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PLATÃO E OS PARÂMETROS DA

ORDEM SOCIAL E DA EDUCAÇÃO


PARA A CIDADANIA

Ricardo Vélez Rodríguez


Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.
Rive2001@gmail.com

A filosofia platônica marcou um capítulo essencial da meditação


ocidental, ao fixar dois parâmetros importantes: o relativo à fundamentação da
ordem social e o que se vincula à educação para a cidadania. Não há dúvida de
que o Estado moderno não seria o que é, se não tivesse existido Platão. Neste
filósofo ancora a temática da ordem social e da sua racionalidade ao redor do
Estado.

Platão nasceu em Atenas em 427 a.C. e morreu em 347 a.C. Filho de


uma família da aristocracia ateniense, sofreu a influência de dois pensadores
notadamente: Pitágoras de Samos (580-497 a.C.) e Sócrates (469-399 a.C.).
Em 387 a.C., Platão fundou a Academia, que se constituiu, junto com a
Biblioteca de Alexandria, numa das mais importantes iniciativas culturais do
Mundo Antigo, tendo funcionado até 529 d.C., quando foi encerrada por
ordem de Justiniano I. Convidado pelo rei Dionísio, passou um bom tempo em
Siracusa, ensinando filosofia na corte.

Com a sua teoria das Idéias, Platão construiu um sistema que


aproximava a filosofia pré-socrática das reflexões do seu mestre, Sócrates.
Mas, em decorrência da abrangência e da profundidade que imprimiu ao seu
sistema, Platão, por outro lado, formulou um pensamento com repercussões
que nenhum outro filósofo conseguiu ter na História do Pensamento
Ocidental. A respeito, frisa Alfred North Whitehead (1861-1947): “Toda a
filosofia ocidental não passa de notas de rodapé das páginas de Platão” [1].

Os aspectos básicos da Teoria das Idéias de Platão podem ser


sintetizados nos seguintes 12 itens:

1 – É pressuposto, por Platão, um reino hipotético de essências imateriais,


eternas e imutáveis que constitui o mundo das Idéias (ειδοσ). As Idéias são
arquétipos da realidade e, de acordo com elas, são formados os objetos do
mundo visível. A propósito, escreve Platão no seu diálogo Fédon, destacando
que as Idéias constituem o paradigma do Ser e da Verdade: “- Então –
prosseguiu Sócrates: minha esperança de chegar a conhecer os seres começava
a esvair-se. Pareceu que deveria acautelar-me, a fim de não vir a ter a mesma
sorte daqueles que observam e estudam um eclipse de sol. Algumas pessoas
que assim fazem estragam os olhos por não tomarem a precaução de observar
a imagem do sol refletida na água ou em matéria semelhante. Lembrei-me
disso e receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu
continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los
através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas
idéias e procurar nelas a verdade das coisas (...). Assim, depois de haver
tomado como base, em cada caso, a idéia, que é, a meu juízo, a mais sólida,
tudo aquilo que lhe seja consoante eu o considero como sendo verdadeiro,
quer se trate de uma causa ou de outra qualquer coisa, e aquilo que não lhe é
consoante, eu o rejeito como erro” [2].

Platão, segundo Rafael Sanzio de Urbino, detalhe do afresco intitulado: A Escola de Atenas (1512-1514)

[1] Cit. por Kunzman – Burkard – Wiedmann, in: Atlas de la Philosophie, trad. francesa de
Desanti, Droit et alii, Paris: Librairie Genérale Française, 1993, p. 39
[2] PLATÃO, Diálogos. (Tradução e notas de J. Paleikat e J. Cruz Costa; seleção de textos
de J. A. Motta Peçanha). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 106.
2 – As Idéias existem de forma objetiva, ou seja, independentemente do
nosso pensamento. Em que pese o fato de serem independentes dele, podem
por ele ser conhecidas. Em decorrência disso, a doutrina platônica foi
caracterizada pelos estudiosos como um idealismo objetivo. Por exemplo: o
fato de que, para além de constatarmos a existência de seres vivos como
moscas, peixes ou cavalos, reconheçamos neles a característica comum de
animais, isso indica que existe um arquétipo comum, “animal”, que está
presente de alguma forma em todos os animais e que determina a sua maneira
de ser. O fato de que o nosso entendimento possa conhecer as Idéias (ou seja,
os arquétipos subsistentes do real, que existem fora de nós), faz com que
Platão seja considerado pelos estudiosos como o fundador da perspectiva
realista ou transcendente, ou seja, aquela que pressupõe que o entendimento
humano tem acesso à coisa em si. Esta perspectiva contrapõe-se à
transcendental, que parte do pressuposto de que o nosso entendimento
somente pode ter acesso aos fenômenos (àquilo que aparece), não às coisas em
si; esta perspectiva foi formulada e sistematizada, no século XVIII, por Hume
e Kant [3].

3 – Platão, por outro lado, postula a teoria dos dois mundos. O primeiro é
o mundo visível ou sensível, no qual se desenvolve a nossa existência e que
está submetido à mudança e à degradação. O segundo é constituído pelo
mundo inteligível (que fundamenta a essência do primeiro). É o mundo das
Idéias imutáveis. Este é um mundo do tipo que os Eleatas encontravam como
próprio do Ser: é o reino da permanência e da imutabilidade. No diálogo
Fédon é clara a contraposição que Platão faz desses dois mundos, sendo que o
de baixo, aquele em que habitamos, é caracterizado pela precariedade, ao
passo que o de cima, o verdadeiro, é um mundo de luz e de perfeição.

A respeito, escreve o filósofo, destacando a precariedade da região das


sombras em que nós, mortais, vivemos, ao passo que o mundo dos arquétipos
caracteriza-se pela perfeição, luminosidade, incorruptibilidade e beleza: “(...)
Morando num buraco da terra, acreditamos estar na sua superfície exterior, e
damos ao ar nome de céu, como se os astros de fato planassem no ar, nosso
céu. O caso é bem o mesmo: por fraqueza e indolência estamos
impossibilitados de subir até o ar superior. Se alguém escalasse a parte
superior da terra, ou voasse com asas, esse alguém haveria de contemplar o
que existe por lá, e se sua natureza fosse bastante forte para lhe permitir uma
observação prolongada, verificaria que aqueles é que são o céu verdadeiro, a

Cf. PAIM, Antônio. Roteiro para o estudo da Crítica da Razão Pura de Immanuel
[3]
Kant. Juiz de Fora: UFJF - Curso de Mestrado em Filosofia, 1984, p. 2, (mimeo.).
luz verdadeira e a terra verdadeira – assim como os peixes, que sobem do mar,
vêem o que há em nossa terra! Esta parte da terra em que nos achamos, as
próprias pedras e suas diferentes regiões, estão corroídas e desgastadas, assim
como está desgastado e corroído pela água salgada tudo o que há no mar (....).
Quanto à outra terra, constituída como é, tudo o que aí existe, existe
adequadamente – árvores, flores e frutos; do mesmo modo, por sua parte, as
montanhas; e as pedras aí têm, proporcionalmente, muito mais beleza quanto
ao polimento, transparência e coloração: e as pedrarias de cá embaixo, as
pedrarias que qualificamos de preciosas, nada mais são do que suas lascas (...).
Enfim, nessa remota região, se não há nada comparável às coisas daqui, tudo é
muito mais lindo e mais precioso (...)” [4]

4 – O mundo sensível está submetido ao mundo das Idéias, tanto do ponto


de vista ético, quanto do ângulo ontológico. Ele só se estrutura por
participação (methéxis) ou por imitação (mimésis) do mundo verdadeira e
plenamente existente das Idéias. São esses processos que garantem a
existência do mundo das coisas: elas existem, porque são participação e
imitação das Idéias. Em relação a este ponto, escreve Platão no diálogo
Parmênides, colocando em boca deste filósofo a teoria platônica da methéxis e
da mimésis: “(...) – Dize-me uma coisa: pelo que declaraste, admites a
existência das idéias, das quais as coisas tiram os nomes, na medida em que
delas participam, a saber: a participação da semelhança as deixa semelhantes,
a da grandeza, grandes, e a da beleza e da justiça, justas e belas? –
Perfeitamente, teria respondido Sócrates” [5].

O “Rei Sol”, no portal que dá acesso ao Palácio de Versailles, em Paris, onde Luis XIV (1638-1715)
organizou a sua corte ao redor do trono real: imagem moderna do “Rei Filósofo”

[4]PLATÃO. Diálogos. Ob. cit., p. 118-119.


[5]PLATÃO. Diálogos – Volume VIII Parmênides – Filebo. (Tradução de Carlos Alberto
Nunes). Belém: Universidade Federal do Pará, 1974, p. 26-27. Coleção Amazônica – Série
Farias Brito.
5 - Do ponto de vista da forma segundo a qual conhecemos as realidades
essencial e aparente que acabam de ser mencionadas, Platão formula
quatro tipos de conhecimento, sendo que dois pertencem ao mundo visível e
dois são próprios do mundo que somente é acessível ao espírito. Os quatro
tipos são estes:
• Aquilo que é perceptível indiretamente (exemplo: as sombras e os reflexos
dos espelhos).
• Aquilo que é perceptível diretamente (exemplo: os objetos materiais e os
seres vivos).
• Aquilo que é conhecido pelas ciências (exemplo: a matemática, a qual,
superando o suporte material – as figuras geométricas –, atinge um
conhecimento intelectual como o relativo aos teoremas universais).
• Aquilo que constitui o reino das Idéias e que é acessível à “razão pura”, que
está na base de todas as representações intelectuais.

6 – Ponto central da doutrina platônica: a Idéia do Bem. Embora o Bem


ocupasse um lugar de destaque no pensamento de Sócrates (como valor ético
que deve inspirar ao cidadão), para Platão, no entanto, reveste-se de uma
radicalidade maior: o Bem é o fim almejado e o começo de todo ser, tanto do
ângulo gnosiológico, quanto do ponto de vista da ontologia. O Bem, segundo
Platão, é o princípio radical de todas as Idéias e se situa acima delas. É nele
que se fundam as Idéias de Ser e de Valor e, com elas, se instauram os
fundamentos do mundo inteiro. O Bem cria a ordem, a medida e a unidade do
mundo. A respeito, frisa O. Gignon: “Para Platão, a questão: por que o Bem?
É uma pergunta que não faz sentido. Podemos indagar por aquilo que há para
além do ser, mas não podemos perguntar acerca do que há a por trás do Bem”
[6].

7 – O homem não pode ter acesso ao conhecimento do Ser, senão à luz do


Bem. Essa luz é, para a razão humana, como o sol para os olhos. No entanto, é
um sol que não somente ilumina, mas que também garante a presença dos
objetos iluminados no Ser. Em A República, Platão afirma: “Podes estar
seguro de que aquilo que comunica a verdade aos objetos cognoscíveis e ao
espírito a faculdade de conhecer, é a Idéia do Bem (...). Os objetos do
conhecimento não contêm somente a faculdade de virarem cognoscíveis, mas
ainda a existência e a essência do Bem, que não é uma coisa existente, mas

[6] Cit. por Kunzman – Burkard – Wiedmann. Atlas de la philosophie, ob. cit., p. 39.
que a ultrapassa em elevação e força” [7]. Um pouco mais adiante, nesse
mesmo texto, Platão completa assim o seu pensamento: “(...) O sol dá aos
objetos visíveis não somente a faculdade de serem vistos, mas ainda lhes
fornece a gênese, o crescimento e o alimento, em que pese o fato de ele não se
restringir a ser essa gênese”.

8 – Sobre o pano de fundo metafísico e gnosiológico que acaba de ser


exposto, Platão constrói a sua Física. O mundo da natureza é, segundo o
filósofo no diálogo Timeu [8], constituído da seguinte forma: “O mundo
material do devir é instaurado por um operário do mundo, um demiurgo, de
forma ordenada e conforme à razão (teleologia), na medida em que ele o
modela segundo o arquétipo das Idéias”. O mundo, assim, constitui uma
ordem harmônica, o que em grego se traduz pelo termo Cosmos. A matéria
prima na qual é concretizada a encarnação das Idéias é o receptáculo
(déchoménon).

9 – Sobre as bases metafísicas e físicas que acabam de ser mencionadas,


Platão elabora a sua gnosiologia, inserindo os quatro tipos de conhecimento
que foram mencionados no item 5, no contexto da teoria acerca das faculdades
cognitivas da alma. Os tipos de conhecimento e as respectivas faculdades são
os seguintes, a começar pelos que se ligam ao mundo material e seguindo até
aqueles que o superam. O quadro a seguir sintetiza estas variáveis:

TIPOS DE CONHECIMENTO

I – Conhecimentos visíveis, através de imagens (eikónes).

II- Conhecimentos de Totalidades Visíveis (fóa, hóla).

III – Conhecimentos Científicos Racionais, ou Invisíveis Inteligíveis inferiores


(mathémata, noetá).

IV – Contemplação Intelectiva (eide, noetá).

[7] PLATÃO. L´État ou la République. (Tradução francesa de A. Bastien). Paris: Garnier,


s/d, p. 249-250.
[8] Cit. por Kunzman – Burkard – Wiedmann. Atlas de la philosophie, ob. cit., p. 39.
FACULDADES DA ALMA

I – Sensibilidade (aísthesis) e Imaginação (eikasía).

II – Opinião (dóxa) e Crença (pístis).

III – Razão (diánoia) equivalente da ratio, para os Latinos.

IV – Intelecção (nous, theoria), equivalente do intellectus, para os Latinos.

10 – A teoria de Platão acerca do homem insere-se no contexto de sua


doutrina acerca do Conhecimento e do Ser, que foi sintetizada nos itens
anteriores. Como se torna possível, aos homens, a Contemplação Intelectiva,
mediante o pleno exercício da Intelecção? Esse tipo de conhecimento, o mais
perfeito ao qual o homem pode aspirar, não procede dos níveis inferiores de
apreensão da realidade (a partir do mundo sensível). Procede tal conhecimento
intelectivo, no entanto, de uma reminiscência da alma da sua passagem ou da
sua proveniência do Mundo Inteligível. Todo conhecimento intelectivo é,
portanto, reminiscência ou anámnese. A alma do homem, segundo Platão,
contemplou as Idéias numa existência anterior, mas as esqueceu depois da sua
entrada no corpo. Nele, a alma vive encadeada.

A alegoria da caverna, que Platão apresenta na sua obra A República [9],


ilustra essa situação da alma presa no corpo. Os homens são semelhantes a
prisioneiros encadeados no fundo da caverna, não podendo ver nada do mundo
real. Aquilo que eles tomam como a realidade são sombras de objetos
fabricados cujas silhuetas uma fogueira projeta sobre a parede da caverna. A
anámnese é representada mediante a visita que um dos prisioneiros faz ao
mundo exterior, onde contempla os objetos naturais e o sol, tal como eles são
na realidade. As sombras e os objetos na caverna correspondem à experiência
sensível, ao mundo situado fora do inteligível. A força que conduz o homem
em direção à região do Ser e do Bem é Eros. Ele acorda, em nós, o desejo de
nos levantarmos até o conhecimento das idéias. No diálogo Banquete, Platão
caracteriza Eros como a busca filosófica da beleza e do conhecimento. Ele
estabelece, para os humanos, a ponte entre o mundo sensível e o inteligível.
Platão denomina de dialética o método que conduz à descoberta do mundo das
Idéias, sob o impulso de Eros. A dialética ou a busca filosófica da Beleza e do

[9]PLATÃO. L´État ou la République. (Tradução francesa de A. Bastien). Paris: Garnier,


s/d, p. 271-275.
Conhecimento, ocorre na relação do eu com os outros homens, na qual se
concretiza o ato pedagógico (épimeléia) de procurar a verdade que diz relação
aos humanos, superando o conhecimento do mundo físico.

Platão, certamente, herdou do seu mestre Pitágoras de Samos (580-497 a.C.), a


concepção bipolar do homem, como cindido entre dois princípios
irreconciliáveis, corpo (soma) e alma (psyché). É herança pitagórica,
outrossim, a concepção segundo a qual a alma deve controlar o corpo. A alma,
substância homogênea que se compara às Idéias imutáveis e eternas,
justamente por essa sua característica elevada (que a coloca por cima da
matéria), está habilitada para conhecer o mundo dos Arquétipos e é capaz de
se movimentar por si própria. Platão afirma que a vida é característica
essencial da alma, não podendo ela, em conseqüência, admitir a morte.

A alma, por sua vez, possui três partes: a razão (faculdade que é portadora da
fagulha divina que os homens levam consigo), a coragem (a parte nobre) e os
apetites (a parte inferior). A razão é simbolizada por Platão como o cocheiro
que conduz o carro, sendo que a coragem é o cavalo que obedece e os apetites
são simbolizados pelo cavalo rebelde. Três virtudes emergem, segundo o
filósofo, dessas partes da alma: a sabedoria (da razão), a perseverança (da
coragem) e a moderação (dos apetites controlados pela razão). No entanto, há
uma virtude que, presente na alma, permite ao homem estabelecer um
equilíbrio harmonioso entre as três virtudes mencionadas: ela é a justiça
(dikaiosyné).

A partir da estrutura racional da esfera das Idéias, Platão deduz o postulado do


poder soberano da razão, mas também o da sua concretização nas
denominadas virtudes cardeais. Mas há, paralelamente, no homem, uma cisão
que o afeta e que parte da desvalorização que o pensador atribui ao corpo,
como princípio opaco que se contrapõe à luz de que é portadora a alma. Para o
homem poder se guiar ao longo da vida precisa ir superando a materialidade
do corpo, no exercício assíduo da razão e das virtudes cardeais. O homem
deve almejar por uma recompensa após a morte. O pensador imagina que a
alma poderá, livre das amarras da corporeidade, participar do reino do espírito
puro. A virtude, em que pese o fato dessa visão teleológica que aponta para o
mundo das Idéias e do Sumo Bem, possui também uma justificativa na esfera
da vida terrena do homem: ela constitui, para Platão, a melhor maneira de
viver neste mundo.
Inspiração platônica no Brasil - Capa da obra de Pedro Calmon intitulada: O Rei Filósofo, vida de Dom
Pedro II

11 – A Política, para Platão, espelha a concepção antropológica que acaba de


ser resumida. O Estado repete a estrutura do indivíduo. Platão deixa claro que
entramos na ordem política, não por causa das nossas virtudes, mas em
decorrência das carências que nos afetam. O Estado, para o filósofo, divide-se
em três ordens[10]: a dominante, integrada pelos filósofos ou sábios
(representantes da razão e os únicos que são aptos para buscar a maneira justa
segundo a qual os cidadãos devem pautar a sua vida); em segundo lugar vem a
ordem dos guerreiros (que são aqueles que constituem a parte sensível da
alma, ou que representam a coragem) e a ordem dos produtores, que
corresponde à parte sensível da alma (artesãos, comerciantes, camponeses que
devem garantir os bens materiais de que a sociedade carece).

A educação deve ser conduzida rigorosamente pela Cidade-Estado, a fim de


garantir o máximo de eficiência e racionalidade na sua defesa e na gestão dos
assuntos públicos. A educação para a cidadania (paidéia) deve abarcar a vida
toda dos cidadãos e contempla as seguintes etapas: educação elementar pela
música, a poética e a ginástica (até os 20 anos); educação científica, que
abarca: matemáticas, astronomia e ciência da harmonia (deve durar 10 anos);
iniciação à dialética ou filosofia (com duração de 5 anos); educação política
(que consiste na prática da gestão do Estado e que deve durar 15 anos). Após

[10] PLATÃO. L´État ou la République. (Tradução francesa de A. Bastien). Paris: Garnier,


s/d, p. 86 seg.
todas essas etapas, o cidadão poderia escolher entre o acesso ao poder do
Estado ou a vida contemplativa.

O filósofo cultuava um modelo de gestão total do Estado sobre os cidadãos,


segundo o qual o Rei Filósofo e os seus colaboradores deveriam prever todos
os aspectos da vida privada (concernentes às relações sexuais, à geração dos
filhos, à religião e à educação de jovens e crianças). A idéia seria garantir a
seleção dos melhores para a condução e a administração do Estado, bem como
para a sua defesa. A célula mater da sociedade não seria, pois, a família, nem
o clã, e passaria a ser o aparelho administrativo rigorosamente controlado pelo
Rei-Filósofo. A constituição do Estado proposto por Platão seria, portanto,
uma aristocracia, ou governo dos melhores. Na parte final da sua obra política
(que é constituída pela obra intitulada As Leis, escrita na velhice), o pensador
insistia menos no Rei-Filósofo e enfatizava o papel das leis (corretamente
entendidas pelos cidadãos), na estruturação do regime ideal.

A Filosofia Ocidental, ao longo da sua história, fez eco a esses ensinamentos


do mestre ateniense, nos vários modelos de poder racional e total que foram
desenvolvidos, por exemplo, na Renascença italiana, com a obra de Tomás
Campanella (1568-1639) intitulada: A cidade do Sol e com O Príncipe, de
Nicolau Maquiavel (1469-1527). Na modernidade, ecoam os ensinamentos
políticos do platonismo no Leviatã, de Thomas Hobbes (1588-1679) e se
projetam até a contemporaneidade nos vários autores que defendem o poder
total nas multifacetadas versões de despotismo hidráulico, apresentadas por
Karl Wittfogel (1896-1988) na sua clássica obra: Despotismo Oriental –
Ensaio interpretativo do Poder Total [11]. No seio da meditação brasileira,
duas abordagens dos modelos de poder total são importantes: a desenvolvida
por Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999) no seu clássico estudo
intitulado: O fenômeno totalitário [12] e a recente obra de Antônio Paim
(nasc. 1927), Marxismo e descendência [13].

12 – Caminho pedagógico para a dialética: o diálogo. É através dele que os


homens encontram os conceitos que representam as Idéias. Estas vão se
revelando aos homens dialeticamente, sem recurso à representação das coisas
do mundo sensível. O diálogo entre os humanos possibilita a análise e a

[11] Cf. WITTFOGEL, Karl. Le Despotisme Oriental. (Tradução francesa de Micheline


Pouteau). Paris: Minuit, 1977.
[12] BARROS, Roque Spencer Maciel de. O fenômeno totalitário. Belo Horizonte: Itatiaia,
1990.
[13] PAIM, Antônio. Marxismo e descendência. Campinas: Vide Editorial, 2009.
síntese dos conceitos, bem como a formulação de hipóteses que são
examinadas e, logo, aceitas ou rejeitadas. Os personagens presentes nos
diálogos platônicos defendem, deliberadamente, posições opostas, com o
objetivo de examinar as teses, à luz das suas antíteses. Dessa oposição emerge
a verdade.

Platão consolidou, na tradição filosófica ocidental, o gênero diálogo, que


passou a formar parte das várias modalidades de expressão literária do
pensamento filosófico. Inúmeros autores, das mais variadas épocas, passaram
a se inspirar no mestre ateniense, como por exemplo, Leão Hebreu (Iehuda
Abravanel, 1465-1534), o pensador português do século XVI que escreveu os
conhecidos Diálogos de Amor [14]. Outro autor que cultivou o diálogo
filosófico para exprimir o seu pensamento foi Leibniz (1646-1716), na sua
obra fundamental intitulada: Novo tratado sobre o entendimento humano
[15]. Na filosofia brasileira, são lembrados por muitos os diálogos filosóficos
de Vicente Ferreira da Silva [16] (1916-1963), integrante da denominada
Escola de São Paulo.

Sócrates é o personagem principal dos diálogos platônicos (uma evidente


homenagem de Platão ao seu mestre). A interpretação dos diálogos insere-se
numa dinâmica dialética do pensamento, como foi frisado pouco antes. A
estrutura dialogal da sua obra possibilita ao pensador se esconder por trás da
figura de algum dos interlocutores. A temática tratada nos 25 Diálogos
considerados autênticos é variada: a questão da virtude (que é o ponto central
dos diálogos de juventude), passando pela problemática do conhecimento
(Menon e Teeteto, por exemplo), a política (A República, As Leis), bem como
a filosofia da natureza (Timeu).

A forma literária dos diálogos platônicos, certamente, é um instrumento em


mãos do pensador para realizar a ponte entre mito e lógos. No pensamento do

[14] HEBREU, Leão. Diálogos de Amor. (Texto fixado, anotado e traduzido por Giacinto
Manupella). Volume II – Versão Portuguesa – Bibliografia. Lisboa: Instituto Nacional de
Investigação Científica, 1983. Devido ao fato de o autor ter sido expulso pela Inquisição
portuguesa para Espanha (onde a Inquisição também o perseguiu, tendo seqüestrado o seu
filho), Leão Hebreu terminou escrevendo a sua obra na Itália, sendo a primeira versão da
mesma composta em italiano.
[15] LEIBNIZ, Gottlibeb Wilhelm. Nuevo tratado sobre el entendimiento humano.
(Tradução ao espanhol e prólogo de Eduardo Ovejero y Maury). Buenos Aires: Aguilar,
1980, 2 vol.
[16] Cf. SILVA, Vicente Ferreira da. Obras completas. (organização e Prefácio de Miguel
Reale). São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964, 2 vol.
filósofo, a estrutura da realidade alicerçada no Sumo Bem e nos Arquétipos
nele subsistentes, ocupa o lugar da antiga teomaquia (ou combate entre os
deuses, que teria dado origem ao Cosmo). O diálogo equivale, no pensamento
platônico, ao rito, na estrutura mítica. È no diálogo que acontece a magia da
revelação da verdade para os homens que dele participam.

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