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RESENHA

As “teorias tradicionais” da restauração e a teoria contemporânea proposta por


Salvador Muñoz Viñas

CARBONARA, Giovanni. E proprio necessaria una ‘nuova teoria’ del restauro?


Considerazioni sul volume de Salvador Munoz Vinas. Opus, n. 2, p. 163-180, 2018.

MUÑOZ VIÑAS, Salvador. Teoria contemporânea da restauração. Tradução de Flávio


Carsalade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2021.

Rodrigo de Castro Dantas Cavalcante

Disciplina AUH 5816 Metodologia e prática da reabilitação urbanística e arquitetônica


Professores Beatriz Mugayar Kühl e Pedro Augusto Vieira Santos (colaborador)

No séc. XIX, quando a discussão sobre restauro de monumentos históricos1 aprofundou-


se, algumas abordagens distintas destacaram-se. De acordo com um tratamento
intervencionista, surgido na França e adotado na maioria dos demais países europeus, com
exceção, em certa medida, do Reino Unido, e cujo principal expoente foi Eugène Viollet-Le-
Duc, o restauro foi entendido como restabelecimento de um estado completo idealizado
(VIOLLET-LE-DUC, 2007), o que frequentemente resultou em prejuízos como perdas e
criação de um “falso histórico”,2 que induzia o observador a confundir as camadas do edifício
com a intervenção. Contudo, a partir de meados do séc. XIX, predominou o respeito aos estratos
históricos e à pátina, ou resultado da ação do tempo no objeto. Oposta a essa abordagem

1
De acordo com Riegl (1903, apud CHOAY, 1996, pp. 25-6), "o monumento é uma criação deliberada
(gewollte) cuja destinação foi pensada a priori, de forma imediata, enquanto o monumento histórico não é, desde
o princípio, desejado (ungewollte) e criado como tal; ele é construído a posteriori pelos olhares convergentes do
historiador e do amante da arte, que o selecionam na massa de edifícios existentes, dentre os quais os
monumentos representam apenas uma pequena parte. Todo objeto histórico pode ser convertido em testemunho
histórico sem que para isso tenha tido, na origem, uma destinação memorial."
2
Conceito de adulteração histórica de uma obra desenvolvido pelo crítico e historiador da arte Cesare Brandi,
resultado de qualquer das seguintes ações: "reconstrução de um monumento, ainda que com a mesma matéria do
local de onde foi extraído o material original; a remoção da obra de seu local primitivo; a repristinação que julga
abolir o lapso de tempo entre a conclusão da obra e o presente; a restauração de ruínas; e a produção de um
monumento no mesmo modo e estilo do original." (MAGALHÃES; XAVIER; SANTOS; CORDEIRO, 2018).

1
denominada estilística houve uma anti-intervencionista radical, defendida por John Ruskin
(RUSKIN, 2008) e conhecida como “conservação romântica”, a qual propunha conservações
periódicas que assegurem a sobrevivência do edifício, mas que condenava a restauração.

Para além dessas duas visões, no final do séc. XIX, o restauro passou a ser entendido
como ação que deveria respeitar o valor documental dos monumentos. A essa terceira postura
deu-se o nome de restauro filológico.3 Restaurador desse período foi Camillo Boito, segundo
quem os monumentos não poderiam ser relegados à ruína ou à morte, muito menos se deveria
chegar a uma unidade formal baseada em analogias estilísticas. No Congresso de Engenheiros
e Arquitetos realizado em Roma em 1883, propôs critérios de intervenção em monumentos
históricos, dentre os quais destacamos “ênfase no valor documental dos monumentos, que
deveriam ser preferencialmente consolidados a reparados e reparados a restaurados” (KÜHL,
2002, p. 21), completamentos de partes deterioradas ou faltantes de material diverso ou com
incisão de data de sua restauração, e acréscimos e renovações, se necessários, de caráter diverso
do original, mas sem destoar do conjunto. Esses princípios foram retomados em Os
Restauradores, conferência realizada um ano depois (BOITO, 2003). Pode-se afirmar que Boito
contribuiu para a formulação dos “princípios modernos de restauração” na medida em que
defendeu o interesse por aspectos conservativos, o respeito à matéria da pré-existência,
incluindo a manutenção dos acréscimos de épocas passadas, entendendo-as como parte da
história da edificação, e a distinção das intervenções. Posteriormente, no séc. XX, a Carta de
Atenas, de restauração, de 1931, reiterou esses princípios visto que recomendou-se que não
fosse admitida a reconstrução, mas apenas anastilose, ou ação de recomposição por meio da
qual as partes desmembradas retornam às posições iniciais cada vez que o caso permitir, e
materiais novos necessários a esse trabalho são sempre distintos.

Outro nome de destaque da segunda metade do séc. XIX, e que antecipou o debate do
segundo pós-guerra, foi Alois Riegl. Riegl propôs diferentes tipos de valor atribuídos aos
monumentos, agrupados em valores de rememoração –de antiguidade, valor histórico e valor
de rememoração intencional - ou de contemporaneidade - valor de uso prático e valor de arte,
esse subdividido em valor de arte relativo e valor de novidade (CUNHA, 2006). O esquema de
categorias de Riegl foi importante porque expôs a contradição que há entre as diferentes

3
Em referência aos métodos da filologia, ou preservação do texto como chegou até hoje, em que são admitidos
apenas elementos diferenciados, como tipo e cor da letra e notas à margem do escrito.

2
exigências para a preservação dos monumentos, necessárias e cujos conflitos devem ser
administrados pela atividade de restauração, a qual requer juízo crítico.

A partir de meados do séc. XX, o restauro filológico mostrou-se insuficiente para tratar
de aspectos de conformação e figurativos, como o tratamento de lacunas por meio de “neutros”.
À releitura do restauro filológico incluído o tratamento da imagem, deu-se o nome de restauro
crítico. Entre os representantes dessa linha está Cesari Brandi, segundo quem o restauro
consistem em “o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua
consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão
para o futuro” (BRANDI, 2004, p. 30). De sua experiência à frente do frente do Instituto Central
de Restauração de Roma, Brandi formula dois axiomas: “restaura-se somente a matéria da obra
de arte” (BRANDI, 2004, p. 31), e “a restauração deve visar ao restabelecimento da unidade
potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um
falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo” (BRANDI,
2004, p. 33). O primeiro axioma resulta em reconhecer que a intervenção deve estar limitada à
matéria, que é o que se degrada, e não no processo mental, sobre o qual seria impossível de
agir, o que implicaria em se trabalhar com suposições sobre um “estado original”, condenável
por ser uma recriação fantasiosa. O segundo axioma implica no reconhecimento do restauro
como ação que requer juízo crítico para ser possível alcançar a unidade potencial da obra sem
sacrificar a veracidade do monumento, entendido como portador de valores históricos e
artísticos. A Carta internacional sobre a conservação e o restauro de monumentos e sítios,
conhecida como Carta de Veneza, de 1964, do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios,
organização não governamental associada à UNESCO, é pautada, entre outros, nos princípios
do restauro crítico.

De acordo com Kühl (2010), na atualidade, há um distanciamento maior entre as


diferentes correntes do restauro se comparada com a década de 1960, quando houve, em alguma
medida, maior convergência em relação aos princípios da Carta de Veneza. Nas discussões
atuais sobre o tema, verificar-se-iam três tendências principais: a “conservação integral” ou
“pura conservação”, a “crítico-conservativa” ou “posição central”, e a “manutenção-
repristinação” ou “hipermanutenção” (CARBONARA, 1997). Na conservação integral, a
instância histórica não interage com a instância estética. Segundo essa corrente, o bem deve ser
preservado em sua integridade, inclusive no caso de configuração conflituosa, sendo
combatidos a remoção de adições e qualquer tipo de reintegração, incluída a da imagem. Na

3
conservação crítico-conservativa, as instâncias estética e histórica coexistem e interagem por
meio da dialética; nela, portanto, o juízo é baseado em ambas as instâncias. São promovidas,
dentro de limites, a remoção de adições e a reintegração de lacunas. E a terceira vertente propõe
manutenções ou integrações, refazendo argamassas e pinturas, reintegrando lacunas e
reproduzindo partes sem valorizar os sinais de degradação, utilizando-se para isso de técnicas
do passado. Contudo, apesar das diferenças entre as correntes de restauro atuais, não se trata de
abordagens completamente divergentes entre si, posto que compartilham de bases teórico-
metodológicas e técnico-operacionais construídas ao longo de pelo menos dois séculos.

No livro Teoria contemporânea da restauração, publicado em 2021 pela Editora da


Universidade Federal de Minas Gerais, o qual é tradução de Teoría contemporánea de la
Restauración, publicado em 2004 pela Editorial Síntesis, Salvador Muñoz Viñas questiona os
procedimentos metodológicos do campo disciplinar do restauro segundo o que ele chama de
“teorias clássicas”, referindo-se aos aportes dos teóricos desde Viollet-le-Duc e Ruskin a
Brandi. De acordo com Muñoz Viñas, a teoria da Restauração4 clássica tem sido alvo de críticas
por caracterizar-se por sua estreita adesão à Verdade desde a década de 1980, quando novas
alternativas a ela estão se desenvolvendo e ganhando força. Conceitos como autenticidade,
objetividade, universalidade do patrimônio e reversibilidade, por exemplo, têm sido
questionados. A tese de Muñoz Viñas é que há uma teoria contemporânea da restauração que
existe de forma fragmentada, que embora não tenha substituído completamente ao que ele
chama de “teoria clássica”, responde melhor aos problemas de hoje. O livro seria um esforço
de compilação das muitas ideias presentes na teoria contemporânea da restauração, incluídos
aportes do autor.

Giovanni Carbonara, em seu artigo “È proprio necessaria una ‘nuova teoria’ del restauro?
Considerazioni sul volume di Salvador Muñoz Viñas”, publicado na segunda edição da revista
Opus, em 2018, o autor questiona a visão de Muñoz Viñas. Segundo Carbonara, na “teoria
clássica”, à qual ele prefere chamar de teorias "tradicionais", o critério de verdade, como
mencionado no libro de Muñoz Viñas, inexiste, "pelo menos absolutamente, pois a restauração
sempre foi submetida a avaliações culturais, subjetivas e comunicativas, para a definição de
seus limites " (CARBONARA, 2018, p. 173, tradução nossa). A resposta à pergunta proposta
para título do artigo seria que “talvez hoje não seja o momento de fundar uma ‘nova’ teoria,

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Muñoz Viñas emrpega o termo “Restauração” para se referir à restauração em seu sentido amplo, ou seja,
sinônimo de “conservação e restauração”, e “restauração” para distinguir o procedimento de “conservação”.

4
mas sim, na esteira de uma longa e respeitável tradição, desenvolver e expandir aquisições
anteriores, com atos de refinamento e integração conceitual.” (CARBONARA, 2018, p. 163,
tradução nossa).

A versão em espanhol e a versão em português Teoria contemporânea da restauração


estão organizadas em três capítulos, cada um com subseções. O artigo de Carbonara,
diferentemente, traz uma visão crítica de Teoria contemporanea del restauro, versão italiana
publicada em 2017 pela editora Castelvecchi e organizado em nove capítulos. Dado que a obra
de 2017 conta com outra organização e muito provavelmente acréscimos, apresentaremos
dentro do possível, síntese das principais ideias contidas em Teoria contemporânea da
restauração e no artigo de Carbonara sobre a tese de Salvador Muñoz Viñas, organizadas de
acordo com os comentários sobre a edição italiana.

No primeiro capítulo (Cos'è il restauro?), Muñoz Viñas informa que, na “teoria clássica”,
adota-se o critério da perceptibilidade da intervenção para distinguir conservação de
restauração, sendo a conservação empregada para se referir ao trabalho que não aspira produzir
alterações perceptíveis no objeto, e restauração para o trabalho que tem por objetivo modificar
aspectos perceptíveis. Contudo, reconhece que na prática, as atividades se superpõem, mas
defende que a definição dos conceitos é necessária para superar ou reduzir essa ambiguidade.
Para esse capítulo, Carbonara argumenta que são definições retiradas de dicionários e que não
levam em conta o desenvolvimento histórico dos termos e a reflexão disciplinar sobre o assunto,
“que considera essencialmente as intenções que orientam os diferentes tipos de operações” (p.
165, tradução nossa). A questão seria muito mais complexa e remonta precisamente aos
princípios orientadores do restauro, como “‘mínimo intervenção’, que têm um papel
fundamental na conservação, ou o de ‘autenticidade’ (material) a ser respeitada tanto quanto
possível para que o objeto permaneça histórica e cientificamente questionável da forma mais
clara.” (CARBONARA, 2018, p. 166, tradução nossa).

No segundo capítulo (Gli oggetti del restauro), Muñoz Viñas defende que os objetos de
Restauração não são considerados como tais porque são antiguidades, obras de arte, objetos
históricos ou bens culturais, mas porque servem como símbolos: “Os objetos de Restauração se
caracterizam por gozarem de uma consideração especial por parte de certos sujeitos… são
signos de aspectos intangíveis de uma cultura, de uma história, de algumas vivências, de uma
identidade…” (MUÑOZ VIÑAS, 2021, p. 46). Segundo Muñoz Viñas, é possível rastrear esse
caráter simbólico em textos como a Carta de Veneza de 1964, na qual se descrevem objetos de

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restauração como “imbuídos de uma mensagem” e, portanto, as atividades de Restauração são
melhor definidas substituindo os aspectos perceptíveis pela capacidade simbólica. Assim, por
exemplo, a conservação é o trabalho que não aspira produzir alterações na capacidade simbólica
do objeto, e restauração para o trabalho que tem por objetivo modificar essa capacidade
simbólica. Por sua vez, Carbonara argumenta que a capacidade simbólica dos objetos de
Restauração é uma proposição conhecida. De acordo com Carbonara, “com novas palavras, o
autor apresenta algumas conhecidas proposições fundadoras do restauro como, neste caso, o
'reconhecimento' (Brandi) do 'valor' do artefato, entendido hoje de forma mais ampla do que no
passado.” (CARBONARA, 2018, p. 166, tradução nossa). Ademais, reduzir objetos de
Restauração àqueles portadores de capacidade simbólica seria uma conclusão redutiva, pois
seria possível “desfrutar esteticamente de um objeto e, ao mesmo tempo, extrair dele a
mensagem comunicativa simbólica que ele transmite" (CARBONARA, 2018, p. 168, tradução
nossa).

No terceiro capítulo (Verità, oggettività e restauro scientifico), Muñoz Viñas afirma que
de acordo com a “teoria clássica” da Restauração, essa “se apresenta como a atividade
encarregada de garantir que o objeto tratado se ache em seu estado autêntico, real – em seu
estado de verdade” (MUÑOZ VIÑAS, 2021, p. 91). As teorias clássicas difeririam quanto a
qual seria esse estado, mas sua existência seria um pressuposto comum. Em substituição às
quatro categorias elencadas por Muñoz Viñas quanto ao estado autêntico segundo as teorias
clássicas – aquele original, ou prístino, ou pretendido pelo autor, ou o estado atual) –, ele propõe
“o reconhecimento de que podem existir vários protoestados” (MUÑOZ VIÑAS, 2021, p. 97),
ou “estados de verdade”, pois “todos os estados pelos quais atravessa um objeto desde sua
criação são testemunhos fiáveis e verdadeiros de sua história.” (MUÑOZ VIÑAS, 2021, p. 98).
Quanto a isso, Carbonara escreve nunca ter lido em autores como Cesare Brandi, Paul Philippot
e Renato Bonelli qualquer referência ao conceito de “verdade”, tampouco essa classificação em
quatro categorias.

No quarto capítulo (Il declino di verità e oggettività), Muñoz Viñas afirma que “a Verdade
objetiva não pode converter-se no critério primordial para o trabalho de Restauração” (MUÑOZ
VIÑAS, 2021, p. 110). A Restauração seria e deveria ser reconhecida, portanto, como sendo
baseada no gosto, o qual influi a priorização da Restauração de uns objetos sobre outros, a
prevalência de um protoestado sobre outros, e a recriação desse protoestado de uma forma ou
de outra. Ainda com relação a essa subjetividade nas decisões, Muñoz Viñas classifica os

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trabalhos de Restauração em quatro aspectos, a saber: de tal maneira que o espectador possa
reconhecer o objeto como está acostumado, ao que ele chama de “inércia icônica”; que o objeto
deve ser adaptado ao que o espectador pressupõe, ao que ele denomina “preconceito histórico”;
no respeito à materialidade, ao que Muñoz Viñas chama de “fetichismo material”; e ao
referendo dos especialistas. A esse respeito, Carbonara esclarece que essa objetividade que
Muñoz Vinãs atribui às “teorias tradicionais” não se encontra em teóricos qualificados
(CARBONARA, 2018, p. 169, tradução nossa):

Brandi fala expressa e duramente da irreversibilidade da história; Baldini de


mudanças irreversíveis induzidas pelo tempo para as quais não devemos tanto
retroceder quanto prosseguir, em busca de um novo equilíbrio; Philippot
escreve, com sua clareza habitual, que apenas 'o estado atual do material
antigo' pode ser desenhado e não seu estado antigo ou original.

No quinto capítulo (Breve incursione nel mondo reale), Muñoz Viñas defende que uma
consequência do apetite dos teóricos clássicos pela Verdade tem sido a influência cada vez
maior da ciência na Restauração. Sem um texto canônico, a conservação científica basear-se-ia
em pressupostos que assumem que a Verdade deve prevalecer, e que a Verdade deve ser
determinada por métodos científicos, fornecidos pelas ciências duras. De acordo com Muñoz
Viñas, esses pressupostos têm sido fortemente criticados por diversos autores, que acreditam
que a Restauração lida principalmente com questões imateriais, como arte, significados ou
sentimentos, embora processos científicos poderão ser utilizados quando houver necessidade
de informação científica, mas que as principais decisões e critérios serão sempre produto da
vontade do sujeito. Com relação a esse capítulo, Carbonara concorda sobre a insuficiência das
ciências duras: “ao tratar do assunto, o Autor observa acertadamente que 'quanto melhor o nosso
conhecimento, mais nos conscientizamos das enormes lacunas do próprio conhecimento', daí
sua reflexão sobre a 'insuficiência das ciências duras' (CARBONARA, 2018, p. 172, tradução
nossa).

No sexto capítulo (Dagli oggetti ai soggetti), Muños Viñas afirma que a Restauração não
pode mais ser considerada uma atividade neutra. Posto que os conceitos de autenticidade e
objetividade não podem ser tomados como certos, e que a possibilidade de Restauração
científica ou objetiva é uma ilusão, o restaurador ou os sujeitos devem deixar de perseguir um
objetivo inatingível e assumir atuação de forma criativa. Nesse ponto, Munõs Viñas cita autores
como Cosgrove, para quem deve-se recorrer à criatividade artística ou mesmo subversiva para

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escapar das limitações teóricas impostas pela “verdade histórica”: “Uma restauração mais
criativa, menos respeitosa com a ideologia canônica, mais aberta ao radicalismo, à iconoclastia
e ao inventado poderia desenvolver a tarefa necessária de manutenção da tradição ao mesmo
tempo que não se dobraria a seu poder de distorção" (COSGROVE, 1994 apud MUÑOZ
VIÑAS, 2021, ap. 150). Carbonara ressalta que “são todas afirmações que, tomadas
literalmente, podem revelar-se muito perigosas e minar em sua raiz o sentido da conservação
material e da transmissão de testemunhos culturais” (CARBONARA, 2018, p. 173, tradução
nossa), e que (CARBONARA, 2018, p. 174, tradução nossa):

A 'teoria contemporânea' proposta mostra-se fraca, mas bem adequada ao


pensamento pós-moderno, a seu relativismo, à crítica de critérios e valores
objetivos que são de alguma forma independentes do sujeito, à exaltação, vice-
versa, dos [critérios] subjetivos (ou intersubjetivos), de recuperação
emocional, de caracterização simbólica. Tudo isto corre o risco de pôr em
causa o sentido do valor patrimonial como base da nossa própria construção
social e levanta a questão e a dúvida de que se, de repente, uma sociedade
acreditasse que algo já não tem carga simbólica, poderia deixar de o considerar
patrimônio e, portanto, destruí-lo, sem muitos arrependimentos.

No sétimo capítulo (Le ragioni del restauro), Muñoz Viñas afirma que as "teorias
clássicas" da Restauração se fundamentam na primazia dos valores históricos e dos valores
artísticos, mas que “não é possível respeitar as marcas da história de cada objeto e, ao mesmo
tempo, eliminá-las mediante a restauração para devolver um objeto a um estágio de sua
evolução revelado pela História” (MUÑOZ VIÑAS, 2021, p. 158), e que “é essencial e
absolutamente impossível restaurar algo, por exemplo a unidade potencial da obra de arte, ao
mesmo tempo que se respeitam as marcas do tempo. Torna-se necessário escolher e, de fato, se
escolhe.” (MUÑOZ VIÑAS, 2021, p. 158). Para resolver a esses problemas, na teoria
contemporânea, as decisões de Restauração deveriam ser expressas por meio dos conceitos de
valor (simbólico, religioso, identitário, econômico, turístico, pessoal, sentimental…) e de
função, ou utilidade que cada objeto tem para cada pessoa ou grupo (como expressão de
ideologias e de identidades). Em outras palavras, a Verdade ou a ilusão da Verdade seria
somente desejável na medida em que contribui para a eficácia funcional dos objetos, ou seja,
uma vez que resulta útil. Sem entrar no mérito dos exemplos dados por Muñoz Viñas,
Carbonara lembra que essas questões são bem conhecidas e têm sido objeto de discussão e
exploração há algum tempo: “... basta pensar na reconstrução da Cidade Velha de Varsóvia,

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nos anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial ou, com maior desapego, ao da
Frauenkirche de Dresden, ou à 'instância psicológica' sobre a qual Roberto Pane escreveu”
(CABONRARA, 2018, p. 175).

No oitavo capítulo (Restauro sostenibile), Muñoz Viñas utiliza exemplo de alteração de


gosto na Restauração de papeis, de embranquecidos, com um límpido tom marfim, para tom
ocre, o que seria, segundo ele, aplicável igualmente para pinturas, e para fachadas, para as quais
preferência poderia, respectivamente, evoluir de superfície homogênea e acetinada e tons
vívidos e aspecto de recém-pintadas para outros sentidos. Em seguida, Muñoz Viñas afirma que
aos princípios de mínima intervenção e de reversibilidade das “teorias clássicas”, “as teorias
contemporâneas acrescentam o princípio de sustentabilidade” (MUÑOZ VIÑAS, 2021, p. 180)
para responder à pergunta de o que deve guiar as ações de Restauração. Sendo a sustentabilidade
entendida como “possibilidades de adaptação dos objetos a novos gostos e necessidades: os
usuários dos objetos não são somente os usuários presentes, mas também os futuros.” (MUÑOZ
VIÑAS, 2021, p. 179). Em seu artigo, Carbonara não se posiciona com relação ao conceito de
sustentabilidade, mas reafirma que os princípios de reversibilidade e de mínima intervenção são
saudáveis e prudenciais (CARBONARA, 2018, p. 175, tradução nossa):

Na verdade, podemos acrescentar, [a reversibilidade] é um princípio saudável


e prudencial, longe de ser absoluto, mas a ser considerado como um horizonte
de método a olhar, como sempre a 'teoria clássica' da restauração afirmou
claramente, bem ciente das críticas corretas que eles poderiam ter vindo do
mundo das ciências químicas e físicas. Mas o mesmo se pode dizer da
intervenção mínima, bem distinta da reversibilidade e não um princípio
absoluto, mas também um princípio 'relativo', como bem observa o Autor.

E no capítulo nono (Dalla teoria alla pratica), depois de apresentar três éticas presentes
na “teoria contemporânea”, chega a defender o argumento da genialidade para guiar as
intervenções e, para defende-la de excessos, afirma que não é tecnocrática, mas tampouco
populista. As diferentes éticas seraim: funcional, segundo a qual Verdade ou a ilusão da
Verdade é somente desejável na medida em que contribui para a eficácia funcional dos objetos,
ou seja, na medida em que resulta útil; sincrética, para a qual “... a melhor Restauração é a que
proporciona maior satisfação a um maior número de pessoas” (MUÑOZ VIÑAS, 2021, p. 171)
e “baseada na negociação, no equilíbrio, na discussão, no diálogo, ou no consenso”. (MUÑOZ
VIÑAS, 2021, p. 172); e ética circunstancial, pois “o estabelecimento de critérios e juízos

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éticos não pode ignorar as circunstâncias.” (MUÑOZ VIÑAS, 2021, p. 178). Em outras
palavras, as normas éticas devem ser imprecisas e não universais. Com relação a esse capítulo,
Carbonara reconhece que o deslocamento do objeto para o sujeito é aceitável, mas na
perspectiva de um equilíbrio, "sempre a ser buscado 'caso a caso', em direção às razões do
objeto e dos sujeitos" (CARBONARA, 2018, p. 176, tradução nossa), e denuncia as éticas
formuladas, chegando à conclusão de que a teoria contemporânea da Restauração não é mais
que uma revolução do senso comum (CARBONARA, 2018, p 176, tradução nossa):

A gama de aberrações éticas inclui a restauração engenhosa (se é que estamos


lidando com um gênio), testemunhal e demagógica. Para evitar tais excessos,
é preciso exercer a autoridade com cautela e inteligência, e julgar os elementos
com honestidade e lucidez. Para tanto, nenhuma teoria, texto ou preceito pode
substituir o bom e velho bom senso. A teoria contemporânea da restauração,
em todos os seus aspectos, talvez não seja mais do que uma revolução do senso
comum.

Para concluir, importante ressaltar que Carbonara chama atenção para o fato de “as
palavras 'história' e 'memória', que são a base do pensamento sobre a restauração, pareçam
muito pouco, se não quase nada” (CARBONARA, 2018, p. 178, tradução nossa). De acordo
com Muñoz Viñas, na teoria contemporânea, os procedimentos metodológicos de Restauração
das teorias tradicionais têm sido alvo de crítica em função de uma busca pela Verdade a despeito
do reconhecimento atual das limitações, por exemplo, da própria disciplina da História. Com
relação a isso, contudo, Le Goff já afirmara que (1996, p. 11):

A tomada de consciência da construção do fato histórico, da não-inocência do


documento, lançou uma luz reveladora sobre os processos de manipulação que
se manifestam em todos os níveis da constituição do saber histórico. Mas esta
constatação não deve desembocar num ceticismo de fundo a propósito da
objetividade histórica e num abandono da noção de verdade em história; ao
contrário, os contínuos êxitos no desmascaramento e na denúncia das
mistificações e das falsificações da história permitem um relativo otimismo a
esse respeito.

E (LE GOFF, 1996, p. 51):

Tal como as relações entre memória e história, também as relações entre


passado e presente não devem levar à confusão e ao ceticismo. Sabemos agora

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que o passado depende parcialmente do presente. Toda história é bem
contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no presente e
responde, portanto, a seus interesses, o que não só é inevitável, como legítimo.
Pois que a história é duração, o passado é ao mesmo tempo passado e presente.
Compete ao historiador fazer um estudo “objetivo” do passado sob sua dupla
forma. Comprometido com a história, não atingirá certamente a verdadeira
“objetividade”, mas nenhuma outra história é possível. O historiador fará
ainda progressos na compreensão da história esforçando-se para explicar, no
seu processo de análise, tal como um observador científico o faz, as
modificações que eventualmente introduz em seu objeto de observação.

A História é, portanto, “ciência do tempo” (LE GOFF, 1996, p. 52) e está apta para
orientar as ações de Restauração, o que desconstrói o argumento sobre o qual a tese de uma
teoria contemporânea da Restauração foi formulada.

Salvador Muñoz Viñas (Valência, 1963) possui formação em Belas Artes e História da
Arte. Depois de trabalhar com conservação de papel e tornar se membro do Departamento de
Conservação da Universidade Politécnica de Valência, obteve bolsas de estudos e prêmio que
lhe permitiu realizar pesquisas no “Straus Center for Conservation and Technical Studies” da
Harvard University. Em 1991, defendeu tese parcialmente baseada nas pesquisas em Harvard.
Após publicar alguns artigos sobre as “teorias tradicionais” da restauração, publicou Teoría
Contemporánea contemporánea de la restauración (2003) e Contemporary Theory of
Conservation (2004).

Giovanni Carbonara (Roma, 1942) é um arquiteto italiano, historiador da arquitetura e


teórico da restauração. Licenciado em arquitetura em 1967, posteriormente se inscreveu na
Scuola di specializzazione per lo studio ed il restauro dei monumenti, tendo obtido diploma em
1971. De 1969 a 1980, colaborou como assistente da cadeira de História da Arquitetura de
Renato Bonelli na Universidade de Roma “La Sapienza” e desde 1980, é professor catedrático
de Restauração de monumentos em Roma. É autor de, entre outras obras, Avvicinamento al
restauro (1997).

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REFERÊNCIAS

BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. São Paulo: Ateliê, 2004.

BOITO, Camillo. Os restauradores: conferência feita na Exposição de Turim em 7 de junho


de 1884. 2ª ed. Título original: I Restauratori: Conferenza tenuta all'Exposizione di Torino il 7
giugno 1884. Tradução de Paulo Mugayar Kühl e Beatriz Mugayar Kühl. Cotia, SP: Ateliê
Editorial, 2003.

CARBONARA, Giovanni. Avvicinamento al restauro: teoria, storia, monumenti. Napoli:


Liguori, 1997.

______. E proprio necessaria una ‘nuova teoria’ del restauro? Considerazioni sul volume de
Salvador Munoz Vinas. Opus, n. 2, p. 163-180, 2018.

CARTA de Atenas de 1931. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Atenas%201931.pdf>.
Acesso em: 2022-06-22.

CARTA de Veneza. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%201964.pdf>.
Acesso em: 2022-06-22.

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