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2018-2019

3º Ano

Teoria 2

Texto 03

A truta e a Corrente
(Arquitectura e Arte Concreta)

Alvar Aalto
1947

Publicado em:
Domus nº 225, Milão, 1947.
Arquitectura nº 46, ano XXIV, 2ª série, Lisboa, 1953, [com o título “O Ovo de Peixe e o
Salmão”].
La humanización de la Arquitectura (ed.: Xavier Sust). Barcelona:Tusquets Editores, 1982, p. 37-
45
Skethes . Aalvar Aalto (ed.: G. Schildt). Massachusetts: MIT, 1976, p. 96-98.
Arquitectura nº 291, revista do COAM, Madrid, 1992, p. 23-25.
En Contacto com Alvar Aalto, catálogo de exposição. Sevilla, Valencia, Barcelona, 1993, p. 14-
16.
SCHILDT, Göran, Alvar Aalto in his own words. New York: Rizzoli, 1998. p. 107-109.
Alvar Aalto. De palabra y por escrito. Madrid: El Croquis Editorial, 2000.

Este artigo, muito citado, originalmente publicado sob o título “Architettura e


arte concreta” na revista italiana Domus, em 1947, foi a última declaração de
Aalto no debate teórico sobre os problemas do racionanalismo na arquitectura.
Entre os factores determinantes do desenho de arquitectura, ele incluía a
herança cultural, profundamente ancorada na psique humana, e a assimilação
da experiência pessoal. Isto não significou capitulação a fantasias românticas
ou irracionais, mas um verdadeiro reconhecimento da complexidade profunda
e muito ramificada, embora racional, que comanda a vida. Ao mesmo tempo,
abandonou todas as ilusões que alguma vez tivera quanto a descobrir verdades
últimas ou a atingir a eternidade no seu trabalho. As suas ideias e trabalhos têm
uma qualidade provisória, mas esta é precisamente a razão para a sua
vitalidade e impacto continuado.

Göran Schildt, 1998

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Como praticante das artes, é, para mim, difícil escrever sobre problemas da
arte sob o ponto de vista com que o faria um crítico ou um teórico situado à
margem da profissão. Em presença do trabalho criativo actual ou dos seus
colegas, o profissional tão pouco tem a imparcialidade que se entende como
própria de um historiador de arte. Nessa medida, o que faço evoluir de seguida
não passa de um modesto conjunto de reflexões, sobretudo sobre o meu
próprio trabalho.

O problema das relações entre a arquitectura e as artes liberais nunca deixou


de estar na ordem do dia. Normalmente exprime-se num desejo: o de
acrescentar mais esculturas e pinturas nas obras de arquitectura. Várias
sugestões têm surgido sobre a cooperação activa entre essas “três artes” – por
vezes, quase ao estilo de um congresso de padres e de médicos.

Esta exigência manifestou-se, frequentemente, como “mais pinturas


monumentais para os edifícios públicos!”. O curioso, sem dúvida, é que
pedidos desta natureza raramente procedem dos artistas mais eminentes; na
maioria das vezes são voz do público comum ou, no melhor dos casos, a de
associações de artistas ou organizações similares, com propostas de política
artística. Eu não me oponho a estas aspirações, longe disso. O país que me
atrai mais do que qualquer outro é a Itália, por excelência, pátria clássica da
união das três artes. A notícia da destruição da pequena capela de Mantegna
na Chiesa degli Eremitani atingiu-me particularmente. Em todo o caso, penso
que o problema no seu todo e a sua resolução estão em algo mais profundo.
Em nenhuma circunstância, um incremento “quantitativo” da colaboração das
três artes atinge a essência da questão.

Quando o Dr. Rogers me questiona sobre “a relação entre arquitectura e a arte


abstracta (art concret)”, penso que, talvez, aí possa existir um caminho que
aprofunde e se aproxime mais da essência dessa relação.

Por um lado, as formas da arte abstracta proporcionaram estímulos para a


arquitectura do nosso tempo, mesmo que indirectamente, mas, para ser
correcto, de forma inegável. Por outro lado, a arquitectura proporcionou,
também, material para a arte abstracta. Estes dois campos da arte
influenciaram-se mútua e alternadamente. Então, também na nossa época, as
artes têm uma raiz comum, e isso é já dizer muito.

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Quando pessoalmente tenho que resolver algum problema de arquitectura,
defronto-me, constantemente – na verdade, quase sem excepção – com um
obstáculo difícil de transpor, uma espécie de “valor das três da madrugada”. A
causa parece radicar na complicada e pesada tarefa decorrente do facto do
desenho arquitectural envolver infinitos elementos, muitas vezes
contraditórios. Exigências sociais, humanas, económicas e técnicas, a par dos
problemas psicológicos que afectam o individual e o grupo, os movimentos e
as fricções internas de massas e indivíduos, tudo isto combinado forma uma
teia emaranhada impossível de desenredar de modo racional ou mecânico. O
elevado número de requisitos e problemas parciais formam um labirinto tal
que a ideia arquitectónica base tem dificuldade em aparecer. Nessas
circunstâncias, por vezes de forma totalmente instintiva, eis o que faço: depois
de ter gravada no subconsciente a atmosfera própria do trabalho e a
diversidade das exigências a este ligadas, esqueço, por um momento, a
imensidão de problemas. Então, passo por um método de trabalho muito
semelhante ao da arte abstracta. Desenho guiado inteiramente pelo instinto;
não sínteses arquitectónicas, mas antes o que, muitas vezes, se assemelha a
composições de criança. A partir dessa base abstracta, a ideia mestra toma
forma gradualmente. Algo como uma substância universal que me ajuda a
harmonizar as múltiplas variáveis em conflito.

Quando projectei a Biblioteca de Vipuri (tinha muito tempo, uns cinco anos),
passava longos períodos exercitando assim a mão, fazendo desenhos naïve.
Desenhei todo o tipo de paisagens fantasiosas de montanhas, de ladeiras
iluminadas por muitos sóis em diversas posições, e daí, gradualmente, a ideia
principal do edifício foi-se libertando. A ordenação arquitectónica da
biblioteca compreende diversas áreas de leitura e de empréstimo, em
diferentes níveis e ligadas por escadas, e, no topo, o centro administrativo e de
supervisão. Os meus desenhos infantis estavam ligados, apenas indirectamente,
ao pensamento arquitectónico, mas, eventualmente, conduziram a um
entrelaçamento do corte e da planta, e a uma espécie de unidade construtiva
entre horizontal e vertical.

Menciono estas experiências pessoais sem pretender que se convertam num


método. Em todo o caso, creio que a maioria dos meus colegas passaram por
experiências semelhantes durante as suas próprias lutas para ultrapassar os
problemas. Os exemplos que mencionei tão pouco têm a ver com as boas ou
más qualidades do resultado. Apenas os referi para demonstrar a minha própria
crença instintiva em que a arquitectura e as artes livres têm uma raiz comum,

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uma raiz que de algum modo é abstracta mas baseada, não obstante, no
conhecimento e nas análises armazenadas no nosso subconsciente.

Na nossa exposição em Londres em 1933 (sobre o trabalho da arquitecta Aino


Aalto e o meu, organizada por The Architectural Review), apresentámos
algumas construções de madeira. Algumas destas representavam,
concretamente, as estruturas que usáramos no nosso mobiliário; outras eram
experimentos sobre a forma e o manuseamento da madeira sem qualquer
utilidade prática, ou sequer qualquer relação racional com a prática. Um
crítico de arte no The Times escreveu sobre estas experiências qualificando-as
como expressões de arte abstracta. Disse que eram non-objective art, mas
produto de um processo de concepção diametralmente oposto. Deste modo,
queria dizer que o processo que lhes deu origem era essencialmente prático,
mas o resultado era arte não-objectiva. Por outro lado, classificava alguns
trabalhos como casos puros de arte abstracta, os quais, ao contrário da arte
não-objectiva em geral, poderiam assumir alguma finalidade prática no futuro.
Talvez tivesse razão; não quis contestar naquela altura, nem agora. Mas
gostaria de acrescentar, de um ponto de vista pessoal, emocional, que a
arquitectura e os seus pormenores são, de certo modo, biologia. Talvez se
assemelhem a um salmão grande ou uma truta. Não nascem adultos, nem
sequer nascem no mar ou na água onde normalmente vivem. Nascem a
centenas de milhas do seu habitat, onde os rios se reduzem a pequenas
correntes, límpidos riachos entre as quedas, sob as primeiras gotas de água dos
degelos, tão remotas da sua vida habitual como a emoção e o instinto
humanos estão do trabalho de todos os dias.

Tal como uma ova de peixe necessita de tempo para converter-se em peixes
adultos, também nós necessitamos de tempo para tudo o que se desenvolve e
cristaliza no nosso mundo de ideias. A arquitectura necessita ainda mais de
tempo do que outros trabalhos criativos. Como um exemplo pequeno da
experiência própria, posso dizer que daquilo que parece ser não mais do que
brincar com as formas, pode, inesperadamente, muito mais tarde, surgir uma
forma arquitectónica.

Como se gerou o capitel da coluna jónica? A sua origem está nas formas
maleáveis da madeira e no modo como as suas fibras torcem e curvam sob
pressão. Mas o produzido em mármore não é uma cópia naturalista do
processo inicial. As suas formas polidas e estáveis encarnam qualidades
humanas inexistentes na forma construtiva original.

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“A propriedade principal da arte abstracta é, em minha opinião, a sua natureza
puramente humana”, disse-me um pintor checo que esteve a falar comigo no
meu escritório durante uma visita. “Posso não poder explicá-lo, mas o meu
instinto e experiência dizem-me que assim é”, continuou ele.

“Entweder fühle ich oder fühle ich nicht” (Ou o sinto, ou não o sinto), disse-me
um médico suíço, um homem que tinha experimentado a severa escola da
tragédia humana, tentando expressar a sua própria relação com a arte.

A arte abstracta, no que tem de mais próprio, é o resultado de um processo de


cristalização. Talvez se deva a isso o facto de que a possamos compreender
pura e unicamente através do sentimento, ainda que, muitas vezes, as ideias
construtoras e a teia da tragédia humana, venham até ela e se elevem atrás
dela. É, a seu modo, uma arma que pode criar em nós uma corrente do
sentimento essencialmente humano, o qual, de algum modo, a palavra escrita
já perdeu.

Claro que nada disto se aplica às formas vulgares e comercializadas de arte


livre que hoje, como sempre, florescem como ervas daninhas.

Parece-me que já progredimos muito no caminho para a unificação das artes, e


que esta união pode ser vista como uma rede que reúne as “três artes” na sua
raiz in statu nascendi e não superficialmente. Naturalmente, estamos numa fase
inicial deste processo de unificação; mas isso não diminui o seu valor. Do
mesmo modo que uma cultura evolui, cada período tem igual valor artístico.
Em termos humanos não podemos classificar a arte arcaica como inferior à
Acrópole. E Giotto não era um mestre menor que os arquitectos e pintores
posteriores.

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