Você está na página 1de 13

ARQUITETURA

DE PALCO

Daniel Baptista | T2 | 2020/2021 | Turma 2 | Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto | Figura 1


#ABSTRACT
Independentemente da sua forma, morfologia, dimensões ou
duração, a arte faz parte do ser humano e desde sempre se
tornou uma peça fundamental à sua sobrevivência como indiví-
duo sociais e intelectual. Sejam pinturas rupestres, soap ope-
ras, esculturas dadaístas, dramas teatrais ou concertos de
rock, o ser humano necessita de interagir com a arte para so-
breviver. Este ensaio pretende abordar o último ponto, que gra-
ças a grandes festivais emergentes, se multiplica exponencial-
mente todos os anos. O palco, como estrutura efémera de um
dado concerto ou festival, coloca ao ramo da arquitetura uma
série de questões relativamente à sua identidade, no entanto,
primeiramente será útil tentar-se perceber o que é a arquitetura.

ARQUITETURA MÚSICA ESPETÁCULO

2
A arquitetura pretende transcender a simples necessidade de abrigo e
segurança, tornando-se uma expressão de arte.

Jay A. Pritzker no seu Discurso na Cerimônia do Pritzker em 1985

Pode-se afirmar que a arquitetura é, de facto, uma expressão de arte, no entanto,


pode também dizer-se que "Arquitetura é geométrica" (Álvaro Siza em Imaginar a Evi-
dência1), ou que “A arquitetura é uma experiência física [e que] ela precisa [de] ser vista
e tocada para ser totalmente compreendida.” (Nicolai Ouroussoff em Los Angeles Ti-
mes) ou até que a "Arquitetura é mais sobre ideias do que sobre materiais." (Qingyun
Ma em Los Angeles Times). Todas estas definições são válidas, para o seu autor, na
forma como descrevem ou tratam o grande tema da arquitetura, no entanto não parecem
delimitar de forma coerente o que efetivamente pode ser visto como arquitetura. Um
dado autor poderá até ter várias definições de arquitetura.2

Dito isto, será importante realizar um exercício mental sobre o que poderá ou
não ser arquitetura, tentando justificar-se a resposta, partindo do mais evidente para o
menos evidente.

O mundo das coisas do quotidiano, casas, roupas, sapatos, etc., não


precisa nada de arquitetura. Este mundo é o resultado de um lento processo de
definição que configura um artesanato. São os ofícios que têm determinado a
boa maneira de fazer as coisas quotidianas que nos rodeiam todos os dias, com
muito mais modestas pretensões do que as de fazer uma obra de arte ou de
aplicar metodologias ou repertórios formais universais. A arquitetura, espalhada
por todo o lado, é um perigo para a civilização, é uma regressão cultural.3

Adolf Loos

1
SIZA, Álvaro, Imaginar a Evidência, Edições 70, Lisboa, 2018
2
A arte é uma conquista. A construção pode não ser arte e pode ser. Nunca discutimos isto tão profundamente, mas há
muita gente que diz — olhe, o Nadir [Afonso] dizia isso — que a arquitectura não é arte porque tem uma função. Ele
deixou a arquitectura porque não gostava. – SIZA, Álvaro, O bonito, o feio, o janota e o efeito Miles Davis na arquitetura,
entrevista, Lisboa: Jornal Público, 25 de fevereiro de 2018, 7:13
3
SOLÀ-MORALES, Ignasi, Introducción a la arquitectura: Conceptos fundamentales, Arquitext, Ediciones UPC, 2001, p.
19

3
Figura 2 - Morning at Brown Sugar Beach de Paul Bond, pintura a óleo

Iniciando com um objeto: uma chávena. Muitos dirão que um involucro é o sufi-
ciente para criar um espaço, algo que consiga albergar vivência. É certo que um recipi-
ente como um copo é um invólucro que poderá conter um certo líquido, no entanto não
tem dimensão suficiente para proporcionar vivências de um ser humano. Poderá trazer
conforto e funcionalidade à vida de uma pessoa, mas por este motivo não pode ser
arquitetura.

4
Um forte de crianças apropria-se da ideia do involucro e escala-a de forma a
que seja possível vivenciar-se experiências dentro dele, no entanto a questão da dura-
bilidade da arquitetura, assim como a sua força (firmitas), coloca-se em causa neste
exemplo, principalmente uma vez que será sempre um exercício trivial que não tem
como objetivo proteger o ser humano dos elementos, mas sim de proporcionar um es-
paço de lazer delimitado por objetos não arquitetónicos. Neste aspeto, ganha-se quali-
dades que perpetuam a ideia arquitetura que o exemplo anterior não apresenta.

Uma escultura poderá ser um tema mais controverso, uma vez que a escultura
poderá aparecer nesta discussão com diversas morfologias. Numa ponta do espectro,
o David de Michelangelo aproximar-se-á do exemplo do copo uma vez que não é pos-
sível habitar dentro o objeto, apenas sendo possível contemplá-lo. Na outra, as escultu-
ras de Richard Serra, tanto pelas suas dimensões como pelas suas características for-
mais, compreenderão uma certa carga arquitetónica na forma como o utilizador pode
percorrer o espaço, sentindo-se mais ou menos claustrofóbico, assim como numa obra
arquitetónica. Com esta ambiguidade, pode aplicar-se outro critério discutível da arqui-
tetura que é a sua habitabilidade, ou seja, a sua capacidade de proteger o ser humano
dos elementos naturais. Neste aspeto, também a segunda opção não se enquadra por-
que só contempla a ideia de percorrer o espaço arquitetónico, sem uma função de sal-
vaguarda exterior, uma vez que sendo uma obra de arte, vale por si só (sem necessi-
dade de ter uma função para além da sua criação).

Figuras 3 e 4 - Esculturas To Lift e Switch de Richard Serra

5
Um desenho pode tornar-se arquitetura, assim como a geometria criada para
um certo projeto, no entanto, pode o projeto não construído considerar-se um objeto
arquitetónico? Pelas razões dadas anteriormente, dir-se-ia que não, uma vez que não é
algo que proteja o ser humano, nem que crie vivências ou que tenha sequer qualquer
utilidade prática. É nada mais que uma ideia transcrita para o papel, no entanto, é uma
ideia que pode ser criada, é o passo mais difícil na criação da arquitetura, e se a arqui-
tetura estiver no pensamento de cada um, nem que seja apenas na mente do arquiteto
é capaz de despertar sensações que podem suscitar novas ideias de projeto. Um projeto
não construído pode considerar-se arquitetura no sentido em que é mais um ensaio
(entre milhões) na complexa tarefa de construir abrigo para o ser humano, permitindo-
nos teorizar e experimentar mais a partir do mesmo.

Conta-se que Kandinsky entrou, um dia, no seu atelier e viu uma pintura
belíssima: ficou surpreendido, depois aproximou-se e verificou que era um qua-
dro pintado por ele, uma paisagem ou uma natureza morta, virada de cabeça
para baixo. Tinha desaparecido tudo aquilo que era fixo na representação do
quadro e ficara o essencial, nas suas formas, nos seus equilíbrios e nas suas
cores.4

Após este pequeno exercício, compreendem-se al-


gumas razões sobre o que pode ou não ser arquitetura, e
mais importante que essas razões são as suas incertezas
e questões ambíguas que elas propõem. Podemos chegar
ao ponto de questionar até se uma obra de arquitetura pode
ser considerada, de facto, arquitetura. O portal da entrada
da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, por
exemplo, aparenta ter uma função (a que o próprio nome
indica) e possui até um portão, no entanto, é possível entrar
no recinto da mesma forma por qualquer outra zona do pe-
rímetro do terreno. A barreira entre escultura (arte que vale
por si só) e a arquitetura torna-se ambígua até numa obra
que é considerada por todos como “arquitetura”.
Figura 5 - Portal de entrada da Faculdade de Arquitetura
da Universidade do Porto de Álvaro Siza Vieira

4
SIZA, Álvaro, Imaginar a Evidência, Edições 70, Lisboa, 2018, p. 145

6
Percebe-se, por conseguinte, que as ideias de um objeto arquitetónico podem
ser bastante turvas conforme o pensamento do seu criador, dos seus observadores ar-
quitetos, dos seus observadores aleatórios, dos seus estados de espírito ou da função
do objeto. Acredita-se, no entanto, que o palco como estrutura efémera consegue inte-
grar-se numa ideia de arquitetura devido ao seu propósito (servir a sociedade com um
espetáculo), assim como à sua função e racionalismo, que se compõe por: uma boca
de cena principal, bastidores, casas das máquinas, backstages, anexos de apoio téc-
nico, reggies, sistemas de trusses que incorporam robots de iluminação e sistemas de
projeção em telas, ancoragens para variados desenhos tridimensionais, assim como
sistemas de aparelhagem e outros tipos de serviços de apoio ao concerto. É uma ver-
dadeira máquina de entreter e a forma como se organiza pode comparar-se a qualquer
outra de um centro cultural. Pode dar-se ao caso de cairmos na tentação de chamar a
tal objeto “arquitetura” apenas pelos seus aspetos complexos organizativos, mesmo
tendo em conta que será assemblado num dia x, servirá a sua função durante um curto
período de tempo, e desmantelar-se-á noutro dia y, partindo para outra cidade.

Figuras 6 e 7 - Assemblagem de palcos principais no Reino Unido

Depois de desmantelada, para onde vai essa arquitetura? Fica dentro das gale-
ras dos tratores até voltar a ser solicitada para o ano seguinte? É uma arquitetura que
apenas dura 4 dias de festival? Quando chegamos a este nível de procura do que real-
mente é arquitetura chegamos a uma linha que é muito difícil de traçar: por um lado,
existe arquitetura efémera, que servirá o seu propósito durante alguns anos e depois
será desmantelada para sempre, por outro há arquitetura que poderá durar décadas,
mas que apenas é utilizada 4 dias por ano. Um exemplo concreto ainda mais ambiva-
lente do que os anteriores seria um caso como o Pavilhão de Barcelona de Mies van
der Rohe (1929) que é por todos considerado uma obra de arquitetura moderna, no
entanto o seu carácter de permanência foi colocado em causa durante 56 anos quando
se procedeu ao seu desmantelamento devido às questões sociopolíticas que se viviam

7
na época. Não sendo questionada a qualidade arquitetónica presente nesse objeto, faz
todo o sentido que também não se questione a de um complexo de espetáculos des-
montável. Deve-se sim, tentar compreender que tipo de impacto sociocultural é que
qualquer uma destas construções têm na sociedade, assim como a sua capacidade
absoluta de abranger o maior número de cidadãos, que no caso de palcos, é bastante
elevada.

São estruturas que sofrem uma constante mutação, que graças ao rápido de-
senvolvimento da tecnologia cénica, evoluem constantemente a um ritmo cada vez mais
acelerado, não deixando estagnar a experiência do utilizador. É uma construção que
em vez de ser alvo de reabilitações a cada trinta anos, recebe updates regularmente.
Nesse aspeto, importa a experiência que um dado individuo consegue absorver através
uma estrutura que, frequentemente estará a mais de cinquenta metros do mesmo. Este
é um dos aspetos mais importantes deste ensaio, explorar a forma como este tipo de
arquitetura consegue moldar a mente de milhares de pessoas, num espaço de tempo
de duas horas, ao assistirem a um concerto. Para se perceber melhor o que significa
“transformar” neste contexto, pode utilizar-se um exemplo de um espaço público: Um
invólucro pode criar arquitetura, mas, por exemplo, no desenho de uma dada praça pú-
blica, o modo como dispomos certos invólucros (que para o público são apenas volu-
mes) é muitas vezes o suficiente para criar vida e diversos acontecimentos, logo, a ar-
quitetura como vivência é proporcionada a partir desses volumes, no entanto não acon-
tece neles. O mesmo acontece com o palco. Efetivamente é o palco que proporciona a
vivencia do espaço, no entanto os acontecimentos vão acontecer fora do palco, na pla-
teia. Esta energia que desabrocha a partir da cena principal existe, em parte, pela cla-
reza e genuinidade que um palco nos transmite, uma vez que uma estrutura como esta
terá como base do seu desenho um funcionalismo extremo – dada a sua grande com-
plexidade logística de assemblagem – que não pretende esconder nada para além da
sua função essencial, que será reforçada e destacada pela sua performance luminosa
e sonora ao longo do espetáculo. Será legitimo até, colocar esta ideia de genuinidade
técnico-estrutural dos palcos em comparação com o Centre Georges Pompidou (1977)
dos arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers no sentido em que as necessidades téc-
nicas do edifício transformam-se a sua cara, tornando-se parte integral da sua essência
que, se numa primeira observação pode ser ruidoso, mas que um olhar mais atento
revelará uma clareza formal absoluta.

8
Figura 8 - Concerto da banda Muse em 2019, estrutura desmontável inserida num pavilhão multiusos

Figura 9 - Concerto da banda Muse em 2019, estrutura desmontável em Algés

Figura 10 - Centre Pompidou em Paris do arquiteto Renzo Piano, visto de noite


Todo este debate tem revolvido, até agora, em torno da estrutura num estado de
“repouso”, que se tem tornado bastante reveladora das capacidades estáticas que esta
pode transmitir, no entanto fica em falta pensar nas potencialidades acrescidas do
mesmo quando um dado concerto começa a decorrer. O palco tem a pujança de con-
seguir projetar todo o acontecimento da boca de cena para milhares de pessoas, quer
seja através do próprio artista que se encontra na passerelle, pelos seus grandes ecrãs
que facilitam a visualização do mesmo, pelo som que invade os ouvidos dos especta-
dores, ou principalmente, quer seja pelo espetáculo de luzes que envolvem os olhos de
quem assiste. Talvez seja forçado fazer tal comparação, mas assim como os edifícios
lanterna de Steven Holl causam uma panóplia de sensações por parte de quem os con-
templa, a iluminação artística, movimentada, sincronizada e porventura até rebelde ou
psicadélica das centenas de robots presentes nesta verdadeira caixa de música ambu-
lante, certamente terá um efeito profundo, mesmo que momentâneo, por parte de quem
o observa. Trata-se de uma exaltação das emoções que se partilham em torno de uma
obra, cantada pelo artista, vivida pela multidão e executada pelas centenas de aparelhos
que não podem falhar, assim como as pessoas que os operam… A potencialidade de
abranger milhares de pessoas é ditada pelo seu desenvolvimento técnico, pela sua di-
mensão, pelos seus artistas, mas fundamentalmente, pela qualidade da sua arquitetura.

Falta colocar a questão se, na realidade, o palco como entidade arquitetónica,


consegue sobreviver sozinho sem necessidade que nada nele aconteça, ou se a junção
de todos os elementos e ações que nele se passam é que o definem. Talvez consigamos
pensar no palco como um elemento versátil, em que no grande espetáculo a música é
o artista, mas a arquitetura é o produtor.

10
11
Referências Bibliográficas
- SIZA, Álvaro, Imaginar a Evidência, Edições 70, Lisboa, 2018

- SIZA, Álvaro, O bonito, o feio, o janota e o efeito Miles Davis na arquitetura, entrevista, Lisboa: Jornal
Público, 25 de fevereiro de 2018, 7:13, consultado a 17 de maio de 2021, 18:23 in https://www.pu-
blico.pt/2018/02/25/culturaipsilon/entrevista/o-bonito-o-feio-o-janota-e-o-efeito-miles-davis-na-arqui-
tectura-1804242

- SOLÀ-MORALES, Ignasi, Introducción a la arquitectura: Conceptos fundamentales, Arquitext, Edici-


ones UPC, 2001

- BARATTO, Romullo, 121 Definições de Arquitetura, 5 de dezembro de 2016, consultado a 5 de maio


de 2021, 15:30 in https://www.archdaily.com.br/br/800699/121-definicoes-de-arquitetura

Referências Iconográficas
- Figura 1 – consultado a 17 de maio de 2021, 9:30 in https://bigvis.nl/stage-design-intents-festival-
2018-mainstage

- Figura 2 – Morning at Brown Sugar Beach de Paul Bond, pintura a óleo, consultado a 17 de maio de
2021, 9:43 in https://paulbondart.com/paintings/gallery-1/#&gid=1&pid=-Morning-at-Brown-Sugar-Be-
ach

- Figura 3 – Escultura To Lift de Richard Serra, consultado a 17 de maio de 2021, 9:52 in


https://www.moma.org/collection/works/101902

- Figura 4 – Escultura Switch de Richard Serra, consultado a 17 de maio de 2021, 9:52 in https://ga-
gosian.com/exhibitions/1999/richard-serra-switch/

- Figura 5 – Portal de entrada da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto de Álvaro Siza


Vieira, consultado a 16 de maio de 2021, 15:22 in http://cargocollective.com/dedalo/DEDALO-7-re-
Place-1

- Figuras 6 – Assemblagem de palcos principais no Reino Unido, consultado a 13 de maio de 2021,


18:24 in http://www.festivalinsights.com/2016/08/enteetainment-handles-edc-uks-production-mana-
gement/

- Figuras 7 – Assemblagem de palcos principais no Reino Unido, consultado a 15 de maio de 2021,


10:35 in https://www.mountainproductions.com/blog/wp-content/uploads/2013/05/P10305001-1.jpg

- Figura 8 – Concerto da banda Muse em 2019, estrutura desmontável inserida num pavilhão mul-
tiusos, consultado a 17 de maio de 2021, 15:30 in https://www.robe.cz/news/robe-adds-to-muse-simu-
lation-theory-tour-lighting

- Figura 9 – Concerto da banda Muse em 2019, estrutura desmontável em Algés, consultado a 17 de


maio de 2021, 15:30 in https://www.musicaemdx.pt/2019/07/27/o-uni-verso-sci-fi-dos-muse/

- Figura 10 – Centre Pompidou em Paris do arquiteto Renzo Piano, visto de noite, consultado a 17 de
maio de 2021, 15:30 in https://news.cgtn.com/news/3d3d514f31516a4e33457a6333566d54/in-
dex.html

12
#essayTI_T2_turma2_arquiteturadepalco_danielbaptista

13

Você também pode gostar