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RESUMO: O artigo cuida dos discursos acer- ABSTRACT: The paper focuses on dicourses
ca do jus cogens. A defesa de normas in- about jus cogens. The defense of interna-
ternacionais cogentes exige uma nova tional peremptory norms demands a new
compreensão da estrutura e fundamento comprehension of the international law
do direito internacional que aponta para structure and groundwork, which points to
uma substituição do jus publicum euro- a replacement for the jus publicum euro-
pauem. paeum.
PALAVRAS-CHAVE: Jus cogens – Kelsen – His- KEYWORDS: Jus cogens – Kelsen – History of
tória das idéias. ideas.
INTRODUÇÃO
Em 1953, Hans Kelsen, em seu último curso em Haia, anuncia
sem maior alarde a novidade:
“Le pouvoir de l’État de conclure des traités est en principle illi-
mité dans le cadre du droit international général. L’État a donc la
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13. Para não sobrecarregar a exposição, não será feita a comparação exaus-
tiva de todos os relatórios. As referências têm a função de clarificação
conceitual apenas. Não nos interessa mostrar a evolução de concepções
entre os relatórios. (Robledo, 1981), é a principal referência para a pes-
quisa evolutiva.
14. A sinonímia entre validade e obrigatoriedade é feita sem mais neste en-
saio. A razão é que os relatórios da Comissão, repetindo a compreensão
dominante entre os autores da teoria do direito, entre eles Kelsen,
apoia-se nesta equivalência. Para uma análise das dificuldades desta
aproximação, vide (Ferraz Jr., 1997: cap. 3).
15. Ambas não podem permanecer válidas, pois poderia gerar uma antino-
mia. Se não são conflitantes não é o caso de inconsistência e não incide
o art. 53.
16. Para ficarmos com um exemplo, Lauterpacht propõe a seguinte redação
para o art. 1 da codificação: “Treaties are agreements between States,
including organizations of States, intended to create legal rights and ob-
ligations of the parties”. Lauterpacht afirma a base contratual de qual-
quer tratado mesmo contra a controversa distinção entre tratados
contratuais e tratados-lei (Lauterpacht, 1953: 99).
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18. Durante a exposição, não nos deteremos sobre os efeitos. Mas será dig-
no de relevo que o jus cogens é problema de conteúdo.
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them, evidently is that they involve not only legal rules but considera-
tions of morals and of international good order” (Fiztmaurice, 1958:
41). O que isto significa, após exemplos, Fitzmaurice conclui, sem
maiores razões, que as regras cogentes não raro são aquelas instituídas
para proteção individual.
Deixemos sumariados alguns resultados e observações. O jus co-
gens é regra imperativa, o que lhe garante primazia no caso de incon-
sistência com tratado. Vale distinguir que imperatividade não é
sinônimo de obrigatoriedade. Todas as normas internacionais são
obrigatórias, a imperatividade é uma propriedade suplementar que,
vale insistir, garante que uma norma internacional imperativa (jus co-
gens) não é derrogada senão por outra norma imperativa posterior. O
objeto do tratado pode possuir qualquer conteúdo desde que consis-
tente com os conteúdos imperativos de outras normas internacionais.
Uma última observação que pode ser obscurecida devido à ênfase da
exposição anterior em conceituar o jus cogens: as regras internacionais
cogentes são excepcionais, todos os relatórios da Comissão são con-
cordantes em afirmar que, no plano internacional, em princípio, esta-
mos diante de uma regras dispositivas (jus dispositivum).
Após a conceituação do jus cogens, nos parágrafos seguintes des-
ta seção isolaremos alguns dos principais topoi sobre as regras impera-
tivas, a partir das disputas doutrinárias. Avaliamos que este modo de
apresentação é particularmente frutífero. Textos dogmáticos não po-
dem ser medidos unicamente por uma leitura estrutural, sob pena de
se perder o móbil do esforço construtivo dos juristas. A dogmática
não está à serviço da verdade, mas é formulada para preparar uma de-
cisão. A força da intervenção da dogmática depende muito dos luga-
res-comuns em que se apoia para argumentar e persuadir.19
***
Em manifestação tardia, de 1983, Prosper Weil escreve um arti-
go polêmico (Weil, 1983: 413-442), renovando a querelle sobre o jus
cogens.
A teoria sobre jus cogens é uma das iniciativas dogmáticas ao la-
do de outras (v.g. a teoria sobre obrigação erga omnes) que “fragilizam
***
28. O primeiro curso, intitula-se Les rapports de système entre le droit inter-
ne et le droit internaitonal public (Kelsen, 1926) doravante citado como
Rapport de Système. O terceiro curso (Kelsen, 1953), que estamos citan-
do o como TDIP. Não trabalharemos com o segundo curso, que ainda
está na órbita de considerações do curso de 1926. Nem nos dedicare-
mos ao seu Principles of International Law de 1952. Preferimos, pois, a
última formulação da teoria do direito internacional público de Kelsen
que, tendo sido proferida na Academia de Haia, fez-se oportuno ter em
linha de comparação seu primeiro curso nesta Academia. A propósito, o
repertório bibliográfico compulsado e discutido neste ensaio paga o tri-
buto aos cursos desta Academia, que é substancialmente representativo
da autocompreensão dos publicistas acerca do direito internacional.
29. É o que se lê na introdução do curso de 1953: “une théorie du droit
international a pour objet un ordre juridique concret. Elle est ainsi
comparable à une théorie du droit français ou du droit suisse. Elle se
rattache à la théorie pure du droit, qui est une théorie générale du
droit, dans la mesure où elle applique ses principes et utilise ses no-
tions fondamentales” (TDIP: 8).
30. Estes três temas foram destacados enfaticamente no artigo de 1941
(Kelsen, 1997).
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Dito assim, não fazemos justiça às extensas partes dos cursos mi-
nistrados em Haia. É que eles excepcionalmente realizam a tarefa in-
terpretativa de normas particulares. Vez ou outra Kelsen se refere a
algum tratado específico; a bem da verdade, o que foi denominado
acima de teoria da ordem juridicamente concreta Kelsen desenvolveu
em comentários ao direito positivo.31 Os cursos, muito embora rece-
bam a denominação de teoria do direito internacional, ainda se en-
contram, preponderantemente, no domínio da teoria geral do direito.
Quando Kelsen assinala que as normas do direito internacional não
estão no mesmo plano, mas em escalões, esta formulação é propria-
mente a repetição da teoria geral. A teoria do direito internacional dá
um segundo passo, que não é ainda a particular interpretação de nor-
mas jurídicas, a saber, a indicação de como as normas costumeiras e
convencionais se distribuem entre os escalões. Outro exemplo é a dis-
cussão da relação entre direito estatal e direito internacional, que ocu-
pa boa parte dos cursos – não se trata de como uma Constituição
determinada recepciona as normas internacionais, antes se trata da
discussão da relação entre as ordens normativas como tal. De resto,
esta discussão é reproduzida nas duas edições da Teoria Pura, o que
vem indicar nossa hipótese: os cursos de direito internacional são
complexos:32 há a interpretação de normas particulares do direito in-
ternacional, há proposições de teoria geral do direito, há proposições
do que vamos denominar de teoria geral do direito internacional. O
que chamaremos abaixo de teoria do direito internacional é a teoria
geral do direito internacional. Quando o caso for de teoria de uma
ordem concreta, falaremos em dogmática ou doutrina do direito inter-
nacional.33
Kelsen chama a atenção, na introdução ao curso de 1953, para a
vantagem de sua teoria do direito internacional ser dependente de
41. O conceito de norma legal que será o tema da passagem seguinte “is
cognitively and theoretically transcendental in terms of the Kantian
philosophy, not metaphysically transcendent” (RR1, 25). O conceito
transcendente ultrapassa os limites da experiência possível, como a
postulação de um valor absoluto que exige uma autoridade supra-hu-
mana.
42. A expressão é de Kelsen, que no cerne da primeira edição da TeoriaPura
do Direito, contrasta a filosofia transcendental – o programa da Teoria
Pura de colocar as condições para se conhecer o direito como ciência –
da filosofia transcendente – com raízes nas teorias jusnaturalistas e in-
fluenciadora da teoria positivista tradicional.
43. A obrigatoriedade do dever-ser jurídico não é imanente à experiência
jurídica, mas vem da idealidade moral.
44. “The 'ought' designates a relative a priori category for comprehending
empirical legal data. In this respect, the 'ought' is indispensable, lest the
specific way in which the positive law connects material facts with one
another not be comprehended or expressed at all.” (RR1, 25).
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45. Compare com a passagem seguinte: “the Pure Theory does this not by
understanding the legal norm, like the moral norm, as an imperative –
the usual approach of traditional theory– but by understanding the le-
gal norm as a hypothetical judment (hypothetisches Urteil) that expres-
ses the specific linking of a conditioning material fact with a
conditioned consequence. The legal norm becomes the reconstructed
legal norm (Rechtssatz) with exibits the basic form of positive
laws.” (RR1, 23).
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47. Vale lembrar que este sentido para “fundamento” preserva a compreen-
são do fenômeno jurídico do sincretismo com outras formulações estra-
nhas ao direito. Ela apenas sugere que as normas de um sistema não
pertencem ao mesmo plano, mas guardam relações hierárquicas. Não
entra em consideração quais os móbiles possíveis que influenciam os
órgãos criadores do direito, isto levaria a razão para fora dos limites de
seu objeto.
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the Pure Theory of Law analyses the actual process of the long-
standing method of cognizing positive law, an attempt simply to reve-
al the trancendental logical conditions of that method” (RR1, 58).
A norma fundamental no direito internacional atribui obrigato-
riedade (Sollen) ao costume que, por sua vez, atribui obrigatoriedade
ao tratado. Quer o costume, quer o tratado são normas positivas. A
diferença reside no fato que o costume é criado de modo não delibera-
do e descentralizado, ao passo que a norma convencional é conscien-
temente votada e decidida pelos sujeitos que funcionem como órgãos
da comunidade jurídica. Além de fundamento de obrigatoriedade e
fonte do direito par excellence, a norma fundamental é princípio de
unidade das normas jurídicas, pode-se conhecer/reconstruir os data
como sistema.
Kelsen sumaria nossa exposição na seguinte passagem:
“Le droit créé par des institutions internationales et notamment
par des tribunaux internationaux tire sa validité des traités qui ont
établi ces institutions et ces traités eux-mêmes tirent leur validité de
la norme coutumière du droit international général pacta sunt servan-
da. Les normes coutumières du droit international général constituent
le degré supérieur dans la structure hiérarchique de l’ordre juridique
international. Leur raison de validité doit être cherchée, comme nous
l’avons déjà indiqué, dans une supposition fondamentale, dans une
hypothèse attribuant à la coutume établie par la pratique des Etats la
qualité de fait créateur de droit. Une interprétation juridique des rela-
tions entre Etats suppose donc la norme que les Etats doivent se con-
former à la coutume établie par la pratique des Etats.” (TDIP, 171)
Nesta citação, o escalão das normas internacionais foi completa-
do com o conjunto das decisões dos tribunais e outras instituições in-
ternacionais. O cerne da passagem precisa ser suficientemente
destacado: é condição de possibilidade de uma interpretação especifi-
camente jurídica a pressuposição de uma norma fundamental que in-
terpreta com costume como fato criador do direito. Esta
pressuposição não é livre da experiência, mas se refere a uma “práti-
ca” já constituída. É condição para a interpretação desta prática. Ou-
tro ponto importante é que nesta descrição não está pressuposta a
aceitação de algum valor informador da conduta dos Estados, pois
não se postula nem se deduz um conteúdo obrigatório para o
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48. Com efeito, “Les Etats on le pouvoir de conclure des traités, car le droit
internacional général les autorise à en conclure. Ils ont le pouvoir de
s'imposer par des traités des obligations réciproques et de se conférer
des droits, parce que et dans la mesure où le droit international général
oblige les Etats à observer les traités qu'ils ont conclus et à exécuter les
obligations qui y sont stipulées. En concluant un traités les Etats con-
tractants appliquent une norme du droit internacional coutumier, à sa-
voir la norme pacta sunt servanda” (TDIP, 133).
49. Esta linguagem das condições só fica claramente demarcado na exposi-
ção sobre a norma fundamental na RR2.
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scienza del diritto internazionale che un po’ alla volta comincia a ri-
construire l’idea, distrutta dal dogma della sovranità, di un ordine giu-
ridico o statale universale, comprensivo dei singoli Stati” (Kelsen, s.d:
402).
Já encontramos aqui a referência à função construtiva da ciência
do direito internacional dirigida a uma compreensão universalista da
ordem jurídica, uma vez removida a pregnância do dogma da sobera-
nia. O novo é a menção ao fundo histórico da idéia da civitas maxima,
o ponto culminante da evolução da ordem internacional. O que esta
passagem não deixa claro, mas pode ser documentado em citações
acima de anos posteriores, é que a teoria do direito internacional ape-
nas pode garantir a unidade do conhecimento, sem garantir a unidade
política. Isto fica especialmente claro com o seguinte comentário do
tradutor italiano da monografia de 1920, Agostino Carrino:
“Si tutto il progetto della modernità (e quindi anche la formazio-
ne –e transformazione a partire da concetti originariamente teologici–
di un diritto internazionale laico, di categoire quali ‘Stato’, ‘sovranità’
ecc.) può essere interpretato come un tentativo di riposta ai problemi
creati dalla dissoluzione della Republica Christiana, dalla progressiva
perdita di punti di riferimento stabili, di una autorità legittima, la so-
luzione di Kelsen ne rappresenta al tempo stesso l’espressione massi-
ma e il punto di arrivo finale. Con Kelsen la ragione formale, astratta,
si compie e il progetto moderno entra nella sua fase finale di crise,
nella quale ancora ci trovanmo. Il dogma della sovranità era stato la
risposta al pericolo della guerra civile senza fine; il suo tramonto svela
le contraddizioni di quella rispota, la sua impossibilità di tenere insie-
me realmente gli atomi della società moderna: l’unità dell’ordine giu-
ridico universale – proposta di Kelsen– appare solo il palido
rovesciamento speculare dell’unità dell’Imperium medioevale” (p. X).
O alcance desta passagem, no entanto, é bem maior do que rea-
firmar que a unidade do ordenamento jurídico universal em Kelsen
não é política. Carrino sustenta que o direito internacional público
clássico (dos modernos) foi a resposta à dissolução da unidade medie-
val.57 Mais ainda, que este projeto moderno – ancorado na prática dos
Estados soberanos individuais, mas com pretensões universalistas–
chegou ao fim e a proposta de Kelsen é o renascimento esvaziado da
unidade uma vez crível com o Imperium medieval.
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