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DE PALCO
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A arquitetura pretende transcender a simples necessidade de abrigo e
segurança, tornando-se uma expressão de arte.
Dito isto, será importante realizar um exercício mental sobre o que poderá ou
não ser arquitetura, tentando justificar-se a resposta, partindo do mais evidente para o
menos evidente.
Adolf Loos
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SIZA, Álvaro, Imaginar a Evidência, Edições 70, Lisboa, 2018
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A arte é uma conquista. A construção pode não ser arte e pode ser. Nunca discutimos isto tão profundamente, mas há
muita gente que diz — olhe, o Nadir [Afonso] dizia isso — que a arquitectura não é arte porque tem uma função. Ele
deixou a arquitectura porque não gostava. – SIZA, Álvaro, O bonito, o feio, o janota e o efeito Miles Davis na arquitetura,
entrevista, Lisboa: Jornal Público, 25 de fevereiro de 2018, 7:13
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SOLÀ-MORALES, Ignasi, Introducción a la arquitectura: Conceptos fundamentales, Arquitext, Ediciones UPC, 2001, p.
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Figura 2 - Morning at Brown Sugar Beach de Paul Bond, pintura a óleo
Iniciando com um objeto: uma chávena. Muitos dirão que um involucro é o sufi-
ciente para criar um espaço, algo que consiga albergar vivência. É certo que um recipi-
ente como um copo é um invólucro que poderá conter um certo líquido, no entanto não
tem dimensão suficiente para proporcionar vivências de um ser humano. Poderá trazer
conforto e funcionalidade à vida de uma pessoa, mas por este motivo não pode ser
arquitetura.
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Um forte de crianças apropria-se da ideia do involucro e escala-a de forma a
que seja possível vivenciar-se experiências dentro dele, no entanto a questão da dura-
bilidade da arquitetura, assim como a sua força (firmitas), coloca-se em causa neste
exemplo, principalmente uma vez que será sempre um exercício trivial que não tem
como objetivo proteger o ser humano dos elementos, mas sim de proporcionar um es-
paço de lazer delimitado por objetos não arquitetónicos. Neste aspeto, ganha-se quali-
dades que perpetuam a ideia arquitetura que o exemplo anterior não apresenta.
Uma escultura poderá ser um tema mais controverso, uma vez que a escultura
poderá aparecer nesta discussão com diversas morfologias. Numa ponta do espectro,
o David de Michelangelo aproximar-se-á do exemplo do copo uma vez que não é pos-
sível habitar dentro o objeto, apenas sendo possível contemplá-lo. Na outra, as escultu-
ras de Richard Serra, tanto pelas suas dimensões como pelas suas características for-
mais, compreenderão uma certa carga arquitetónica na forma como o utilizador pode
percorrer o espaço, sentindo-se mais ou menos claustrofóbico, assim como numa obra
arquitetónica. Com esta ambiguidade, pode aplicar-se outro critério discutível da arqui-
tetura que é a sua habitabilidade, ou seja, a sua capacidade de proteger o ser humano
dos elementos naturais. Neste aspeto, também a segunda opção não se enquadra por-
que só contempla a ideia de percorrer o espaço arquitetónico, sem uma função de sal-
vaguarda exterior, uma vez que sendo uma obra de arte, vale por si só (sem necessi-
dade de ter uma função para além da sua criação).
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Um desenho pode tornar-se arquitetura, assim como a geometria criada para
um certo projeto, no entanto, pode o projeto não construído considerar-se um objeto
arquitetónico? Pelas razões dadas anteriormente, dir-se-ia que não, uma vez que não é
algo que proteja o ser humano, nem que crie vivências ou que tenha sequer qualquer
utilidade prática. É nada mais que uma ideia transcrita para o papel, no entanto, é uma
ideia que pode ser criada, é o passo mais difícil na criação da arquitetura, e se a arqui-
tetura estiver no pensamento de cada um, nem que seja apenas na mente do arquiteto
é capaz de despertar sensações que podem suscitar novas ideias de projeto. Um projeto
não construído pode considerar-se arquitetura no sentido em que é mais um ensaio
(entre milhões) na complexa tarefa de construir abrigo para o ser humano, permitindo-
nos teorizar e experimentar mais a partir do mesmo.
Conta-se que Kandinsky entrou, um dia, no seu atelier e viu uma pintura
belíssima: ficou surpreendido, depois aproximou-se e verificou que era um qua-
dro pintado por ele, uma paisagem ou uma natureza morta, virada de cabeça
para baixo. Tinha desaparecido tudo aquilo que era fixo na representação do
quadro e ficara o essencial, nas suas formas, nos seus equilíbrios e nas suas
cores.4
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SIZA, Álvaro, Imaginar a Evidência, Edições 70, Lisboa, 2018, p. 145
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Percebe-se, por conseguinte, que as ideias de um objeto arquitetónico podem
ser bastante turvas conforme o pensamento do seu criador, dos seus observadores ar-
quitetos, dos seus observadores aleatórios, dos seus estados de espírito ou da função
do objeto. Acredita-se, no entanto, que o palco como estrutura efémera consegue inte-
grar-se numa ideia de arquitetura devido ao seu propósito (servir a sociedade com um
espetáculo), assim como à sua função e racionalismo, que se compõe por: uma boca
de cena principal, bastidores, casas das máquinas, backstages, anexos de apoio téc-
nico, reggies, sistemas de trusses que incorporam robots de iluminação e sistemas de
projeção em telas, ancoragens para variados desenhos tridimensionais, assim como
sistemas de aparelhagem e outros tipos de serviços de apoio ao concerto. É uma ver-
dadeira máquina de entreter e a forma como se organiza pode comparar-se a qualquer
outra de um centro cultural. Pode dar-se ao caso de cairmos na tentação de chamar a
tal objeto “arquitetura” apenas pelos seus aspetos complexos organizativos, mesmo
tendo em conta que será assemblado num dia x, servirá a sua função durante um curto
período de tempo, e desmantelar-se-á noutro dia y, partindo para outra cidade.
Depois de desmantelada, para onde vai essa arquitetura? Fica dentro das gale-
ras dos tratores até voltar a ser solicitada para o ano seguinte? É uma arquitetura que
apenas dura 4 dias de festival? Quando chegamos a este nível de procura do que real-
mente é arquitetura chegamos a uma linha que é muito difícil de traçar: por um lado,
existe arquitetura efémera, que servirá o seu propósito durante alguns anos e depois
será desmantelada para sempre, por outro há arquitetura que poderá durar décadas,
mas que apenas é utilizada 4 dias por ano. Um exemplo concreto ainda mais ambiva-
lente do que os anteriores seria um caso como o Pavilhão de Barcelona de Mies van
der Rohe (1929) que é por todos considerado uma obra de arquitetura moderna, no
entanto o seu carácter de permanência foi colocado em causa durante 56 anos quando
se procedeu ao seu desmantelamento devido às questões sociopolíticas que se viviam
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na época. Não sendo questionada a qualidade arquitetónica presente nesse objeto, faz
todo o sentido que também não se questione a de um complexo de espetáculos des-
montável. Deve-se sim, tentar compreender que tipo de impacto sociocultural é que
qualquer uma destas construções têm na sociedade, assim como a sua capacidade
absoluta de abranger o maior número de cidadãos, que no caso de palcos, é bastante
elevada.
São estruturas que sofrem uma constante mutação, que graças ao rápido de-
senvolvimento da tecnologia cénica, evoluem constantemente a um ritmo cada vez mais
acelerado, não deixando estagnar a experiência do utilizador. É uma construção que
em vez de ser alvo de reabilitações a cada trinta anos, recebe updates regularmente.
Nesse aspeto, importa a experiência que um dado individuo consegue absorver através
uma estrutura que, frequentemente estará a mais de cinquenta metros do mesmo. Este
é um dos aspetos mais importantes deste ensaio, explorar a forma como este tipo de
arquitetura consegue moldar a mente de milhares de pessoas, num espaço de tempo
de duas horas, ao assistirem a um concerto. Para se perceber melhor o que significa
“transformar” neste contexto, pode utilizar-se um exemplo de um espaço público: Um
invólucro pode criar arquitetura, mas, por exemplo, no desenho de uma dada praça pú-
blica, o modo como dispomos certos invólucros (que para o público são apenas volu-
mes) é muitas vezes o suficiente para criar vida e diversos acontecimentos, logo, a ar-
quitetura como vivência é proporcionada a partir desses volumes, no entanto não acon-
tece neles. O mesmo acontece com o palco. Efetivamente é o palco que proporciona a
vivencia do espaço, no entanto os acontecimentos vão acontecer fora do palco, na pla-
teia. Esta energia que desabrocha a partir da cena principal existe, em parte, pela cla-
reza e genuinidade que um palco nos transmite, uma vez que uma estrutura como esta
terá como base do seu desenho um funcionalismo extremo – dada a sua grande com-
plexidade logística de assemblagem – que não pretende esconder nada para além da
sua função essencial, que será reforçada e destacada pela sua performance luminosa
e sonora ao longo do espetáculo. Será legitimo até, colocar esta ideia de genuinidade
técnico-estrutural dos palcos em comparação com o Centre Georges Pompidou (1977)
dos arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers no sentido em que as necessidades téc-
nicas do edifício transformam-se a sua cara, tornando-se parte integral da sua essência
que, se numa primeira observação pode ser ruidoso, mas que um olhar mais atento
revelará uma clareza formal absoluta.
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Figura 8 - Concerto da banda Muse em 2019, estrutura desmontável inserida num pavilhão multiusos
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Referências Bibliográficas
- SIZA, Álvaro, Imaginar a Evidência, Edições 70, Lisboa, 2018
- SIZA, Álvaro, O bonito, o feio, o janota e o efeito Miles Davis na arquitetura, entrevista, Lisboa: Jornal
Público, 25 de fevereiro de 2018, 7:13, consultado a 17 de maio de 2021, 18:23 in https://www.pu-
blico.pt/2018/02/25/culturaipsilon/entrevista/o-bonito-o-feio-o-janota-e-o-efeito-miles-davis-na-arqui-
tectura-1804242
Referências Iconográficas
- Figura 1 – consultado a 17 de maio de 2021, 9:30 in https://bigvis.nl/stage-design-intents-festival-
2018-mainstage
- Figura 2 – Morning at Brown Sugar Beach de Paul Bond, pintura a óleo, consultado a 17 de maio de
2021, 9:43 in https://paulbondart.com/paintings/gallery-1/#&gid=1&pid=-Morning-at-Brown-Sugar-Be-
ach
- Figura 4 – Escultura Switch de Richard Serra, consultado a 17 de maio de 2021, 9:52 in https://ga-
gosian.com/exhibitions/1999/richard-serra-switch/
- Figura 8 – Concerto da banda Muse em 2019, estrutura desmontável inserida num pavilhão mul-
tiusos, consultado a 17 de maio de 2021, 15:30 in https://www.robe.cz/news/robe-adds-to-muse-simu-
lation-theory-tour-lighting
- Figura 10 – Centre Pompidou em Paris do arquiteto Renzo Piano, visto de noite, consultado a 17 de
maio de 2021, 15:30 in https://news.cgtn.com/news/3d3d514f31516a4e33457a6333566d54/in-
dex.html
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