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COlEÇAO CINEMA ESTRONHO
VOlUME 5
TODOS OS DIREITOS DA OBRA RESERVADOS A RODRIGO CARREIRO
AUTOR
Rodrigo Carreiro
REVISÃO
Celly Borges
ILUSTRAÇÃO DE CAPA
Leyla Buk
PROJETO GRÁFICO
Página 42/Marcelo Amado
EDITOR RESPONSÁVEL
Marcelo Amado
Carreiro, Rodrigo;
ISBN: 978-85-64590-79-3
www.editora.estronho.com.br
Facebook: www.facebook.com/EditoraPagina42
Twitter: @Pagina42_Ed
CLINT EASTWOOD EM “PER UN PUGNO DI DOLLARI” (1964)
“Essas histórias existem por quê? Apenas por causa de um
punhado de dólares? Não existe algo mais por trás?”
Alberto Moravia
CENA DE “C’ERA UNA VOLTA IN WEST” (1968)
Para Nina e Helena,
que fazem tudo valer a pena.
“Essas histórias existem por quê? Apenas por causa
de um punhado de dólares? Não existe algo mais por
trás?”
Alberto Moravia
256 BIBLIOGRAFIA
263 ANEXOS
267 ÍNDICE ONOMÁSTICO
SERGIO LEONE E CLINT EASTWOOD NO SET DE “TRÊS HOMENS EM CONFLITO” (1966)
PREFÁCIO
Na primeira metade do século XX, o crítico francês André Bazin definiu o western
como “o cinema americano por excelência”. A partir da década de 1950, porém, esse mesmo
gênero também funcionou como plataforma para diretores de outros continentes darem con-
tribuições fundamentais à história das formas cinematográficas.
Entre os realizadores que em algum momento de suas carreiras souberam reinventar
o western fora das fronteiras dos EUA estão dois dos mais importantes de toda a história do
cinema. Akira Kurosawa buscou criar um western nipônico em Os Sete Samurais (1957),
produzindo assim um dos maiores sucessos do cinema asiático de todos os tempos. Poucos
anos depois, o italiano Sergio Leone apresentaria ao mundo uma série de westerns barrocos
inspirados pela mitologia do gênero nos EUA, pelo realismo por vezes brutal do cinema
italiano e pelas aventuras de espadachins japoneses que, graças a Kurosawa, haviam se popu-
larizado mundo afora. Filmada em parte na Espanha e estrelada por atores americanos, a série
de Leone ficaria conhecida como a “Trilogia dos Dólares” (Por Um Punhado de Dólares,
1964; Por Uns Dólares a Mais, 1965; Três Homens em Conflito, 1966) e seria o paradigma
de um ciclo de filmes inspiradíssimo apelidado de spaghetti western.
É muito difícil, então, resistir à empolgação no momento de apresentar Era uma vez
no spaghetti western – O estilo de Sergio Leone, de Rodrigo Carreiro. Trata-se, afinal, da
primeira pesquisa de fôlego publicada no Brasil sobre esse cineasta italiano. Além do mais, o
texto é resultante da tese de doutorado do autor, que é também jornalista e cinéfilo, capaz de
aliar a profundidade do texto acadêmico ao prazer e à comunicabilidade dos bons trabalhos
críticos.
Neste livro, o leitor começará conhecendo um pouco da história do spaghetti western,
filão explorado em centenas de fitas italianas distribuídas mundialmente nas décadas de 1960
e 1970. Esses filmes, que obtiveram extraordinário sucesso popular, acabaram desafiando
os próprios diretores e produtores americanos, obrigados a dar respostas cinematográficas à
altura. Isso se verifica, por exemplo, no filme do próprio Leone coproduzido com Hollywood
(Era Uma Vez no Oeste, 1968) e nas obras de cineastas como Sam Peckinpah (Meu Ódio
Será Tua Herança, 1968) e, mais tarde, Clint Eastwood. Este, alçado ao estrelato pelos filmes
de Leone nos anos 1960, dedicaria a ele (e também a Don Siegel, diretor de Dirty Harry –
chamado no Brasil de Perseguidor Implacável –, de 1970) seu western definitivo: Os Imper-
doáveis, em 1992.
Mesmo que o reconhecimento da crítica tenha demorado um pouco mais a chegar,
como relata Carreiro no segundo capítulo deste livro, o legado de Leone para a história do
cinema a partir dos anos 1960 é inesgotável.
Mas não se trata apenas de fazer justiça à trajetória de Leone. O trabalho de Carreiro
também se apresenta como um estudo sistemático de estilística cinematográfica, tendência
dos estudos de cinema ainda pouco praticada no Brasil – pelo menos com a profundidade
e a extensão que se encontra aqui. Auxiliado por metodologia inspirada nos trabalhos do
pesquisador estadunidense David Bordwell, o autor mostra, a partir da análise detalhada dos
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principais westerns de Leone, as características que fizeram dele um influente inventor de
formas consagradas em obras de cineastas como Brian de Palma, William Friedkin, Quentin
Tarantino e muitos outros.
Nesse sentido, a escolha do objeto de análise mostra-se acertada, pois Leone se desta-
cou, desde o início, por dedicar-se a dar máxima visibilidade a seu próprio estilo de fazer ci-
nematográfico. Inovando no âmbito amplo das principais técnicas que compõem a estilística
do cinema (a encenação, a direção de fotografia, a montagem e o desenho de som), Leone foi
um visionário cuja herança transcendeu o cinema e chegou até à publicidade, aos videoclipes
e aos videogames.
Assim, tanto para os nostálgicos do cinema transformador dos anos 1960 quanto para
aqueles que desejam compreender práticas estilísticas disseminadas no audiovisual contem-
porâneo, a imersão proposta por Carreiro no universo de Leone se dá em grande estilo, e traz
para o primeiro plano a obra de um criador que soube como poucos aliar a experimentação, a
agressividade, a cinefilia e o senso de diversão na cultura cinematográfica mundial.
O episódio que narro aqui ocorreu em 1966 (FRAYLING, 2000, p. 247-248). Era
sexta-feira, 23 de dezembro, data da estreia de Três Homens em Conflito (Il Buono, il Brutto,
il Cattivo, Sergio Leone, 1966) em Roma. O diretor Bernardo Bertolucci, então autor de dois
longas-metragens elogiados pela crítica, cumpria um hábito cinéfilo: assistir aos filmes que
mais aguardava na primeira sessão do primeiro dia em cartaz.
Bertolucci chegou ao cinema às 15 horas e viu que Sergio Leone, acompanhado do
então crítico (e futuro cineasta) Dario Argento, circulava pela antessala. Argento conhecia
Bertolucci e apresentou-o a Leone. Os três trocaram amabilidades e entraram na sala. Leone
e Argento ficaram na cabine, onde o cineasta dava instruções ao projecionista. Bertolucci
sentou no meio da plateia. Não se encontraram na saída.
No dia seguinte, véspera de Natal, Bertolucci recebeu um telefonema. Do outro lado
da linha, Leone queria saber o que ele havia achado de Três Homens em Conflito. Uma
resposta lacônica e positiva não bastou. Leone estava preocupado com a longa duração do
filme. Queria saber por que Bertolucci tinha gostado. A opinião de um colega respeitado pela
crítica era importante. Bertolucci achou que não tinha condições de dar uma opinião técnica
e ponderada. A resposta saiu intuitiva, de supetão:
Eu disse que havia gostado da maneira como ele filmava bundas de cavalos.
(...) Bem poucos diretores filmam bundas de cavalos, cuja visão na tela é menos
romântica e retórica. Um deles é John Ford. Outro é você”. (BERTOLUCCI
apud FRAYLING, 2000, p. 248)1.
Do outro lado do telefone, silêncio. Bertolucci pensou que havia soado grosseiro.
Então Leone o surpreendeu com uma oferta: escrever o roteiro do seu próximo filme. E
começou a contar algumas ideias que andava ruminando sobre mais um western, um lon-
ga-metragem que funcionaria como uma homenagem a todos os westerns, uma síntese de
momentos icônicos do gênero. Junto com Dario Argento, os dois começaram a trabalhar na
semana seguinte. Em dois meses, tinham escrito o primeiro tratamento de Era uma Vez no
Oeste (C’era una volta il West, Sergio Leone, 1968).
Embora eu nunca tenha prestado atenção em bundas de cavalos – muito menos na
maneira como Leone as filmava –, minha paixão cinéfila surgiu por causa do impacto que os
spaghetti westerns exerceram em mim durante a adolescência. O impulso que disparou em
mim o interesse em estudar história e teoria do cinema, e que me levou gradualmente até este
livro, foi concretizado pela mesma razão que levou Bertolucci a perceber que Leone filmava
de maneira diferente que a maioria dos diretores de westerns: o estilo.
1 Tradução nossa. Todas as citações de textos em língua estrangeira incluídas neste livro foram vertidas
pelo autor para o português. Quando necessário, para dirimir alguma possível distorção na tradução, o
texto na língua original será acrescentado em nota.
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Meu interesse por cinema foi despertado durante os anos 1980, pelos filmes exibidos
em um espaço semanal dedicado pela TV Record a filmes pertencentes ao ciclo de spaghetti
westerns. Esse espaço televisivo se chamava Bangue-Bangue à Italiana. Todas as quartas-
-feiras, a partir das 21h, a Record exibia algum das cinco centenas de longas-metragens
realizados por produtores independentes atuando em Cinecittà, nos anos 1960 e 1970.
Numa época pré-videocassete, as sessões na TV formavam minha dieta cinematográ-
fica básica. O dia da semana era especial porque todos se sentavam na sala para acompanhar
as aventuras daqueles heróis cínicos, com aparência de mendigos, de mira infalível, que
circulavam pelas estradas poeirentas do Velho Oeste. Depois de 1997, quando comecei a
atuar como crítico de cinema em um jornal do Recife, retornei aos poucos ao spaghetti west-
ern. Inicialmente, por mera curiosidade, e munido apenas de um punhado de fragmentos
de memórias. Aos poucos, enquanto revia filmes do ciclo, comecei a constatar – não sem
surpresa – que grande parte dos fragmentos guardados na memória pertencia aos filmes de
um único diretor: Sergio Leone. Essa constatação me deixou intrigado. Foi ela que me levou,
indiretamente, até esta pesquisa.
A questão que estava no centro de minha curiosidade pode ser resumida na seguinte
frase: como é possível que uma criança de 11 anos, sem nenhum conhecimento sobre histó-
ria, crítica ou teoria de cinema, havia percebido intuitivamente que um cineasta solucionava
seus problemas de representação de maneira mais destacada do que outros, cujos filmes eram
semelhantes (mas, obviamente, não iguais)? A resposta nos remete ao episódio das bundas de
cavalo. Eu havia percebido que Leone filmava de maneira distinta de outros diretores, mes-
mo que essa diferença fosse mínima aos olhos de um leigo. Havia uma centelha aí esperando
para ser transformada numa fogueira.
Depois de assistir a um quinto de toda a produção de spaghetti westerns (mais de 150 tí-
tulos pertencentes ao ciclo foram vistos ou revistos no decorrer da pesquisa, entre 2009 e 2013),
posso afirmar com segurança que a maior parte dos cerca de 550 spaghetti westerns produzidos
entre 1962 e 1978 conta variações do mesmo enredo, possui personagens parecidos, foi filmada
nas mesmas cidades cenográficas, com os mesmos atores e técnicos. Dezenas de diretores que
trabalhavam no gênero utilizavam os mesmos recursos estilísticos. Quanto mais filmes eu via,
mais ficava intrigado. Por que razão Leone se destacou diante dos olhos de uma criança que
nada sabia sobre os contextos de produção em que ele e os colegas trabalhavam?
Historicamente, é possível alegar que Leone foi um pioneiro. A primeira grande pes-
quisa sobre o spaghetti western (realizada nos anos 1980 pelo inglês Christopher Frayling)
confirma Leone como o primeiro cineasta do ciclo a propor certas revisões dos esquemas
estilísticos e narrativos disponíveis para problemas de representação do western. Consisten-
temente, ele revisava esquemas dominantes que haviam sido estabelecidos dentro do gênero
norte-americano. Algumas dessas soluções foram copiadas por outros diretores, dentro e fora
do ciclo; elas extrapolaram a obra de Leone e, ainda hoje, podem ser identificadas em filmes
contemporâneos que nada têm a ver com o gênero western. Tudo isso pode ser comprovado
através da análise estilística rigorosa que esperamos realizar ao longo deste livro; mas esse
raciocínio ainda não explica um ponto central da argumentação: por que momentos dos fil-
mes assinados por Leone ficaram retidos, daquela experiência na infância, enquanto tantos
outros momentos similares, oriundos de filmes de outros diretores, se perderam?
Um filme conta uma história. Mas uma história criada com luz, sons, cores e movi-
mento. Muitas vezes, não é o que o diretor filmou que faz um filme emocionar as pessoas. É
a maneira como ele filmou; são os recursos estilísticos e narrativos acionados pelo cineasta
para narrar a história. O conceito de estilo, nos termos definidos por Bordwell2, funciona
como ponto de partida deste livro.
Ressalte-se: não se pretende defender aqui que Leone foi o melhor diretor de spaghetti
westerns. Tal afirmação aciona forças que vão muito além da análise estilística, horizonte
teórico no qual esta pesquisa pretende se mover. Poderíamos desfiar um rosário de argumen-
tos para explicar a preferência pela obra de Leone, em termos de gosto e juízo de valor, evo-
cando a subjetividade dos conceitos. Robert Stam questiona: “Por que alguns espectadores
adoram e outros odeiam os mesmos filmes?” (STAM, 2004, p. 267). A teoria do cinema não
oferece uma resposta absoluta para essa pergunta.
Lidar com aspectos subjetivos como gosto e valor não é a proposta principal deste li-
vro. Acreditamos que uma análise estilística rigorosa pode esclarecer, com bastante precisão,
a amplitude da contribuição exercida por Leone nos processos de revisão e síntese dos esque-
mas narrativos dominantes do período clássico do cinema (1930-1960), levados a cabo por
vários cineastas atuantes nos anos 1960; e achamos, também, que essa análise pode ajudar a
formular uma explicação coerente para as questões que levaram a esta pesquisa.
A importância do estilo dentro da obra de Leone é inquestionável. Peça a qualquer pessoa
que explique porque gosta ou não dos filmes de Leone e verá que todos citam aspectos estilís-
ticos – os close-ups extremos de olhos, a ironia, o tratamento particular do tempo diegético etc.
– antes mesmo de mencionar aspectos do enredo. Em depoimentos a Laurent Tirard, Jean-Pierre
Jeunet cita o tratamento “lúdico” (TIRARD, 2006, p. 58) dado por Leone ao estilo como razão
primeira para se tornar um cineasta; e Pedro Almodóvar usa os close-ups extremos de Leone
como exemplo de um recurso “completamente falso” (TIRARD, 2006, p. 40). Opiniões profun-
damente divergentes sobre um mesmo tópico: o estilo.
No entanto, como o teórico norte-americano David Bordwell adverte, a estilística per-
manece uma disciplina menos importante dentro do campo dos estudos cinematográficos.
Esta afirmação explica, em parte, o fato de Leone ser visto como um diretor mais famoso do
que influente. Os filmes dele alcançaram enorme popularidade desde os anos 1960, e essa
2 Uma circunscrição mais precisa do termo estilo será efetuada no início do capítulo 1.
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popularidade foi acompanhada por um processo gradual de revalorização crítica. Mesmo
assim, Leone continua a não ser considerado seriamente como um diretor historicamente
importante. Para a maioria das pessoas, inclusive estudiosos e pesquisadores do cinema, ele
não está à altura de Godard, Bergman, Fellini e Antonioni – a geração de cineastas europeus
contemporânea dele, consagrada como fundamental para o desenvolvimento da tradição ci-
nematográfica.
Como um todo, o spaghetti western não passa de nota de rodapé em livros de história
do cinema. Existem muitas razões que contribuem para explicar esse relativo apagamento
e várias delas serão analisadas ao longo deste livro, mas a principal, que antecipamos aqui,
está resumida na constatação de Bordwell (2008, p. 58): a maior parte dos historiadores do
cinema narra o desenvolvimento da arte cinematográfica tendo como eixo condutor relações
estabelecidas entre filmes e práticas sociais; entre obras e contextos socioculturais, políticos
e econômicos que marcaram o século XX. Nesses relatos, a análise das práticas estilísticas
de diretores tem sido colocada em segundo plano. E como a contribuição de Leone se deu
principalmente no terreno da estilística, ele permanece em segundo plano.
Enfatizando como a análise do estilo tem ocupado maior destaque em disciplinas mais
consolidadas, como a História da Arte, Bordwell tem sido um dos poucos pesquisadores do
cinema a investir nesse caminho. As pesquisas realizadas por ele (sozinho ou em parceria
com outros estudiosos, como Kristin Thompson e Janet Steiger) são, junto com as investiga-
ções de Barry Salt (2009), as tentativas mais significativas de estudar o desenvolvimento da
arte cinematográfica através da análise do estilo.
O débito deste texto para com a teoria cognitivista de Bordwell é incontornável; esse
débito pode ser constatado através das muitas citações a livros dele que encontraremos nas
próximas seções. A abordagem de Bordwell destaca maneiras como a mente humana percebe
as representações cinematográficas. Por um momento, ela deixa de lado as conexões entre
filmes e práticas sociais para se concentrar no modo como os diretores constroem a narrativa,
e como o resultado das escolhas operadas nesse processo de construção é percebido pelo
espectador; ou seja, a análise fílmica resultante deste método olha mais para dentro do filme
do que para fora dele. A abordagem resgata elementos da semiologia do cinema de Christian
Metz, disciplina com a qual o cognitivismo compartilha semelhanças. É dentro desta moldu-
ra teórica, situada entre o cognitivismo e a semiologia, que se situa este livro.
No entanto, apesar de predominante, a abordagem cognitivista não foi adotada de
forma estanque ao longo deste estudo. O próprio Bordwell não o faz; ele diz preferir uma
metodologia transdisciplinar, pois admite que os diversos contextos em que o diretor realiza
filmes, e nos quais os espectadores consomem esses mesmos filmes, atravessam obrigatoria-
mente as decisões criativas que constituem o estilo. Assim, para realizar uma análise estilís-
tica minuciosa, deve-se sempre ter em conta o papel exercido pelos contextos nas escolhas
operadas pelo artista, como nos ensina Gombrich:
(...) o que interessa aqui, do ponto de vista do método, é que um ato de escolha
tem apenas significação sintomática, e só é expressivo de alguma coisa se pode-
mos reconstruir a situação em que se deu a escolha (GOMBRICH, 2007, p. 18).
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A teoria de Bordwell abre espaço nesse grupo de renovadores para alguns nomes de
gerações anteriores, como Orson Welles, Robert Bresson, Akira Kurosawa e Alfred Hitch-
cock. De modo geral, Bordwell aponta para o mesmo grupo de realizadores consagrados. O
ponto de maior originalidade (e também de discórdia) de sua teoria é mesmo a negação da
ideia de ruptura, em prol da noção da intensificação. Mas a percepção do fenômeno é a mes-
ma – nos anos 1960, os cineastas começaram a alterar suas práticas narrativas e estilísticas
– e seus protagonistas, também.
Ao rever os westerns de Leone, me parece evidente que há uma conexão entre esses
filmes e a poética da continuidade intensificada, notável especialmente no cinema de gênero
contemporâneo. Desde meados dos anos 1960, Leone já utilizava certos recursos estilísticos
e narrativos em apontavam em direção a essa intensificação, revisando (sem romper com) os
esquemas narrativos e estilísticos que compunham a tradição a partir da qual ele trabalhava.
Mais: algumas das práticas estilísticas e narrativas que sinalizam essa operação, e que por
vezes assinalam também uma assinatura autoral, são em alguns casos substancialmente dife-
rentes daquelas adotadas pelos diretores modernistas, muito mais respeitados.
Os filmes de Leone apontavam para o mesmo rumo, mas o modo como ele filmava era
diferente de Godard, Bergman e companhia. Ele não estava simplesmente replicando os novos
recursos de estilo e narrativa introduzidos nos esquemas dominantes da prática cinematográ-
fica pelos demais cineastas dos anos 1960. Ele produzia algo particular. Close-ups (sobretudo
extremos3) em grande quantidade; realismo4 grotesco (combinado com um tom paródico e ir-
reverente) de cenários e figurinos; perfil amoral e violento do herói individualista; tratamento
distendido do tempo fílmico dado aos momentos de tensão (sobretudo os duelos); representação
gráfica da violência; estrutura narrativa cronologicamente fragmentada, privilegiando momen-
tos de ação física; inclusão de elementos diegéticos nas composições musicais; uso dramático
de ruídos e silêncios. Essas e outras ferramentas são alguns dos recursos narrativos e estilísticos
que marcaram presença nos filmes dele de modo recorrente, buscando a intensificação da expe-
riência fílmica. Todas consistem de revisões ou sínteses estilísticas, que se juntaram ao reper-
tório de técnicas introduzidas pelos diretores modernistas europeus, para compor os esquemas
que constituem, desde então, a poética da continuidade intensificada.
Várias das características elaboradas por Leone podem ser percebidas – muitas vezes
submetidas a novos processos de atualização, revisão e adaptação – em filmes contemporâ-
neos, os quais continuam ainda hoje a exacerbar gradualmente essa noção de intensificação
(BORDWELL, 2006, p. 119). O uso de close-ups extremos de rostos, por exemplo, aumen-
tou exponencialmente desde meados dos anos 1960, quando nenhum outro cineasta além de
Leone usava o recurso de maneira tão ostensiva e abundante; os heróis se tornaram cada vez
mais falhos e de moral duvidosa; e assim por diante.
3 Como serão mencionados diversas vezes ao longo do livro, é importante ressaltar a diferença entre
close-ups e close-ups extremos (em inglês, big close-ups). No primeiro caso, o close-up tradicional
mostra o rosto e os ombros do personagem, deixando algum “ar” sobre sua cabeça. No segundo, menos
comum, o rosto é enquadrado por inteiro, do queixo à testa. Planos que cortam a ponta do queixo e o
topo da testa, bem como aqueles que focalizam apenas partes do rosto (olhos, boca, nariz), também são
considerados close-ups extremos.
4 O termo “realismo” é usado neste livro como sinônimo de “verossimilhança”, evocando uma forma
de representação do Velho Oeste mais próxima da realidade da época do que os filmes norte-america-
nos que retrataram o mesmo período histórico.
Embora Leone tenha trabalhado num gênero popular, sua reinterpretação extra-
vagante e altamente pessoal das convenções desse gênero foi tão significativa
quanto os esforços dos diretores de cinema de arte que revisaram e desafiaram a
tradição neorrealista. (BORDWELL; THOMPSON, 2009, p. 418).
5 O maior banco de dados de cinema da Internet possui 17 milhões de visitantes registrados com direito
a voto. Para ser incluído na lista dos 250 melhores, destacada na homepage, um filme precisa obedecer
aos seguintes critérios: (1) ter mais de 45 minutos; (2) receber pelo menos 1.300 votos; e (3) ser uma
obra de ficção, o que exclui da lista os documentários.
6 Tarantino votou em Três Homens em Conflito como melhor filme da história do cinema na vota-
ção promovida pela publicação britânica Sight & Sound, em 2002. A revista inglesa publica listas de
melhores filmes, compiladas entre centenas de diretores e críticos de todo o mundo, a cada dez anos,
desde 1952.
23
A passagem contém um paradoxo revelador. Bordwell e Thompson afirmam que as
práticas estilísticas e narrativas de Leone foram tão importantes quanto aquelas operadas
pelos diretores modernistas europeus. Nesse caso, é difícil compreender porque todos eles –
Godard, Truffaut, Antonioni, Bergman e Fellini, entre outros – têm trechos de filmes analisa-
dos em Boxes graficamente destacados, enquanto Leone fica restrito a uma menção circuns-
tancial. De fato, a frase traz duas expressões que ajudam a esclarecer o paradoxo: (1) Leone
trabalhou num ciclo de cinema feito para consumo popular, que por sua vez estava incluído
num gênero fílmico também de caráter popular (a palavra “embora” explicita o preconceito
dos autores); (2) os grandes diretores modernistas merecem mais respeito porque fazem ou
faziam cinema “de arte”.
Em síntese, parte de nosso problema de pesquisa está ligado ao relativo apagamento a
que os filmes de Leone foram submetidos, tanto na crítica quanto no âmbito dos estudos ci-
nematográficos. Parece-nos claro que Leone efetivamente teve um papel, ao longo dos anos
1960 e 1970, no processo de desenvolvimento e consolidação de alguns dos esquemas que
compõem a continuidade intensificada. Entretanto, esse papel nunca foi analisado a fundo.
Tudo isso nos leva a formular duas questões que pretendemos responder nas próximas pá-
ginas: qual foi, afinal, a efetiva contribuição oferecida por Sergio Leone a essa nova poética
da intensificação? E por que razões essa contribuição tem sido minimizada pelos estudiosos?
O livro deseja responder a essas duas perguntas. O percurso que seguiremos ao longo
do texto, portanto, contém duas trajetórias sobrepostas. Na primeira, tentaremos circunscre-
ver a contribuição de Leone à continuidade intensificada com o máximo possível de exati-
dão. Na segunda, partiremos da hipótese de que o fato de Leone ter trabalho exclusivamente
com o cinema de gênero – e, ainda mais significativamente, num ciclo popular e estrangeiro
de um gênero visto como intrinsecamente norte-americano, por lidar com um período central
da formação da identidade cultural dos Estados Unidos – está na raiz do apagamento.
Tentaremos mostrar que esse processo de desvalorização teve origem na recepção ne-
gativa reservada a Leone pelos críticos dos anos 1960. Naquela época, os filmes dele (como
todas as obras ligadas ao spaghetti western) provocavam uma tendência ao juízo depreciativo
de valor, por emergirem de um sistema de produção que trabalhava com ciclos sucessivos
de gêneros populares feitos para consumo de massa – um consumo não-segmentado, não-
-especializado. A trajetória da recepção crítica aos filmes de Leone vai demonstrar como a
obra dele, inicialmente ignorada ou desprezada antes mesmo de ser vista com atenção, será
submetida a um processo gradual de revalorização, ao longo dos anos 1960 e 1970; mas essa
revalorização passava menos pela análise estilística e mais por uma leitura político-ideológi-
ca calcada no suposto potencial de resistência cultural contido nesses filmes. Ou seja, mesmo
os críticos que devotaram atenção a Leone não enxergaram suas intenções criativas.
Como evoluirá em dois trajetos paralelos, a pesquisa percorrerá dois movimentos so-
brepostos. O primeiro consiste em realizar uma análise fílmica minuciosa da obra de Leone,
com a finalidade de identificar com a maior precisão possível os padrões de estilo e narrativa
recorrentes nos filmes dele, e também avaliando de que forma esses padrões estabeleceram
revisões dos esquemas tradicionais em direção à continuidade intensificada. Nesse momento,
tentaremos conectar as práticas de Leone a uma rede de influências, limites e pré-condições
que ajudou a moldar esses recursos. O segundo movimento, por sua vez, extrapola os filmes
25
Os dois capítulos seguintes constituem a etapa mais encorpada do livro: a análise fíl-
mica propriamente dita, em que trechos selecionados de cada filme de Leone serão exami-
nados minuciosamente, para um estudo detalhado da recorrência dos padrões estilísticos e
narrativos. Tentamos rastrear as origens de cada recurso, ligando-as a contextos sócio-his-
tóricos, econômicos, culturais ou tecnológicos que possam ter levado Leone a adotá-los,
através de um processo de revisão dos esquemas dominantes de construção fílmica.
No segundo capítulo, procuramos enfatizar a análise dos recursos narrativos; a seção
lida, pois, com as duas primeiras vertentes da poética (chamadas de temática e construção
narrativa em larga escala). O terceiro capítulo faz o mesmo com a prática estilística (tercei-
ra vertente da poética). O uso de frames retirados dos filmes de Leone constitui um suporte
visual importante para o método de análise utilizado.
Por fim, o quarto capítulo conclui o texto propondo um salto historiográfico que traça
conexões entre os padrões de estilo e narrativa recorrentes na obra de Leone e algumas fer-
ramentas características da continuidade intensificada, utilizadas em muitos filmes desde os
anos 1970 até hoje, sob as mais variadas condições de produção.
Esta última seção tenciona deixar claras as impressões digitais deixadas pela obra de
Leone no cinema contemporâneo, mostrando como algumas das revisões dos esquemas leva-
das a cabo por ele, nos anos 1960 e 1970, foram reapropriadas, revisadas e sintetizadas por
diretores posteriores, entre os quais Brian De Palma, John Carpenter, Quentin Tarantino e os
irmãos Larry e Andy Wachowski. Conclui-se que mesmo após as bundas de cavalos pratica-
mente desaparecerem da paisagem visual do cinema contemporâneo, assim como aconteceu
como o próprio gênero western, seremos capazes de confirmar a contribuição que ele ofere-
ceu à poética da continuidade intensificada.
No campo dos estudos narrativos e estilísticos, a poética consiste numa espécie de en-
genharia reversa. O trabalho de um engenheiro reverso consiste em desconstruir um artefato
físico (televisão, computador etc.) ou matemático (um software, por exemplo), para desco-
brir como ele funciona. Desta forma, o engenheiro reverso é capaz de desvendar as estruturas
internas que fazem aquele artefato funcionar, e então copiá-las em outros artefatos.
Nos estudos cinematográficos, o pesquisador da poética parte de determinados obje-
tos-filme para, investigando sua estrutura interna, identificar os princípios que governam a
construção narrativa, de forma a tornar possível a aplicação desses princípios a outras obras.
David Bordwell (2008, p. 17) propõe uma poética do cinema dividida em três ver-
tentes: a temática, a construção narrativa em larga escala e a prática estilística. As três se
interpenetram em vários níveis, de modo que é difícil estudá-las separadamente. Questões
temáticas interferem no uso de recursos de estilo, que por sua vez influenciam ou são deter-
minados pela construção em larga escala, e assim por diante.
A vertente temática, como o nome indica, destaca elementos narrativos mais imedia-
tos. Temas, relações causais entre os eventos que compõem a trama, perfil psicológico de
personagens, uso de arquétipos, texto e subtexto, diálogos, questões de gênero, raça e classe
social caem nesta definição.
A construção narrativa em larga escala consiste num campo de transição entre a pri-
meira e a terceira vertentes. Ela lida com a estrutura narrativa geral, responsável pela pro-
gressão do enredo e pela modulação dramática. Quem pesquisa esta vertente está interessado
nas maneiras como as partes de um filme (planos, cenas e sequências) se relacionam entre si,
para constituir um todo compreensível.
29
A última vertente consiste na prática estilística. Os pesquisadores dessa vertente lidam
com padrões visuais e sonoros, um conjunto de ferramentas que inclui composição pictóri-
ca, enquadramento, iluminação, cores, cenários, figurinos, uso de ruídos, música, diálogos,
silêncios e muitos outros.
O conceito de continuidade intensificada surgiu da constatação de que, a partir dos
anos 1960, os diretores de cinema passaram a utilizar um repertório cada vez mais amplo
de recursos narrativos e estilísticos, intensificando a poética do cinema em direção a uma
experiência fílmica cada vez mais visceral. Bordwell sugere que os recursos de estilo e táticas
narrativas introduzidos desde então não provocaram uma ruptura com os princípios gerais da
poética, que ainda continuam valendo:
O que mudou, tanto nos registros mais conservadores quanto nos mais vanguar-
distas, não foi o sistema estilístico da construção cinematográfica, mas certas
ferramentas funcionando dele. (...) Desde os anos 1960, essas técnicas foram
trazidas para o primeiro plano, de formas inéditas. (...) Enquanto se tornavam
mais proeminentes, essas técnicas alteraram a textura de nossa experiência fíl-
mica. (BORDWELL, 2006, p. 119).
Para melhor ressaltar sua posição, Bordwell traz à tona a noção de continuidade clás-
sica, que resume nos seguintes termos:
Bordwell assegura que a partir dos anos 1960 a estabilidade desse sistema começou
a ser abalada pela introdução de novas técnicas estilísticas e narrativas. Para ele, as novas
técnicas não rompiam com as práticas estilísticas e narrativas anteriores, fazendo na verdade
uma operação de natureza diferente:
De maneira geral, as novas ferramentas (...) não desafiam o sistema; elas o re-
visam. Longe de rejeitar a continuidade tradicional em nome da fragmentação
e da incoerência, o novo estilo aponta para uma intensificação das técnicas es-
tabelecidas. A continuidade intensificada é a continuidade clássica amplificada,
Em sua pesquisa, Bordwell mapeou alguns dos recursos narrativos e estilísticos usados
pelos cineastas para intensificar a continuidade clássica, dos anos 1960 até hoje. Na temática,
alguns desses recursos seriam: representações mais realistas do sexo e da violência; prota-
gonistas mais falhos, humanos, alienados, solitários, inseguros ou moralmente ambíguos; a
tendência ao alusionismo (isto é, às citações a filmes anteriores, às vezes de forma crítica,
outras de modo nostálgico e reverente); a caracterização mais densa de personagens, pro-
tagonistas ou não, tornando-os seres mais complexos; e a atenção realista aos detalhes e à
acuidade histórica (worldmaking).
Na construção narrativa em larga escala, algumas características da continuidade in-
tensificada seriam: a divisão menos clara da narrativa em três atos; as narrativas em rede
(com diversos protagonistas); a fragmentação cronológica e espacial das tramas; relações
causais menos evidentes e mais ambíguas entre eventos que compõem a trama; trechos – ou
até filmes inteiros – de narrativa subjetiva (em que a ação dramática acontece apenas dentro
da mente de um personagem, às vezes sem deixar isto claro ao público).
No que se refere à prática estilística, a continuidade intensificada seria encontrada em
recursos como: a montagem com planos cada vez mais curtos; o uso de lentes de distâncias
focais diferentes (muitas vezes dentro da mesma cena); a câmera mais próxima dos rostos dos
atores, tendendo a enquadrar um de cada vez; os movimentos de câmera incessantes, com uso
proeminente de Steadicam7, traveling e gruas; o uso frequente do rack focus (técnica usada
para direcionar a atenção do espectador dentro de composições pictóricas com mais de uma
camada de ação, focalizando com nitidez apenas uma e depois outras, progressivamente);
e, sugerindo um tratamento mais fragmentado do espaço e do tempo fílmicos, na economia
de planos de conjunto. Juntas, essas ferramentas estilísticas teriam os seguintes propósitos:
Este trecho traz à tona a estreita ligação entre a poética da continuidade intensificada
e a questão do estilo individual8. Nesse ponto, é fundamental demarcar uma diferença entre
7 Sistema de pesos e molas acoplado à câmera que, afixada no ombro do operador, permite a mobilida-
de total deste, sem que a imagem resulte tremida ou desfocada.
8 O uso do termo estilo, ao longo deste livro, se aplica sempre ao conjunto de escolhas narrativas e
estilísticas utilizado por um diretor para dar significado a uma obra de arte. A ênfase recai no caráter
individual do termo. Quando falamos de estilo, estamos nos referindo às práticas recorrentes de deter-
minado artista, e não ao movimento cinematográfico com o qual ele é identificado.
31
os conceitos de prática estilística e estilo, conforme adotados neste livro. Enquanto a prática
estilística consiste no conjunto de ferramentas que constituem a terceira vertente da poética
do cinema, o estilo deve ser compreendido como um conjunto de padrões recorrentes na obra
de determinado diretor, e que podem abarcar todas as vertentes da poética. O estilo consiste
na soma de todas as escolhas técnicas e narrativas que caracterizam a obra de um cineasta.
Este livro trabalha com os filmes de Sergio Leone; aqui, portanto, o termo estilo será utili-
zado como sinônimo de assinatura estilística individual. Essa assinatura está expressa (consciente-
mente ou não) nas soluções encontradas pelo diretor para representar, em imagens e sons, aquilo
que está no roteiro. A assinatura estilística nasce das soluções encontradas por cada cineasta para
resolver problemas de representação de quaisquer ordens (narrativa, estilística, logística, opera-
cional etc.) com os quais um diretor se depara no dia a dia de seu ofício. Cada cineasta opera suas
próprias escolhas. Quando constituem um padrão recorrente, estas definem o estilo do diretor.
Normalmente, não é o estilo que determina as escolhas narrativas e estilísticas ope-
radas por um cineasta; é o contrário. Este procedimento consiste no que Bordwell (2009, p.
320) denomina de paradigma do problema/solução e que pode ser resumido sinteticamente
da seguinte maneira: o processo de contar uma história num meio audiovisual consiste, gros-
so modo, numa sucessão constante de problemas de representação, que o diretor soluciona
fazendo escolhas a partir de um repertório anteriormente disponível (e que, em muitos casos,
o diretor cria, revisa, sofistica, sintetiza ou reformula).
Para cada problema, existe uma série de soluções possíveis, entre as quais o artista deve
escolher uma (ou mais). O paradigma do problema/solução consiste na adaptação, para o meio
cinematográfico, do conceito de esquema (GOMBRICH, 2007). Os artistas não criam a partir
do nada. Eles trabalham dentro de uma tradição que dispõe de todo um repertório de recursos,
ou normas de estilo, que podem copiar, reformular, sintetizar ou rejeitar. O conjunto de recursos
que compõe esse repertório constitui os esquemas. Cada artista ajusta os esquemas disponíveis
a novas possibilidades oferecidas pelos contextos socioculturais, econômicos, tecnológicos e
ideológicos em que trabalha. Defrontado com uma solução disponível para problema de repre-
sentação, os diretores têm quatro opções: replicam, revisam, sintetizam ou rejeitam tal solução.
Esse é o paradigma do problema/solução. Ele nos ensina que determinada solução,
usada com sucesso para resolver um problema de representação, tende a ser integrada aos
esquemas circulantes dentro da atividade cinematográfica. As técnicas que têm sucesso da
resolução de problemas se tornam parte integrante de esquemas. Vista dessa perspectiva, a
poética da continuidade intensificada consiste de um conjunto de esquemas visuais, sonoros
e narrativos que circulam na comunidade cinematográfica desde a década de 1960.
Quando um diretor é confrontado com problemas de representação idênticos, e solu-
ciona esses problemas recorrendo sempre às mesmas ferramentas, ele cria padrões recorren-
tes. Esses padrões determinam o que chamamos de estilo individual:
O termo estilo deve ser considerado em sentido amplo, como a arte de contar
uma história em imagens e em sons; compreende a escolha dos atores e dos ce-
nários, as regulações técnicas, a disposição dos pontos de vista e dos pontos de
escuta etc. Tudo é importante em matéria de estilo: a abertura da objetiva e a cor
É possível incluir como parte do estilo de Hitchcock seu pendor pelo suspense
no tratamento dos diálogos ou o tema persistente do homem inocente perse-
guido por algo que não fez. De qualquer forma, características recorrentes de
encenação, filmagem, edição e som sempre serão parte fundamental do estilo de
um diretor. (BORDWELL, 1998, p. 4).
33
Nesse sentido, ao invés de pensar a cultura como causa última do estilo, ele propõe que os
fatores externos sejam considerados antes como um ponto de partida do processo de criação,
uma espécie de tela em branco com limites definidos por esses fatores externos, e sobre a
qual o artista opera uma série de escolhas narrativas e estilísticas para solucionar problemas
específicos de representação:
Tais escolhas podem ter sido planejadas antes de filmar, podem ter emergido
espontaneamente durante a filmagem ou se imposto na pós-produção. Para fa-
zer uma distinção supersimplificada, podem ser “escolhas livres”, que realizam
realmente as intenções do diretor, ou podem ser “escolhas forçadas”, nascidas de
limites externos, como tempo, dinheiro ou falta de poder. Dessa maneira, para
explicar mudança e continuidade dentro do estilo do filme, temos de examinar as
circunstâncias que influenciam mais diretamente a execução do filme – o modo de
produção, a tecnologia empregada, as tradições e o cotidiano do ofício favorecido
por agentes individuais. Fatores mais distantes, tais como fortes pressões culturais
ou demandas políticas, podem manifestar-se somente através dessas circunstân-
cias próximas, nas atividades dos agentes históricos que criam um filme. O espírito
do tempo não liga a câmera. (BORDWELL, 2009, p. 69).
35
O primeiro item recebeu a ajuda de uma lei federal, obrigando as grandes compa-
nhias estrangeiras a gastar dentro da Itália parte do dinheiro arrecadado dentro do país com
as produções feitas em Roma (CAMARGO; VELLOZO; PEREIRA, 2007, p. 37). Quanto
ao segundo item, os produtores estabeleceram um sistema de produção baseado em ciclos
temáticos. Filmes vinculados a gêneros diversos eram produzidos a baixo custo, em grande
número, e tão logo algum deles se destacasse nas bilheterias, tinha a trama e os recursos es-
tilísticos copiados imediatamente por todos os produtores. Na maioria das vezes, tratava-se
simplesmente de investir em variações do mesmo filme, através de uma fórmula padroniza-
da, que consistia num esquema rígido de recursos estilísticos e narrativos.
Esse sistema de investimento em filmes de gênero era cíclico. Cada ciclo durava até
que a fórmula narrativa começasse a dar sinais de desgaste (ou seja, as bilheterias desses
filmes começassem a declinar). Quando isso acontecia, os produtores iniciavam uma nova
rodada de procura por outro gênero que atendesse às expectativas do público. Aos poucos,
foi estabelecido um sistema de produção com as seguintes características:
37
Em meados da década de 1950, Cinecittà recebeu muitas equipes americanas. Foram
filmados em Roma grandes épicos, como O Manto Sagrado (The Robe, Henry Koster, 1953),
Helena de Tróia (Helen of Troy, Robert Wise, 1956), Ben-Hur (William Wyler, 1959) e
Sodoma e Gomorra (Sodom and Gomorrah, Robert Aldrich, 1962). A legislação que obri-
gava Hollywood a investir em território italiano parte dos lucros da bilheteria desses filmes
alimentou o ciclo popular italiano, pois a parcela do resultado financeiro reinvestida em Ci-
necittà levava os produtores norte-americanos a filmar mais vezes em Roma, ou a financiar
produções menores realizadas por equipes italianas.
Além de ser o ciclo popular imediatamente anterior ao spaghetti western, o peplum
também é o gênero que guarda mais semelhanças de estilo e narrativa com o spaghetti wes-
tern. Isso aconteceu porque muitos diretores que consolidariam carreiras dirigindo spaghetti
westerns começaram a dirigir filmes durante os pepla. É o caso de Sergio Corbucci (três
filmes), Domenico Paolella (sete) e Mario Bava (quatro).
Também foi o caso de Sergio Leone. Ele trabalhava com cinema desde os 16 anos,
quando exerceu os postos de figurante e quinto assistente de direção em Ladrões de Bicicle-
ta. Nos 13 anos que se seguiram até Os Últimos Dias de Pompéia (Gli Ultimi Giorni di Pom-
pei, Mario Bonnard, 1959), que dirigiu, substituindo o titular adoentado (embora não tivesse
recebido os créditos por esse trabalho), Leone executou uma variedade de serviços ligados à
produção cinematográfica, sobretudo como roteirista, assistente de produção e diretor assis-
tente. Ao todo, nesse período, trabalhou em 35 longas-metragens (FRAYLING, 2005, p. 16).
Leone dizia que reteve desse longo aprendizado a obsessão com a aparência
documental de um filme neorrealista italiano (detalhe que dava mais credibili-
dade às histórias), a fascinação com a logística necessária às grandes sequências
de ação, um repertório de técnicas e a determinação de evitar o desperdício
financeiro que via ocorrer nas superproduções hollywoodianas. A eficiência or-
çamentária das produções italianas menores era fortemente admirada por ele.
(FRAYLING, 2005, p. 16).
41
O primeiro seriado de western apareceu em 1949. Os números crescentes comprovam
o sucesso: no ano seguinte, eram três series; em 1951, oito. Esse crescimento chegou ao ápice
em 1959, quando 48 séries semanais de western estavam em exibição nas três redes de televi-
são aberta dos Estados Unidos (BUSCOMBE, 1988, p. 428). Em 1970, após uma década em
que as estatísticas de produção e consumo de westerns declinaram consistentemente, ainda
havia onze séries de western em exibição na TV dos EUA.
Uma consequência inesperada dessas alterações no sistema de produção, distribuição
e exibição de filmes foi o progressivo desinteresse do público pelo western na tela grande.
Como os faroestes B eram exibidos na televisão, o público começou a deixar de ir ver as
produções do gênero no cinema. Esse desinteresse pode ser comprovado pelas estatísticas de
produção do gênero no período. Em 1950, 150 filmes do gênero western foram lançados nos
Estados Unidos (34% da produção total de Hollywood); em 1958, esse número caiu para 54
(22% d a produção dos estúdios); em 1963, foram filmados 11 faroestes nos EUA. Apenas
9% de toda a produção de Hollywood consistiam de westerns (BUSCOMBE, 1988, p. 427).
No entanto, fora dos Estados Unidos a demanda pelo gênero continuava forte. Um
exemplo disto envolveu o filme Sete Homens e um Destino (The Magnificent Seven, John
Sturges, 1960), que faturou US$ 3 milhões nas bilheterias americanas, tendo sido considera-
do fracasso no país de origem9. Em vários países da Europa, no entanto, foi o maior sucesso
de bilheteria de 1961: “Para preencher uma lacuna em seus mercados internos, vários países
europeus decidiram começar a fazer seus próprios westerns” (HUGHES, 2004, p. xii).
O raciocínio explica porque os produtores de Cinecittà resolveram apostar no western
como um dos gêneros com potencial para substituir os miniépicos sandália e espada. Além
disso, eles tinham condições de infraestrutura bastante favoráveis no continente; o bastante
para criar uma espécie de linha de montagem cinematográfica capaz de produzir de dois a
três filmes por semana, número considerado ideal para satisfazer o apetite das plateias euro-
peias por entretenimento cinematográfico popular.
Em 1959, o deserto de Almería, a nordeste de Madri (Espanha), havia servido de
cenário para um western britânico. Para realizar O Xerife do Queixo Quebrado (The Sheriff
of Fractured Jaw, Raoul Walsh, 1959), os produtores haviam construído uma cidade ceno-
gráfica, chamada Hojo de Manzanares. O set passou a ser aproveitado com regularidade nos
spaghetti westerns. Hojo de Manzanares aparece em todos os filmes de Sergio Leone, sempre
com a “maquiagem” retocada pelo diretor de arte Carlo Simi, tendo sido a principal locação
de Por um Punhado de Dólares (1964).
O primeiro western de Sergio Leone não inaugurou o gênero na Itália. Em 1964, Ci-
necittà produziu 27 longas-metragens do gênero. Por um Punhado de Dólares foi o 25º. Mas
o sucesso alcançado pelo filme, superior à resposta de público de qualquer um dos faroestes
anteriores, convenceu os produtores de que o western reunia todas as condições para se tornar
o próximo ciclo de cinema popular capaz de sustentar a produção popular de Cinecittà.
Dois pesquisadores mapearam o spaghetti western em estatísticas. Thomas Weisser
(1992) contabilizou 555 filmes realizados entre 1960 e 1980; Bert Fridlund (2006) contou 546
longas-metragens no mesmo período. Fridlund atribui as pequenas diferenças a dois fatores, um
9 Estatística pesquisada no IMDb (www.imdb.com).
43
subjetivo (a decisão de incluir ou não determinados filmes na lista, como os títulos espanhóis
realizados entre 1959 e 1962) e outro objetivo (variações na metodologia usada para fixar o ano
de produção do longa):
Embora divergentes, os números das listas são bem próximos, o que nos permite fixar
o número de spaghetti westerns produzidos entre 1962 e 1978 em torno de 550. O que há de
comum em todos esses levantamentos estatísticos – e o elemento que os articula com este
livro – é o papel fundamental exercido pelos filmes de Leone no surgimento, na consolidação
e no desenvolvimento do ciclo de spaghetti westerns. O papel dele como criador de uma nova
abordagem narrativa e estilística para o gênero – uma revisão crítica dos esquemas dominan-
tes de representação do western que, como veremos, apontava em direção à continuidade
intensificada – é o elo que une todas as pesquisas realizadas sobre o fenômeno.
Levando isso em consideração, torna-se possível sintetizar a trajetória histórica da
produção de spaghetti westerns em Cinecittà tendo como eixo o trabalho de Leone. Os filmes
dirigidos por ele eram pontos de referência para os trabalhos dos demais diretores, tanto no
fator estilo quanto no aspecto narrativo; o uso intenso de close-ups extremos e flashbacks,
por exemplo, se tornaram artifícios utilizados por virtualmente todos os cineastas do spaghet-
ti western, graças ao raio de influência exercida por Leone.
O primeiro western de Leone foi viabilizado por três produtoras – uma italiana (Jolly
Film), uma espanhola (Ocean Film) e uma alemã (Constantin Film) – com orçamento de US$
200 mil (HUGHES, 2003, p. 4). O filme foi planejado como produção secundária, filmada
em simultâneo ao longa-metragem A Pistola Não Discute (Le Pistole Non Discutono, Mario
Caiano, 1964). As duas produções compartilhavam cenários e equipes técnicas, seguindo
uma tradição do modo de produção de Cinecittà: uma equipe trabalhando em dois filmes ao
mesmo tempo significava dois longas-metragens pelo preço de um.
Alex Cox (2009, p. 27) credita o sucesso de Por um Punhado de Dólares ao processo
de revisão dos esquemas do western americano. Cox afirma que, ao invés de se contentar
em criar uma variação das histórias contadas por outros diretores do gênero, aplicando as
soluções rotineiras de estilo para os problemas de representação, Leone tratou o filme como
projeto autoral, selecionando escolhas estilísticas incomuns.
Para começar, Leone não se contentou em trabalhar com a equipe selecionada por Ma-
rio Caiano. Ele escolheu profissionais e lutou para convencer seus produtores a contratá-los
também para o filme de Caiano. Foi responsável, por exemplo, pela aquisição do desenhista
de produção Carlo Simi, que acumulou direção de arte e figurinos em Por um Punhado de
Dólares e A Pistola Não Discute (COX, 2009, p. 29).
Mais e mais filmes têm se esforçado para oferecer um cenário mais rico, com-
plexo e detalhado, onde a ação dramática pode ser mais bem desenvolvida. Na
era dos estúdios [1930-1960], desenhistas de cenários e figurinistas se preocu-
pavam em criar um ambiente razoavelmente crível, mas no período que estamos
considerando [pós-anos 1960] esses esforços foram ampliados até um novo pa-
tamar. (BORDWELL, 2006, p. 58).
45
O cenário de Por um Punhado de Dólares era a fronteira mexicana, com seu deserto de
terra seca, areia e pedras, habitado mais por moscas e coiotes do que por seres humanos. Num
ambiente assim, caubóis e pistoleiros não podiam circular em roupas novas e coloridas; Simi
apostou num figurino envelhecido, com roupas rasgadas, sujas e desbotadas. Os chapéus
despejam nuvens de poeira no ar quando são sacudidos. Os homens têm queimaduras de sol,
vivem suados e com a barba por fazer.
Simi viria a ser, junto com o compositor Ennio Morricone, parte fundamental da equi-
pe criativa que acompanhou Leone nos filmes seguintes, ajudando-o a dar forma a suas
ideias, transformando conceitos em recursos de estilo. Ele fez a direção de arte e os figurinos
de todos os longas-metragens subsequentes (exceção feita a Quando Explode a Vingança,
cuja direção Leone assumiu com as filmagens em andamento).
A fotografia de Massimo Dallamano segue a mesma abordagem realista. As cenas
externas, filmadas no deserto, enfatizam o sol inclemente que transforma a vida na região
em um inferno, com os excessos de luz neutralizando os contrastes e contribuindo para dar
às cores uma textura quente e gasta. As cenas internas, registradas num museu sobre a vida
rural localizado em Madri, demarcam grande distância em relação aos westerns tradicionais:
são escuras, com pouca luz de enchimento, adotando um estilo de iluminação que valoriza os
contrastes do tipo chiaroescuro e reforça a dramaticidade das cenas.
47
Nos trabalhos de Leone, contudo, o herói tem perfil diferente. Ele é, na verdade, um
anti-herói. Vive à margem da sociedade e não tem qualquer interesse em se integrar a ela;
está sempre à procura de oportunidades para tirar proveito próprio; não hesita em usar a vio-
lência para se impor, mesmo que isso signifique recorrer a truques amorais, como atirar em
inimigos desarmados (algo que não acontecia em westerns americanos).
Convém registrar que o perfil do herói de Leone – essencialmente um personagem
repetido em todos os westerns que ele dirigiu, um arquétipo oriundo da tradição italiana da
commedia dell’arte – foi uma revisão intensificada do que Kurosawa havia feito em Yojimbo
(Akira Kurosawa, 1961), filme que inspirou o projeto de Leone a tal ponto que Kurosawa
o processou por plágio, ganhando a causa e ficando com os direitos do filme na Ásia, além
de parte dos lucros obtidos no resto do mundo (COX, 2009, p. 45). Mas Leone enumerava
outras influências além do filme de Kurosawa, que ele viu em Roma no outono de 1963:
Homero, Shakespeare, Dashiell Hammett, a Bíblia (o personagem de Clint Eastwood seria
uma referência ao Anjo Gabriel, constituindo-se num dos muitos simbolismos religiosos
presentes dentro do enredo), e a peça Arlecchino – Servitore di Due Padroni, (em português,
Arlequim – Um Servo com Dois Patrões), de Carlo Goldoni (1745), autor que não por coin-
cidência trabalhou dentro da tradição da commedia dell’arte.
A introdução desse anti-herói era uma inovação criativa. O ciclo popular havia encontrado o
elemento central de seu esquema narrativo, replicado por virtualmente todos os diretores: o anti-he-
rói taciturno, errante, sempre pronto a levar vantagem em tudo, que não se apega afetivamente com
nada e nem ninguém. O perfil deste herói trouxe a reboque outro recurso estilístico da continuidade
intensificada: a representação gráfica da violência. Nos filmes de Leone, muitos personagens –
mesmo o herói – são baleados, espancados, socados, torturados, assassinados a sangue frio. E tudo
isso é mostrado na tela, muitas vezes com a câmera colocada bem próxima da ação.
A questão da violência nos filmes inscritos no gênero western sempre foi de impor-
tância fundamental. Edward Buscombe (1988) afirma que a violência não tem significado
meramente formal, mas representa aquilo que o folclore norte-americano associa à experiên-
cia da vida na fronteira:
A violência é central para o western (...). Quando nos é dito que certo filme é
um western, esperamos que ele seja visualmente ambientado de forma a inscre-
vê-lo num recorte específico de espaço e tempo; qualquer que seja o enredo, a
violência da natureza e dos homens terá que ser parte essencial da paisagem; e
provavelmente seu clímax emocional e moral acontecerá durante um ato singu-
lar de violência. (BUSCOMBE, 1988, p. 232).
A música dos filmes de Leone também incluiu aspectos originais. Elementos da mú-
sica concreta estavam entre os recursos de estilo que inspiraram Ennio Morricone a escrever
a música de Por um Punhado de Dólares. Este conceito musical, criado em 1948 por Pierre
Schaeffer, consiste na utilização de ruídos naturais – portas abrindo, passos, vento, barulhos
de animais etc. – como parte integrante da composição musical. Morricone afirma que já
havia utilizado o conceito numa composição criada para um filme norte-americano, mas a
música em questão acabou recusada pelo outro diretor:
A ideia era deixar o público ouvir, por trás do tema musical, a nostalgia de deter-
minado personagem pela cidade. Escrevi a música incorporando sons urbanos,
como se os sons da cidade pudessem ser ouvidos à distância, na memória do
personagem. (...) Leone ouviu minha explicação, gostou e pediu que aplicasse
aquilo ao western. (MORRICONE, 2005, p. 92).
De fato, o tema de abertura pouco tinha em comum com o estilo neorromântico, ins-
pirado nos compositores europeus do século XIX (Franz Schubert, Johann Strauss, Gustav
Mahler), que era adotado por todos os compositores de Hollywood. A lógica de Morricone
era de que a música ouvida num ambiente rude como o Velho Oeste não deveria ser execu-
49
tada por sofisticadas orquestras, mas por instrumentos rústicos e/ou exóticos. Leone foi es-
pecífico ao instruir o compositor sobre o tipo de música que desejava: picaresca e ao mesmo
tempo dramática, com sabor cômico, mas também operística.
Seguindo esse conceito e inspirado pela musique concrète, Morricone criou um tema
principal com uma estrutura de canção pop, intercalando versos e refrão; a melodia principal
era solada por um assobio, e a harmonia, construída com guitarra elétrica, violões e um coral
masculino. A maior ousadia estava na percussão, que incorporava sons naturais retirados da
diegese: tiros, chicotadas, galopes de cavalo, sinos.
O tema completo, executado durante os créditos de abertura, influenciou praticamente
toda a música composta no ciclo do spaghetti western. Os assobios, a estrutura pop, as gui-
tarras elétricas, os corais masculinos foram copiados pelos demais compositores que traba-
lhavam para os produtores ítalo-espanhóis. É importante ressaltar que Morricone foi o mais
prolífico compositor do ciclo, tendo assinado duas dúzias de trilhas sonoras para spaghetti
westerns11. O resto da música do filme consiste em variações do tema principal. Um fraseado
de cinco notas, tocado por flauta (às vezes acompanhado por piano e bateria), é o leitmotiv12
que anuncia a presença do herói.
Para o duelo final, Leone pediu a Morricone um tema semelhante à canção mexicana
executada pelos vilões antes do confronto decisivo do clássico Onde Começa o Inferno (Rio
Bravo, Howard Hawks, 1959): um degüello – na tradição mexicana, um apelo para que o
adversário se renda antes do ataque final. Esse tipo de melodia tem uma origem histórica real:
em 1836, foi executada para solicitar a rendição do inimigo, pelo Exército do México, antes
da lendária batalha do Forte Álamo.
Este segundo tema também se mostraria influente no tipo de música que acompanha-
ria a maior parte das produções do ciclo de spaghetti westerns, em que o trompete é muitas
vezes o instrumento principal – uma convenção estilística totalmente particular deste ciclo,
já que a música usada por Hollywood e mesmo por outros ciclos do cinema popular italiano
costumava usar muito pouco esse instrumento.
É prudente assinalar, ainda, que os arranjos baseados em violões e trompetes eram
convenientes, do ponto de vista diegético. A música folclórica da fronteira entre Estados
Unidos e México emprega com frequência esses dois instrumentos, de forma seu uso evoca o
princípio do realismo, aplicado na direção de arte e nos figurinos, contribuindo para a cons-
trução de um universo mais multidimensional e coerente.
O sucesso obtido na Itália foi avassalador. Entre agosto e dezembro, com exibições em
só duas cidades (Roma e Florença), Por um Punhado de Dólares já havia se transformado na
maior bilheteria de 1964, obtendo um saldo de 430 milhões de liras (COX, 2009, p. 43). Por
volta de 1971, o filme havia ultrapassado os três bilhões de liras em faturamento (HUGHES,
2003, p. 14). O sucesso dava aos produtores de Cinecittà um gênero que funcionava como
substituto comercialmente viável aos pepla, voltando a atrair multidões para os cinemas.
11 É impossível saber exatamente quantos filmes do ciclo Morricone musicou, já que ele utilizava
diversos pseudônimos (como Dan Savio e Leo Nichols) quando fazia música para a indústria italiana.
O IMDb registra 492 trilhas compostas por Morricone em 40 anos de carreira.
12 Conceito de Richard Wagner, criado no século XIX, e que consiste em associar uma melodia carac-
terística a um personagem (ou grupo), sentimento ou situação dramática.
51
Essa cidade cenográfica seria reutilizada em outras produções, como Joe, o Pistoleiro
Implacável (Navajo Joe, Sergio Corbucci, 1966). Os recursos permitiram a Leone chamar
Clint Eastwood de volta, usando de novo o poncho, embora o personagem tivesse outro
nome. Por questão de direitos autorais, ele era chamado de Monco – Leone estava proces-
sando a Jolly Film, coprodutora do primeiro filme, por causa das acusações de plágio de
Yojimbo, e a firma queria impedi-lo judicialmente de usar o mesmo personagem.
O orçamento também permitiu a escalação de Lee Van Cleef, veterano cujo rosto apa-
recera em papéis menores de clássicos como Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann,
1952) e O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford,
1962). Ele interpretava o pistoleiro mais maduro, rival e mentor de Eastwood.
Um dos elementos narrativos recorrentes em Leone – o clímax que culmina com um
duelo encenado como um balé de close-ups extremos e sublinhado pelos degüellos de Mor-
ricone – aparece no final de Por uns Dólares a Mais. O duelo entre os dois heróis e o vilão
é encenado em uma arena circular de pedras. Uma variação deste set circular seria usada, no
ano seguinte, para o clímax de Três Homens em Conflito. A preferência por cenários circula-
res não passou despercebida a Carlo Simi:
Leone simplesmente pedia: “Carlo, faça uma arena circular usando pedras”.
Deixava claro que era uma exigência. (...) Achei melhor nunca perguntar o que
este círculo de pedras representava. Deve ter representado algo, pois era um
cenário sempre associado com a morte. (SIMI, 2005, p. 126).
Talvez a resposta fosse mais simples. Leone comparava os duelos dos westerns com
as touradas espanholas. Seguindo esse raciocínio, é possível associar ao estilo de encenação
de Leone aos espetáculos espanhóis, e em muitos níveis: a dramaticidade exagerada era ob-
tida através do tratamento dilatado do tempo; acentuada pela abundância de close-ups e pela
fragmentação do espaço fílmico; reforçada pelos movimentos lentos dos adversários que se
estudam, como a espécie de dança que os toureiros fazem com os touros; e evocada pelo
trompete estilo mariachi que toca, invariavelmente, as melodias dos degüellos.
Na banda sonora, o filme também introduziu novos elementos de estilo. Morricone ela-
borou músicas que criavam jogos intrincados entre sons diegéticos e extra-diegéticos (como no
duelo final, que será analisado mais adiante). Instrumentos exóticos, populares ou incomuns,
como celesta, violão flamenco e castanholas, são incorporados aos arranjos. O uso de efeitos
sonoros amplificados, associado a longos períodos de silêncio, está mais acentuado.
Os novos recursos introduzidos por Leone foram copiados por quase todos os diretores
de spaghetti westerns. Os filmes da safra 1966-1968 adicionaram a figura de um segundo
herói e a motivação da vingança. Muitas vezes essas duas variações narrativas vinham juntas.
E na maior parte dos filmes a ação dramática seguia dois personagens de forma intercalada,
ferramenta narrativa que evoluiria, a partir dos anos 1970, para as narrativas em rede (com
múltiplos protagonistas), uma característica central da continuidade intensificada.
A partir do ano seguinte, os estúdios norte-americanos começaram a demonstrar inte-
resse em importar os filmes do ciclo. Isso significou uma série de coproduções internacionais
53
em Conflito e Era uma Vez no Oeste, ambos 100% financiados por estúdios americanos (no
primeiro caso, a United Artists; no outro, a Paramount).
Em Três Homens em Conflito, Leone deu sequência ao processo de intensificação das
práticas narrativas e estilísticas. A construção narrativa exacerba a estrutura do filme ante-
rior, com três anti-heróis como protagonistas. Num filme americano, os três seriam vilões, já
que ganham a vida roubando. Através de esquetes que documentam encontros e desencontros
entre eles, o trio atravessa o território do sudoeste norte-americano, arrasado pela guerra civil
(a ação dramática se passa em 1862), em busca de uma fortuna em ouro roubado, enterrada
num cemitério militar. Na própria definição do diretor, trata-se de “um novo estilo de wes-
tern, com personagens picarescos inseridos num cenário épico” (LEONE, 2000, p. 236).
De fato, a dinâmica estabelecida entre os personagens de Clint Eastwood e Eli Wallach
– o primeiro é o típico herói spaghetti, taciturno e de gestos largos, enquanto o segundo, um
homem de nome latino que se move de modo rápido e não para de falar – exerceu influên-
cia na variante cômica do ciclo, que se estabeleceria na década de 1970. Três Homens em
Conflito equilibra momentos de tensão, sequências de violência gráfica que flertam com o
melodrama, gags e diálogos de tom humorístico:
No terreno da prática estilística, Leone expandiu recursos que já apareciam nos fil-
mes anteriores. Ennio Morricone escreveu a música da sequência do cemitério (figura 1.25)
antes das filmagens, de modo que Leone pudesse controlar a duração e os movimentos de
câmera de cada plano, na filmagem, a partir do som. A composição recessiva de tomadas em
profundidade de campo com moldura, frequentemente associada aos close-ups extremos de
rostos que são usados como molduras, está cada vez mais abundante; por vezes Leone usa
enquadramentos fechados que focalizam apenas os olhos dos atores.
Neste filme, Leone destaca mais outra ferramenta estilística, criada a partir da téc-
nica pictórica do trompe l’oeil13: os heróis frequentemente são surpreendidos (assim como
o espectador) pela entrada inesperada em cena de outros personagens que estavam fora do
campo visual captado pela câmera um instante antes, mas já deveriam ter sido notadas pelo
personagem mostrado naquele momento.
A direção de arte foi precedida de extensa pesquisa iconográfica, perseguindo a acui-
dade histórica: armas (revólveres, rifles, canhões) tinham que condizer exatamente com o
equipamento produzido no ano em que a trama se passava. Os filmes norte-americanos de
até então – inclusive westerns – não tinham esse tipo de preocupação com a verossimilhança
histórica e com o desenvolvimento coerente e realista do cenário e dos figurinos, uma ferra-
menta de estilo que constitui um exemplo claro da prática do worldmaking.
A obsessão com os detalhes, possível graças ao orçamento de US$ 1,3 milhão, incluiu
a construção de dois novos sets – uma estação ferroviária em La Calahorra, no deserto es-
panhol, e o cemitério circular onde ocorre o duelo final, montado num vale ao lado do rio
Arlanza, perto de Madri – além da redecoração das duas cidades cenográficas usadas em Por
um Punhado de Dólares e Por uns Dólares a Mais (o vilarejo de Hojo de Manzanares foi
semidestruído para dar lugar a Peralta, cidade arrasada pela guerra, enquanto o set de Mini
Hollywood foi “maquiado” três vezes, para dar lugar a Valverde, Santa Fé e Santa Ana).
13 Técnica artística, advinda da pintura e da arquitetura, que consiste em criar uma ilusão ótica con-
seguida ao forçar relações de perspectiva fala entre objetos, formas ou pessoas; a expressão francesa
original, que pode ser traduzida como “engana o olho”, é bastante sugestiva.
55
Enquanto Leone conduzia a equipe por um cronograma de doze semanas de filma-
gens, entre maio e julho de 1966, o estúdio United Artists preparava o lançamento dos dois
primeiros longas-metragens de Leone nos Estados Unidos. Os filmes chegaram aos cinemas
norte-americanos em janeiro de 1967. Foram frequentemente exibidos em par, no circuito
de drive-ins. Ambos atingiram bilheterias superiores a US$ 4,5 milhões, consideradas mui-
to boas para produções pequenas, exibidas longe das grandes salas de projeção. O sucesso
dos filmes de Leone provocou uma retomada na produção de westerns dentro dos Estados
Unidos, permitindo que cineastas como Sam Peckinpah e Don Siegel realizassem novas pro-
duções do gênero (FRAYLING, 1981, p. 43).
A influência de Leone foi importante para diretores como Peckinpah. O cinema deste
detém um débito de estilo em relação aos filmes de Leone, em particular no que se refere à re-
presentação da violência e ao uso do perfil de herói amoral dentro de narrativas ambientadas em
um universo inóspito. Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch, Sam Peckinpah, 1968) é
um ótimo exemplo da incorporação de recursos estilísticos de Leone dentro do cinema norte-a-
mericano. O violentíssimo tiroteio final e o herói – líder de uma quadrilha de assaltantes – são
recursos estilísticos que reapropriam as revisões esquemáticas operadas por Leone.
O modo realista de representação da violência passou depois a ser adotado pelos ci-
neastas da geração New Hollywood14. Martin Scorsese (Taxi Driver, 1976; Touro Indomá-
vel/Raging Bull, 1980), Francis Coppola (O Poderoso Chefão/The Godfather, 1972; Apo-
calypse Now, 1979), Arthur Penn (Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas, 1967) e William
Friedkin (O Exorcista/The Exorcist, 1973; Comboio do Medo/Sorcerer, 1978) adotaram esse
estilo de representação, determinando uma maneira de filmar a violência que acabaria sendo
instituída dentro dos esquemas dominantes à disposição dos diretores contemporâneos.
Enquanto isso, Leone planejava uma mudança. Ele entregou à United Artists um pro-
jeto de filme de gângster. Os executivos do estúdio não estavam interessados. Queriam mais
westerns. Leone recebeu uma proposta da Paramount: dirigiria mais um filme do gênero e,
se fosse bem-sucedido, ganharia sinal verde para fazer Era uma Vez na América (C’era uma
Volta in America, Sergio Leone, 1984).
Com US$ 3 milhões, Leone planejou Era uma Vez no Oeste como um mosaico de
citações a clássicos do western, a começar pelo tema – a chegada do progresso, representado
pela construção de uma ferrovia transcontinental, abordado em filmes como O Cavalo de
Ferro (The Iron Horse, John Ford, 1924) e A Conquista do Oeste (How the West Was Won,
John Ford/ Henry Hathaway/George Marshall, 1962). Era, na verdade, uma intensificação do
alusionismo praticados nos filmes anteriores, mergulhando fundo no pastiche.
Para este filme, Carlo Simi construiu três cenários no deserto espanhol: uma estação
ferroviária decadente, onde foi filmada a sequência de abertura, um chalé suíço no meio de
uma planície seca e uma cidade cenográfica completa, incluindo outra estação ferroviária,
celeiros, galpões e prédios de até três andares. Desta vez, com interiores decorados, para que
as filmagens acontecessem sempre dentro do set (COX, 2009, p. 197). Uma linha ferroviária
14 Termo de Peter Biskind para a geração de jovens cineastas norte-americanos que emergiram a partir
de meados da década de 1960, influenciados pela Nouvelle Vague francesa, entre os quais estavam
os movie brats Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, George Lucas, Steven Spielberg e William
Friedkin.
59
O uso de close-ups extremos, a ironia, os diálogos intercalados por silêncios e ruídos
naturais amplificados, a técnica do alusionismo reaparecem. Já a música de Morricone, com-
posta após as filmagens, era mais convencional, com apenas um tema principal e orquestra-
ção neorromântica.
A ação dramática focaliza a amizade entre Juan (Steiger), um bandido mexicano anal-
fabeto, e Sean (Coburn), revolucionário irlandês do IRA, no México para lutar ao lado dos
camponeses na Revolução do país. A dinâmica entre ambos era idêntica à estabelecida entre
Blondie e Tuco em Três Homens em Conflito; Juan era um típico pícaro de Leone (como
Tuco e Cheyenne), enquanto Sean faz o tipo taciturno, confiante e cínico.
A maior preocupação do diretor era criticar os filmes da segunda fase do spaghetti wes-
tern. Já vimos que quase todas essas obras compartilhavam o esqueleto narrativo: a relação
entre um camponês revolucionário (porém ingênuo) e um gringo individualista. Leone inverteu
esses papéis, transformando o estrangeiro num revolucionário. E ele tinha uma visão política
niilista; achava que o spaghetti western estava sendo explorado politicamente e queria criticar
esse procedimento. Assim, concebe uma trama em que o camponês se torna herói involuntário
da Revolução, mas não acredita nela e perde toda a numerosa família. Enquanto isso, o idealista
irlandês se desilude com sua crença política e morre. Ambos se envolvem com política e, por
causa disso, experimentam tragédias.
O lançamento foi um fracasso. Nos EUA, o filme apareceu numa versão com 154 mi-
nutos, foi retirado de circulação, cortado (perdeu 34 minutos) e recebeu outro título, A Fistful
of Dynamite (Por um Punhado de Dinamite, óbvia alusão marqueteira aos filmes da trilogia
com Clint Eastwood). Não adiantou. A bilheteria alcançada lá não atingiu as mesmas cifras
dos três primeiros westerns. Parecia que Leone estava perdendo a popularidade.
Ao mesmo tempo em que este fazia seu comentário sobre a politização do spaghetti
western, o ciclo popular descobria a variação cômico-acrobática das tramas ambientadas no
“Velho Oeste” espanhol. O sucesso desses filmes levou ao já citado Meu Nome é Ninguém,
cujo enredo é construído sobre um tema característico do spaghetti western – o relaciona-
mento entre dois pistoleiros, um mais jovem e outro mais velho – em que cada personagem
personifica uma variante do western.
A ação acontece em 1899. De um lado, temos Jack Beauregard (Henry Fonda), pistoleiro
de 51 anos, decidido a se aposentar para ir morar na Europa; do outro, um jovem caçador de re-
compensas (Mario Girotti) que idolatra o colega mais velho, mas não quer vê-lo partir de forma
melancólica, e o incentiva a enfrentar sozinho o Bando Selvagem– título do grupo de assaltantes
de Meu Ódio Será Sua Herança (1969), e que alude visualmente aos capangas da vilã do filme
Dragões da Violência (Forty Guns, Samuel Fuller, 1957), numa dupla referência construída
através do alusionismo – para garantir a si próprio o status de lenda do oeste.
A escalação dos dois atores deixa evidente a intenção de Leone e Valerii. Fonda era,
junto com John Wayne, um dos veteranos mais associados aos clássicos filmes de western;
já o italiano Girotti era a face mais conhecida da vertente cômico-acrobática dos spaghetti
westerns, graças ao papel de Trinity (cujo figurino esfarrapado é repetido). Colocá-los juntos
no mesmo filme era uma jogada de cineastas que desejavam sintetizar os dois arquétipos do
western (um norte-americano, outro italiano) em um só produto.
Em texto sobre Três Homens em Conflito, publicado em 2002 no jornal Chicago Sun-
Times, Roger Ebert revisou as reflexões que havia escrito em janeiro de 1967, no mesmo
periódico, sobre o filme de Leone. No novo artigo, Ebert fez um mea culpa público por não
ter sido capaz de julgar, na época do lançamento, a suposta qualidade do trabalho de Leone,
que só agora, 35 anos depois, era capaz de enxergar. O texto deixa clara a existência de
uma barreira ideológica que se infiltrava, às vezes sem que houvesse consciência disso, no
discurso dos críticos, sobretudo entre os anos 1960 e 1970. Era uma barreira que isolava os
filmes “de arte”, feitos sem objetivos comerciais imediatos, daqueles categorizados como
puro entretenimento, supostamente inferior:
Na estreia do filme nos Estados Unidos, no final de 1967, pouco depois de seus
antecessores Por um Punhado de Dólares e Por um Punhado de Dólares a Mais,
as plateias tiveram certeza de que o apreciaram, mas será que saberiam dizer por
quê? (...) Minha reação foi forte, mas eu ainda não completara um ano como críti-
co de cinema e nem sempre tive a sabedoria de valorizar mais o instinto do que a
prudência. Ao reler minha velha crítica, vejo que a descrição corresponde à de um
filme quatro estrelas, porém dei-lhe apenas três, talvez porque se tratasse de um
spaghetti western e, assim, não pudesse ser arte. (EBERT, 2006, p. 495).
Ebert não era voz isolada em 1967. Muito pelo contrário. Ele sintetizava, de forma
geral, a argumentação que levou a maior parte dos críticos da época a ignorar ou minimizar
a importância dos faroestes italianos e da obra de Leone em particular. Em geral, os críticos
partiam de pressupostos negativos para avaliar qualquer filme do ciclo. Eram produções fei-
tas para consumo massivo, visando o lucro. Ainda havia a noção de que um western realizado
na Europa era intrinsecamente inferior a qualquer outro feito nos Estados Unidos, por ter sido
realizado por alguém que não podia compreender o espírito do gênero, já que este lidava com
a formação da identidade cultural norte-americana.
O texto deixa claro, nas entrelinhas, o jogo de expectativas negativas que existia den-
tro da crítica em relação ao western europeu. Esperava-se que um exemplar do ciclo italiano
fosse qualitativamente sofrível, e esperava-se também que os críticos condenassem instanta-
neamente esses filmes, inclusive sem dedicar muita atenção neles. O artigo deixa claro como
Ebert já percebia, em 1967, que gostava do filme, mas somente o recuo proporcionado pelos
anos – e com a mudança da opinião geral dos outros críticos sobre o spaghetti western em
geral, e o cinema de Leone em particular – ele se sentiu seguro para avalizar essa opinião.
Esta mudança gradual de opinião exemplifica bem o processo de revalorização a que
a obra de Leone foi submetida desde então. Mudanças na forma como a teoria do cinema
tem lidado com o conceito de gênero fílmico detêm grande importância nesse processo de
63
revalorização. Durante muito tempo, pelo menos até os anos 1970, o gênero foi colocado
num polo oposto em relação ao conceito de autoria. Essa oposição foi tratada através de di-
ferentes gradações de ênfase, mas sua premissa essencial permaneceu estável durante muito
tempo: filmes de gênero constituem uma categoria estética menos importante, porque detêm
objetivos comerciais imediatos. Este raciocínio começou, timidamente, a ser relativizado por
algumas correntes teóricas nos anos 1950. Esse processo de relativização só ganhou força
realmente depois dos anos 1970. Ainda assim ele ainda permanece até hoje, às vezes de for-
ma inconsciente, porque o seu duplo – a noção de autoria – ainda é encarada de acordo com
seus preceitos românticos.
De todo modo, o resgate positivo do conceito de gênero tem trazido em seu bojo a
tendência à revalorização do spaghetti western e, em particular, da obra de Leone. É possível
citar exemplos institucionais que confirmam essa impressão. Em agosto de 2004, o Museum
of the American West, um dos mais importantes espaços de preservação da memória da co-
lonização do oeste daquele país, dedicou uma mostra aos filmes de Leone, expondo peças
de figurino, cenário e cartazes das produções dele (um evento desse tipo seria impensável
nos anos 1970, quando críticos e diretores de western nos Estados Unidos consideravam o
spaghetti western uma espécie de insulto). Em 2007, a 64ª edição do Festival de Veneza (um
dos espaços mais tradicionais do cinema “de arte”) realizou a mostra especial A História
Secreta do Cinema Italiano: Spaghetti Westerns, em que 32 longas do ciclo, realizados entre
1964 e 1976, foram exibidos em sessões especiais, com curadoria de Quentin Tarantino.
Todos os exemplos citados – a mudança de opinião de Roger Ebert, as mostras em
espaços culturais consagrados, a experiência de Alex Cox – refletem uma guinada na traje-
tória midiática do spaghetti western, ao longo dos últimos 40 anos. Esse fenômeno pode ser
compreendido como resultado de um complexo processo de integração entre os conceitos de
gênero e autoria – um processo, aliás, que ainda está longe de refletir harmonia.
A noção de gênero precede em muitos séculos a invenção do cinema. O vocábulo
vem do latim genus e significa espécie, categoria ou agrupamento (STAM, 2003, p. 27;
AUMONT; MARIE, 2001, p. 141). A palavra já era utilizada na filosofia e na biologia, para
designar grupos de objetos ou seres com características em comum, quando começou a ser
empregada na arte e na estética, a partir do século XVII, para categorizar conjuntos de obras
que compartilhavam características de quaisquer ordens (enredo, narrativa, estilo etc.). Na
teoria do cinema, contudo, o problema da definição do conceito sempre foi complexo:
O que é um gênero? Quais filmes devem ser chamados filmes de gênero? Como
sabemos a qual gênero eles pertencem? Embora pareçam fundamentais, essas
perguntas quase nunca são feitas – muito menos respondidas – no campo dos
estudos cinematográficos. (ALTMAN, 2003, p. 27).
Historicamente, uma teoria dos gêneros fílmicos só começou a ser objeto de estudo,
sobretudo nos Estados Unidos, entre o final dos anos 1960 e o começo da década seguinte
(NEALE, 2000, p. 8). Por sua vez, críticos que atuavam em periódicos nunca se preocupa-
ram em com os contextos socioculturais em que usavam o termo. Tudor (1985) afirma que
65
Há um parêntese importante aqui. Os processos de significação do cinema, como de
resto em todas as artes de massa, necessitam provocar no público certas experiências reco-
nhecíveis. Ressaltando como o repertório de gêneros, se utilizado de maneira simplista, pode
“fazer com que o gênero soe como uma ameaça determinista à criatividade”, Graeme Turner
(1997, p. 89) observa que o cinema “tem de lidar com o familiar e o convencional mais do
que, digamos, a pintura e a poesia”:
Bordwell e Thompson concordam com esse raciocínio, observando que a mera repe-
tição de códigos de gênero pode ocasionar, após muitos filmes, um desinteresse por parte do
público com relação ao gênero. Eles enfatizam que os gêneros são construções socioculturais
dinâmicas, que mudam com o tempo, e que essas mudanças ocorrem a partir de operações
intertextuais que caracterizam procedimentos autorais:
Audiências esperam que o filme de gênero ofereça algo familiar, mas também
demandam novas variações desse algo. O cineasta pode inventar algo moderada
ou radicalmente diferente, mas terá que basear essa mudança na tradição. O jogo
interno entre convenção e inovação, familiaridade e novidade, é central para o
filme de gênero. (BORDWELL; THOMPSON, 2008, p. 321).
Esse raciocínio explicita o diálogo entre gênero e autoria injetado pela noção de in-
tertextualidade, que por sua vez está conectada ao problema do estilo. O paradigma do pro-
blema/solução de Bordwell (2009) favorece essa leitura intertextual da dicotomia gênero X
autoria. A exigência que dará a qualquer cineasta o estatuto de autor é o equilíbrio entre o
novo e o familiar. Ou seja, mesmo operando dentro de uma rede de limites e pré-condições,
o cineasta será tão mais autor quanto mais conseguir inserir elementos originais na poética
do cinema, através do estilo:
Não parece ser coincidência o fato de que foi justamente a partir dos anos 1970, à
medida que a teoria do cinema passava a aceitar a possibilidade de autoria dentro do gênero
através dos conceitos de estilo e intertextualidade, que o cinema de gênero tenha alcançado
67
Quando os westerns de Leone (...) começaram a ser lançados internacionalmen-
te, foram invariavelmente destroçados pelos críticos. O argumento, repetido com
monótona regularidade, era o seguinte: devido ao fato de os westerns feitos em
Cinecittà não possuírem raízes culturais na história ou no folclore americano, não
passavam de imitações baratas e oportunistas. (FRAYLING, 1981, p. 121).
O perfil do herói, como a violência representada com realismo gráfico, era uma revisão
estilística operada por Leone. Nos dois casos, inclusive, a rejeição de Hollywood tinha também
um limite cultural imposto aos diretores: o sistema de autocensura, criado para evitar boicotes
da parcela mais conservadora da população americana, representada por organizações como a
Liga Americana da Decência15. Num primeiro momento, essa revisão estilística foi interpretada
como uma violação dos princípios morais que permeavam os westerns americanos.
Um aspecto muito evocado pelos críticos dizia respeito à falta de acuidade histórica
da música dos spaghetti westerns, já que as canções dos pioneiros no século XIX pouco ou
nada tinham a ver com a música que se ouvia nesses filmes italianos. Ocorre que não era me-
nos verdade que a representação musical do Velho Oeste verdadeiro, oferecida pelos filmes
americanos, também nada tinha de realista.
Os vaqueiros que viajavam por estados como Texas e California no século XIX usa-
vam violino caipira e berimbau de boca. Instrumentos como violão, acordeão, piano e gaita,
que protagonizam os arranjos da maioria das canções ouvidas nos westerns norte-ameri-
canos, foram instrumentos introduzidos na cultura daquele país apenas na virada entre os
séculos XIX e XX, portanto num período posterior àquele em que está ambientada a ação
dramática da maior parte dos westerns (BERCHMANS, 2006, p. 75).
15 A National Legion of Decency foi fundada em 1933, por arcebispos da Igreja Católica, para com-
bater filmes que, na visão da população conservadora, incentivavam a corrupção moral dos jovens.
69
Alex Cox (2009) associa a estética da hiperviolência dos spaghetti westerns ao “am-
biente de violência arbitrária” (COX, 2009, p. 10) que a sociedade ocidental experimentava.
A segunda metade da década de 1960, convém lembrar, foi a época da política interven-
cionista norte-americana na América Latina e da repressão soviética a levantes na antiga
Tchecoslováquia; enquanto isso, “a televisão exibia documentários sem fim sobre as duas
guerras mundiais e notícias de última hora sobre o Vietnã” (COX, 2009, p. 10). O universo
ultraviolento e amoral dos spaghetti westerns podia ser lido, de certa forma, como um espe-
lho fraturado do ambiente sociocultural daqueles tempos:
Uma crítica minuciosa que sintetiza toda a argumentação negativa dos críticos pode
ser encontrada no longo ensaio de Eduardo Geada (1978) dedicado ao spaghetti western.
Pelo rigor da análise acadêmica escrita por Geada, que ultrapassa o caráter ligeiro dos textos
publicados nas revistas especializadas, o relato constitui um dos mais detalhados exemplos
do discurso depreciativo elaborado pela crítica em relação ao trabalho de Leone. Por isso, es-
colhi este estudo para analisar em profundidade a argumentação que desqualifica as práticas
narrativas e estilísticas de Leone.
O autor inicia o ensaio decretando que o spaghetti western é uma forma menor de
cinema, um “cinema oposto a qualquer mercadoria formal, um cinema de puro divertimento,
mercadoria rentável por excelência” (GEADA, 1978, p. 21). A definição de cinema “popu-
lar” (assim mesmo, entre aspas), que está no centro da crítica de Geada, é particularmente
expressiva de suas intenções depreciativas:
A análise de Geada usa a dicotomia gênero X autoria para proclamar a primeira cate-
goria como inferior. Ora, já vimos que o faroeste (assim como o thriller, o filme de horror,
o melodrama, a comédia, o musical e qualquer outro gênero fílmico) só funciona, junto à
audiência, quando a construção narrativa e estilística inclui certos elementos pinçados de um
repertório de convenções previamente conhecido pelo espectador.
71
italianos se desenrola. Geada vê a metralhadora como um instrumento narrativo inserido na
diegese sem qualquer razão narrativa ou justificativa histórica, apenas para justificar uma
violência de cunho mais espetacular;
(5) A multiplicação das situações violentas (duelos, emboscadas, lutas, assaltos etc.)
como forma de transformação de uma circunstância excepcional num momento cotidiano, de
forma que “a passagem do banal para o excepcional se efetue sem interrogações” (GEADA,
1978, p. 27) por parte do espectador;
(6) A alta frequência das cenas envolvendo lutas corporais, sem o uso de armas, como
forma de exaltar a superioridade física do herói, que sempre ganha esses embates;
(7) A pouca importância da mulher nos enredos dos filmes, a não ser como “ornamen-
to erótico que vem nos lembrar, eventualmente, o desejo e a virilidade do herói” (GEADA,
1978, p. 28);
(8) O deslocamento do duelo – momento culminante que quase sempre finaliza o en-
redo de um western norte-americano – para o início ou para o meio da ação dramática, o que
implica na “redução de todas as motivações da luta, sejam elas de caráter moral, social ou
político, a um combate individual” (GEADA, 1978, p. 30);
(9) Utilização do cenário revolucionário da fronteira mexicana, característico da ter-
ceira fase no spaghetti western, com a mera função de “fornecer ao filme um cenário exótico
de violência” (GEADA, 1978, p. 31).
A tese de Geada é a seguinte: os filmes do ciclo de spaghetti western oferecem ao
espectador uma experiência estética inferior à sua contraparte norte-americana, porque não
têm qualquer tipo de preocupação histórica, utilizam recursos de estilo e narrativa de modo
retórico e exagerado, com o intuito de bloquear o senso crítico do espectador e, assim, via-
bilizar o objetivo primário de seus diretores e produtores, que é o lucro financeiro. Ele tem
razão nessa argumentação? Vamos analisar os argumentos um a um.
O primeiro argumento insiste no fato de que o herói do spaghetti western está sempre
acompanhado de um cavalo e uma pistola. Cavalos e pistolas são “estereótipos” que vulga-
rizam o gênero. Geada parece esquecer que já era assim no western americano. Cavalos e
revólveres estão entre os códigos inescapáveis do western; fazem parte da iconografia carac-
terística do gênero, são elementos que inscrevem o filme dentro de sua categoria genérica.
Nos filmes de John Ford e Howard Hawks – diretores citados por Geada como exemplos
superiores do gênero – o herói sempre usou o cavalo como meio de transporte e carregou
pistolas.
Geada também afirma que os diretores de spaghetti westerns evitavam o uso de planos
gerais do deserto para evitar a questão da “autenticidade duvidosa” da paisagem. Ele não
leva em conta que a paisagem é diegeticamente justificada, já que a ação dramática mostrada
nesses filmes se situa quase sempre na fronteira entre Estados Unidos e México, em estados
como o Texas. Nesta região, a paisagem natural é parecida com o deserto espanhol.
O segundo argumento de Geada diz respeito à maciça quantidade de cenas que se
passam em saloons, associada às aparições frequentes de jogadores profissionais e ao uso da
câmera subjetiva. Geada acerta na descrição, mas oferece uma interpretação discutível. Ele
O anjo vingador não está tentando provar que os vilões estão errados, salvar a
população ou resgatar a mocinha. Ele está lá tentando obter algum lucro pessoal;
como seria de se esperar, ele acaba recebendo sua recompensa, não um beijo ou
um aperto de mãos, mas uma sacola cheia de dólares ou uma caixa contendo um
tesouro. (BETTS, 1992, p. xii).
73
No caso do quinto item, é possível considerar que o procedimento narrativo de inserir
sequências de ação a cada intervalo de 10 minutos estava em consonância com o processo
de aceleração do ritmo dos filmes, em curso a partir do início dos anos 1960 em toda a ci-
nematografia ocidental. A média de duração de um plano, nos anos 1960, era de oito a onze
segundos (SALT, 2009, p. 280); esse número foi consistentemente acelerado ao longo das
décadas seguintes, até chegar a quatro segundos em 2003 (SALT, 2009, p. 378).
Ademais, esse processo de aceleração não passava apenas pela duração menor dos planos, já
que as próprias cenas, como um todo, também se tornaram mais curtas e movimentadas, durando
em média três minutos cada (BORDWELL, 2006, p. 57). Leone foi um dos diretores que iniciou
esse processo de aceleração da narrativa, depois tornado global, como diz o quinto item da relação
de Geada. Ele estava revisando a construção narrativa em larga escala, num processo que foi re-
tomado por muitos outros cineastas posteriores. Esse item inclui também o sexto item da relação.
O sétimo argumento é a pequena importância da figura feminina. Geada está correto.
Mas essa observação se aplica a todo o western, e não apenas aos filmes italianos:
Dentro dos filmes [de western] foi sempre assim: um pequeno cardápio de estereó-
tipos femininos (mãe, professora escolar, prostituta, dançarina de salão, rancheira,
índia, bandida) que não se equiparava à realidade. (BUSCOMBE, 1988, p. 240).
A crítica de Mann talvez seja a mais lúcida de todos os impropérios dirigidos a Leone
no período. Ele combina, num trecho relativamente curto, ataques ao tratamento que Leone
deu às três vertentes da poética do cinema. Na temática, Mann rejeita o perfil individualista
e violento dos heróis do spaghetti western, criticando a amoralidade da caracterização psi-
cológica dos personagens. Na construção narrativa, ele cria a metáfora do eletrocardiograma
para sugerir que o ritmo acelerado do filme era prejudicial à narrativa. E na prática estilística,
condena o uso abundante dos close-ups extremos.
75
Apesar da crítica lúcida, é fácil identificar o que incomodava Mann: as ferramentas
que ele rejeita consistem em recursos de estilo que revisavam os esquemas dominantes da
prática cinematográfica. Esses recursos faziam a técnica chamar a atenção para si, indo na
contramão do princípio da invisibilidade do estilo que caracterizava a poética da continui-
dade clássica, e que era importante para os diretores que emergiram antes dos anos 1950.
De todo modo, as alterações na poética do cinema estavam acompanhando mudanças
que ocorriam em todo o contexto sociocultural do ocidente, o que incluía outras artes narra-
tivas. Em artigo de 1972, Simone de Beauvoir usou Três Homens em Conflito para ilustrar
uma diferença que ela via entre o cinema e a literatura dos anos 1960, e que diz respeito à
mesma mudança de paradigmas socioculturais:
Ironicamente, ela deixa escapar o preconceito que havia contra o ciclo. A expressão
“inclusive italianos” soa quase como um pedido de desculpas pelo elogio involuntário, jus-
tapondo a essa ideia a noção de que o western americano era superior. Outro intelectual a
se manifestar sobre Leone foi Alberto Moravia. Em janeiro de 1967, Moravia escreveu um
artigo analisando a questão das raízes culturais do spaghetti western. Ele propunha uma ex-
plicação cultural para o fenômeno:
Não existe Velho Oeste na Itália, nem caubóis, nem bandidos na fronteira; ou melhor,
não existe esse tipo de fronteira, nem índios e nem pioneiros. O faroeste italiano não
nasceu da memória ancestral, mas do instinto nostálgico de cineastas que, quando jo-
vens, estabeleceram uma relação de amor com o western norte-americano. Em outras
palavras, o western de Hollywood nasceu de um mito; o italiano teve origem no mito
sobre um mito. (MORAVIA apud FRAYLING, 2000, p. 118).
O raciocínio de Moravia é compatível com o do próprio Leone, que dizia amar não o
western histórico, mas sua representação cinematográfica: “Para mim era possível abordar
o western com distanciamento, de um ponto de vista europeu, sem deixar de ser um cinéfilo
amante de westerns” (LEONE, 2005, p. 73).
Essa postura curiosa diante dos spaghetti westerns está relacionada às críticas que
iniciaram a gradual revalorização dos filmes de Leone. Desde essa época, porém, o que se
enxergava de positivo não estava tanto nos filmes em si, mas no suposto caráter de resistência
cultural que o spaghetti western exercia, sem que seus diretores tivessem consciência disso.
77
italiana” (SADOUL, 1979, p. 184). No texto dos Cahiers, essa classificação aparece asso-
ciada à metáfora das flores artificiais, e sugere que no filme há um gosto pelo exagero, um
predomínio da forma em relação ao conteúdo. Contraditoriamente, esse suposto barroquismo
assinala o único aspecto digno do (pouco) interesse que Bontemps encontra no filme:
Para não deixar passar em branco o primeiro western de Leone, o número seguinte da
revista (nº 177, abril de 1966) retornou a Por um Punhado de Dólares, em crítica de um pará-
grafo. O texto do mesmo Jacques Bontemps recontextualiza o filme negativamente, calcado
na ideia da representação espetacular da violência:
No número 184 (novembro de 1965), Patrick Brion retornou a Por uns Dólares a
Mais, reafirmando alguns dos argumentos de Bontemps, como a suposta qualidade superior
de Leone em relação aos demais cineastas do spaghetti western (“sua austeridade o sobressai
do resto dos subprodutos do western hispano-italiano”). Como de hábito, a representação
gráfica da violência incomodava (“os assassinatos se sucedem invariavelmente, sem qual-
quer motivação psicológica”) e era responsável, na visão de Brion, pela suposta “degeneres-
cência do gênero”.
Ironicamente, nos dois últimos casos, os elogios têm relação direta com o que Brion
chama de “floreios barrocos”, e que podemos associar às preocupações formais: as composi-
ções pictóricas, os close-ups extremos, o desenho sonoro e principalmente o caráter irônico,
presente no alusionismo e que podemos associar à influência das tradições italianas da com-
media dell’arte. Exatamente os mesmos recursos que Jacques Bontemps havia criticado de
forma enfática no primeiro texto dedicado pela revista a Leone.
Ainda que a crítica de Patrick Brion esteja longe de ser positiva, é possível notar que o
eixo principal do texto está no mesmo fenômeno estilístico notado por Jacques Bontemps – a
tendência de Leone à revisão intensificada de certos recursos formais, que ambos associam a
um suposto exibicionismo “barroco”.
Depois de demorar a publicar as críticas dos dois primeiros westerns de Leone, os
Cahiers du Cinéma foram rápidos em analisar Três Homens em Conflito. O longa-metragem
foi lançado na França em 8 de março de 1968; o texto escrito por Sylvie Pierre apareceu no
número 200 da revista, no mês seguinte. A rapidez do processo de edição era um sinal claro
de que a carreira de Leone agora estava sendo acompanhada com mais atenção pela revista.
Eles [os filmes de Sergio Leone] constituem a primeira tentativa, embora pou-
co consequente, de cinema crítico, ou seja, não mais em confronto direto com
a realidade (mesmo que às vezes o recurso à verdade histórica – que Leone
conhece bem – tenha um valor estratégico), mas com um gênero, uma tradição
cinematográfica, a única que conheceu uma difusão mundial: o western. Não é
pouca coisa. (DANEY, 1969, p. 64).
79
produção em série – dos spaghetti westerns, Daney critica os rumos que o western americano
havia tomado na década de 1950, com uma tendência supostamente excessiva de psicologizar
os personagens (“senso crítico, mas não cinema crítico”, diz, avançando um argumento que já
podia ser encontrado nos escritos de André Bazin sobre o western), e avaliza um cinema que lhe
parecia crítico do próprio cinema.
Em que pese o uso exagerado da terminologia marxista, é possível perceber que
o argumento de Daney consiste numa elaboração mais profunda e detalhada das ideias
lançadas antes por Alberto Moravia – o spaghetti western não consiste na elegia de um
mito, mas sim na elaboração de um mito acerca de outro mito – somada à noção de que
a revitalização dos filmes de gênero só podia ser realizada de fora. As “origens vis e bai-
xamente comerciais” (DANEY, 1969, p. 64) do ciclo italiano são, para ele, um aspecto
positivo do spaghetti western.
A expressão entre aspas talvez seja o trecho mais significativo do texto de Daney. Ela
denota claramente a linha de raciocínio que seria seguida por praticamente todos os críticos
ao longo do processo de revalorização da obra de Leone nos anos 1970: a importância do
spaghetti western não estava nos recursos de estilo, nem mesmo na fruição estética que os fil-
mes proporcionavam. O ciclo popular italiano era importante na medida em que representava
uma tentativa crítica de resistência cultural ao domínio norte-americano, desconstruindo-o
de dentro para fora.
Admitamos que em alguns países onde o cinema constitui uma indústria robus-
ta, o cinema B delimita uma espécie de lúmpen-cinema (cinema do lúmpen-pro-
letariado), bom de qualquer modo para fazer a máquina girar, amado de forma
esnobe e contraditória (em uma espécie de cinefilia “operária”) não podendo
aspirar à qualidade, nem mesmo à consciência clara dos elementos (temas, si-
tuações) que ele ilustra porque esta (a consciência) é reservada aos filmes de
qualidade. (DANEY, 1969, p. 64).
Esse trecho é significativo. Após identificar a prática do pastiche e atribuir a ela uma
crítica à ideologia do gênero, Daney enxerga o alusionismo como sintoma de procedimentos
narrativos e estilísticos em direção à poética da continuidade intensificada. Ele está falando
dos “floreios barrocos” a que outros críticos se referiram, atribuindo a eles um lado positivo
(trazia consigo uma postura crítica) e outro negativo (provocava desequilíbrio entre forma e
conteúdo, com ênfase no primeiro item). Quando se refere a uma “sequência ininterrupta de
tempos fortes”, e obviamente sem usar o termo (que só seria criado décadas depois), Daney
está se referindo à continuidade intensificada. No final do texto, ele retoma o raciocínio de-
senvolvido no início; reconhece que quase não tratou do filme, mas se coloca na contramão
da corrente principal de críticos que não enxergavam valor na obra de Leone, observando que
sua prática intensificada em estilo e narrativa nada tinha de gratuita, e que era preciso dedicar
mais atenção aos seus filmes (algo que ele próprio, sintomaticamente, não faz).
A análise das críticas subsequentes publicadas nos Cahiers sobre filmes de Leone
mostra o quanto o texto de Daney foi determinante para o surgimento de um padrão um pou-
co mais favorável na recepção dos críticos, daquele momento em diante. Esse contexto fica
evidente já a partir do destaque editorial dado à crítica de Sylvie Pierre sobre o mesmo filme,
publicada no número 218 (março de 1970).
O texto não apenas cita diretamente o texto de Daney, mas procura desenvolver aspec-
tos do raciocínio dele. E, para isso, minimiza as observações a respeito das práticas estilísti-
cas e narrativas de Leone, concentrando-se na agenda política supostamente defendida pelo
filme (ou, pelo menos, investindo na mesma leitura ideológica que Daney havia feito). Antes
de falar qualquer coisa sobre o filme, Pierre realiza uma longa argumentação a respeito das
conexões culturais entre o western norte-americano e sua contraparte italiana:
81
Quando se refere à retórica, ela faz questão de definir o conceito: trata-se do conjunto
de recursos de estilo que compõem os esquemas do western americano. Nesse ponto, Pierre
ignora o processo de revisão crítica desses esquemas levado a cabo por Leone, sugerindo que
os filmes não passam de “variações combinatórias” desses recursos.
Depois, num longo trecho que ocupa quase metade da crítica, ela se volta para o filme,
observando a preocupação com a acuidade histórica e citando como exemplo a reconstituição
minuciosa da cidade, das estações de trem e do saloons. Ela circunscreve um traço estilístico
que se tornaria, à frente, recurso importante da poética da continuidade intensificada:
Na argumentação, Sylvie Pierre cerca o filme sem mergulhar nele. O cerne da análise
está na leitura ideológica do trabalho de Leone; uma leitura claramente devedora a Daney.
Antes de encerrar o texto, Pierre ainda nota o uso abundante do alusionismo dentro da trama
do filme, antecipando em muitos anos a definição que Noël Carroll (1998) faria do concei-
to – uma narrativa em camadas sobrepostas, em que o público amplo entende a trama e um
grupo menor, formado por cinéfilos, recebe piscadelas para um gozo estético privilegiado:
Tudo é permitido, desde que a cada instante o cinema funcione e se veja fun-
cionar. O resultado é de um narcisismo cinematográfico evidente. (...) O jogo
duplo que poderia parecer no início duvidoso, entre a eficácia e a contemplação,
tem de um lado o cinismo do saber fazer e a política comercial que assegura o
grande público; e do outro, o fato de que pisca o olho para os intelectuais, com
todas as êxtases estéticas permitidas. (PIERRE, 1970, p. 55).
A leitura marxista de Pierre a leva a julgar como negativo o recurso estilístico do alu-
sionismo (que até então, note-se, não havia sido citado por nenhum outro crítico dos Cahie-
rs); no momento em que Leone “pisca o olho para os intelectuais”, seu cinema perde parte do
caráter de resistência que forma, para os redatores dos Cahiers, a peça central de seus filmes.
Na conclusão do texto, no entanto, Pierre relativiza essa leitura, instituindo uma ambiguidade
característica dos textos dos Cahiers daquele período:
Sobre esse jogo duplo, não podemos insistir demais que ele seja apenas retórico,
reinscrevendo o filme na nossa história – a saber, a história de uma consciên-
cia pequeno-burguesa, infeliz, separada do real, e que se refugia na arte. Não
totalmente refugiada, no entanto, porque tendo sido denunciado esse refúgio na
vaidade, Leone não se instala nele. (PIERRE, 1970, p. 55).
Embora essa observação nos pareça fundamental, Baudry não se alonga nela (talvez
por falta de espaço). Ele procura justificá-la apontando uma alteração que os filmes de Leone
realizam na estrutura narrativa do western (seja ele americano ou italiano) – um deslocamen-
to operado na segunda vertente da poética do cinema:
A partir daí, Baudry envereda por uma leitura psicanalítica do filme, observando que
“nada chama a mais a atenção do que o desejo dos personagens”. Chama a atenção, no texto
de Baudry, a mudança da abordagem teórica. A orientação marxista ainda está lá, mas per-
cebe-se uma nova tendência à leitura psicanalítica, certamente influência da popularidade de
Lacan e Metz na teoria francesa de cinema dos anos 1970. Essa guinada em direção à psica-
nálise torna-se explícita na próxima crítica de um filme de Leone a aparecer nos Cahiers du
Cinéma: o texto de Michel Chion publicado no número 359 (maio de 1984, mesmo mês do
lançamento do filme na França) sobre Era uma Vez na América.
A diferença de abordagens fica mais flagrante devido ao período de 12 anos que se
passou entre as duas críticas (nesse período, Leone não lançou nenhum longa-metragem). O
processo de revalorização positiva dos filmes, contudo, continuou acontecendo. Isto fica evi-
dente quando se observa o destaque editorial dado a Era uma Vez na América. A publicação
dedicou capa, editorial, entrevista e crítica ao filme, incluindo ainda um artigo escrito pelo
próprio diretor. Tudo isso compôs um dossiê de 16 páginas.
Chion retoma e atualiza a argumentação lançada no texto de Serge Daney, embora sem
citá-lo diretamente. A ideia de um cinema popular de resistência cultural não é mais, na dé-
cada de 1980, suficiente para explicar o sucesso – e nem a qualidade – dos filmes de Leone.
Então, recorre novamente à ópera para dar o salto que lhe permite elogiar o filme:
83
diferença. É uma questão de forma, estilo e tom operístico. E em matéria de
ópera, Sergio Leone está em casa. (CHION, 1984, p. 11).
Em 1968, depois de assistir a Era uma Vez no Oeste em Paris, Jean Baudrillard decre-
tou Leone como “o primeiro cineasta pós-moderno” (BAUDRILLARD apud FRAYLING,
2005, p. 17). Isso aconteceu antes de a condição pós-moderna (LYOTARD, 1998) começar
a ser debatida em suas relações com a produção audiovisual da sociedade (HARVEY, 1989;
JAMESON, 1991; CONNOR, 1993). Mas o que exatamente Baudrillard tinha visto no filme
para fazer tal declaração?
Aplicando as características centrais do pós-modernismo ao cinema, Laurent Jullier e
Michel Marie (2009, p. 214-215) procuraram sintetizar da seguinte maneira o que chamam
de “cinema de terceiro grau”: nostalgia, ironia, paródia e autoconsciência sobre a índole
ficcional das narrativas, muitas vezes expressa por uma retórica do exagero; despreocupação
com teses éticas ou sociais, substituída pela relativização das questões morais e pela lógica
do espetáculo; representações mais realistas da violência e do sexo; retorno às regras clássi-
cas quando necessário e formulação de inovações formais apenas quando (e se) desejado; uso
deliberado e generoso do pastiche (que eles chamam de “piscadelas”).
Em maior ou menor grau, todas essas características podem ser encontradas nos filmes
de Leone. Nesse sentido, o ponto mais importante do uso de todos esses recursos está na
aplicação do paradigma do problema/solução de Bordwell aos spaghetti westerns. Podemos
ver como Leone trabalhou dentro de uma tradição, revisando-a e atualizando-a – e, mais im-
portante, intensificando-a – sem necessariamente desafiá-la. Em outras palavras: a aparição e
o desenvolvimento de características associadas ao pós-modernismo constituem um processo
de revisão de esquemas clássicos dominantes, que se coaduna perfeitamente com a poética
da continuidade intensificada.
Esse raciocínio torna possível argumentar que algumas das escolhas estilísticas e nar-
rativas efetuadas por Leone foram efetivamente influenciadas por uma sensibilidade pós-mo-
derna latente na Europa dos anos 1960. Se aceitarmos essa hipótese, poderemos compreender
que as características pós-modernas encontradas em Leone acabaram inscritas nos filmes
pelo que Bordwell chama de pré-condições de estilo; foi dessa forma que o contexto socio-
cultural influenciou Leone a fazer escolhas estilísticas que revisavam de maneira extravagan-
te os esquemas circulantes do cinema de gênero.
Voltemos a Baudrillard. A declaração dele se referia, principalmente, ao uso abundan-
te do alusionismo, então um recurso usado com discrição pelos cineastas. Baudrillard se refe-
re especialmente ao pastiche: “Um tipo de imitação que você sabe ser uma imitação” (DYER,
2007, p. 1). De fato, o gosto pela citação é um dos mais proeminentes recursos narrativos de
Leone, embora seja importante assinalar que a estratégia de citar obras anteriores, para ele,
obedeceu a várias gradações de intensidade e intenção (as citações podiam ser explícitas ou
cifradas, reverentes ou irônicas), constituindo exemplos variados da técnica intertextual que
Noël Carroll (1998) chamou de alusionismo. Nesse momento, além de verificar os diferentes
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usos que Leone fazia desse recurso narrativo, nos interessa demonstrar de que maneira essa
experiência estética associada à condição pós-moderna emergiu deste contexto sociocultural
para tornar-se um traço do estilo individual de Leone.
O pastiche não foi um recurso narrativo que Leone escolheu adotar em Era uma Vez
no Oeste. A técnica já vinha sendo cortejada por Leone nos filmes anteriores. Variações mais
brandas de alusionismo podem ser percebidas desde Por um Punhado de Dólares; a técnica
foi continuamente expandida nos filmes seguintes, atingindo o patamar maior de ênfase em
Era uma Vez no Oeste, cujo enredo consiste numa espécie de antologia de momentos icô-
nicos de faroestes do passado, uma colcha de retalhos que combina, dentro de um enredo
coeso, inúmeras citações a obras anteriores – Christopher Frayling (2005, p. 60) enumerou
57 citações descritas pelos roteiristas. Esses momentos, encaixados na tessitura narrativa e
estilística do filme, consistiam de alusões a cenas, personagens, nomes e lugares retirados
de outros filmes. Eles provocavam no espectador uma percepção de reconhecimento de uma
prática imitativa. Embora não fosse a primeira vez que Leone trabalhava com a alusão, em
Era uma Vez no Oeste as citações eram tão abundantes e explícitas que traziam a técnica para
primeiríssimo plano, o que justificava o comentário de Baudrillard.
No entanto, o uso da alusão na narrativa cinematográfica não era uma novidade. Como
vimos antes, a intertextualidade – sob variadas formas, que incluíam alusões visuais ou so-
noras, citações sutis ou escancaradas – sempre foi elemento importante para a construção
narrativa no cinema de gênero (particularmente o western):
Ocorre que, ao inserir citações em grande número, Leone estava investindo na varia-
ção retórica do alusionismo, uma prática intertextual que Noël Carroll (1998) afirma ter se
intensificado na virada dos anos 1960 para os 1970 (mesma época do lançamento de Era uma
Vez no Oeste). Carroll relata que a prática intensificada do alusionismo foi afirmada prin-
cipalmente por dois movimentos cinematográficos simultâneos: a geração New Hollywood
(EUA) e o Cinema Novo alemão. Ele faz questão de lembrar que as duas ondas cinematográ-
ficas compartilhavam a influência, que era a Nouvelle Vague:
87
Embora as referências explícitas aos westerns tivessem a intenção de expres-
sar uma visão caleidoscópica de todos os faroestes de Hollywood reunidos, e
embora essa técnica assumisse no decorrer do filme – através de um processo
de intertextualidade que hoje chamamos de pós-moderna – que os espectadores
pudessem reconhecer essas citações, ao menos de maneira vaga, o ponto central
do exercício era criar a impressão de que a audiência estava assistindo a um
filme que já havia visto antes, ao mesmo tempo em que essa impressão vinha
acompanhada da certeza de que ninguém havia visto a história ser contada da-
quele jeito. (FRAYLING, 2005, p. 33).
Não chega a ser surpresa que o pastiche tenha encontrado abrigo dentro de um ciclo
subvalorizado do cinema de gênero. Nesse sentido, é possível compreender o pastiche em
Leone como um esforço (consciente ou não) no sentido de superar a condição subvaloriza-
da. Demonstrar seu vasto conhecimento cinematográfico era, para Leone, uma maneira de
legitimar-se como artista. Talvez sem ter consciência disso, ele estava trabalhando com uma
narrativa em duas camadas, como diria Bordwell: um western para o público em geral e um
compêndio de citações que deliciavam críticos e cinéfilos.
Dyer enfatiza que o pastiche, por ser uma modalidade exagerada de intertextualidade,
tornou-se a prática intertextual mais comum dentro do pós-modernismo no cinema. Citando
Jameson, ele associa o pastiche a uma sensibilidade pós-moderna (DYER, 2007, p. 41) e
propõe uma diferenciação específica entre pastiche e paródia. O pastiche seria uma paródia
sem crítica, e não teria necessariamente humor. Jullier e Marie vão além na diferenciação:
O trecho de Jullier e Marie traz à tona, de novo, a questão central da ironia, que per-
meia toda a obra de Leone, e está no bojo da releitura crítica e irreverente que ele fez do
sistema de códigos do western. Essa releitura irônica do gênero foi efetuada, também, através
de dois outros recursos fundamentais na constituição do estilo de Leone: o perfil cínico do
herói (recurso através do qual Leone operava a relativização das questões morais, apontada
por Jullier e Marie como característica central do cinema pós-moderno) e a representação
mais gráfica e realista da violência.
A transformação dos heróis em anti-heróis é característica da continuidade intensificada
(BORDWELL, 2006, p. 83). Bordwell observa que essa tendência foi ampliada ao longo das
décadas de 1960 e 1970, nos filmes americanos. Seria coincidência que a emergência desse
novo perfil de herói acontecesse justamente nesse período? É pouco provável. A aparição do
novo herói (ou anti-herói), que expressa de diferentes maneiras sua desilusão social, parece ser
uma característica que reflete a nova sensibilidade sociocultural da Europa e dos EUA. Nesse
sentido, seria correto afirmar que a condição pós-moderna exerceu um papel significativo – uma
pré-condição – no desenvolvimento dessa característica.
O corpus da pesquisa de Wright inclui dois filmes de Leone. Wright não percebeu,
contudo, que havia uma diferença crucial entre os anti-heróis de Leone e os bandidos desi-
ludidos, mas profundamente românticos, dos westerns americanos dos anos 1960. Essa dife-
rença era de ordem moral. Para os heróis americanos, o código de honra – uma importante
forma interna do gênero – continuava a ser inescapável. Desta forma, quando confrontados
com a fraqueza moral da sociedade, os heróis dos filmes americanos experimentavam uma
desilusão tão grande que só podia levar a duas saídas: a morte heroica em um ato de autoi-
molação – como nos casos de Meu Ódio Será Sua Herança (1969) e Butch Cassidy & Sun-
dance Kid (Butch Cassidy, George Roy Hill, 1969) – ou o isolamento autoimposto fora da
sociedade, caso de Mais Forte que a Vingança (Jeremiah Johnson, Sydney Pollack, 1972).
Nos filmes de Leone, contudo, o herói lidava com a corrupção e a degradação social de ma-
neira bem diferente. Ele também rejeitava o convívio social, mas não se isolava ou morria; passava
a viver uma vida errante, cínica e individualista, onde o que realmente importava era o dinheiro.
89
Para os heróis de Leone, se a sociedade tem valores morais inferiores ao herói, este último simples-
mente a deixava para trás e seguia em frente, sozinho. Em outras palavras, dane-se a sociedade.
A noção de releitura autoral do gênero – um processo criativo que incluía a desconstrução
sistemática dos códigos do gênero e a reconstrução crítica, livre da carga ideológica que esses
códigos carregavam, ao mesmo tempo incorporando recursos particulares de estilo – parece
fundamental para demarcar o cinema de Leone como importante no processo de revisão de es-
quemas narrativos que transcreveram para o meio audiovisual essa sensibilidade pós-moderna.
Joe (Clint Eastwood), protagonista de Por um Punhado de Dólares, é bem diferente do he-
rói típico dos westerns norte-americanos. Embora compartilhe com eles a perícia no uso de armas
de fogo e o distanciamento emocional em relação aos personagens que vivem em comunidade,
todo o resto é diferente. Ele é mais violento, mais irônico, mais solitário e, sobretudo, mais amoral.
A cena de abertura do filme destaca essa diferença. Joe é mostrado cavalgando em direção a um
vilarejo humilde cuja paisagem – prédios baixos e velhos – localiza a ação dramática num território
inóspito. Não sabemos quem ele é, mas sabemos que é diferente do herói americano: a montaria
e o figurino demarcam distância considerável do western tradicional. Joe não cavalga um cavalo
branco ou negro, mas uma mula (figuras 1 e 2) – a montaria revisa ironicamente um código do
western. A roupa é maltrapilha: calças velhas, poncho e chapéu sujos, tudo coberto de poeira.
FIGURA 1: A primeira tomada de Por um Punhado de Dólares enfatiza o terreno seco e sem vida, por onde
passa uma montaria – sabemos que nela está o herói
FIGURA 2: A câmera se ergue e revela uma silhueta diferente do herói tradicional do western: roupa velha
e suja, barba por fazer, ele está montado numa mula.
Ao parar para beber água (figura 3), Joe presencia uma cena que sinaliza a completa
ausência de autoridade legal na comunidade. Uma criança se esgueira para dentro de uma
casa, de onde é expulsa a chutes e tiros por dois homens que espancam o pai do garoto, mo-
rador do casebre em frente (figuras 4, 5 e 6).
FIGURA 3: A arquitetura das casas não lembra em nada os casarões de madeira das cidades do western
dos EUA: são casebres de tijolo caiados de branco.
FIGURA 4: Dois pistoleiros chutam e atiram contra uma criança: releitura crítica de uma convenção de
gênero, já que nos EUA a censura não permitiria essa cena.
FIGURA 5: Armados com revólveres, os pistoleiros espancam o pai da criança a pontapés, sem que este,
desarmado, tenha chance de reagir.
FIGURA 6: A câmera se aproxima para mostrar um pontapé na vítima, enquadrado em close-up: exemplo de
representação gráfica da violência.
Joe observa tudo com expressão impassível (figura 7). Ele percebe que há, na casa inva-
dida pelo menino, uma mulher prisioneira. É evidente que ali está sendo cometida uma injustiça.
FIGURA 7: O herói assiste ao espancamento sem esboçar reação: amoral e individualista, o herói é diferen-
te do protagonista-padrão do western nos EUA.
Um dos espancadores nota a presença de Joe e se adianta, em atitude hostil (figuras 8 e 9),
mas nenhum dos dois dá uma palavra.
FIGURA 8: No contra-plano, uma composição recessiva típica de Sergio Leone: uma figura em primeiríssimo
plano e outra ao fundo, criando perspectiva.
FIGURA 9: Percebendo a presença de Joe, um dos pistoleiros se adianta, numa atitude claramente hostil,
esperando para ver se ele reagirá: close-up extremo.
Joe baixa o rosto e continua a beber água, indiferente ao que ocorre ali (figura 10). Per-
cebendo que ele não representa perigo, o agressor vai embora. A criança e o homem espancado
entram em seu casebre e trancam a porta. A mulher, atrás da janela, olha para Joe com expressão
reprovadora, mas ele apenas dá de ombros (figuras 11 e 12). Não é problema dele.
FIGURA 10: Percebendo a reação do antagonista, Joe se apressa a beber água e sinaliza que não pretende
reagir ao espancamento covarde, reforçando o perfil amoral.
FIGURA 11: Depois do espancamento, a mulher numa janela com grades olha para Joe, com expressão de
desaprovação: ele poderia ter ajudado, mas não o fez.
FIGURA 12: O anti-herói de Leone devolve o olhar com uma expressão neutra, quase cínica, enfatizando a
mensagem: ele não tem nada a ver com aquilo.
[Antes] Você não podia mostrar violência porque o herói tinha que ser uma pessoa
otimista, de moral positiva. Não podia sequer representá-lo com realismo: os per-
sonagens principais tinham que se vestir como modelos de passarela. Eu introduzi
um herói que tinha índole negativa, era sujo, parecia um ser humano normal, e es-
tava totalmente à vontade com a violência que o rodeava. (LEONE, 2000, p. 126).
Mais à frente, Joe passa por um grupo de pistoleiros que goza dele (“não é inteligente
vagar longe de casa”) e, num gesto aberto de hostilidade, atiram em direção às patas da mula
que ele monta, da mesma maneira que os dois pistoleiros vistos na cena anterior haviam feito
com o menino. Moral da história: não existe mesmo nenhum tipo de autoridade naquela cida-
de. Mais uma vez, Joe parece impassível e não faz qualquer menção de revidar.
A essa altura, tanto o ambiente onde transcorre a ação dramática quanto o herói já
estão bem delineados, assim como está demarcada a diferença entre este último e sua con-
traparte norte-americana. Estamos em um lugar onde as regras habituais de civilização não
existem. As ruas vazias e os comentários dos personagens confirmam que ali não há nada que
lembre uma comunidade. A julgar pelo comportamento do herói, que não demonstra surpresa
em encontrar esse cenário, não se trata de uma exceção; embora tenha testemunhado aconte-
cimentos em que a expectativa da violência é explícita, além de moralmente injusta, Joe não
esboçou sinal de indignação. Ao contrário. Após alguns minutos de conversa com o dono da
hospedaria local, inteirando-se do contexto social daquele lugar (dominado por duas gangues
rivais), Joe já elaborou um plano para tirar proveito dele.
Então, se dirige à mansão que Silvanito – o hospedeiro – indicou ser da gangue mais
poderosa – os Rojos –, diz saber que estão contratando pistoleiros e pede que o observem.
Em seguida, se dirige à mansão no lado oposto da rua, sede do grupo rival e lugar onde se
encontra o grupo de pistoleiros que troçou dele, minutos antes.
Hoje, com o perfil do herói apreendido pelas plateias, ninguém se surpreende com o
que vem a seguir. Mas o tiroteio demarca uma série de desafios ao sistema de códigos do
western, com a introdução de elementos de ironia, de uma encenação que fragmenta o espa-
ço fílmico de maneira incomum, bem como de uma forma mais gráfica de representação da
violência. Todos são recursos que revisam os esquemas estilísticos e narrativos do gênero, e
se tornariam depois ferramentas da continuidade intensificada.
Joe para diante dos pistoleiros (figura 13) e desafia os quatro em tom debochado. Diz
que não ficou chateado com a recepção violenta, mas que sua mula sim. Após a reação hostil
já prevista, ele os enfrenta num duelo clássico, sacando e acertando todos os quatro com tiros
antes que qualquer um deles consiga revidar. Em seguida, se dirige à taverna de Silvanito.
Ao passar pelo coveiro, boquiaberto, pede desculpas: “Errei a conta. Quatro caixões”. Leone
encerra o tiroteio, decupado de maneira bem diferente do que seria feito num western norte-
-americano, com uma piada irônica.
95
FIGURA 13: A cena inicia com um plano de conjunto em que dois bandidos emolduram Joe, mais atrás:
composição recessiva com o protagonista no centro.
A cena escancara o caráter individualista de seu herói. Joe não está preocupado em
defender os moradores. O plano que ele estabelece consiste em trabalhar alternadamente para
as duas quadrilhas, de forma a ganhar dinheiro dos dois lados. O bem estar da comunidade
não interessa em absoluto ao anti-herói de Por um Punhado de Dólares; ao se deparar com
uma oportunidade de ganhar dinheiro, tudo o que ele deseja é embolsar o máximo possível.
FIGURA 14: No contra-plano, três dos pistoleiros são mostrados em camadas diferentes, numa composi-
ção recessiva que enfatiza a profundidade de campo.
FIGURA 15: Estabelecidas as relações espaciais, Leone passa a fragmentar a cena em enquadramentos
mais fechados, começando com um plano médio de Joe.
FIGURA 16: O primeiro close-up extremo evoca uma convenção do western, com o chapéu encobrindo os
olhos e aumentando a aura de mistério do herói.
FIGURA 17: As testemunhas que assistem ao confronto são mostradas também em close-ups, os rostos
queimados de sol aumentando a verossimilhança.
FIGURA 18: Joe não tira o cigarro da boca nem para falar; o cigarro mastigado entre os dentes virou
marca dos personagens que Eastwood fez para Leone.
Esta cena também demarca uma maneira diferente de decupar um tiroteio – um con-
junto de escolhas estilísticas incomuns nos westerns de até então. Leone alterna close-ups
extremos de rostos (de Joe, dos pistoleiros e de algumas das testemunhas, como o garçom
97
e o coveiro), planos-detalhes (revólveres, mãos e dedos, nas figuras 19, 20 e 21) e poucos
planos gerais e médios (figuras 13 e 15), produzindo um efeito de fragmentação do espaço e
distensão do tempo fílmico que se tornariam uma marca registrada.
FIGURA 19: A atitude dos pistoleiros muda do deboche para a tensão, expressada pelo silêncio; enquadra-
mento combina close-up extremo com composição recessiva.
FIGURA 20: A abundância de close-ups extremos fragmenta o espaço fílmico e produz um efeito de dilata-
ção do tempo que amplia a tensão.
FIGURA 21: O uso da câmera baixa permite que Leone registre no mesmo plano os tiros sendo disparados e
os pistoleiros atingidos caindo: desafio aberto à censura.
Nos planos gerais, Leone com frequência registra as cenas utilizando grande profundi-
dade de campo, encenando duas ou mais ações a diferentes distâncias da câmera; uma delas
é sempre muito próxima (a figura aparece numa das bordas da imagem, funcionando como
moldura dela) e outra fica distante. São composições recessivas (WÖLFFLIN, 2000, p. 101)
com todas as camadas visuais mantidas em foco nítido.
Quase sempre, quando esse recurso é usado, as ações vistas em primeiro e segundo
plano estão correlacionadas, uma interferindo na outra. Por exemplo, em primeiríssimo pla-
no, entrando em quadro por um dos lados e servindo como uma moldura que dava profun-
didade ao quadro, fica uma figura (mão, revólver, coldre, nuca), enquanto ao fundo outras
figuras reagem ao elemento em primeiro plano (figuras 21 e 22). Veremos no próximo capí-
tulo como influências pictóricas diversas (diretores como Eisenstein, Mizoguchi e Welles, e
também pintores dos quais Leone gostava) influenciaram esse tipo de composição pictórica.
FIGURA 22: Composição visual recessiva típica de Leone: mão em primeiríssimo plano, vítimas num segundo
plano distante, tudo registrado com nitidez.
Por fim, a maior de todas as transgressões. Leone filmava no mesmo plano a arma
disparando e a vítima atingida desabando (de novo, figuras 21 e 22). Esse procedimento
estilístico sofria, em 1964, um limite de censura. Um cineasta americano não podia filmar
dessa maneira. Num tiroteio de filme de Hollywood, a bala saindo do revólver e seu efeito
(a vítima sendo atingida) tinham obrigatoriamente que ser mostrados em tomadas diferentes,
para que o corte entre os dois planos suavizasse a violência da situação dramática. Mas Leone
estava livre desse limite, já que trabalhava na Itália e sem nenhuma obrigação contratual com
estúdios dos Estados Unidos.
Ao insistir em não cortar no momento dos tiros, ele também realizava uma repre-
sentação mais realista da violência. Foi a partir de cenas como essa que os filmes de Leone
passaram a ser acusados, pela crítica da época, de transformar a violência em pura retórica,
em espetáculo sem significado moral. Essa forma gráfica de representar a violência, contudo,
é recorrente nos demais filmes de Leone, tem relação direta com a relativização dos limites
morais (pré-condição que também produziu o perfil ambíguo do herói) e mostrou-se muito
influente no cinema das próximas décadas.
99
Nesta cena em particular, Leone adaptou a composição recessiva com moldura e pro-
fundidade de campo à violação deliberada de uma convenção estilística do western norte-a-
mericano: a tomada que mostra Clint Eastwood atingindo os quatro pistoleiros foi composta
com a mão do ator em primeiríssimo plano, para que o público pudesse ver detalhadamente
os quatro disparos do revólver, enquanto os atores que interpretam os vilões vão caindo,
sucessivamente, em segundo plano, dentro da mesma composição imagética. Não há cortes.
Ao filmar as quatro mortes numa única tomada, Leone conseguia três objetivos: relia critica-
mente um código do western, enfatizava a expertise do seu anti-herói, e concebia um plano
de composição pictórica inventivo.
O novo herói, a ironia e a questão da violência contribuíram para que os filmes de
Leone recebessem, na época, um julgamento negativo de valor. No entanto, com o recuo
proporcionado pelo tempo, é possível observar (e a própria crítica o fez, a partir dos anos
1970) que esses recursos concretizavam a sensibilidade pós-moderna.
Outras três cenas de Por um Punhado de Dólares levaram a crítica a pensar que Leone
estava indo longe demais na questão da representação da violência. A primeira mostra o
massacre de uma tropa de soldados mexicanos cometido pelo líder dos Rojos, Ramón (Gian
Maria Volonté). A segunda é uma cena, em que Joe invade um casebre para libertar a mulher
prisioneira (Marianne Koch) vista no início do filme. Ele o faz matando cinco homens, um
dos quais é baleado à queima-roupa enquanto está ferido e desarmado – espécie de heresia
que violava o código de honra do western norte-americano. A terceira mostra Joe sendo es-
pancado pelos Rojos, numa longa sequência recheada de close-ups sangrentos.
A violência em si não chegou a ser um problema na primeira cena. Não se vê sangue
em nenhuma tomada. Ela é mais chocante pela quantidade de mortes e pela gratuidade com
que os soldados são dizimados por um só homem, armado com uma metralhadora. Volonté
interpreta a cena com modos sádicos: enquanto maneja a arma, ele gargalha incontrolavel-
mente, o prazer em matar é visível no seu rosto. Depois da matança, a cena acaba com o úni-
co sobrevivente tentando escapar. Ramon o acerta de longe, praticamente sem mirar. A cena
o estabelece como vilão, contrapondo sua habilidade com um rifle à do herói com revólveres.
Numa leitura apressada, aos olhos de espectadores menos atentos, poderia parecer não
haver diferença entre herói e vilão. Afinal, os dois não sentem nenhum pudor em apertar o
gatilho para arrecadar dinheiro. Leone soluciona o dilema com esta cena, enfatizando um
aspecto psicológico: Ramon é um psicopata. Gosta de matar, sente prazer com isso. Joe não;
só mata quando tem algo a ganhar. Não chega a ser uma grande diferença num universo tão
violento e individualista (para a crítica da época, um western com herói e vilão tão parecidos
era um escândalo de amoralidade), mas demarca uma distância narrativa importante.
A ausência do código de honra característico do western é explicitada de forma mais
ostensiva numa cena mais à frente, em que o personagem se compadece da situação difícil
da família com a qual cruzou na cena de abertura (já analisada). Depois de presenciar ou-
tras humilhações, Joe decide intervir e libertar a família. Um herói tradicional de faroeste
não precisaria explicar essa intervenção, pois ela seria natural e esperada pelo público; um
homem tão individualista quanto Joe, porém, tem que fazê-lo – e o faz de maneira lacônica,
mas reveladora: “Conheci uma pessoa como você, e não havia ninguém lá para ajudar”, diz,
FIGURA 23: A cena de espancamento de Joe dura 159 segundos e inclui uma série de close-ups extremos do
rosto ferido: representação gráfica da violência.
FIGURA 24: Durante o espancamento, um dos integrantes da gangue dos Rojos permanece gargalhando
histericamente, enquanto o herói sofre.
Eastwood leva chutes, socos, tem a mão queimada e pisoteada (figuras 25 e 26). Esta
é outra subversão de um código do western. Nos filmes norte-americanos, o herói sempre
enfrenta dificuldades para cumprir sua tarefa, mas nunca submetido a tanta violência. O grau
de violência (acentuada pelo sangue e pelos ângulos de câmera mais próximos) leva a ence-
nação em direção à continuidade intensificada.
FIGURA 25: ... e já que o herói não tem mais forças para se levantar, passa a ser agredido com chutes e
pontapés pelo restante da gangue, aumentando o sadismo.
FIGURA 26: O plano-detalhe que encerra a cena do espancamento mostra um dos pistoleiros quebrando os
ossos da mão esquerda de Joe com a bota.
103
convenção do western, que é a inversão da tomada panorâmica de abertura como momento
de apresentação simultânea do herói e do cenário. Ao evocar a tradição da tomada panorâmi-
ca de ângulo alto – um dos planos preferidos de John Ford, repetido em filmes como Rastros
de Ódio (1956) e Legião Invencível (She Wore a Yellow Ribbon, John Ford, 1949) –, Por uns
Dólares a Mais incentiva o espectador a pensar que o cavaleiro que ele vê à distância seria o
protagonista do filme, como ocorre em quase todos os westerns norte-americanos.
FIGURA 27: Abertura subverte uma convenção do gênero ao mostrar um cavaleiro (normalmente o herói)
sendo abatido por um tiro disparado à distância.
FIGURA 28: Ao introduzir a música e os créditos, Leone cria um jogo entre o diegético e o extra-diegético,
fazendo o som dos tiros funcionar como percussão.
FIGURA 29: O cartaz, com prêmio oferecido pela captura de um criminoso “aumentado” pelo próprio, é
exemplo da ironia com que Leone tratou o western.
FIGURA 30: O bilheteiro, sorrindo (e enquadrado num close-up que fragmenta o espaço fílmico), afirma que
ninguém tem coragem de enfrentar o assassino.
Enquanto o bilheteiro ri de uma piada (figura 30), o homem vestido de negro mantém
a expressão fechada (figura 31); descola cuidadosamente o pôster da parede (figura 32) e
guarda. O bilheteiro para de sorrir.
FIGURA 31: A expressão do Coronel Mortimer (também enquadrado em close-up), que olha para o bilheteiro
sem se perturbar, faz o outro homem parar de sorrir.
FIGURA 32: O gesto cuidadoso que ele faz em seguida – descolar e guardar o cartaz de recompensa – permite
antever a personalidade metódica do personagem.
FIGURA 33: Durante todo o filme, o Coronel Mortimer carrega consigo um arsenal de revólveres e rifles
desmontáveis, que ele limpa todas as noites.
FIGURA 34: Caçador de recompensas experiente, ele sabe que quem lida com a morte só fica vivo se for
dominar as mais recentes tecnologias da violência.
Esse aspecto do domínio da tecnologia não apenas demarca uma distância considerá-
vel dos heróis dos filmes americanos (os quais, em geral, desgostam da necessidade de usar
armas de fogo, embora sejam bons no manejo delas), mas também explicita a aproximação
do herói do spaghetti western ao contexto social dos anos 1960, quando a sociedade estava
mais exposta a imagens de violência por conta da televisão e de outras mídias de massa (era
107
a época da Guerra Fria, dos confrontos no Leste europeu, dos conflitos bélicos na Coréia e
no Vietnã), e cuja urbanização acelerada não apenas enfatizava a importância da tecnologia,
mas disparava uma onda de hedonismo e competitividade social que isolava cada vez mais
os indivíduos.
Mortimer também personifica outro aspecto-chave da obra de Leone, que é o diálogo
por vezes paradoxal e contraditório entre passado e futuro, entre tradição e modernidade. Se
por um lado o ex-oficial confederado incorpora os traços amorais do novo herói, por outro
mantém um pé no passado; quando a trama principal é revelada, consistindo na perseguição
a um assaltante chamado El Indio (Gian Maria Volonté), descobrimos aos poucos que ele
tem uma motivação pessoal para querer capturar o bandido: vingança. Essa descoberta acon-
tece através de flashbacks progressivos, avanço em direção à fragmentação cronológica do
enredo, característica da continuidade intensificada na construção narrativa em larga escala.
Nesse ponto, é essencial chamar a atenção para um ponto importante: o cinema mo-
dernista europeu dos anos 1960 vivia, de maneira geral, uma tendência à fragmentação da
narrativa fílmica, tanto do ponto de vista cronológico quanto do número de personagens. O
primeiro aspecto era conseguido através do uso de flashbacks. David Bordwell rastreia o
início do uso desse recurso duas décadas antes que Leone começasse a dirigir: “Nos anos
1940, apesar de os manuais de roteiros mandarem escritores evitarem flashbacks, os filmes
estavam cheios deles” (BORDWELL, 2006, p. 89). A influência de Cidadão Kane (1941),
nesse caso, não pode ser desprezada.
No entanto, foi nos anos 1960 que essa tendência passou a ser intensificada. As ex-
periências de Alain Resnais – sobretudo nos filmes Hiroshima Mon Amour (1959) e O Ano
Passado em Marienbad (L’année Dernière à Marienbad, idem, 1961) – com a desconstrução
da narrativa incentivaram roteiristas e diretores a fragmentar ainda mais o enredo, e de modo
mais ousado. Essa fragmentação se dava tanto numa dimensão cronológica (a narrativa cro-
nologicamente linear dava lugar a filmes recheados de flashbacks, nem sempre motivados
por lembranças de personagens ou por alguma exigência do roteiro) quanto em termos de
unidade narrativa, expressa através do desenvolvimento de maior número de personagens,
eventualmente dividindo o protagonismo do filme entre alguns deles. Como já vimos, essa
prática narrativa gerou as chamadas narrativas em rede, que se tornariam mais complexas
a partir dos anos 1970. Sergio Leone deu sua contribuição ao processo de fragmentação da
narrativa, experimentando suas duas principais variações.
Mas voltemos, por enquanto, à questão do perfil do herói. Segundo Will Wright, a
temática da vingança proliferou no western a partir do início dos anos 1950 e se tornou
bastante comum na década seguinte, aparecendo em filmes como Winchester 73 (1950), Um
Certo Capitão Lockhart (The Man From Laramie, Anthony Mann, 1955) e A Face Oculta
(One-Eyed Jacks, Marlon Brando, 1960), todos protagonizados por homens torturados por
traumas do passado e em busca de vingança.
A trama de vingança, porém, tem desdobramentos diferentes em westerns norte-ame-
ricanos e italianos. No primeiro caso, o herói é obrigado a deixar temporariamente a socie-
dade, de modo a perseguir a vingança sem sofrer uma condenação de ordem moral; ele está
livre para retornar ao convívio social quando conquistar essa vingança, ou se desistir dela.
109
A maior diferença para o filme anterior é o cenário. Em Por um Punhado de Dólares, a
cena de apresentação do herói acontece na rua; em Por uns Dólares a Mais, ocorre dentro de
uma taverna (o cenário repleto de figurantes sinaliza o orçamento mais generoso que Leone
teve à disposição). Monco chega à cidade de White Rocks em meio a uma tempestade; o iní-
cio da primeira tomada da cena sincronizado na trilha sonora com o ribombar de um trovão
(figura 35), num plano de conjunto criado a partir de um movimento de câmera ostensivo,
que chama a atenção para si.
FIGURA 35: Erguida por grua, imagem revela toda a cidade: movimento de câmera ostensivo é uma ferramen-
ta de estilo que remonta aos anos 1930.
Esse tipo de plano, aliás, aparecera apenas uma vez em Por um Punhado de Dólares
(introduzindo a sequência do duelo entre Joe e Ramon), passou a ser muito utilizado por
Leone nos filmes seguintes. Trata-se de um movimento de câmera tornado famoso em E o
Vento Levou (Gone With the Wind, Victor Fleming, 1939); é uma reminiscência do período
clássico do cinema, tendo sido comum nas grandes produções de Hollywood dos anos 1940
e 1950. Esta é uma evidência de que o repertório de escolhas estilísticas de Leone baseava-se
na solução disponível mais eficiente (revisada e intensificada, se necessário), e não exclusi-
vamente no zeitgeist. Ele usava o que tinha à mão, independente da origem.
Monco está vestido com o poncho do filme anterior. O nome do personagem é outro,
mas o figurino e os gestos são idênticos. Mesmo ensopado, ele acende o indefectível cigarro,
levantando levemente o chapéu de modo que os olhos apareçam apenas no final da tomada
– o mesmo gesto feito segundos antes do primeiro tiroteio de Por um Punhado de Dólares
(figura 36). Depois, entra no saloon.
Ele aborda um frequentador e pergunta por um conhecido ladrão. Leone providencia
a resposta, antes que o homem responda à pergunta, dentro da própria composição recessiva
da tomada: Monco e o interlocutor têm as cabeças nas extremidades do quadro, enquanto a
área central focaliza, em segundo plano nítido, uma mesa com quatro jogadores. Todos usam
roupas escuras, menos o que está de costas para a câmera; este veste um colete dourado, e
está no centro da imagem (figura 37).
É o bandido, claro. Monco se dirige até a mesa. Sem falar, agarra o baralho e distribui
as cartas apenas entre ele e o bandido procurado (figura 38). Os outros sujeitos na mesa
se entreolham, sem entender nada. Ouve-se o ruído do bar, que proporciona a sensação de
FIGURA 36: Primeira aparição de Monco (Clint Eastwood) evoca Joe, de Por um Punhado de Dólares: poncho,
cigarro e chapéu encobrindo olhos.
FIGURA 37: Monco pergunta onde está o criminoso, e a composição recessiva já dá a resposta: o homem
está centralizado em segundo plano (colete dourado).
FIGURA 38: Sem diálogos, o jogo de intimidação praticado por Monco é encenado por Leone através de
planos-detalhes de mãos e cartas de baralho...
FIGURA 39: ...além de uma decupagem que privilegia os close-ups e a troca de olhares; a técnica fragmen-
ta o espaço e provoca a sensação de tempo distendido.
FIGURA 40: Em pé, filmado em contra-plongé, Monco domina a encenação; o bandido, sentado, está subjul-
gado e é filmado em plongé (ver figura anterior).
Os dois homens trocam socos (figura 41). Monco rende um adversário com um golpe
de caratê (figura 42) no pescoço – uma alusão aos filmes de artes marciais orientais que
começavam a chegar aos cinemas europeus nos anos 1960 – e o agarra pela camisa.
FIGURA 41: Quando a pancadaria começa, Leone troca os close-ups e planos-detalhes por planos gerais e
médios, enquanto os atores percorrem todo o bar.
FIGURA 42: Durante a luta, Monco atinge o criminoso com um golpe de caratê – uma citação divertida aos
filmes asiáticos de artes marciais dos anos 1960.
FIGURA 43: No momento em que Monco subjulga o adversário, a composição enquadra a porta de entrada,
do lado direito, provocando a expectativa de que...
FIGURA 44: ...alguém entre por ali, o que acontece poucos segundos depois – três pistoleiros aparecem
para resgatar o homem que Monco dominou.
isso coloca a audiência na posição de saber mais sobre o enredo do que o personagem, o que ins-
tantaneamente cria uma dimensão suplementar de suspense, aumentando ainda mais a tensão.
Ao chegar, os pistoleiros nada dizem. Mas, por causa do som das botas no piso de ma-
deira, do ranger da porta e do silêncio que toma conta da taverna, Monco percebe a presença.
Ele desvia o olhar do rosto do bandido preso pela camisa para e olha para frente, tenso. O
líder dos pistoleiros está no meio, um passo à frente dos outros; ele tem apenas metade da
barba – um toque cômico para aliviar a tensão no seu momento mais intenso. O pistoleiro
ordena que Monco largue o colega; está enquadrado em close-up extremo (figura 45).
FIGURA 45: O pistoleiro no centro, filmado em extremo close-up, ordena que Monco largue o comparsa; ele
tem apenas metade da barba feita, num toque de ironia.
Leone justapõe mais três close-ups iguais à ordem do bandido – um para cada pisto-
leiro. Aliada ao silêncio, a sucessão de rostos fragmenta o espaço fílmico e acentua mais a
tensão; por um momento, o espectador perde a noção espaço-temporal do momento.
Monco se move então, largando o bandido espancado, ao mesmo tempo em que gira e
atira três vezes em dois segundos (figura 46). Os pistoleiros não têm tempo para revidar. O
momento resgata a composição recessiva da cena do tiroteio de Por um Punhado de Dólares:
a mão com o revólver em primeiríssimo plano e a ação principal (os pistoleiros atingidos
pelos tiros) em segundo plano, tudo fotografado em profundidade de campo. Nos dois filmes,
encontramos a mesma escolha estilística para solucionar um problema de representação idên-
tico. Ademais, atirador e vítimas, de novo, estão dentro do mesmo quadro.
A tensão se foi, mas a cena não acabou. O adversário espancado se arrasta para a
direita, tentando escapar. Monco não se dá ao trabalho de olhar para ele, e nem mesmo se
vira para atirar: dispara na direção do som do arrastar sobre o piso de madeira (figura 47).
FIGURA 47: Ainda resta o criminoso que estava no bar desde o início; embora ele esteja ferido e desarma-
do, Monco o mata com um tiro a sangue-frio...
Depois, guarda o revólver no coldre, girando em torno do dedo indicador com veloci-
dade, repetindo o gesto clássico dos heróis do western americano (figura 48).
Essa cena organiza vários elementos do que podemos afirmar como exemplos diretos
da prática estilística recorrente em Leone: um conjunto de soluções estilísticas e narrativas
para problemas de representação que o diretor resgata, revisa e reutiliza, sempre que con-
frontado com problemas parecidos. O uso abundante de close-ups extremos, a utilização dos
ruídos diegéticos (os sons do bar, os passos sobre o piso de madeira) para injetar tensão e
dar continuidade temporal à narrativa, as composições recessivas, a ironia, o alusionismo e a
subversão a códigos do western são padrões recorrentes dentro dos filmes dele.
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FIGURA 48: ...numa tomada em que vítima e agressor estão, de novo, enquadrados no mesmo plano. A cena
termina com um plano-detalhe do revólver no coldre.
Tanto Mortimer quando Monco são profissionais da violência. Ambos vivem à mar-
gem da sociedade, transitando de uma cidade para a próxima sem se fixar. Ganham a vida
caçando bandidos, e seguem trajetórias paralelas; se cruzam na estrada e se reconhecem
como iguais, nascendo daí respeito mútuo e clima de competitividade, que funcionam como
uma espécie de versão irônica – uma releitura irreverente – do código de honra segundo o
qual se comportavam os caubóis nos filmes americanos.
A primeira vez em que os dois se defrontam, aliás, consiste numa cena que confirma a
releitura crítica dos esquemas do western americano através da ironia e do alusionismo. Tra-
ta-se da variação cômica de um duelo, em que os pistoleiros atiram um no outro; no entanto,
por causa do respeito mútuo e também devido à ausência de uma razão de ordem prática para
que um mate o outro, Mortimer e Monco iniciam uma espécie de jogo cômico. Eles se enca-
ram, pisam um no pé do outro, trocam sopapos e finalizam o “duelo” atirando um no chapéu
do outro, de forma a demonstrar simultaneamente a habilidade espetacular com o revólver e
o senso de respeito para com o colega.
Esta cena foi a primeira a ser concebida por Leone para o filme. Quando contratou
Luciano Vincenzoni para escrever o roteiro, Leone descreveu esta cena para estabelecer o
tom de ironia que pretendia conseguir. Vincenzoni expressou objeção à cena, mas acabou
convencido de como ela era importante. A argumentação usada para convencer o roteirista
deixa claro o quanto Leone estava consciente da operação de releitura crítica do gênero:
A intenção era ser irônico, mas eu não conseguia imaginar John Wayne chutan-
do a bunda de Henry Fonda – parecia infantil. Mas Sergio (...) queria aplicar a
lógica de um jogo argumentativo entre crianças a dois personagens que eram
puro instinto. Sergio disse achar que o sucesso do western era universal porque
o comportamento macho do típico herói do gênero era idêntico ao dos adoles-
centes (...). O que ele queria fazer era transportar a nostalgia adolescente para o
western. (VINCENZONI, 2005, p. 171).
Numa única cena, Leone flertou com três tópicos que críticos incluem entre as expe-
riências estéticas características da condição pós-moderna: ironia, nostalgia (a inclusão de
memórias como forma de “reviver” um passado idealizado) e alusionismo.
No primeiro filme, as citações a westerns anteriores seguiam um padrão alusionista mais su-
til: a autoconsciência das convenções de gênero e a representação da violência (sem sangue) em Os
Brutos Também Amam (Shane, George Stevens, 1953); a poeira de Paixão dos Fortes (My Darling
Clementine, John Ford, 1946), acrescentando um toque realista a um tiroteio; a comunidade co-
varde de Minha Vontade é Lei (1959), cujos cidadãos preferem contratar um pistoleiro a eleger um
xerife, e assistem a um duelo como se estivessem no circo; a atmosfera pessimista e amargurada
de O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford, 1962), com
personagens que estão conscientes de que realidade e mito são instâncias diferentes.
Em Por um Punhado de Dólares, Leone usava o material de origem como inspiração
para a construção da narrativa. Entre seus objetivos não estava o reconhecimento da citação
por parte do público; ou seja, se seguirmos a definição de Richard Dyer (2007), ainda não se
tratava se pastiche; era uma forma mais discreta de alusionismo. Desde então, Leone intensi-
ficou essa técnica. Na cena do confronto entre os dois anti-heróis de Por uns Dólares a Mais,
a referência se transmuta em citação direta.
O pastiche também pode ser rastreado em outras cenas. Leone cita vários filmes, in-
cluindo Estigma da Crueldade (The Bravados, Henry King, 1958), cujo herói passa o filme
117
seguindo assaltantes acusados de matar sua mulher e filho; ele carrega uma foto dos dois num
relógio de bolso, que mostra a cada bandido antes de matá-lo. O personagem, interpretado
por Gregory Peck, serviu como modelo para Mortimer, que carrega um relógio de bolso
idêntico com a foto de sua irmã, estuprada por El Indio.
Leone acrescentou ao perfil do herói desenvolvido em Por um Punhado de Dóla-
res e Por uns Dólares a Mais algumas características. Essas características continuavam
avançando na direção da ironia, do grotesco, do carnavalesco – todas, não por coincidência,
experiências estéticas que contêm uma agenda política, uma crítica social inerente, expressa
através de uma forma irreverente e bem-humorada.
Como se sabe, os diretores de westerns norte-americanos nunca lidaram bem com o
humor. O gênero – em todos os seus momentos históricos – sempre foi muito sisudo; no uni-
verso masculino e misógino dos caubóis e pistoleiros não havia espaço para piadas. Portanto,
a inserção de elementos cômicos pode ser vista como outro aspecto da revisão crítica dos
esquemas típicos do gênero levada a cabo por Leone.
Sempre achei que termos como bom, mau e violento não deviam ser tomados
num sentido estanque. Assim, me pareceu interessante desmistificar esses ad-
jetivos num cenário de western. Um assassino pode muito bem ter virtudes.
Pode demonstrar altruísmo, enquanto um homem supostamente bom é capaz de
matar uma pessoa com total indiferença. Alguém que parece inicialmente ser
violento pode, se formos capazes de conhecê-lo melhor, se mostrar mais nobre
do que parece, e até mesmo ser capaz de expressar carinho e ternura em certas
situações. (LEONE, 2005, p. 203).
119
Tuco empresta ao filme, ainda, outro elemento da cultura italiana que marcaria forte
presença nos filmes subsequentes do diretor: o apego que certos personagens demonstram
pelo núcleo familiar mais próximo (pai, mãe, filhos e irmãos), cultivado junto a um desapego
flagrante pelas regras sociais. Se o apego à família existe claramente no sistema de códigos
do western norte-americano, o desapego às regras sociais não um padrão recorrente no gêne-
ro, mas sim na cultura ibérico-mediterrânea.
Essa operação de inserção de um traço cultural estrangeiro dentro do esquema narra-
tivo do western foi problemática, especialmente por causa do perfil do herói de Leone. Em
termos práticos, conciliar um protagonista tão amoral e solitário com essa cultura de apego
à família não parece ter sido tarefa simples. Mas Leone encontrou na própria estrutura social
italiana uma característica que o ajudou a driblar essa contradição: um traço cultural que o
sociólogo Edward C. Banfield (1958) de familismo amoral.
A pesquisa de Banfield procurou identificar, na década de 1950, aspectos da cultura
da região ao sul da Itália que pudessem explicar o relativo atraso econômico em que esta se
encontrava em relação ao restante do país, após a Segunda Guerra Mundial. O aspecto central
da questão, para Banfield, estava relacionado à união de dois pulsos sociais aparentemente
incompatíveis: um sentimento de forte apego ao núcleo familiar básico (pais, filhos e irmãos)
e outro sentimento, igualmente forte, de desapego a qualquer outra forma de organização so-
cial. Essa união formaria o que o sociólogo denominou de familismo amoral: um modelo de
comportamento social oriundo da combinação de uma série de fatores estruturais e culturais,
incluindo a religiosidade católica, a estrutura familiar fragmentada em núcleos menores a
cada geração (desde o século XIX) e – talvez o fator mais importante – a crescente urbaniza-
ção das sociedades. Banfield associava essa urbanização a um sentimento cada vez maior de
isolamento. O conjunto de tudo isso é assim descrito pelo sociólogo:
121
Entre as citações reconhecíveis está a cena em que Tuco assiste à chegada de um trem
com um prisioneiro amarrado à frente (figura 49), momento que evoca O General (The
General, Buster Keaton, 1926, figura 50); a aparição de uma carruagem cheia de corpos no
deserto (figura 51), aludindo a O Homem que Luta Só (Ride Lonesome, Budd Boetticher,
1959, figura 52); e o clássico movimento de grua que parte do plano médio de um persona-
gem para, ao erguer e afastar a câmera ao mesmo tempo, revelar um panorama devastador
da guerra civil norte-americana, com cadáveres e feridos que se estendem até a linha do
horizonte (figura 53), numa citação clara a E o Vento Levou (1939, figura 54).
FIGURA 49: O prisioneiro confederado amarrado na locomotiva, perto do final de Três Homens em Conflito,
é uma referência a um clássico de Buster Keaton...
FIGURA 50: ...a comédia O General (1926), também ambientada na guerra civil norte-americana, e que contém
um momento visualmente idêntico.
No filme também está uma das sequências mais violentas da obra de Leone: o espanca-
mento de Tuco num campo de concentração. Durante quatro minutos e um segundo (241 se-
gundos), um capanga de Angel Eyes bate em Tuco, para tentar extrair dele uma informação.
A cena foi inteiramente cortada da versão lançada nos Estados Unidos em 1967.
FIGURA 52: ...O Homem que Luta Só (1959), em que o herói também intercepta uma carruagem-fantasma,
acontecimento que modifica o curso do enredo.
FIGURA 53: O uso da grua para descortinar um panorama revelador dos horrores da guerra civil norte-
-americana é uma referência a uma cena clássica de...
FIGURA 54: ...E o Vento Levou (1939), de Victor Fleming, cuja sequência similar é um dos momentos mais
citados da Era de Ouro do cinema americano.
FIGURA 55: A mesa exagerada e a arquitetura requintada do chalé no meio do deserto sinalizam os sonhos
ambiciosos da família irlandesa McBain.
FIGURA 56: Sons fora do quadro são importantes para Leone: a interrupção súbita do canto dos pássaros
alerta Brett McBain para a presença de humanos no bosque.
O homem, o adolescente e a menina são mortos a tiros, sem que os agressores se mos-
trem (figura 57). Resta apenas o menino mais novo, que está dentro de casa.
FIGURA 57: Da mata, sem que os agressores se mostrem, vem uma saraivada de tiros que mata o patriar-
ca e dois adolescentes; resta apenas um menino.
É um ato de violência vil, contra crianças e um homem desarmado. Uma violência desse
tipo jamais seria cometida, num western americano, por homens brancos – por índios, sim,
como ocorre em Rastros de Ódio (1956), em cena citada explicitamente aqui através de o súbito
silenciar dos animais, que também denuncia a presença dos agressores no filme americano – ou
seja, pastiche. Há, entretanto, uma diferença crucial, além da raça dos agressores. Em Rastros
de Ódio, o massacre em si não é mostrado (está contido numa elipse). Numa só cena, usando as
técnicas do pastiche e da ironia, Leone subverte duas vezes um esquema do gênero.
São cinco os pistoleiros. Vestidos com sobretudos guarda-pó, eles saem da mata em
seguida. Leone os filma de longe, ligeiramente fora de foco e com contraluz acentuada, de
forma que não podemos ver seus rostos (figura 58). Há um corte, e o contraplano os mostra
de costas (figura 59). Eles se aproximam da criança mais nova. A música lúgubre de Ennio
Morricone, tocada com uma guitarra elétrica, acentua a dramaticidade. O menino olha para o
líder do grupo, que está à frente (figura 60).
FIGURA 59: Após um corte, o ângulo muda para uma tomada alta dos pistoleiros de costa, avançando na
direção da criança indefesa: composição recessiva.
FIGURA 60: Num traveling para frente, a câmera gira em torno dos pistoleiros até transformar uma
composição recessiva em profundidade de campo...
FIGURA 61: ...num close-up extremo do rosto de Henry Fonda; comentário irônico sobre Fonda ser, ao lado
de John Wayne, o maior mocinho do gênero.
FIGURA 62: Também focalizado num close-up extremo, o mais jovem dos McBain encara o vilão; a justapo-
sição de close-ups parece congelar o tempo.
FIGURA 63: Frank (Fonda) decide não deixar testemunhas do massacre: ergue o revólver, cospe fora um
pedaço de tabaco e atira na direção da câmera...
Sem cortar, a câmera faz um giro de 180 graus, agora para exibir diretamente o rosto
do líder dos pistoleiros, reenquadrado em close-up extremo: é Henry Fonda. A decupagem é
deliberadamente estudada para causar um choque na plateia, que sabe da presença de Fonda
no filme (o nome aparece nos créditos, durante a cena anterior), mas ainda não tem ideia de
que papel ele desempenhará.
Com expressão enfastiada e gestos calculadamente lentos, o bandido cospe um pedaço
de fumo – recurso dramático exaustivamente explorado por Leone, e hábito comum em he-
róis do western americano, como aquele interpretado pelo próprio Fonda em O Retorno de
Frank James (The Return of Frank James, Fritz Lang, 1941) e também por John Wayne em
Legião Invencível (1949) – e avisa aos comparsas que não devem deixar sobreviventes. O
rosto do menino, amedrontado, é justaposto ao olhar frio de Henry Fonda (figuras 61 e 62).
O pistoleiro atira na criança a sangue frio. No momento do tiro, há um dissolve e a imagem
do cano do revólver, apontando diretamente para o espectador num close-up extremo, se
funde com a imagem de uma locomotiva avançando em direção à câmera (figuras 63 e 64).
Nesse caso, é interessante observar que Leone optou por não utilizar a tradicional
representação gráfica da violência, narrando o assassinato em si através de uma elipse. Esta é
a primeira vez, nos quatro westerns de Leone, em que um ato de violência cometido por um
protagonista não é exibido explicitamente. A atitude é compreensível, afinal: exibir direta-
mente o assassinato a sangue frio de uma criança poderia provocar no público uma rejeição
não a Frank, o personagem, mas ao próprio Leone.
FIGURA 64: ...num cross-fade em que a imagem da arma se transforma numa locomotiva indo em direção à
câmera (e o som do tiro vira o resfolegar do trem).
O terceiro protagonista de Era uma Vez no Oeste, Cheyenne, tem origem na caracteri-
zação de Tuco como um pícaro: um bandido romântico e tagarela. Apesar de roubar e matar
gente desarmada, ele fica furioso ao saber que os assassinos da família McBain usavam
guarda-pós cor de terra, idênticos ao que o bando liderado por ele utiliza (“eu jamais atiraria
numa criança”, diz). Cheyenne se revela um individualista amoral (ou um familista amoral
sem família); como Harmonica, é um solitário, mas a simpatia instantânea dele por Jill não
traz qualquer traço de interesse sexual. Ao contrário: Cheyenne associa Jill à própria mãe (“a
mulher mais fina que já conheci”, afirma). A mãe de Cheyenne não sabia quem tinha sido o
129
pai dele (“por uma noite, certamente foi o homem mais feliz do mundo”), mas criou o filho
com liberdade e sabedoria, pelo menos na opinião dele. Em outras palavras, a importância da
noção de família para Cheyenne o torna mais digno de simpatia.
Por fim, o quarto protagonista é uma mulher. Para construir a caracterização de Jill,
Leone recorre ao alusionismo: a situação vivida pela personagem (mulher pressionada a ven-
der uma propriedade valiosa contra a sua vontade) é idêntica à experimentada pela dona da
taverna (Joan Crawford) de Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954). Ao contrário do que ocorre
neste, porém, Jill é fraca. Não se envolve em confrontos, se vê dominada fisicamente por pis-
toleiros, é obrigada a fazer sexo com o personagem de Henry Fonda (um dos muitos estupros
encenados ao longo da obra de Leone), e não consegue impedir a venda de sua propriedade
(que acaba sendo comprada e devolvida a ela pelo personagem de Charles Bronson; ou seja,
ela só consegue alcançar o objetivo com a ajuda de um homem).
Quanto ao pastiche, basta lembrar do comentário de Jean Baudrillard. A estrutura nar-
rativa de Era uma Vez no Oeste foi concebida como um mosaico em que uma citação levava
à próxima, e assim por diante. O objetivo de Leone era realizar uma elegia ao gênero, home-
nageando-o ao contar a história dele através das citações, que podiam consistir tanto em relei-
turas críticas e irônicas de determinados códigos quanto em alusões diretas que respeitavam
e homenageavam nostalgicamente esses códigos.
Algumas citações são óbvias, como a cena de abertura, com três pistoleiros esperando
a chegada de um trem numa estação semideserta (figura 65) – a mesma situação dramática é
mostrada em segundo plano durante Matar ou Morrer (1952, figura 66). Ou a cena em que
o menino Timmy McBain se esgueira por entre árvores para caçar pássaros (figura 67),em
tomadas que aludem a uma cena de Os Brutos Também Amam (1953), em que outra criança
faz os mesmos movimentos para atirar em um cervo (figura 68).
A chegada da locomotiva, na abertura (figura 69), consiste numa citação múltipla.
Visualmente, alude a uma tomada famosa de O Cavalo de Ferro (1924, figura 70), obtida
com a câmera colocada num buraco sob os trilhos; tematicamente, a chegada da ferrovia – e
o consequente despertar da cobiça de pistoleiros – simboliza a domesticação da região selva-
gem pelo homem branco colonizador. Esse tema foi explorado em muitos westerns, inclusive
Os Conquistadores (Western Union, Fritz Lang, 1941) e A Conquista do Oeste (1962).
FIGURA 65: A sequência de abertura de Era uma Vez no Oeste, que flagra a monotonia de três pistoleiros
aguardando a chegada de um trem, é citação de...
FIGURA 66: ...Matar ou Morrer (1952), em que três pistoleiros esperam um comparsa em cenário parecido,
que inclui até uma caixa d’água em segundo plano.
FIGURA 67: Em Era uma Vez no Oeste, pouco antes da chegada dos pistoleiros ao rancho da família McBain,
a câmera segue um menino fingindo caçar pássaros...
FIGURA 68: ...em uma citação direta a Os Brutos Também Amam (1953), em que uma criança caça um cervo
e é interrompida pela chegada de um cavaleiro.
FIGURA 69: O ângulo baixo de câmera escolhido para filmar o plano que mostra a locomotiva pela primei-
ra vez em Era uma Vez no Oeste, durante os créditos...
FIGURA 70: ...é exatamente igual à imagem icônica da viagem do trem no clássico do cinema mudo O Cavalo
de Ferro (1924), um dos primeiros longas de John Ford.
FIGURA 71: Uma das sequências mais lembradas de Era uma Vez no Oeste faz reverência aos westerns de
John Ford através das montanhas de Monument Valley.
FIGURA 72: A reserva indígena no Utah (EUA) era o local preferido de John Ford, que fez lá oito longa-me-
tragens, inclusive o clássico Rastros de Ódio (1956).
133
A própria figura de Juan é suficiente para inscrevê-lo na galeria de pícaros de Leo-
ne: pés descalços, barrigudo, barba mal aparada, cabelos desgrenhados e grudados no rosto
queimado de sol, roupa suja e puída, largas manchas de suor nas axilas, barrigudo, risada
maníaca.
Juan é o primeiro protagonista de um filme de Leone que possui família: seis filhos (de
mães diferentes), irmãos e sobrinhos. Juntos, os integrantes do clã abrem o filme assaltando
uma carruagem. A encenação e a decupagem enfatizam os elementos picarescos, a ironia, o
senso de grotesco; são todos elementos característicos de um legítimo anti-herói inspirado na
tradição literária da commedia dell’arte.
O filme abre com uma tomada insólita, que mostra um formigueiro sendo destruído
por um jato de urina (figura 73) – mais tarde, esta cena comporá uma rima narrativa me-
tafórica com o balé de violência da sequência final, em que uma multidão de camponeses
indefesos acaba assassinada num tiroteio com militares. O responsável é Juan (figura 74).
Ele apanha carona numa carruagem (figuras 75 e 76) que leva um bispo (mais uma vez, a
iconografia religiosa é usada para adicionar uma camada suplementar de ironia) e meia dúzia
de burgueses bem vestidos (figura 77).
FIGURA 73: Jato de urina destrói formigueiro: close-up extremo e rima irônica com o final, numa metáfora
em que as formigas representam os revolucionários.
FIGURA 74: A figura grotesca e bizarra de Juan (Rod Steiger) o inscreve instantaneamente na galeria de
pícaros da tradição literária ítalo-espanhola
FIGURA 75: O condutor da carruagem (primeiro plano) autoriza Juan a subir a bordo (segundo plano):
composição recessiva em profundidade de campo.
FIGURA 76: A atuação histriônica de Steiger faz par com o figurino – cabelos suados, pés descalsos,
calças curtas demais – para sublinhar o grotesco da figura.
FIGURA 77: Os burgueses na carruagem, inclusive um bispo, recepcionam o mexicano com desprezo; a
composição recessiva tem outro rosto como moldura.
FIGURA 78: Os close-ups extremos dos rostos dos personagens são intercalados com planos-detalhes de
bocas com pedaços de comida presos entre os dentes...
FIGURA 79: ...que irá reverberar dramaticamente mais tarde, quando Juan tentar estuprar a mulher numa
arena circular; o estupro é encenado como um duelo...
FIGURA 80: ...Em que planos gerais, com a encenação realizada em diagonal, são intercalados a close-ups
extremos dos personagens – e não apenas dos rostos!
O modo como Leone filma os burgueses comendo, enquanto riem de Juan falando
em inglês (e pensando que ele não os entende) enfatiza ainda mais o grotesco: profusão de
planos-detalhes de bocas mastigando pedaços de comida (figura 78), com restos presos nos
dentes. Mais à frente, camponeses atacam a carruagem, e só então descobrimos que tudo
não passa de uma emboscada tramada pelo próprio Juan, que lidera o assalto. A sequência
termina com uma cena que mostra Juan estuprando uma das mulheres da carruagem – mais
um estupro para a longa galeria de cenas semelhantes nos filmes de Leone.
Leone não filma o estupro em si (que está contido em uma elipse). A abordagem de
Juan à mulher tem decupagem semelhante a um duelo: sem diálogos, num cenário circular,
em que os dois rivais se movem um ao redor do outro (figura 79), o tempo distendido através
da fragmentação do espaço fílmico em close-ups extremos e planos-detalhes, até que o me-
xicano alcança a mulher e a agarra (figura 80). Juan domina a moça e, expressão vitoriosa,
encerra a cena com uma frase irônica: “Se desmaiar agora, vai perder a melhor parte!”. A
linha de diálogo é coberta por uma imagem que resume perfeitamente o grotesco da situação:
um close-up extremo da bunda do ator Rod Steiger.
Além de Juan, Quando Explode a Vingança tem um segundo protagonista: o irlandês
Sean (James Coburn), membro do IRA, que se encontra no México para auxiliar os campo-
neses na rebelião contra o governo nacional (o filme se passa entre os anos de 1910 e 1920,
durante a Rebelião Mexicana). Embora destoe dos demais heróis de Leone, por ter ideologia
e motivação políticas, Sean passa por uma jornada no decorrer do filme, tornando-se mais
desiludido. Ele faz amizade com Juan e se decepciona com a causa revolucionária (após des-
cobrir que os líderes camponeses estão mais interessados em enriquecer do que em levar a
revolução ao poder), sacrificando-se no final por ter contribuído para a destruição da família
do assaltante. Este, por sua vez, vê todos os filhos, irmãos e sobrinhos serem mortos, tornan-
do-se sem querer um herói dos revolucionários; um herói que odeia a revolução.
Apesar do credo político, um aspecto de Sean reflete o seu individualismo amoral.
Através de flashbacks inseridos gradualmente com lembranças de Dublin, percebemos que a
mudança para o México não ocorreu apenas por razões ideológicas, mas também por um mo-
tivo afetivo: a namorada por quem era apaixonado havia sido assassinada, fazendo-o deixar a
Irlanda para tentar superar o trauma. Mais um familista amoral sem família.
Quanto ao uso de múltiplos protagonistas, Leone parecia gostar da ideia de ter uma di-
nâmica entre heróis com caracterizações distintas. Isso pode ser conferido em todos os filmes
dele, a partir de Por uns Dólares a Mais, e também aparece em Meu Nome é Ninguém, última
incursão de Leone pelo western. Nesse último caso, é importante frisar que o filme não foi
dirigido oficialmente por ele. Leone aparece nos créditos como produtor e argumentista. Na
prática, sabe-se que ele trabalhou com o roteirista Ernesto Gastaldi, escolheu parte da equipe
criativa (incluindo Ennio Morricone) e dirigiu todas as cenas registradas nos Estados Unidos,
em variadas locações nos estados de New Mexico e na cidade de New Orleans. Essas cenas
consistem de aproximadamente dois terços do filme (HUGHES, 2004, p. 246).
Nesse longa-metragem, a técnica do pastiche aparece bastante, a começar pelo próprio
título (a frase Meu Nome é Ninguém foi retirada do diálogo de Ulisses com o Ciclope, na
Odisseia de Homero). Porém, dessa vez Leone utiliza com mais frequência o alusionismo
139
Após este filme, Leone não retornaria mais ao western, tendo se dedicado ao projeto
que acalentava desde o começo da carreira: um épico gângster cujo conceito central era a vio-
lência como motor propulsor da prosperidade dos Estados Unidos. Embora lidasse com um
gênero diferente, Leone trouxe consigo todo o repertório de técnicas estilísticas e narrativas,
a começar pelo perfil dos heróis, pelas citações abundantes e pela representação da violência.
O filme de gângster, que nos anos 1930 tinha sido um dos gêneros mais populares dos
Estados Unidos, passava por uma onda de revitalização após o grande sucesso de O Poderoso
Chefão (1972). Francis Ford Coppola, assim com a maior parte dos cineastas da geração New
Hollywood, assimilara alguns recursos estilísticos desenvolvidos pelos diretores europeus
dos anos 1960, inclusive Leone. Seus filmes já tinham heróis amorais e violência gráfica.
Mesmo assim, Leone teve problemas de ordem moral. Ele precisou lutar para con-
vencer executivos que os dois personagens centrais eram viáveis para uma audiência ame-
ricana. O problema estava no perfil violento de ambos. O épico mostrava a ascensão de
Noodles (Robert De Niro) e Max (James Woods), de jovens e ambiciosos ladrões de padaria
no Brooklyn a chefes de um império mafioso. Nessa trajetória, os dois agiam sem qualquer
limite moral: assassinatos, assaltos, estupros. Ninguém sofria qualquer tipo de crise de cons-
ciência por causa disso, e nem mesmo uma punição simbólica. Mas o filme foi feito.
A cena em que Noodles corteja a atriz Deborah (Elizabeth McGovern), e termina
estuprando-a após ficar furioso com a recusa dela em ceder às investidas, sintetiza algumas
dessas características. Sua análise permite perceber como Leone ajustou o perfil do anti-herói
para um gênero urbano, em que ele é obrigado a viver em sociedade. No século XX, afinal de
contas, a opção de abandonar a sociedade e viver vagando pelo deserto não existia mais. Era
preciso seguir regras sociais, mesmo que apenas por aparência.
O longa-metragem é narrado do ponto de vista de Noodles que, chegando à velhice em
1968, começa a recordar o passado. Toda a atmosfera é de nostalgia, incluindo a música – a
mais convencional composta por Morricone para Leone, repleta de orquestras de cordas e
big bands jazzísticas que evocam a música verdadeira ouvida nos tempos da juventude do
protagonista – com citações a fraseados musicais de trechos de canções conhecidas (ou seja,
pastiche). O tema central, que aparece em diversas versões e arranjos no decorrer do filme,
consiste numa adaptação da canção espanhola Amapola, de 1922.
A nostalgia enfatiza uma “insatisfação latente com a cultura do presente, deixando um
vazio que preenchemos com a nostalgia por um passado idealizado” (HUTCHEON, 1998).
Trata-se de outra experiência estética associada à condição pós-moderna. A nostalgia é ele-
mento central também na estrutura narrativa não-cronológica, já que a maior parte do enredo
consiste nas lembranças entrelaçadas de dois períodos distintos do passado (1923 e 1933), a
partir da mente de um homem que se encontra mais de três décadas depois.
Aliás, a construção narrativa em larga escala enfatiza a maior ousadia em Leone em
direção à intensificação de sua prática narrativa. As memórias do mafioso são contadas de
forma não linear, com flashbacks fora de ordem, que confundem deliberadamente a realidade
com a fantasia, de forma que o espectador nunca tem certeza se está vendo o que ocorreu
realmente ou representa uma versão idealizada do passado de Noodles, distorcida pelas pró-
prias memórias do delinquente. Era Uma Vez na América trafega indistintamente entre três
141
CENA DE “ERA UMA VEZ NA AMÉRICA” (1984)
4. PRÁTICAS ESTILÍSTICAS DE LEONE
143
circular feita de pedras no centro do cemitério. Blondie encerra o duelo com dois tiros certei-
ros, matando Angel Eyes, enquanto Tuco descobre que seu revólver está descarregado, pois
Blondie havia retirado as balas na noite anterior.
Nesse ponto reside um aspecto importante da releitura, operada através da ironia.
Somente ao final da sequência o espectador descobre, junto com Tuco, que todo o duelo,
cuja ação dramática evolui num tenso movimento de crescendo, construído através de uma
combinação cuidadosa de montagem visual, edição de som e música, foi uma farsa. Blondie
sabia desde o início que Tuco não representava ameaça, de modo que pôde concentrar toda
a atenção em Angel Eyes, enquanto os outros dois pistoleiros tinham que dividir a atenção
alternadamente entre um e outro adversário.
Estando em vantagem diante dos dois, não havia sido dificuldade para Blondie eli-
minar o adversário mais perigoso. Na verdade, a sequência toda constitui uma subversão
do código do duelo em três níveis: (1) há três adversários em cena, ao invés de dois; (2) se
num western normal o pistoleiro mais rápido ganha, aqui vence o mais astuto, pois ele usa
um truque desleal para sair em vantagem; (3) tanto quanto Tuco foi enganado por Blondie, o
espectador foi enganado por Leone.
Tuco é o primeiro a chegar ao cemitério. A primeira tomada, cujo corte está em sin-
cronia com a última nota da melodia que sublinhou a cena anterior, consiste num close-up
extremo do rosto do pistoleiro, com expressão exultante (figura 81). Ele olha diretamente
para a câmera; esta representa o túmulo procurado, aquele onde está escondido o tesouro. Há
dois aspectos interessantes na escolha do ângulo de câmera para este plano em particular. Em
primeiro lugar, o ângulo escolhido, em que a câmera assume o ponto de vista do túmulo onde
o tesouro está enterrado. Esse ponto de vista força o personagem a olhar diretamente para a
câmera, um procedimento raro nos esquemas dominantes do cinema clássico, mas bastante
comum no modernismo europeu dos anos 1960, cujos cineastas gostavam de lembrar ao
espectador que ele está assistindo a um filme, à maneira de Bertolt Brecht.
Esse recurso estilístico era evitado no cinema de Hollywood porque se temia que ele que-
brasse a ilusão de imersão na história proporcionada pela poética da continuidade clássica. A revi-
são dos esquemas realizada pelos cineastas europeus dos anos 1960, contudo, estava progressiva-
mente reabilitando a ferramenta, que fora usada nas duas primeiras décadas do cinema mudo – por
exemplo, no plano final do western O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, Edwin
S. Porter, 1903). A Tortura do Medo (Peeping Tom, Michael Powell, 1960) e As Aventura de Tom
Jones (Tom Jones, Tony Richardson, 1963), por exemplo, constituem alguns dos filmes em que
esse recurso foi usado. Então é possível afirmar que, ao incluí-lo no repertório estilístico utilizado
em Três Homens em Conflito, Sergio Leone estava (conscientemente ou não) se alinhando ao
grupo de diretores que iniciaram a poética da continuidade intensificada.
O segundo ponto que chama a atenção é a abundância do enquadramento em close-up,
sobretudo na variação extrema. Esse tipo de composição, embora comum, é muito mais fre-
quente no cinema de Sergio Leone do que no repertório de qualquer outro cineasta contem-
porâneo dele (COUSINS, 2004, p. 33). Para se ter uma ideia, dos 149 planos que constituem
a cena, nada menos que 77 deles são close-ups – ou seja, 51,67%, mais da metade de todos
os planos utilizados na montagem final.
FIGURA 82: Tuco olha para o túmulo onde o tesouro supostamente está enterrado; a banda sonora inclui
apenas sons fora de quadro (vento, pássaros e corvo).
FIGURA 83: Agora, os sons emitidos por ele (respiração e ruídos da escavação) se somam à trilha sonora;
o pistoleiro é mostrado em planos gerais e médios.
FIGURA 84: A sombra de Blondie entra em quadro sem que Tuco o veja se aproximar; sabemos que é ele por
causa do leitmotiv (a música tocada com uma flauta).
FIGURA 85: Blondie é enquadrado em contra-plongé (ele comanda a ação); o corvo – ave de mau agouro na
mitologia – grasna mais alto em segundo plano sonoro.
FIGURA 86: Tuco é filmado em plongé (ângulo que representa submissão); ele avalia a possibilidade de
atirar em Blondie para ficar com o tesouro só para ele...
FIGURA 87: ...e Leone narra essa hesitação cortando para um plano-detalhe da mão do pistoleiro se apro-
ximando lentamente do revólver no bolso.
FIGURA 88: Tuco desiste de reagir e volta a cavar; com o alívio da tensão, a câmera se afasta e passa a
filmar os personagens num clássico plano de conjunto.
FIGURA 89: Uma pá entra em quadro por baixo do frame (trompe l’oeil), acompanhada pelo leitmotiv musi-
cal do trio: antes de vê-lo, sabemos que Angel Eyes chegou.
FIGURA 90: Blodie se recusa a cavar e diz que se for baleado, o tesouro estará perdido para sempre; o
close-up extremo de Angel Eyes indica o alto nível de tensão.
FIGURA 91: Blondie chuta a tampa do caixão e revela um esqueleto lá dentro; a localização do tesouro,
que parecia certa, volta a ser um mistério para os outros
FIGURA 92: Blondie apanha uma pedra no chão, escreve algo embaixo dela e começa a caminhar para o
centro do cemitério; agora, ninguém domina ninguém.
FIGURA 93: Um degüello começa a ser executado enquanto Blondie caminha; o violão flamenco faz floreios
cuja intensidade cresce no momento em que...
FIGURA 94: ...Blondie deposita a pedra no chão e a câmera faz um zoom in na pedra; a música se torna mais
dramática e agora inclui um solo de trompete.
FIGURA 95: O refrão apoteótico soa em volume máximo, enquanto os três se movem lentamente dentro da
arena, num plano geral que dura 22 segundos...
FIGURA 96: ...e é sucedido por outro plano geral, mais longo (39 segundos) e com a câmera mais distante,
que descreve as relações espaciais entre os pistoleiros.
FIGURA 97: Leone corta para um plano médio e a música cessa de repente; agora só se ouve o vento soprar,
o canto longínquo de pássaros e o corvo.
FIGURA 98: Blondie também é filmado em plano médio, com a mesma duração da tomada anterior, dedicada
a Tuco; a simetria de ângulo e duração dos planos...
FIGURA 99: ...se estende também à tomada dedicada a Angel Eyes; Leone sinaliza através da decupagem a
equidade de forças entre os três protagonistas
FIGURA 100: O próximo bloco de três tomadas recorre a uma das composições prediletas de Leone: um
elemento em primeiríssimo plano (cabeça e ombro)...
FIGURA 101: ...e a ação dramática acontecendo ao fundo (outro pistoleiro); as duas camadas da imagem
permanecem focalizadas com nitidez.
FIGURA 102: A mesma composição recessiva é dedicada aos três personagens, reforçando a isonomia de
força e astúcia; todos os sons diegéticos são eliminados...
FIGURA 103: ...enquanto o degüello de Morricone ressoa ao fundo; a ausência de planos gerais fragmenta
o espaço fílmico e induz a uma representação indireta...
FIGURA 104: ...do tempo, que parece passar mais lentamente do que o normal; a câmera permanece está-
tica em todos os planos dessa sequência...
FIGURA 105: ...enquanto a duração das tomadas é progressivamente encurtada; a montagem ainda é simé-
trica, dedicando o mesmo tempo e os mesmos...
FIGURA 106: ...enquadramentos para todos os protagonistas; a cada mudança de enquadramento, a câmera
se aproxima um pouco mais dos rostos.
FIGURA 107: Durante os primeiros close-ups, é possível perceber que Blondie permanece calmo, olhando
fixamente para a sua direita, para o local onde está...
FIGURA 108: ...Angel Eyes, cuja fisionomia é tensa mas firme; os olhos dele dançam de um lado para o
outro do rosto, denotando indecisão (ausente no adversário).
FIGURA 109: A fisionomia de Blondie parece rígida como uma rocha; ele não traga o cigarro e continua a
olhar exclusivamente para a direita, desprezando Tuco.
FIGURA 110: Angel Eyes, por sua vez, olha para um lado e para o outro; ele parece mais tenso, enquanto
os close-ups extremos duram menos a cada rodada.
FIGURA 111: Dos três pistoleiros, Tuco parece ser o mais agitado; sua musculatura está inteiramente
rígida de tensão e seus olhos não se fixam em nenhum ponto.
FIGURA 112: Leone inclui mais uma rodada de planos com composições recessivas (moldura, encenação em
diagonal e profundidade de campo); o primeiro plano...
FIGURA 113: ...é sempre ocupados pelos revólveres e mãos (que se aproximam lentamente das armas) dos
heróis; a tensão está prestes a chegar ao máximo.
FIGURA 114: Leone explora várias vezes no filme o defeito físico de Lee Van Cleef, que havia perdido a
ponta do dedo médio da mão direita num acidente.
FIGURA 115: A ausência de sons diegéticos deixa o espectador sem pontos de síncrese e contibui para a
percepção de que o tempo parece estar congelado.
FIGURA 116: Durante a rodada de close-ups extremos dos olhos dos pistoleiros, o nervosismo de Tuco fica
mais evidente, assim como a calma de Blondie...
FIGURA 117: ...cujo olhar fixo parece adivinhar o desfecho da cena; perto do fim, o degüello ganha uma
percussão militar e a música se torna ainda mais épica.
FIGURA 118: Angel Eyes permanece imóvel, mas seus olhos agora já não param de dançar entre um lado e
o outro do rosto, denotando indecisão e impaciência.
FIGURA 119: O movimento da mão de Angel Eyes acontece no exato momento em que a música para de tocar;
os planos se sucedem em alta velocidade.
FIGURA 120: Ouve-se um tiro, e o próximo plano que vemos mostra Blondie com o revólver apontado para
Angel Eyes; o silêncio acentua a gravidade do momento.
FIGURA 121: Após um rápido plano geral, a câmera se aproxima e mostra Angel Eyes caindo; ele se arrasta,
ferido, procurando a arma que lhe escapou das mãos.
FIGURA 122: Enquanto isso, Tuco saca o revólver e tenta atirar, mas descobre que sua arma não tem
munição: Blondie a havia descarregado na noite anterior.
FIGURA 123: Angel Eyes consegue pegar o revólver e se vira para Blondie; o close-up acentua rapidamente
o nível de tensão, já que o pistoleiro agora pode revidar.
FIGURA 124: Antes que isso aconteça, porém, Blondie acerta o segundo tiro; o impacto da bala jogo o corpo
sem vida de Angel Ayes diretamente dentro da cova.
159
interno da cena, ao passo em que, na poética da continuidade clássica, os cineastas represen-
tavam a passagem do tempo da forma mais natural possível, sem cortes bruscos que pudes-
sem abalar a sensação de que o tempo transcorria em paralelo à vida real (no cinema clássico,
saltos cronológicos ocorrem basicamente nas elipses e transições entre cenas).
Essa conexão entre a preferência por close-ups e o tratamento do tempo diegético
parece ter uma relação direta com a representação mais fragmentada do espaço fílmico, par-
ticularmente nos momentos de drama mais intenso, em que a câmera fica mais próxima
dos personagens e a montagem é mais veloz. Leone sustentava a representação fragmentada
do espaço fílmico durante o máximo de tempo possível, para então justapor aos close-ups
e planos-detalhes uma ou outra tomada panorâmica em que os personagens se tornavam
pontinhos minúsculos se movendo na tela (figuras 95 e 96). Essa economia de planos gerais
contribui para não deixar tão claras as relações espaciais entre os personagens da cena.
A fragmentação do espaço fílmico fica mais evidente a partir do instante em que a
sequência entra em sua segunda cena, quando os três personagens passam a se encarar em
igualdade de condições, já que até então as relações de forças entre eles eram desequilibradas
(figura 93 em diante). Não por acaso, é exatamente nesse momento que a música de Ennio
Morricone é ouvida pela primeira vez. Mas, por enquanto, retornemos ao início da cena,
quando Tuco chega (figuras 81 e 82). Ele começa a cavar (figura 83), quando a sombra
de um homem entra no quadro pelo lado esquerdo (figura 84), ao mesmo tempo em que é
possível ouvir, na trilha sonora, o fraseado que funciona como leitmotiv e, assim, identifica
o dono da sombra antes que possamos ver seu rosto. É Blondie. A melodia de cinco notas
(LÁ-RÉ-LÁ-RÉ-LÁ), associada ao instrumento que a executa (a flauta doce) o identifica.
Até então, Leone decupa a ação recorrendo a ângulos de câmera clássicos: Tuco é fil-
mado em plongé, do ponto de vista de Blondie, enquanto este é enquadrado em contra-plongé
(figura 85). Blondie está no comando. Tuco hesita (figuras 86 e 87), mas volta a cavar (fi-
gura 88), aceitando a superioridade momentânea do outro.
Nesse momento, Angel Eyes chega. A entrada em cena do personagem de Lee Van
Cleef é semelhante à chegada de Clint Eastwood, e sintetiza outro recurso estilístico im-
portante na obra de Leone: a relação por vezes contraditória entre aquilo que está sendo
mostrado no quadro e os elementos que estão fora dele; uma espécie de trompe l’oeil cinema-
tográfico (figura 89). Os dois personagens focalizados pela câmera só percebem a chegada
do terceiro ator quando uma pá entra em quadro por baixo do frame. No mundo real, essa
aparição quase sobrenatural seria literalmente impossível. Afinal, os dois homens estão num
terreno amplo, sem qualquer barreira aos olhos; um lugar silencioso. Seria impossível que
outro ser humano se aproximasse de qualquer lado sem ser ouvido, ainda mais considerando
que esses dois homens são pistoleiros profissionais de categoria já comprovada.
Nos filmes de Leone, contudo, essa relação do espaço em quadro com o espaço fora
do quadro é constantemente fantasiosa; os personagens focalizados pela câmera muitas vezes
só enxergam aquilo que está dentro do quadro, numa espécie de adaptação para o cinema da
técnica do trompe l’oeil. Essa técnica também vale para a aparição de Clint Eastwood diante
de Eli Wallach, reforçada pelo fato de que Tuco sabia, perfeitamente, que o adversário estava
apenas alguns minutos atrás de si e, portanto, chegaria rapidamente até ele. Frayling (2000)
explica assim a relação entre o espaço do quadro e o que está fora dele, na obra de Leone:
161
A partir desse momento, há cinco sons audíveis. Dois deles são provenientes de fontes
sonoras que estão em quadro (a respiração de Tuco e os ruídos produzidos pela escavação).
Os outros três provêm de fontes sonoras situadas fora do quadro: o barulho do vento sopran-
do, o canto dos pássaros (sutil, mas intermitente) e o grasnar periódico de um corvo, mais alto
e forte que o piar dos outros pássaros.
Esses dois grupos de sons têm importâncias narrativas diferentes, pois afetam a percep-
ção da cena pelo espectador de maneiras distintas. Os dois sons cuja fonte de origem está visível
são produzidos por Tuco, único personagem em quadro; eles providenciam pontos de síncrese
(CHION, 1994, p. 58) entre a trilha de áudio e as imagens (tanto dentro de cada plano quanto na
justaposição entre eles). Esses pontos de síncrese asseguram ao espectador que a sincronia entre
informações visuais e auditivas está sendo respeitada. Nesse caso, os sons não contêm em si nenhu-
ma informação narrativa relevante. Eles apenas reforçam a impressão de realismo para o público.
Os outros ruídos – os sons fora de quadro – são mais importantes, do ponto de vista ex-
pressivo e emocional, apesar de menos percebidos pela audiência. O público não vê pássaros,
corvo ou vento em momento algum da cena; por uma questão fisiológica de seleção operada
pelo aparelho auditivo da espécie humana, relega automaticamente esses ruídos a um plano
secundário de percepção sonora. Nesse tipo de situação, os sons fora de quadro atingem o
espectador diretamente numa dimensão sensorial, produzindo um efeito – uma sensação –
que não sabemos explicar como ocorreu, porque não identificamos a sua origem, já que não
pensamos no que esses sons secundários fazem conosco.
É frequente, nos filmes, que o espectador sinta certas sensações (medo, angústia, isola-
mento etc.) sem conseguir explicar concretamente qual a combinação de elementos visuais e/
ou sonoros que causou essa sensação. Só a análise cuidadosa, do ponto de vista da percepção,
pode revelar como tal efeito foi construído pelo diretor. Os sons fora do quadro, com bastante
frequência, têm enorme grau de responsabilidade na construção dessas cenas.
O piar dos pássaros, o vento e o grasnar do corvo têm a função de proporcionar ao
espectador uma noção tridimensional do espaço fílmico onde a cena se desenrola. Mas esses
três ruídos possuem, também, a função suplementar – e primordial – de criar uma atmosfera
de isolamento, de decrepitude, de morte. Tuco está num cemitério; o corvo, na mitologia gre-
ga, simboliza a má notícia, o azar e a morte. A presença desse pássaro, sinalizada pelo som
fora de quadro, é expressiva; acentua a tensão do momento, porque o espectador realiza uma
conexão de ideias sem pensar: a morte está por perto. Algum perigo se aproxima.
Antes de prosseguir, é preciso chamar a atenção para o uso que Sergio Leone faz
do silêncio. Não é aquele silêncio que Jean-Claude Carrière (1994) denomina de “silêncio
absoluto”, referindo-se à ausência irrestrita de ruídos, vozes e música, um silêncio criado
artificialmente em estúdio, pois “não existe na natureza” (CARRIÈRE, 1994, p. 34), mas a
um silêncio que se coaduna com a definição do termo oferecida por Michel Chion:
163
A iminência de um ato violento fica evidente; Leone sinaliza isso através do desenho
de som. O grasnar do corvo, antes ouvido de maneira esparsa, se torna mais insistente. O
espaço ouvido entre um grasnar e outro diminui sensivelmente. Em seguida Angel Eyes
chega; sua chegada é realçada pela introdução de um segundo trecho musical – as três notas
do contraponto (FÁ-SOL-RÉ), compondo uma segunda “resposta” à “pergunta” de Blondie.
Embora seja o mesmo fraseado, o instrumento que o executa não é a ocarina, característico
do personagem de Lee Van Cleef, mas um órgão de igreja. Qual a razão possível para que, a esta
altura do filme, uma convenção musical firmemente estabelecida dentro da narrativa seja desres-
peitada? Talvez seja uma tentativa deliberada de confundir o espectador; talvez o novo instrumento
seja uma referência à simbologia cristã, tão presente dentro da obra de Leone como um todo. Seja
qual for a razão para a troca de instrumento, o efeito pretendido – surpresa – é alcançado.
Por fim, os diálogos dominam auditivamente o trecho da cena a partir da entrada de
Angel Eyes. Como em todos os spaghetti westerns, as frases são dubladas. Essa técnica possi-
bilitava que Leone escolhesse o elenco, especialmente os coadjuvantes, pela aparência, à moda
de Eisenstein, sem restrições relacionadas à nacionalidade e, portanto, à língua nativa de cada
ator. Os atores podiam falar em qualquer língua, e alguns deles preferiam simplesmente contar
números, construindo frases com o mesmo número de sílabas do que a linha estabelecida pelo
roteiro. Eles sabiam que depois, na pós-produção, outro ator diria aquela frase em estúdio.
Por tudo isso, a sincronização das vozes com o movimento labial era pouco meticulo-
sa. Embora os sons vocais fossem emitidos sempre que os atores abriam a boca, os movimen-
tos labiais nem sempre correspondiam aos sons emitidos. De fato, essa característica não era
específica da obra de Leone; a questão da sincronia labial funcionava dessa maneira em todo
o cinema italiano, como nota Michel Chion:
FIGURA 125: Vera Cruz (1954), considerado um dos mais realistas westerns dos anos 1950, usava figuri-
nos de cores saturadas para oferecer visual grandioso.
FIGURA 126: Mesmo depois de vários dias cavalgando sob o sol do deserto, os personagens de O Homem que
Luta Só (1959) estão sempre limpos e arrumados.
Westerns passaram a ser encenados como jogos infantis, com atores caindo para
frente ao invés de serem jogados para trás pelo impacto dos tiros. Não se via
sangue. Por um Punhado de Dólares quebrou as regras, no que diz respeito à
representação da violência, e agregou um realismo que é possível notar nos
novos filmes. (LEONE, 2005, p. 82).
Assim, desde o primeiro western que fez, Leone instruiu Carlo Simi a pesquisar em
livros históricos e preparar uma vasta documentação fotográfica da época e do local onde a
ação dramática ocorria. Na cena analisada, essa preocupação fica evidente ao se examinar em
detalhes a locação do cemitério militar (figuras 82, 83, 88, 89 e 92).
Cemitérios eram locações familiares em westerns. Quando aparecem, em clássicos
como Paixão dos Fortes (1946) e Rastros de Ódio (1958), são sempre mostrados como lu-
gares cobertos com grama, com lápides organizadas, de aparência bucólica. O cemitério de
Três Homens em Conflito não é nada disso. Fica num vale quase sem vegetação, coberto de
poeira. É composto por 10 mil túmulos, a maioria com lápides improvisadas que consistem
de pedaços de madeira com nomes inscritos – muitas marcadas com a palavra Unknown, ou
Desconhecido –, cruzes toscamente construídas com gravetos ou pedaços de pau.
Essa representação improvisada de um cemitério (figura 127) pode parecer macabra,
mas é historicamente correta. Simi desenhou a locação com base em fotografias de Matthew
Brady (figura 128). Tudo isso – a preocupação com o realismo, a construção detalhada dos
cenários e objetos cênicos, as pesquisas iconográficas extensas – constituem uma operação
de worldmaking; ou seja, era mais uma prática estilística que buscava a intensificação.
O worldmaking também se estende aos figurinos. Tuco usa botas velhas, calça e casa-
co de veludo marrom (empoeirado) e uma camisa branca encardida (figura 83) de suor. An-
gel Eyes veste calça, colete e chapéu pretos (figura 99). Num jogo intertextual com seus dois
primeiros westerns, Leone faz Blondie resgatar, de um soldado moribundo que ele encontra
algumas cenas antes, um poncho idêntico ao que Joe e Monco usam nos filmes anteriores
(essa operação pode ser compreendida como um pastiche dos próprios filmes dele, inclusi-
ve). Dessa forma, no clímax de Três Homens em Conflito, Blondie usa exatamente a mesma
roupa que Joe e Monco vestiam nos outros dois filmes (figura 85). Todos os três personagens
estão cobertos de poeira, suados, rostos queimados de sol, barba por fazer.
O realismo dos figurinos demarca uma diferença crucial, em relação aos filmes ame-
ricanos. Nesses últimos, o herói sempre usa camisas roupas limpas, troca de roupa durante
a trama (mesmo quando viaja sem bagagem), está barbeado e de banho tomado. O uso da
cor em Leone, aliás, também obedece ao princípio do realismo; num universo de natureza
inóspita, em que os homens passam várias horas por dia sob o sol abrasivo, as cores – das
roupas, das casas, de tudo – se desgastam rapidamente:
FIGURA 128: Um cemitério militar da guerra civil registrado por Matthew Brady em 1862: referência visual
para a locação de Três Homens em Conflito.
Na primeira cena, ainda falta analisar o casamento meticuloso entre as trilhas de áudio
e imagens. A quase total ausência de música mascara um pouco esse entrelaçamento, mas ele
se faz presente de forma muito ostensiva na segunda parte, quando começa o trielo propria-
mente dito, que decidirá sobre a posse do tesouro.
Emocionalmente, o filme entra num novo estágio, a partir da segunda cena da se-
quência. Os três personagens se colocam em igualdade de condição; o enredo evoluiu até
apresentar o cenário característico de um duelo típico de western, uma convenção de gênero.
A partir daí, a cena sofre uma grande mudança de ênfase dramática. Nenhuma palavra será
pronunciada por qualquer um dos personagens até o final, um trecho que tem o total de qua-
tro minutos e 39 segundos (529 segundos) sem diálogos.
O desenho de som, os silêncios e as falas pontuadas de frases curtas, ironia e aforismos
– esta última, recurso muito usado em filmes contemporâneos que adotam a autoconsciência
como recurso narrativo, tratando diálogos e narração em off como slogans publicitários – dão
lugar à música. Trata-se de um degüello que, seguindo a tradição da parceria entre diretor e
compositor, é estruturado como uma canção pop, com dois versos em crescendo intercalados
por um refrão solado por um trompete.
167
A melodia é executada por esse instrumento nos refrões, momentos em que a música
se torna mais intensa; durante os versos que os intercalam, a melodia é dedilhada ao violão
flamenco, com alterações na velocidade e na intensidade da execução (rápida e forte em
alguns momentos, lenta e dramática em outros). Castanholas e uma seção de cordas em
segundo plano sonoro (esta última proporcionando o elemento de ligação que faz a ponte
entre o verso e o refrão) completam a harmonia, o ritmo seguindo fielmente a decupagem das
imagens – delicado para tomadas longas, vibrante quando a justaposição de tomadas se torna
mais rápida e os planos, mais curtos.
O mais importante, nesse procedimento estilístico, é a quebra deliberada de uma con-
venção característica da poética da continuidade clássica. Nos momentos de tensão dos wes-
terns de Leone (especialmente duelos), muitas vezes a música é mixada em volume mais
alto do que efeitos sonoros e vozes, os quais são, às vezes, eliminados por completo da trilha
sonora. O procedimento viola o esquema dominante do uso da música no cinema, desde os
tempos dos filmes mudos: a inaudibilidade da música (GORBMAN, 1988, p. 57).
Segundo Claudia Gorbman, a música cinematográfica está quase sempre, quando uti-
lizada da maneira clássica, subordinada a imagens e diálogos. Até os anos 1960, os diretores
usavam composições musicais para cumprir três funções narrativas principais: pontuar a
ação física (muitas vezes substituindo os efeitos sonoros), expressar e conduzir as emoções
da plateia, e dar um senso de continuidade às imagens. A música estava subordinada não ape-
nas à trilha de imagens, mas também aos diálogos. Desse modo, o espectador a percebia num
registro inconsciente, sem “ouvi-la” realmente – sem prestar atenção nela; essa inconsciência
sobre a presença da música seria elemento fundamental para reforçar a atenção dirigida pelo
espectador à progressão dramática da narrativa. É a mesma lógica da invisibilidade aplicada
à montagem no cinema clássico: sem cortes bruscos (no caso, sem intervenções sonoras
estridentes, que chamassem a atenção para si), a atenção do espectador ficava sempre volta-
da para a trama. Com isso, havia melhores possibilidades de engajá-lo emocionalmente na
história que estava sendo contada.
Nos filmes de Leone, esse uso “inaudível” da música é frequentemente recusado. Leo-
ne traz a música para o primeiro plano sonoro, muitas vezes subordinando o ritmo das ima-
gens a ela, ou retirando todos os outros sons (vozes e ruídos) da mixagem, fazendo a música
influenciar a leitura que o espectador faz das imagens. Leone realizava isso, essencialmente,
através de duas técnicas: (1) a sincronia entre a montagem imagética e a evolução melódica
da música de Morricone; e (2) a predominância da música sobre todos os demais sons da
trilha sonora, em certos momentos. Detalharemos tudo isso mais à frente.
É fundamental observar que esse procedimento não apenas revisava o esquema do-
minante do uso da música no cinema, mas também estava em consonância com a autorre-
flexividade pretendida pelos diretores modernistas da época, para quem deixar a técnica ser
percebida pela plateia era uma atitude natural. Portanto, esse uso da música constitui uma
opção estilística que se coaduna perfeitamente com a poética da continuidade intensificada.
Além disso, em certo sentido, a música é usada por Leone para reforçar a escolha
dos ângulos de câmera e modular dramaticamente a cena. O casamento entre a evolução da
música e a edição de imagens é meticulosamente planejado para interligar cada instância de
169
tempo do que acontecia em outros westerns, quase como se assistíssemos à cena em câmera
lenta – um recurso que Leone efetivamente nunca usa.
Nesse sentido, a audibilidade da música em certos trechos do filme – sua percepção
consciente por parte do espectador – era muito importante para libertar os acontecimentos
do duelo da linearidade espaço-temporal do resto da trama. À fragmentação espacial da cena
(conseguida através dos cortes rápidos e dos planos cada vez mais fechados) correspondia
uma eliminação (total ou parcial) dos sons diegéticos, com o predomínio da música, o que
acabava por tornar subjetiva a percepção da passagem do tempo. Daí vem a sensação de
câmera lenta, de tempo dilatado: embora a música proporcionasse continuidade temporal,
a fragmentação do espaço e a eliminação dos sons diegéticos contribuíam para inscrever os
duelos de Leone em uma dimensão onde o tempo passava mais devagar. O tratamento que
Leone dava ao tempo de seus duelos tem ligação importantíssima com a presença da música.
No exemplo, a música é introduzida como acompanhamento da caminhada de Blondie
em direção ao centro da arena. Ela começa com uma frase de trompete. Blondie deposita a
pedra no chão e a câmera faz um zoom, reenquadrando-a em plano-detalhe (figura 94), ao
mesmo tempo em que Morricone cria um súbito crescendo, adicionando violinos em unísso-
no e violão dedilhado; o crescendo corresponde com exatidão ao zoom. A sincronia entre os
movimentos da imagem e a evolução dramática da melodia é impecável. Não se pode deixar
de prestar atenção na música, mesmo que se tente, inclusive porque todos os sons diegéticos
são eliminados da trilha sonora. Ele é um dos exemplos mais eloquentes da revisão do esque-
ma dominante de uso da música no cinema levado a cabo por Leone.
O que se segue é quase um balé. Os três pistoleiros em círculos, lentamente, um olhan-
do para o outro, entre planos médios e close-ups de olhares desconfiados. Após o zoom, Leo-
ne justapõe duas tomadas panorâmicas (figuras 95 e 96), com respectivamente 22 e 39 se-
gundos de duração. São planos gerais abertos, em que os personagens se tornam minúsculas
manchas se movendo na tela. Esses dois planos indicam ao espectador as relações espaciais
entre os pistoleiros. Eles são essenciais para que se entenda o desenrolar da ação, pois daí em
diante Leone não incluirá mais nenhum plano geral, fragmentando sucessivamente o espaço
fílmico e aproximando cada vez mais a câmera dos heróis.
Durante os dois planos gerais os sons diegéticos somem. Não há diálogos e nem efei-
tos sonoros; apenas a música, que acelera e desacelera, pulsando no mesmo ritmo dos movi-
mentos da câmera, até que cada pistoleiro se coloque numa posição equânime dentro da arena
circular. O efeito de percepção obtido pelo conjunto (encenação, montagem visual e música)
é de que o tempo passa em câmera lenta.
Durante o primeiro plano geral, a música evolui do verso para o refrão, em um cres-
cendo cuja melodia é conduzida por uma seção de violinos que evolui até atingir a apoteose
durante o refrão. É aí que entra o trompete, executando um solo em tom de lamento; a harmo-
nia é sustentada por um coral masculino e violinos. No exato momento em que Leone insere
o segundo plano geral, o trompete inicia o solo do refrão. A sincronia é absoluta. Leone corta
para um plano médio de Tuco (figura 97) e, mais uma vez, a justaposição da imagem é sin-
crônica com o movimento da música, que é interrompida no exato instante do corte.
171
A concepção internacional de modernismo cinematográfico foi largamente di-
fundida a partir do neorrealismo tardio e dos trabalhos do jovem Bergman, atra-
vés dos filmes de Antonioni, Bresson, Fellini e Buñuel, até os Jovens Cinemas
dos anos 1960, especialmente a Nouvelle Vague. O ideal de objetividade de
Bazin e os elogios dos Cahiers sobre a mise-en-scène sóbria foram confrontados
por um cinema de fragmentação, ambiguidade, distanciamento e efeitos estéti-
cos flagrantes. (BORDWELL, 1998, p. 87).
Essa última sentença pode ser aplicada integralmente ao cinema de Leone. Burch
(1992), de novo, explica a construção dessas articulações espaços-temporais mais difusas,
propondo que a percepção do espectador não inclui apenas elementos dentro do quadro, pois
é afetada também por tudo o que circunda esse quadro, tanto visual quanto auditivamente (e,
no caso de Leone, podemos afirmar que é afetada também pela música autoconsciente). Bur-
ch afirma que a composição pictórica funciona como elemento central de um cubo percepti-
vo; a construção do espaço e do tempo fílmicos só se realiza dentro da mente de cada espec-
tador, depois que este articula aquilo que vê no quadro com os elementos que sabe estarem
fora do quadro, em todas as seis direções possíveis: os quatro limites da tela (as duas laterais,
em cima e em baixo), atrás da tela (e dos personagens) e em frente à tela (atrás da câmera).
E como é possível, para o público, ter conhecimento de todo esse espaço fílmico extra-
campo? Através da associação mental entre o plano que está sendo visto e o espaço fílmico
completo, que cada espectador reconstitui articulando o plano visto com os demais planos
que integram a cena. O som exerce um papel fundamental nesse processo cognitivo, pois
na vida real o espectador ouve em 360 graus, tendo dessa forma uma noção mais ou menos
precisa daquilo que existe fora de seu campo visual. O ponto central do raciocínio de Burch
é que os diretores europeus dos anos 1960, ao revisarem dessa forma as táticas de encenação
típicas dos esquemas da continuidade clássica, estavam expandindo as possibilidades cria-
tivas da arte cinematográfica (BURCH, 1992, p. 36). Embora Burch significativamente não
mencione Leone, podemos afirmar que a cena do trielo constitui um exemplo da nova forma
de articulação espaço-tempo a partir da decupagem e da música.
A cena analisada contém amostras de quase todas as características importantes da
prática estilística de Leone: tratamento particular do tempo fílmico, distendendo-o para mo-
dular a tensão; uso abundante de close-ups extremos; composições recessivas com moldura
em profundidade de campo; atenção obsessiva aos detalhes e preocupação com a acuidade
histórica; música que mistura elementos satíricos e neorromânticos, incorporando influên-
cias do concretismo modernista; desenho de som hiper-real, com ruídos naturais amplifica-
dos que constroem uma atmosfera emocional, ao mesmo tempo em que inserem as imagens
numa ambiente tridimensional; e cuidado meticuloso com a articulação entre som e imagem.
Leone rejeitava o rótulo de formalista. Ele rebatia essa afirmação evocando toda uma
linhagem de diretores antes dele que valorizava os close-ups de rostos com funções expres-
sivas. Nesse ponto, Leone tinha razão. Alguns diretores soviéticos dos anos 1920, especial-
mente Sergei Eisenstein, concebiam o close-up como um estudo pictórico da face humana,
extraindo dele não uma informação objetiva, mas um efeito emocional: “a essência está em
filmar expressivamente. Devemos (...) usar o limite da forma simples e econômica que ex-
pressa o que precisamos” (EISENSTEIN, 2002, p. 137). Era uma espécie de antecipação
avant la lettre da poética da continuidade intensificada, narrando de forma expressiva e não
meramente objetiva.
Diretores europeus em ação nos anos 1920 e 1930, a exemplo de Eisenstein e Carl
Dreyer, lançavam mão desse recurso estilístico com frequência. No entanto, eles faziam parte
16 Referência à frase famosa de Godard (“todo traveling é uma questão de moral”), publicada nos
Cahiers du Cinéma nº 97 (julho de 1959).
173
de uma minoria. Na Europa, o esquema dominante da época apontava para o registro visual
de cenas em tomadas longas e com câmera distante dos atores. Esses recursos eram ainda
mais proeminentes nos países europeus do que em Hollywood, onde também constituíam um
esquema dominante (SALT, 2009, p. 245).
Nos Estados Unidos, os cineastas usavam o close-up com mais economia e cautela,
pois “receavam que um corte súbito para um pormenor pudesse desagradar a um público
habituado a ver teatro e estar, assim, sempre à mesma distância da ação” (COUSINS, 2004,
p. 31). Por isso a poética da continuidade clássica, consolidada nos Estados Unidos a partir
de 1917, foi organizada em torno do princípio da suavidade – ou mesmo invisibilidade –
dos cortes. As cenas eram filmadas inicialmente com a câmera afastada da ação; os cortes,
efetuados no meio de alguma ação física efetuada pelos atores, quando então os cineastas
introduziam planos mais próximos, e vice-versa. Dessa forma, os espectadores não perce-
biam os cortes, pois se evitava os sobressaltos visuais que desviassem a atenção da história
que estava sendo narrada. O som (música, ruídos e voz) também exercia papel importante
nesse fluxo contínuo de informações: suas propriedades físicas (intensidade, tom e timbre)
eram mantidas tão estáveis quanto possível, no decorrer de uma mesma cena, para evitar que
alterações acústicas bruscas proporcionassem a eliminação desse princípio da invisibilidade.
Constituindo um instrumento de exceção nos esquemas visuais dominantes do cine-
ma clássico, a partir de 1928 o close-up passou a ser utilizado ainda menos, por uma razão
técnica: a instituição do cinema com som sincronizado, fato ocorrido no ano anterior. Pelo
menos até 1932 (SALT, 2009, p. 242), decupar qualquer cena em muitos planos multiplica-
va as dificuldades técnicas, devido às dificuldades logísticas de captação e edição dos sons
diretos. Por isso, a maioria das cenas era filmada em estilo tableau, em composições visuais
que focalizavam os atores de corpo inteiro, em planos gerais. Esses planos permitiam, muitas
vezes, que cenas inteiras fossem filmadas em uma única tomada. Somente a partir de meados
dos anos 1930 observou-se a tendência, tanto nos EUA quanto na Europa, de filmar os atores
com a câmera cada vez mais próxima, variando os enquadramentos.
Além disso, desde o aparecimento da televisão, nos final dos anos 1940, a utilização
de close-ups vinha aumentando gradativamente, embora com menor intensidade no cinema.
Seriados de TV recorriam com frequência ao close-up dos rostos dos atores para permitir que
o público acompanhasse a modulação emocional do enredo com mais facilidade – verificar
o grau de emoção irradiado por um rosto em planos gerais ou médios, na tela pequena de
um aparelho de televisão, era bastante difícil, de forma que os diretores começaram a inserir
close-ups de reação dos atores nos momentos mais dramaticamente significativos.
Essa técnica não foi assimilada imediatamente pelos cineastas por duas razões. Primei-
ro, havia um complicador tecnológico, pois os formatos anamórficos de imagem introduzi-
dos em 1953, como o Cinemascope, exigiam lentes especiais que deformavam as bordas dos
enquadramentos próximos (BORDWELL, 2008, p. 52), dificultando os close-ups normais e
inviabilizando os extremos. Além disso, havia um preconceito dos profissionais do cinema
para com a televisão, vista então como uma ameaça à indústria cinematográfica.
No começo dos anos 1960, quando Sergio Leone começou a dirigir, os dois proble-
mas estavam desaparecendo aos poucos. O Cinemascope dera lugar ao sistema Panavision,
175
reenquadramentos), e outros 551 close-ups extremos (141 com reenquadramentos). Esses números
significam que um a cada três planos do filme (551 planos, ou 37,43%) é um close-up extremo; e
um a cada cinco (325 planos, ou 22,07%), um close-up normal. O longa-metragem tem, ao todo,
876 planos em close-up. Isto significa que 59,51% do total de planos do filme são composições
pictóricas em close-up – três em cada cinco planos realizados. A quantidade de planos que contêm
reenquadramentos é ligeiramente maior do que em Por um Punhado de Dólares: 458, ou 31,11%
– média de um a cada três planos.
Era uma Vez na América foi realizado exatas duas décadas após o primeiro western
de Leone. Teve orçamento de US$ 30 milhões de dólares e utilizou um formato de imagem
diferente (saía de cena a proporção 2.35:1, substituída pela 1.85:1, mais comum nos Estados
Unidos). Mas as alterações financeiras e tecnológicas exerceram pouco impacto no uso do
recurso estilístico. O total de planos em close-up, soados os normais e extremos, chega a
1.019 dos 1.687 que compõem os 22 minutos do filme: 60,40% dos planos são em close-up,
um aumento menor que 1% em relação a Três Homens em Conflito, feito 18 anos antes.
Leone usou 444 planos (26,31%) em close-up normal, ou um a cada cinco; e 575
planos em close-up extremo (34,08%), ou um a cada três. São médias praticamente iguais às
alcançadas no filme de 1966. Quanto ao uso do recurso, a variação mais significativa de Era
uma Vez na América para os westerns de Leone é a quantidade de reenquadramentos. No
longa-metragem de 1984, 675 planos (40, 01% do total, ou dois em cada cinco) contêm pelo
menos um reenquadramento. Esta taxa indica um aumento de 10% no uso desse recurso, em
relação aos filmes italianos de Leone (ver Tabela D dos Anexos).
Para efeito de comparação, Barry Salt (2009, p. 281) contou os tipos de planos em
uma amostragem de 20 dos 151 longas-metragens produzidos nos Estados Unidos em 1959,
e chegou a um percentual de 44,38% de close-ups (dos quais 10,08% são close-ups extre-
mos). Ou seja, um a cada três planos em filmes da época são close-ups, índice semelhante
aos longas-metragens de Leone; e um a cada dez planos são close-ups extremos. Dentro dos
westerns, esse número é ainda menor (os cineastas valorizavam os planos gerais, como forma
de destacar a iconografia do gênero). O Homem que Luta Só (1959), por exemplo, usa 25
close-ups extremos, ou exatos 5% de todos os 500 planos do longa-metragem – um a cada 20
planos do filme. Os diretores de westerns da geração anterior praticamente não usavam clo-
se-ups extremos. Em No Tempo das Diligências (1939), John Ford usou apenas dois planos
do tipo (ou 0,30% dos 656 que compõem o filme). É correto afirmar, pois, que Leone usava
de duas a quatro vezes mais close-ups extremos do que os outros diretores de sua época.
A pesquisa de Barry Salt demonstra que o uso dado pelos diretores contemporâneos ao
close-up é significativamente maior, sobretudo da modalidade extrema, mas o uso que Leone
fazia do recurso permanece mais eloquente do que a média. Em 1999, Salt contabilizou os
tipos de planos usados em 671 filmes lançados comercialmente nos Estados Unidos e na
Inglaterra, chegando ao índice de 47,89% de close-ups (dos quais 15,43% da modalidade
extrema). Isso nos mostra que um a cada três planos de um filme atual consiste em close-up
normal, e um a cada seis planos se enquadra na definição de close-up extremo. A comparação
nos mostra que os filmes de Leone contêm pelo menos o dobro de close-ups extremos e 10%
a mais de close-ups normais, do que os longas-metragens realizados em 1999.
Nas composições recessivas, o artista se esmera em criar linhas diagonais que cortam
o quadro do primeiro plano até o fundo. Os artistas podem criar esse efeito através de vários
recursos, inclusive as gradações de luz e cor. Mas a maneira mais simples de instituí-lo na
imagem sempre foi a disposição das figuras em diferentes planos de profundidade da ima-
gem. No cinema, a composição recessiva é obtida quando o diretor posiciona figuras (atores
e objetos cênicos) a diferentes distâncias da câmera, o que injeta mais perspectiva ao quadro.
Movimento, luz e cores contribuem para acentuar o efeito, mas a disposição das figuras é a
maneira mais eficaz de alcançá-lo.
Ao longo da história do cinema, a composição recessiva constituiu uma alternativa de
encenação relativamente pouco utilizada pelos diretores. Nos anos 1920 e 1930, a encenação
dominante tendia a posicionar os atores numa linha perpendicular à câmera, produzindo um
achatamento visual que resultava numa imagem planimétrica (WÖLFFLIN, 2000, p. 102),
com quase nenhuma profundidade. Isso era resultado não apenas da influência do teatro,
mas também dos equipamentos – sobretudo lentes e película – ainda incipientes, que não
permitiam aos diretores de fotografia obter profundidade de campo muito extensa, de forma
que os atores, para ficar em foco, tinham que se posicionar numa faixa estreita do cenário.
177
Apesar disso, havia exceções, incluindo diretores famosos, oriundos de escolas e paí-
ses diferentes, que popularizaram a composição recessiva como uma alternativa viável à ima-
gem planimétrica, embora esta tenha permanecido mais popular no cinema clássico. Sergei
Eisenstein, Kenji Mizoguchi, Jean Renoir, John Ford e Orson Welles estão entre essas exce-
ções. Cada um deles revisou e adaptou as composições recessivas de uma maneira particular
e ligeiramente diferente dos demais. Todos influenciaram o processo de revisão e adaptação
desse recurso que Leone levou a cabo, nos anos 1960.
O uso típico que Leone dava à composição recessiva, porém, era muito próximo da va-
riação executada por Orson Welles. Havia sempre uma figura em primeiro plano emoldurando
a ação ao fundo; a profundidade de campo era ampla, com grande distância entre as duas ações
em diagonal, que por sua vez sempre se relacionavam, uma influenciando a outra. Como Wel-
les, Leone tinha predileção por planos com câmera fixa, dentro dos quais o movimento dos
atores era mínimo. Ele tendia a enquadrar de modo quase estático; suas composições recessivas
consistiam em, muitas vezes, tomadas com câmera fixa, em que os atores em quadro pouco ou
nada se moviam. A sensação de movimento era gerada não no interior da composição pictórica,
como os cineastas que o inspiraram, mas através da justaposição rápida desses planos recessivos
com outros planos (ou seja, através da montagem e da fragmentação do espaço fílmico).
Na obra de Leone, as composições recessivas quase sempre aparecem numa variação
ainda mais agressiva do que a criada por Welles: figuras colocadas a poucos centímetros da
câmera, emoldurando uma ação que ocorre em segundo plano, muito distante; profundidade
de campo maior do que a utilizada por Ford e Welles – a distância entre o primeiro plano e
o fundo, ampliada pelo uso de lentes grande-angulares, era frequentemente de até 20 metros;
composições pictóricas com pouco ou nenhum movimento (da câmera e dos atores).
Usando a tela larga widescreen da forma sugerida por Bordwell (BORDWELL, 2007,
p. 311) – uma superfície dividida em unidades rítmicas –, Leone frequentemente unia os dois
recursos proeminentes (close-ups extremos e composições recessivas) no mesmo quadro.
Fazer isso era simples: bastava usar um rosto, mão, pé ou objeto (revólver, coldre) como
figura em primeiríssimo plano; essa figura preenchia 2/3 ou metade da tela. Dessa maneira, a
linha diagonal criada dentro do quadro levava o olho do espectador do primeiro quadro para
o fundo, ao longe, criando um jogo de tensão que ampliava o suspense alcançado.
Mas será que a influência de outros cineastas é a principal explicação para o uso fre-
quente dessa variação da composição recessiva? Provavelmente não. Leone certamente usou
Welles, Eisenstein, Ford, Mizoguchi e Renoir como inspiração, mas combinou essa influên-
cia com a paixão declarada por pintores europeus (FRAYLING, 2000, p. 233). Entre esses
pintores estão Edgar Degas (1834-1917), Francisco Goya (1746-1828), Giorgio De Chirico
(1888-1978) e Diego Velásquez (1599-1660). A influência dos pintores pode ser constatada,
inclusive, pela relativa ausência de movimento dentro do quadro; Leone enquadrava como se
pintasse uma tela. Os planos que usavam a composição recessiva aparecem, dentro das cenas,
com uma solenidade que induz o espectador a admirar o “artista” que os produziu. Era, talvez
intuitivamente, uma tentativa de se impor como autor.
De fato, a composição recessiva com profundidade de campo de Leone pode ser com-
preendida como uma adaptação das técnicas de Degas e De Chirico para a arte cinematográfica.
FIGURA 129: La Classe de Danse (1873–1876), pintura a óleo que faz parte da série de obras mais famosa de
Edgar Degas, uma coleção da qual Leone era admirador.
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De Chirico era citado por Leone por outra razão, sobretudo pelo uso da nitidez agressi-
va nas composições com linhas diagonais, que incluíam um jogo de perspectiva forçada entre
as ações vistas em primeiro plano e no fundo (ambas muito nítidas). Esta é a concretização
mais clara da técnica do trompe l’oeil, que cria uma espécie de ilusão de ótica ao fazer certos
elementos do quadro parecerem maiores (ou menores, às vezes os dois ao mesmo tempo) do
que deveriam (figura 130).
FIGURA 130: Melancolia de uma Rua (1914), pintura a óleo que de Giorgio De Chirico: jogo com a perspectiva
faz com que as figuras pareçam de tamanhos enormes ou minúsculos.
181
Em 1963, surgiu uma solução técnica para esse problema. Essa solução permitia que a
câmera ficasse a poucos centímetros de distância do elemento em primeiro plano, mantendo
o foco nele e também na ação dramática mais distante, a até 20 metros de distância. Essa
solução surgiu em Roma, no laboratório italiano da Technicolor. Foi lá que alguns técnicos
inventaram um sistema que funcionava de modo semelhante ao Cinemascope. O sistema foi
chamado de Techniscope (BARBUTO, 2009).
Para entender como funcionava o Techniscope, é preciso compreender antes o fun-
cionamento do Cinemascope. Esse último foi desenvolvido por causa da necessidade que os
grandes estúdios sentiram, nos anos 1950, em adotar formato de tela diferente do utilizado
pela televisão, vista como uma ameaça à sobrevivência do cinema. Até ali, as câmeras re-
gistravam as imagens na proporção 1.33:1 (1,33 metro de largura para cada metro de altura).
Com o Cinemascope, a proporção passou a ser 2.35:1.
Para registrar a imagem mais larga, os técnicos utilizavam uma solução matemática
que envolvia o uso, acoplado à câmera, de lentes especiais anamórficas. A câmera capta a
imagem mais larga, mas esta, ao passar pela lente, é esticada duas vezes no sentido vertical
(esquema 1). Desta forma, a imagem impressa no negativo fica distorcida. No momento
em que o filme é projetado, outra lente anamórfica acoplada ao projetor elimina a distorção,
reproduzindo o quadro original (BARBUTO, 2009).
A adoção de sistemas Scope por todos os grandes estúdios, ao longo dos anos 1950,
determinou uma série de restrições técnicas ao trabalho dos cineastas, todas relacionadas à
dificuldade de manipulação das lentes anamórficas. Essas lentes eram caras, maiores, pesa-
das e menos capazes de obter profundidade de campo. Tudo isso impôs limites severos aos
movimentos de câmeras e às táticas de encenação:
ESQUEMA 1: Imagem fotografada com lente Cinemas- ESQUEMA 2: A imagem gravada na película pelo siste-
cope distorce a imagem esticando-a para cima, vol- ma Techniscope não é anamórfica e ocupa a metade do
tando ao normal apenas no momento da projeção. espaço na película, mas tem resolução mais baixa.
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Vimos, também, que ela aparece muitas vezes associada ao uso do close-up extremo
dentro da composição recessiva. Para jogar com a percepção do espectador, Leone usava
esses dois recursos; ele brincava, ainda, com a relação entre os elementos que apareciam
em quadro e outros que estavam fora dele. Esse recurso estilístico pode ser encontrado em
todos os filmes, com maior ênfase em Três Homens em Conflito. A característica já pôde ser
observada duas vezes na cena do cemitério, quando Blondie e depois Angel Eyes aparecem
para Tuco. Ambos esgueiram-se para dentro do quadro sem que sua movimentação chame a
atenção dos personagens em quadro, o que seria realisticamente improvável.
Um dos exemplos mais claros da maneira como Leone adaptou à mídia cinematográ-
fica a ideia fundamental do trompe l’oeil (ou seja, criar uma ilusão imagética que “engane
o olho”) está na tomada de abertura de Três Homens em Conflito. Aliás, nesse momento
específico, Leone usa a técnica não apenas para brincar a percepção do espectador, mas
também para subverter uma convenção do western (o plano de abertura que mostra o herói
cavalgando à distância).
A tomada inicia com um plano geral que mostra a paisagem do deserto (figura 131).
O plano geral, associado ao ângulo alto, sugere uma abertura nos moldes de um western
FIGURA 131: A tomada de abertura de Três Homens em Conflito inicia com um plano geral aberto, em que
se pode ver o deserto seco com montanhas ao fundo.
FIGURA 132: Com câmera fixa e sem cortes, o rosto de um pistoleiro entra em quadro, pelo lado esquerdo,
enganando o espectador: trompe l’oeil no cinema.
norte-americano, mas o que se segue é a aparição surpreendente do rosto em close-up ex-
tremo de um pistoleiro, que entra em quadro pelo lado esquerdo do frame (figura 132). O
efeito alcançado é, ao mesmo tempo, irônico e hiperdramático – ou pós-moderno.
Leone usa o trompe l’oeil para pregar peças visuais no espectador e criar efeitos cô-
micos repletos de ironia. Em outra cena, Tuco e Blondie estão numa estrada vazia (figura
133), conversando e caminhando de vagar, até o momento em que uma tropa de militares os
cerca, entrando no quadro por todos os lados (figura 134). Seria literalmente impossível que
os militares conseguissem se aproximar dos dois pistoleiros sem serem vistos ou ouvidos,
uma vez que eles são muitos e invadem o quadro também pela frente, a mesma direção para
onde, apenas um instante antes, Tuco e Blondie estavam olhando (lodo depois, Leone foca-
liza o espaço à esquerda dos dois, mostrando o exército inteiro ali, algo que deveria ter sido
notado pelos dois).
FIGURA 133: Blondie e Tuco caminham pela estrada e consultam um mapa, tentando descobrir onde fica o
cemitério militar em que o tesouro está enterrado
FIGURA 134: No instante seguinte, uma tropa de soldados cerca os dois, entrando em quadro pelos dois
lados e pela frente: trompe l’oeil cinematográfico.
185
4.3 CENÁRIOS, FIGURINOS E OBJETOS CÊNICOS
Leone tinha 16 anos quando fez assistência de direção em Ladrões de Bicicleta (1948).
Não era exatamente um serviço profissional, mas um estágio não remunerado. Ele era encar-
regado de lidar com figurantes, servir café e sanduíches. Pode parecer sem importância, mas
essa experiência deixaria um legado ao seu trabalho como diretor.
A afirmação pode parecer estranha: o cinema de Leone lidava com a fantasia e não
com a representação fiel do mundo, como queriam os neorrealistas. Mesmo assim, a ex-
periência deixou marcas na prática estilística: o cuidado obsessivo com detalhes, tanto na
verossimilhança quanto com seu potencial dramático e narrativo. Leone ilustrava essa in-
fluência contando sobre uma reunião que presenciara entre o diretor Vittorio De Sica e os
roteiristas Cesare Zavattini e Sergio Amidei (FRAYLING, 2000, p. 51).
O trio debatia uma cena: o protagonista saía de casa segurando um sanduíche de mor-
tadela. Zavattini sugeriu que o sanduíche estivesse embrulhado numa folha do jornal comu-
nista Unità. Amidei concordou, mas achou que a mensagem seria menos explícita e mais
eficiente se o espectador pudesse ler apenas a última sílaba do logotipo (‘tà’). De Sica então
entrou na conversa. Era melhor trocar o sanduíche por uma maçã:
A lição que ele extraiu do episódio foi o cuidado com cada detalhe. Leone aprendeu
que o efeito visual do objeto mostrado na tela era tão importante quanto o efeito emocional
que provocaria no espectador. A aparência realista dos westerns de Leone, o cuidado com a
verossimilhança, veio daí – o neorrealismo, portanto, pode ser apontado como pré-condição
de um importante recurso estilístico de Leone.
O tratamento estilístico que ele deu à aparência de seus filmes era resultado de um
olhar treinado dentro do contexto sociocultural do cinema europeu dos anos 1950 e 1960,
interessados em oferecer filmes que fossem uma contrafação das produções excessivamente
espetaculares (e por isso mesmo, de aparência artificial) que tinham origem em Hollywood.
Para alcançar a verossimilhança desejada, Leone investiu na obsessão com os detalhes.
E, à medida que suas produções tinham orçamentos maiores, essa preocupação passou a se
tornar uma mania perfeccionista. Durante as filmagens de Três Homens em Conflito, certo
dia, Leone procurou o diretor de produção, Fernando Cinquini, e o avisou que havia se es-
quecido de filmar um plano previsto no cronograma. Era um plano-detalhe da espora da bota
de um pistoleiro. Cinquini o tranquilizou. Aquilo podia ser filmado em qualquer outro dia,
mais para o final das gravações.
Quisemos nos afastar do banco localizado na rua principal, com uma porta co-
mum e grades nas janelas, e então eu desenhei uma velha fortaleza espanhola,
ainda com partes semidestruídas. Parecia com uma prisão, uma caixa-forte.
(SIMI, 2005, P. 125).
187
O arsenal de armas do Coronel Mortimer também foi resultado de pesquisas. Leone
queria que Mortimer usasse uma arma diferente em cada cena e todas tinham que ser histo-
ricamente acuradas. O revólver tornou-se um Buntline Special de 12 balas e com suporte de
ombro. Mortimer utilizava uma pistola Derringer sob a manga do casaco e tinha um arsenal
de rifles desmontáveis. Todas eram réplicas construídas a partir de livros pesquisados por
Simi (HUGHES, 2004, p. 45). As armas funcionavam de verdade.
Três Homens em Conflito foi o filme em que Leone e Simi se esmeraram com mais
rigor para oferecer ao público uma representação historicamente acurada da guerra civil
norte-americana. Eles passaram duas semanas pesquisando na Biblioteca do Congresso, em
Washington (EUA), fotocopiando livros históricos que documentavam, em fotos, detalhes
das armas e roupas usadas na década de 1860. A arquitetura, as táticas de batalhas, os cam-
pos de concentração para prisioneiros de guerra, os veículos (locomotivas, carruagens), nada
foi improvisado. O worldmaking, ainda discreto nos outros filmes, tinha sido intensificado.
O arsenal de réplicas incluiu um revólver Colt Navy e dois rifles (um Henry, com
mira telescópica, e outro Sharps) para Clint Eastwood (figura 135); um revólver New Model
Army Remington para Lee Van Cleef; e uma pistola montada com partes de três revólveres
por Eli Wallach, operação realizada em frente à câmera, numa cena do filme: o cano de um
Colt, o tambor de uma Smith & Wesson e o punho de um Colt Navy (figura 136).
FIGURA 135: Um dos dois rifles utilizados pelo personagem de Clint Eastwood em Três Homens em Conflito
tinha mira telescópica e era da marca Henry.
FIGURA 137: Soldados da União se aglomeram em trincheiras escavadas: alusão ao estilo sangrento de
combate que marcou a Primeira Guerra Mundial.
FIGURA 138: Moradores de Peralta fogem às pressas da cidade, com bombas explodindo ao fundo: alusões
aos bombardeios aéreos da Segunda Guerra.
os registros de Brady. Os créditos de Três Homens em Conflito, com stills retirados de cenas
do filme e coloridos artificialmente, consistem num pastiche do trabalho de Brady, provavel-
mente influenciados pela pop art de Andy Warhol.
Para se certificar que a experiência recente das duas guerras mundiais que haviam
devastado a Europa não passasse despercebida, Leone incluiu alusões às batalhas em trin-
cheiras da Primeira Guerra Mundial (figura 137), aos bombardeios aéreos com populações
de cidades fugindo às pressas (figura 138) e às instalações dos campos de concentração
nazistas (figuras 139 e 140).
Leone incluiu alusões em homenagem a Brady, inserindo os três anti-heróis dentro de
eventos reais ocorridos na guerra e fazendo-os presenciar batalhas que simulavam imagens
históricas registradas pelo fotógrafo (figuras 141, 142, 143 e 144). Ao mesmo tempo, esse
procedimento unia as práticas do alusionismo e do worldmaking. Décadas depois, filmes
como Forrest Gump (Robert Zemeckis, 1994) e JFK (Oliver Stone, 1991) intensificariam
essa revisão do esquema, inserindo personagens fictícios em imagens de arquivo reais.
A acuidade histórica da guerra não ficou restrita às armas e objetos. Leone se esmerou
nas representações indiretas da guerra, assumindo que a verossimilhança da representação
seria percebida pelo espectador, ainda que inconscientemente. Foi por essa razão que o ita-
liano povoou o cenário com figurantes sem braços ou sem pernas, para sugerir visualmente
as consequências nefastas da guerra.
Esse esforço culminou na construção do cemitério militar. A locação, construída num
vale perto de Almería, foi desenhada por Simi com dois propósitos. O primeiro era a acui-
dade histórica; o set precisava ser idêntico a um cemitério improvisado para enterrar mortos
após grandes batalhas. Simi encontrou a inspiração numa foto de Matthew Brady (1862),
que mostrava as lápides improvisadas – pedaços de madeira e gravetos cruzados – e a grande
quantidade de mortos. Já vimos como a construção do set copiou o estilo tosco dos túmulos.
Além disso, o cemitério precisava satisfazer a um desejo de Leone: tinha que ter uma
forma circular, contendo no centro uma arena semelhante ao cenário do clímax de Por uns
Dólares a Mais. Simi recorreu à lógica (figura 145): talvez o cemitério improvisado tivesse
sido erguido em torno de algum cemitério civil, mais velho e menor. À medida que a guerra
fizesse mais vítimas, ele seria expandido em círculos concêntricos, para fora. Os túmulos
mais antigos, perto do centro, teriam lápides de mármore envelhecido; os mais recentes, nos
círculos mais externos, onde estariam enterrados os soldados mortos em conflitos, consis-
tiriam apenas de pedaços improvisados de madeira. Foi seguindo essa lógica que o cenário
foi construído. Este é um bom exemplo de worldmaking: para erguer um cenário, o diretor
de arte criou toda uma história da locação, que não aparecia no filme, mas podia ser sentida
pelo espectador (figura 146).
Como a acuidade histórica tinha débito considerável com o trabalho de Matthew Bra-
dy, Leone incluiu uma alusão específica a ele. Numa curta cena que se passa numa estação
ferroviária, Brady é visto de relance, fotografando um grupo de soldados prestes a embarcar
para a batalha (figura 147). Os militares fazendo poses parecidas com as que eram vistas nos
retratos que o verdadeiro Brady fazia das tropas (figura 148).
FIGURA 140: O ângulo escolhido para encerrar o plano da entrada dos prisioneiros não deixa dúvidas sobre
a alusão aos portões dos campos de concentração.
FIGURA 141: Foto de Matyhews Brady (1863: soldados do exército da União preparam os canhões para o
confronto, pouco antes de uma das batalhas da guerra.
FIGURA 142: A encenação da batalha que antecede a explosão da ponte buscou inspiração dos registros
fotográficos feitos por Matthew Brady.
FIGURA 143: Corpos se estendem em todo o campo de batalha, até o horizonte, momentos após a batalha de
Gettysville (1863): fotografia de Matthew Brady...
FIGURA 144: ...que se tornaria, algumas décadas mais tarde, um dos mais famosos registros históricos
de uma guerra civil ocorrida no século XIX.
FIGURA 145: Rascunho do cemitério militar (o cenário da sequência final de Três Homens em Conflito)
desenhado por Carlo Simi: uma arena circular no centro.
FIGURA 146: Sergio Leone contou com 250 soldados do Exército da Espanha para, em dois dias, erguer 10 mil
lápides improvisadas com mármore e madeira.
FIGURA 147: Como forma de homenagear Matthew Brady, Leone incluiu uma cena em que o fotógrafo é
mostrado em ação, retratando um grupo de oficiais.
FIGURA 145: A pose que os atores fazem é alusão a alguns dos famosos retratos de militares e figuras
públicas dos EUA que Brady realizava na época (1862).
Em Era uma Vez no Oeste, Leone manteve essas preocupações com acuidade, mas
abriu concessões ao realismo porque seu objetivo, dessa vez, não era representar a realidade
histórica, mas sim representar a mitologia criada sobre o Velho Oeste. Era uma Vez no Oeste
não era uma história sobre os Estados Unidos do século XIX, mas uma história sobre os
filmes que representavam os EUA do século XIX.
Ainda assim, o trabalho de Carlo Simi pode ser verificado no esmero com que a loco-
motiva que aparece no filme recriou os verdadeiros trens dos Estados Unidos no século XIX;
no chalé suíço erguido no meio do deserto por um trabalhador visionário que tinha a certeza
de enriquecer nos meses seguintes; na estação ferroviária semideserta que serve de cenário
para a longa cena de abertura (que também tinha uma história prévia: teria sido erguida de
modo caótico, unindo pedaços de madeira de qualquer jeito); e nos sobretudos guarda-pó
amarelados que os pistoleiros usam, cuja existência podia ser confirmada nos livros de foto-
grafias que documentavam a vida no Velho Oeste.
19 Essa situação, aliada aos elencos multinacionais (incluindo atores americanos, italianos, espanhóis,
alemães e franceses), gerou situações curiosas nas locações. Era comum que houvesse, na mesma cena,
atores falando em duas ou três línguas diferentes. Quando Tuco (Eli Wallach) discute com o padre
Ramirez (Luigi Pistilli), em Três Homens em Conflito, o norte-americano falava em inglês e o colega
respondia em italiano. Um não entendia o outro, embora o roteiro determinasse que eles eram irmãos.
195
O único filme em que Leone efetivamente usou o som direto na trilha final de áudio
foi Era uma Vez na América. Isso aconteceu por insistência dos dois atores principais, Robert
De Niro e James Woods. Eles convenceram Leone que as interpretações ficariam melhores
com a utilização do som direto. Nesse filme, 65% dos diálogos foram gravados nos sets
(FRAYLING, 2000, p. 443). Não por acaso, é também o filme mais convencional de Leone,
em termos de experiências narrativas com ruídos amplificados e silêncios.
Durante o ciclo de spaghetti westerns, todos os filmes eram dublados em quatro lín-
guas diferentes (inglês, italiano, francês e alemão). Esse modo de produção afetou a estrutura
narrativa dos spaghetti westerns, e não apenas na textura sonora. Quanto menos diálogos,
menos tempo de aluguel de estúdios de som era necessário (ou seja, mais barato ficava o
filme). Assim, os roteiros incluíam mais cenas de ação física (perseguições de cavalo, ti-
roteios, duelos, brigas etc.); uma a cada 15 minutos, em média, e sem diálogos. Portanto, a
contexto de produção gerava uma revisão significativa do esquema dominante de construção
narrativa, apontando para a continuidade intensificada. Essa estrutura narrativa – sequências
de ação mais numerosas e mais longas, intercaladas por cenas que faziam a ação dramática
avançar – se tornaria muito popular no mundo todo, a partir dos anos 1970.
O orçamento se constituía ao mesmo tempo como limite e pré-condição da prática es-
tilística. E se uma das consequências disso foi o aumento do número e da duração das cenas
de ação, outra foi a necessidade de encontrar uma maneira alternativa de enfatizar a evolução
do enredo, pois no cinema clássico a maior parte da exposição acontece através de diálogos,
ainda que a plateia nem sempre se dê conta disso. Michel Chion chama o esquema dominante
da construção sonora de verbocêntrico, assinalando que esse esquema se consolidou ao final
dos anos 1930, em Hollywood, e continua hegemônico (embora a importância dos efeitos
sonoros tenha aumentando desde o surgimento do sistema Dolby, em 1975):
Chion nos dá uma série de exemplos de ações corriqueiras – beber algo, acender um
cigarro, comer, dirigir, dar um laço no sapato, jogar sinuca etc. – que nada acrescentam à nar-
rativa, a não ser uma dinâmica visual que mascara o caráter verbocêntrico da cena em si: é o
que está sendo dito pelos personagens, e não o que eles estão fazendo, que faz a ação dramá-
tica avançar. Eles poderiam perfeitamente estar parados, um ao lado do outro, e a trama seria
compreendida do mesmo modo; só que as imagens estáticas tornariam o filme visualmente
desinteressante, o que acabaria por revelar o caráter verbocêntrico à plateia.
Os filmes de Leone não descartam completamente esse esquema, mas o revisam. A causa
maior desse processo está no modo de produção: sem poder gravar som direto, trabalhando com
orçamentos limitados e atores de várias nacionalidades, Leone teve que encontrar outra maneira
197
tampouco permanece dominante) por razões de comodidade narrativa ou preguiça. Os diretores
não impulsionam a trama para frente usando diálogos apenas porque é mais fácil, mas também
por razões relacionadas às práticas cognitivas da espécie. Trata-se de um traço antropomórfico:
quando nossos ouvidos detectam o timbre da voz humana (que soa sempre dentro de uma faixa
de propagação de ondas sonoras que vai de 300 a 1300 Hz), direcionamos naturalmente nossa
atenção para esses sons (e desprezamos todos os demais), tentando reconhecê-los e interpretá-los.
Com base nesse princípio, os sound designers costumam mixar, na trilha sonora de qualquer filme,
diálogos em volume mais alto do que efeitos sonoros e música, salvo em momentos de exceção. Se
não fosse assim, os espectadores não apenas seriam privados de acompanhar a trama, mas também
ficariam fisicamente exaustos pelo esforço mental e auditivo de tentar decifrar as palavras por
detrás dos outros sons.
Mas voltemos a Leone. Quando começou a dirigir filmes, ele foi confrontado com esse
problema de representação. Procurou solucioná-lo aplicando aos efeitos sonoros a mesma
obsessão pelos detalhes que usava nas áreas da direção de arte e do desenho de produção,
e que por sua vez era oriunda da experiência neorrealista do princípio da carreira. Leone
desenvolveu um recurso estilístico incomum na época: a construção sonora da narrativa com
uso generoso de efeitos sonoros, sobretudo ruídos naturais amplificados na mixagem. Esse
recurso consistia no uso de sons (quase sempre provenientes da diegese) cujo volume era
equalizado em maior intensidade, obtendo um efeito perceptivo que os sound designers cha-
mam de realismo emocional, e que consiste na reprodução, dentro da trilha sonora do filme,
de um modo de audição mais aguçado do que o normal, em que os pequenos ruídos ganham
uma dimensão sensorial. Chion usa o termo tradução para nomear o fenômeno:
Esse procedimento não era comum na época. Como as tecnologias de gravação e pro-
jeção eram rudimentares, a maioria dos diretores dedicava pouco tempo para pensar a trilha
de áudio. Em Hollywood, a banda sonora era preenchida com música (quase sempre de sabor
neorromântico, inspirada nos compositores europeus do século XIX), que intercalava os diá-
logos e era intensificada, em termos de volume, nos trechos sem a voz humana.
De todo modo, ruídos e efeitos sonoros usados até então eram poucos, rudimentares,
e serviam mais para criar um senso de ambiência – aquilo que Michel Chion (1994, p. 87)
chama de “vasta extensão” sonora – e sugerir a tridimensionalidade do espaço fílmico do que
para criar pontos de sincronização (CHION, 1994, p. 58) entre aquilo que se ouve na banda
sonora e as imagens que são vistas simultaneamente na tela. Nesse ponto, Leone seguiu a tri-
lha aberta por pioneiros no uso dos ruídos como elementos de construção da narrativa, como
Robert Bresson (e seu uso expressivo e emocional de sons fora do quadro) e Jacques Tati
(que utilizava efeitos sonoros em volume amplificado para guiar a percepção do espectador
dentro do próprio quadro), ambos – junto com Jean-Pierre Melville, Stanley Kubrick, Akira
199
A impressão geral de fluxo sônico contínuo por parte do espectador não resulta de
características de edição e mixagem concebidas separadamente, mas sim da com-
binação de todos os elementos sonoros. Jacques Tati, por exemplo, usava efeitos
sonoros cuidadosamente planejados, gravados separadamente e depois inseridos
no continuum da trilha sonora em pontos específicos. Caso ouvidos isoladamente
em sucessão, eles resultariam numa trilha sonora fragmentada e cheia de inter-
rupções, se não fosse pelo uso de um background sonoro contínuo que amarrasse
todos os demais elementos numa massa sonora única. (CHION, 1994, p.46).
FIGURA 150: Fora do hotel, um desfile militar produz os sons do ambiente (passos, galopes, carruagens) que
providenciará unidade temporal e espacial à cena.
FIGURA 151: Dentro do hotel, os três bandidos começam a subir as escadas para emboscar Blondie: sons
de botas aparecem em primeiríssimo plano...
FIGURA 152: ... enquanto continuamos a ouvir, em segundo plano, os sons ritmados e contínuos do desfile
militar; os bandidos se aproximam cada vez mais...
FIGURA 153: ... ao mesmo tempo em que Blondie, sem saber do perigo, limpa o tambor do revólver; Leone
fragmenta o espaço fílmico através de close-ups.
FIGURA 154: A cavalaria agora passa em frente ao hotel, e os ruídos produzidos pelos cavalos e pelos
soldados ficam mais nítidos: perigo maior para Blondie.
Leone repete a sequência de cortes, enfatizando a aproximação dos bandidos (figura 153,
154, 155 e 156). É importante observar como ele amplia o suspense recorrendo à fragmentação
do espaço fílmico através dos close-ups extremos: rostos, botas, revólveres, patas de cavalo (no
desfile). Os sons produzidos por esses objetos são ouvidos em volume amplificado. O espaço
fílmico é extraordinariamente fragmentado, mas o espectador jamais se sente desorientado, por
causa da mixagem consistente do som: o barulho do desfile militar dá unidade aos close-ups.
No exato momento em que o primeiro dos três bandidos chega à porta do quarto, os
militares obedecem a uma ordem do comandante e interrompem a marcha por um instante
(figura 157). Os outros bandidos que se aproximam param, mas um deles dá um ligeiro
passo à frente, produzindo um leve tilintar da espora (figura 158). Esse ruído, normalmente
imperceptível, é mostrado de forma intensificada, em primeiro plano sonoro, o que assinala
sua importância narrativa para a cena; diegeticamente, ele se torna perfeitamente audível
devido ao contraste com o súbito silêncio provocado pela interrupção do desfile militar. A
audição deste som é resultante de contexto e preparação adequados.
O ruído alerta Blondie para a situação – e o espectador compreende que ele percebeu
porque, assim que o tilintar da espora é ouvido, Leone corta para um close-up extremo que o
mostra erguendo o olhar, as sobrancelhas arqueadas em sinal de alerta (figura 159). Então os
cortes se aceleram. Ouve-se apenas o sopro do vento e, bem ao longe, ocasionais explosões
que nos lembram da guerra em andamento. O silêncio acentua a gravidade da situação. Os
bandidos esperam (figura 160). Blondie acelera o processo de remontar as peças do revólver
e carregá-lo com balas (figura 161).
O desfile militar é retomado (figura 162). Os passos e galopes são ouvidos novamen-
te, interrompendo o silêncio. Os bandidos estão prontos para atacar, e se aproximam da porta
do quarto (figura 163). Nesse ponto, Sergio Leone recorre a uma convenção de filmes de
suspense, que ocasiona o que Michel Chion (2009, p. 477) chama de “efeito empatético” (um
“efeito criado pela música que está em harmonia com o clima emocional da cena”): inclui
um cue musical simples, um crescendo de violinos, para acentuar ainda mais o suspense.
Quando a porta do quarto é aberta, Leone corta para uma composição recessiva: o revólver
de Eastwood em primeiríssimo plano, os bandidos espremendo-se na porta ao fundo (figura
164). O herói atira três vezes; sincronicamente, a música para (figura 165). Blondie atira a
queima-roupa (figura 166) em um dos bandidos que ficou ferido.
No que se refere à construção da trilha sonora, é importante atentar para o cuidado
com que os ruídos (as botas, a espora, os sons do desfile, o revólver) foram intensificados e
orquestrados de forma a guiar a percepção das imagens por parte do espectador, eliminando
assim a necessidade do uso de diálogos explicativos para a apreensão da história.
203
FIGURA 155: O bandido para de caminhar e olha para frente, focalizado em close-up extremo: ele chegou
ao destino, fato confirmado pelo plano seguinte...
FIGURA 156: ...um close-up que focaliza o número do quarto onde o espectador sabe que Blondie está hospe-
dado; os ruídos da tropa dominam a trilha sonora.
FIGURA 157: O desfile para diante do hotel; o súbito silêncio atrapalha os planos dos bandidos, que
deixam de contar com a “cobertura” sonora para atacar.
FIGURA 158: Como reação instantânea, os três pistoleiros deixam de se mover, mas o movimento dos pés
faz a espora da bota de um deles tilintar...
FIGURA 159: ...num ruído suave que alerta Blondie; focalizado em close-up extremo, ele ergue os olhos com
as sobrancelhas arqueadas, em sinal de alerta.
FIGURA 160: O silêncio momentâneo é quase total; só se pode ouvir, ao longe, ruídos de explosões causa-
das pela guerra; os bandidos aguardam para atacar...
FIGURA 161: ...enquanto Blondie acelera o processo de remontar o revólver, num close-up acentuado
pelos cliques das peças de metal em volume amplificado.
FIGURA 162: Após uma ordem do comandante, o desfile militar reinicia, criando uma nova sinfonia de ruídos
e funcionando como “deixa” para o ataque.
FIGURA 163: Em close-up, um dos bandidos aproxima a mão do trinco da porta; um crescendo de violinos
acentua a tensão, pois não sabemos se Blondie reagirá.
FIGURA 164: Os bandidos entram no quarto e são alvejados por três tiros; Leone filma a tomada em
composição recessiva com profundidade de campo.
FIGURA 165: Em seguida, num plano médio, Blondie ergue-se – sinal de que agora ele tem o domínio da cena
– e explica: o tilintar da espora lhe serviu de alerta.
FIGURA 166: Ato contínuo, ele atira a queima-roupa no bandido ferido e desarmado, rompendo o código de
honra característico do western norte-americano.
No que se refere ao desenho de som, o momento mais famoso de Leone é a cena de
abertura de Era uma Vez no Oeste. São 15 minutos e 39 segundos praticamente sem palavras
e sem música, uma sinfonia de ruídos amplificados. A metáfora da sinfonia é pertinente, uma
vez que a ideia dos ruídos diegéticos veio de Ennio Morricone, que chegou a escrever música
para a cena, mas sugeriu que os ruídos acentuariam melhor a monotonia dos pistoleiros que
aguardam a chegada de um trem na estação de Flagstone.
A cena começa dentro da estação. A porta enferrujada abre devagar; passos produzem
o ruído ritmado de botas batendo na madeira. Os planos-detalhes iniciais, que não permitem
ver o local (figuras 167 e 168), e os ruídos amplificados preparam os sentidos do espectador
para descobrir o lugar através dos sons. Eles permitem que a plateia organize mentalmente o
espaço fílmico, mesmo aquele que está fora do quadro.
Existem dois grupos de sons que se pode ouvir ao longo desse trecho inicial: o primei-
ro é formado pelos ruídos produzidos pelas pessoas dentro da estação (passos, abrir e fechar
de portas, giz raspando o quadro negro); o segundo é constituído por uma miríade de sons
que caracterizam o ambiente externo como um espaço vasto e vazio: um moinho enferrujado,
o vento, galinhas, um cachorro, um canário, uma goteira, o zumbido de uma mosca e uma
coleção de ruídos que, intensificados, contribuem para dotar o espaço fílmico de uma quali-
dade aural quase viva.
Esse conjunto de sons possui duas funções. A primeira é a já citada caracterização da
monotonia. Esta tem uma relação com o recurso estilístico do alusionismo: o esqueleto nar-
rativo da cena é uma alusão a Matar ou Morrer (1952), em que a mesma situação dramática
(três pistoleiros esperam a chegada de um trem) é encenada. A segunda função é auxiliar o
espectador a explorar o ambiente de forma sensorial, experimentando uma imersão no local,
só mostrado por inteiro após quase um minuto (figuras 169 e 170)
Os sons incluem as brincadeiras de um dos pistoleiros com um canário numa gaiola
(figura 171), a risada nervosa do vendedor de bilhetes (figura 172) e a fuga barulhenta da
índia que trabalha no local (figura 173). Instalados na estação, os pistoleiros procuram ati-
vidades para preencher o tempo. Um deles caminha pela plataforma (figuras 174 e 175) e
se posta abaixo da caixa d’água (figura 176). Ele está sob uma goteira (figura 180); coloca
o chapéu e acompanha o ruído ritmado da água, que cria uma espécie de melodia percussiva
(figura 181). Outro pistoleiro anda até o coche onde os cavalos bebem água (figura 177).
Ele brinca com a água e estalar as juntas dos dedos (figura 182), criando uma segunda linha
rítmica percussiva. Esses ruídos se sucedem mecanicamente, lembrando o tique-taque dos
pontos do relógio, o que reforça ainda mais a ideia de monotonia.
O terceiro pistoleiro põe o chapéu sobre os olhos, mas não consegue dormir (figura
178), pois os ruídos o impedem. Primeiro, um telégrafo soa logo ao lado dele, que arranca os
fios (figura 179). Depois, uma mosca pousa em seu rosto e passeia sobre ele (figura 183),
enquanto o homem tenta espantá-la soprando com a boca. Quando ele finalmente se irrita e
resolve a situação, prendendo a mosca com o cano do revólver (figura 184), ouve-se o apito
de uma locomotiva. O trem está por chegar (figura 185). A espera terminou.
Durante esse segundo trecho, a edição de som é planejada para guiar a percepção do
espectador de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, é claramente perceptível a criação de
209
Outra maneira de expressar o silêncio (...) consiste em expor o ouvinte a ruídos.
Refiro-me a tipos sutis de ruídos, como o tique-taque de um relógio, associados
normalmente a ambientes tranquilos e silenciosos. Esses elementos normalmente
não atraem atenção das pessoas; não seriam sequer audíveis se os outros sons (trá-
fico, conversas, local de trabalho) não fossem eliminados. (CHION, 1994, P. 57).
Aos poucos, fui notando que todos os diretores de quem eu gostava eram parecidos
em sua obsessão pela velocidade. Eles instruíam os atores a acelerar suas falas até
o ponto em que você mal conseguia distinguir as últimas sílabas de uma frase das
primeiras sílabas da próxima. Nunca havia o menor intervalo para mostrar que
talvez a pessoa quisesse pensar antes de responder. Eu não concordava com esse
sistema, achava-o muito artificial. O senso de ponderação antes de uma resposta
era algo que só conseguia encontrar no cinema japonês. Durante muito tempo, quis
dar aos meus filmes esse ritmo. (LEONE, 2000, p. 291-292).
FIGURA 168: Um plano-detalhe destaca a arma e as balas na cintura do homem que acaba de abrir a porta:
a informação visual indica que se trata de um pistoleiro.
FIGURA 169: Um plano médio do bilheteiro, intimidado pela sombra do invasor (à esquerda), revela o inte-
rior do prédio; o som de outra porta abrindo indica que...
FIGURA 170: ... o pistoleiro não está sozinho; em primeiro plano, um segundo pistoleiro aparece em outra
porta; um terceiro invasor aparece em seguida...
FIGURA 171: ... e começa a brincar com o pássaro cujo canto domina a sinfonia de ruídos, assustando-o com
barulhos produzidos pela boca e fazendo-o se calar.
FIGURA 172: O bilheteiro, focalizado em close-up extremo, pede que os homens esperem; ele é trancado no
banheiro sem que os pistoleiros digam nada.
FIGURA 173: Enquanto isso, a índia que trabalha no lugar foge correndo, os pés levantando poeira e
produzindo barulho; é possível ouvir galinhas ali perto.
FIGURA 174: Os pistoleiros saem do prédio da estação para a plataforma de madeira velha; o ranger
ritmado e monótono de um moinho prepara o corte para...
FIGURA 175: ... um plano geral em que o moinho serve como moldura da ação principal – o pistoleiro
caminhando – vista em profundidade de campo.
FIGURA 176: O pistoleiro que caminhava posta-se embaixo da caixa d’água, com a ferrovia em segundo
plano; o ruído do moinho agora está mais distante...
FIGURA 177: ... mas o ritmo monótono dos rangidos agudos proporcionam senso de continuidade à cena,
cujas tomadas fragmentam todo o espaço fílmico.
FIGURA 178: Outro pistoleiro tenta cochilar, com a caixa d’água e o moinho atrás; o ruído de um telégrafo
começa a ser ouvido em primeiro plano sonoro...
FIGURA 179: ...e então o telégrafo aparece no primeiro plano da imagem, situado logo ao lado do pistoleiro,
que demonstra irritação com a interrupção do cochilo.
FIGURA 180: Um close-up introduz outro personagem, que começa a ouvir o ruído próximo de uma goteira,
certamente caindo da caixa d’água logo acima...
FIGURA 181: ...e então Leone revela, num plano-detalhe, a origem do ruído, com as gotas d’água se formando
lentamente, o que enfatiza a monotonia.
FIGURA 182: Sentado junto ao coche dos cavalos, o terceiro pistoleiro brinca com a água e depois começa
a estalar os dedos: uma sinfonia completa de ruídos...
FIGURA 183: ...coroada pelo surgimento de uma mosca, que vem perturbar o cochilo do primeiro pistoleiro;
ele tenta soprá-la para longe, sem sucesso...
FIGURA 184: ...até que, num movimento brusco e certeiro, prende o animal com o cano do revólver, no
momento exato em que ouvimos o apito do trem...
FIGURA 185: ... que aparece ao fundo da tomada seguinte, uma composição recessiva em profundidade de
campo, com nuca de pistoleiro em close-up extremo.
FIGURA 186: Leone usa os créditos para criar humor sutil: a aparição do nome dele na tela “interrompe” a
marcha do trem, que finalmente para na estação.
FIGURA 187: Pistoleiros aguardam na plataforma: dedos batem no coldre, sonorizando uma composição
recessiva com moldura e profundidade de campo.
FIGURA 188: Com o trem em movimento, os pistoleiros dão as costas para ir embora; o toque de uma gaita
(música diegética) interrompe a trajetória dos três.
FIGURA 189: Leone corta para um close-up extremo, a primeira aparição de Harmonica no filme: ele desceu
do trem pelo lado oposto, para escapar da emboscada.
FIGURA 190: Plano geral enfatiza as relações espaciais entre pistoleiros e Harmonica: a composição
recessiva mostra que o confronto está prestes a começar.
FIGURA 191: Composição recessiva em profundidade: depois que Harmonica para de tocar, a melodia con-
tinua (extra-diegética), solada por um banjo.
FIGURA 192: Mesmo com uma mala na mão esquerda, Harmonica consegue alvejar os três pistoleiros; mas
ele cai de costas, criando tensão: será que morreu?
FIGURA 193: Leone amplia suspense saindo do cenário do tiroteio e inserindo plano-detalhe do moinho,
motivo visual e sonoro mais importante de toda a cena.
FIGURA 194: Close-up focaliza o rosto de Harmonica e o herói se movimenta: ele ficou ferido, mas não
morreu; o moinho imediatamente para de girar, jogando a cena...
FIGURA 195: ... num silêncio absoluto, enquanto Harmonica se ergue: a interrupção brusca do som dá gravi-
dade ao momento e sugere poder sobrenatural.
FIGURA 196: Herói recolhe bagagem e se prepara para ir embora; composição recessiva mostra moinho
parado ao fundo, emoldurado por pés e mala do pistoleiro.
Então os personagens param. Eles ouviram a gaita. Só então percebemos que a música
é diegética, executada por um personagem fora do quadro; trata-se de uma brincadeira de
Leone com uma convenção musical, produzindo o equivalente sonoro à técnica do trompe
l’oeil (uma técnica que Michel Chion denomina trompe l’oreille, ou “enganar o ouvido”).
Esse som traz consigo a tomada seguinte, que mostra Harmonica, o passageiro aguardado
(figura 189). Ele continua a tocar, enquanto os pistoleiros o encaram (figuras 190 e 191).
Segue um breve diálogo; depois que Harmonica começa a falar, a melodia continua a
ser ouvida (em segundo plano sonoro, executada por um banjo em staccato, acompanhado
de guizos); ou seja, a música passou de diegética a extra-diegética (nesse caso, obedecendo à
tradição clássica da inaudibilidade da música, já que o espectador não se dá conta dessa tran-
sição). Após o tiroteio (figura 192), o ruído do moinho (figura 193) é elevado ao primeiro
plano sonoro. Harmonica caiu, junto com os três pistoleiros (figura 194). Após o próximo
corte, ele se levanta (figura 195). Exatamente ao mesmo tempo em que a plateia descobre
que Harmonica está vivo, o moinho para de se mover. O silêncio domina a cena (o sopro do
vento também é interrompido, o que justifica diegeticamente a interrupção do ruído do moi-
nho). Harmonica se ergue, com o moinho visível em segundo plano (figura 196).
A ideia da cena surgiu numa conversa entre Leone e Morricone. O último contou que
havia ido a um concerto concretista em Florença, em que o artista havia entrado no palco
com uma escada e, diante de uma plateia quieta, passara vários minutos arranhando e batendo
nela. Durante a conversa, Morricone começou a filosofar: “qualquer som do cotidiano, retira-
do de seu contexto e isolado pelo silêncio, se torna algo indefinível e diferente, algo que não
faz parte de sua natureza intrínseca” (MORRICONE, 2000, p. 283). Essa ideia, oriunda da
música concreta, é uma de suas marcas mais reconhecíveis como compositor:
Morricone tentava introduzir elementos da música concreta, nos filmes em que traba-
lhava, desde 1962. Sua primeira experiência consistiu em um arranjo para uma canção folk.
Foi a gravação que sedimentou a parceria com Leone. A música tinha uma letra que falava
sobre a saudade de um homem pela cidade de origem. A fim de evocar na música a nostalgia
sugerida pela letra, Morricone havia incorporado sons da vida rural ao arranjo. Também
havia incluído um coro vocal masculino e fraseados de flauta doce, lado a lado com melodias
soladas numa guitarra elétrica Fender Stratocaster. A justaposição de flauta e guitarra criava
uma tensão extra, já que a primeira é um instrumento normalmente usado para sugerir uma
presença rural, enquanto a segunda constitui obviamente uma sonoridade urbana.
221
Leone gostou do conceito. O tema de Por um Punhado de Dólares derivou dessa
composição, acrescida de chicotadas, badalos de sino, batidas de martelo, tiros e galopes de
cavalo, além da melodia assobiada (ao invés de cantada). Nesse ponto, a influência da música
concreta, através de Morricone, foi determinante para a revisão desse esquema operada por
Leone. Além disso, do ponto de vista do diretor, é também importante associar a incorpora-
ção de sons da diegese dentro da música à influência indireta do neorrealismo. O que Leone
estava buscando era uma música que tivesse algum tipo de conexão com o verdadeiro Velho
Oeste; ou seja, que traduzisse para o reino da música a verossimilhança das imagens.
Já vimos: a música que se ouvia no Velho Oeste, no século XIX, era rústica: canções
nostálgicas de imigrantes. Eram acompanhadas por violino caipira e berimbau de boca. Ro-
das de violão e gaita, e bares com pianos, que evocam hoje a imagem que temos daquela
época, consistem de uma convenção criada pelos westerns americanos. Esses instrumentos
só se tornariam populares entre o final do século XIX e o início do século seguinte. Nosso
imaginário associa o Velho Oeste a esses instrumentos graças ao retrato historicamente in-
correto que Hollywood fez da música popular do período (BUSCOMBE, 1988, p. 193-194).
O que a parceria propunha era uma síntese: nem música caipira (rústica demais), nem
música concreta (moderna demais), nem orquestrações neorromânticas (que suavizavam a
brutalidade do ambiente diegético). Por um lado, Morricone introduziu inovações, como
sons da diegese dentro dos arranjos; e, por outro, manteve elementos da música cinematográ-
fica clássica: arranjos que enfatizavam cordas (violino, violoncelo) e madeiras (flauta, oboé),
e recursos narrativos que propunham alto grau de sincronização entre as bandas sonora e vi-
sual, tais como leitmotivs, ostinati e mickeymousing23. Não custa lembrar que esses recursos
estavam a serviço de uma música feita para ser ouvida no plano consciente pelo espectador.
Desde Por um Punhado de Dólares, Morricone partiria sempre dos mesmos elementos
para construir a música dos filmes de Leone: instrumentos exóticos, como ocarina e oboé
(Três Homens em Conflito), celesta e berimbau de boca (Por uns Dólares a Mais); ruídos da
diegese usados como elementos rítmicos ou harmônicos; estruturas simples de música pop
(versos e refrões); instrumentos populares nos anos 1960 (guitarra, piano elétrico, bateria);
e sincronia entre música e montagem, inclusive com música composta antes das filmagens.
A última característica da música de Morricone para Leone são os degüellos antece-
dendo os duelos. Já analisamos a música de um desses momentos (o trielo de Três Homens
em Conflito). Do ponto de vista da composição musical, entretanto, o mais interessante de-
güello de Morricone está em Por uns Dólares a Mais. A música é ouvida durante o confronto
entre o Coronel Mortimer e El Indio, numa arena circular de pedra da qual Leone tanto
gostava. Nosso foco de interesse está no jogo entre os sons diegéticos e extra-diegéticos
que constituem a composição musical, chamando a atenção do espectador para a música e
contribuindo, junto com a fragmentação do espaço fílmico em close-ups extremos e planos-
-detalhes, para a sensação de que a cena se passa mais lentamente, como se deslocada para
outra dimensão espaço-temporal, onde o tempo passa mais devagar.
23 Um leitmotiv consiste num fraseado ou trecho melódico associado a personagem, local ou situação
dramática; um ostinato é uma figura rítmica ou melódica repetitiva, usada para dar dinâmica a cenas com
visual monótono; mickeymousing é como ficou conhecida em Hollywood a técnica de sincronizar trechos
musicais e movimentos dos personagens (GORBMAN in HILL; CHURCH GIBSON, 1998, p. 45).
FIGURA 198: A banda sonora (vento, tilintar das esporas de El Indio) ganha o acréscimo de música diegética:
o relógio toca melodia melancólica executada por celesta.
FIGURA 199: A celesta sublinha o close-up do Coronel Mortimer, com expressão neutra; optando de novo
pela simetria, Leone corta para um close-up de El Indio...
FIGURA 200: ...e a câmera faz um zoom para frente, enquanto o vilão observa a semelhança entra o rosto
da mulher no relógio e a figura do Coronel Mortimer...
FIGURA 201: ...semelhança acentuada pela composição com moldura em profundidade que centraliza o
relógio, tornando-o o motivo visual mais fundamental da cena.
FIGURA 202: Violinos se juntam à celesta, que perde a textura mecânica: agora a música ecoa na cabeça
dos personagens (é tanto diegética quanto extra-diegética).
FIGURA 203: A entrada em cena de Monco ocorre num trompe l’oeil (ele aparece sem aviso) e evoca
visualmente o plano 3.183 (com o relógio centralizado).
FIGURA 204: O terceiro personagem se junta ostensivamente a Mortimer, o que Leone sinaliza reunindo os
dois num único plano médio, deixando...
FIGURA 205: ... El Indio sozinho do outro lado da arena circular; o plano médio, simétrico, expressa a
igualdade de forças, agora que os duelistas têm condições iguais.
FIGURA 206: Monco se afasta para observar o duelo, num plano geral bem aberto; a música se transforma
num jogo entre a celesta do relógio (diegética)...
FIGURA 207: ...e um arranjo com violão flamenco e castanholas (extra-diegética) em contraponto; ao
primeiro plano geral de Mortimer corresponde...
FIGURA 208: ...um plano geral idêntico, em contra-plano, de El Indio; a encenação aproxima aos poucos a
câmera dos atores, mas sem esquecer a simetria...
FIGURA 209: manifestada tanto nos ângulos idênticos de câmera (caso dos close-ups) quanto na duração
igual dos planos dedicados a mostrar cada um dos duelistas.
FIGURA 210: Quando os personagens passam a ser filmados em close-ups, a composição ganha um solo de
trompete mariachi: o típico degüello de Leone...
FIGURA 211: ... só que exibindo em contraponto a melodia diegética da celesta do relógio, que é executada
mais devagar à medida que a corda vai terminando.
FIGURA 212: A velocidade mais lenta de execução indica que o duelo está mais perto de acontecer, já que
os pistoleiros podem atirar assim que a música parar.
FIGURA 213: Entre os close-ups extremos dos dois pistoleiros, Leone insere close-ups de Monco, cigarro na
boca, que assiste sentado e impassível ao duelo.
FIGURA 214: Composição recessiva com moldura (Mortimer) em profundidade de campo quebra simetria da
montagem, até então respeitada escrupulosamente.
FIGURA 215: A melodia da celestra fica lenta, quase parando; plano-detalhe mostra a mão de El Indio se
movimentando nervosamente em direção ao revólver...
FIGURA 216: ...mas o Coronel Mortimer, ficalizado num plano-médio em contraluz, consegue atirar primeiro:
não há mais música diegética nem extra-diegética.
FIGURA 217: O impacto da bala joga El Indio para trás; a trilha sonora agora consiste apenas do sopro
forte do vento e dos ruídos produzidos pelo vilão, que...
FIGURA 218: se arrasta no chão da arena, tentando alcançar o revólver, sob os olhares de Monco e
Mortimer, este último pronto para atirar novamente.
FIGURA 219: No mesmo instante em que consegue empunhar a arma de novo, El Indio inclina a cabeça e morre;
não é necessário um segundo tiro do adversário.
FIGURA 220: Monco mastiga o cigarro tranquilamente e felicita o vencedor com um toque de humor negro
e ironia típicos de Leone: “Bravo!” Fim da cena.
A cena começa com uma composição recessiva (figura 197). O vilão tem o controle
da cena, pois está armado, enquanto a pistola do adversário está no chão. Na banda sonora,
ouve-se apenas o sopro do vento e o tilintar das esporas do vilão. El Indio puxa um relógio
de bolso (figura 198). É um ritual particular que o espectador já conhece: antes de enfrentar
um adversário, ele dá corda no relógio e avisa que podem atirar assim que a campainha parar.
A melodia da caixa de música é o leitmotiv de El Indio; nós a ouvimos, os pistoleiros
também. Música diegética. É uma celesta. Eles se encaram; Mortimer é mostrado num close-up
(figura 199), a música soando em primeiro plano sonoro. Então, algo estranho acontece: ao
olhar para a fotografia no relógio, El Indio percebe a semelhança física da dona do objeto com
o coronel. Um zoom focaliza o rosto dele em close-up extremo (figura 200).
Sincronicamente, ao aumento da nuance dramática da cena, corresponde uma altera-
ção na execução da melodia: a celesta diegética, antes ouvida na textura sintetizada de um
relógio mecânico (ou seja, destituída das frequências mais altas e baixas), ganha o acompa-
nhamento de uma orquestra de cordas, os violinos – obviamente extra-diegéticos – adicio-
nando lirismo à música. De repente, a reverberação que ouvíamos junto à melodia do relógio
(diegeticamente executada num espaço aberto) desapareceu. A alteração quase imperceptível
na textura do som sinaliza que, a partir daí, a música está tocando dentro das cabeças dos
personagens. A função da orquestra é sublinhar a torrente de sentimentos que invadem os
adversários, agora que ambos reconhecem uma motivação extra, pessoal e emocional.
Leone acentua a percepção de reconhecimento, por parte de El Indio, justapondo mais
duas composições simétricas recessivas (figuras 201 e 202), a primeira delas centralizando o
relógio de bolso na mão dele. A melodia diegética do relógio começa a se tornar mais lenta,
um sinal de que a corda está acabando (ou seja, o tiroteio está para começar). A orquestra de-
saparece suavemente, ao mesmo tempo em que o eco agregado à celesta retorna. O momento
emocional passou; a percepção cognitiva de ambos agora está voltada exclusivamente para
o momento do duelo. Tudo isso é comunicado ao espectador pelo jogo diegético envolvendo
a música, as características físicas do som e seu casamento com as justaposições de planos e
os movimentos de câmera.
O enquadramento com moldura que mostra o relógio centralizado, na mão de El Indio,
faz uma rima com o plano que introduz o personagem de Clint Eastwood na cena (figura 203).
Trata-se de uma composição recessiva que investe no trompe l’oeil. Monco aparece na arena
sem que os dois adversários tenham percebido sua chegada.
A chegada de Monco demarca nova alteração na música. A orquestra retorna para
assinalar o final da melodia do relógio com um crescendo de cordas que forma um grande
acorde em uníssono. A música é reiniciada logo depois num arranjo inteiramente diferente:
violão flamenco e castanholas fazem floreios e se mesclam em intervalos regulares à celesta
do relógio. Dessa maneira, o compositor insere o tema de El Indio dentro de um dos tradicio-
nais degüellos tão adorados por Sergio Leone.
Do ponto de vista da emoção, esse trecho (em que mudam a dinâmica e o arranjo da
composição) assinala um interlúdio. El Indio não está mais em vantagem. A presença de
Monco garante que isonomia ao duelo entre os dois adversários (figuras 204 e 205). Uma
vez que isso está estabelecido, o que Leone enfatiza recorrendo a um plano geral aberto
231
(figura 206) que aponta a simetria dos três personagens dentro da arena circular, bem como
a disposição de Monco para não participar do acerto de contas, o duelo está para começar.
Visualmente, Leone encena o duelo recorrendo aos mesmos recursos estilísticos que re-
petiria mais tarde em Três Homens em Conflito: planos gerais (figuras 207 e 208), close-ups
(figuras 209 e 210) e close-ups extremos (figuras 211, 212 e 213), sempre prezando pela sime-
tria (enquadramentos e duração idênticos para os dois duelistas) e pela aproximação sistemática
da câmera em relação aos atores. No plano sonoro, a melodia evolui num crescendo e culmina
com um solo de trompete escudado por coral masculino.
Uma composição recessiva (figura 214) demarca uma ruptura na simetria visual (pois
não vemos o contraplano) e sinaliza a superioridade emocional de Mortimer. O solo de trom-
pete é abruptamente encerrado. Voltam o violão flamenco, as castanholas e a caixa de música
em contraponto (os dois primeiros saem de cena aos poucos). A melodia do relógio torna-se
mais lenta (figura 215). Quando a música para, Mortimer atira primeiro e vence o confronto
(figura 216 e 217).
Não há mais música; o contraste entre o final do degüello e a súbita escassez de sons
produz um efeito de silêncio. Pode-se ouvir apenas o resfolegar da respiração de El Indio, fe-
rido mortalmente (figuras 218 e 219), enquanto Monco, num toque de ironia e humor negro,
mastiga o cigarro: “Bravo!” (figura 220). O sopro constante do vento e os sons produzidos
pelos pistoleiros são os únicos efeitos sonoros remanescentes.
Ampliadas ainda mais, todas as características presentes podem ser encontradas na
cena da chegada de Tuco ao cemitério, em Três Homens em Conflito. Professores dos cursos
de Cinema em instituições de ensino norte-americanas, como a University of Southern Ca-
lifornia, fizeram seus alunos – entre os quais George Lucas e John Milius – estudarem essa
cena detalhadamente, analisando-a plano a plano (FRAYLING, 2005, p. 190). O objetivo
era aprender como realizar um casamento sincrônico entre sons e imagens. Foi assim que a
continuidade intensificada, nos moldes de Leone, começou a se popularizar entre os diretores
dos anos 1970 (e, através desses, entre os cineastas das gerações subsequentes).
Chegamos, então, ao quarto e último recurso recorrente da prática estilística de Leone
em relação ao som dos filmes. Embora rara, a prática estilística de buscar a sincronia entre
sons e imagens não era exatamente nova nos anos 1960. Em 1940, Sergei Eisenstein já havia
teorizado sobre esse recurso dramático, que chamou de “montagem vertical” (EISENSTEIN,
1992, p. 106). Para ele, o cineasta que conseguisse pensar a trilha musical em sincronia com
a trilha de imagens seria capaz de unificar dois fluxos de informação em um ritmo único e
indivisível, que então seria percebido pelo espectador como um todo mais poderoso:
Eisenstein era obcecado por sincronia. Ele achava que todo diretor devia perseguir os
mais diversos tipos de sincronia na construção da narrativa (entre música e cor, entre compo-
sição pictórica e encenação, entre som e enquadramento, entre diálogos e música etc.). Quem
233
FIGURA 221: No exato instante em que Tuco atinge a lápide, um sino marca o início da música, que segue com
um fraseado cíclico de quatro notas ao piano...
FIGURA 222: ... e incorpora um oboé, solando a épica melodia principal, enquanto uma seção de cordas faz a
harmonia, a partir do momento em que ele se ergue.
FIGURA 223: Eufórico com a descoberta do cemitério, Tuco joga fora o mapa; é possível ouvir o canto dos
pássaros, mixado em segundo plano da trilha sonora.
FIGURA 224: A câmera se ergue e se afasta do personagem: pastiche do famoso movimento de grua de E o
Vento Levou (1939), que Leone repete várias vezes...
FIGURA 225: em seus filmes; os ganidos do cachorro negro que entra no quadro por baixo do frame são os
últimos sons diegéticos ouvidos nesta parte da cena.
FIGURA 226: Quando Tuco começa a correr entre os túmulos, os sons diegéticos desaparecem e uma voz de
soprano passa a solar a melodia, dando-lhe um ar sacro.
FIGURA 227: Quando Tuco atinge o centro do cemitério – uma arena circular de pedras –, os violinos
passam ao primeiro plano do arranjo, executando a melodia.
FIGURA 228: Leone corta para um close-up de Tuco, arfando de cansaço e euforia, mas os sons diegéticos de
sua respiração não são ouvidos pelo espectador.
FIGURA 229: Quando Tuco começa a correr em círculos, observando os túmulos mais de perto, um coral
masculino é introduzido: as vozes dos soldados mortos?
FIGURA 230: O mar de lápides que quase não tem fim: um trecho em uníssono (violinos, trompete, oboé)
sublinha o momento mais apoteótico da música.
FIGURA 231: Tuco corre lentamente, parecendo indeciso; um interlúdio musical mantém os violinos em
ostinato, enquanto uma guitarra com wah-wah imita...
FIGURA 232: ...o grito do coiote (a gargalhada dos mortos?) e os ruídos da diegese – os passos no cascalho
– voltam a serem ouvidos brevemente, por um instante.
FIGURA 233: Tuco está cada vez mais frenético; a percussão marcial nos lembra que estamos num cemitério
militar, enquanto os movimentos circulares...
FIGURA 234: da câmera e as tomadas do ponto de vista de Tuco transformam as lápides num borrão; as
tomadas são cada vez mais curtas e movimentadas...
FIGURA 235: ...conduzindo a música a um clímax apoteótico, com sinos, trompetes, violinos e vozes
masculinas atingindo as escalas mais agudas.
FIGURA 236: De repente, um plano do céu azul com a câmera fixa interrompe o fluxo alucinante de
imagens; o rosto de Tuco passa num borrão e então retorna, em...
FIGURA 237: ...close-up extremo, olhando fixamente para a câmera, com a expressão de êxtase: ele
finalmente encontrou o túmulo que estava procurando.
FIGURA 238: No exato instante em que Leone corta para o close-up do túmulo, a música termina, com uma
interrupção abrupta que traz consigo o silêncio.
A música inicia com uma sequência de quatro notas, repetida várias vezes, executadas
num piano; no exato momento em que Tuco se ajoelha e olha para frente, um oboé começa
a solar uma melodia lírica, enquanto uma seção de cordas entra em seguida para completar
a harmonia, em segundo plano sonoro. Quando Tuco joga fora o mapa, emite um breve som
de satisfação com a boca (podemos ouvir, ainda, o barulho das folhas de papel amassadas).
Em contraponto a este grupo de sons diegéticos, Morricone insere um segundo grupo de sons
extra-diegéticos: um fraseado percussivo seguido de uma nova badalada do sino, mais forte e
prolongada. São duas inclusões simultâneas de elementos diegéticos dentro da composição.
A caixa, que introduz a percussão, é um instrumento militar; o sino expressa o simbolismo
religioso. Esses sons nos lembram que Tuco está dentro de um cemitério militar.
Se prestarmos atenção, ainda podemos ouvir o canto de pássaros em segundo plano.
A música faz um novo floreio, enquanto Leone injeta uma dose de ironia e humor negro,
fazendo um cachorro entrar em quadro (figura 225) – mais um trompe l’oeil. O cão foge com
um ganido. São os últimos sons diegéticos que ouvimos na próxima seção da cena, porque no
instante seguinte o pistoleiro começa a correr por entre os túmulos.
No momento exato em que Tuco começa a correr, dois fenômenos sonoros acontecem:
primeiro, todos os sons diegéticos (que ainda podíamos ouvir em segundo plano sonoro) desapare-
cem; está claro que a cena adota, então, o ponto de escuta subjetivo de Tuco, cuja atenção voltada
para a tarefa de encontrar o tesouro afeta sua percepção, desviando-a inteiramente para esse obje-
tivo, de modo que ele deixa de perceber todos os sons do ambiente. A composição de Morricone,
nesse sentido, seria uma representação sonora das emoções que ele sente no decorrer da cena.
Em segundo lugar, um novo badalo de sino introduz mais um elemento musical: a voz
de uma soprano feminina, que acrescenta dramaticidade. Só então, quando a música evolui
num crescendo, Leone começa a cortar (figuras 226 e 227). A voz passa a fazer a harmonia
e abre espaço para os violinos da orquestra, que solam esse trecho da composição. Quando
Leone corta para um close-up de Tuco (figura 228), arfando, não ouvimos os sons da respi-
ração, apenas vemos os movimentos de sua boca.
Enquanto Tuco começa a correr em círculos (figura 229), Morricone introduz um co-
ral masculino no trecho que liga o corpo da composição ao seu clímax, em que a voz aguda
da soprano retorna, dessa vez acompanhada de trompetes e de percussão militar. Esse trecho
da música incorpora diversos elementos que expressam do ponto de vista sonoro a ideia do
cemitério militar: as vozes masculinas, a caixa, o trompete, o andamento marcial, o sino. O
trecho termina com os vários instrumentos soando em uníssono (violinos, trompete, oboé),
sublinhando uma longa tomada em plano geral aberto (figura 230).
O interlúdio da canção inicia com uma breve seção de violinos em ostinato, acompa-
nhando planos médios de Tuco correndo. Nesse ponto o pistoleiro parece indeciso; os sons
diegéticos retornam, sinalizando essa indecisão, e passa a ser possível ouvir os passos de suas
botas resvalando contra o cascalho. Uma guitarra elétrica executa as três notas (FÁ-SOL-
-RÉ) que configuram o leitmotiv da “resposta” ao grito de coiote. Mas Tuco não desistiu. Os
violinos evoluem acima da voz da soprano para uma releitura do trecho mais dramático da
composição, enquanto Tuco acelera – e deixamos novamente de ouvir os sons diegéticos. A
cena entra em seu momento mais frenético.
241
SERGIO LEONE
5. O LEGADO DE LEONE
243
ções nas tecnologias de produção (câmeras digitais de alta definição, gravadores digitais),
circulação (filmes distribuídos por redes de fibra ótica, downloads através da Internet) e pro-
jeção (sistemas 3D digitais, IMAX, TVs de alta definição, Blu-Ray). Todas essas alterações
continuam a intensificar a continuidade intensificada: “Podemos esperar por variações cada
vez mais extravagantes de estilo. Talvez os filmes do século XXI sejam os filmes dos anos
1980, só que mais exagerados” (BORDWELL, 2006, p. 179).
Esse último trecho consiste de uma paráfrase de outra frase presente no capítulo an-
terior, quando ele dizia que os filmes dos anos 1980 eram os filmes dos anos 1960 intensifi-
cados. Bordwell fundamenta aí sua tese de que a poética do cinema contemporâneo nasceu
nos anos 1960. Nesse sentido, a pesquisa que aqui se conclui funciona como estudo de caso
do período mais delicado de transição dos esquemas clássicos de construção da narrativa
cinematográfica para os esquemas intensificados, focalizando a obra de um cineasta cuja
contribuição para a consolidação dessa nova poética tem sido pouco observada.
Neste último capítulo, pretendemos relacionar alguns dos padrões recorrentes de estilo
e narrativa na obra de Sergio Leone ao repertório de esquemas da continuidade intensificada,
mostrando como muitos diretores que vieram depois de Leone recuperaram e revisaram suas
práticas estilísticas e narrativas. Para alcançar esse objetivo, vale a pena detalhar a influência
de Leone nos cineastas que emergiram a partir dos anos 1960, conhecidos como a geração
New Hollywood: os movie brats Francis Ford Coppola, Brian De Palma, George Lucas, Ste-
ven Spielberg, Martin Scorsese, John Milius, William Friedkin, Peter Bodganovich, Arthur
Penn, Sam Peckinpah e outros.
Os filmes desses diretores introduziram no sistema dos grandes estúdios dos EUA as
ferramentas estilísticas e narrativas que nasceram dos esquemas revisados pelos diretores eu-
ropeus. Foi através deles que a poética da continuidade intensificada tornou-se globalizada.
Por isso, é importante traçar paralelos entre os filmes de Leone e a obra dessa geração. Tal ta-
refa pode nos ajudar a compreender com mais precisão a contribuição de Leone ao repertório
estilístico e narrativo do cinema contemporâneo, cujos cineastas, por sua vez, também têm
revisado essas ferramentas, sempre a partir dos limites e pré-condições impostos por fatores
como a evolução tecnológica, a competição com novas formas de entretenimento (videoga-
mes, Internet), os sistemas globalizados de produção cinematográfica e outros.
A emergência dos movie brats, nos anos 1960, aconteceu de maneira bastante rápida.
A transição dos veteranos para os novos diretores foi abrupta, e esse fato está diretamente
ligado, como já dissemos, à queda da frequência do público aos cinemas. Pressentindo que
a plateia dos anos 1960 era mais jovem e que os filmes realizados pelos diretores veteranos
pareciam não dialogar com esse público, os executivos da indústria apressaram a aparição
de uma nova geração de cineastas, capaz de falar ao novo público com naturalidade. Esses
diretores jovens eram admiradores do neorrealismo e da Nouvelle Vague: eles “se afastavam
do clássico para dialogar com o modernismo europeu” (MASCARELLO, 2006, p. 336).
Leone é pouco citado entre os diretores influentes dos anos 1960, mas seus filmes
exerceram forte impacto sobre a geração New Hollywood. Esse impacto não apenas aparece
nos filmes, como veremos logo mais, mas foi reconhecido diretamente por alguns deles. John
Milius lembra que a sequência do cemitério de Três Homens em Conflito era analisada plano
Não há dúvida de que Era uma Vez no Oeste influenciou bastante a nossa ge-
ração dos anos 1970 – Spielberg, Lucas, Milius, John Carpenter – mas, falando
por mim, a maior influência está na coreografia dos planos, na sincronia destes
com a música, e no tempo interno de certos momentos, como os cortes que vão
e vêm entre um rosto e uma mosca, o chapéu e a goteira, todas aquelas imagens
da abertura de Era uma Vez no Oeste. (...) Estilisticamente, isso encontrou seu
caminho em filmes como Touro Indomável [1980], A Cor do Dinheiro [The
Color of Money, 1986] e outros. (SCORSESE, 2005, p. 202-203).
Brian De Palma, citado por Noël Carroll (1998) como um dos principais cineastas
americanos a adotar o alusionismo como ferramenta de estilo, recorreu a recursos comuns em
Leone com ainda mais ênfase do que Scorsese e Carpenter. A profusão de close-ups de rostos
e planos-detalhes é nítida em seus filmes, bem como a utilização regular de composições
recessivas altamente estilizadas, como pode ser visto em filmes como Síndrome de Caim
(Raising Cain, 1992) e A Fúria (The Fury, 1978).
Entre as ferramentas de estilo recorrentes em Leone que foram integradas ao repertório
de esquemas dos diretores da geração New Hollywood, estão: execuções sangrentas, close-
-ups extremos, composições recessivas, uso de ruídos naturais amplificados e protagonistas
245
amorais em O Poderoso Chefão (1972); close-ups extremos, hiperviolência e uso de ruídos
naturais amplificados em Touro Indomável (1980); protagonistas amorais como a dupla de
motoqueiros traficantes de drogas em Sem Destino (Easy Rider, Dennis Hopper, 1969) e
o vigarista que ensina truques sujos à própria filha em Lua de Papel (Paper Moon, Peter
Bodganovich, 1973); close-ups extremos e música minimalista com influências do concre-
tismo em O Exorcista (1973); direção de arte realista e abundância de single shots, muitas
vezes em close-up, em Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, Sidney Lumet, 1975); acuidade
histórica em Barry Lyndon (1975) e novamente a violência gráfica em Laranja Mecânica
(1971); composições recessivas em profundidade de campo com moldura, muitas vezes com-
binadas com close-ups extremos de olhos, em A Fúria (1978); composições recessivas em
profundidade de campo que muitas vezes criavam trompe l’oeil cinematográficos, como em
Tubarão (Jaws, Steven Spielberg, 1975); pastiche que alude a antigos westerns e aventuras
infantojuvenis dos anos 1930 e 1940 na série Guerra nas Estrelas (1977-1980-1983), cuja
música persegue o mesmo casamento meticuloso entre som e imagens visto em ET – O Ex-
traterrestre (ET The Extra-terrestrial, Steven Spielberg, 1982); Nesse último caso, o diretor
alterou a montagem final apenas para sincronizar a modulação do arranjo de John Williams
ao fluxo de imagens de toda a sequência final, que inclui a cena em que o extraterrestre faz
as bicicletas voarem24.
Por que os diretores dos anos 1970 estavam adotando as técnicas estilísticas e táticas
narrativas que surgiam na Europa, a exemplo dos recursos de Leone? O fenômeno não pode
ser relacionado apenas à redução do número de espectadores. A influência dessa adoção de
novas práticas estilísticas foi indireta (afinal, como Bordwell nos lembra, o espírito do tempo
não liga a câmera), na medida em que apressou a emergência de diretores mais jovens.
Um dos contextos socioculturais que deve ser mencionado como explicação parcial
para o desenvolvimento da continuidade intensificada está a influência crescente da televi-
são. Nos anos 1960, os filmes – até então vetados pelos grandes estúdios para exibição na TV
– começaram a ser mostrados na tela pequena. Por isso, os chefes de produção de todos os
estúdios solicitaram aos diretores que revisassem seus procedimentos técnicos, concebendo
os filmes como obras seriam exibidas em telas de diferentes tamanhos. O resultado dessas
recomendações é que os diretores passaram a aproximar cada vez mais a câmera da ação
dramática, utilizando mais close-ups, planos médios e single shots (BORDWELL, 2006, p.
148-149). A televisão explica o aumento de planos próximos, que permitiam a melhor com-
preensão da ação dramática por parte dos espectadores.
O surgimento de equipamentos – câmeras e gravadores de som portáteis, novas lentes
de distâncias focais variáveis, películas mais sensíveis à luz, máquinas de edição não-linea-
res, Steadicam – gerou revisões constantes das práticas estilísticas, desde os anos 1970. O
aspecto comum em todas essas revisões é que, cada vez mais, os diretores jovens procuravam
capturar a atenção dos espectadores de maneira mais intensa, de forma a evitar sua dispersão.
Como se sabe, ver um filme na TV é um ato que favorece bem mais a dispersão do que fazer
o mesmo numa sala de cinema.
24 Esta informação é registrada nos extras do DVD do filme, em entrevistas com Spielberg e John
Williams.
Havia um grau de verossimilhança em seus filmes [de Leone] que outros fil-
mes da época não tinham. Mesmo que então os filmes dele fossem vistos como
247
surrealistas, tinham uma aparência realista que não era possível encontrar em
títulos dos anos 1950 e 1960. (...) Era uma vez no Oeste foi como uma escola
de cinema para mim. Eu o vi na TV quando criança, e foi uma grande experiên-
cia porque dava para apreender da experiência um novo estilo de direção. (...)
Com Era uma Vez no Oeste, foi como se ele [Leone] dissesse: este aqui é o seu
faroeste norte-americano, OK? Agora vou subvertê-lo. (TARANTINO, 2003).
Talvez a mais constante crítica ao trabalho de Tarantino seja de que ele se re-
sume a reciclar filmes antigos (o crítico da revista New Yorker, David Denby,
se refere a ele como um “idiota de cinemateca”). Essa crítica confunde reunião
criativa de elementos dispersos com reciclagem. Tarantino (...) tem um conheci-
mento profundo sobre a maneira como os filmes são feitos e como seus diretores
atingem certos efeitos. Tem também um enciclopédico conhecimento de gêne-
ros internacionais, como o wu xia chinês, filmes de samurai e máfia japoneses,
e filmes de ação e kung fu de Hong Kong. Enquanto seus filmes homenageiam
todos esses gêneros, sua referência mais persistente está nos crescendos de vio-
lência incontroláveis do spaghetti western. (STONE, 2009).
249
Ao longo do último capítulo, pudemos traçar conexões estilísticas e narrativas entre a
obra de Leone e filmes de diretores contemporâneos. É importante ressaltar que o objetivo
desta seção é demonstrar que Leone, efetivamente, desempenhou um papel importante no de-
senvolvimento de algumas dessas ferramentas, que constituem a continuidade intensificada.
Não se trata de reivindicar para Leone o papel de principal criador (muito menos de criador
solitário) dessa poética, já que tal figura histórica jamais existiu.
Como já vimos, quando se fala em continuidade intensificada (usando-se ou não o termo
criado por Bordwell), é lugar-comum citar Godard, Bergman, Truffaut, Fellini, Antonioni, Tar-
kovski, Resnais e outros diretores modernistas europeus, todos associados a um cinema feito para
um consumo segmentado, para o qual muitos estudiosos usam o termo “cinema de arte”. Todos
esses diretores, sem dúvida, exerceram papéis destacados na constituição da poética da continuida-
de intensificada. Mas outros cineastas que aturaram na mesma época e trabalharam com gêneros de
índole popular, especialmente aqueles que atuaram dentro de ciclos de produção massiva – como
é o caso de Sergio Leone –, continuam a ter seus papéis históricos, dentro desse processo, mini-
mizados ou mesmo desprezados. Esse fenômeno ocorre inclusive com aqueles que, como Leone,
passaram por algum tipo de revalorização crítica ao longo de suas carreiras, tornando-se dignos de
respeito. Como pudemos ver, esse respeito é, de certa forma, apenas relativo.
A abordagem estilística, especialmente quando amparada na análise fílmica minucio-
sa, pode ajudar a concretizar possibilidades de leitura alternativa da história do cinema, tendo
o desenvolvimento do estilo como eixo principal. Essas possibilidades nos parecem impor-
tantes, não apenas porque relativizam a importância do gosto e do juízo de valor na constru-
ção de uma historiografia do audiovisual, mas para que seja possível compreender melhor
como se dá o desenvolvimento e a o aprimoramento das soluções estilísticas para problemas
de representação – ou seja, as escolhas operadas pelos diretores, cada um dentro do contexto
sociocultural específico no qual trabalhou – dentro do cinema.
Sergio Leone não encapsula a imagem do artista como gênio, no sentido romântico do
termo (COMPAGNON, 2010). O gênio artístico, para filósofos como Kant, Schopenhauer
e Nietzsche, constituiria um dom natural que não pode ser aprendido ou ensinado, pois nas-
ce da intuição pura; pode ser, no máximo, refinado através das técnicas de produção, do
conhecimento e da cultura (aliás, nesse ponto, Nietzsche difere dos outros dois filósofos
mencionados, já que considerava a cultura como um aspecto limitador – e não amplificador
– do gênio). No caso de Leone, quando estudamos com cuidado os limites e pré-condições
que circundavam os contextos histórico, sociocultural, tecnológico e econômico no qual ele
operou, concluímos que nenhuma das marcas estilísticas recorrentes em seus filmes nasceu
de uma inovação radical ou de uma revisão estilística sem lastro histórico discernível.
Leone não rompeu com a tradição audiovisual que o precedeu; ele a reforçou e ampliou
em diferentes direções. Ele foi, sim, um renovador de tradições cinematográficas. Os processos
de revisão dos esquemas estilísticos que ele levou a cabo são produto da rede de contextos dentro
da qual ele se desenvolveu como cineasta. Essa constatação não diminui sua importância como
artífice da poética dominante do cinema contemporâneo. Para concluir: pode-se perfeitamente não
gostar dos filmes de Leone, assim como se pode simplesmente achar desimportante a maneira
como ele filmava bundas de cavalo, mas a análise estilística minuciosa da obra dele demanda um
reconhecimento crítico que deve ir além de uma nota de rodapé nos livros de história do cinema.
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WRIGHT, Will. Sixguns & Society: A Structural Study of the Western. Berkeley: Uni-
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TABELA A:
NÚMEROS DE PRODUÇÃO DE SPAGHETTI WESTERNS (1960-1980)
ANO WEISSER1 FRIDLUNG2 CATÁLOGO % DO TOTAL
BOLAFFI3
1960 - 1 2 - (135)
1961 4 1 - - (152)
1962 2 2 - - (160)
1963 14 14 - - (164)
1964 27 35 13 8,1 (160)
1965 42 58 34 18,7 (182)
1966 69 68 52 22,9 (227)
1967 66 70 66 27,7 (238)
1968 83 73 71 29,6 (240)
1969 43 33 26 10,8 (241)
1970 34 42 35 15,9 (220)
1971 54 51 39 18,4 (211)
1972 51 44 42 15,5 (277)
1973 24 20 18 7,7 (234)
1974 19 12 8 3,3 (240)
1975 10 13 5 2,5 (201)
1976 5 3 2 0,85 (234)
1977 4 2 3 2,0 (150)
1978 3 3 2 3,5 (56)
1979 0 1 0 -
1980 1 0 0 -
Total 555 546 418 13,00 (3111)
Fonte: The Spaghetti Westerns: A Tematic Analysis (FRIDLUND, 2006, p. 8).
263
TABELA B:
PRODUÇÃO DE FILMES EM GERAL E WESTERNS
EM HOLLYWOOD (1926-1967)
ANO TOTAL DE TOTAL DE PERCENTUAL DE
FILMES WESTERNS WESTERNS
1926 700* 199 28
1927 678 145 21
1928 641 141 11
1929 562 92 16
1930 509 79 16
1931 501 85 17
1932 489 108 22
1933 507 65 13
1934 480 76 16
1935 525 145 28
1936 522 135 26
1937 538 135 25
1938 455 122 27
1939 483 123 25
1940 477 143 30
1941 492 130 27
1942 488 120 25
1943 397 103 26
1944 401 95 24
1945 350 80 23
1946 378 98 26
1947 369 95 26
1948 366 108 30
1949 356 97 27
1950 383 130 24
1951 391 109 28
1952 324 108 33
1953 344 92 27
1954 253 69 27
1955 254 68 27
1956 272 83 31
1957 300 70 23
1958 241 54 22
1959 187 39 21
1960 154 28 18
1961 131 22 17
1962 147 15 10
1963 121 11 9
1964 141 21 15
1965 153 22 14
1966 156 20 13
1967 178 20 11
* total aproximado
Fonte: The BFI Companion to the Western (BUSCOMBE, 1988, p. 427)
264 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN
TABELA C:
QUANTIDADE DE LINHAS DE DIÁLOGO EM FILMES DE GÊNERO
265
TABELA D:
USO DE CLOSE-UPS E MOVIMENTOS DE CÂMERA EM FILMES
DE SERGIO LEONE
POR UM TRÊS ERA UMA
PUNHADO DE HOMENS EM VEZ NA
DÓLARES CONFLITO AMÉRICA
Close-ups sem movimento 166 241 275
Close-ups extremo sem 185 410 347
movimento
Outros enquadramentos sem 246 363 390
movimento
Close-ups com movimento 55 84 169
Close-ups extremos com 32 141 228
movimento
Outros enquadramentos com 173 233 278
movimento
Total de planos do filme 857 1.472 1.687
Plano mais longo do filme 86 segundos 87,2 segundos 247,4 segundos
Média de duração de um plano 6,5 segundos 7,1 segundos 7,9 segundos
(Footnotes)
1 Dados compilados por Thomas Weisser (1992).
2 Dados compilados por Bert Fridlund (2006).
3 Estatísticas publicadas anualmente pelo Catálogo Bolaffi (dados oficiais do Governo da Itália).
4 Estatísticas publicadas anualmente pelo Catálogo Bolaffi (dados oficiais do Governo da Itália).
FILMES
A Era uma Vez na América 56, 61, 83, 175, 176,
A Batalha de Argel 75 196, 197, 265, 266
A Conquista do Oeste 56, 130 Era uma Vez no Oeste 17, 54, 56, 74, 79, 85, 86,
A Conversação 87 124, 129, 130, 131, 132, 133, 139, 194,
A Cor do Dinheiro 245 197, 208, 245, 265
A Face Oculta 108 Estigma da Crueldade 117, 121
A Fúria 245, 246 ET – O Extraterrestre 246
A Marca da Pantera 243
A Morte Anda a Cavalo 53 F
A Pistola Não Discute 44 Fogo Contra Fogo 249
A Queda do Império Romano
A Tortura do Medo 41 G
Apocalypse Now 56, 199 Guerra nas Estrelas 199, 245, 246
As Aventura de Tom Jones 144 Gunsmoke 41
Assalto à 13ª DP 245
H
B Helena de Tróia 40
Barry Lyndon 245, 246 Hiroshima Mon Amour 108
Bastardos Inglórios 248
Ben-Hur 40 I
Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas 56 Irreversível 249
Butch Cassidy & Sundance Kid 89 J
Joe, o Pistoleiro Implacável 52
C Johnny Guitar 130, 133, 265
Cães de Aluguel 248 Jules e Jim 118
Cidadão Kane 47, 108
Cleópatra 41 K
Comboio do Medo 56 Kill Bill 248
Consciências Mortas 125
L
D Ladrões de Bicicleta 35, 40, 186
Desejo e Reparação 249 Laranja Mecânica 245, 246
Dias de Ira 139 Legião Invencível 104, 129
Django, o Bastardo 53 Lua de Papel 246
Dragões da Violência 60, 139, 265
Duelo ao Sol 197, 265 M
Mais Forte que a Vingança 89
E Matar ou Morrer 52, 130, 131, 208, 265
E o Vento Levou 110, 122, 124, 233, 235 Meu Nome é Ninguém 25, 59, 60, 61, 138, 197,
265
267
Meu Nome é Trinity 59
Meu Ódio Será Sua Herança 56, 60, 89, 139 R
Minha Vontade é Lei 73, 117, 265 Rastros de Ódio
Monsieur Verdoux 121 Região do Ódio
Rio Vermelho
N Roma, Cidade Aberta
No Tempo das Diligências 57, 176, 265
S
O Sabata
O Cavalo de Ferro 56, 130, 132 Sangue de Pantera
O Colosso de Rhodes 25, 40, 41 Sartana
O Destino Bate à Sua Porta 243 Sem Destino
O Dia da Desforra 53 Sete Homens e um Destino
O Enigma de Outro Mundo 245 Síndrome de Caim
O Exorcista 56, 246 Sodoma e Gomorra
O General 122
O Grande Roubo do Trem 144 T
O Homem que Luta Só Taxi Driver
O Homem que Matou o Facínora Tempo de Massacre
O Manto Sagrado Tepepa
O Poderoso Chefão Tim Relâmpago
O Preço do Poder Touro Indomável
O Resgate do Bandoleiro Três Homens em Conflito
O Retorno de Frank James Trinity Ainda é Meu Nome
O Senhor dos Anéis: a Sociedade do Anel Tubarão
O Xerife do Queixo Quebrado
Onde Começa o Inferno U
Onde os Fracos Não Têm Vez Um Certo Capitão Lockhart
Os Ano Passado em Marienbad Um Dia de Cão
Os Brutos Também Amam Um Olhar no Paraíso
Os Comancheros Um Tiro na Noite
Os Conquistadores Uma Bala para Um General
Os Incompreendidos
Os Últimos Dias de Pompéia V
Os Violentos Vão para o Inferno Vera Cruz
Vício Frenético
P
Paixão dos Fortes W
Por um Punhado de Dólares Winchester 73
Por uns Dólares a Mais
Y
Q Yojimbo
Quando Explode a Vingança 46, 59, 75, 83,
133, 265
269
Fleming, Victor
Fonda, Henry L
Ford, John Lancaster, Burt
Frayling, Christopher Lang, Fritz
Friedkin, William Leone, Sergio
Fulci, Lucio Lucas, George
Fuller, Samuel Lumet, Sidney
G M
Garko, Gianni Mankiewicz, Joseph L.
Garnett, Tay Mann, Anthony
Garrone, Sergio Mann, Michael
Gastaldi, Ernesto Marianelli, Dario
Geada, Eduardo Mascarello, Fernando
Gibson, Pamela Church Marshall, George
Girotti, Mario Martin, Dean
Godard, Jean-Luc Mattos, A. C. Gomes de
Golding, Edmund McGovern, Elizabeth
Goldoni, Carlo Melville, Jean-Pierre
Gombrich, E. H. Metz, Christian
Gorbman, Claudia Marie, Michel
Goya, Francisco Milius, John
Mizoguchi, Kenji
H Moravia, Alberto
Hathaway, Henry Morricone, Ennio
Hawks, Howard
Herzog, Werner N
Hill, Terence Nietzsche, Friedrich
Hitchcock, Alfred Niro, Robert De
Hopper, Dennis Noé, Gaspar
J P
Jackson, Peter Palma, Brian De
Jameson, Fredric Paolella, Domenico
Jeunet, Jean-Pierre Parolini, Gianfranco
Jullier, Laurent Peck, Gregory
Peckinpah, Sam
K Pedersoli, Carlo
Kant, Immanuel Penn, Arthur
Keaton, Buster Petroni, Giulio
Koch, Marianne Pierre, Sylvie
Koster, Henry Pollack, Sydney
Kubrick, Stanley Pontecorvo, Gillo
Kurosawa, Akira Porter, Edwin S.
T
Tarantino, Quentin
Tarkovski, Andrei
Tati, Jacques
Tessar, Duccio
Thompson, Kristin
Tirard, Laurent
Tourneur, Jacques
Truffaut, François
Turner, Graeme
V
Valerii, Tonino
271