuale civile (1989), 10 ss.
65
Einl. § 6: “Der vom Staat geordnete Richter, welcher den Streit durch richtige Anwendung des Gesetzes auf die
dabei zum Grunde liegenden Thatsachen entscheiden soll, hat die nächste Pflicht, folglich auch das nächste
Recht, sich von der wahren und eigentlichen Bewandniß dieser Thatsachen zu versichern “.
66
Cf. CADIET/CANIVET (Eds.), 1806-1976-2006/De la commémoration d’un code à l’autre : 200 ans de procédure
civile en France (2006).
67
Cf. FAZZALARI, Rdp 20 (1965), 491 ss.; TARUFFO, La giustizia civile in Italia dal ’700 a oggi (1980), 107 ss. e 151
ss.
68
Cf. BETTERMNANN, ZZP 91 (1978), 365 ss.; HENCKEL, GS Rudolf Bruns (1980), 111 ss.; PRÜTTING, Liber Amicorum
Walter F. Lindacher (2007), 91 ss.; AHRENS, Prozessreform und einheitlicher Zivilprozess (2007), 12 ss.
69
Cf. SPRUNG, Rdp 34 (1979), 24 ss.; CIPRIANI, Rdp 50 (1995), 969 ss. = CIPRIANI, Ideologie e modelli del processo
civile, 27 ss.
70
Cf. DAMAŠKA, The Faces of Justice and State Authority/A Comparative Approach to the Legal Process (1986), 88
ss., 97 ss., e 147 ss.; cf. também TARUFFO , Legal Cultures and Models of Civil Justice, FS Hideo Nakamura (1996),
624 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/28

No fundo, estas diferentes orientações traduzem-se numa concepção pragmática e numa


concepção programática do processo, cada uma delas acompanhada por uma diferente visão sobre
o que deva ser a instrumentalidade processual:
– Para a concepção pragmática, a função instrumental esgota-se no momento do
input, isto é, o legislador preocupa-se em garantir que os litígios possam “entrar” nos
tribunais, mas não se preocupa com o modo como eles “saem” deles; esta concepção
pragmática é própria de uma visão liberal e privatística do processo;
– Para a concepção programática, a instrumentalidade processual abrange os
momentos do input e do output, ou seja, o legislador preocupa-se em garantir não só
que os litígios possam “entrar” nos tribunais, mas também que “saiam” deles através
de decisões justas e adequadas ao caso; a concepção programática é própria de uma
visão social e publicística do processo71.

1.3. Modelo social

a) O modelo social do processo (cujas origens remontam aos trabalhos pioneiros de MENGER
(1841-1906)72 e KLEIN (1854-1926)73 e à Zivilprozessordnung austríaca de 189574) caracteriza-se,
no essencial, quer pelo aumento dos poderes do tribunal – nomeadamente no que se refere à
produção e à avaliação da prova75, bem como no que respeita à contribuição para assegurar a
igualdade entre as partes –, quer pela exigência de padrões de veracidade nas alegações das partes.
Alguma doutrina – adepta de um “neoprivatismo no processo civil” 76 – tem vindo a defender
que o aumento dos poderes do juiz é próprio de uma visão autoritária do processo. Como afirma
MONTERO AROCA: “Ao conceder amplos poderes discricionários ao juiz, e precisamente a alguns
juízes, como o austríaco, o soviético, o alemão ou o italiano, nas suas épocas fortemente sujeitos
ao poder executivo, isso só se explica se, ao mesmo tempo, se priva as partes desses poderes,
poderes que, na realidade, se traduzem em garantias das mesmas no início e no desenvolvimento
do processo civil. [/] Os que propugnaram o aumento dos poderes do juiz foram, na sua origem,
aqueles que limitaram a independência desse juiz, por vezes suprimindo-a até de raiz. Na
actualidade, os que continuam a sustentar esse aumento não aludem à independência e, sobretudo,
negam a realidade histórica ou, pelo menos, não querem recordar que modelo político de juiz foi
aquele que teve maiores poderes”77.
Não faltam os exemplos históricos da ligação entre os regimes absolutistas e o reforço dos
poderes do juiz. Basta lembrar que o princípio do inquisitório nasceu no Corpus Iuris Fridericianum

71
Cf. WASSERMANN, Der soziale Zivilprozeβ (1978), 49 ss.
72 3
Cf. MENGER, Das Bürgerliche Recht und die besitzlosen Volksklassen (1904), 26 ss.
73
Cf. KLEIN, Pro futuro, 3 ss.
74
Cf. SCHÖNIGER-HEKELE, Die österreichische Zivilprozessform 1895/Wirkung im Inland bis zum Ausbruch des
Ersten Weltkrieges 1914 (2000).
75
Espelhando uma concepção publicística do processo, cf. TISSIER, Rtdc 5 (1906), 651 e 652: “ Un procès n’est
pas tout à fait la chose des parties, du moins quand il est porté devant les juges. […] quand le procès est devant
le tribunal, il n’est pas rationnel que les parties soient absolument maîtresses de l’instruire à leur guise et libres
de faire venir le jour où il leur plaira ”; CHIOVENDA, Rdc 2 (1910), 71 ss. = CHIOVENDA, Saggi di diritto processuale
civile I, 423 ss.
76
Cf. BARBOSA MOREIRA, CDP 10 (2005), 3 ss.; para uma conhecida concepção privatística do processo civil, cf.
SATTA, Rdp 14 (1937-I), 49: “La tutela degli interessi di parte è il solo elemento essenziale del processo, punto di
partenza e punto di arrivo”; esta concepção mereceu uma resposta de CRISTOFOLINI (Rdp 14 (1937-I), 105 ss.), à
qual retorquiu SATTA (Foro it. 1937-IV, 275 ss.) e novamente CRISTOFOLINI (Rdp 14 (1937-I), 282 ss.); igualmente
crítico, cf. ALLORIO, Rdcom 35 (1937-II), 326 ss.
77
MONTERO AROCA, Los principios políticos de la nueva Ley de Enjuiciamiento Civil/Los poderes del juez y la
oralidad (2001), 71 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/29

prussiano de 1781 (cf. 1, 10, § 2), um exemplo perfeito de legislação absolutista no domínio
processual (que, entre outros aspectos, se caracterizava por, ao mesmo tempo que continha a
proibição da representação das partes por advogados 78, impor a sua representação por um auxiliar
do tribunal – o Aβistenzrath79 (cf. 1, 3, § 1 ss., e 1, 7, § 1 ss.). É também indiscutível que a
Zivilprozessordnung austríaca de 1895 nasceu num ambiente político que não era liberal e que
alguma legislação processual civil posterior – como, por exemplo, o Código de Processo Civil
português de 1939 e o Codice di procedura civile italiano de 194080 – foi elaborada durante épocas
autoritárias. É igualmente indiscutível que o intervencionismo do juiz consagrado nessas legislações
podia ser visto como um reflexo de visões políticas autoritárias: no fundo, o controlo do Estado
sobre o juiz era completado pelo controlo do juiz sobre o processo. Mais discutível é defender que
seja comprovável qualquer relação entre os poderes do juiz e as ideologias políticas. Efectivamente,
podem ser encontrados exemplos da vigência quer de códigos liberais em regimes autoritários –
pense-se no Code de procédure civile napoleónico, no Codice di procedura civile de 1865 durante a
época fascista ou na Ley de Enjuiciamiento Civil de 1881 durante o regime franquista –, quer de
códigos “autoritários” em regimes democráticos – pense-se no Codice di procedura civile de 1940,
no Nouveau code de procédure civile francês ou na actual Zivilprozessordnung alemã. É assim
inaceitável defender que qualquer intervencionismo do juiz seja incompatível com ideologias
políticas liberais e democráticas e, em especial, com a autonomia privada que subjaz a muitos
aspectos do direito civil e comercial81.
Afinal, o que se pede ao juiz é o exercício da função jurisdicional, e não a certificação,
através da sentença, do que uma das partes conseguiu impor ou obter da outra em juízo. O objecto
do processo pode ser um “assunto das partes”; mas a administração da justiça “em nome do povo”
(cf. art. 202.º, n.º 1, CRP) não pode deixar de ser um “assunto de todos”. Portanto, não é crível que
a legislação processual civil do futuro venha a afastar-se do referido modelo social.

b) O modelo social de processo civil assenta numa repartição de funções entre as partes e o
tribunal. Esta repartição traduz-se na atribuição de importantes poderes ao juiz da causa, seja no
que respeita à condução da causa, seja no que se refere à matéria de facto 82. Fala-se, a este
propósito, de um “processo civil dialógico” 83; mas, porque o diálogo se verifica entre o juiz e as
duas partes, melhor seria falar de um “processo civil trialógico”.

2. Princípios processuais
O processo civil é regulado por regras e por princípios jurídicos. Como princípios do direito
processual civil há que analisar o princípio dispositivo, o princípio da boa fé, o princípio da
cooperação, o princípio da igualdade das partes, o princípio da instrumentalidade, o princípio da
legalidade e o princípio da auto-suficiência.

78
Cf. Corpus Iuris Fridericianum I/1/Von der Prozess-Ordnung (Berlin 1781), XXV: “Die bisherigen Advocaten
sind […] gänzlich abgeschafft”.
79
Cf. Corpus Iuris Fridericianum I/1, XXV: “Dagegen werden […] Aβistenz-Räthe bestellt, deren Amt in so fern,
als von der Untersuchung der Facti die Rede, ein würkliches richterliches Amt ist”.
80
Cf. CIPRIANI, Rdc 49 (2003), 45 ss.
81
Cf. RICCI, Rtdpc 49 (2005), 79 ss., apreciando a posição dos “ detti «revisionisti» del sistema del codice di
procedura civile del 1940”; TARUFFO, Rtdpc 60 (2006), 452 ss.; em sentido distinto, cf. MONTELEONE, Rdp 64
(2009), 5 ss. (cf. a resposta de TARUFFO, Rtdpc 63 (2009), 723 ss.).
82
Cf., numa perspectiva comparada, YESSIOU-FALTSI/TAMAMIDIS, RHDI 52 (1999), 459 ss.; STÜRNER, ZZP 123 (2010),
147 ss.
83
STÜRNER, ZZP 123 (2010), 152 e 153.
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II/30

II. Princípio da instrumentalidade


1. Caracterização
O princípio da instrumentalidade – que também pode ser designado por princípio da
submissão aos limites substantivos – tem o seguinte enunciado: se a vontade das partes não pode
conseguir certo efeito jurídico fora do processo, não deve ser possível à pura vontade das partes
conseguir tal efeito através de actuações processuais; não o deve ser nem directamente, nem
indirectamente, nem eventualmente. Dado que o processo civil tem uma posição instrumental
perante o direito substantivo, o que este não permite também não pode ser alcançado através
daquele processo.

2. Consequências
2.1. Generalidades

a) Os efeitos jurídicos que não estão na disponibilidade das partes são efeitos jurídicos
indisponíveis, falando a lei, por vezes, de direitos indisponíveis (art. 345.º n.º 1, e 354.º, al. b), CC);
art. 94.º, n.º 3, al. a), e 289.º, n.º 1), de relações jurídicas indisponíveis (cf. art. 4.º, al. b), CC) ou
de matéria excluída da disponibilidade das partes (art. 333.º e 602.º CC). O princípio da
instrumentalidade implica não só que não podem ser válidos os negócios processuais de
desistência ou de confissão do pedido (cf. art. 283.º, n.º 1, e 289.º, n.º 1) e de transacção (cf. art.
283.º, n.º 2, e 289.º, n.º 1) celebrados nas acções que tenham por objecto direitos indisponíveis,
mas também que, nessas mesmas acções, a revelia do réu não pode ser operante (cf. art. 567.º,
n.º 1, e 568.º, al. c)). É ainda pelo receio de se transformarem em meios indirectos de conseguir
um efeito indisponível que a lei proíbe nestes casos o julgamento segundo a equidade (cf. art. 4.º,
al. b), CC).
Para melhor compreensão do princípio da instrumentalidade, considerem-se os exemplos
seguintes:
– O art. 2008.º, n.º 1, CC estatui que “o direito a alimentos não pode ser renunciado”;
trata-se, portanto, de uma relação jurídica indisponível, nomeadamente por renúncia
do credor; ora, se uma pessoa propusesse uma acção de alimentos contra outra, e
seguidamente desistisse do pedido, obtinha, com esta actuação, em face do disposto
no art. 285.º, n.º 1, o mesmo resultado que obteria com uma renúncia ao seu direito; o
princípio da instrumentalidade impõe que, nesta hipótese, a desistência do pedido
seja nula (cf. art. 289.º, n.º 1);
– Proposta uma acção de investigação da paternidade, poderia o réu confessar, não o
pedido em si, mas os factos em que tal pedido se funda; se tal confissão, como é
normal, fizesse prova de tais factos (cf. art. 358.º, n.º 1, CC), dar-se-ia, embora
indirectamente, o estabelecimento voluntário da paternidade; daí que, em obediência
ao princípio da instrumentalidade, a lei recuse a esta confissão o valor probatório
pleno (cf. art. 354.º, al. b), CC); por essa mesma razão, naquela acção a falta de
contestação do réu não implica a confissão dos factos articulados pelo autor (cf. art.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/31

567.º, n.º 1, 568.º, al. c)) e a não impugnação destes factos também não determina a
sua admissão por acordo (cf. art. 574.º, n.º 2).

b) A lei leva mais longe ainda o seu cuidado: quando um efeito jurídico for indisponível, a lei
chega mesmo a restringir as acções de que esse efeito jurídico seja mera consequência eventual.
Tome-se como exemplo o limite substantivo constante do art. 1682.º-A, n.º 1, al. a), CC: fora do
caso de casamento em regime de separação de bens, nenhum cônjuge pode alienar imóveis,
mesmo próprios, sem o consentimento do outro; por força do princípio da instrumentalidade, o art.
34.º, n.º 1, impõe que, mesmo só para pôr em risco um imóvel através de uma acção (reivindicado
um imóvel, se o autor perder, fica assente que o imóvel não é dele), é necessário que ambos os
cônjuges estejam em juízo ou que um deles dê o seu consentimento ao cônjuge autor (cf. também
art. 786.º, n.º 1, al. a)).

2.2. Aferição da indisponibilidade

Estas são as linhas muito gerais de uma matéria algo melindrosa e bastante difícil. Razões
principais dessa dificuldade são a de que, regra geral, as relações jurídicas são apenas
relativamente indisponíveis e a de que nem sempre é fácil determinar se certa relação jurídica é
disponível ou indisponível.

2.3. Indisponibilidade relativa

a) Em regra, a vontade das partes é determinante na constituição e na extinção de relações


jurídicas; a aquisição e a perda de direitos depende, normalmente, da vontade dos transmitentes e
dos adquirentes, por si só ou conjugada com outras vontades. Há, porém, relações jurídicas cuja
constituição ou extinção (e, portanto, direitos e deveres cuja aquisição ou perda, absoluta ou
relativa) está subtraída à vontade das partes: estas são as relações jurídicas indisponíveis.
Simplesmente, é vulgar que, quanto a certa relação ou direito, certas vicissitudes estejam vedadas à
vontade das partes, outras não: está-se então perante relações jurídicas relativamente
indisponíveis.
Embora se possa renunciar a prestações já vencidas, o direito a alimentos, em si mesmo, não
pode ser renunciado (cf. art. 2008.º, n.º 1, CC); assim, numa acção de alimentos, em que se pede a
condenação do devedor a prestá-los no futuro, não se pode desistir do pedido (cf. art. 289.º, n.º 1).
Mas pode perguntar-se se o réu pode confessar o pedido de prestação de alimentos; a resposta é a
de que é admissível a confissão desse pedido, pois que, se é verdade que o direito a alimentos não
se pode extinguir ex voluntate, já, pelo contrário, esse direito pode constituir-se ex voluntate. Além
disso, como o montante dos alimentos pode ser fixado por acordo (cf. art. 2006.º CC; cf. art. 385.º,
n.º 1 e 2), se A tiver pedido a condenação de B a pagar-lhe € 500 por mês de alimentos (art.
2005.º, n.º 1, CC), A pode desistir de parte do pedido, quanto ao montante (desistir por exemplo de
€ 100 e passar a pedir só € 400), ou transigir relativamente ao montante dos alimentos (acordando
as partes que o devedor deve pagar € 350).

b) Numa acção de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, é admissível a


desistência do pedido (art. 289.º, n.º 2). Em contrapartida, o direito ao divórcio ou à separação é
inegociável; assim, por força do princípio da instrumentalidade, numa acção de divórcio litigioso a
transacção não é admissível.
Pode perguntar-se se é admissível a confissão do pedido numa acção de divórcio sem
consentimento de um dos cônjuges. A favor da admissibilidade desta confissão poderia invocar-se
o paralelismo entre os efeitos dessa confissão e a outra modalidade do divórcio, o divórcio por
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II/32

mútuo consentimento (cf. art. 1773.º, n.º 1, CC). No entanto, contra a admissibilidade daquela
confissão parece poder alegar-se que o divórcio por mútuo consentimento só é admissível se
estiverem preenchidas as condições previstas no art. 1775.º, n.º 1, CC ou 994.º, n.º 1, condições
que não se satisfazem com a mera confissão do pedido formulado num processo de divórcio sem
consentimento de um dos cônjuges. Dito de outro modo: o divórcio através da via processual
“acção litigiosa, seguida de confissão do pedido” frustraria diligências essenciais do divórcio por
mútuo consentimento, nomeadamente o controlo sobre os acordos exigíveis pelo art. 1775.º, n.º 1,
CC ou pelo art. 994.º, n.º 1.

c) Há ainda outro tipo de relações jurídicas relativamente indisponíveis: aquelas em que a


parte só pode dispor do direito por certa forma, com exclusão de qualquer outra. Um exemplo:
duas pessoas, não se verificando nenhum impedimento, podem livremente casar (cf. art. 1596.º e
1600.º CC); a celebração do casamento é, pois, um efeito jurídico disponível; daqui, em rigor,
deveria resultar a admissibilidade de uma acção declarativa do casamento, seguida de uma
confissão do pedido: seria uma espécie de “casamento processual”.
Tal não é, contudo, possível. O casamento celebrado em Portugal só pode provar-se por
certidão do registo civil (art. 4.º CRegC), não sendo admissíveis outros meios de prova, nem sequer
uma sentença. A lei não permite “casamentos processuais”. A relação jurídica matrimonial é, mesmo
quanto à constituição, relativamente indisponível, na medida em que só pode constituir-se pelas
formas referidas no art. 1587.º, n.º 1, CC.

2.4. Determinação da indisponibilidade

a) Um outro factor de dificuldades na análise do princípio da instrumentalidade é a


circunstância de, por vezes, ser difícil determinar se, ou em que medida, a relação jurídica é
disponível ou indisponível. Por exemplo: pode discutir-se se o autor de uma acção de investigação
de paternidade (cf. art. 1869.º CC) pode desistir do pedido; a favor de uma resposta afirmativa
pode aduzir-se que o autor poderia ter deixado caducar o direito, não propondo a acção; contra
essa desistência pode invocar-se a irrenunciabilidade do estado pessoal. Pode ainda discutir-se se,
nessa mesma acção, o réu pode confessar o pedido: pode defender-se que, sendo a acção proposta
contra o investigado (cf. art. 1873.º e 1819.º, n.º 1, CC), o réu pode confessar o pedido, tal como
poderia perfilhar (cf. art. 1847.º CC), mas é certo que, sendo a acção proposta contra os herdeiros
(cf. igualmente art. 1873.º e 1819.º, n.º 1, CC), a confissão não é admissível. Pode ainda discutir-se
se nessa acção pode haver transacção. Parece impor-se, em todos estes pontos, uma resposta
negativa: na acção de investigação de paternidade não é admissível nem a desistência do pedido –
porque o estado civil é irrenunciável –, nem a confissão do pedido – porque a relação de filiação não
pode ser constituída ex voluntate –, nem a transacção – porque a qualidade de filho é indivisível e
inegociável.
b) Podem ser sucintamente analisadas algumas das principais acções respeitantes a relações
jurídicas indisponíveis:
– Acção de anulação do casamento, em geral (art. 1632.º CC): a desistência do
pedido é admissível, se o casamento for confirmável (art. 1633.º e 1635.º CC) e a
acção tiver sido proposta pelo cônjuge que o puder confirmar (art. 1639.º, n.º 1,
1640.º, n.º 2, e 1641.º CC); a confissão do pedido e a transacção são inadmissíveis;
– Acção de anulação do casamento por simulação (art. 1640.º, n.º. 1, CC): a
desistência do pedido é admissível; a confissão do pedido e a transacção são
inadmissíveis;
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II/33

– Acção de anulação do casamento por falta de testemunhas (art. 1642.º CC): não
é admissível nem a desistência do pedido, nem a confissão do pedido, nem a
transacção;
– Acções de anulação ou declaração de nulidade de convenções antenupciais
(celebrado o casamento): é admissível a desistência do pedido, mas não a confissão do
pedido, nem a transacção (cf. art. 1701.º, n.º 1, e 1714.º CC);
– Acção de simples separação judicial de bens (art. 1767.º CC): é admissível a
desistência do pedido; não é admissível nem a confissão do pedido (cf. art. 1714.º CC),
nem a transacção;
– Acção de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens sem
consentimento de um dos cônjuges (art. 1779.º e 1794.º CC): é admissível a
desistência do pedido (art. 289.º, n.º 2); não é admissível nem a confissão do pedido,
nem a transacção;
– Acção (de simples apreciação) destinada a fixar a data provável da concepção
(art. 1800.º, n.º 1, CC): é admissível a desistência do pedido; não é admissível
confissão do pedido, nem transacção;
– Acção de impugnação da maternidade (art. 1807.º CC): é admissível a
desistência do pedido; não é admissível a confissão do pedido, nem a transacção;
– Acção de investigação de maternidade (oficiosa ou particular) (art. 1808.º e
1814.º CC): não parece admissível nem a desistência do pedido, nem a transacção;
todavia, na acção de investigação oficiosa, a pretensa mãe pode confirmar a
maternidade (cf. art. 1808.º, n.º 3, CC), o que equivale a uma confissão do pedido; por
analogia, o mesmo pode suceder numa acção de investigação particular;
– Acção de impugnação da paternidade presumida (art. 1838.º CC): é admissível a
desistência do pedido; não é admissível nem a confissão do pedido, nem a transacção;
– Acção de investigação de paternidade (oficiosa ou particular) (art. 1864.º e
1869.º CC): não parece admissível nem a desistência do pedido, nem a transacção; no
entanto, nesta acção é admissível o reconhecimento da paternidade através da
perfilhação (cf. art. 1853.º, al. d), e 1865.º, n.º 3, CC), o que equivale a uma confissão
do pedido;
– Acção de alimentos: não é admissível a desistência do pedido (cf. art. 2008.º, n.º
1, CC); são admissíveis a confissão do pedido e a transacção.

2.5. Efeitos da indisponibilidade

Alguns preceitos legais aplicam-se a qualquer caso de indisponibilidade do direito, mesmo


que seja relativa. É o que acontece, por exemplo, como o art. 4.º, al. b), CC.

III. Princípio dispositivo


1. Caracterização
O princípio dispositivo é aquele segundo o qual a vontade relevante e decisiva no processo
é a das partes, cabendo a estas o dominium litis e não incumbindo ao tribunal qualquer iniciativa
própria (non procedat iudex ex offcio)84. O princípio dispositivo é um princípio multifacetado, ao

84
Cf. BECKER-EBERHARD, Grundlagen und Grenzen des Verhandlungsgrundsatzes, in YILDIRIM (Ed.),
Zivilprozessrecht im Lichte der Maximen (2001), 15 ss.; KAWANO, FS Kostas E. Beys I (2003), 675 ss.; JOLOWICZ,
I.C.L.Q. 52 (2003), 281 ss.; sobre as bases ideológicas do princípio dispositivo, cf. LEIPOLD, JZ 1982, 441 ss.
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qual se opõem o princípio inquisitório e o princípio da oficiosidade. Cada um destes “contra-


princípios” revela uma das facetas do princípio dispositivo.
O processo civil português é dominado fundamentalmente pelo princípio dispositivo, embora
com importantes limitações: as partes determinam quem são os autores e os réus da acção
(disponibilidade sobre os participantes na acção), fixam que processo haverá a decidir
(disponibilidade sobre o início do processo), o que haverá a decidir em cada processo
(disponibilidade sobre o objecto do processo) e que processos serão decididos (disponibilidade
sobre o termo do processo).

2. Âmbito
2.1. Concepção privatística

A adopção do princípio dispositivo resulta da configuração do processo civil como um


assunto das partes, em que não há interesses públicos a tutelar (concepção privatística do
processo), e de que, portanto, as partes podem dispor livremente 85. Esta concepção baseia-se
num modelo do processo que o configura como uma competição entre as partes (daí que se fale
de uma sporting theory of justice86) e encontra uma consagração típica no adversary system norte-
americano87.
Em GÖNNER (1764-1827), um expoente do jusnaturalismo processual, encontra-se a primeira
exposição sobre o princípio dispositivo (sob a designação – que, aliás, se mantém – de
Verhandlungsmaxime88): “Se uma parte tiver accionado e a outra não prestar voluntariamente o que
aquela exige, a protecção do Estado não pode ser concedida até estar determinado quem tem
razão. O direito consiste na correspondência com a lei; consequentemente, à protecção do Estado
deve preexistir uma investigação que consiste em duas partes: em primeiro lugar, quais são os
elementos característicos do facto sobre o qual o tribunal deve determinar o direito entre as partes
em litígio; em segundo lugar, se estes elementos são idênticos aos elementos do caso previsto na
lei. [/] A última [parte da investigação] é matéria de reflexão, relativamente à qual não é pensável
qualquer margem para o arbítrio das partes, sendo independente da alegação das partes e
orientando-se apenas segundo as leis inalteráveis de um raciocínio racional. Considerações
completamente diferentes merecem a primeira [parte da investigação]; qualquer um pode desistir
dos seus direitos, pelo que aqui é pensável uma maior margem para o arbítrio das partes e o juiz
fica dependente, em parte, da alegação das partes. Aquilo que o autor alega e o réu confessa tem

85 2
WACH, Vorträge über die Reichs-Civilprocessordnung (1896), 2, referia-se à “falta de interesse do Estado e,
3
portanto, do seu órgão, o juiz, no litígio”; antes, WETZELL, System des ordentlichen Civilprocesses (1878), 97,
afirmava o seguinte: “Wie die privatrechtlichen Verhältnisse im Allgemeinen der freien Disposition ihrer Träger
unterworfen sind, so ist nach gemeinem Recht insbesondere auch die Proceβführung auf die
Willensentschlieβung der Parteien gestellt […]”.
86
POUND, in Report of the Twenty-Ninth Annual Meeting of the American Bar Association (1906), 404 = Am. Law.
14 (1906), 447.
87
Cf. TARUFFO , Rdp 32 (1977), 596 ss.; HAZARD/TARUFFO , American Civil Procedure/An Introduction (1993), 87 ss.;
DENTI, in Estudios en Homenaje al Doctor Héctor Fix-Zamudio III (1988), 1875 ss.; para uma apreciação do
adversary system, cf. GERBER, Ariz. St. L.J. 19 (1987), 3 ss.
88
GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen Prozesses I (1801), 261; GÖNNER, Handbuch des deutschen
gemeinen Prozesses I 2 (1804), 183.
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de ser aceite como verdadeiro pelo tribunal, sem que, aliás, ela se tenha de preocupar com a
veracidade da confissão”89.

2.2. Concepção publicística

a) Actualmente, reconhece-se que, se o processo civil visa a tutela de situações subjectivas,


a finalidade do mesmo é uma tutela justa dessas situações – justa por ser adequada à vontade
das partes (por exemplo, se quiserem e puderem transigir), mas também justa objectivamente, por
ser séria e verdadeira.
Afirmava KLEIN (1854-1926): “O domínio sobre o conteúdo do processo é, por outras
palavras, a faculdade de conduzir e de limitar o juiz para uma sentença errada ou apenas
relativamente justa, ou seja, inexacta. Este direito das partes de determinar, de forma autoritária, o
grau de justiça da sentença e a faculdade de disposição sobre as suas relações de direito privado
não são indiscutivelmente idênticas, nem é possível de modo algum fazer decorrer ou fundamentar
o direito de influenciar o exercício das funções jurisdicionais do direito de influenciar a relação
entre uma parte e a outra parte”90.

Isto determina que a lei processual, no âmbito de uma tendência para o reforço do papel do
juiz (mesmo nos sistemas de common law, tradicionalmente arreigados ao adversarial principle91),
confira a este importantes poderes de iniciativa processual, traduzidos na admissão limitada dos
princípios do inquisitório e da oficiosidade92. Entre esses poderes avultam os que estão
consagrados no art. 411.º (como expressão do princípio do inquisitório 93) e nos art. 6.º, n.º 2, e
578.º (como manifestação do princípio da oficiosidade). A posição passiva que o juiz assumia, em
tempos passados, no processo, resquício de uma característica essencial do processo germânico
e comum, encontra-se hoje profundamente atenuada. Predomina hoje, na doutrina e na legislação,
uma concepção publicística, não contratualista ou social do processo que encontra a sua
expressão mais vincada no dever de gestão processual (cf. art. 6.º) 94.

89
GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen Prozesses I, 257 s.; GÖNNER, Handbuch des deutschen gemeinen
Prozesses I 2, 180 s.; para uma interessante exposição sobre o alcance da Verhandlungsmaxime, cf. MITTERMAIER,
3
Der gemeine deutsche bürgerliche Prozess I (1838), 94 ss.; cf. CHIOVENDA, Saggi di diritto processuale civile I,
157 ss.; CARNACINI, in Studi in onore di Enrico Redenti II (1951), 695 ss.; BOMSDORF, Prozeβmaximen und
Rechtswirklichkeit (1971), 111 ss.; NÖRR, Naturrecht und Zivilprozeβ (1976), 41 ss.; BÖHM, Ius commune 8
(1978), 136 ss.
90
KLEIN, Pro futuro. Betrachtungen über Probleme der Civilprozeβreform in Österreich. (1891), 13.
91
Cf. HAZARD/DONDI, Cornell Int’l L. J. 59 (2006), 68 ss.
92
Cf. JOLOWICZ, in CAPPELLETTI/JOLOWICZ, Public Interest Parties and the Active Role of the Judge in Civil Litigation
(1975), 155 ss.; JOLOWICZ, On Civil Procedure (2000), 175 ss.; numa perspectiva comparativa, cf. STÜRNER, ZZP
123 (2010), 149 ss.
93
Cf. PESSOA VAZ, Atendibilidade de factos não alegados (1978), 62 ss.
94
Cf. BRÜGGEMANN, Judex statutor und judex investigator (1968), 47 ss. e 91 ss.; PESSOA VAZ, Direito Processual
2
Civil (2002), 311 ss.; tem interesse conhecer o Princípio 3 da Recomendação R (84) 5 do Conselho da Europa,
de 28/2/1984: “The court should, at least during the preliminary hearing but if possible throughout the
proceedings, play an active role in ensuring the rapid progress of the proceedings, while respecting the rights of
the parties, including the right to equal treatment. In particular, it should have proprio motu powers to order the
parties to provide such clarifications as are necessary; to order the parties to appear in person; to raise
questions of law; to call for evidence, at least in those cases where there are interests other than those of the
parties at stake; to control the taking of evidence; to exclude witnesses whose possible testimony would be
irrelevant to the case; to limit the number of witnesses on a particular fact where such a number would be
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/36

Esta concepção significa que o princípio dispositivo deixou de poder ser entendido como um
princípio constitutivo do processo civil e passou a ser concebido como um princípio operativo: o
processo está na disponibilidade das partes sempre que o interesse público não seja afectado
pela disponibilidade dos titulares sobre o “se”, o “quando” e o “como” da tutela das suas situações
subjectivas. Quando a ordem jurídica entende que a tutela de situações privadas não deve ficar na
disponibilidade dos respectivos titulares atribui um poder de tutela a um órgão próprio e distinto do
tribunal – o Ministério Público (cf. art. 5.º, n.º 1, al. c), d), e 4, al. a), EMP) 95.

b) A concepção publicística do processo tem também uma vertente económica que não
pode ser descurada. Os poderes conferidos ao juiz como consequência dos princípios do
inquisitório e da oficiosidade destinam-se a permitir a optimização dos resultados do processo.

3. Princípio do impulso
Em processo civil, o tribunal não pode decidir iniciar um processo – é sempre uma parte que
tem de o fazer (art. 3.º, n.º 1). É o sub-princípio da disponibilidade do início do processo, princípio
do pedido, do impulso processual inicial ou da iniciativa processual, expresso nos brocardos
latinos nemo iudex sine actore, ne iudex procedat ex officio, ubi non est actio, ibi non est iurisdictio
ou ainda Wo kein Kläger ist, da ist kein Richter 96. O tribunal superior também não se ocupa da
causa sem a parte legitimada interpor o competente recurso (art. 637.º, n.º 1).
Às partes também incumbe o impulso subsequente do processo. A falta deste impulso pode
conduzir, entre outras consequências (cf. art. 281.º, n.º 2, 648, n.º 1, e 763.º, n.º 1), à deserção da
instância (cf. art. 281.º, n.º 1). Em regra, as partes também podem pôr termo ao processo,
nomeadamente através de um negócio processual concluído numa causa (cf. art. 277.º, al. b) e d),
280.º e 291.º) ou num recurso pendente (cf. art. 632.º, n.º 5).

4. Princípio da disponibilidade
4.1. Generalidades

O princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo civil


(Verhandlungsmaxime, em alemão, e principio della trattazione, em italiano) é consequência da
autonomia das partes no âmbito do direito privado (cf. art. 405.º CC) e, em especial, da liberdade
de disposição e de exercício dos direitos pelos respectivos titulares 97.

excessive. These powers should be exercised without going beyond the object of the proceedings ”.
95
Sobre o sentido desta solução, cf. LIEBMAN, Rdp 15 (1960), 555 ss.
96
É possível circunscrever o princípio dispositivo à disponibilidade da parte sobre um processo já instaurado, o
que afasta o princípio do impulso processual da esfera do princípio dispositivo: com esta perspectiva (pelo
menos implicitamente), cf. CARNACINI, in Studi in onore di Enrico Redenti II, 716 ss. e 752.
97
Cf., ainda com muito interesse, CAPPELLETTI, La testimonianza della parte nel sistema dell’ oralità I (1962), 303
ss.; cf. também; STÜRNER, FS Helmut Kollhosser II (2004), 727 ss.
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II/37

4.2. Pedido

a) Relativamente à disponibilidade do objecto do processo, há que fazer uma distinção entre


a disponibilidade do pedido e a disponibilidade dos factos necessários à decisão do tribunal.
Quanto ao pedido, são as partes – e, em especial, o autor e o réu reconvinte – que o delimitam e
fixam livremente (cf. art. 552.º, n.º 1, al. e), e 724.º, n.º 1, al. f)). É por isso que a sentença não
pode condenar em quantidade superior (plus) ou em objecto diverso (aliud) do que for pedido pela
parte (art. 609.º, n.º 1: ne ultra petitum), sob pena de ser uma decisão nula (art. 615.º, n.º 1, al. e)).
Note-se que o tribunal pode absolver o réu (do pedido ou da instância), mesmo que este
demandado não tenha formulado nenhum pedido: a admissibilidade da absolvição decorre da
improcedência do pedido do autor ou da impossibilidade da apreciação do mérito da acção.
A vinculação do tribunal ao pedido da parte não impede que o tribunal profira uma decisão
que atribua menos do que a parte pediu. Salvo o caso raro de a interpretação do pedido da parte
mostrar que esta só está interessada no “tudo ou nada”, a concessão de um minus é sempre
possível em relação a pedidos quantitativos (pedidos relativos a montantes pecuniários ou pedidos
respeitantes a quantidades). Assim, por exemplo, o tribunal pode condenar o demandado por uma
dívida pecuniária em menos do que o autor pede e pode reconhecer a propriedade do autor
apenas sobre uma parcela do imóvel98.
Mais problemática é a obtenção pela parte, tomando como parâmetro o que esta pede, de
um minus qualitativo. Em regra, a atribuição de um minus qualitativo é admissível quando o autor
tenha formulado um pedido de condenação (cf. art. 10.º, n.º 3, al. b)) e o tribunal, embora não
possa condenar o réu na realização da prestação, possa reconhecer o direito alegado pelo autor
(cf. art. 10.º, n.º 3, al. a)). Para além desta situação, a condenação do réu num minus qualitativo só
é admissível com base numa expressa previsão legal. Por exemplo, se a dívida, alegada pelo
autor como vencida, ainda não se encontrar vencida no momento do encerramento da discussão
(cf. art. 611.º, n.º 1), o tribunal pode condenar o réu a cumprir a prestação quando esta se vencer
(art. 610.º, n.º 1).
Importa ainda acrescentar que a obtenção de um minus em relação ao pedido formulado é
sempre admissível se for consequência de um pedido da contraparte. Por exemplo: se o autor
pedir a condenação do réu a pagar o preço da coisa que lhe alienou, o tribunal pode condenar o
réu a realizar essa prestação depois de o autor lhe entregar a coisa se esta parte invocar a
exceptio non adimpleti contractus (cf. art. 428.º, n.º 1, CC); se o autor tiver pedido o
reconhecimento da propriedade de um imóvel, o tribunal pode reconhecer que o autor é apenas
usufrutuário se o réu tiver pedido, em reconvenção (cf. art. 266.º, n.º 1 e 2, al. a)), o
reconhecimento de que é o nu proprietário do imóvel; se o autor pedir, para reparação do dano, a
reconstituição natural, o tribunal pode condenar o réu no pagamento de uma indemnização se esta
parte alegar e provar que aquela reconstituição lhe é demasiado onerosa (cf. art. 566.º, n.º 1, CC).

98
Sobre os problemas suscitados no âmbito das acções inibitórias, cfr. BACKSMEIER, Das „Minus“ beim
unterlassungsrechtlichen Globalantrag (2000), 101 ss.
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Note-se que, sem o pedido da contraparte, o minus se torna um aliud e a sentença que o
reconhece é nula (cf. art. 615.º, n.º 1, al. e)).

b) Por vezes, as partes formulam pedidos em que quantificam o montante que pretendem
conseguir em “pelo menos € ….”. Em regra, o montante indicado determina o limite da
condenação do demandado, a menos que se possa concluir que esse montante é apenas uma
parcela de um montante mais elevado e ainda não liquidável no momento da formulação do
pedido (cf. art. 609.º, n.º 2).

c) A regra da vinculação do tribunal ao pedido da parte comporta – bem


compreensivelmente, aliás – muito poucas excepções. Uma delas encontra-se no art. 553.º, n.º 2:
apesar de o autor ter formulado um único pedido, o tribunal pode condenar o réu a satisfazer uma
das obrigações alternativas que o devedor tenha a faculdade de escolher; uma outra excepção
consta do art. 376.º, n.º 3: o tribunal não está adstrito à providência cautelar requerida no
procedimento, podendo decretar uma providência, nominada ou inominada, diferente daquela que
foi solicitada pelo requerente.

4.3. Factos relevantes

O tribunal deve conhecer de todos os factos invocados pelas partes no momento processual
adequado, sejam eles factos principais – isto é, factos que constituem a causa de pedir ou factos
que fundamentam a excepção – ou factos complementares – isto é, factos que complementam ou
concretizam os factos principais (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b)) 99.
Note-se que o tribunal deve conhecer de todos os factos alegados pelas partes,
independentemente de eles serem favoráveis ou desfavoráveis à parte que os alegou em juízo.
Se, por exemplo, o réu invocar factos dos quais resulta o reconhecimento do crédito do autor,
ainda assim o tribunal pode utilizar esses factos como fundamento da procedência da acção
contra essa mesma parte. Pode falar-se de um princípio de aquisição processual: factos alegados
por qualquer das partes são sempre factos adquiridos para o processo, não importando se eles
são favoráveis ou desfavoráveis à parte que os invocou em juízo.
A situação também é possível quanto ao autor. Suponha-se, por exemplo, que o autor alega
factos dos quais resulta a nulidade do contrato que celebrou com o réu; em princípio, o tribunal
também se pode servir desses factos para declarar a nulidade do contrato. No entanto, quando o
autor, na petição inicial, alega factos favoráveis ao réu, verificar-se-á normalmente uma ineptidão
da petição inicial por contradição entre a causa de pedir (a nulidade do contrato, por exemplo) e o
pedido (a condenação do réu no cumprimento da respectiva prestação contratual, por exemplo)
(cf. art. 186.º, n.º 2, al. b)), o que conduz, em regra, ao indeferimento liminar daquela petição (cf.
art. 186.º, n.º 1, 577.º, al. b), e 590.º, n.º 1). Trata-se de uma situação em que a posição do autor é
de tal forma inconcludente que obsta a que o processo possa continuar.

99 2
Cf. MONTALVÃO MACHADO, O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à Luz do Novo Código de Processo Civil
(2001), 159 ss. e 333 ss.
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II/39

4.4. Factos principais

a) Também são, em regra, as partes que livremente suscitam as questões e livremente


articulam os factos em que o juiz se baseará para proferir a sua sentença (cf. art. 552.º, n.º 1, al.
d)). Assim, o art. 608.º, n.º 2, estabelece que o juiz deve resolver todas as questões que as partes
tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas apenas aquelas cuja decisão esteja prejudicada
pela solução dada a outras (princípio da exaustão do conhecimento do tribunal), embora não
possa ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo daquelas que forem de
conhecimento oficioso (princípio da limitação do conhecimento do tribunal).
É nesta ordem de ideias que se filia a necessidade de invocação pelo autor de uma causa
de pedir (cf. art. 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d)), sem a qual a sua petição será inepta (art. 186.º, n.º
2, al. a)). Era concebível que a lei permitisse às partes formular o pedido, cabendo depois ao
tribunal esgotar as possíveis vias de investigação desse pedido. O autor diria por exemplo: “Sou
proprietário de x, pelo que peço ao tribunal que o reconheça contra o réu”; o tribunal investigaria,
por sua iniciativa, todas as possíveis vias de constituição do direito – iria ver se, por exemplo, o
autor comprou o bem ou se este lhe foi doado ou se o autor o herdou –, pelo que a pesquisa
destes meios seria livre para o tribunal, mas correlativamente também da sua exclusiva
responsabilidade. Logicamente, isto seria possível (e teria até a vantagem de deixar a situação
mais clara, sobretudo se o tribunal negasse o reconhecimento da pretensão do autor);
pragmaticamente, porém, aquela solução tornaria o trabalho do tribunal incomportável, porque
este teria de examinar qualquer possível causa constitutiva da pretensão do autor (e, aliás,
logicamente esta pesquisa devia alargar-se às causas extintivas).
A lei impõe, por isso, que o autor indique o facto ou factos em que baseia a sua pretensão,
isto é, a lei impõe ao autor o ónus de indicar a causa de pedir (art. 5.º, n.º 1). Se o tribunal
entender que esses factos se não verificaram, nega o direito do autor, mas nega-o limitadamente
àquela causa de pedir, pelo que o autor pode propor a mesma acção com outra causa de pedir,
art. 580.º e 581.º. Assim, por exemplo: (i) o autor pediu a anulação de certo contrato com
fundamento em dolo; a acção foi julgada improcedente; o mesmo autor pode pedir essa anulação
com base em coacção; (ii) o autor pediu a declaração de que é proprietário de um bem, porque
alega que o comprou; a acção improcedeu; o mesmo autor pode pedir a declaração de que é
proprietário do mesmo bem por o ter adquirido por usucapião. Também quanto ao réu a lei impõe
que ele deduza os factos que tiver em sua defesa (art. 5.º, n.º 1).

b) Desta limitação resulta que o juiz só pode servir-se, em regra, dos factos articulados
pelas partes como causa de pedir ou como fundamento da excepção. Uma das consequências
deste regime é o de que o juiz não pode utilizar factos que resultem do seu conhecimento privado
(iudex secundum allegata et probata judicare debet, non secundum conscientiam suam100),

100
Já assim DURANDi, Speculum Juris cum Ioan. Andreae Baldi II (Francoforti 1612), 423: secundum allegata &
probata, & non secundum conscientiam ; sobre alguns aspectos históricos deste brocardo, cf. NÖRR, Romanisch-
kanonisches Prozessrecht, 188 ss.; NÖRR, Zur Stellung des Richters im gelehrten Prozess der Frühzeit: Iudex
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/40

diferentemente do que acontece quanto aos factos de conhecimento funcional (cf. art. 5.º, n.º 1, al.
c)): o juiz que entende dever considerar factos do seu conhecimento privado deve declarar-se
impedido e oferecer-se para depor como testemunha sobre esses factos (cf. art. 115.º, n.º 1, al. h),
e 116.º, n.º 1).
Esta solução teve origem na doutrina do processo comum 101. Antes, o conhecimento privado
do juiz era irrelevante e este só tinha de decidir segundo os elementos fornecidos pelo processo
(mesmo que contra o seu conhecimento privado) 102. Como se estabelecia nas OA 3.31.1 pr.: “Todo
Julgador, e Juiz deve ser avisado que sempre julgue segundo que achar no feito alegado, e provado
por as partes, assim Autor, como Réu, tendo sempre maneira em como sua Sentença seja sempre
conforme à substância, fundando-se nas provas dadas por as partes, como direito é; e não deve
julgar segundo sua consciência, salvo em quanto ela fosse formada por as alegações, e provas
feitas por as ditas partes […]”; continuava, dizendo-se em OA 3.31.1, que “E achamos por Direito,
que somente ao Príncipe, que não conhece superior, é dada Autoridade, que em todo o caso possa
julgar segundo sua consciência, deixando qualquer outra prova, ou alegação feita por cada uma das
partes em contrário”103.

c) As partes decidem da delimitação da matéria a resolver e, portanto, da matéria resolvida,


isto é, abrangida pelo caso julgado da decisão. Neste princípio individualista funda-se a
justificação de certas soluções que poderiam, à primeira vista, parecer chocantes. Considerem-se
os seguintes exemplos: (i) A pede a anulação por dolo da venda de x a B e ganha; se não pediu a
condenação de B a restituir x, o tribunal não proferirá essa condenação; se B não restituir x
voluntariamente, A terá de mover outra acção pedindo a condenação de B nessa restituição; (ii) C
pede a condenação de D a pagar o preço de y, que lhe vendeu (mas ainda não entregou) e ganha;
só fica decidido que D deve entregar a C o preço de y, e nada mais; querendo fazer decidir que o
contrato de compra e venda é válido ou que C deve correspondentemente entregar a D y, é
preciso que isso seja pedido por C ou por D (em pedido reconvencional: cf. art. 266.º, n.º 1);
senão, quando D vier em nova acção pedir a condenação de C a entregar y, o tribunal é livre de,
ao contrário do primeiro, considerar a compra e venda nula e absolver C (que fica com o preço,
sem ter de entregar a coisa); (iii) E alega ser credor de F por € 100000, mas numa primeira acção
só pede a condenação em € 10000; se ganhar, isso não significa que o tribunal em segunda acção
esteja vinculado a considerar que ele é credor pelos € 90000 restantes; o tribunal pode considerar,
no primeiro processo, que o contrato que é fonte da obrigação é válido e, no segundo, pode
considerá-lo nulo.

secundum allegata non secundum conscientiam iudicat (1967), 16 ss.; PICÓ I JUNOY, ZZPInt 11 (2006), 37 ss.; PICÓ
I JUNOY, Rdp 62 (2007), 1497 ss.; PICÓ I JUNOY, El Juez y la Prueba/Estudio de la errónea recepción del brocardo
iudex iudicare debet secundum allegata et probata, non secundum conscientiam y su repercusión actual (2007),
19 ss e 53 ss. (defendendo que o brocardo foi interpolado na segunda metade do Século XIX, tendo nele sido
acrescentada, de forma equívoca, a referência à prova pelas partes: cf. a formulação fornecida por WACH,
Vorträge über die Reichs-Civilprocessordnung 2, 61: “Er [der Richter] urteilt secundum allegata et probata
partium, nicht secundum suam conscientiam”); CAVALLONE, Rdp 64 (2009), 861 ss.; na bibliografia mais antiga,
cf. SCHMIDT, Sächs. Arch. 2 (1892), 279 ss.
101
Cf. LIPP, Das private Wissen des Richters (1995), 18 ss.
102
Cf. LIPP, Das private Wissen des Richters, 9 ss.
103
Cf. também OM 3.50 pr.; OF 3.66. pr.
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II/41

4.5. Factos complementares

Os factos complementares são aqueles que concretizam ou complementam os factos


principais alegados pelas partes e que, embora não constituindo a causa de pedir, são
necessários para assegurar a concludência da alegação da parte. Por exemplo: é um facto
complementar aquele que especifica as condições em que se verificou a coacção exercida sobre o
autor ou em que ocorreu o acidente de viação; são também factos complementares aqueles que
respeitam aos danos que continuam a produzir-se durante a pendência da causa.
A não alegação dos factos complementares na petição inicial ou na contestação não tem
qualquer efeito preclusivo e justifica que o juiz deva convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado
(art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4). Mesmo que esse convite não seja realizado, o tribunal pode
considerar os factos complementares que resultem da instrução da causa, desde que as partes
tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre eles (cf. art. 5.º, n.º 2, al. b)).

4.6. Ónus das partes

O princípio dispositivo atribui às partes importantes poderes na conformação do objecto do


processo. Em geral, importa distinguir entre os seguintes ónus das partes relativos ao objecto do
processo:
– O ónus de alegação: compete ao autor invocar os factos que integram a causa de
pedir (cf. art. 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d)) e cabe ao réu alegar os factos em que se
baseiam as excepções, dilatórias ou peremptórias (cf. art. 5.º, n.º 1, e 571.º, n.º 1 e 2
2.ª parte);
– O ónus de impugnação: cabe ao réu impugnar os factos articulados pelo autor na
petição inicial (cf. art. 571.º, n.º 1 e 2 1.ª parte);
– O ónus da prova: compete às partes a prova dos factos controvertidos, isto é, dos
factos alegados por uma parte e impugnados pela outra (cf. art. 342.º a 344.º CC).

4.7. Cooperação do tribunal

O tribunal deve convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na


exposição ou concretização da matéria de facto alegada pelas partes (art. 590.º, n.º 2, al. b), e 4):
trata-se de uma manifestação do dever de cooperação do tribunal com as partes. É claro que,
correspondendo a parte ao convite do tribunal, os eventuais factos complementares por ela
alegados passam a integrar aqueles que o tribunal pode utilizar na apreciação da causa.

4.8. Princípio inquisitório

a) No âmbito do processo civil não são frequentes os processos submetidos à


inquisitoriedade do tribunal: o exemplo mais saliente é constituído pelos – aliás, muito variados –
processos de jurisdição voluntária (cf. art. 986.º, n.º 2). Esta inquisitoriedade é justificada pelo
especial critério de decisão que é específico destes processos: o tribunal decide segundo o que
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entender ser mais conveniente e oportuno (art. 987.º), isto é, segundo um critério de
discricionariedade.
Num plano mais restrito, embora transversal à generalidade dos processos, incumbe ao juiz,
como expressão do princípio do inquisitório, realizar ou ordenar todas as diligências necessárias
ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que pode
conhecer (art. 411.º). Estes factos sobre os quais o tribunal possui poderes instrutórios têm as
seguintes características:
– São factos alegados pelas partes ou factos complementares desses factos (cf. art.
5.º, n.º 1 e 2, al. b));
– São, além disso, factos controvertidos, isto é, factos que não se encontram admitidos
por acordo por falta de impugnação (cf. art. 574.º, n.º 2) ou que não se encontram
assentes por confissão do réu revel (cf. art. 567.º, n.º 1)104.

b) Como se pode concluir do exposto, não se verifica, no processo civil português, nenhuma
relação entre a indisponibilidade sobre o objecto (por este se referir a uma relação jurídica
indisponível) e o processo inquisitório, dado que em parte alguma se estabelece que, quando as
partes não podem dispor do objecto do processo o juiz tem poderes inquisitórios. As
consequências da indisponibilidade sobre o objecto são puramente unilaterais: apenas as partes
ficam limitadas na sua actuação em processo, dado que, quando o objecto é indisponível, não é
admissível a confissão, a desistência ou transacção (cf. art. 289.º, n.º 1), sem que isso se reflicta
num correspondente aumento dos poderes do tribunal.

5. Princípio da oficiosidade
5.1. Matéria de direito

a) O tribunal conhece oficiosamente do direito aplicável (iura novit curia105, da mihi facta,
dabo tibi ius, la cour sait le droit: art. 5.º, n.º 3). Deste postulado decorrem três corolários:
– Um de carácter negativo: o tribunal não pode ser vinculado pelas partes (nem mesmo
por um acordo destas) quanto ao direito aplicável na decisão da causa 106; daí que o
tribunal possa corrigir uma deficiente qualificação jurídica fornecida pelas partes 107;
– Um outro igualmente de carácter negativo: as partes não podem afastar a aplicação
pelo tribunal das regras de carácter imperativo, apesar de, naturalmente, poderem

104
Sobre os poderes instrutórios do juiz, cf., numa perspectiva comparativa, BARBOSA MOREIRA, Os poderes do juiz
na direção e na instrução do processo, in BARBOSA MOREIRA, Temas de Direito Processual (Quarta Série) (1989), 45
ss.; TARUFFO , Rtdpc 60 (2006), 451 ss.; VÁSQUEZ SOTELO, RePro 177 (2009), 93 ss.; numa perspectiva histórico-
dogmática, cf. CAVALLONE, Il giudice e la prova nel processo civile (1991), 3 ss.
105
Cf. SENTIS MELENDO, El Juez y el Derecho (1957), 9 ss., referindo as opiniões que atribuem a origem do
brocardo à interpelação de um juiz que, cansado com as deambulações do advogado, o intimou “ Venite ad
factum. Curia ius novit.”
106
Diferentemente, SCHLOSSER, Einverständliches Parteihandeln im Zivilprozeβ (1967), 33 ss.; BAUR, FS Eduard
Bötticher (1969), 3 ss.; WÜRTHWEIN, Umfang und Grenzen des Parteienflusses auf die Urteilsgrundlagen im
Zivilprozess (1977), 103 ss.
107
Cf. Ac. STJ 3/2001, de 9/2.
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dispor das regras de natureza supletiva através de estipulações que as substituem 108;
assim, por exemplo, as partes não podem pretender que o tribunal aprecie apenas a
justificação para a denúncia de um contrato se o mesmo houver de ser considerado
inválido por violação da forma legal109;
– Ainda um outro de carácter positivo: o tribunal deve analisar os factos alegados pelas
partes segundo todas as possíveis qualificações legais 110; este dever de esgotamento
das qualificações jurídicas é, em regra, irrelevante quando a acção proceder, porque
para o autor é, em princípio, indiferente o fundamento dessa procedência, mas é
sempre relevante quando a acção houver de ser julgada improcedente, porque, neste
caso, há que esgotar todas as possibilidades de procedência da acção.

b) O conhecimento oficioso da matéria de direito encontra a sua justificação na


circunstância de se pretender que a solução dada à hipótese presente ao tribunal seja a realmente
verdadeira (princípio da verdade material) e não apenas aquela que se justifica em face da
maneira como decorreu o processo (princípio da verdade formal). De molde a evitar as chamadas
“decisões-surpresa”, o tribunal pode ter de ouvir as partes antes de decidir com base numa
diferente qualificação jurídica fornecida por qualquer delas (cf. art. 3.º, n.º 3). Isto é: se o tribunal
escolher uma “terceira via”111 que não coincide com nenhuma daquelas que foram defendidas
pelas partes, tem de ouvir estas partes previamente à decisão.
É também por isso que o tribunal pode conhecer oficiosamente de algumas nulidades
processuais (cf. art. 196.º) e da generalidade das excepções dilatórias (cf. art. 6.º, n.º 2, e 578.º).
Em especial, incumbe ao juiz suprir a falta de pressupostos processuais que seja susceptível de
sanação: para esse efeito, cabe-lhe determinar a realização dos actos necessários à regularização
da instância ou, quando estiver em causa uma modificação subjectiva da instância através da
intervenção de terceiros, convidar as partes a praticar os respectivos actos (art. 6.º, n.º 2).

5.2. Factos acessórios

Os factos que individualizam a pretensão material alegada pelo autor – isto é, os factos que
constituem a causa de pedir –, os factos que fundamentam a excepção invocada pelo réu e os
factos complementares estão submetidos ao princípio da disponibilidade (cf. art. 5.º, n.º 1 e 2, al.
b)): aqueles factos só podem ser considerados pelo tribunal se forem alegados pelas partes; estes
factos complementares podem ser considerados se forem alegados pelas partes ou se, tendo
esses factos surgido na instrução da causa, depois de as partes terem tido a possibilidade de
sobre eles se pronunciarem.
Diferente é o regime definido para os factos instrumentais (ou probatórios), isto é, para os
factos que indiciam, através de presunções legais ou judiciais (cf. art. 349.º a 351.º CC), os factos

108
Sobre o problema, cf. CAHN, AcP 198 (1998), 35 ss. e 43 ss.
109
Cf. HÄSEMEYER, ZZP 85 (1972), 207 ss.
110
Cf. ROSENBERG, ZZP 49 (1925), 38 ss.
111
Cf. CHIARLONI, Giur. it. 2002, 1363.
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principais ou complementares112. Por exemplo: a infiltração de águas da chuva prova que, na


construção do imóvel, não foram observadas as regras da boa construção de edifícios.
Independentemente de qualquer alegação das partes, estes factos instrumentais podem resultar
da instrução da causa, hipótese em que podem ser considerados oficiosamente pelo tribunal da
causa (art. 5.º, n.º 2, al. a)).

5.3. Factos jurígenos e normativos

Os factos que as partes têm o ónus de alegar são os factos que são subsumíveis à previsão
de uma regra jurídica ( Subsumtionstatsachen), isto é, que são necessários para a aplicação de uma
regra jurídica113. Mas nem todos os factos que são relevantes para a apreciação de uma causa têm
de ser alegados pelas partes. Entre eles há que destacar os seguintes:

– Os factos jurígenos, isto é, os factos que estão subjacentes à criação


jurisprudencial do direito (Rechtsfortbildungstatsachen; legislative facts), ou seja, os
factos que podem ser invocados para a fundamentação de uma regra jurídica de
origem jurisprudencial e que, por isso, integram, no silogismo judiciário, a premissa
maior114;
– Os factos normativos (Normtatsachen), isto é, os factos que, sendo referidos a
um saber ou conhecimento pré-jurídico, são indispensáveis para a aplicação de uma
regra jurídica115, como, por exemplo, o grau de compreensão de um destinatário
médio de cláusulas contratuais gerais ou os riscos de diferentes métodos de
tratamento na avaliação da falta de cuidado do médico 116.

5.4. Máximas de experiência

As máximas de experiência (ou seja, as regras da técnica, da ciência, da indústria ou do


comércio que são especialmente relevantes na avaliação da prova 117) pertencem igualmente ao
âmbito do conhecimento oficioso do tribunal.

5.5. Concessão de providências

Como excepção ao princípio da disponibilidade das partes sobre o pedido (cf. art. 609.º, n.º
1) e à regra da nulidade da decisão que conhece de pedido não formulado pelas partes (cf. art.
615.º, n.º 1, al. e)), o art. 2007.º, n.º 1, CC permite que o tribunal conceda oficiosamente alimentos
provisórios a um alimentando menor. Algo de semelhante se encontra previsto no art. 931.º, n.º 7,
quanto aos alimentos devidos a um dos cônjuges.
Há ainda que admitir que o tribunal possa retirar da decisão proferida as respectivas
consequências legais. Assim, o Supremo Tribunal de Justiça definiu que, quando o tribunal
conhecer oficiosamente da nulidade de um negócio jurídico invocado no pressuposto da sua
validade e quando na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, a parte deve ser

112
Para uma visão mais analítica, cf. SOARES GOMES, Rev. CEJ 3 (2005), 139 e 143 ss.; LEBRE DE FREITAS, Introdução
2
, 150 s.
113
SEITER, FS Fritz Baur (1981), 573.
114
SEITER, FS Fritz Baur, 574 s.
115
SCHMIDT, FS Rudolf Wassermann (1985), 811; LAMES, Rechtsfortbildung als Prozeβzweck (1993), 57 ss.
116
SANDER, Normtatsachen im Zivilprozeβ (1998), 17 ss.
117
Já assim STEIN, Das private Wissen des Richters (1893), 74 ss.
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condenada, ex officio, na restituição do recebido em cumprimento desse negócio, com fundamento


no disposto no art. 289.º, n.º 1, CC118.

5.6. Caracterização do princípio

O princípio da oficiosidade não deve ser confundido com o princípio do inquisitório. O


tribunal conhece oficiosamente, isto é, por sua iniciativa, de determinadas matérias,
independentemente de ter poderes para as investigar ou de para elas coligir provas por sua
iniciativa. Por exemplo: a incompetência absoluta é uma excepção dilatória de conhecimento
oficioso (cf. art. 96.º e 97.º, n.º 1); desta circunstância decorre que, mesmo que nenhuma das
partes invoque a incompetência absoluta do tribunal, este tem de controlar, por sua iniciativa, se é
competente em razão da matéria, da hierarquia e das regras da competência internacional para
apreciar a causa; mas deste conhecimento oficioso não decorre que o tribunal tenha de investigar,
igualmente por sua iniciativa, factos tendentes a comprovar a sua competência material, hierárquica
e internacional. No entanto, ainda que a matéria seja de conhecimento oficioso, o tribunal deve
ouvir previamente as partes antes de conhecer de uma matéria sobre a qual elas ainda não se
pronunciaram (art. 3.º, n.º 3).
O corolário da indisponibilidade das partes em processo é o conhecimento oficioso (e não a
inquisitoriedade judiciária): o que é de conhecimento oficioso pelo tribunal é indisponível para as
partes, e vice-versa. Por exemplo: a generalidade das excepções dilatórias é de conhecimento
oficioso (cf. art. 578.º); portanto, a generalidade dessas excepções está subtraída à vontade das
partes; a violação de pacto privativo de jurisdição e a preterição de tribunal arbitral voluntário não
são de conhecimento oficioso (cf. art. 578.º); portanto, se o réu não invocar essas excepções, o
tribunal não pode conhecer delas.
Em regra, toda a matéria de direito é de conhecimento oficioso, incluindo nela a matéria de
direito processual, pelo que toda essa matéria está subtraída à disponibilidade das partes e o
tribunal conhece dela qualquer que seja a posição das partes quanto a ela. Quanto à matéria de
facto, fala-se de conhecimento oficioso para referir que o tribunal pode tomar conhecimento dela e
utilizá-la como fundamento da sua decisão, mesmo que as partes o não solicitem. Portanto,
enquanto a inquisitoriedade significa que o tribunal pode investigar, por sua iniciativa, matéria de
facto relevante, a oficiosidade implica que o tribunal pode conhecer, independentemente de
qualquer solicitação da parte, da matéria de facto que seja trazida ao processo, mesmo que não
seja por iniciativa das partes (cf., por exemplo, art. 5.º, n.º 2).

IV. Princípio da gestão processual


1. Generalidades
Sem prejuízo do ónus de impulso que recai sobre as partes, o juiz tem o dever de dirigir
activamente o processo e de providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente
as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente
ou meramente dilatório e adoptando, depois de ouvir as partes, mecanismos de simplificação e
agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável (art. 6.º, n.º
1). A atribuição ao juiz de poderes de gestão processual insere-se na tendência para substituir um
processo rígido por um processo flexível resultante de uma decisão discricionária do juiz. Nas

118
Ass. 4/95, de 17/5.
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ordens jurídicas anglo-saxónicas, a gestão processual inclui-se no chamado case management


(cf. Rule 1.4., 3.1. e 29.2 CPR)119.
A gestão processual visa diminuir os custos, o tempo e a complexidade do procedimento.
Esta gestão pressupõe um juiz empenhado na resolução célere e justa da causa 120 e traduz-se
num aspecto substancial – a condução do processo – e num aspecto instrumental – a adequação
formal (cf. art. 547.º). O dever de gestão processual procura ajudar a solucionar a “equação
processual”: uma decisão justa do processo com os menores custos, a maior celeridade e a menor
complexidade que forem possíveis no caso concreto121.

2. Aspecto substancial
2.1. Generalidades

Sem prejuízo do impulso que incumbe às partes, cumpre ao juiz, no âmbito do dever de
gestão processual, providenciar pelo andamento regular e célere do processo (art. 6.º, n.º 1). Os
poderes de impulso concedidos ao tribunal decorrem de um modelo publicístico do processo 122 e
destinam-se a evitar a situação de inactividade criticada com ironia por MENGER (1841-1906), um
dos expoentes do “socialismo jurídico”: “[…] segundo todos os códigos de processos civis das
nações cultas, o tribunal tem, depois do início do litígio, de ser levado, de forma específica, a
praticar todos os passos mais importantes, do mesmo modo que um relógio estragado tem de ser
constantemente abanado e sacudido para entrar de novo em funcionamento durante algum
tempo”123.

2.2. Concretização

O aspecto substancial do dever de gestão processual expressa-se no dever de condução do


processo que recai sobre o juiz, dever que é justificado pela necessidade de o juiz providenciar
pelo andamento célere do processo (cf. art. 6.º, n.º 1). Para a obtenção deste fim, deve o juiz:
– Promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusar o
que for impertinente ou meramente dilatório (art. 6.º, n.º 1); utilizando uma
terminologia proposta por WACH (1843-1926), pode falar-se, respectivamente, de um
poder de “direcção do processo” e de um poder de “correcção do processo” 124;

119
Cf. ANDREWS, The Modern Civil Process (2008), 48 ss.; ANDREWS, C.J.Q. 19 (2000), 20, afirma, em referência às
Civil Procedural Rules de 1998, que, o case management é “the jewel in the new procedural crown ”; na
perspectiva norte-americana, cf., ainda com interesse, RESNIK, Harv. L. R. 96 (1982/1983), 376 ss.
120
Cf. ZUCKERMAN, Rtdpc 62/Supl. 3 (2008), 123: “There are three preconditions to good civil justice
management: i) a clear objective; ii) that managers have adequate powers to achieve the objective; iii) judges
who understand the objective and are willing to use their powers in order to achieve it ”.
121
Cf., numa formulação algo distinta, ZUCKERMAN, in TROCKER/VARANO (Eds.), The Reforms of Civil Procedure in
Comparative Perspective (2005), 149: “The overriding objective of dealing with cases justly represents [...] a
three-dimensional strategy of justice: the court must aim to achieve not just a correct outcome, but must do so
within a reasonable time and by a reasonable and proportionate use of procedural recourses ”.
122
Cf. STÜRNER, FS Walter Gerhard (2004), 967 ss.
123
MENGER, Das Bürgerliche Recht und die besitzlosen Volksklassen 3, 32.
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II/47

– Providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais


susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à
regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser
praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo (art. 6.º, n.º 2); trata-se da
concessão de um poder de sanação da inadmissibilidade do processo.
Um outro aspecto da condução do processo é aquele que respeita à programação, após a
audição dos mandatários, dos actos a realizar na audiência final, estabelecendo o número de
sessões e a sua provável duração e designando as respectivas datas (cf. art. 591.º, n.º 1, al. g)) 125.
Cabe ainda nos poderes de condução a opção do juiz por uma perícia colegial (cf. art. 468.º, n.º 1,
al. a)), pelo proferimento por escrito do despacho saneador (cf. art. 595.º, n.º 2) ou pelo
conhecimento do incidente de falta de autenticidade do documento (cf. art. 450.º, n.º 2), bem como
a possibilidade de o juiz remeter o processo para mediação, sempre que nenhuma das partes a tal
se oponha (cf. art. 273.º, n.º 1), e de realizar uma tentativa de conciliação entre as partes em
qualquer estado do processo (cf. art. 594.º, n.º 1). A solução do litígio através de um meio
alternativo ou mediante a conciliação das partes também corresponde ao exercício de poderes de
gestão.

3. Aspecto instrumental
3.1. Generalidades

a) O dever de condução do processo que recai sobre o juiz serve-se, como instrumento, do
poder de simplificar e de agilizar o processo, isto é, do poder de modificar a tramitação processual
ou os actos processuais: o case management atribui ao juiz o poder de adequar o procedimento à
pequena ou grande complexidade da causa126. A simplificação e agilização são aferidas,
naturalmente, em referência ao standard legal (nomeadamente, em relação à tramitação do
processo declarativo comum, quer em 1.ª instância, quer na fase de recurso). Assim, a
simplificação implica uma tramitação menos pesada do que aquela que consta da lei; a agilização,
em contrapartida, envolve uma forma mais fácil de atingir a justa composição do litígio: nuns
casos, a agilização pode traduzir-se numa simplificação da tramitação, mas, noutros, a agilização
pode envolver a prática de actos não previstos na lei. A maneira mais fácil de resolver um
processo complexo (como é aquele que comporta uma pluralidade de partes e ou de pedidos ou
que tem como objecto uma questão jurídica complicada) pode ser, por exemplo, a de apreciar, de
forma gradual e sucessiva (algo à semelhança da Stufenklage alemã (§ 254 ZPO)), determinadas

124
WACH, KritV 14 (1872), 339; cf., antecipando a distinção, GROLMAN, Theorie des gerichtlichen Verfahrens in
bürgerlichen Rechtsstreitigkeiten (1800), 181; sobre alguns aspectos históricos do poder de direcção do juiz, cf.
HENKE, JZ 2005, 1028.
125
Esta programação pactuada da audiência final apresenta semelhanças com os contrats de procédure do
direito francês (art. 764, § 3, NCPC: [Le juge] peut, après avoir recueilli l'accord des avocats, fixer un calendrier de la
mise en état): cf. FERRAND, in TROCKER/VARANO (Eds.), The Reforms of Civil Procedure in Comparative Perspective
(2005), 21; CADIET, Rtdpc 62/Supl. 3 (2008), 24.
126
CALAMANDREI, Opere Giuridiche IV (1970), 204 ss., refere-se, embora num enquadramento algo diferente, a
um “principio della adattabilità del procedimento alle esigenze della causa ”.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/48

questões específicas. Nos art. 37.º, n.º 4, e 266.º, n.º 5, encontra-se uma forma radical da
agilização processual: é com base nesta agilização que se permite que o juiz determine a
separação de várias causas que se encontram reunidas num único processo.
Para obter a simplificação ou agilização o juiz dispõe do poder de adequação formal. O juiz
deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o
conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo
equitativo (art. 547.º). Portanto, o juiz pode alterar a tramitação legal da causa – tanto prescindindo
da realização de certos actos impostos pela lei, como impondo a prática de actos não previstos na
lei – e pode ainda modificar o conteúdo e a forma dos actos127.
Em algumas ordens jurídicas é concedida ao juiz uma opção entre várias alternativas
definidas na lei: por exemplo, no direito inglês, o juiz, de acordo com o valor da causa e outros
factores, pode escolher o small claims track (Rule 27.1 CPR), o fast track (Rule 28.2 CPR) ou o
multi-track (Rule 29.2 CPR); no direito francês, o juiz pode escolher, em alternativa ao circuit long
(art. 763 a 787 NCPC), um circuit moyen (art. 761 NCPC) ou um circuit court (art. 760 NCPC)128. É
outra a orientação do direito português, dado que este limita-se a fornecer, como critério para o
exercício do poder de adequação formal, o parâmetro do processo equitativo (art. 547.º in fine).
Este critério tem de ser visto em conjugação com o overriding objective estabelecido no art. 6.º, n.º
1 in fine: a justa composição do litígio em prazo razoável, isto é, num prazo que garanta a utilidade
da tutela requerida. Isto justifica que aquele critério deve ser aplicado pelo juiz numa dupla
vertente: o processo equitativo deve servir de limite à adequação formal, no sentido de que esta
adequação não pode violar as garantias daquele processo, mas também deve ser utilizado como
orientador da decisão do juiz, na acepção de que este deve utilizar o poder de adequação formal
para construir, segundo a complexidade e as particularidades da causa, um processo equitativo.
Neste sentido, pode dizer-se que a adequação formal impõe ao juiz da causa uma “optimização”
do processo equitativo.
Do exposto decorre que o tempo do procedimento não é tudo o que importa considerar na
determinação pelo juiz de uma tramitação alternativa, dado que não só não se pode sacrificar a
equidade processual à celeridade, como pode suceder que esta equidade exija mais tempo. O
critério que deve orientar a adequação formal é um critério de proporcionalidade: o processo deve
ter uma tramitação com uma estrutura proporcional à complexidade da causa, pelo que causas de
menor complexidade devem ter uma tramitação mais simples do que a legalmente definida e
causas de maior complexidade podem ter uma tramitação mais pesada do que aquela que se
encontra estabelecida na lei. Noutras palavras: a complexidade do procedimento deve ser
proporcional à complexidade da causa. No fundo, há que utilizar na adequação formal um critério
de proporcionalidade semelhante àquele que orienta quer a fixação da taxa de justiça (cf. art.
529.º, n.º 2, e 530.º, n.º 7), quer a admissibilidade do recurso em função da relação do valor da

127
Cf., ainda em relação ao direito anterior, MADEIRA DE BRITO, in AAVV, Aspectos do Novo Processo Civil (1997),
31 ss.
128
Cf. CADIET, Rtdpc 62 (2008), 1314 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/49

causa com a alçada do tribunal recorrido (cf. art. 629.º, n.º 1): só as causas de valor mais elevado
admitem uma tramitação mais complexa que inclui a fase de recurso.
A adequação formal permite estabelecer uma tramitação construída à medida da
complexidade da causa129. Com a possibilidade desta adequação, a exigência do processo
equitativo ganha uma nova dimensão: a equidade processual passa também a impor uma
tramitação adequada à complexidade da causa.

b) As hipóteses de utilização do poder de adequação formal são inúmeras, quer no âmbito


mais alargado de substituição da tramitação legal, quer no âmbito mais restrito de mera adaptação
dessa tramitação. Efectivamente, o poder de adequação formal permite a construção, em bloco,
de uma tramitação alternativa para o processo (arquitectando quer um processo mais complexo,
quer um processo com características de sumariedade ou até mesmo de urgência), mas também
possibilita a mera adaptação de alguns aspectos da tramitação legal. Por exemplo: o juiz pode
determinar que uma questão prejudicial seja apreciada antes de outras questões, de modo a evitar
que a decisão dessa questão torne inúteis todos os demais actos que seriam entretanto praticados
na acção; o juiz pode ordenar a realização da prova de um facto que condiciona a procedência da
causa, de modo a permitir que, na hipótese de falta de prova desse facto, possa ser pronunciada
uma imediata decisão de improcedência; o juiz pode estabelecer que a marcação da audiência
final não aguarde o resultado de uma prova pericial; o juiz pode determinar que uma testemunha
seja ouvida antes de todas as demais. A adequação formal, nesta vertente de adaptação da
tramitação legal, também possui algumas concretizações na lei: podem ser referidas aquelas que
estão previstas nos art. 37.º, n.º 2, e 555.º, n.º 1 (autorização da cumulação de pedidos), no art.
40.º, n.º 3 (adequação da tramitação processual quando as testemunhas são inquiridas pelo juiz),
no art. 376.º, n.º 3 (autorização da cumulação de providências cautelares), no art. 590.º, n.º 1
(determinação pelo juiz da submissão da petição inicial a despacho liminar) e no art. 590.º, n.º 2,
al. c) (determinação da junção de documentos com vista a permitir a apreciação de excepções
dilatórias ou do mérito da causa).
Nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, a adequação formal
traduz-se ainda na possibilidade da escolha de uma ou várias alternativas de entre as opções
concedidas ao juiz (cf. art. 597.º). Em concreto, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do
acto ao fim do processo, pode convocar a audiência prévia (art. 597.º, al. b); cf. art. 591.º), proferir
despacho destinado a programar a audiência final e a designar as respectivas datas (art. 597.º, al.
f)) e ainda designar dia para esta audiência, mediante prévio acordo de datas com os mandatários
das partes (art. 597.º, al. g); cf. art. 151.º, n.º 1).

129
Cf. ANDREWS, C.J.Q. 19 (2000), 24 (“litigation must be tailored to the size and nature of dispute ”); CADIET,
Rtdpc 62 (2008), 1316 (“ non più secondo un modello, per cosi dire prêt a porter, ma, piuttosto, secondo un
modello «su misura»”); DE CRISTOFARO, Rdp 65 (2010), 282 (“ripensamento della disciplina procedimentale non
più secondo un modello prêt a porter, bensì con un «abito» tagliato alla misura”).
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/50

3.2. Audição das partes

A adequação formal requer a prévia audição das partes (art. 6.º, n.º 1), pelo que comete
uma nulidade processual o juiz que determinar essa adequação sem previamente ouvir as partes
(cf. art. 195.º, n.º 1). Num certo sentido, pode dizer-se que a adequação formal é expressão da
cooperação entre o tribunal e as partes.

3.3. Nulidades processuais

Ocorre uma nulidade processual (inominada) quando é praticado um acto que a lei não
admite ou quando é omitido um acto que a lei prescreve (cf. art. 195.º, n.º 1). Verificando-se a
adequação formal da tramitação legal, o parâmetro passa a ser o procedimento definido em
função dessa adequação. Sendo assim, constitui uma nulidade processual a realização de um
acto não estabelecido nessa tramitação, bem como a omissão de um acto nela previsto 130.

3.4. Fase da gestão processual

A tramitação do processo declarativo comum comporta, depois da fase dos articulados, uma
fase de gestão processual. Nesta encontra-se regulada quer uma gestão inicial – destinada,
designadamente, a providenciar pelo suprimento das excepções dilatórias (cf. art. 590.º, n.º 2, al.
a)) e a controlar os articulados das partes (cf. art. 590.º, n.º 1, e 2, al. b), 3 e 4) –, quer uma gestão
subsequente – respeitante, nomeadamente, à dispensa da audiência prévia (cf. art. 593.º, n.º 1), à
escolha de uma ou várias opções nas acções de valor não superior a metade da alçada da
Relação (cf. art. 597.º) e à programação da audiência final (cf. art. 591.º, n.º 1, al. g)).
A adequação formal, enquanto acto de gestão processual, pode ser ordenada pelo juiz a
qualquer momento da tramitação da causa, mas ela é normalmente determinada na fase da
gestão processual. Na verdade, a adequação pode ser decidida quer na audiência prévia (art.
590.º, n.º 1, al. e)), quer no despacho que substitui essa audiência (art. 593.º, n.º 2, al. b), e 597.º,
al. d)). Nesta última hipótese, há que entender, nomeadamente pela remissão daqueles preceitos
para o art. 6.º, n.º 1, que a agilização processual não é válida sem a prévia audição das partes.

4. Limites legais
4.1. Pressupostos da adequação

A simplificação e a agilização processuais devem assegurar um processo equitativo (cf. art.


547.º). A situação não é problemática quando uma complex litigation impõe que o juiz determine a
prática de actos não previstos na lei: se forem respeitados os princípios da igualdade das partes e
do contraditório, o acrescento de actos não estabelecidos na lei não levanta nenhum problema. A
questão é mais complicada quando se trata de simplificar a tramitação legal, ou seja, quando o juiz
entende dispensar a prática de actos pertencentes à tramitação legal, pois que, nesta hipótese, há
que substituir uma tramitação legal por uma tramitação judicial sem afectar a equidade processual.

130
Cf. MADEIRA DE BRITO, in AAVV, Aspectos do Novo Processo Civil, 63 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/51

A resposta mais óbvia parece ser a de que, na decisão de adequação formal, não podem
ser afastadas pelo juiz regras imperativas. No entanto, não parece que a adequação formal se
deva orientar pelo carácter disponível ou supletivo das regras de procedimento. O que importa
assegurar é que a tramitação alternativa continue a garantir um processo equitativo, pelo que há
que determinar (um pouco à semelhança das substantialia iudicii dos glosadores131) qual é o
standard mínimo que resulta da tramitação legal e que deve ser respeitado em qualquer
procedimento alternativo definido pelo juiz. Nesta perspectiva, pode dizer-se que em qualquer
tramitação tem de estar assegurada a possibilidade de as partes alegarem as suas razões de
facto e de direito e de realizarem a prova dos factos controvertidos, bem como a oportunidade de
o tribunal se pronunciar tanto sobre a matéria de facto, como sobre a de direito e, quanto a esta
última, quer numa perspectiva processual, quer numa óptica substantiva. Respeitado este
standard mínimo, toda a tramitação determinada pelo juiz está em condições de ser válida.

4.2. Resultados da adequação

a) A tramitação determinada pelo juiz deve assegurar a possibilidade de as partes


exprimirem as suas razões de facto e de direito e de realizarem a prova dos factos controvertidos
e deve estabelecer um acto para o tribunal se pronunciar sobre a matéria de facto e de direito.
Dentro deste enquadramento geral, a tramitação definida pelo juiz deve ainda, num plano interno,
respeitar os princípios da igualdade das partes e do contraditório e não contender com a aquisição
processual de factos, nem com a admissibilidade de meios probatórios: é o que pode ser retirado
do disposto no art. 630.º, n.º 2, quanto aos fundamentos da recorribilidade da decisão
(discricionária) de adequação formal.
Importa referir que, quando seja interposto recurso da decisão de simplificação ou de
agilização, ao tribunal de recurso compete apenas verificar se os princípios da igualdade das
partes ou do contraditório foram violados ou se a aquisição de factos ou a admissibilidade de
meios de prova foram desrespeitadas, não cabendo a esse tribunal substituir-se ao tribunal
recorrido na medida de adequação formal a tomar. Trata-se, noutros termos, de um controlo da
legalidade dessa medida, não de um controlo do seu mérito.

b) A simplificação e agilização processuais assentam na disponibilidade do juiz sobre o


procedimento. A adequação formal não contende, todavia, com o domínio das partes sobre o
processo no que respeita ao impulso processual. O juiz, ao simplificar ou agilizar o processo,
define uma tramitação alternativa, mas as partes continuam a ter a iniciativa do impulso
processual, ou seja, a ter o ónus de praticar os actos que enformam essa tramitação, e a poder
terminar o processo através da desistência do pedido ou da instância, da confissão do pedido ou
da celebração de uma transacção (cf. art. 277.º, al. e), e 283.º).

131
Cf. NÖRR, ZRG (Kan. Abt.), 78 (1992), 192 ss. = NÖRR, Iudicium est actus trium personarm (1993), 96 ss.
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II/52

V. Princípio da cooperação
1. Caracterização
Segundo o princípio da cooperação, as partes e o tribunal devem colaborar entre si na
resolução do conflito de interesses subjacente à acção 132.

2. Concretização
2.1. Posição das partes

O dever de cooperação assenta, quanto às partes, num dever de actuação orientado pela
eficiência e proporcionalidade. Em concreto, o dever de cooperação traduz-se no dever de
litigância de boa fé (cf. art. 8.º), bem como no dever de fornecer, a convite do juiz, os
esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes (art. 7.º, n.º
2)133. A infracção do dever de cooperação implica, quando seja grave, a litigância de má fé da
parte (art. 542.º, n.º 2, al. c)).
O dever de cooperação das partes estende-se igualmente à área da prova. O art. 417.º, n.º
1, estabelece, na sequência do direito do tribunal à coadjuvação de outras entidades (art. 202.º,
n.º 3, CRP; art. 23.º, n.º 1, LOSJ), que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o
dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for
perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e
praticando os actos que forem determinados.

2.2. Posição do tribunal

a) O dever de colaboração do tribunal (trata-se, na realidade, de um poder-dever ou de um


dever funcional) destina-se a incrementar a eficiência do processo, a assegurar a igualdade de
oportunidades das partes e a promover a descoberta da verdade 134. Este dever de colaboração do
tribunal é uma “forma de expressão de um processo civil dialógico”135.
O dever de cooperação do tribunal tem essencialmente uma função assistencial das partes,
pelo que não pode ser confundido com um poder discricionário do tribunal: não se trata de atribuir
ao tribunal um poder para o mesmo utilizar quando entender e como entender, mas de impor ao
tribunal um dever de auxílio das partes 136. O dever de colaboração desdobra-se nos seguintes
deveres:

132
Sobre os aspectos ideológicos do princípio da cooperação, cf. DEREN-YILDIRIM, FS Walter H. Rechberger (2005),
103 ss.
133
Sobre o conteúdo possível deste dever de cooperação, cf. STÜRNER, Die Aufklärungspflicht der Parteien im
Zivilprozess (1976), 134 ss.
134
Cf. LAUMEN, Das Rechtsgespräch im Zivilprozeβ (1984), 120 ss.
135
STÜRNER, ZZP 123 (2010), 153.
136
Cf. STÜRNER, Die richterliche Aufklärung im Zivilprozeβ (1982), 28 ss.
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II/53

– Dever de prevenção (correspondente à Hinweispflicht137); o tribunal tem o dever de


prevenir as partes sobre a falta de alguns pressupostos processuais (cf. art. 6.º, n.º 2,
e 508.º, n.º 1, al. a)) e sobre irregularidades ou insuficiências das suas peças ou
alegações (cf. art. 590.º, n.º 2, al. b), 591.º, n.º 1, al. c), 639.º, n.º 3, e 652.º, n.º 1, al.
a)); o dever de prevenção tem uma especial importância nos processos subordinados
à inquisitoriedade judiciária (como são os processos de jurisdição voluntária: cf. art.
986.º, n.º 2) e nos processos que a lei impõe como forma de exercício de um direito
(como é o caso das acções relativas aos estados pessoais que terminam com uma
“sentenza costitutiva necessaria”138)139;
– Dever de esclarecimento; o tribunal tem o dever de se esclarecer junto das partes
quanto às dúvidas que tenha sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo
(cf. art. 6.º, n.º 2); trata-se de um correspondente do antigo interrogatio ad
clarificandum e do mais recente Fragerecht, que, como já WACH (1843-1926)
afirmava, se situa no plano da informação, e não da inquisitoriedade, do tribunal 140;
– Dever de consulta das partes; o tribunal tem o dever de consultar as partes sempre
que pretenda conhecer de matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não
tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (cf. art. 3.º, n.º 3); com o
cumprimento deste dever procura-se obviar às chamadas “decisões-surpresa”, isto é,
às decisões com fundamentos de facto ou de direito inesperados para as partes (cf.
art. 591.º, n.º 1, al. b), 654.º, n.º 1, 655.º, n.º 1, 665.º, n.º 3, e 687.º, n.º 2); por
exemplo: o autor baseia o seu pedido num contrato celebrado com o réu; esta parte
não invoca a nulidade do contrato; o tribunal entende que o contrato é nulo e
pretende conhecer oficiosamente dessa nulidade (cf. art. 286.º CC); não o deve fazer
antes de consultar as partes sobre essa invalidade;
– Dever de auxílio das partes; o tribunal tem o dever de auxiliar as partes na remoção
das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento dos
seus ónus ou deveres processuais (cf. art. 7.º, n.º 4); encontra-se uma concretização
deste dever de auxílio no art. 418, n.º 1, quanto à obtenção de informações na posse
de serviços administrativos.

137
Cf. STÜRNER, Die richterliche Aufklärung im Zivilprozeβ, 43 ss.; PETERS, Richterliche Hinweispflichten und
Beweisinitiativen im Zivilprozeβ (1983), 109 ss.; PETERS, FS Kostas E. Beys II (2003), 1243 ss.; REISCHL, ZZP 116
(2003), 81 ss.; este dever de prevenção já se encontrava consagrado no direito justinianeu: cf. BETHMANN-
HOLLWEG, Der Civilprozeβ des gemeinen Rechts in geschichtlicher Entwicklung III (1866), 290.
138
Cf. CALAMANDREI, in Studi di diritto processuale in onore di Giuseppe Chiovenda (1927), 147.
139
Entendendo que a richterliche Hinweispflicht implica o dever de o juiz prevenir as partes sobre um ius cogens
aplicável, cf. SPICKHOFF, Richterliche Aufklärungspflicht und materielles Recht (1999), 46 ss., 52, 73 s. e 75 s.
140
WACH, Vorträge über die Reichs-Civilprocessordnung 2, 72; da admissibilidade de uma Fragestellung fala
10
BAYER, Vorträge über den deutschen gemeinen ordentlichen Civilproceβ (1869), 35; sobre a evolução histórica
do direito romano ao processo comum, cf. STRODTHOFF, Die richterliche Frage- und Erörterungspflicht im
deutschen Zivilprozeβ in historischer Perspektive (2004), 22 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/54

b) Os deveres de prevenção e de esclarecimento não contrariam o princípio da


imparcialidade do juiz (cf. art. 115.º e 119.º) se essa colaboração tiver um carácter complementar
ou corrector da actividade da parte 141: o juiz não perde a sua imparcialidade pela circunstância de
colaborar com qualquer das partes na remoção de incoerências, obscuridades, ambiguidades ou
lacunas nas suas peças, na aclaração das questões por elas suscitadas ou na concretização de
um pedido genérico (cf. art. 556.º, n.º 1). O que é indispensável é que a colaboração do juiz seja
realizada sem quebra da sua imparcialidade, isto é, seja fornecida a ambas as partes de forma
igual. Neste contexto, há que concluir que não é a colaboração devida que é parcial; o que pode
ser parcial é a ausência dessa colaboração quando devida pela lei 142 (à semelhança do que
acontece com o árbitro de futebol que não assinala as faltas cometidas por uma das equipas).

c) Também se pode perguntar se o dever de colaboração do tribunal deve ser observado


quando a parte esteja representada por advogado. Deve entender-se que a representação por
advogado não dispensa o tribunal de colaborar com as partes, embora a ausência dessa
representação deva aumentar a diligência do tribunal no cumprimento do dever de colaboração 143.
Por exemplo: o tribunal deve informar, de forma clara, fiável e oficial, a parte de um processo de
adopção em que ela não se encontra representada por advogado sobre as vias, formas e prazo de
recurso da decisão que decretou a adopção144.

d) Um ponto discutível é o de saber quais as consequências que decorrem do não


cumprimento pelo juiz dos deveres de prevenção e de consulta. A omissão destes deveres traduz-
se numa nulidade processual, porque o tribunal deixa de praticar um acto que não pode omitir (cf.
art. 195.º, n.º 1). Sucede, no entanto, que esta nulidade só se torna patente quando o tribunal
profere uma decisão, apontando, por exemplo, a falta de um pressuposto processual que não
convidou a parte a sanar ou decidindo uma questão de direito que as partes não discutiram no
processo. Isto significa que a nulidade processual decorrente da omissão de um acto devido é
consumida pela nulidade da decisão que conhece de matéria de que, nas condições em que o faz,
não podia conhecer (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d)).

2.3. Posição comum

O princípio da cooperação também se manifesta na posição recíproca de qualquer dos


sujeitos processuais perante todos os demais. Assim, por exemplo, todos os intervenientes no
processo devem agir em conformidade com um dever de correcção e de urbanidade (art. 9.º, n.º 1)
e a marcação do dia e hora de qualquer diligência deve resultar de acordo entre o juiz e os
mandatários judiciais (art. 151.º, n.º 1).

141
Cf. LAUMEN, Das Rechtsgespräch im Zivilprozeβ, 273; LIU, Die richterliche Hinweispflicht/Dogmatik und
Rechtskultur (2009), 98 ss.
142
Cf. DEUBNER, FS Gerhard Schiedermaier (1976), 86 s.
143
Sobre o problema, cf. STÜRNER, Die richterliche Aufklärung im Zivilprozeβ, 19 ss.
144
TEDH 31/1/2012 (61226/08, Assunção Chaves).
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II/55

VI. Princípio da igualdade das partes


1. Caracterização
1.1. Generalidades

a) As partes devem situar-se numa posição de plena igualdade entre si e ambas devem ser
iguais perante o tribunal: como afirmava ULPIANUS, D. 50.17.41, non debet actori licere, quod reo
non permittitur. É nisto que consiste o princípio da igualdade das partes (ou da isonomia
processual), que é um dos corolários dos princípios da igualdade perante a lei (cf. art. 13.º, n.º 1,
CRP) e da imparcialidade do órgão incumbido de compor o litígio. Perante este órgão, tanto vale
uma parte como a outra, pelo que ambas devem ter igual tratamento.
Em concreto, o princípio da igualdade das partes traduz-se, antes do mais, numa igualdade
de chances e de riscos: ambas as partes devem ter as mesmas chances de obter uma decisão
favorável e sobre ambas as partes deve recair o mesmo risco de o tribunal vir a proferir uma
decisão desfavorável. Durante o desenrolar do processo, ambas as partes devem ter as mesmas
oportunidades de influenciar o seu resultado: é o que, por vezes, acentuando uma concepção
“duelística” do processo, se designa por igualdade de armas 145.

b) A igualdade entre as partes não pode fazer esquecer que as consequências da acção
podem ser muito distintas para ambas as partes: o autor não fica em pior situação daquela em que
se encontrava se a acção for julgada improcedente; em contrapartida, o réu, se for condenado,
fica em pior situação do que aquela em que se encontrava antes da acção.

1.2. Ónus das partes

O princípio da igualdade das partes implica que as partes têm de ser tratadas de forma
igual, sem qualquer distinção entre parte activa e parte passiva. Esta igualdade formal não obsta a
que as partes não possam criar, através do seu comportamento em juízo, situações de
desigualdade. Estas situações são um corolário directo dos ónus que recaem sobre cada uma das
partes processuais e das consequências do seu não cumprimento.
Os ónus são situações subjectivas de cujo cumprimento depende a aquisição de uma
posição favorável para a parte; o não cumprimento do ónus implica a não aquisição dessa posição
favorável e, consequentemente, a não colocação da parte contrária na posição desfavorável de ter
de cumprir um contra-ónus. Por exemplo: (i) se o autor não provar os factos constitutivos do direito
que alega, o réu é absolvido do pedido (cf. art. 342.º, n.º 1, CC; art. 414.º); há um ónus de prova
do autor que, quando não cumprido, dispensa o réu do ónus da contraprova ou da prova do facto
contrário; (ii) se o réu não contestar, o autor é dispensado de provar os factos por ele alegados (cf.
art. 567.º, n.º 1); há um ónus de contestação do réu que, quando não cumprido, dispensa o autor
de provar os factos constitutivos do seu direito. Pode assim concluir-se que os ónus processuais

145
Cf. BARBOSA MOREIRA, in Estudios en Homenaje al Doctor Héctor Fix-Zamudio III (1988), 1647 ss.; VOLLKOMMER,
FS Karl Heinz Schwab (1990), 503 ss.; cf. TEDH 19/4/1994 (16034/90, van de Hurk); no enquadramento da
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, cf. SCHLOSSER, NJW 1995, 1404 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/56

criam uma assimetria entre as partes, dado que apenas quando uma das partes cumpre o
respectivo ónus nasce na contraparte um contra-ónus146.

2. Relevância da igualdade
2.1. Generalidades

O art. 4.º impõe que o tribunal assegure, durante todo o processo, um estatuto de igualdade
substancial (ou material) entre as partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de
meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais. Esta igualdade
substancial implica, para o tribunal, um duplo dever: o dever de corrigir factores de desigualdade e
o dever de não criar situações de desigualdade.

2.2. Correcção de desigualdades

A correcção das desigualdades entre as partes é realizada através da função assistencial


do juiz. Por exemplo: o art. 590.º, n.º 2, al. b), impõe que o juiz convide as partes a aperfeiçoarem
os seus articulados; se o articulado de uma delas for deficiente, o juiz, além de impedir a boa
administração da justiça, infringe, no caso concreto, o princípio da igualdade substancial das
partes se não a convidar a aperfeiçoá-lo 147. Essa função assistencial permite alcançar a igualdade
das partes através de uma actuação do tribunal.

2.3. Proibição de desigualdades

a) O princípio da igualdade também impõe ao tribunal o dever de não originar situações de


desigualdade entre as partes, ou seja, proíbe que o tribunal trate de modo desigual as partes. Por
exemplo: devendo ambas as partes corrigir o rol de testemunhas que apresentaram, não deve o
juiz fixar prazos diferentes para cada uma delas.
Esta proibição de criação de situações de desigualdade entre as partes cede na situação
em que o tribunal deva tratar partes substancialmente desiguais de forma desigual 148. É o que
sucede, por exemplo, quando haja que definir o conteúdo da decisão atendendo à desigualdade
efectiva entre as partes. Uma tal solução é expressamente permitida, no caso da fixação de uma
multa, pelo art. 139.º, n.º 8, que, aliás, deve ser visto como uma concretização do princípio do
tratamento desigual de partes desiguais.

b) No problema da igualdade das partes há que considerar que um dos factores que mais
pode influenciar uma desigualdade entre elas é aquele que se refere à diferença entre as partes que
recorrem ocasionalmente ao tribunal (os litigantes esporádicos) e aquelas que utilizam os serviços
do tribunal de forma reiterada (os litigantes frequentes ou habituais) 149.

146
Entendendo que a história mostra a passagem (que teria ocorrido no século XIII) de um processo subordinado
a um ordine isonomico para um processo regido por um ordine asimmetrico, cf. GIULIANI, Soc. Dir. 13 (1986-
2/3), 81 ss.; cf. também GIULIANI, Rdp 43 (1988), 598 ss.; na área da prova, GIULIANI, EncD 37 (1988), 523 ss. e
526 ss.
147 2
Diferentemente, LEBRE DE FREITAS/J. REDINHA/R. PINTO, Código de Processo Civil I (2008), 11.
148
Cf. VOLLKOMMER, FS Karl Heinz Schwab, 518 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/57

Na análise – entretanto clássica – de GALANTER: “Atendendo às diferenças na sua estatura, às


diferenças na situação jurídica e às diferenças nos seus recursos, alguns dos actores da sociedade
têm muitas ocasiões de utilizar os tribunais (no sentido amplo) para formular (ou se defender de)
pretensões; outros fazem-no apenas raramente. Podemos dividir os nossos actores entre aqueles
demandantes que fazem apenas um uso ocasional dos tribunais ( one-shotters ou OS) e os repeat
players (RP), que estão envolvidos em muitos litígios similares ao longo do tempo. O cônjuge no
processo de divórcio, o demandante por lesão resultante de um acidente de viação, o acusado
criminalmente são OSs; a empresa de seguros, o promotor público, a empresa financeira são RPs.
Isto é naturalmente uma simplificação; há casos intermédios, como o do criminoso profissional.
Assim, temos de pensar OS-RP mais como um continuum do que como um par dicotómico.
Tipicamente, o RP é uma grande unidade e os montantes num determinado caso são pequenos (em
relação ao valor total). Os OSs são normalmente pequenas unidades e os montantes representados
pelo resultado tangível do caso podem ser grandes em relação ao valor total” 150.

3. Princípio do contraditório
3.1. Caracterização

O princípio do contraditório consiste na regra segundo a qual, sendo formulado um pedido


ou oposto um argumento a uma parte, deve ser-lhe dada a oportunidade de se pronunciar sobre o
pedido ou o argumento, só depois se decidindo 151. Ninguém deve ser condenado sem ser ouvido
(no sentido de ter a oportunidade de falar): este princípio é expressão de um direito a ser ouvido
(em alemão: rechtliches Gehör) e é, em processo penal, regra constitucional, conforme resulta do
disposto no art. 32.º, n.º 1 e 6, CRP.

3.2. Fundamento

O princípio do contraditório – que pode ser considerado como “o direito processual original
(prozessuales Urrecht) da pessoa”152 – deriva do princípio da igualdade das partes, dado que este
último impõe que ambas as partes tenham iguais oportunidades de expor as suas razões,
procurando convencer o tribunal a decidir a seu favor 153. Já SÉNECA (ca. 4 a. C.-65) afirmava que
Qui statuit aliquid parte inaudita altera, aequum licet statuerit, haud aequus fuit 154. Esta dialéctica
149
Cf. SOUSA SANTOS/LEITÃO MARQUES/J. PEDROSO/LOPES FERREIRA , Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas/O
caso português (1996), 70 ss.; RIBEIRO MENDES, A Concentração e a Selectividade da Litigância, in CONSELHO
ECONÓMICO E SOCIAL (Ed.), Colóquio “A Justiça em Portugal” (1999), 94 ss.
150
GALANTER, LSR 9 (1974/1975), 97 s.; cf. também WASSERMANN, Der soziale Zivilprozess (1978), 158 ss.
151 3
Cf. TROCKER, Processo civile e Costituzione (1974), 367 ss.; CHIAVARIO , Processo e garanzie della persona II
(1984), 171 ss.; PICARDI, Rdp 53 (1998), 673 ss.; GENTILI, Rtdpc 63 (2009), 745 ss.; sobre a história do princípio
do contraditório, cf. WACKE, FS Wolfgang Waldstein (1993), 369 ss.; BECKER, FS Wolfgang Sellert (2000), 67 ss.;
entendendo o contraditório como um dos elementos, a par da pronúncia de uma decisão em prazo razoável, da
efectividade do processo, cf. FROHN, Rechtliches Gehör und richterliche Entscheidung (1989), 28 ss. e 162;
entendendo que a indispensabilidade de garantir o contraditório pode implicar a necessidade de recorrer a um
processo judicial, cf. CHASE, N.Y.U. Rev. L. & Soc. Change 23 (1997), 572 ss.
152
BVerfG 9/7/1980, BVerfGE 55, 6.
153
Cf. FULLER, Harv. L. Rev. 92 (1978), 369: “Adjudication is a process of decision that grants to the affected
party a form of participation in the decision that consists in the opportunity to present proofs and reasoned
arguments.”
154
SÉNECA, Medea, 199-200 = SÉNECA, Medeia (trad. port., 2011), 199-200: “Quem decide o que quer que seja
sem ouvir a outra parte, mesmo que decida com justiça, não é justo”.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/58

entre as partes, esta recíproca fiscalização de afirmações e este “direito de influência” 155
constituem, aliás, um dos meios mais eficazes para assegurar a vitória da verdade e da justiça em
processo.

3.3. Consequências

a) Do princípio do contraditório decorre um direito de resposta: iniciando uma das partes um


processo, à outra parte deve ser dado conhecimento do que foi dito perante o tribunal e deve ser
dada oportunidade (que usará ou não, como quiser) de expor as suas razões (art. 3.º, n.º 1 in fine):
é o princípio audiatur et altera pars. Daqui decorre o princípio da audiência contraditória das
provas (cf. art. 415.º, n.º 1) e os cuidados de que a lei cerca a citação do réu (cf. art. 187.º a 192.º
e 225.º a 246.º).

b) Do princípio do contraditório também resulta um direito à audição prévia. Os corolários


deste direito são os seguintes:
– Em regra, levantada por uma parte uma questão, o juiz deve ouvir a parte contrária
antes de decidir (art. 3.º, n.º 3 1.ª parte);
– Igualmente em regra, de molde a evitar as “decisões-surpresa”, o juiz não pode
decidir questões de direito ou de facto, mesmo que sejam de conhecimento oficioso,
sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre elas (art.
3.º, n.º 3 2.ª parte).
A audição prévia destinada a evitar as “decisões-surpresa” justifica-se nomeadamente nas
seguintes situações:
– Quando o tribunal considere relevante matéria de matéria de facto ou de direito que
as partes tenham considerado irrelevante ou que lhes tenha passado despercebida; a
necessidade da consulta das partes não decorre da circunstância de o direito ser
supletivo ou imperativo, mas do facto de as partes não se terem apercebido de um
regime supletivo ou imperativo aplicável ao caso;
– Quando o tribunal qualifique determinada matéria de facto de maneira diferente da
das partes ou entenda que a questão implica a aplicação de direito estrangeiro;
– Quando o tribunal não forneça a um meio de prova o valor que ambas as partes lhe
atribuem.
O dever de consulta das partes não é dispensado quando o tribunal entenda que as partes
deviam ter considerado a matéria de facto ou de direito, deviam saber qual o direito aplicável ou
não deviam ignorar o valor do meio de prova. Dito de outro modo: o dever de consulta não
depende de nenhuma avaliação da diligência das partes.

c) A não audição prévia das partes constitui uma nulidade processual (por omissão de uma
formalidade que a lei impõe: cf. art. 195.º, n.º 1), normalmente consumida pela nulidade de uma
decisão: se, apesar de não ter ouvido previamente as partes, o tribunal considerar a questão na

155
PASSO CABRAL, Rdp 60 (2005), 453 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/59

sua decisão, esta é nula por excesso de pronúncia (porque o tribunal conhece nela de uma
questão de que não podia conhecer: cf. art. 615.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte).

3.4. Exercício

O contraditório atribui um direito de resposta à contraparte, que pode ser exercido de


diversas formas, como a apresentação de uma contestação, de um articulado complementar, de
uma resposta a um requerimento ou de uma alegação ou a produção de contraprova ou de prova
do contrário. Existe, no entanto, uma importante restrição quanto à forma e ao momento do
exercício do direito de resposta: segundo o estabelecido no art. 3.º, n.º 4, às excepções (dilatórias
ou peremptórias: cf. art. 576.º) deduzidas no último articulado admissível só pode a parte contrária
responder na audiência prévia (cf. art. 591.º) ou, se esta não houver de se realizar, no início da
audiência final (cf. art. 604.º).

3.5. Excepções

O princípio do contraditório, na vertente do direito à audição prévia, não é absoluto. As


excepções mais frequentes ao direito de audição prévia verificam-se no âmbito das providências
cautelares, que são as providências destinadas a acautelar o efeito útil da acção (cf. art. 2.º, n.º 2
in fine). Assim, por exemplo:
– A providência cautelar comum pode ser decretada sem o contraditório do requerido
quando a audiência deste puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência (art.
366.º, n.º 1);
– Em caso de esbulho violento, o possuidor esbulhado pode pedir a restituição
provisória da posse (art. 1279.º CC); se o juiz reconhecer, pelo exame das provas,
que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a
restituição, sem citação nem audiência do esbulhador (art. 378.º); exclui-se o
contraditório (possibilidade de discussão) como sanção pelo esbulho (spoliatus ante
omnia restituendus est);
– O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito
pode requerer o arresto de bens do devedor (art. 619.º, n.º 1, CC); este arresto é
decretado sem a audição da parte requerida (art. 393.º, n.º 1).
O contraditório só pode ser afastado pela lei (cf. art. 3.º, n.º 2), não pela vontade das partes.
Por isso, é nulo o pacto pelo qual certa pessoa se comprometa a não se defender numa acção
futura (cf. art. 294.º CC), embora, naturalmente, lhe seja permitido não se defender numa acção
contra ele proposta.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/60

VII. Princípio da boa fé


1. Caracterização
As partes devem actuar em juízo de boa fé (art. 8.º), pelo que o processo civil, ainda que
dominado pelo princípio dispositivo, encontra-se submetido a um princípio de boa fé 156. O dever de
actuação de boa fé constitui um limite ao domínio das partes sobre o processo resultante do
princípio dispositivo.

2. Concretização
2.1. Má fé unilateral

a) A litigância de má fé pressupõe que a parte actua de forma diferente daquela que era a
devida e a esperada. Em concreto, actua com má fé a parte que, com dolo ou negligência grave:
– Deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (art. 542.º,
n.º 2, al. a)); é o que sucede, por exemplo, quando é deduzido um pedido infundado
de declaração de insolvência (cf. art. 22.º CIRE) 157, quando o réu, que anteriormente
invocara a preterição de tribunal arbitral, vem arguir, uma vez instaurada a acção no
tribunal arbitral, a incompetência deste tribunal (hipótese qualificável como venire
contra factum proprium158) ou ainda quando o senhorio, que tinha contemporizado
durante longos anos com um fundamento de despejo, vem instaurar a acção de
despejo (hipótese reconduzível à chamada Verwirkung ou supressio)159;
– Praticar omissão grave do dever de cooperação (art. 542.º, n.º 2, al. c); cf. art. 7.º);
– Fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com
o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a
acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão
(art. 542.º, n.º 2, al. d))160; é o que se verifica, por exemplo, quando a parte apresente

156
Cf. Cf. TARUFFO, in TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights: Comparative Standards of Procedural Fairness
(1999), 3 ss. = RePRo 177 (2009), 153 ss. (trad. bras.); sobre o direito romano, cf. BUZZACCHI, L’abuso del
processo nel diritto romano (2002), 1 ss.; sobre a evolução da responsabilidade processual, cf. MENEZES
3
CORDEIRO, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e culpa in agendo (2014), 45 ss.; P. DE ALBUQUERQUE,
Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de
Actos Praticados no Processo (2006), 15 ss.; com grande desenvolvimento, COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé
(2008), 31 ss. e 185 ss.; sobre o direito romano, cf. KLEIN, Die Schuldhafte Parteihandlung./Eine Untersuchung
aus dem Civilprocessrechte (1885), 65 ss.; mais recente, BUZZACCHI, L’abuso del processo nel diritto romano
(2002), 1 ss.
157
Diferentemente, entendendo que a situação não se esgota na litigância de má fé, cf. P. DE ALBUQUERQUE,
Responsabilidade Processual por Litigância de Má fé, 163 ss.; MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé 3, 241 ss.
158
Entendendo que a proibição do venire contra factum proprium é incompatível com a estrutura do processo
civil, cf. BAUMGÄRTEL, ZZP 86 (1973), 363 ss.
159
Cf. ZEISS, Die arglistige Prozesspartei (1967), 100 ss. e 123 ss.; considerando, por referência ao disposto no
art. 446.º, n.º 2, al. a), que a sanção aí prevista se restringe aos ilícitos praticados no processo e não se estende
aos ilícitos anteriores à sua instauração, cf. STJ 17/5/2011 (3813/07.9TVLSB.L1.S1).
160
Cf. COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, 392 ss.; TARUFFO , in TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights, 12:
“[…] that I am vested with the fundamental right of access to justice does not mean that I am entitled to file any
claim without any legal interest (i.e.: to pursue frivolous contentions […]), just with the aim of harassing another
person”.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/61

um requerimento ou suscite um incidente com o único objectivo de obstar ao


cumprimento do julgado ou ao trânsito da decisão (cf. art. 618.º e 670.º) 161 ou
interponha um recurso de revista com fundamentos que não encontram qualquer
apoio nem na matéria de facto apurada, nem na matéria de direito 162 ou quando a
transmissão ou cessão da coisa litigiosa e a posterior habilitação do adquirente ou
cessionário tiverem visado colocar a parte contrária numa posição mais difícil (cf. art.
356.º, n.º 1, al. a) 2.ª parte); na jurisprudência brasileira surgiu a sugestiva expressão
“assédio processual” para descrever estes e outros comportamentos semelhantes 163;
– Alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (art.
542.º, n.º 2, al. b)), isto é, violar o dever de verdade e o dever de completude nas
suas afirmações; estes deveres são deveres da parte quer perante a contraparte,
quer perante o tribunal164.

b) O recorte da litigância de má fé impõe a consideração de várias hipóteses:


– O autor demandou sem razão, mas de boa fé e sem culpa; essa parte decairá na
acção e normalmente pagará as custas (cf. art. 527.º, n.º 1 e 2); não há, porém, lugar
a indemnização, pois o autor não agiu ilícita ou abusivamente;
– O autor demandou sem razão, de boa fé, mas com culpa (acção leviana), pois não
investigou suficientemente a situação jurídica; essa parte decairá na acção e,
normalmente, pagará as custas (art. 527.º, n.º 1 e 2); em regra, essa parte não
deverá qualquer indemnização, pois a lei só prevê e sanciona o dolo ou a negligência
grave (art. 542.º, n.º 2 pr.); esta regra comporta a excepção regulada no art. 374.°, n.º
1, relativa à responsabilidade do requerente dos procedimentos cautelares (cf.
também art. 621.° CC) e nos art. 858.º e 866.º, relativos à responsabilidade do
exequente;
– O autor demandou sem razão e de má fé (acção temerária); essa parte decairá na
acção e normalmente pagará as custas (art. 527.º, n.º 1 e 2) e está sujeita a multa e
indemnização como litigante de má fé (art. 542.º, n.º 1).

2.2. Dever de verdade

a) O dever de verdade implica que a parte não deve alegar factos que sabe que não são
verdadeiros e não deve impugnar factos que sabe que são verdadeiros, ou seja, esse dever

161
Cf. ZEISS, Die arglistige Prozesspartei, 150 ss.
162
STJ 26/9/2013 (305/10.2TBFAR.E2.S1)
163
A expressão é atribuída a M. PEREIRA RAMOS, Juíza Federal da 63.ª Vara do Trabalho da Seção Judiciária da
Comarca de São Paulo, que a definiu assim num processo: “Denomino assedio processual a procrastinação por
uma das partes no andamento do processo, em qualquer uma de suas fases, negando-se a cumprir decisões
judiciais, amparando-se ou não em norma processual, para interpor recursos, agravos, embargos,
requerimentos de provas, petições despropositadas, procedendo de modo temerário e provocando incidentes
manifestamente infundados, tudo objetivando obstaculizar a entrega da prestação jurisdicional à parte
contraria”.
164
Cf. OLZEN, ZZP 98 (1985), 419.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/62

implica uma correlativa proibição de mentira consciente (ou, na expressão do art. 542.º, n.º 2 pr.,
dolosa ou gravemente negligente)165. Assim, o dever de verdade é violado quando a parte alega
factos que sabe que não são verdadeiros, não quando a parte alega factos que está convencida
de que são verdadeiros mas que não tem a certeza de que são verdadeiros, nem quando a parte
contesta factos alegados pela contraparte de que não tem a certeza de que não são verdadeiros.
Neste sentido, mais do que um dever de verdade (objectiva) deve falar-se de um dever de
veracidade (subjectiva).
Lembre-se que é esta circunstância de ser imposto à parte que não minta, mas não que
tenha a certeza do que afirma, que justifica a admissibilidade da formulação de um pedido
subsidiário sem que a parte possa ser acusada de violar o dever de verdade. Por exemplo: o autor
pode pedir a condenação do réu na restituição de uma quantia, invocando que a emprestou ao
réu; para o caso de tal não ser reconhecido e de se entender que a quantia foi entregue ao réu a
título de doação, o autor pode pedir a restituição dessa mesma quantia alegando a invalidade
deste contrato; ainda que o pedido principal fundado no mútuo seja considerado improcedente,
isso não justifica a condenação do autor como litigante de má fé por violação do dever de verdade,
excepto se se demonstrar que o autor sabia que a quantia não tinha sido emprestada ao réu.
Portanto, a admissibilidade da formulação de um pedido subsidiário demonstra que não viola o
dever de verdade a parte que alega algo de que não tem a certeza.
É pelo mesmo parâmetro de proibição da mentira que há que analisar a alegação de factos
que a parte não pode saber se são verdadeiros. Assim, a afirmação de meras hipóteses ou
conjecturas, a descrição de estados anímicos alheios ou a formulação de uma prognose sobre
acontecimentos futuros não violam o dever de verdade se a parte fornecer alguns indícios para
corroborar o que afirma, descreve ou formula e se esses indícios se revestirem de alguma
plausibilidade166. Em contrapartida, dificilmente a parte que alega factos “a ver se pega” ou afirma
algo “ao acaso” desconhece que não é verdade o que expõe; portanto, essa parte viola o dever de
verdade.

b) Pode discutir-se se o dever de verdade exige que a parte reponha a verdade quanto a
uma afirmação inexacta realizada pela parte contrária e desfavorável a esta parte. Por exemplo: o
autor afirma que emprestou € 5000 ao réu; esta parte sabe que o empréstimo foi de € 10000; pode
perguntar-se se o dever de verdade é violado se o réu não corrigir o autor. Realisticamente, há
que entender que o dever de verdade só impõe que a parte não minta em afirmações próprias e a
seu favor, não que diga a verdade sobre uma afirmação errada que lhe é favorável mas
desfavorável para a contraparte que a profere. Assim, se, por exemplo, o autor afirmar, por

165
Referindo que o dever de boa fé processual impõe que a parte só deva alegar factos de que esteja convencida
da verdade e só deva contestar factos de que esteja convencida da não verdade, cf. TRUTTER, Bona fides im
Civilprozesse (1892), 59 ss. e 292 ss.; sobre o conteúdo do dever de verdade, cf. VON HIPPEL, Wahrheitspflicht
und Aufklärungspflicht der Parteien im Zivilprozess (1939), 144 s.; sobre a evolução histórica desse dever, cf.
OLZEN, ZZP 98 (1985), 403 ss.
166
Cf. STÜRNER, Die Aufklärungspflicht der Parteien im Zivilprozess, 112 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/63

equívoco, que o réu já lhe pagou parte da dívida, não viola o dever de verdade o réu que não
desfaz esse equívoco do autor.

2.3. Dever de completude

O dever de completude impõe que a parte tem o dever de alegar todos os factos que são
relevantes para a apreciação da causa, abrangendo, assim, tanto os factos que lhe são favoráveis,
como os factos que lhe são desfavoráveis 167. A parte tem o dever de alegar toda verdade, pelo que
a parte não pode omitir um facto que sabe ser verdadeiro, ainda que o mesmo lhe seja adverso,
designadamente por ser um facto impeditivo, modificativo ou extintivo e, por isso, por fundamentar
uma excepção da contraparte. Assim, verifica-se uma violação do dever de completude se, por
exemplo, o autor, contra aquilo que sabe ser a verdade dos factos, não afirmar que o réu já lhe
pagou parte da dívida ou ignorar a moratória acordada com o réu e pedir a condenação imediata
desta parte no cumprimento da obrigação.
O dever de completude tem como limite a faculdade de recusa da colaboração da parte em
matéria probatória. Por exemplo: nenhuma parte é obrigada a revelar factos da sua vida privada
ou familiar (cf. art. 417.º, n.º 3, al. b)), nem factos relativos a segredo profissional ou de Estado (cf.
art. 417.º, n.º 3, al. c)), nem ainda factos criminosos ou torpes (cf. art. 454.º, n.º 2) 168. Isto significa
não só que a parte não tem o ónus de alegar esses factos (e, no caso do segredo, tem mesmo o
dever de os não alegar), mas também que a parte não tem o ónus de impugnar esses factos
quando alegados pela parte contrária. Por exemplo: admita-se que, numa acção de despejo, é
alegado pelo autor que o réu manteve uma relação adulterina com uma vizinha; a não impugnação
deste facto não pode implicar a sua admissão por acordo.

2.4. Consequências legais

a) A parte que litiga de má fé é sancionada com a condenação em multa (fixada entre 2 UC


e 100 UC: art. 27.º, n.º 3, RCP) e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir (art. 542.º,
n.º 1): esta indemnização é quantificada nos termos do art. 543.º, n.º 1 e 2, e não concorre com
aquela que resulta do disposto no art. 483.º, n.º 1, CC, pelo que não é possível procurar a
responsabilização da parte que actua com mera negligência 169. Pelas custas da acção, pela multa
aplicada e pela indemnização devida podem ser responsáveis, além de qualquer das partes da
acção (art. 542.º, n.º 1), quer os representantes de incapazes (cf. art. 544.º), quer o mandatário

167
Sobre o dever de completude, cf. SCARSELLI, Rtdpc 52 (1998), 102 ss.
168
Com outra sensibilidade quanto a estes últimos factos, cf. STÜRNER, Die Aufklärungspflicht der Parteien im
Zivilprozess, 175 ss.
169
Assim, COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, 524 ss.; diferentemente, MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé 3,
1195 ss.; P. DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, 108 ss.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

II/64

judicial da parte (cf. art. 545.º)170. Atendendo à proibição da indefesa, o tribunal deve ouvir
previamente a parte, o representante ou o mandatário 171.
A esta consequência geral podem acrescer outras consequências. Assim, no caso da
tentativa ilícita de desaforamento, o tribunal deve declarar-se incompetente (cf. art. 107.º) e, na
hipótese da propositura indevida de uma acção prejudicial, o tribunal da acção dependente não
deve decretar a suspensão da instância (cf. art. 272.º, n.º 2). Pode assim estabelecer-se a regra
segundo a qual, para além da multa e da indemnização, a litigância de má fé implica que o acto
praticado pela parte contra os ditames da boa fé não pode produzir nenhuns efeitos em juízo.

b) Ao contrário do que sucede no regime geral – que exige uma actuação dolosa ou
gravemente negligente da parte (art. 542.º, n.º 2 pr.) –, os regimes especiais previstos nos art.
374.º, n.º 1, 858.º e 866.º operam com a mera negligência, o que aumenta as hipóteses de
responsabilização da parte. Como é evidente, estes regimes especiais continuam aplicáveis
quando a parte actua com negligência grave ou mesmo com dolo e não obstam à aplicação do
regime geral em hipóteses por eles não abrangidas.

2.5. Má fé bilateral

A má fé é bilateral quando ambas as partes agem de má fé com o intuito de prejudicar


terceiros: verifica-se então a simulação processual (cf. art. 612.º). Por exemplo: as partes simulam
uma acção de reivindicação para, através da diminuição do património do demandado, afectarem
a garantia patrimonial dos seus credores (cf. art. 601.º CC). Apercebendo-se da simulação
processual, o juiz da causa deve abster-se de proferir qualquer decisão (art. 612.º). Se esse juiz
não se tiver apercebido da simulação e tiver proferido uma decisão de mérito, o terceiro
prejudicado pode solicitar a revisão desta decisão (art. 696.º, al. g)).

3. Abuso de direito
3.1. Generalidades

O conceito de acção abusiva diz respeito ao autor que faz a acção desempenhar uma
função diversa da obtenção de tutela jurisdicional, designadamente a de prejudicar ou incomodar o
réu172. Por exemplo: (i) A, apenas para fatigar B, move-lhe continuamente acções declarativas da
propriedade de todos os objectos que possui; A abusa do seu direito de acção, porque utiliza os
meios processuais para obter uma finalidade ilegal; (ii) C é credor de D no montante de € 20000;
em vez de demandar D numa única acção, C vai propondo sucessivamente várias acções
respeitantes a montantes parcelares, procurando não só importunar D, mas também evitar que a
acção tenha um valor que permita a D interpor um eventual recurso; C abusa do direito de acção,
porque se serve da acção para a prossecução de objectivos ilegais; (iii) E instaura uma acção de
170
Sobre o problema da responsabilidade do advogado perante a contraparte da parte por ele representada por
violação do dever de verdade, cf. LINDENBERG, Wahrheitspflicht und Dritthaftung des Rechtsanwalts im
Zivilverfahren (2002), 92 ss.
171
Cf. TC 440/94 (7/6/1994).
172
Cf. TARUFFO, in TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights, 12 s.
J. de Castro Mendes / M. Teixeira de Sousa

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reivindicação contra F; na iminência da improcedência da acção, E transmite, visando dificultar a


posição da outra parte no processo, a coisa ou o direito em litígio ao terceiro G (cf. art. 263.º, n.º 2,
e 356.º, n.º 1, al. a)); E abusa do direito de acção, porque se serve do processo para obter uma
finalidade ilegal.
O abuso do direito de acção é um abuso do processo: a parte que abusa do seu direito de
recorrer aos tribunais faz um uso indevido do processo. Este uso indevido também se verifica
quando o processo é utilizado para o exercício abusivo de um direito, ou seja, quando o processo
serve de meio (ou de instrumento) para o abuso do direito 173.

3.2. Relevância legal

a) Perante situações como as acima descritas, pode perguntar-se se o abuso do direito de


acção – isto é, o abuso do processo – tem autonomia perante a litigância de má fé, ou seja, se
esse abuso pode ser sancionado autonomamente da litigância de má fé. Atendendo a que a
litigância de má fé pressupõe o dolo ou a negligência grave da parte (cf. art. 542.º, n.º 2 pr.) e que
o abuso do direito é aferido objectivamente, pode tender-se para uma resposta positiva à questão
suscitada174. Mas é duvidoso que assim possa ser. As consequências do abuso do direito de
acção só podem ser procuradas na condenação da parte no pagamento de uma multa e numa
indemnização devida à parte contrária (cf. art. 542.º, n.º 1) – se estiver preenchido algum dos tipos
da litigância de má fé – ou na aplicação de uma taxa sancionatória à parte (cf. art. 531.º) 175 – se
nenhum daqueles tipos estiver preenchido. Dito de outra forma: o abuso do direito de acção só
releva se ele puder ser reconduzido, conforme as diferentes situações, a um tipo subjectivo de
dolo, negligência grave ou negligência.
Lembre-se que, para que a parte seja considerada litigante de má fé, é necessário que a
mesma actue com dolo ou negligência grave (cf. art. 542.º, n.º 2 pr.). Em contrapartida, para que a
parte seja condenada a pagar uma taxa sancionatória excepcional, basta que ela actue com falta
de diligência ou prudência ao propor acção, deduzir oposição, formular requerimento, interpor
recurso, apresentar reclamação ou levantar incidente manifestamente improcedente (cf. art. 531.º).
O art. 27.º, n.º 5, RCP estabelece que a parte não pode ser simultaneamente condenada, pelo
mesmo acto processual, em multa e em taxa sancionatória excepcional. O preceito parece
pressupor que há um âmbito comum à litigância de má fé e à taxa sancionatória excepcional, mas
também pode ser interpretado no sentido de que um mesmo acto só pode implicar, conforme a
censurabilidade da actuação da parte, a condenação desta na multa devida pela litigância de má fé
ou na taxa sancionatória excepcional.

b) A análise da relevância do abuso de direito em processo implica considerar duas


situações: aquela em que o abuso de direito origina um abuso do direito de acção (abuso

173
Distinguindo, no entanto, o “abuso del processo” do “abuso che viene commesso nel processo”, cf. TARUFFO ,
Rtdpc 66 (2012), 117.
174
Cf. MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé 3, 149 ss.; P. DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade Processual por
Litigância de Má Fé, 92 ss.; Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, 617 ss.
175
Sobre esta taxa sancionatória, cf. COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, 267 ss. e 441 ss.
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qualificado) e aquela em que o abuso de direito não é acompanhado do abuso do direito de acção
(abuso simples).

3.3. Abuso qualificado

No direito português, o abuso do direito de acção é mais amplo do que o exercício abusivo
de um direito em juízo: aquele abuso abrange todas as hipóteses reguladas no art. 542.º, n.º 2, o
exercício abusivo de um direito em processo só é subsumível ao disposto no art. 542.º, n.º 2, al. a)
(dedução de pretensão ou oposição com conhecimento da falta da sua fundamentação). Dito de
outro modo: na óptica da conduta processual das partes, o art. 542.º é mais amplo do que o art.
334.º CC: aquele preceito envolve situações de exercício abusivo de um direito em processo (cf.
art. 542.º, n.º 2, al. a)) e hipóteses que são apenas de abuso do processo (cf. art. 542.º, n.º 2, al.
b), c) e d)); o art. 334.º CC só se refere ao exercício abusivo de um direito.
Basta esta conclusão para demonstrar que o direito positivo trata o exercício abusivo de um
direito em processo como uma (possível) situação de litigância de má fé: em concreto, é esse o
sentido do disposto no art. 542.º, n.º 2, al. a) 176. Aliás, se assim não se entendesse, o art. 542.º, n.º
2, al. a), ficaria sem campo de aplicação possível, porque o preceito só se pode referir a situações
de exercício abusivo de um direito. Deste modo, tal como nenhuma das outras situações de abuso
do direito de acção pode relevar se não estiverem preenchidas as condições necessárias para a
litigância de má fé (nomeadamente, a actuação da parte com dolo ou negligência grave: cf. art.
542.º, n.º 2 pr.), também o exercício abusivo de um direito em processo só pode ter relevância se
for subsumível ao regime da litigância de má fé.

3.4. Abuso simples

Não se deve entender que todo o abuso de direito corresponde a um abuso do direito de
acção que deve ser sancionado com a condenação da parte como litigante de má fé: a acção
também pode improceder, simplesmente porque o tribunal entende que o que o autor pede é
abusivo, sem que haja motivo para condenar esta parte como litigante de má fé com base numa
actuação gravemente negligente ou dolosa, ou seja, sem que se justifique sancionar essa parte
por abuso do direito de acção. Por exemplo: (i) as partes celebraram um contrato de mútuo que é
nulo por falta de forma; no entanto, o devedor pagou, durante vários anos, os juros do empréstimo;
é abusivo o pedido feito por este devedor de devolução da quantia paga em consequência da
nulidade do contrato177; (ii) um banco accionou uma livrança, que os executados tinham avalizado
176
Partindo da mesma premissa, cf. RAMOS MÉNDEZ, in TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights, 181 ss.; num
plano mais geral, fazendo equivaler o abuso do processo a situações de litigância de má fé, cf. TARUFFO, in
TARUFFO (Ed.), Abuse of Procedural Rights, 21 s.; diferentemente, MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé 3, 139
ss.; P. DE ALBUQUERQUE, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, 92 ss. e 150 ss.; P. ALBUQUERQUE,
ROA 66 (2006), 901 ss.; COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, 617 ss.; sobre o problema na doutrina italiana, cf.
NICÒTINA, L’abuso nel processo civile (2005), 169 ss.; SCARSELLI, Rdp 67 (2012), 1450 ss., negando a autonomia
2
do abuso del processo; na doutrina espanhola, cf. PICÓ I JUNOY, El Principio de la Buena Fe Procesal (2013), 98
ss.
177
Cf. STJ 27/5/2010 (148/06.8TBMCN.P1.S1).
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em branco, vários anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora; aquele
exequente actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, se tinha
conhecimento de que os executados só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse
na sociedade subscritora e se, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era
bastante a garantia dos restantes avalistas, ainda assim continuou a conceder crédito à sociedade
através da renovação do contrato de abertura de crédito 178. Em qualquer destes casos, se não
houver abuso do direito de acção, não há motivo para condenar o demandante como litigante de
má fé.

3.5. Abuso de defesa

O abuso do direito de defesa tem, em princípio, as mesmas consequências do abuso do


direito de acção – a condenação do réu como litigante de má fé. Por exemplo: o réu que mente na
sua contestação abusa do seu direito de defesa e actua de má fé (cf. art. 542.º, n.º 2, al. a)).
Quando o abuso do direito de acção não implica a litigância de má fé por não se verificarem os
seus elementos objectivos e subjectivos, o abuso do direito de defesa implica a correspondente
consequência. Por exemplo: o demandado ou o requerido que deduziu, por não ter agido com a
prudência devida, uma oposição manifestamente improcedente deve ser condenado numa taxa
sancionatória especial (cf. art. 531.º).

VIII. Princípio da legalidade


1. Caracterização
O princípio da legalidade aparece sob dois aspectos: o princípio da legalidade das formas
processuais e o princípio da legalidade do conteúdo da decisão.

2. Formas processuais
2.1. Tramitação processual

O princípio da legalidade das formas processuais pode ser visto em dois domínios: no
domínio do esquema da marcha do processo, em geral, e no domínio da forma de cada acto
processual, em particular. Quanto ao esquema da marcha do processo, este pode ser rígido (por
ter a sua marcha fixada na lei) ou flexível (por a sua marcha ser estabelecida pelo juiz ou pelas
próprias partes). O processo civil português é um processo flexível – a marcha do processo não é
necessariamente aquela que estiver fixada pela lei, dado que o juiz, fazendo uso dos seus
poderes de gestão processual, pode tomar as medidas de agilização e simplificação que
assegurem a justa composição do litígio num prazo razoável (cf. art. 6.º, n.º 1) 179.

178
STJ 12/11/2013 (1464/11.2TBGRD-A.C1.S1).
179
Cf. CARNELUTTI, Diritto e processo (1958), 156 ss., referindo-se a um “principio di elasticità”; sobre a matéria
dos acordos processuais, cf. CAPONI, Rtdpc 62 (2008-3 supl.), 99 ss.
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O que é concedido ao juiz não é, no entanto, permitido às partes. É nulo, por


impossibilidade legal (cf. art. 280.º, n.º 1, CC), o acordo pelo qual as partes convencionem que
uma acção deva seguir a tramitação por elas acordada.

2.2. Actos processuais

Quanto à forma de cada acto processual, também não se aplica o princípio da legalidade.
Embora a lei regule efectivamente muitíssimos pontos de forma dos actos processuais, a regra
ainda é a que resulta do art. 130.º, n.º 1: os actos processuais têm a forma que, nos termos mais
simples, melhor corresponda ao fim que visam atingir.

3. Conteúdo da decisão
O princípio da legalidade do conteúdo da decisão exprime-se desta forma: em regra, o
tribunal deve decidir segundo a lei, ou seja, como diz o art. 607.º, n.º 3, deve indicar, interpretar e
aplicar as normas jurídicas correspondentes. O princípio da legalidade relaciona-se com o da
independência dos juízes (embora se não confunda com ele): esta conexão resulta com clareza do
disposto no art. 203.º CRP: os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.
O princípio da legalidade do conteúdo da decisão apresenta algumas excepções, de que
importa destacar as seguintes:
– As excepções resultantes do princípio dispositivo; em regra, as partes podem
determinar, por desistência da instância ou do pedido, por confissão do pedido ou por
transacção, o conteúdo da decisão do tribunal da causa (cf. art. 283.º a 291.º);
– A excepção decorrente do chamado juízo de equidade; nos termos previstos no art.
4.º CC e no art. 39.º, n.º 1, LAV, as partes podem pedir que a solução para uma
questão seja determinada, não ex iure stricto, mas ex aequo et bono;
– A excepção própria dos processos de jurisdição voluntária; nestes processos, as
resoluções assentam em critérios de conveniência e de oportunidade (art. 987.º).

IX. Princípio da economia processual


1. Plano institucional
O princípio da economia processual pode ser visto num plano institucional e num plano
individual. Num plano institucional, o princípio da economia processual é aquele segundo o qual o
processo não deve implicar custos desnecessários e não proporcionais à prossecução da sua
finalidade ou, numa outra formulação, é o princípio segundo o qual os meios disponíveis devem
ser utilizados de molde a optimizar o fim do processo, evitando a perda de tempo e os custos
evitáveis180. O princípio da economia processual orienta-se por um critério de eficiência e a ele

180
Cf. METTENHEIM, Der Grundsatz der Prozeβökonomie im Zivilprozeβ (1970), 15 ss.; E. SCHMIDT, Der Zweck des
Zivilprozesses und seine Ökonomie (1973), 39 ss.; Hoffmann, ZZP 126 (2013), 85 ss.; para maiores
desenvolvimentos, cf., com especial consideração dos bens e valores constitucionais, PFLUGHAUPT,
Prozessökonomie/Verfassungsrechtliche Anatomie und Belastbarkeit eines gern bemühten Arguments (2011),
68 ss.
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liga-se quer a necessidade de desonerar os tribunais de processos desnecessários, quer o


imperativo do andamento célere dos processos pendentes. Alguns institutos processuais são
decorrência do princípio da economia processual: é o caso, por exemplo, das excepções de
litispendência e de caso julgado (cf. art. 580.º, n.º 1, e 581.º, n.º 1) e da suspensão da instância
por prejudicialidade (cf. art. 269.º, n.º 1, al. d), e 272.º) – que se destinam a evitar uma duplicação
de processos sobre a mesma questão –, bem como da coligação de autores e réus (cf. art. 36.º),
da apensação de acções (cf. art. 267.º, n.º 1), da reconvenção (cf. art. 266.º, n.º 1) e da cumulação
de pedidos (cf. art. 553.º a 555.º) – que visam concentrar várias acções num único processo.

2. Plano individual
No plano individual – isto é, no plano de cada processo em concreto –, o princípio da
economia processual proíbe a prática de actos inúteis (cf. art. 130.º). Este princípio obsta a que se
pratiquem em juízo actos tanto objectiva, como subjectivamente inúteis num processo pendente:
os actos objectivamente inúteis são aqueles que não respeitam à matéria discutida no processo;
os actos subjectivamente inúteis são aqueles que, pressupostamente, nada acrescentam para a
convicção já formada do juiz.
A inutilidade objectiva é facilmente demonstrável (se se discute x, não interessa praticar um
acto relativo a y), mas a inutilidade subjectiva tem na base um pressuposto indemonstrável: o acto
é inútil na pressuposição de que nada vai acrescentar ao que já está adquirido para a convicção
do juiz, mas, se o acto não é realizado, nunca se pode saber se ele seria realmente inútil, porque
nunca se pode ter a certeza de que o acto omitido (como, por exemplo, a audição de uma
testemunha), se tivesse sido realizado, não iria abalar a convicção do juiz. A
economia processual fundamenta, por isso, a irrelevância virtual de um acto, isto é, a irrelevância
de um acto que, apesar de ser admissível, é considerado irrelevante antes mesmo de ser
praticado: o juiz que já adquiriu a convicção sobre uma questão pode dispensar um
acto processual a ela respeitante, sem que tenha de se preocupar com o que poderia ter resultado
desse acto e com a possível utilidade do acto omitido para um outro tribunal (nomeadamente, de
recurso).

X. Princípio da auto-suficiência
1. Caracterização
O princípio da auto-suficiência do processo pode exprimir-se do seguinte modo: em
processo civil, a aparência vale como realidade para o efeito de determinar se o é ou não e esta
determinação é realizada no próprio processo.

2. Concretização
A mera invocação de um direito permite à parte instaurar uma causa, o que, em rigor, só
deveria ser permitido àquele que fosse efectivamente titular desse direito; mas a causa visa
precisamente averiguar se o autor é ou não titular do direito que invoca. O mesmo se passa no
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plano dos pressupostos processuais: a apreciação destes pressupostos é realizada na própria


acção em que eles condicionam a apreciação do mérito. Assim, por exemplo, a parte ilegítima é
legítima para sustentar a sua ilegitimidade e o tribunal incompetente é competente para decidir da
sua competência (regra da Kompetenz-Kompetenz).

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