Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
3 4
Há espaço, não obstante, para um estudo da psicologia das artes plásticas Aqui deve-se realmente examinar a psicologia das relíquias e dos "souvenirs"
menores, a moldagem de máscaras mortuárias, por exemplo, que da mesma forma que da mesma forma gozam das vantagens de uma transferência da realidade
envolve um certo processo automático. Pode-se, nesse sentido, considerar a derivada do "complexo de mumificação". Permita-nos meramente observar de
fotografia como uma moldagem, a tomada de uma impressão, pela manipulação passagem que a mortalha sagrada de Turin combina, ao mesmo tempo, as
da luz. características da relíquia e da fotografia.
Visto sob essa perspectiva, o cinema é objetividade no tempo. O filme objeto e cada objeto como uma imagem. Conseqüentemente a fotografia é
não está mais satisfeito em apenas preservar o objeto envelopado, levada em grande consideração na hierarquia da criatividade surrealista
digamos, em um instante, como os corpos de insetos do passado distante porque produz uma imagem que é uma realidade da natureza, a saber, uma
são preservados intatos em âmbar. O filme liberta a arte barroca de sua alucinação que é também um fato. O fato de que a pintura surrealista
catalepsia convulsiva. Hoje, pela primeira vez, a imagem das coisas é combina truques de ilusão visual com meticulosa atenção a detalhe
semelhante à imagem de suas durações, à mudança mumificada, digamos. evidencia isso.
Da mesma forma, aquelas categorias de semelhança que determinam a Dessa forma, a fotografia é claramente o mais importante evento na
espécie imagem fotográfica, então, determina o caráter de sua estética história das artes plásticas. Simultaneamente uma liberação e uma
diferentemente daquele da pintura 5. realização, ela libertou a pintura ocidental, de uma vez por todas, de sua
As qualidades estéticas da fotografia devem ser procuradas em seu poder obsessão com o realismo e permitiu-a recuperar sua autonomia estética. O
de expor desnudadas as realidades. Não me cabe separar da trama realismo impressionista, oferecendo-nos a ciência com álibi, está no
complexa do mundo objetivo aqui um reflexo em um passeio molhado, ali extremo oposto dos truques para iludir os olhos. Apenas quando a forma
o gesto de uma criança. Apenas a objetiva impassível, separando seu deixa de possuir qualquer valor imitativo é que pode ser absorvida pela
objeto de todas as formas de vê-lo, aquelas pré-concepções acumuladas, cor. Assim, quando a forma, na pessoa de Cézanne, readquire novamente a
aquela poeira e fuligem espiritual com as quais meus olhos as recobriu, é posse da tela não há mais qualquer questão das ilusões da geometria da
capaz de apresentá-lo, em toda a sua pureza virginal, à minha atenção e, perspectiva. A pintura, sendo confrontada na imagem mecanicamente
conseqüentemente, ao meu amor. Pelo poder da fotografia, a imagem produzida com um concorrente capaz de ir além da semelhança barroca
natural de um mundo que nós nem conhecemos nem podemos conhecer, a até a própria identidade do modelo, foi compelida para a categoria do
natureza afinal faz mais que imitar a arte: ela imita o artista. objeto. Doravante a própria condenação da pintura, feita por Pascal, é
A fotografia pode até mesmo superar a arte em poder criativo. O mundo tornada ociosa uma vez que a fotografia nos permite, por um lado, admirar
estético do pintor é de um tipo diferente do seu mundo. Suas fronteiras na reprodução alguma coisa que nossos olhos sozinhos não poderiam ter-
encampam um microcosmo substancial e essencialmente diferente. A nos ensinado a amar e, por outro lado, admirar a pintura como uma coisa
fotografia, enquanto tal, e o objeto em si mesmo, compartilham uma em si cuja relação com algo na natureza cessou de ser uma justificativa
existência comum depois de moldada por uma mão. Por conseguinte, a para sua existência.
fotografia realmente contribui com algo para a ordem da criação natural Por outro lado, é claro, o cinema é também uma linguagem.
ao invés de fornecer um substituto seu. Os surrealistas tiveram uma noção
disso quando usavam a placa fotográfica para provê-los com suas Extraído de TRACHTENBERG, Alan; CLASSICA ESSAYS ON
monstruosidades e por essa razão: o surrealista não considera o propósito PHOTOGRAPHY, Leete’s Island Book, New Haven, Conn, 1980.
estético e o efeito mecânico da imagem em nossas imaginações como
coisas separadas. Para eles a distinção lógica entre o que é imaginário e o Traduzido por RUI CEZAR DOS SANTOS
que é real tende a desaparecer. Cada imagem deve ser vista como um
5
Eu emprego aqui o termo categoria no sentido a ele dado pelo Sr. Gouthier em
seu livro sobre o teatro no qual distingue entre as categorias do dramático e do
estético. Da mesma forma que a tensão dramática não tem nenhum valor artístico,
o aperfeiçoamento de uma reprodução não deve ser identificado com beleza. Ao
contrário ele constitui a matéria principal, digamos, na qual o fato artístico é
registrado.