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O dia em que a Índia conheceu a pornochanchada

Por Fernanda Pessoa*

No final de 2017, recebi um convite inusitado do pesquisador australiano residente na


Inglaterra, Stefan Solomon. Ele havia sido encarregado de uma curadoria de filmes
brasileiros contemporâneos para o Festival Internacional de Kerala, o segundo festival
de cinema mais importante da Índia. Em uma seleção ousada e bastante interessante,
selecionou seis filmes, entres os quais meu primeiro longa documental “Histórias que
nosso cinema (não) contava”, um filme que conta a história da ditadura militar no Brasil
através de trechos de filmes da pornochanchada.

A pornochanchada foi um gênero bastante heterogêneo de filmes produzidos entre 1969


e 1982, que representaram os títulos mais vistos e produzidos do período. O que todos
eles têm em comum é o uso do erotismo e de elementos de algum gênero
cinematográfico clássico, como comédia, drama ou mesmo western. Não de trata de
filmes de sexo explicito, mas sim com carga variada de nudez, simulação de sexo,
piadas de duplo sentido, etc. Estimo que produzimos ao redor de 300 filmes que
poderiam se encaixar nessa nomenclatura só na década de 1970.

Quando o festival me convidou para apresentar o filme em Trivandrum, capital de


Kerala, fiquei ao mesmo tempo animada e apreensiva. Nunca havia pensando em ir para
a Índia e as imagens do documentário “Daughter of India”, sobre o estupro coletivo e
morte de uma indiana em um ônibus, e a consequente mobilização feminina contra a
impunidade e o machismo, ainda estavam muito vivas em minha memória. A primeira
questão que me preocupou foi qual roupa teria que usar e como seria para uma mulher
andar sozinha pela Índia, uma vez que o festival não levaria o resto da equipe do filme.
Investigando a programação do festival, vi que a atriz e cineasta Aparna Sen seria
homenageada e que haveria um workshop de mulheres no cinema, o que logo me
mostrou que meu medo vinha de um preconceito que tinha do país.

Kerala, estado na costa mais ao sul da Índia, tem um governo do partido Comunista.
Enquanto o governo central da Índia, representado pelo presidente Ram Nath Kovind e
o primeiro ministro Narendra Modi, ambos do partido BJP, de cunho nacionalista e
conservador, é um governo de extrema-direita, Kerala é governada pela Fronte da
Esquerda Democrática, liderada pelo Partido Comunista da Índia (CPI), de linhagem
Marxista. O estado de Kerala possui o maior Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) do país: 0,790, número considerado elevado pela Organização das Nações Unidas
(ONU), acima da média indiana de 0,467 e da média brasileira de 0,699. Hoje, por
exemplo, é um dos estados que está lidando melhor com a pandemia de coronavírus que
está afetando gravemente a Índia.

É comum ver bandeiras do Partido e imagens de Lenin ou Che Guevara misturadas a


cartazes de atores de Bollywood ou propagandas de roupas típicas femininas, quase
sempre com modelos ocidentais ou indianas de pele clara. É um dos estados mais
progressistas da Índia, com um alto índice de alfabetização e uma população bastante
interessada em artes e cultura. De fato, assim que pisei na Índia pude sentir a cinéfila do
povo de Kerala: o oficial de imigração que checou meu visto de entrada, ao saber que o
festival de cinema era o motivo da minha vinda, abriu um grande sorriso e me contou
sobre a sua paixão por filmes, anotando o nome do meu em um papelzinho e
prometendo que iria à sessão. Chegando ao hotel, a mesma situação: a recepcionista me
deu um abraço, escreveu o nome do meu filme e disse que iria assistir e dar uma boa
“review” para ele (antes mesmo de tê-lo visto).

Quando o festival começou, percebi a real proporção dessa cinéfila. Os filmes mais
procurados tinham filas enormes e muita confusão do lado de fora do cinema. Muitos
gritavam e tentavam entrar no cinema à força. O curioso é que depois descobri que essa
abordagem funciona: quem faz mais barulho e é mais insistente, acaba conseguindo
entrar mesmo nos filmes lotados, sentando no chão.

Apesar de ser um estado governando por um partido comunista, trata-se de um lugar


bastante conservador e religioso, com diversos templos e tradições. O hinduísmo é a
religião majoritária, e até pouco tempo atrás, mulheres “em idade de menstruação”,
estabelecida entre 10 e 50 anos, não podiam entrar no tempo de Sabarimala, um dos
santuários mais sagrados da religião. Essa mudança só ocorreu após uma grande
manifestação conhecida como “Muro das Mulheres”, em que milhares de mulheres
formaram uma corrente humana de 620 quilômetros.

A primeira coisa que fiz ao chegar foi comprar roupas, para aguentar o calor e ao
mesmo tempo cobrir pernas e torso – minhas roupas brasileiras de verão não cumpriam
essa função. Em uma loja típica de roupas indiana, só eu e um casal de cineastas
argentinos tínhamos cara de “ocidentais” (apesar de, para Estados Unidos e Europa, não
sermos ocidentais e sim latinos). Quatro irmãs de entre 5 e 12 anos, todas vestidas com
roupas iguais e ocidentais e camisetas que diziam “stand for glamour”, me seguiram
pela loja, fascinadas em ver alguém tão diferente delas e tão parecida às imagens de
mulheres brancas que estampavam os cartazes da loja.

Na noite da estreia, eu e Stefan apresentamos o filme. A sala estava quase cheia e o


público era majoritariamente masculino. As duas únicas mulheres eram Monica, esposa
de Stefan e australiana, e Virna Molina, diretora argentina. Depois entendi o porquê
disso: a maioria das mulheres não podem sair na rua depois das 18h, e a sessão do meu
filme era às 19h. Apesar do progressismo político, Kerala ainda é um dos estados mais
machistas e com piores condições para as mulheres, como me contou Archana, uma
amiga indiana. Ela também me contou que o ápice de uma cena romântica
cinematográfica na Índia é um abraço, o que aumentou minha tensão em apresentar as
tórridas simulações de sexo da pornochanchada.

Ao me sentar no meio da plateia para assistir o filme com o público indiano, logo tive
que me levantar. Segundo uma nova lei federal, antes de todas as sessões de cinema os
espectadores devem se levantar e cantar o hino do país, enquanto uma bandeira kitsch
em 3D balança na tela grande e uma gravação dá o tom do canto. Duas pessoas à minha
frente não se levantam: isso é um grande e perigoso ato de resistência, que pode levar à
prisão. Quando o hino acaba, um homem ao meu lado, de bandana vermelha na cabeça,
questiona se no meu país também somos obrigados a fazer o que ele chamou de
“bobagens nacionalistas”. Eu respondi que não, mas pensei comigo que talvez não
estivéssemos longe disso.

O filme começa, eu fico tensa e Monica me diz para não subestimar o público de
Kerala, politizado e progressista. Confio nela, respiro fundo e vamos ao filme. O
segundo plano já exibe duas bundas nuas caminhando. A experiência de ver um filme,
qualquer que seja, junto ao público indiano já é bastante peculiar: eles interagem com o
filme, levantam, conversam, atendem o celular. Na sessão de “Sinfonia para Ana”, o
filme dos amigos diretores argentinos sobre a ditadura no país deles, havia uma cena em
que a personagem principal tem uma conversa com seu paquera de direita, que a
pressiona para abandonar a luta de esquerda. Em um ultimato, ele diz que se ela não
abandonar sua organização contra a ditatura, “então tchau”, ao que ela responde
“tchau”, levando a sala à loucura, com fortes aplausos e exclamações de apoio.

Meu filme começa e há muitas pessoas saindo e entrando da sala durante a sessão, além
de um espectador no fundo da sala que repete as últimas palavras de cada frase da
legenda em inglês, como “dangerous”, “revolution”, etc.

Nunca antes eu tinha me dado conta de quanta nudez existe no meu filme. No Brasil (e
mesmo em outros países onde o filme exibido) isso não parecia ser uma questão e as
discussões sempre giravam em torno de outros assuntos que o filme traz e me parecem
mais problemáticos, como a representação da mulher ou as cenas de tortura. Aqui, a
cada novo peito ou bunda, me contorcia na cadeira e pensava “esse filme só tem gente
pelada!”

O filme acaba e bastante gente fica para as perguntas e respostas ao final da sessão, o
que não parece ser tão normal no festival –me contaram que as sessões de perguntas
após o filme aqui são bastante esvaziadas. O filme é o espetáculo, não a reflexão
posterior. O homem ao meu lado, que reclamou do hino no começo do filme, me
parabeniza, já fazendo perguntas antes mesmo de eu subir ao palco para responde-las.
Ele conta que nos 1990 a Índia também teve um movimento de cinema de “soft porn”,
como ele o chama. Outras pessoas se aproximam e estendem à mão para mim e para
Stefan, parabenizando pelo filme. Um homem passa por mim e diz “Isso é o que está
acontecendo na Índia agora”, e vai embora sem me dar grandes explicações. Eu e Stefan
subimos ao palco.

Stefan começa com uma contextualização e perguntas introdutórias. Assim que abrimos
para perguntas do público, diversas mãos prontamente se levantam. Monica faz uma
pergunta, pois como me explicou mais tarde, não queria que apenas os homens se
manifestassem na plateia. Em seguida, dois homens mais jovens pegam o microfone um
em seguida do outro, fazendo perguntas sobre como o filme foi feito. Depois, um
homem mais velho e vestido de forma mais tradicional pede o microfone e fala que, ao
contrário dos outros, não quer dar parabéns, e sim uma “desculpa” (“apology”) ao filme.
Ele diz não entender qual a necessidade de retrabalhar esses filmes, que para ele são
“lixo” (“garbage”). “Se alguns estão no youtube e outros não existem mais, que fiquem
assim”, conclui. Explico que aquilo é a história do meu país, que é necessário revisitar a
história e entende-la, que aqueles filmes foram os mais vistos da década de 1970 no
Brasil. Ele ainda não entende a necessidade de revisita-los. Em seguida, outro senhor
pega o microfone e diz que duvida que aqueles sejam os filmes mais vistos no Brasil
aquela época. Ele diz que conhece o meu país e que ele não é assim. Termina dizendo
que vai checar os fatos na American Review, para comprovar que aquelas não são as
maiores bilheterias brasileiras. Engraçado que se ele conhecesse mesmo o Brasil,
saberia que não vai encontrar essas informações na American Review, e sim na Ancine.
Mais engraçado ainda é ele, um homem indiano, achar que conhece o Brasil e seu
cinema mais do que eu, mulher brasileira que estudei o assunto durante cinco anos.
Nesse momento, os indianos mais novos presentes na sala saem em defesa do filme.
Dizem que o filme retrata um Brasil que não conheciam, um período difícil e que é
importante, sim, mostrar isso. O homem mais velho comenta do seu lugar “Eles são
artistas, não precisamos ficar preocupados com seus sentimentos, eles entendem que
temos direito a uma opinião”. Começa então um debate paralelo entre a geração mais
nova e a geração mais velha, que ultrapassa o assunto do filme. Um homem mais novo
fala sobre o conservadorismo da sociedade indiana, que não aceita ver cenas de sexo e
nudez. Ele diz que é preciso parar de ser hipócrita e aceitar que temos que falar sobre
esses assuntos. Com meu microfone, digo que me parece estranho que eles fiquem
chocados com a nudez ou com a má qualidade dos filmes e não com o fato de que
tivemos uma ditadura militar durante 21 anos no Brasil – isso eles não questionam e não
tem interesse em saber. Um breve silêncio se faz na sala.

O homem mais novo que estava ao microfone me pergunta o que acho da liberdade de
expressão. A discussão está bastante em voga na Índia. Um exemplo disso é o fato do
filme indiano “Sexy Durga”, ganhador do Hivo Tiger em 2017, prêmio máximo do
Festival de Roterdã, ter tido que mudar seu nome para “S Durga” e ainda assim não ter
conseguido um certificado de censura para ser exibido durante o festival de Kerala.
Respondo que sou a favor da liberdade de expressão sempre, tanto na arte quanto na
vida. A verdade é que repito um clichê, pois estou totalmente espantada com a reação
que o filme causou e não consigo ser a grande advogada da liberdade de expressão que
eles talvez quisessem. Toda essa discussão estava sendo feito apenas por homens. Eu
era a única mulher falando ali, além de não ser indiana.

O tempo para o debate acaba e nos pedem para liberar a sala para a próxima exibição.
Saindo, muitos espectadores jovens vêm falar comigo, apertar minha mão e me
agradecer pelo filme. Eles querem mudanças para a Índia, se preocupam com as
medidas que o governo federal impõe ao estado de Kerala e com a censura. Me pedem
desculpas pelos dois senhores que falaram mal do filme “É a mentalidade indiana!”, um
deles explica. Muitos pedem para tirar foto comigo, provavelmente porque sou bastante
diferente deles, mas principalmente porque, segundo a cinefilia deles, se eu sou diretora,
devo ser alguém importante. O voluntário do festival tem que pedir 3 vezes para
sairmos da sala e liberá-la para a próxima sessão.

No dia seguinte, conto a experiência para indianos e não indianos. A reação dos
indianos foi a seguinte: “Mas a geração mais velha ficou até o final? Uau, isso é bom.“
Os “ocidentais” comentam que em sessões de outros filmes coisas parecidas
aconteceram: no francês “120 Batimentos por Segundo”, sobre a Aids nos anos 1990 e
ganhador do Grande Prêmio em Cannes em 2017, muitas pessoas saíram no meio do
filme; na sessão do tailandês “Malila”, da diretora transexual Anucha Boonyawatana
(que acabou ganhando o prêmio de melhor direção no festival), houve um incômodo
geral no debate.

Na Índia, os filmes estrangeiros que são exibidos em festivais não passam pela censura,
então acabam sendo os únicos filmes com certo grau de liberdade e com poder de
mostrar algo diferente para o público local. Sinto que para eles foi importante ver o
filme no cinema, essa experiência que na Índia é ainda mais coletiva que em outros
países, e depois debate-lo. Para mim, a experiência foi transformadora. Reflito sobre o
papel do cinema, sua capacidade de tocar as pessoas em lugares que não imaginamos,
em fazer um filme pensando na sociedade brasileira e ver ele ser debatido com tanta
paixão em um país com uma cultura tão diferente da nossa.

Pensava também, obviamente, nos tempos difíceis que vivíamos no Brasil, sem
imaginar o que ainda vinha pela frente. Na época, contei para muitas pessoas o que
havia acontecido com o Queer Museum, com a exposição do Masp, com a performance
no MAM, com a hostilização à Judith Butler. Acredito que hoje meu filme teria poucas
chances de ter sido finalizado, uma vez que o Proac de Finalização (edital do Estado de
São Paulo) foi essencial para que isso acontecesse. Além dos cortes financeiros na área
de cultura e da paralização completa da Ancine desde o ano passado, provavelmente a
polêmica proposta de realizar um retrato da ditadura militar através da pornochanchada
não seria selecionada no contexto atual.

Tudo isso aconteceu antes da eleição de Bolsonaro, do discurso de Roberto Alvim


copiado de Goebbels, da entrevista assustadora de Regina Duarte. Revisitando essas
memórias do final de 2017, traço um caminho da ascensão ultraconservadora e
moralista no Brasil. Naquele momento, eu pensava que caminhávamos para uma
situação análoga à indiana. Eu não poderia imaginar que em 2020 estaríamos pior.
Enquanto o primeiro-ministro indiano Modi, que aprofundou alianças com Bolsonaro
no começo desse ano, não nega a gravidade do coronavírus e tem colaborado com os
estados para a contenção da pandemia, com atitudes consideradas firmes e proativas,
por aqui vivemos uma pornochanchada com enredo trágico e de mal gosto.

* Cineasta e artista visual, Fernanda Pessoa trabalha principalmente com cinema documental e
videoinstalações. Vive e trabalha em São Paulo, e morou no Arizona, em Buenos Aires e em Paris, onde
completou seu mestrado em Audiovisual na Sorbonne Nouvelle, sob orientação de Philippe Dubois. Em
2017, finalizou seu primeiro longa-metragem documental “Histórias que nosso cinema (não) contava”
exibido em mais de 25 festivais nacionais e internacionais. Mais em: https://pessoafernanda.com

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