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Andre Bazin (1918-1958) e Siegfried Kracauer (1889-1966) Se as artes plásticas fossem analisadas pela psicanálise, a prática de

embalsamar os mortos poderia vir a ser um fator fundamental na sua


Muitos críticos de cinema descobriram que para desenvolver métodos criação. O processo poderia revelar que na origem da pintura e da
críticos para a análise de filmes devem primeiro definir a natureza da escultura reside um complexo de mumificação. A religião do antigo Egito,
imagem fotográfica. Ambos André Bazin, o renomado crítico de cinema dirigida contra a morte, percebia a sobrevivência como dependente da
francês, e o alemão naturalizado americano Siegfried Kracauer, existência contínua do corpo material. Dessa forma, ao fornecer uma
escreveram sobre a fotografia no transcorrer de suas carreiras. defesa contra a passagem do tempo, ela satisfazia uma necessidade
Enquanto servia no exército francês, durante a segunda guerra mundial, psicológica básica do homem, já que a morte nada mais é que a vitória do
Bazin começou a expressar seu interesse em analisar filmes devido à sua tempo. Preservar, artificialmente, sua aparência corpórea é resgatá-la do
significância cultural, sociológica e histórica e, quando a guerra acabou, fluxo do tempo, escondê-la elegantemente, digamos, no refúgio da vida.
iniciou formalmente sua carreira como o crítico de cinema do Le Parisien Era natural, portanto, manter as aparências face à realidade da morte
Libère. Como um dos primeiros críticos de cinema publicados, Bazin preservando carne e ossos. A primeira estátua egípcia, então, era uma
procurou alcançar uma audiência de massa através de suas críticas múmia, curtida e petrificada no sódio. Mas as pirâmides e os corredores
jornalísticas e, ao mesmo tempo, criar um campo acadêmico de análise do labirínticos não ofereciam certas garantias contra a pilhagem final.
cinema através de seus escritos mais especializados. A "A Ontologia da Outras formas de segurança foram portanto imaginadas. Assim, próximo
Imagem Fotográfica", que é aqui reimpressa, é uma de suas peças mais ao sarcófago, ao lado do canto destinado a alimentar o morto, os egípcios
primitivas. colocaram estátuas de terracota, como múmias substitutas que poderiam
Os interesses primitivos de Siegfried Kracauer estavam na arquitetura e substituir os corpos caso fossem destruídos. É esse uso religioso, portanto,
no espaço urbano. Mas depois de completar um doutoramento em que revela a função primordial da estatuária, a saber, a preservação da
engenharia em Berlim, em 1915, ele se voltou, na época de Weimar, vida pela representação da vida. Outra manifestação da mesma natureza é
durante os anos 1920, para a filosofia, sociologia e, eventualmente, o o urso de argila perfurado por lança encontrável em cavernas pré -
cinema. Foi membro do quadro editorial do prestigiado Frankfurter históricas, um substituto-de-identidade mágico do animal vivo que irá
Zeitung, de 1920 até 1933, quando a ascensão do Nazismo forçou sua assegurar uma caçada bem-sucedida. A evolução conjunta da arte e da
súbita partida da Alemanha. Chegou aos Estados Unidos em 1941, civilização libertou as artes plásticas de seu papel mágico. Luiz XIV não
recebeu uma bolsa da Guggenheim Foundation, e produziu seu principal ordenou seu embalsamamento. Ele estava satisfeito de sobreviver em seu
estudo do cinema alemão, From Caligari to Hitler (1947). Seus demais retrato por Le Brun. A civilização não pode, entretanto, banir totalmente o
livros incluem estudos dos filmes de propaganda nazistas, Offenbach, e pântano do tempo. Ela pode apenas sublimar nossa preocupação com ele
History: The Last Thing before the Last (1969). no nível do pensamento racional. Ninguém acredita mais na identidade
ontológica entre modelo e imagem, mas todos concordam que a imagem
nos auxilia a relembrar o sujeito e a preservá-lo de uma segunda morte
espiritual. Hoje a produção de imagens não mais compartilha um propósito
antropocêntrico, utilitário. Não é mais uma questão de sobrevivência à
morte, mas de um conceito mais amplo, a criação de um mundo ideal, à
A Ontologia da Imagem Fotográfica semelhança do real, com seu próprio destino temporal. "Quão vão é uma
coisa como a pintura" se detrás de nossa afeiçoada admiração por seus
André Bazin trabalhos não discernimos a necessidade primitiva do homem de ter a
última palavra na argumentação com a morte através da forma que
perdura. Se a história das artes plásticas é menos uma questão de sua Os grandes artistas, é claro, têm sido sempre capazes de combinar as
estética que de sua psicologia então ela será percebida como sendo duas tendências. Eles destinaram a cada uma seu lugar próprio na
essencialmente a estória da semelhança ou, se assim preferir, do realismo. hierarquia das coisas, mantendo a realidade sob seu comando e moldando-
Visto por essa perspectiva sociológica a fotografia e o cinema poderiam a à vontade na trama de sua arte. Não obstante, permanece o fato de que
fornecer uma explicação natural para a grande crise espiritual e técnica somos desafiados por dois fenômenos essencialmente distintos e esses
que alcançou a pintura moderna por volta da metade do século passado. qualquer crítico objetivo deve ver separadamente se se deseja
André Malraux descreveu o cinema como a última evolução, até hoje, do compreender a evolução do pictórico. A necessidade de ilusão não cessou
realismo plástico cujo princípio foi inicialmente manifestado no de perturbar o cerne da pintura desde o século XVI. É uma necessidade
Renascimento e que encontrou uma expressão limitada na pintura barroca. puramente mental, por si própria não-estética, cujas origens devem ser
É verdade que a pintura, em todo o mundo, atingiu um equilíbrio procuradas na inclinação da mente pelo mágico. Entretanto, é uma
diversificado entre o simbólico e o realismo. Entretanto, no século XV a necessidade cujo ímpeto tem sido bastante forte a ponto de ter perturbado
pintura ocidental começou a abandonar sua preocupação da era de ouro, seriamente o equilíbrio das artes plásticas.
com as realidades espirituais expressas na forma adequada à ela, em A polêmica sobre o realismo na arte deriva de uma incompreensão, de
direção a um esforço para combinar essa expressão espiritual com uma uma confusão entre o estético e o psicológico; entre o verdadeiro realismo,
imitação tão perfeita quanto possível do mundo externo. a necessidade de dar expressão significante ao mundo, ao mesmo tempo
O momento decisivo indubitavelmente chegou com a descoberta do concretamente e sua essência, e o pseudo-realismo de um engano
primeiro sistema científico e já mesmo, em um certo sentido, mecânico de destinado a iludir o olho (ou para tal a mente); em outras palavras, um
reprodução, a saber, a perspectiva: a câmara obscura de Da Vinci pseudo-realismo satisfeito com aparências ilusórias 2. É por isso que a arte
prenunciou a câmera de Niepce. O artista estava agora apto a criar a ilusão medieval nunca enfrentou essa crise; ao mesmo tempo vividamente
do espaço tridimensional dentro do qual as coisas pareciam existir como realista e altamente espiritual, nada sabia do drama que veio à luz como
os nossos olhos as vêm na realidade. uma conseqüência de desenvolvimentos técnicos. A perspectiva foi o
Desde então a pintura ficou dividida entre duas ambições: uma, pecado original da pintura ocidental.
basicamente estética, isso é a expressão da realidade espiritual na qual o Ela foi redimida do pecado por Niepce e Lumiére. Ao atingir os
simbólico transcende seu modelo; a outra, puramente psicológica, isso é a objetivos da arte barroca, a fotografia liberou as artes plásticas de sua
duplicação do mundo externo. A satisfação desse apetite pela ilusão serviu obsessão com a semelhança. A pintura foi forçada, como se deu, a nos
meramente para aumentá-lo até que, de pedaço em pedaço, ele consumiu oferecer ilusão e essa ilusão foi tida como suficiente à arte. Por outro lado
as artes plásticas. Entretanto, uma vez que a perspectiva havia resolvido a fotografia e o cinema são descobertas que satisfazem, de uma vez por
apenas o problema da forma e não o do movimento, o realismo foi forçado todas e em sua própria essência, nossa obsessão com o realismo.
a continuar a busca por algum modo de emprestar expressão dramática ao Não importa quão hábil o pintor, seu trabalho era sempre uma
momento, um tipo de quarta dimensão psíquica que podia sugerir vida na bonificação à uma inescapável subjetividade. O fato de que uma mão
imobilidade atormentada da arte barroca 1. humana interveio lança uma sombra de dúvida sobre a imagem.
Novamente, o fator essencial na transição do barroco para a fotografia não
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Desse ponto-de-vista seria interessante estudar, nas revistas ilustradas do Talvez os comunistas, antes que emprestem demasiada importância ao
período 1890-1910, a rivalidade entre o relato fotográfico e o emprego de expressionismo realista, devam parar de comentá-lo de uma forma mais própria ao
desenhos. O último, em particular, satisfazia a necessidade barroca pelo século XVIII, antes de haver coisas tais como a fotografia e o cinema. Talvez não
dramático. Um sentimento pelo documento fotográfico desenvolveu apenas seja realmente importante se a pintura russa é de segunda classe desde que a
gradualmente. Rússia nos dê um cinema de primeira classe. Eisenstein é o seu Tintoretto.
é o aperfeiçoamento de um processo físico (a fotografia permanecerá por Essa produção por meios automáticos afetou radicalmente nossa
muito tempo inferior à pintura na reprodução da cor); ao contrário ele psicologia da imagem. A natureza objetiva da fotografia dá-lhe uma
reside em um fato psicológico, para a razão, em satisfazer completamente qualidade de confiabilidade ausente em todas as outras produções de
nosso apetite por ilusão, por uma reprodução mecânica na confecção da imagem. Apesar de quaisquer objeções que nosso espírito crítico possa
qual o homem não desempenha nenhuma parte. A solução não deve ser levantar, somos forçados a aceitar como real a existência do objeto
descoberta no resultado alcançado mas na forma de alcançá-lo 3. reproduzido, realmente, re-presentado, colocado à nossa frente, isso é, no
É por isso que o conflito entre estilo e semelhança é um fenômeno tempo e no espaço. A fotografia goza de uma certa vantagem em virtude
relativamente moderno do qual não existe nenhum traço antes da invenção dessa transferência da realidade da coisa para a sua reprodução 4.
da placa sensibilizada. Claramente a objetividade fascinante de Chardin Um desenho muito belo pode em verdade dizer-nos mais sobre o modelo
não é de forma alguma a do fotógrafo. O século XIX viu os inícios reais mas, apesar das incitações de nossa inteligência crítica, ele nunca terá o
da crise do realismo da qual Picasso é hoje a mítica figura central e que poder irracional da fotografia de confirmar a nossa fé .
colocou em teste, de uma só vez, as condições determinantes da existência Além disso, a pintura é, afinal, um modo inferior de produzir
formal das artes plásticas e suas raízes sociológicas. Liberado do semelhança, um ersatz do processo de reprodução. Apenas uma objetiva
"complexo de semelhança", o pintor moderno abandona-o às massas que, fotográfica pode dar-nos o tipo de imagem do objeto que é capaz de
doravante, identifica a semelhança, por um lado, com a fotografia e, por satisfazer a profunda necessidade que o homem tem de substituí-lo para
outro lado, com o tipo de pintura que está relacionada com a fotografia. algo mais que uma simples aproximação, um tipo de decalque ou de
A originalidade na fotografia, diferentemente da originalidade na transferência. A imagem fotográfica é o próprio objeto, o objeto liberado
pintura, reside no caráter essencialmente objetivo da fotografia. (Nesse das condições de tempo e espaço que o governa. Não importa quão
ponto Bazin acentua o fato de que a lente, a base da fotografia, é chamada indistinto, distorcido ou descolorido, não importa quão desprovido de
de “objetiva” na língua francesa). Pela primeira vez, entre o original e sua valor documental a imagem possa ser, ela compartilha, em virtude do
reprodução intervém apenas a instrumentalidade de um agente inanimado. próprio processo de sua geração, o ser do modelo do qual ela é a
Pela primeira vez uma imagem do mundo é automaticamente formada, reprodução; ela é o modelo.
sem a intervenção criativa do homem. A personalidade do fotógrafo entra
nos procedimentos apenas em sua seleção do objeto a ser fotografado e Daí o charme dos álbuns de família. Aquelas sombras cinza ou sépia,
através do propósito que tem em mente. Embora o resultado final possa parecidas com fantasmas e quase indecifráveis, não são mais retratos de
refletir algo de sua personalidade, isso não desempenha o mesmo papel familiares tradicionais mas, ao contrário, a presença perturbadora de vidas
como a personalidade do pintor. Todas as artes são baseadas na presença paralisadas em um momento intencionado em suas existências, liberadas
do homem, apenas a fotografia obtém uma vantagem com sua ausência. A de seus destinos; entretanto, não pelo prestígio da arte mas pelo poder de
fotografia nos afeta como um fenômeno natural, como uma flor ou um um processo mecânico impassível: porque a fotografia não cria a
floco de neve cuja origem vegetal ou mundana é parte inseparável de sua eternidade, como o faz a arte, ela embalsama o tempo, salvando-o
beleza. simplesmente de sua própria degradação.

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Há espaço, não obstante, para um estudo da psicologia das artes plásticas Aqui deve-se realmente examinar a psicologia das relíquias e dos "souvenirs"
menores, a moldagem de máscaras mortuárias, por exemplo, que da mesma forma que da mesma forma gozam das vantagens de uma transferência da realidade
envolve um certo processo automático. Pode-se, nesse sentido, considerar a derivada do "complexo de mumificação". Permita-nos meramente observar de
fotografia como uma moldagem, a tomada de uma impressão, pela manipulação passagem que a mortalha sagrada de Turin combina, ao mesmo tempo, as
da luz. características da relíquia e da fotografia.
Visto sob essa perspectiva, o cinema é objetividade no tempo. O filme objeto e cada objeto como uma imagem. Conseqüentemente a fotografia é
não está mais satisfeito em apenas preservar o objeto envelopado, levada em grande consideração na hierarquia da criatividade surrealista
digamos, em um instante, como os corpos de insetos do passado distante porque produz uma imagem que é uma realidade da natureza, a saber, uma
são preservados intatos em âmbar. O filme liberta a arte barroca de sua alucinação que é também um fato. O fato de que a pintura surrealista
catalepsia convulsiva. Hoje, pela primeira vez, a imagem das coisas é combina truques de ilusão visual com meticulosa atenção a detalhe
semelhante à imagem de suas durações, à mudança mumificada, digamos. evidencia isso.
Da mesma forma, aquelas categorias de semelhança que determinam a Dessa forma, a fotografia é claramente o mais importante evento na
espécie imagem fotográfica, então, determina o caráter de sua estética história das artes plásticas. Simultaneamente uma liberação e uma
diferentemente daquele da pintura 5. realização, ela libertou a pintura ocidental, de uma vez por todas, de sua
As qualidades estéticas da fotografia devem ser procuradas em seu poder obsessão com o realismo e permitiu-a recuperar sua autonomia estética. O
de expor desnudadas as realidades. Não me cabe separar da trama realismo impressionista, oferecendo-nos a ciência com álibi, está no
complexa do mundo objetivo aqui um reflexo em um passeio molhado, ali extremo oposto dos truques para iludir os olhos. Apenas quando a forma
o gesto de uma criança. Apenas a objetiva impassível, separando seu deixa de possuir qualquer valor imitativo é que pode ser absorvida pela
objeto de todas as formas de vê-lo, aquelas pré-concepções acumuladas, cor. Assim, quando a forma, na pessoa de Cézanne, readquire novamente a
aquela poeira e fuligem espiritual com as quais meus olhos as recobriu, é posse da tela não há mais qualquer questão das ilusões da geometria da
capaz de apresentá-lo, em toda a sua pureza virginal, à minha atenção e, perspectiva. A pintura, sendo confrontada na imagem mecanicamente
conseqüentemente, ao meu amor. Pelo poder da fotografia, a imagem produzida com um concorrente capaz de ir além da semelhança barroca
natural de um mundo que nós nem conhecemos nem podemos conhecer, a até a própria identidade do modelo, foi compelida para a categoria do
natureza afinal faz mais que imitar a arte: ela imita o artista. objeto. Doravante a própria condenação da pintura, feita por Pascal, é
A fotografia pode até mesmo superar a arte em poder criativo. O mundo tornada ociosa uma vez que a fotografia nos permite, por um lado, admirar
estético do pintor é de um tipo diferente do seu mundo. Suas fronteiras na reprodução alguma coisa que nossos olhos sozinhos não poderiam ter-
encampam um microcosmo substancial e essencialmente diferente. A nos ensinado a amar e, por outro lado, admirar a pintura como uma coisa
fotografia, enquanto tal, e o objeto em si mesmo, compartilham uma em si cuja relação com algo na natureza cessou de ser uma justificativa
existência comum depois de moldada por uma mão. Por conseguinte, a para sua existência.
fotografia realmente contribui com algo para a ordem da criação natural Por outro lado, é claro, o cinema é também uma linguagem.
ao invés de fornecer um substituto seu. Os surrealistas tiveram uma noção
disso quando usavam a placa fotográfica para provê-los com suas Extraído de TRACHTENBERG, Alan; CLASSICA ESSAYS ON
monstruosidades e por essa razão: o surrealista não considera o propósito PHOTOGRAPHY, Leete’s Island Book, New Haven, Conn, 1980.
estético e o efeito mecânico da imagem em nossas imaginações como
coisas separadas. Para eles a distinção lógica entre o que é imaginário e o Traduzido por RUI CEZAR DOS SANTOS
que é real tende a desaparecer. Cada imagem deve ser vista como um
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Eu emprego aqui o termo categoria no sentido a ele dado pelo Sr. Gouthier em
seu livro sobre o teatro no qual distingue entre as categorias do dramático e do
estético. Da mesma forma que a tensão dramática não tem nenhum valor artístico,
o aperfeiçoamento de uma reprodução não deve ser identificado com beleza. Ao
contrário ele constitui a matéria principal, digamos, na qual o fato artístico é
registrado.

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