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COlEÇAO CINEMA ESTRONHO
VOlUME 5
TODOS OS DIREITOS DA OBRA RESERVADOS A RODRIGO CARREIRO
AUTOR
Rodrigo Carreiro

REVISÃO
Celly Borges

ILUSTRAÇÃO DE CAPA
Leyla Buk

PROJETO GRÁFICO
Página 42/Marcelo Amado

EDITOR RESPONSÁVEL
Marcelo Amado

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Carreiro, Rodrigo;

Era uma vez no spaghetti western: o estilo de Sergio Leone


... – São José dos Pinhais, PR: Página 42 Editora/Estronho,
2014. 304 pg.

ISBN: 978-85-64590-79-3

1. Ensaios Brasileiros. I. Carreiro, Rodrigo


CDD-B869.4

índice para catálogo sistemático:


1. Ensaios Brasileiros. CDD-B869.4

Todos os direitos desta edição reservados à


Página 42 Editora / Estronho
São José dos Pinhais - Paraná - Brasil

www.editora.estronho.com.br
Facebook: www.facebook.com/EditoraPagina42
Twitter: @Pagina42_Ed
CLINT EASTWOOD EM “PER UN PUGNO DI DOLLARI” (1964)
“Essas histórias existem por quê? Apenas por causa de um
punhado de dólares? Não existe algo mais por trás?”

Alberto Moravia
CENA DE “C’ERA UNA VOLTA IN WEST” (1968)
Para Nina e Helena,
que fazem tudo valer a pena.
“Essas histórias existem por quê? Apenas por causa
de um punhado de dólares? Não existe algo mais por
trás?”

Alberto Moravia

LEE VAN CLEEF


AGRADECIMENTOS

Este livro nasceu de uma pesquisa de doutoramento desenvolvida no Programa de Pós-Gra-


duação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Por isso, começo os agradeci-
mentos dizendo obrigado aos professores e alunos pelas contribuições oferecidas nas diversas ve-
zes em que apresentei ou discuti, em seminários e aulas, aspectos da pesquisa. Pelo mesmo motivo,
agradeço aos participantes do GT Fotografia, Cinema e Vídeo do encontro de 2010 da Compos
2010, realizado na PUC-RJ. Comentários, críticas e sugestões, nascidos dentro desses fóruns, for-
neceram saídas para impasses teóricos ou metodológicos que se desenharam ao longo da trajetória.
Muito obrigado aos colegas da disciplina Seminário de Tese, que tiveram a paciência
de ler e comentar dois capítulos do texto original. Agradeço em especial à professora Nina
Velasco, cuja análise acurada antecipou muitos comentários da banca de qualificação e apon-
tou para mudanças importantes no relatório final, aqui revisado e adaptado.
Agradeço aos professores e alunos do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da
UFPE, onde já dava aulas durante a pesquisa, pela troca de informações e pelo incentivo.
Devo mencionar o apoio dos professores Angela Prysthon e Felipe Trotta, e não apenas pela
crítica construtiva realizada durante a banca de qualificação, mas também pelo apoio rece-
bido nos momentos difíceis que enfrentei ao longo do processo. A Celly de Brito Lima, pela
ajuda com as normas da ABNT e pela torcida incondicional.
A meus pais, Raimundo e Célia, pelo ombro providencial e pelas palavras de incentivo. A
Nise e Santana, pelo amor, atenção e carinho que dedicaram e dedicam a Nina e Helena. Às minhas
duas filhas, por serem um motivo concreto para que o pai siga adiante. A Adriana, pelo apoio.
Aos amigos que acompanharam o processo: sintam-se abraçados, todos. Agradeci-
mentos especiais a Erika Pires Ramos, Osvaldo Neto, Andrea Mello Rego e Roberta Rego
pela torcida e pela energia positiva. Obrigado aos leitores do blog Cine Repórter, muitos dos
quais acompanharam o processo de redação da tese (via e-mail, Twitter e Facebook) e es-
creveram de volta, incentivando, dando dicas ou pedindo para ler a tese depois de defendida.
Um obrigado especial ao meu irmão Diego, pela revisão cuidadosa, pelas sugestões e
pelas dicas bibliográficas.
Muito obrigado à Olga Ferraz, que chegou à minha vida depois da etapa da pesquisa,
mas tomou conta dela tão completamente, no melhor dos sentidos.
Muito, muito obrigado ao Marcelo Amado e à Celly Borges, pela coragem de investir
nesse estronho (risos) cruzamento entre teoria do cinema e cultura pop com uma empolgação
contagiante que não se encontra em qualquer esquina – ou, talvez, em nenhuma esquina.
Vocês são uma exceção extraordinária.
À Laura Loguercio Cánepa, pela leitura precisa do texto original, pelo incentivo e
pelas conversas sempre divertidas. A Bernadette Lyra, pela inspiração. A Leandro Cesar
Caraça, Carlos Primati, Ronald Perrone e todo o pessoal da Vivos (vocês sabem quem são...),
esse incrível híbrido de fãs e pesquisadores, muitos deles diletantes, cujo conhecimento so-
mado deixa o IMDB no chinelo.
Finalmente, obrigado a Paulo Cunha, pela orientação tranquila e pela assistência pre-
cisa com os textos em francês.
E obrigado a todos aqueles que porventura eu tenha esquecido de mencionar aqui.
TERENCE HILL EM “IL MIO NOME È NESSUNO” (1973)
ÍNDICE

13 PREFÁCIO, POR LAURA LOGUERCIO CÁNEPA


17 INTRODUÇÃO
29 1. ESTILO E MODO DE PRODUÇÃO
29 1.1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS
34 1.2 CINECITTÀ: UMA HISTÓRIA EM CICLOS
51 1.3 APOGEU E QUEDA

63 2. A FORTUNA CRÍTICA DE LEONE


63 2.1 O IMPACTO DO GÊNERO E DO AUTORISMO NA FORTUNA CRÍTICA
67 2.2 A ANÁLISE DA FORTUNA CRÍTICA
75 2.3 CINEASTAS, INTELECTUAIS E OS CAHIERS DU CINÉMA

85 3. PRÁTICAS NARRATIVAS DE LEONE


85 3.1 A NARRAÇÃO NA POÉTICA DO CINEMA
102 3.2 DUPLA DE ANTI-HERÓIS
118 3.3 HERÓIS OU ANTI-HERÓIS?
133 3.4 FIM DA LINHA

143 4. PRÁTICAS ESTILÍSTICAS DE LEONE


143 4.1 CONSTRUINDO UM REPERTÓRIO AUDIOVISUAL
173 4.2 COMPOSIÇÃO E ENQUADRAMENTO
186 4.3 CENÁRIOS, FIGURINOS E OBJETOS CÊNICOS
194 4.4 O SOM: VOZ, RUÍDOS, SILÊNCIOS E MÚSICA

243 5. O LEGADO DE LEONE


243 5.1 CONTINUIDADE INTENSIFICADA E GERAÇÃO NEW HOLLYWOOD
247 5.2 SERGIO LEONE E OS FILMES CONTEMPORÂNEOS

256 BIBLIOGRAFIA
263 ANEXOS
267 ÍNDICE ONOMÁSTICO
SERGIO LEONE E CLINT EASTWOOD NO SET DE “TRÊS HOMENS EM CONFLITO” (1966)
PREFÁCIO

Na primeira metade do século XX, o crítico francês André Bazin definiu o western
como “o cinema americano por excelência”. A partir da década de 1950, porém, esse mesmo
gênero também funcionou como plataforma para diretores de outros continentes darem con-
tribuições fundamentais à história das formas cinematográficas.
Entre os realizadores que em algum momento de suas carreiras souberam reinventar
o western fora das fronteiras dos EUA estão dois dos mais importantes de toda a história do
cinema. Akira Kurosawa buscou criar um western nipônico em Os Sete Samurais (1957),
produzindo assim um dos maiores sucessos do cinema asiático de todos os tempos. Poucos
anos depois, o italiano Sergio Leone apresentaria ao mundo uma série de westerns barrocos
inspirados pela mitologia do gênero nos EUA, pelo realismo por vezes brutal do cinema
italiano e pelas aventuras de espadachins japoneses que, graças a Kurosawa, haviam se popu-
larizado mundo afora. Filmada em parte na Espanha e estrelada por atores americanos, a série
de Leone ficaria conhecida como a “Trilogia dos Dólares” (Por Um Punhado de Dólares,
1964; Por Uns Dólares a Mais, 1965; Três Homens em Conflito, 1966) e seria o paradigma
de um ciclo de filmes inspiradíssimo apelidado de spaghetti western.
É muito difícil, então, resistir à empolgação no momento de apresentar Era uma vez
no spaghetti western – O estilo de Sergio Leone, de Rodrigo Carreiro. Trata-se, afinal, da
primeira pesquisa de fôlego publicada no Brasil sobre esse cineasta italiano. Além do mais, o
texto é resultante da tese de doutorado do autor, que é também jornalista e cinéfilo, capaz de
aliar a profundidade do texto acadêmico ao prazer e à comunicabilidade dos bons trabalhos
críticos.
Neste livro, o leitor começará conhecendo um pouco da história do spaghetti western,
filão explorado em centenas de fitas italianas distribuídas mundialmente nas décadas de 1960
e 1970. Esses filmes, que obtiveram extraordinário sucesso popular, acabaram desafiando
os próprios diretores e produtores americanos, obrigados a dar respostas cinematográficas à
altura. Isso se verifica, por exemplo, no filme do próprio Leone coproduzido com Hollywood
(Era Uma Vez no Oeste, 1968) e nas obras de cineastas como Sam Peckinpah (Meu Ódio
Será Tua Herança, 1968) e, mais tarde, Clint Eastwood. Este, alçado ao estrelato pelos filmes
de Leone nos anos 1960, dedicaria a ele (e também a Don Siegel, diretor de Dirty Harry –
chamado no Brasil de Perseguidor Implacável –, de 1970) seu western definitivo: Os Imper-
doáveis, em 1992.
Mesmo que o reconhecimento da crítica tenha demorado um pouco mais a chegar,
como relata Carreiro no segundo capítulo deste livro, o legado de Leone para a história do
cinema a partir dos anos 1960 é inesgotável.
Mas não se trata apenas de fazer justiça à trajetória de Leone. O trabalho de Carreiro
também se apresenta como um estudo sistemático de estilística cinematográfica, tendência
dos estudos de cinema ainda pouco praticada no Brasil – pelo menos com a profundidade
e a extensão que se encontra aqui. Auxiliado por metodologia inspirada nos trabalhos do
pesquisador estadunidense David Bordwell, o autor mostra, a partir da análise detalhada dos

13
principais westerns de Leone, as características que fizeram dele um influente inventor de
formas consagradas em obras de cineastas como Brian de Palma, William Friedkin, Quentin
Tarantino e muitos outros.
Nesse sentido, a escolha do objeto de análise mostra-se acertada, pois Leone se desta-
cou, desde o início, por dedicar-se a dar máxima visibilidade a seu próprio estilo de fazer ci-
nematográfico. Inovando no âmbito amplo das principais técnicas que compõem a estilística
do cinema (a encenação, a direção de fotografia, a montagem e o desenho de som), Leone foi
um visionário cuja herança transcendeu o cinema e chegou até à publicidade, aos videoclipes
e aos videogames.
Assim, tanto para os nostálgicos do cinema transformador dos anos 1960 quanto para
aqueles que desejam compreender práticas estilísticas disseminadas no audiovisual contem-
porâneo, a imersão proposta por Carreiro no universo de Leone se dá em grande estilo, e traz
para o primeiro plano a obra de um criador que soube como poucos aliar a experimentação, a
agressividade, a cinefilia e o senso de diversão na cultura cinematográfica mundial.

Laura Loguercio Cánepa


Jornalista e pesquisadora de cinema. Doutora em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp, é
docente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi.
É membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE) e Coordenadora do GP de
Cinema da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom).

14 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


ELI WALLACH EM “TRÊS HOMENS EM CONFLITO” (1966)
CLINT EASTWOOD EM “TRÊS HOMENS EM CONFLITO” (1966)
INTRODUÇÃO

O episódio que narro aqui ocorreu em 1966 (FRAYLING, 2000, p. 247-248). Era
sexta-feira, 23 de dezembro, data da estreia de Três Homens em Conflito (Il Buono, il Brutto,
il Cattivo, Sergio Leone, 1966) em Roma. O diretor Bernardo Bertolucci, então autor de dois
longas-metragens elogiados pela crítica, cumpria um hábito cinéfilo: assistir aos filmes que
mais aguardava na primeira sessão do primeiro dia em cartaz.
Bertolucci chegou ao cinema às 15 horas e viu que Sergio Leone, acompanhado do
então crítico (e futuro cineasta) Dario Argento, circulava pela antessala. Argento conhecia
Bertolucci e apresentou-o a Leone. Os três trocaram amabilidades e entraram na sala. Leone
e Argento ficaram na cabine, onde o cineasta dava instruções ao projecionista. Bertolucci
sentou no meio da plateia. Não se encontraram na saída.
No dia seguinte, véspera de Natal, Bertolucci recebeu um telefonema. Do outro lado
da linha, Leone queria saber o que ele havia achado de Três Homens em Conflito. Uma
resposta lacônica e positiva não bastou. Leone estava preocupado com a longa duração do
filme. Queria saber por que Bertolucci tinha gostado. A opinião de um colega respeitado pela
crítica era importante. Bertolucci achou que não tinha condições de dar uma opinião técnica
e ponderada. A resposta saiu intuitiva, de supetão:

Eu disse que havia gostado da maneira como ele filmava bundas de cavalos.
(...) Bem poucos diretores filmam bundas de cavalos, cuja visão na tela é menos
romântica e retórica. Um deles é John Ford. Outro é você”. (BERTOLUCCI
apud FRAYLING, 2000, p. 248)1.

Do outro lado do telefone, silêncio. Bertolucci pensou que havia soado grosseiro.
Então Leone o surpreendeu com uma oferta: escrever o roteiro do seu próximo filme. E
começou a contar algumas ideias que andava ruminando sobre mais um western, um lon-
ga-metragem que funcionaria como uma homenagem a todos os westerns, uma síntese de
momentos icônicos do gênero. Junto com Dario Argento, os dois começaram a trabalhar na
semana seguinte. Em dois meses, tinham escrito o primeiro tratamento de Era uma Vez no
Oeste (C’era una volta il West, Sergio Leone, 1968).
Embora eu nunca tenha prestado atenção em bundas de cavalos – muito menos na
maneira como Leone as filmava –, minha paixão cinéfila surgiu por causa do impacto que os
spaghetti westerns exerceram em mim durante a adolescência. O impulso que disparou em
mim o interesse em estudar história e teoria do cinema, e que me levou gradualmente até este
livro, foi concretizado pela mesma razão que levou Bertolucci a perceber que Leone filmava
de maneira diferente que a maioria dos diretores de westerns: o estilo.

1 Tradução nossa. Todas as citações de textos em língua estrangeira incluídas neste livro foram vertidas
pelo autor para o português. Quando necessário, para dirimir alguma possível distorção na tradução, o
texto na língua original será acrescentado em nota.
17
Meu interesse por cinema foi despertado durante os anos 1980, pelos filmes exibidos
em um espaço semanal dedicado pela TV Record a filmes pertencentes ao ciclo de spaghetti
westerns. Esse espaço televisivo se chamava Bangue-Bangue à Italiana. Todas as quartas-
-feiras, a partir das 21h, a Record exibia algum das cinco centenas de longas-metragens
realizados por produtores independentes atuando em Cinecittà, nos anos 1960 e 1970.
Numa época pré-videocassete, as sessões na TV formavam minha dieta cinematográ-
fica básica. O dia da semana era especial porque todos se sentavam na sala para acompanhar
as aventuras daqueles heróis cínicos, com aparência de mendigos, de mira infalível, que
circulavam pelas estradas poeirentas do Velho Oeste. Depois de 1997, quando comecei a
atuar como crítico de cinema em um jornal do Recife, retornei aos poucos ao spaghetti west-
ern. Inicialmente, por mera curiosidade, e munido apenas de um punhado de fragmentos
de memórias. Aos poucos, enquanto revia filmes do ciclo, comecei a constatar – não sem
surpresa – que grande parte dos fragmentos guardados na memória pertencia aos filmes de
um único diretor: Sergio Leone. Essa constatação me deixou intrigado. Foi ela que me levou,
indiretamente, até esta pesquisa.
A questão que estava no centro de minha curiosidade pode ser resumida na seguinte
frase: como é possível que uma criança de 11 anos, sem nenhum conhecimento sobre histó-
ria, crítica ou teoria de cinema, havia percebido intuitivamente que um cineasta solucionava
seus problemas de representação de maneira mais destacada do que outros, cujos filmes eram
semelhantes (mas, obviamente, não iguais)? A resposta nos remete ao episódio das bundas de
cavalo. Eu havia percebido que Leone filmava de maneira distinta de outros diretores, mes-
mo que essa diferença fosse mínima aos olhos de um leigo. Havia uma centelha aí esperando
para ser transformada numa fogueira.
Depois de assistir a um quinto de toda a produção de spaghetti westerns (mais de 150 tí-
tulos pertencentes ao ciclo foram vistos ou revistos no decorrer da pesquisa, entre 2009 e 2013),
posso afirmar com segurança que a maior parte dos cerca de 550 spaghetti westerns produzidos
entre 1962 e 1978 conta variações do mesmo enredo, possui personagens parecidos, foi filmada
nas mesmas cidades cenográficas, com os mesmos atores e técnicos. Dezenas de diretores que
trabalhavam no gênero utilizavam os mesmos recursos estilísticos. Quanto mais filmes eu via,
mais ficava intrigado. Por que razão Leone se destacou diante dos olhos de uma criança que
nada sabia sobre os contextos de produção em que ele e os colegas trabalhavam?
Historicamente, é possível alegar que Leone foi um pioneiro. A primeira grande pes-
quisa sobre o spaghetti western (realizada nos anos 1980 pelo inglês Christopher Frayling)
confirma Leone como o primeiro cineasta do ciclo a propor certas revisões dos esquemas
estilísticos e narrativos disponíveis para problemas de representação do western. Consisten-
temente, ele revisava esquemas dominantes que haviam sido estabelecidos dentro do gênero
norte-americano. Algumas dessas soluções foram copiadas por outros diretores, dentro e fora
do ciclo; elas extrapolaram a obra de Leone e, ainda hoje, podem ser identificadas em filmes
contemporâneos que nada têm a ver com o gênero western. Tudo isso pode ser comprovado
através da análise estilística rigorosa que esperamos realizar ao longo deste livro; mas esse
raciocínio ainda não explica um ponto central da argumentação: por que momentos dos fil-
mes assinados por Leone ficaram retidos, daquela experiência na infância, enquanto tantos
outros momentos similares, oriundos de filmes de outros diretores, se perderam?

18 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Uma lição importante deixada por esta questão ilustra uma parte do problema de pes-
quisa com o qual estamos lidando: aquilo que faz um filme ser diferente, interessante ou
original (não necessariamente melhor ou pior, categorias subjetivas que dependem da res-
sonância provocada em cada espectador para operar), nem sempre está na história contada.
Pode estar na maneira de contá-la; ou seja, no estilo:

O estilo é a textura tangível do filme, a superfície perceptual com a qual nos


deparamos ao escutar e olhar: é a porta de entrada para penetrarmos e nos mo-
vermos na trama, no tema, no sentimento – e tudo mais que é importante para
nós. (BORDWELL, 2009, p. 58).

Um filme conta uma história. Mas uma história criada com luz, sons, cores e movi-
mento. Muitas vezes, não é o que o diretor filmou que faz um filme emocionar as pessoas. É
a maneira como ele filmou; são os recursos estilísticos e narrativos acionados pelo cineasta
para narrar a história. O conceito de estilo, nos termos definidos por Bordwell2, funciona
como ponto de partida deste livro.
Ressalte-se: não se pretende defender aqui que Leone foi o melhor diretor de spaghetti
westerns. Tal afirmação aciona forças que vão muito além da análise estilística, horizonte
teórico no qual esta pesquisa pretende se mover. Poderíamos desfiar um rosário de argumen-
tos para explicar a preferência pela obra de Leone, em termos de gosto e juízo de valor, evo-
cando a subjetividade dos conceitos. Robert Stam questiona: “Por que alguns espectadores
adoram e outros odeiam os mesmos filmes?” (STAM, 2004, p. 267). A teoria do cinema não
oferece uma resposta absoluta para essa pergunta.
Lidar com aspectos subjetivos como gosto e valor não é a proposta principal deste li-
vro. Acreditamos que uma análise estilística rigorosa pode esclarecer, com bastante precisão,
a amplitude da contribuição exercida por Leone nos processos de revisão e síntese dos esque-
mas narrativos dominantes do período clássico do cinema (1930-1960), levados a cabo por
vários cineastas atuantes nos anos 1960; e achamos, também, que essa análise pode ajudar a
formular uma explicação coerente para as questões que levaram a esta pesquisa.
A importância do estilo dentro da obra de Leone é inquestionável. Peça a qualquer pessoa
que explique porque gosta ou não dos filmes de Leone e verá que todos citam aspectos estilís-
ticos – os close-ups extremos de olhos, a ironia, o tratamento particular do tempo diegético etc.
– antes mesmo de mencionar aspectos do enredo. Em depoimentos a Laurent Tirard, Jean-Pierre
Jeunet cita o tratamento “lúdico” (TIRARD, 2006, p. 58) dado por Leone ao estilo como razão
primeira para se tornar um cineasta; e Pedro Almodóvar usa os close-ups extremos de Leone
como exemplo de um recurso “completamente falso” (TIRARD, 2006, p. 40). Opiniões profun-
damente divergentes sobre um mesmo tópico: o estilo.
No entanto, como o teórico norte-americano David Bordwell adverte, a estilística per-
manece uma disciplina menos importante dentro do campo dos estudos cinematográficos.
Esta afirmação explica, em parte, o fato de Leone ser visto como um diretor mais famoso do
que influente. Os filmes dele alcançaram enorme popularidade desde os anos 1960, e essa
2 Uma circunscrição mais precisa do termo estilo será efetuada no início do capítulo 1.

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popularidade foi acompanhada por um processo gradual de revalorização crítica. Mesmo
assim, Leone continua a não ser considerado seriamente como um diretor historicamente
importante. Para a maioria das pessoas, inclusive estudiosos e pesquisadores do cinema, ele
não está à altura de Godard, Bergman, Fellini e Antonioni – a geração de cineastas europeus
contemporânea dele, consagrada como fundamental para o desenvolvimento da tradição ci-
nematográfica.
Como um todo, o spaghetti western não passa de nota de rodapé em livros de história
do cinema. Existem muitas razões que contribuem para explicar esse relativo apagamento
e várias delas serão analisadas ao longo deste livro, mas a principal, que antecipamos aqui,
está resumida na constatação de Bordwell (2008, p. 58): a maior parte dos historiadores do
cinema narra o desenvolvimento da arte cinematográfica tendo como eixo condutor relações
estabelecidas entre filmes e práticas sociais; entre obras e contextos socioculturais, políticos
e econômicos que marcaram o século XX. Nesses relatos, a análise das práticas estilísticas
de diretores tem sido colocada em segundo plano. E como a contribuição de Leone se deu
principalmente no terreno da estilística, ele permanece em segundo plano.
Enfatizando como a análise do estilo tem ocupado maior destaque em disciplinas mais
consolidadas, como a História da Arte, Bordwell tem sido um dos poucos pesquisadores do
cinema a investir nesse caminho. As pesquisas realizadas por ele (sozinho ou em parceria
com outros estudiosos, como Kristin Thompson e Janet Steiger) são, junto com as investiga-
ções de Barry Salt (2009), as tentativas mais significativas de estudar o desenvolvimento da
arte cinematográfica através da análise do estilo.
O débito deste texto para com a teoria cognitivista de Bordwell é incontornável; esse
débito pode ser constatado através das muitas citações a livros dele que encontraremos nas
próximas seções. A abordagem de Bordwell destaca maneiras como a mente humana percebe
as representações cinematográficas. Por um momento, ela deixa de lado as conexões entre
filmes e práticas sociais para se concentrar no modo como os diretores constroem a narrativa,
e como o resultado das escolhas operadas nesse processo de construção é percebido pelo
espectador; ou seja, a análise fílmica resultante deste método olha mais para dentro do filme
do que para fora dele. A abordagem resgata elementos da semiologia do cinema de Christian
Metz, disciplina com a qual o cognitivismo compartilha semelhanças. É dentro desta moldu-
ra teórica, situada entre o cognitivismo e a semiologia, que se situa este livro.
No entanto, apesar de predominante, a abordagem cognitivista não foi adotada de
forma estanque ao longo deste estudo. O próprio Bordwell não o faz; ele diz preferir uma
metodologia transdisciplinar, pois admite que os diversos contextos em que o diretor realiza
filmes, e nos quais os espectadores consomem esses mesmos filmes, atravessam obrigatoria-
mente as decisões criativas que constituem o estilo. Assim, para realizar uma análise estilís-
tica minuciosa, deve-se sempre ter em conta o papel exercido pelos contextos nas escolhas
operadas pelo artista, como nos ensina Gombrich:

(...) o que interessa aqui, do ponto de vista do método, é que um ato de escolha
tem apenas significação sintomática, e só é expressivo de alguma coisa se pode-
mos reconstruir a situação em que se deu a escolha (GOMBRICH, 2007, p. 18).

20 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Gombrich é um autor central para Bordwell, cujo trabalho tem consistido, em grande
medida, em aplicar à arte cinematográfica o método desenvolvido por Gombrich para estu-
dar as artes pictóricas – pintura, arquitetura, desenho etc. Nossa pesquisa pretende fazer o
mesmo, circunscrevendo a prática da análise estilística ao trabalho de um único artista; por
isso, procuramos seguir a mesma trajetória metodológica. Esta consiste em partir da recons-
tituição dos contextos históricos, socioculturais, econômicos, tecnológicos e políticos dentro
dos quais Sergio Leone trabalhava para, num segundo momento, dar conta de uma análise
estilística mais minuciosa.
Ao longo deste percurso, a abordagem utilizada é transdisciplinar. Tomamos em-
prestados conceitos de várias disciplinas (por exemplo, a narratologia estruturalista de Will
Wright, a historiografia influenciada pelos estudos culturais de Christopher Frayling, a socio-
logia de Edward C. Banfield, a fusão entre semiologia da música e psicanálise lacaniana de
Michel Chion, o estudo dos gêneros fílmicos de Edward Buscombe e outros), sempre tendo
no horizonte o objetivo de investigar as relações entre o objeto-filme e os seus contextos de
produção, circulação e consumo.
Três conceitos formam o alicerce conceitual em que se fundamenta este livro. Um
deles, já vimos, é o de estilo. A forma como Bordwell definiu esse termo deve a E. H.
Gombrich, que providenciou o segundo conceito essencial: o de esquema. Os esquemas são
conjuntos de normas de estilo disponíveis aos artistas de determinada época para resolver
problemas de representação (GOMBRICH, 2007). Essas técnicas se firmam aos poucos, no
repertório dos artistas, quando se mostram bem-sucedidas. Elas podem ser replicadas, revi-
sadas, sintetizadas ou rejeitadas pelos artistas. Os esquemas funcionam mais ou menos como
sistemas de códigos (ou seja, regras narrativas e estilísticas) que produzem significados a
partir da manipulação de significantes. Esquemas são flexíveis o suficiente para que cada
artista, dentro dos contextos de produção em que opera, os modifique ou adapte em variados
graus de ênfase. Demonstrar como Sergio Leone trabalhou com os esquemas disponíveis,
muitas vezes revisando-os (em alguns casos de modo crítico), é um dos objetivos do livro.
Leone pertenceu a uma geração de diretores europeus apontada por historiadores do
cinema como renovadora dos esquemas clássicos da tradição cinematográfica. Esta gera-
ção deu partida a um processo estético de intensificação desses esquemas, instituindo o que
Bordwell chamou de poética da continuidade intensificada (BORDWELL, 2006, p. 119) – o
terceiro conceito teórico crucial para este livro. O pesquisador norte-americano defendeu que
a poética do cinema está passando, desde os anos 1960, por um processo gradual de intensi-
ficação dos recursos estilísticos utilizados para narrar histórias audiovisuais.
Bordwell rejeita a ideia de que o cinema irreverente e autorreflexivo, praticado pe-
los movimentos cinematográficos que emergiram naquela década na Europa (em especial a
Nouvelle Vague francesa), propunha uma ruptura com a linguagem cinematográfica clássica.
Ele substitui a ideia de ruptura pela de intensificação. No entanto, concorda com o senso
comum sobre quem foram os diretores que revisaram, sintetizaram e adaptaram os esquemas
que constituíam essa poética da intensificação: a geração anteriormente citada de contem-
porâneos de Leone, incluindo diretores como Bertolucci (o mesmo das bundas de cavalos)
e Resnais. São os cineastas que se convencionou chamar de diretores modernistas europeus
(AUMONT, 2008; LAURENT; JULIER, 2009; MANEVY, 2006).

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A teoria de Bordwell abre espaço nesse grupo de renovadores para alguns nomes de
gerações anteriores, como Orson Welles, Robert Bresson, Akira Kurosawa e Alfred Hitch-
cock. De modo geral, Bordwell aponta para o mesmo grupo de realizadores consagrados. O
ponto de maior originalidade (e também de discórdia) de sua teoria é mesmo a negação da
ideia de ruptura, em prol da noção da intensificação. Mas a percepção do fenômeno é a mes-
ma – nos anos 1960, os cineastas começaram a alterar suas práticas narrativas e estilísticas
– e seus protagonistas, também.
Ao rever os westerns de Leone, me parece evidente que há uma conexão entre esses
filmes e a poética da continuidade intensificada, notável especialmente no cinema de gênero
contemporâneo. Desde meados dos anos 1960, Leone já utilizava certos recursos estilísticos
e narrativos em apontavam em direção a essa intensificação, revisando (sem romper com) os
esquemas narrativos e estilísticos que compunham a tradição a partir da qual ele trabalhava.
Mais: algumas das práticas estilísticas e narrativas que sinalizam essa operação, e que por
vezes assinalam também uma assinatura autoral, são em alguns casos substancialmente dife-
rentes daquelas adotadas pelos diretores modernistas, muito mais respeitados.
Os filmes de Leone apontavam para o mesmo rumo, mas o modo como ele filmava era
diferente de Godard, Bergman e companhia. Ele não estava simplesmente replicando os novos
recursos de estilo e narrativa introduzidos nos esquemas dominantes da prática cinematográ-
fica pelos demais cineastas dos anos 1960. Ele produzia algo particular. Close-ups (sobretudo
extremos3) em grande quantidade; realismo4 grotesco (combinado com um tom paródico e ir-
reverente) de cenários e figurinos; perfil amoral e violento do herói individualista; tratamento
distendido do tempo fílmico dado aos momentos de tensão (sobretudo os duelos); representação
gráfica da violência; estrutura narrativa cronologicamente fragmentada, privilegiando momen-
tos de ação física; inclusão de elementos diegéticos nas composições musicais; uso dramático
de ruídos e silêncios. Essas e outras ferramentas são alguns dos recursos narrativos e estilísticos
que marcaram presença nos filmes dele de modo recorrente, buscando a intensificação da expe-
riência fílmica. Todas consistem de revisões ou sínteses estilísticas, que se juntaram ao reper-
tório de técnicas introduzidas pelos diretores modernistas europeus, para compor os esquemas
que constituem, desde então, a poética da continuidade intensificada.
Várias das características elaboradas por Leone podem ser percebidas – muitas vezes
submetidas a novos processos de atualização, revisão e adaptação – em filmes contemporâ-
neos, os quais continuam ainda hoje a exacerbar gradualmente essa noção de intensificação
(BORDWELL, 2006, p. 119). O uso de close-ups extremos de rostos, por exemplo, aumen-
tou exponencialmente desde meados dos anos 1960, quando nenhum outro cineasta além de
Leone usava o recurso de maneira tão ostensiva e abundante; os heróis se tornaram cada vez
mais falhos e de moral duvidosa; e assim por diante.
3 Como serão mencionados diversas vezes ao longo do livro, é importante ressaltar a diferença entre
close-ups e close-ups extremos (em inglês, big close-ups). No primeiro caso, o close-up tradicional
mostra o rosto e os ombros do personagem, deixando algum “ar” sobre sua cabeça. No segundo, menos
comum, o rosto é enquadrado por inteiro, do queixo à testa. Planos que cortam a ponta do queixo e o
topo da testa, bem como aqueles que focalizam apenas partes do rosto (olhos, boca, nariz), também são
considerados close-ups extremos.
4 O termo “realismo” é usado neste livro como sinônimo de “verossimilhança”, evocando uma forma
de representação do Velho Oeste mais próxima da realidade da época do que os filmes norte-america-
nos que retrataram o mesmo período histórico.

22 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


A associação entre os filmes de Leone e a poética da continuidade intensificada parece
ter sido percebida intuitivamente pelos cinéfilos. É significativo que o já citado Três Homens
em Conflito ocupe, atualmente, o quarto lugar entre os melhores filmes de todos os tempos,
na votação popular dos 17 milhões de internautas cadastrados no Internet Movie Database
(IMDb)5. Assim como parece significativo que um diretor como Quentin Tarantino, aponta-
do por críticos e estudiosos como um dos principais renovadores do cinema nos anos 1990,
escolha o mesmo filme como seu predileto6.
Portanto, nos parece que, operando dentro do mesmo contexto sócio-histórico em que
os diretores modernistas europeus trabalharam, Sergio Leone ajudou a desenvolver muitos
recursos da continuidade intensificada. No entanto, seus filmes nunca mereceram uma aná-
lise detalhada do ponto de vista estilístico; sua contribuição à poética do cinema contempo-
râneo permanece obscura.
Mesmo a pesquisa de Bordwell, autor que defende a ampliação das pesquisas do estilo
cinematográfico, reflete esse problema. No livro em que desenvolve o conceito de continui-
dade intensificada, ele cita Sergio Leone cinco vezes (BORDWELL, 2006). Em três delas,
menciona o uso abundante de close-ups extremos; em duas, faz o mesmo em relação ao uso
constante de lentes grande-angulares. No entanto, em nenhum momento ele aponta Leone
como um cineasta importante para o desenvolvimento desses dois recursos. Bordwell mini-
miza o papel que os filmes de Leone parecem ter exercido no processo contínuo de revisão e
exacerbação de muitas das características de narrativa e estilo que integram os esquemas da
continuidade intensificada.
Mais sintomático ainda é a ausência de qualquer citação ao trabalho de Leone no livro
em que Bordwell (1997) se propõe a narrar a história do estilo no cinema do século XX. O
outro historiador crucial do estilo cinematográfico, Barry Salt, cuja pesquisa mapeia as prin-
cipais tendências estilísticas e narrativas do cinema desde os irmãos Lumière, faz uma única
menção a Leone (SALT, 2009, p. 297), citando-o como um dos poucos diretores a explorar a
composição em profundidade de campo nos anos 1960. Além disso, a tentativa de Bordwell e
Thompson (2009) em reconstituir a história do cinema, relacionando-a não aos grandes fatos
históricos do século XX, mas aos avanços tecnológicos e estilísticos, dedica quatro parágra-
fos ao diretor, mencionando como características dele os close-ups extremos, o realismo de
cenários e figurinos e a música irreverente. O trecho é encerrado com uma frase curta, mas
importante, que ajuda a expor com clareza o problema a que nos referimos:

Embora Leone tenha trabalhado num gênero popular, sua reinterpretação extra-
vagante e altamente pessoal das convenções desse gênero foi tão significativa
quanto os esforços dos diretores de cinema de arte que revisaram e desafiaram a
tradição neorrealista. (BORDWELL; THOMPSON, 2009, p. 418).
5 O maior banco de dados de cinema da Internet possui 17 milhões de visitantes registrados com direito
a voto. Para ser incluído na lista dos 250 melhores, destacada na homepage, um filme precisa obedecer
aos seguintes critérios: (1) ter mais de 45 minutos; (2) receber pelo menos 1.300 votos; e (3) ser uma
obra de ficção, o que exclui da lista os documentários.
6 Tarantino votou em Três Homens em Conflito como melhor filme da história do cinema na vota-
ção promovida pela publicação britânica Sight & Sound, em 2002. A revista inglesa publica listas de
melhores filmes, compiladas entre centenas de diretores e críticos de todo o mundo, a cada dez anos,
desde 1952.

23
A passagem contém um paradoxo revelador. Bordwell e Thompson afirmam que as
práticas estilísticas e narrativas de Leone foram tão importantes quanto aquelas operadas
pelos diretores modernistas europeus. Nesse caso, é difícil compreender porque todos eles –
Godard, Truffaut, Antonioni, Bergman e Fellini, entre outros – têm trechos de filmes analisa-
dos em Boxes graficamente destacados, enquanto Leone fica restrito a uma menção circuns-
tancial. De fato, a frase traz duas expressões que ajudam a esclarecer o paradoxo: (1) Leone
trabalhou num ciclo de cinema feito para consumo popular, que por sua vez estava incluído
num gênero fílmico também de caráter popular (a palavra “embora” explicita o preconceito
dos autores); (2) os grandes diretores modernistas merecem mais respeito porque fazem ou
faziam cinema “de arte”.
Em síntese, parte de nosso problema de pesquisa está ligado ao relativo apagamento a
que os filmes de Leone foram submetidos, tanto na crítica quanto no âmbito dos estudos ci-
nematográficos. Parece-nos claro que Leone efetivamente teve um papel, ao longo dos anos
1960 e 1970, no processo de desenvolvimento e consolidação de alguns dos esquemas que
compõem a continuidade intensificada. Entretanto, esse papel nunca foi analisado a fundo.
Tudo isso nos leva a formular duas questões que pretendemos responder nas próximas pá-
ginas: qual foi, afinal, a efetiva contribuição oferecida por Sergio Leone a essa nova poética
da intensificação? E por que razões essa contribuição tem sido minimizada pelos estudiosos?
O livro deseja responder a essas duas perguntas. O percurso que seguiremos ao longo
do texto, portanto, contém duas trajetórias sobrepostas. Na primeira, tentaremos circunscre-
ver a contribuição de Leone à continuidade intensificada com o máximo possível de exati-
dão. Na segunda, partiremos da hipótese de que o fato de Leone ter trabalho exclusivamente
com o cinema de gênero – e, ainda mais significativamente, num ciclo popular e estrangeiro
de um gênero visto como intrinsecamente norte-americano, por lidar com um período central
da formação da identidade cultural dos Estados Unidos – está na raiz do apagamento.
Tentaremos mostrar que esse processo de desvalorização teve origem na recepção ne-
gativa reservada a Leone pelos críticos dos anos 1960. Naquela época, os filmes dele (como
todas as obras ligadas ao spaghetti western) provocavam uma tendência ao juízo depreciativo
de valor, por emergirem de um sistema de produção que trabalhava com ciclos sucessivos
de gêneros populares feitos para consumo de massa – um consumo não-segmentado, não-
-especializado. A trajetória da recepção crítica aos filmes de Leone vai demonstrar como a
obra dele, inicialmente ignorada ou desprezada antes mesmo de ser vista com atenção, será
submetida a um processo gradual de revalorização, ao longo dos anos 1960 e 1970; mas essa
revalorização passava menos pela análise estilística e mais por uma leitura político-ideológi-
ca calcada no suposto potencial de resistência cultural contido nesses filmes. Ou seja, mesmo
os críticos que devotaram atenção a Leone não enxergaram suas intenções criativas.
Como evoluirá em dois trajetos paralelos, a pesquisa percorrerá dois movimentos so-
brepostos. O primeiro consiste em realizar uma análise fílmica minuciosa da obra de Leone,
com a finalidade de identificar com a maior precisão possível os padrões de estilo e narrativa
recorrentes nos filmes dele, e também avaliando de que forma esses padrões estabeleceram
revisões dos esquemas tradicionais em direção à continuidade intensificada. Nesse momento,
tentaremos conectar as práticas de Leone a uma rede de influências, limites e pré-condições
que ajudou a moldar esses recursos. O segundo movimento, por sua vez, extrapola os filmes

24 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


em direção aos contextos em que eles foram produzidos, circulados e consumidos, de forma
a mostrar como se deu o processo de apagamento da contribuição à poética da continuidade
intensificada. Os dois trajetos serão levados a cabo através da análise textual, tanto dos filmes
quanto da fortuna crítica de Leone.
Para pôr em prática essas trajetórias paralelas, optamos – como já foi dito – por uma
abordagem interdisciplinar. Este procedimento metodológico será aplicado, ao longo do li-
vro, ao corpus da pesquisa, que é formado por seis filmes dirigidos por ele, acrescidos de um
sétimo título: Meu Nome é Ninguém (Il Mio Nome è Nessuno, Tonino Valerii, 1973). Neste
último, Leone está creditado como produtor e argumentista, embora vários pesquisadores do
spaghetti western afirmem que ele dirigiu parcialmente, de forma não-oficial. De todo modo,
como Leone esteve ligado à concepção criativa do projeto desde o princípio, decidi incluí-lo
no corpus.
O filme de estreia de Leone, O Colosso de Rhodes (Il Colosso di Rodi, Sergio Leone,
1961), foi excluído por consistir de um exercício de aprendizado formal em que o diretor
não teve chance de supervisionar qualquer aspecto criativo da produção (direção de arte,
cenários, figurinos, fotografia, cores, montagem, sonorização), limitando-se a colaborar no
roteiro e a dirigir os atores nos sets (FRAYLING, 2000, p. 117).
O livro está dividido em quatro capítulos. O primeiro reconstitui o contexto histórico
em que se desenvolveu a carreira de Leone. Para isso, percorremos cronologicamente os
filmes que ele dirigiu, analisando em seguida sua fortuna crítica. Nosso objetivo maior nesse
capítulo é apresentar e analisar os contextos socioculturais em que Leone trabalhou, sobre-
tudo o rígido sistema de produção de Cinecittà, erigido sob a sombra (direta e indireta) do
movimento neorrealista italiano. Esses contextos, como veremos, funcionavam tanto como
limites quanto como pré-condições que interferiam nas práticas estilísticas de Leone.
Na abertura do capítulo, procurei desenvolver rapidamente os eixos conceituais da
tese, propondo definições para termos que aparecem repetidamente nas seções seguintes:
estilo, esquema e continuidade intensificada. Já no final do capítulo, procuramos analisar a
polarização entre o autorismo e os estudos do cinema de gênero, mostrando como esse debate
foi influente na recepção crítica oferecida ao spaghetti western e, em particular, a Leone.
Consideramos, ainda, que o conceito de gênero fílmico também atua como pré-condição das
práticas narrativas e estilísticas, interferindo nas decisões criativas que constituem o estilo
de todos os diretores.
É importante mencionar, nesse ponto, a importância, para este livro, da pesquisa rea-
lizada por Christopher Frayling nos anos 1980. Minha pesquisa divide com Frayling objeti-
vos em comum e resgata informações compiladas por ele, atualizando-as e propondo novas
leituras para esses dados. Há, ainda, uma diferença crucial: ao optar por uma abordagem que
mistura pesquisa etnográfica e estudos culturais, Frayling nunca se debruçou sobre os filmes,
concentrando-se nos contextos de produção e nos aspectos valorativos do debate acerca do
spaghetti western. Essa abordagem continuou a mesma quando ele escreveu a biografia de
Leone, em 2000. Por causa disso, Frayling não percebeu, por exemplo, as mudanças sutis e
graduais nos padrões de recepção que a crítica cinematográfica reservou para os trabalhos
de Leone.

25
Os dois capítulos seguintes constituem a etapa mais encorpada do livro: a análise fíl-
mica propriamente dita, em que trechos selecionados de cada filme de Leone serão exami-
nados minuciosamente, para um estudo detalhado da recorrência dos padrões estilísticos e
narrativos. Tentamos rastrear as origens de cada recurso, ligando-as a contextos sócio-his-
tóricos, econômicos, culturais ou tecnológicos que possam ter levado Leone a adotá-los,
através de um processo de revisão dos esquemas dominantes de construção fílmica.
No segundo capítulo, procuramos enfatizar a análise dos recursos narrativos; a seção
lida, pois, com as duas primeiras vertentes da poética (chamadas de temática e construção
narrativa em larga escala). O terceiro capítulo faz o mesmo com a prática estilística (tercei-
ra vertente da poética). O uso de frames retirados dos filmes de Leone constitui um suporte
visual importante para o método de análise utilizado.
Por fim, o quarto capítulo conclui o texto propondo um salto historiográfico que traça
conexões entre os padrões de estilo e narrativa recorrentes na obra de Leone e algumas fer-
ramentas características da continuidade intensificada, utilizadas em muitos filmes desde os
anos 1970 até hoje, sob as mais variadas condições de produção.
Esta última seção tenciona deixar claras as impressões digitais deixadas pela obra de
Leone no cinema contemporâneo, mostrando como algumas das revisões dos esquemas leva-
das a cabo por ele, nos anos 1960 e 1970, foram reapropriadas, revisadas e sintetizadas por
diretores posteriores, entre os quais Brian De Palma, John Carpenter, Quentin Tarantino e os
irmãos Larry e Andy Wachowski. Conclui-se que mesmo após as bundas de cavalos pratica-
mente desaparecerem da paisagem visual do cinema contemporâneo, assim como aconteceu
como o próprio gênero western, seremos capazes de confirmar a contribuição que ele ofere-
ceu à poética da continuidade intensificada.

26 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


CHARLES BRONSON EM “C’ERA UNA VOLTA IN WEST” (1968)
CLAUDIA CARDINALE EM “C’ERA UNA VOLTA IN WEST” (1968)
1. ESTILO E MODO DE PRODUÇÃO

1.1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS

O sentido original da palavra poética remonta, como se sabe, a Aristóteles. Em sua


Poética, Aristóteles procurou examinar as estruturas dos gêneros literários, com o objetivo
de mostrar que eles provocavam emoções diferentes. Ao longo do tempo, a expressão passou
a ser aplicada a todas as artes e mídias:

A poética de qualquer mídia artística estuda o trabalho concluso como resultado


de um processo de construção, um processo que inclui um componente artesa-
nal (tais como regras gerais), os princípios mais amplos segundo os quais um
trabalho é composto, suas funções, efeitos e usos. Qualquer investigação dos
princípios fundamentais pelos quais artefatos de qualquer representação midiá-
tica são construídos, e os efeitos gerados a partir desses princípios, podem cair
dentro do reino da poética. (BORDWELL, 2008, p. 12).

No campo dos estudos narrativos e estilísticos, a poética consiste numa espécie de en-
genharia reversa. O trabalho de um engenheiro reverso consiste em desconstruir um artefato
físico (televisão, computador etc.) ou matemático (um software, por exemplo), para desco-
brir como ele funciona. Desta forma, o engenheiro reverso é capaz de desvendar as estruturas
internas que fazem aquele artefato funcionar, e então copiá-las em outros artefatos.
Nos estudos cinematográficos, o pesquisador da poética parte de determinados obje-
tos-filme para, investigando sua estrutura interna, identificar os princípios que governam a
construção narrativa, de forma a tornar possível a aplicação desses princípios a outras obras.
David Bordwell (2008, p. 17) propõe uma poética do cinema dividida em três ver-
tentes: a temática, a construção narrativa em larga escala e a prática estilística. As três se
interpenetram em vários níveis, de modo que é difícil estudá-las separadamente. Questões
temáticas interferem no uso de recursos de estilo, que por sua vez influenciam ou são deter-
minados pela construção em larga escala, e assim por diante.
A vertente temática, como o nome indica, destaca elementos narrativos mais imedia-
tos. Temas, relações causais entre os eventos que compõem a trama, perfil psicológico de
personagens, uso de arquétipos, texto e subtexto, diálogos, questões de gênero, raça e classe
social caem nesta definição.
A construção narrativa em larga escala consiste num campo de transição entre a pri-
meira e a terceira vertentes. Ela lida com a estrutura narrativa geral, responsável pela pro-
gressão do enredo e pela modulação dramática. Quem pesquisa esta vertente está interessado
nas maneiras como as partes de um filme (planos, cenas e sequências) se relacionam entre si,
para constituir um todo compreensível.

29
A última vertente consiste na prática estilística. Os pesquisadores dessa vertente lidam
com padrões visuais e sonoros, um conjunto de ferramentas que inclui composição pictóri-
ca, enquadramento, iluminação, cores, cenários, figurinos, uso de ruídos, música, diálogos,
silêncios e muitos outros.
O conceito de continuidade intensificada surgiu da constatação de que, a partir dos
anos 1960, os diretores de cinema passaram a utilizar um repertório cada vez mais amplo
de recursos narrativos e estilísticos, intensificando a poética do cinema em direção a uma
experiência fílmica cada vez mais visceral. Bordwell sugere que os recursos de estilo e táticas
narrativas introduzidos desde então não provocaram uma ruptura com os princípios gerais da
poética, que ainda continuam valendo:

O que mudou, tanto nos registros mais conservadores quanto nos mais vanguar-
distas, não foi o sistema estilístico da construção cinematográfica, mas certas
ferramentas funcionando dele. (...) Desde os anos 1960, essas técnicas foram
trazidas para o primeiro plano, de formas inéditas. (...) Enquanto se tornavam
mais proeminentes, essas técnicas alteraram a textura de nossa experiência fíl-
mica. (BORDWELL, 2006, p. 119).

Para melhor ressaltar sua posição, Bordwell traz à tona a noção de continuidade clás-
sica, que resume nos seguintes termos:

O espectador entende como a história se move adiante no espaço e no tempo.


Planos que estabelecem e restabelecem o conjunto situam os atores dentro do
cenário. Um eixo de ação (ou “linha de 180 graus”) governa os movimentos e
olhares dos atores, e todos os planos, embora possam variar em ângulo, são re-
gistrados apenas de um lado do eixo. Os movimentos dos atores são sincroniza-
dos através de cortes, e os planos mais próximos são reservados para as reações
faciais e linhas de diálogo significativas. Montagem alternada pode justapor
vários feixes de ação (...). Diretores norte-americanos usaram essa síntese de
técnicas de encenação, filmagem e montagem nos anos que se seguiram a 1917,
e suas premissas se tornaram a base de uma linguagem fílmica internacional
para o cinema de entretenimento, passando a ser codificada em manuais e currí-
culos universitários nos anos 1950. (BORDWELL, 2006, p. 119-120).

Bordwell assegura que a partir dos anos 1960 a estabilidade desse sistema começou
a ser abalada pela introdução de novas técnicas estilísticas e narrativas. Para ele, as novas
técnicas não rompiam com as práticas estilísticas e narrativas anteriores, fazendo na verdade
uma operação de natureza diferente:

De maneira geral, as novas ferramentas (...) não desafiam o sistema; elas o re-
visam. Longe de rejeitar a continuidade tradicional em nome da fragmentação
e da incoerência, o novo estilo aponta para uma intensificação das técnicas es-
tabelecidas. A continuidade intensificada é a continuidade clássica amplificada,

30 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


elevada a um nível mais estridente de ênfase. Este é o estilo dominante dos
filmes norte-americanos contemporâneos de grande audiência. (BORDWELL,
2006, p. 120).

Em sua pesquisa, Bordwell mapeou alguns dos recursos narrativos e estilísticos usados
pelos cineastas para intensificar a continuidade clássica, dos anos 1960 até hoje. Na temática,
alguns desses recursos seriam: representações mais realistas do sexo e da violência; prota-
gonistas mais falhos, humanos, alienados, solitários, inseguros ou moralmente ambíguos; a
tendência ao alusionismo (isto é, às citações a filmes anteriores, às vezes de forma crítica,
outras de modo nostálgico e reverente); a caracterização mais densa de personagens, pro-
tagonistas ou não, tornando-os seres mais complexos; e a atenção realista aos detalhes e à
acuidade histórica (worldmaking).
Na construção narrativa em larga escala, algumas características da continuidade in-
tensificada seriam: a divisão menos clara da narrativa em três atos; as narrativas em rede
(com diversos protagonistas); a fragmentação cronológica e espacial das tramas; relações
causais menos evidentes e mais ambíguas entre eventos que compõem a trama; trechos – ou
até filmes inteiros – de narrativa subjetiva (em que a ação dramática acontece apenas dentro
da mente de um personagem, às vezes sem deixar isto claro ao público).
No que se refere à prática estilística, a continuidade intensificada seria encontrada em
recursos como: a montagem com planos cada vez mais curtos; o uso de lentes de distâncias
focais diferentes (muitas vezes dentro da mesma cena); a câmera mais próxima dos rostos dos
atores, tendendo a enquadrar um de cada vez; os movimentos de câmera incessantes, com uso
proeminente de Steadicam7, traveling e gruas; o uso frequente do rack focus (técnica usada
para direcionar a atenção do espectador dentro de composições pictóricas com mais de uma
camada de ação, focalizando com nitidez apenas uma e depois outras, progressivamente);
e, sugerindo um tratamento mais fragmentado do espaço e do tempo fílmicos, na economia
de planos de conjunto. Juntas, essas ferramentas estilísticas teriam os seguintes propósitos:

Alguns cineastas têm procurado refinar a tradição, explorando seus princípios


minuciosamente. Esses criadores se perguntam: (...) como posso fazer as cone-
xões causais mais prazerosas, as reviravoltas mais inesperadas, a psicologia dos
personagens mais envolvente, a excitação mais intensa, os temas mais firme-
mente explorados? Como posso exibir meu virtuosismo? Quando os cineastas
se revelam bem-sucedidos, revelam o alcance e a flexibilidade das premissas
clássicas. (BORDWELL, 2006, p. 51).

Este trecho traz à tona a estreita ligação entre a poética da continuidade intensificada
e a questão do estilo individual8. Nesse ponto, é fundamental demarcar uma diferença entre
7 Sistema de pesos e molas acoplado à câmera que, afixada no ombro do operador, permite a mobilida-
de total deste, sem que a imagem resulte tremida ou desfocada.
8 O uso do termo estilo, ao longo deste livro, se aplica sempre ao conjunto de escolhas narrativas e
estilísticas utilizado por um diretor para dar significado a uma obra de arte. A ênfase recai no caráter
individual do termo. Quando falamos de estilo, estamos nos referindo às práticas recorrentes de deter-
minado artista, e não ao movimento cinematográfico com o qual ele é identificado.

31
os conceitos de prática estilística e estilo, conforme adotados neste livro. Enquanto a prática
estilística consiste no conjunto de ferramentas que constituem a terceira vertente da poética
do cinema, o estilo deve ser compreendido como um conjunto de padrões recorrentes na obra
de determinado diretor, e que podem abarcar todas as vertentes da poética. O estilo consiste
na soma de todas as escolhas técnicas e narrativas que caracterizam a obra de um cineasta.
Este livro trabalha com os filmes de Sergio Leone; aqui, portanto, o termo estilo será utili-
zado como sinônimo de assinatura estilística individual. Essa assinatura está expressa (consciente-
mente ou não) nas soluções encontradas pelo diretor para representar, em imagens e sons, aquilo
que está no roteiro. A assinatura estilística nasce das soluções encontradas por cada cineasta para
resolver problemas de representação de quaisquer ordens (narrativa, estilística, logística, opera-
cional etc.) com os quais um diretor se depara no dia a dia de seu ofício. Cada cineasta opera suas
próprias escolhas. Quando constituem um padrão recorrente, estas definem o estilo do diretor.
Normalmente, não é o estilo que determina as escolhas narrativas e estilísticas ope-
radas por um cineasta; é o contrário. Este procedimento consiste no que Bordwell (2009, p.
320) denomina de paradigma do problema/solução e que pode ser resumido sinteticamente
da seguinte maneira: o processo de contar uma história num meio audiovisual consiste, gros-
so modo, numa sucessão constante de problemas de representação, que o diretor soluciona
fazendo escolhas a partir de um repertório anteriormente disponível (e que, em muitos casos,
o diretor cria, revisa, sofistica, sintetiza ou reformula).
Para cada problema, existe uma série de soluções possíveis, entre as quais o artista deve
escolher uma (ou mais). O paradigma do problema/solução consiste na adaptação, para o meio
cinematográfico, do conceito de esquema (GOMBRICH, 2007). Os artistas não criam a partir
do nada. Eles trabalham dentro de uma tradição que dispõe de todo um repertório de recursos,
ou normas de estilo, que podem copiar, reformular, sintetizar ou rejeitar. O conjunto de recursos
que compõe esse repertório constitui os esquemas. Cada artista ajusta os esquemas disponíveis
a novas possibilidades oferecidas pelos contextos socioculturais, econômicos, tecnológicos e
ideológicos em que trabalha. Defrontado com uma solução disponível para problema de repre-
sentação, os diretores têm quatro opções: replicam, revisam, sintetizam ou rejeitam tal solução.
Esse é o paradigma do problema/solução. Ele nos ensina que determinada solução,
usada com sucesso para resolver um problema de representação, tende a ser integrada aos
esquemas circulantes dentro da atividade cinematográfica. As técnicas que têm sucesso da
resolução de problemas se tornam parte integrante de esquemas. Vista dessa perspectiva, a
poética da continuidade intensificada consiste de um conjunto de esquemas visuais, sonoros
e narrativos que circulam na comunidade cinematográfica desde a década de 1960.
Quando um diretor é confrontado com problemas de representação idênticos, e solu-
ciona esses problemas recorrendo sempre às mesmas ferramentas, ele cria padrões recorren-
tes. Esses padrões determinam o que chamamos de estilo individual:

O termo estilo deve ser considerado em sentido amplo, como a arte de contar
uma história em imagens e em sons; compreende a escolha dos atores e dos ce-
nários, as regulações técnicas, a disposição dos pontos de vista e dos pontos de
escuta etc. Tudo é importante em matéria de estilo: a abertura da objetiva e a cor

32 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


do papel pintado atrás do ator, a rapidez do traveling e o vaso de flores embaixo,
à esquerda. (JULLIER; MARIE, 2009, p. 20).

Há dois aspectos da passagem para os quais chamamos atenção. O primeiro está na


ideia (ausente no texto) de que o estilo é o resultado autoral de um conjunto de escolhas. Não
está descartada a contribuição de outros membros da equipe criativa (diretor de fotografia,
cenógrafo, figurinista, diretor de arte, compositor, desenhista de som etc.) na decisão por
uma ou outra solução de representação. No entanto, é natural que o diretor do filme seja o
responsável, em última instância, pelas escolhas que resultarão na cunhagem do estilo:

É possível incluir como parte do estilo de Hitchcock seu pendor pelo suspense
no tratamento dos diálogos ou o tema persistente do homem inocente perse-
guido por algo que não fez. De qualquer forma, características recorrentes de
encenação, filmagem, edição e som sempre serão parte fundamental do estilo de
um diretor. (BORDWELL, 1998, p. 4).

O segundo aspecto é a referência de Jullier e Marie às “circunstâncias históricas parti-


culares”, expressão que representa resumidamente a variada gama de limites e pré-condições
impostos a qualquer cineasta por aspectos de natureza não estritamente cinematográfica, mas
que remetem aos contextos socioculturais, tecnológicos, econômicos, históricos, políticos e
ideológicos nos quais ele opera.
É importante se deter por um momento neste ponto. Todas as escolhas estilísticas e
narrativas, mesmo as mais simples, são atravessadas por fatores não-cinematográficos. Es-
sas escolhas são e serão feitas sempre, quaisquer que sejam as circunstâncias. Elas moldam
a assinatura pessoal de um diretor, embora não sejam necessariamente pensadas de modo
consciente. O conjunto de elementos que constitui a assinatura autoral de um diretor sempre
emerge através da maneira como este lida com os esquemas circulantes de sua arte.
No entanto, poucas vezes essas escolhas são feitas livremente. Contextos sociocultu-
rais, tecnológicos, econômicos, políticos e ideológicos atuam como limites ou pré-condições
para que o cineasta as efetue. Portanto, a constituição do estilo pessoal se dá dentro de uma
rede de conjunturas que se atravessam e incidem diretamente sobre essas escolhas. Orçamen-
to, tecnologia, modas e a censura, por exemplo, são alguns desses contextos, muitas vezes
externos ao filme em si.
Ainda assim, se a constituição do estilo de um cineasta não pode ser inteiramente
explicada pela análise textual de seus filmes, por outro lado o pesquisador corre o risco de
atribuir uma ênfase excessiva ao papel dos contextos na definição do estilo. É por isso que
Bordwell alerta para a necessidade de uma aproximação cuidadosa do objeto: “O objetivo
do historiador é passar dos fatores culturais às características estilísticas por meio de passos
curtos e cuidadosos, não por grandes saltos” (BORDWELL, 2009, p. 312).
Em outras palavras, o que ele propõe é que, embora os processos socioculturais exer-
çam sua cota de influência, “a organização estilística que detectamos é resultado da sele-
ção que os diretores fizeram entre as alternativas disponíveis” (BORDWELL, 2009, p. 69).

33
Nesse sentido, ao invés de pensar a cultura como causa última do estilo, ele propõe que os
fatores externos sejam considerados antes como um ponto de partida do processo de criação,
uma espécie de tela em branco com limites definidos por esses fatores externos, e sobre a
qual o artista opera uma série de escolhas narrativas e estilísticas para solucionar problemas
específicos de representação:

Tais escolhas podem ter sido planejadas antes de filmar, podem ter emergido
espontaneamente durante a filmagem ou se imposto na pós-produção. Para fa-
zer uma distinção supersimplificada, podem ser “escolhas livres”, que realizam
realmente as intenções do diretor, ou podem ser “escolhas forçadas”, nascidas de
limites externos, como tempo, dinheiro ou falta de poder. Dessa maneira, para
explicar mudança e continuidade dentro do estilo do filme, temos de examinar as
circunstâncias que influenciam mais diretamente a execução do filme – o modo de
produção, a tecnologia empregada, as tradições e o cotidiano do ofício favorecido
por agentes individuais. Fatores mais distantes, tais como fortes pressões culturais
ou demandas políticas, podem manifestar-se somente através dessas circunstân-
cias próximas, nas atividades dos agentes históricos que criam um filme. O espírito
do tempo não liga a câmera. (BORDWELL, 2009, p. 69).

O grifo original, do próprio autor, ajudou a definir o percurso metodológico que se


faz neste livro: o exame cuidadoso das características de narrativa e estilo da obra de Leone
(através da análise de cenas e sequências dos filmes) virá acompanhado da necessária análise
dos contextos históricos (tais como os códigos formais e narrativos do cinema de gênero, os
avanços tecnológicos, o modo de produção do cinema popular italiano, a contracultura, a tra-
jetória do western na cultura midiática, o cinema modernista europeu etc.). Esses contextos
influenciaram decisivamente a maneira como Leone revisou, sintetizou, replicou ou rejeitou
recursos de narrativa e estilo que vieram a constituir os esquemas dominantes da poética
da continuidade intensificada. Assim, neste primeiro capítulo, investigaremos os principais
contextos sócio-históricos dos quais Sergio Leone emergiu como diretor.

1.2 CINECITTÀ: UMA HISTÓRIA EM CICLOS

Desde o início de sua trajetória na indústria cinematográfica italiana, Sergio Leone


trabalhou dentro do sistema de produções populares de Cinecittà. Esse sistema, que se des-
dobrou em vários ciclos dedicados a filmes destinados ao consumo popular, vinculados a
gênero fílmicos rígidos, obedecia a um modo de produção que seguia regras econômicas e
tecnológicas bastante estreitas. Qualquer diretor que trabalhasse dentro desse modo de pro-
dução precisava estar preparado para enfrentar severas restrições de produção, especialmente
dentro dos contextos tecnológicos e econômicos. Esse sistema se estabeleceu, então, como
uma pré-condição importante para o desenvolvimento de padrões estilísticos e narrativos que
alterassem ou revisassem os esquemas dominantes dentro da Itália.

34 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


O início do ciclo de spaghetti westerns, do qual Leone se tornaria o principal reali-
zador, pode ser rastreado muitos anos antes de o primeiro faroeste ser realizado na Itália.
A origem está na criação do complexo de estúdios Cinecittà, em 1937. Cinecittà nasceu de
uma estratégia política de Benito Mussolini. Financiando a criação de uma rede de estúdios
de filmagem, em moldes parecidos com Hollywood, Mussolini tentou usar o cinema como
propaganda para perpetuar-se no poder, além de garantir a criação de uma indústria de en-
tretenimento que pudesse render dividendos – econômicos e políticos – ao governo fascista.
Medindo-se em números, a estratégia deu certo. Em cinco anos, o número de filmes
produzidos no país triplicou, chegando a 120 longas-metragens em 1942. Nos três anos se-
guintes, por causa da Segunda Guerra Mundial, este número foi reduzido dramaticamente, à
medida que a população masculina se envolvia diretamente nos combates. Em 1945, quan-
do Mussolini perdeu o poder, a indústria de cinema popular estava reduzida a escombros.
Naquele ano, menos de 15% dos longas-metragens exibidos nas salas de projeção italianas
tinham sido produzidos no país (CAMARGO; VELLOZO; PEREIRA, 2007, p. 37).
O movimento neorrealista, nascido em 1942, celebrava o renascimento do cinema
italiano através de uma política autoral. Seus diretores realizavam produções de baixo orça-
mento. Filmes como Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, Roberto Rossellini, 1945) e
Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, Vittorio De Sica, 1948) contavam histórias de gente
comum, trabalhadores tentando sobreviver em meio ao caos das cidades cuja infraestrutura
havia sido destruída no conflito internacional. Os filmes funcionavam como denúncia das
precárias condições de vida na Itália do pós-guerra.
Nos terrenos narrativos e estilísticos, o cinema neorrealista tanto herdou características
impostas pelo modo de produção de Cinecittà quanto popularizou outras, definidas muitas
vezes a partir de princípios estéticos e ideológicos considerados importantes pelos diretores
que compunham o movimento. Entre essas técnicas estavam a economia no uso do close-up
de rostos, a recusa a efeitos visuais e de edição (sobreposições, elipses elaboradas etc.), as
filmagens em locações reais, o uso de atores não-profissionais e as gravações sem som direto,
com as trilhas de áudio sendo posteriormente criadas em estúdio (FABRIS, 2004, p. 205).
O documentário aparecia como influência importante, ao lado de certos traços do me-
lodrama hollywoodiano (a música neo-romântica, por exemplo). Embora o movimento neor-
realista tenha exercido profunda influência no cinema modernista europeu que surgiria nos
anos 1960, já havia terminado quando Sergio Leone começou a trabalhar como diretor, em
1962. E, apesar de os cineastas do movimento se esforçarem para captar a realidade de forma
fiel (uma estética diferente dos filmes cheios de artifícios de Leone), o neorrealismo deixou
marcas no cinema dele, como o cuidado com os detalhes e o tratamento do som.
Nos anos 1950, a concorrência das produções americanas fazia os produtores de Cinecittà
enfrentarem baixas bilheterias. O problema era agravado pelo pequeno incentivo financeiro do
governo italiano, ocupado com a reconstrução do país arrasado. Para conseguirem se autossus-
tentar, os produtores independentes que atuavam em Cinecittà (não apenas italianos, mas também
franceses, alemães e espanhóis) bolaram um sistema de produção que privilegiava dois fatores: (1)
o aluguel das instalações de Cinecittà para filmagens de produções estrangeiras; e (2) a produção
em larga escala de filmes baratos, de apelo popular, seguindo regras rigidamente codificadas.

35
O primeiro item recebeu a ajuda de uma lei federal, obrigando as grandes compa-
nhias estrangeiras a gastar dentro da Itália parte do dinheiro arrecadado dentro do país com
as produções feitas em Roma (CAMARGO; VELLOZO; PEREIRA, 2007, p. 37). Quanto
ao segundo item, os produtores estabeleceram um sistema de produção baseado em ciclos
temáticos. Filmes vinculados a gêneros diversos eram produzidos a baixo custo, em grande
número, e tão logo algum deles se destacasse nas bilheterias, tinha a trama e os recursos es-
tilísticos copiados imediatamente por todos os produtores. Na maioria das vezes, tratava-se
simplesmente de investir em variações do mesmo filme, através de uma fórmula padroniza-
da, que consistia num esquema rígido de recursos estilísticos e narrativos.
Esse sistema de investimento em filmes de gênero era cíclico. Cada ciclo durava até
que a fórmula narrativa começasse a dar sinais de desgaste (ou seja, as bilheterias desses
filmes começassem a declinar). Quando isso acontecia, os produtores iniciavam uma nova
rodada de procura por outro gênero que atendesse às expectativas do público. Aos poucos,
foi estabelecido um sistema de produção com as seguintes características:

A necessidade de atrair dinheiro de coproduções estrangeiras, se possível; o


papel-chave desempenhado por produtores e audiências espanhóis (assim como
o trabalho barato de técnicos espanhóis em locações); os cronogramas aperta-
dos de filmagem e a necessidade constante de dublagem do som (com algumas
produções inclusive sendo dubladas simultaneamente em diversas versões es-
trangeiras). (FRAYLING, 1981, p. 70).

Todas essas características são essenciais para compreender o florescimento e a consolida-


ção do spaghetti western na década de 1960. Note-se que várias práticas estilísticas e narrativas
adotados pelos diretores do futuro ciclo foram fruto, em boa medida, das condições de produção
oferecidas pelo sistema italiano. Por exemplo, o desenho sonoro dos filmes, com poucos diálogos
(sempre dublados na pós-produção), músicas de estrutura pop (verso-refrão) e uso de sons naturais
amplificados. Esse sistema dispensava o aluguel de equipamento de captação de áudio em locação,
enquanto a menor quantidade de diálogos reduzia o tempo de aluguel de estúdios de som.
A partir do início dos anos 1950, a saúde financeira do cinema italiano passou a de-
pender do sistema de ciclos de filmes de gênero. Em 1952, mais de 30% dos 130 longas-me-
tragens feitos em Cinecittà pertenciam ao gênero do film fumetto (melodramas românticos),
tendo decaído em 1954 e sendo sucedido por um tipo de comédia ligeira de costumes com
características farsescas (FRAYLING, 1981, p. 70). Cada um desses ciclos tinha vida útil de
aproximadamente cinco anos.
O próximo gênero da lista foi o épico estilo sandália e espada. A produção dos pepla (o
termo, plural de peplum, designa os saiotes usados pelos atores) está diretamente conectada
ao uso da infraestrutura de Cinecittà por grandes produções norte-americanas, que filmavam
lá, entre as décadas de 1950 e 1960, épicos cujas tramas se passavam na Roma da Antiguida-
de. Essas equipes deixavam nos galpões de Cinecittà cenários e figurinos que eram reapro-
veitados pelos produtores italianos, como forma de reduzir ainda mais os custos. Foi dentro
deste ciclo de cinema popular que Sergio Leone floresceu como cineasta.

37
Em meados da década de 1950, Cinecittà recebeu muitas equipes americanas. Foram
filmados em Roma grandes épicos, como O Manto Sagrado (The Robe, Henry Koster, 1953),
Helena de Tróia (Helen of Troy, Robert Wise, 1956), Ben-Hur (William Wyler, 1959) e
Sodoma e Gomorra (Sodom and Gomorrah, Robert Aldrich, 1962). A legislação que obri-
gava Hollywood a investir em território italiano parte dos lucros da bilheteria desses filmes
alimentou o ciclo popular italiano, pois a parcela do resultado financeiro reinvestida em Ci-
necittà levava os produtores norte-americanos a filmar mais vezes em Roma, ou a financiar
produções menores realizadas por equipes italianas.
Além de ser o ciclo popular imediatamente anterior ao spaghetti western, o peplum
também é o gênero que guarda mais semelhanças de estilo e narrativa com o spaghetti wes-
tern. Isso aconteceu porque muitos diretores que consolidariam carreiras dirigindo spaghetti
westerns começaram a dirigir filmes durante os pepla. É o caso de Sergio Corbucci (três
filmes), Domenico Paolella (sete) e Mario Bava (quatro).
Também foi o caso de Sergio Leone. Ele trabalhava com cinema desde os 16 anos,
quando exerceu os postos de figurante e quinto assistente de direção em Ladrões de Bicicle-
ta. Nos 13 anos que se seguiram até Os Últimos Dias de Pompéia (Gli Ultimi Giorni di Pom-
pei, Mario Bonnard, 1959), que dirigiu, substituindo o titular adoentado (embora não tivesse
recebido os créditos por esse trabalho), Leone executou uma variedade de serviços ligados à
produção cinematográfica, sobretudo como roteirista, assistente de produção e diretor assis-
tente. Ao todo, nesse período, trabalhou em 35 longas-metragens (FRAYLING, 2005, p. 16).

Leone dizia que reteve desse longo aprendizado a obsessão com a aparência
documental de um filme neorrealista italiano (detalhe que dava mais credibili-
dade às histórias), a fascinação com a logística necessária às grandes sequências
de ação, um repertório de técnicas e a determinação de evitar o desperdício
financeiro que via ocorrer nas superproduções hollywoodianas. A eficiência or-
çamentária das produções italianas menores era fortemente admirada por ele.
(FRAYLING, 2005, p. 16).

Algumas características de estilo e narrativa adquiridas nessa fase de aprendizagem


derivaram dos limites impostos pelo modo de produção de Cinecittà. O desenho de produção
(cenários e figurinos realistas, a pele dos atores queimada de sol), o tratamento hiper-real do
som (poucos diálogos, ruídos naturais amplificados) e a representação gráfica da violência
estão entre elas. Todas são recursos que revisavam esquemas dominantes e seriam, depois,
associados à continuidade identificada.
Na sequência da carreira, Leone ainda dirigiria trechos não creditados de outro lon-
ga-metragem, Gastone (Mario Bonnard, 1959), antes de sentar oficialmente na cadeira de
diretor para o primeiro trabalho: O Colosso de Rhodes. Um autêntico peplum, realizado por
obrigação contratual e sem liberdade estilística.
Do ponto de vista do estilo, de fato não se encontra nesse filme as ferramentas que se
tornariam recorrentes nos westerns de Leone. O filme se parece com qualquer outro pepla:
cores saturadas (seguindo a moda da época); cenários limpos, que pareciam ter sido construídos

40 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


no dia anterior, sem preocupação com acuidade histórica; predominância de tomadas longas
encenadas em longos planos gerais; música orquestrada. Não há um único close-up extremo –
o recurso estilístico mais evidente da obra de Leone – no filme. O Colosso de Rhodes não foi
concebido por Leone, mas sim dirigido por ele, o que é algo bem diferente.
Na ocasião, o gênero sandália e espada já começava a curva descendente rumo à extin-
ção, como todo ciclo popular italiano. Após um período comercialmente vistoso, entre 1958
e 1961, os pepla estavam chegando ao ponto de saturação da audiência. Quando o fracasso
de Sodoma e Gomorra (1962) causou a falência da produtora Titanus, era o prenúncio do
fim, determinado nos anos seguintes por mais dois fracassos de proporções monumentais:
Cleópatra (Cleopatra, Joseph L. Mankiewicz, 1963) e A Queda do Império Romano (The
Fall of the Roman Empire, Anthony Mann, 1964), este último tendo decretado a falência da
produtora do empresário russo Samuel Bronston, radicado em Hollywood.
O fim das grandes produções internacionais determinou, também, o encerramento do
ciclo de pepla, inclusive porque as produções realizadas na Itália estavam deixando de atrair
o público aos cinemas. Como os produtores tinham que criar um novo ciclo popular para
manter o modo de produção de Cinecittà funcionando, iniciou-se um período de experiên-
cias, em busca de um filme que fizesse sucesso num nível capaz de impulsionar os produtores
a copiá-lo. Este filme foi Por um Punhado de Dólares (Per um Pugno di Dollari, Sergio
Leone, 1964).
Por que o western? Na mesma época, nos Estados Unidos, o gênero passava por um
fenômeno distinto, mas que acabaria por se mostrar fundamental para o surgimento do ciclo
popular italiano: a migração para as séries de TV. Embora o cinema realizado nos Estados
Unidos tivesse sobrevivido à já citada ameaça representada pela televisão nos anos 1950, os
produtores de Hollywood tiveram que fazer ajustes no modo de produção dos grandes estú-
dios. Um dos nichos de produção que mais sofreram foi justamente o western.
Durante os anos de ouro de Hollywood (1930-1950), os grandes estúdios tinham suas
próprias cadeias de exibição, e costumavam exibir nelas programas duplos, com dois longas-
-metragens exibidos sucessivamente pelo preço de um. O espectador entrava no cinema, as-
sistia a um filme B (produzido com menos recursos), deixava a sala para um lanche e voltava
para assistir então à atração principal.
Três fatores contribuíram para extinguir esse sistema. O primeiro foi o aumento dos
custos de produção após a guerra, quando um filme passou a custar até cinco vezes mais
(MANTOVI, 2003, p. 47). O segundo foi a aprovação de uma lei antitruste pela Suprema
Corte, em 1949, numa sentença que obrigou todos os estúdios a venderem suas cadeias de
exibição. Enfrentando dificuldades financeiras em decorrência dessa decisão, os estúdios
extinguiram os filmes B, que migraram para a televisão sob a forma de seriados semanais.
A televisão foi o terceiro fator. Parte dos atores que estrelavam os filmes B, como
William Boyd e Gene Autry, perderam os empregos no cinema. Então, fundaram produtoras
independentes e passaram a produzir séries de TV, em que os episódios (30 minutos por se-
mana) consistiam de versões mais curtas dos antigos filmes B. Séries como The Gene Autry
Show, Range Rider (no Brasil, Tim Relâmpago) e as posteriores Rawhide (que revelaria Clint
Eastwood) e Gunsmoke logo estavam entre as séries de maior audiência da televisão.

41
O primeiro seriado de western apareceu em 1949. Os números crescentes comprovam
o sucesso: no ano seguinte, eram três series; em 1951, oito. Esse crescimento chegou ao ápice
em 1959, quando 48 séries semanais de western estavam em exibição nas três redes de televi-
são aberta dos Estados Unidos (BUSCOMBE, 1988, p. 428). Em 1970, após uma década em
que as estatísticas de produção e consumo de westerns declinaram consistentemente, ainda
havia onze séries de western em exibição na TV dos EUA.
Uma consequência inesperada dessas alterações no sistema de produção, distribuição
e exibição de filmes foi o progressivo desinteresse do público pelo western na tela grande.
Como os faroestes B eram exibidos na televisão, o público começou a deixar de ir ver as
produções do gênero no cinema. Esse desinteresse pode ser comprovado pelas estatísticas de
produção do gênero no período. Em 1950, 150 filmes do gênero western foram lançados nos
Estados Unidos (34% da produção total de Hollywood); em 1958, esse número caiu para 54
(22% d a produção dos estúdios); em 1963, foram filmados 11 faroestes nos EUA. Apenas
9% de toda a produção de Hollywood consistiam de westerns (BUSCOMBE, 1988, p. 427).
No entanto, fora dos Estados Unidos a demanda pelo gênero continuava forte. Um
exemplo disto envolveu o filme Sete Homens e um Destino (The Magnificent Seven, John
Sturges, 1960), que faturou US$ 3 milhões nas bilheterias americanas, tendo sido considera-
do fracasso no país de origem9. Em vários países da Europa, no entanto, foi o maior sucesso
de bilheteria de 1961: “Para preencher uma lacuna em seus mercados internos, vários países
europeus decidiram começar a fazer seus próprios westerns” (HUGHES, 2004, p. xii).
O raciocínio explica porque os produtores de Cinecittà resolveram apostar no western
como um dos gêneros com potencial para substituir os miniépicos sandália e espada. Além
disso, eles tinham condições de infraestrutura bastante favoráveis no continente; o bastante
para criar uma espécie de linha de montagem cinematográfica capaz de produzir de dois a
três filmes por semana, número considerado ideal para satisfazer o apetite das plateias euro-
peias por entretenimento cinematográfico popular.
Em 1959, o deserto de Almería, a nordeste de Madri (Espanha), havia servido de
cenário para um western britânico. Para realizar O Xerife do Queixo Quebrado (The Sheriff
of Fractured Jaw, Raoul Walsh, 1959), os produtores haviam construído uma cidade ceno-
gráfica, chamada Hojo de Manzanares. O set passou a ser aproveitado com regularidade nos
spaghetti westerns. Hojo de Manzanares aparece em todos os filmes de Sergio Leone, sempre
com a “maquiagem” retocada pelo diretor de arte Carlo Simi, tendo sido a principal locação
de Por um Punhado de Dólares (1964).
O primeiro western de Sergio Leone não inaugurou o gênero na Itália. Em 1964, Ci-
necittà produziu 27 longas-metragens do gênero. Por um Punhado de Dólares foi o 25º. Mas
o sucesso alcançado pelo filme, superior à resposta de público de qualquer um dos faroestes
anteriores, convenceu os produtores de que o western reunia todas as condições para se tornar
o próximo ciclo de cinema popular capaz de sustentar a produção popular de Cinecittà.
Dois pesquisadores mapearam o spaghetti western em estatísticas. Thomas Weisser
(1992) contabilizou 555 filmes realizados entre 1960 e 1980; Bert Fridlund (2006) contou 546
longas-metragens no mesmo período. Fridlund atribui as pequenas diferenças a dois fatores, um
9 Estatística pesquisada no IMDb (www.imdb.com).

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subjetivo (a decisão de incluir ou não determinados filmes na lista, como os títulos espanhóis
realizados entre 1959 e 1962) e outro objetivo (variações na metodologia usada para fixar o ano
de produção do longa):

As discrepâncias entre as listas dependem da inclusão de determinados filmes, e


em alguns casos de opiniões diferentes quanto ao ano da produção. Esta crono-
logia situa o apogeu do spaghetti western no período 1964-1973 (...). Entre 1966
e 1968, o gênero teve uma forte posição comercial, numa época em que mais
de 20% de todos os filmes italianos eram westerns. (FRIDLUND, 2006, p. 7).

Embora divergentes, os números das listas são bem próximos, o que nos permite fixar
o número de spaghetti westerns produzidos entre 1962 e 1978 em torno de 550. O que há de
comum em todos esses levantamentos estatísticos – e o elemento que os articula com este
livro – é o papel fundamental exercido pelos filmes de Leone no surgimento, na consolidação
e no desenvolvimento do ciclo de spaghetti westerns. O papel dele como criador de uma nova
abordagem narrativa e estilística para o gênero – uma revisão crítica dos esquemas dominan-
tes de representação do western que, como veremos, apontava em direção à continuidade
intensificada – é o elo que une todas as pesquisas realizadas sobre o fenômeno.
Levando isso em consideração, torna-se possível sintetizar a trajetória histórica da
produção de spaghetti westerns em Cinecittà tendo como eixo o trabalho de Leone. Os filmes
dirigidos por ele eram pontos de referência para os trabalhos dos demais diretores, tanto no
fator estilo quanto no aspecto narrativo; o uso intenso de close-ups extremos e flashbacks,
por exemplo, se tornaram artifícios utilizados por virtualmente todos os cineastas do spaghet-
ti western, graças ao raio de influência exercida por Leone.
O primeiro western de Leone foi viabilizado por três produtoras – uma italiana (Jolly
Film), uma espanhola (Ocean Film) e uma alemã (Constantin Film) – com orçamento de US$
200 mil (HUGHES, 2003, p. 4). O filme foi planejado como produção secundária, filmada
em simultâneo ao longa-metragem A Pistola Não Discute (Le Pistole Non Discutono, Mario
Caiano, 1964). As duas produções compartilhavam cenários e equipes técnicas, seguindo
uma tradição do modo de produção de Cinecittà: uma equipe trabalhando em dois filmes ao
mesmo tempo significava dois longas-metragens pelo preço de um.
Alex Cox (2009, p. 27) credita o sucesso de Por um Punhado de Dólares ao processo
de revisão dos esquemas do western americano. Cox afirma que, ao invés de se contentar
em criar uma variação das histórias contadas por outros diretores do gênero, aplicando as
soluções rotineiras de estilo para os problemas de representação, Leone tratou o filme como
projeto autoral, selecionando escolhas estilísticas incomuns.
Para começar, Leone não se contentou em trabalhar com a equipe selecionada por Ma-
rio Caiano. Ele escolheu profissionais e lutou para convencer seus produtores a contratá-los
também para o filme de Caiano. Foi responsável, por exemplo, pela aquisição do desenhista
de produção Carlo Simi, que acumulou direção de arte e figurinos em Por um Punhado de
Dólares e A Pistola Não Discute (COX, 2009, p. 29).

44 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Nesse ponto, Leone propunha uma solução de estilo diferente para um problema de
representação rotineiro: o cenário, compartilhado por todos os spaghetti westerns. A abor-
dagem de Leone era suja, grotesca. O set principal utilizado pelas duas produções – a cidade
cenográfica de Hojo de Manzanares – foi redecorado, para o filme de Leone, como um vila-
rejo-fantasma decadente e semiabandonado.
Simi elaborou um conceito para o set. Geograficamente, a cidade tem dois círculos
concêntricos. No mais externo, onde moram os trabalhadores, há prédios baixos feitos de
tijolo, barro e estuque caiado de branco. O círculo interno, onde fica a rua principal, tem
construções maiores, de madeira. Todos os prédios são velhos e úmidos. Há uma lógica ar-
quitetônica, social e econômica por trás dessa disposição geográfica. Essa lógica não é citada
explicitamente no filme, mas pode ser percebida pelos espectadores: os trabalhadores moram
em casas mais humildes do que os patrões, e a arquitetura distinta de cada bairro da cidade
sinalizava claramente a origem da classe social que o habita. No entanto, ambas as áreas da
cidade parecem semiabandonadas. É uma cidade à beira da falência.
Além do visual realista, incomum para filmes dos anos 1960, a presença desse concei-
to arquitetônico subliminar denota o uso de um recurso narrativo surgido nos anos 1960, que
ganhou força após os anos 1980 e se tornou fundamental para a continuidade intensificada.
Bordwell (2006, p. 58) chama esse recurso de worldmaking:

Mais e mais filmes têm se esforçado para oferecer um cenário mais rico, com-
plexo e detalhado, onde a ação dramática pode ser mais bem desenvolvida. Na
era dos estúdios [1930-1960], desenhistas de cenários e figurinistas se preocu-
pavam em criar um ambiente razoavelmente crível, mas no período que estamos
considerando [pós-anos 1960] esses esforços foram ampliados até um novo pa-
tamar. (BORDWELL, 2006, p. 58).

O worldmaking consiste na preocupação de localizar os personagens da trama dentro


de um universo multidimensional, repleto de informações e detalhes, de modo que o espec-
tador pressinta o senso de realidade que dele emana. Essa prática – o trabalho cada vez mais
detalhista dos desenhistas de produção, diretores de arte, figurinistas e maquiadores – tem o
mesmo objetivo de outras ferramentas da continuidade intensificada: oferecer ao espectador
uma experiência fílmica mais intensa.
O conceito criado por Simi encaixa perfeitamente na noção de worldmaking. Além
disso, a prática da pesquisa iconográfica preocupada com a acuidade histórica e com a obses-
são por detalhes realistas seria intensificada nos filmes seguintes de Leone.
O trabalho da direção de arte inclui uma paleta de cores incomum. Ao invés do co-
lorido saturado, marca registrada dos westerns norte-americanos dos anos 1950, Leone pri-
vilegiou tons de terra e cores desbotadas. Marrom, vermelho-escuro, branco encardido e
cinza-chumbo predominam tanto nas locações internas quanto nas externas. Saíram de cena
as pradarias verdes, os riachos de água límpida, os paredões de rocha e o barro vermelho/
dourado do Monument Valley; entraram os cactos, as escarpas barrentas e o empoeirado
deserto do nordeste espanhol.

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O cenário de Por um Punhado de Dólares era a fronteira mexicana, com seu deserto de
terra seca, areia e pedras, habitado mais por moscas e coiotes do que por seres humanos. Num
ambiente assim, caubóis e pistoleiros não podiam circular em roupas novas e coloridas; Simi
apostou num figurino envelhecido, com roupas rasgadas, sujas e desbotadas. Os chapéus
despejam nuvens de poeira no ar quando são sacudidos. Os homens têm queimaduras de sol,
vivem suados e com a barba por fazer.
Simi viria a ser, junto com o compositor Ennio Morricone, parte fundamental da equi-
pe criativa que acompanhou Leone nos filmes seguintes, ajudando-o a dar forma a suas
ideias, transformando conceitos em recursos de estilo. Ele fez a direção de arte e os figurinos
de todos os longas-metragens subsequentes (exceção feita a Quando Explode a Vingança,
cuja direção Leone assumiu com as filmagens em andamento).
A fotografia de Massimo Dallamano segue a mesma abordagem realista. As cenas
externas, filmadas no deserto, enfatizam o sol inclemente que transforma a vida na região
em um inferno, com os excessos de luz neutralizando os contrastes e contribuindo para dar
às cores uma textura quente e gasta. As cenas internas, registradas num museu sobre a vida
rural localizado em Madri, demarcam grande distância em relação aos westerns tradicionais:
são escuras, com pouca luz de enchimento, adotando um estilo de iluminação que valoriza os
contrastes do tipo chiaroescuro e reforça a dramaticidade das cenas.

JASON ROBARDS EM “C’ERA UNA VOLTA IN WEST” (1968)


Nas composições visuais, Leone demonstrava algumas características recorrentes de
estilo: o gosto por close-ups extremos, com ênfase para o rosto humano, e o uso frequente de
tomadas em grande profundidade de campo que realçavam a dramaticidade de composições
pictóricas recessivas (WÖLFFLIN, 2000, p. 101) – técnica em que atores e objetos estão
espalhados a diferentes distâncias da câmera, criando linhas diagonais – dispondo uma figura
em primeiríssimo plano, bem próxima à câmera, funcionando como uma moldura. Muitas
vezes, essa figura era um rosto focalizado em close-up extremo, o que unia as duas técnicas
prediletas de Leone em uma única imagem.
Esta variação da composição recessiva era uma revisão intensificada do recurso po-
pularizado por Orson Welles em Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941), que
consistia em colocar um elemento em primeiro plano, enquanto a ação principal era encenada
ao fundo. Nesse último ponto, é importante ressaltar que Leone retomava uma característica
estilística de um esquema de encenação característico do cinema dos anos 1940, mas que
havia caído em desuso na década seguinte, em Hollywood, devido a questões técnicas.
O uso desses dois enquadramentos, aliada à atuação deliberadamente lenta dos atores
(reforçado por um desenho de som repleto de ruídos naturais amplificados), emprestava ao
filme uma atmosfera que Leone reconhecia como influência do teatro de bonecos da Sicília
(LEONE, 2005, p. 76).
Um elemento importante para o desenvolvimento das ferramentas estilísticas de Leone
deve ser destacado nesta passagem: a infiltração consciente de elementos da cultura ibérico-me-
diterrânea nos filmes. Ao reconhecer a influência do teatro de bonecos, Leone admite realizar
uma operação consciente de desconstrução e releitura crítica dos esquemas do gênero.
Outro recurso de estilo original foi o uso das lentes zoom (ou seja, com distância focal
variável). Leone foi um dos primeiros diretores europeus a adotar o zoom, que vinha sendo
utilizado pela televisão americana desde o começo dos anos 1950, mas só apareceu no cine-
ma nos filmes de Akira Kurosawa (BORDWELL, 1997, p. 245), no começo da década de
1960, tendo demorado alguns anos para chegar a Hollywood.
Este recurso estilístico passou a ser muito usado nos spaghetti westerns; depois, abriu
caminho dentro do cinema narrativo norte-americano da geração New Hollywood, nos anos
1970. Sam Peckinpah, por exemplo, adotou rapidamente essa técnica. Contudo, ao contrário
do que ocorreu com a utilização de close-ups extremos de rostos, o uso extensivo zoom só
permaneceria popular até o final da década de 1970 (BORDWELL, 1997, p. 246).
Outra novidade introduzida pelo western de Leone consistiu no perfil violento, amoral
e individualista do herói. O protagonista de Por um Punhado de Dólares, Joe (Clint East-
wood), consiste na adaptação do arquétipo do herói à sociedade hedonista e urbanizada dos
anos 1960, onde o conceito de moral está em cheque. O perfil consiste em mais uma revisão
do esquema narrativo dominante em direção à poética da continuidade intensificada.
Tanto no western americano quanto nos primeiros longas-metragens do ciclo, em
1964, o protagonista invariavelmente seguia o mesmo código de conduta – recusa ao uso da
violência senão em último caso, jamais atirar pelas costas, deixar o rival sacar primeiro, nun-
ca lutar em benefício próprio etc. – que estava firmemente estabelecido entre as convenções
mais características do gênero desde seu surgimento (GOMES DE MATTOS, 2004, p. 15).

47
Nos trabalhos de Leone, contudo, o herói tem perfil diferente. Ele é, na verdade, um
anti-herói. Vive à margem da sociedade e não tem qualquer interesse em se integrar a ela;
está sempre à procura de oportunidades para tirar proveito próprio; não hesita em usar a vio-
lência para se impor, mesmo que isso signifique recorrer a truques amorais, como atirar em
inimigos desarmados (algo que não acontecia em westerns americanos).
Convém registrar que o perfil do herói de Leone – essencialmente um personagem
repetido em todos os westerns que ele dirigiu, um arquétipo oriundo da tradição italiana da
commedia dell’arte – foi uma revisão intensificada do que Kurosawa havia feito em Yojimbo
(Akira Kurosawa, 1961), filme que inspirou o projeto de Leone a tal ponto que Kurosawa
o processou por plágio, ganhando a causa e ficando com os direitos do filme na Ásia, além
de parte dos lucros obtidos no resto do mundo (COX, 2009, p. 45). Mas Leone enumerava
outras influências além do filme de Kurosawa, que ele viu em Roma no outono de 1963:
Homero, Shakespeare, Dashiell Hammett, a Bíblia (o personagem de Clint Eastwood seria
uma referência ao Anjo Gabriel, constituindo-se num dos muitos simbolismos religiosos
presentes dentro do enredo), e a peça Arlecchino – Servitore di Due Padroni, (em português,
Arlequim – Um Servo com Dois Patrões), de Carlo Goldoni (1745), autor que não por coin-
cidência trabalhou dentro da tradição da commedia dell’arte.
A introdução desse anti-herói era uma inovação criativa. O ciclo popular havia encontrado o
elemento central de seu esquema narrativo, replicado por virtualmente todos os diretores: o anti-he-
rói taciturno, errante, sempre pronto a levar vantagem em tudo, que não se apega afetivamente com
nada e nem ninguém. O perfil deste herói trouxe a reboque outro recurso estilístico da continuidade
intensificada: a representação gráfica da violência. Nos filmes de Leone, muitos personagens –
mesmo o herói – são baleados, espancados, socados, torturados, assassinados a sangue frio. E tudo
isso é mostrado na tela, muitas vezes com a câmera colocada bem próxima da ação.
A questão da violência nos filmes inscritos no gênero western sempre foi de impor-
tância fundamental. Edward Buscombe (1988) afirma que a violência não tem significado
meramente formal, mas representa aquilo que o folclore norte-americano associa à experiên-
cia da vida na fronteira:

A violência é central para o western (...). Quando nos é dito que certo filme é
um western, esperamos que ele seja visualmente ambientado de forma a inscre-
vê-lo num recorte específico de espaço e tempo; qualquer que seja o enredo, a
violência da natureza e dos homens terá que ser parte essencial da paisagem; e
provavelmente seu clímax emocional e moral acontecerá durante um ato singu-
lar de violência. (BUSCOMBE, 1988, p. 232).

Em 1964, representar a violência de maneira realista era literalmente proibido em


Hollywood pelo Código Hays10. Diretores não podiam mostrar um corpo sendo perfurado
por bala, ou sangue jorrando de um ferimento, pois isso faria qualquer filme ser cortado pelos
produtores. O sucesso de bilheteria alcançado nos Estados Unidos por Por um Punhado de
10 Documento assinado por todos os grandes estúdios de Hollywood, e por eles obedecido, de 1930
a 1968; o Código Hays continha uma série de restrições relacionadas à exibição de cenas contendo
elementos relacionados a sexo e violência em filmes (BORDWELL; THOMPSON, 2009, p. 198).

48 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Dólares a partir de seu lançamento naquele país, em janeiro de 1967, aliado à irreverência
típica da contracultura da épica, incentivou jovens diretores norte-americanos a seguir o mes-
mo caminho e desafiar o sistema de autocensura. No ano seguinte, em 1968, o Código Hays
foi oficialmente abolido, pois a nova geração de diretores não o respeitava mais. De modo
indireto, podemos dizer que os filmes de Leone contribuíram para a queda da autocensura
dos estúdios dentro de Hollywood. Sam Peckinpah, o cineasta mais associado à representa-
ção gráfica da violência nos anos 1960, admitiu que não teria conseguido filmar da maneira
que desejava sem os filmes de Leone (COUSINS, 2004, p. 289).
Em parte por causa da natureza sensorial do som (SERGI, 2004), compreendido pela
maioria dos espectadores como elemento secundário do espetáculo audiovisual (ninguém
diz que vai “ouvir” um filme quando entra numa sala de projeção), os recursos estilísticos
introduzidos por Leone em seus filmes, desde Por um Punhado de Dólares, na área do sound
design, têm passado despercebidos. No entanto, algumas das características mais recorrentes
da prática estilística de Leone estão nesse campo.
Parte dessas inovações deve-se, na verdade, aos limites impostos pelas condições de
produção: os filmes produzidos em Cinecittà, já vimos, não registravam som sincronizado
nos sets. As bandas sonoras de todos os spaghetti westerns eram finalizadas com diálogos
em italiano, inglês, francês e alemão. Sergio Leone se aproveitou disso, em Por um Punhado
de Dólares, para criar um ambiente sonoro que ia além de representar, do ponto de vista
auditivo, as ações físicas, mas que reforçava o cenário inóspito e a atmosfera decadente das
imagens. Para conseguir esse efeito, Leone apostou em um desenho de som que articulava
sons naturais amplificados (elemento estilístico que trazia em si a noção de intensificação) e
longos períodos sem diálogos, com pronunciado uso de silêncios.

A música dos filmes de Leone também incluiu aspectos originais. Elementos da mú-
sica concreta estavam entre os recursos de estilo que inspiraram Ennio Morricone a escrever
a música de Por um Punhado de Dólares. Este conceito musical, criado em 1948 por Pierre
Schaeffer, consiste na utilização de ruídos naturais – portas abrindo, passos, vento, barulhos
de animais etc. – como parte integrante da composição musical. Morricone afirma que já
havia utilizado o conceito numa composição criada para um filme norte-americano, mas a
música em questão acabou recusada pelo outro diretor:

A ideia era deixar o público ouvir, por trás do tema musical, a nostalgia de deter-
minado personagem pela cidade. Escrevi a música incorporando sons urbanos,
como se os sons da cidade pudessem ser ouvidos à distância, na memória do
personagem. (...) Leone ouviu minha explicação, gostou e pediu que aplicasse
aquilo ao western. (MORRICONE, 2005, p. 92).

De fato, o tema de abertura pouco tinha em comum com o estilo neorromântico, ins-
pirado nos compositores europeus do século XIX (Franz Schubert, Johann Strauss, Gustav
Mahler), que era adotado por todos os compositores de Hollywood. A lógica de Morricone
era de que a música ouvida num ambiente rude como o Velho Oeste não deveria ser execu-

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tada por sofisticadas orquestras, mas por instrumentos rústicos e/ou exóticos. Leone foi es-
pecífico ao instruir o compositor sobre o tipo de música que desejava: picaresca e ao mesmo
tempo dramática, com sabor cômico, mas também operística.
Seguindo esse conceito e inspirado pela musique concrète, Morricone criou um tema
principal com uma estrutura de canção pop, intercalando versos e refrão; a melodia principal
era solada por um assobio, e a harmonia, construída com guitarra elétrica, violões e um coral
masculino. A maior ousadia estava na percussão, que incorporava sons naturais retirados da
diegese: tiros, chicotadas, galopes de cavalo, sinos.
O tema completo, executado durante os créditos de abertura, influenciou praticamente
toda a música composta no ciclo do spaghetti western. Os assobios, a estrutura pop, as gui-
tarras elétricas, os corais masculinos foram copiados pelos demais compositores que traba-
lhavam para os produtores ítalo-espanhóis. É importante ressaltar que Morricone foi o mais
prolífico compositor do ciclo, tendo assinado duas dúzias de trilhas sonoras para spaghetti
westerns11. O resto da música do filme consiste em variações do tema principal. Um fraseado
de cinco notas, tocado por flauta (às vezes acompanhado por piano e bateria), é o leitmotiv12
que anuncia a presença do herói.
Para o duelo final, Leone pediu a Morricone um tema semelhante à canção mexicana
executada pelos vilões antes do confronto decisivo do clássico Onde Começa o Inferno (Rio
Bravo, Howard Hawks, 1959): um degüello – na tradição mexicana, um apelo para que o
adversário se renda antes do ataque final. Esse tipo de melodia tem uma origem histórica real:
em 1836, foi executada para solicitar a rendição do inimigo, pelo Exército do México, antes
da lendária batalha do Forte Álamo.
Este segundo tema também se mostraria influente no tipo de música que acompanha-
ria a maior parte das produções do ciclo de spaghetti westerns, em que o trompete é muitas
vezes o instrumento principal – uma convenção estilística totalmente particular deste ciclo,
já que a música usada por Hollywood e mesmo por outros ciclos do cinema popular italiano
costumava usar muito pouco esse instrumento.
É prudente assinalar, ainda, que os arranjos baseados em violões e trompetes eram
convenientes, do ponto de vista diegético. A música folclórica da fronteira entre Estados
Unidos e México emprega com frequência esses dois instrumentos, de forma seu uso evoca o
princípio do realismo, aplicado na direção de arte e nos figurinos, contribuindo para a cons-
trução de um universo mais multidimensional e coerente.
O sucesso obtido na Itália foi avassalador. Entre agosto e dezembro, com exibições em
só duas cidades (Roma e Florença), Por um Punhado de Dólares já havia se transformado na
maior bilheteria de 1964, obtendo um saldo de 430 milhões de liras (COX, 2009, p. 43). Por
volta de 1971, o filme havia ultrapassado os três bilhões de liras em faturamento (HUGHES,
2003, p. 14). O sucesso dava aos produtores de Cinecittà um gênero que funcionava como
substituto comercialmente viável aos pepla, voltando a atrair multidões para os cinemas.
11 É impossível saber exatamente quantos filmes do ciclo Morricone musicou, já que ele utilizava
diversos pseudônimos (como Dan Savio e Leo Nichols) quando fazia música para a indústria italiana.
O IMDb registra 492 trilhas compostas por Morricone em 40 anos de carreira.
12 Conceito de Richard Wagner, criado no século XIX, e que consiste em associar uma melodia carac-
terística a um personagem (ou grupo), sentimento ou situação dramática.

50 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


1.3 APOGEU E QUEDA

Em 1964, segundo números do Governo da Itália (BOLAFFI, 2009), foram produzi-


dos 13 westerns com financiamento majoritário de empresas do próprio país. Ou seja, 8,1%
de toda a produção cinematográfica italiana (160 títulos) consistiam de westerns. No ano
seguinte, esse número subiu para 34 westerns, ou 18,7% do total. O crescimento deve ser
creditado ao sucesso de Por um Punhado de Dólares.
Nos anos seguintes, com a boa receptividade do público, esse total continuou crescendo.
Em 1966, foram feitos 227 longas-metragens na Itália (dos quais, 22,9% westerns); em 1967
ficaram prontos 238 filmes (27,7% westerns); em 1968 foram 240 longas (29,6% westerns).
Após um hiato em 1969 – 26 westerns italianos, contra 71 no ano anterior – os números volta-
riam a crescer no período 1970-1972, com o percentual de spaghetti westerns atingindo entre
15% e 18% da soma total de produções, cujo total variou entre 220 e 272. A partir de 1973, o
ciclo entrou em período de decadência, com menos produções a cada ano, até terminar definiti-
vamente em 1978, quando apenas dois westerns foram realizados (BOLAFFI, 2009).
No momento de boom do ciclo, um número grande de filmes significava uma quanti-
dade igualmente alta de cineastas. Neste ponto, o que houve foi realmente uma migração em
massa dos diretores de um gênero para outro. Todos os cineastas de maior destaque do ciclo
de spaghetti westerns – Sergio Corbucci, Sergio Sollima, Gianfranco Parolini, Duccio Tessari
e Enzo Barboni, além do próprio Leone – haviam feito pepla. Foi nesse contexto histórico que
Leone dirigiu seu filme seguinte, gravado durante doze semanas, entre abril e julho de 1965,
em Roma (cenas interiores foram registradas nos estúdios Cinecittà) e no deserto de Almería.
Em Por uns Dólares a Mais (1965), havia uma dupla operação de fragmentação da es-
trutura narrativa. Em primeiro lugar, o aumento do número de protagonistas (agora eram dois
anti-heróis), com a ação intercalada entre eles através do uso extenso da montagem paralela;
em segundo, a quebra da continuidade cronológica através de flashbacks. Desta estrutura
surgiram três variações de enredo usadas nos anos seguintes pela maioria dos diretores de
spaghetti westerns: (1) o relacionamento conflituoso, mas cheio de respeito mútuo, entre
um mentor experiente e seu discípulo; (2) a trama de vingança, em que o herói ganha uma
motivação misteriosa que só ele conhece – apresentada à plateia gradualmente em flashbacks
– para a obsessiva perseguição ao vilão; (3) um domínio maior da tecnologia por parte do
herói, que compartilha com o vilão uma habilidade extraordinária com armas de fogo, mas se
destaca pelo maior recurso tecnológico disponível.
Mesmo indiretamente, Sergio Leone impunha sua marca nos filmes dos demais diretores
italianos. Graças ao orçamento de US$ 600 mil, o mais generoso de um filme do ciclo até então,
Carlo Simi pôde construir, pela primeira vez, uma cidade cenográfica. Chamado de Mini Hol-
lywood, o set foi baseado em fotografias do século XIX da cidade de El Paso, no Texas (EUA)
– ou seja, worldmaking. Foi erguido em Tabernas, na Espanha, na mesma região de Almería,
mas tinha um visual diferente de Hojo de Manzanares. Enquanto esta última (reutilizada nas
cenas que se passam em Tucumcari, no começo do filme) era pontuada por prédios decadentes,
Mini Hollywood foi planejada para passar a ideia de cidade nova e em expansão: arquitetura de
madeira de lei, prédios novos de dois andares. Havia interiores decorados.

51
Essa cidade cenográfica seria reutilizada em outras produções, como Joe, o Pistoleiro
Implacável (Navajo Joe, Sergio Corbucci, 1966). Os recursos permitiram a Leone chamar
Clint Eastwood de volta, usando de novo o poncho, embora o personagem tivesse outro
nome. Por questão de direitos autorais, ele era chamado de Monco – Leone estava proces-
sando a Jolly Film, coprodutora do primeiro filme, por causa das acusações de plágio de
Yojimbo, e a firma queria impedi-lo judicialmente de usar o mesmo personagem.
O orçamento também permitiu a escalação de Lee Van Cleef, veterano cujo rosto apa-
recera em papéis menores de clássicos como Matar ou Morrer (High Noon, Fred Zinnemann,
1952) e O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford,
1962). Ele interpretava o pistoleiro mais maduro, rival e mentor de Eastwood.
Um dos elementos narrativos recorrentes em Leone – o clímax que culmina com um
duelo encenado como um balé de close-ups extremos e sublinhado pelos degüellos de Mor-
ricone – aparece no final de Por uns Dólares a Mais. O duelo entre os dois heróis e o vilão
é encenado em uma arena circular de pedras. Uma variação deste set circular seria usada, no
ano seguinte, para o clímax de Três Homens em Conflito. A preferência por cenários circula-
res não passou despercebida a Carlo Simi:

Leone simplesmente pedia: “Carlo, faça uma arena circular usando pedras”.
Deixava claro que era uma exigência. (...) Achei melhor nunca perguntar o que
este círculo de pedras representava. Deve ter representado algo, pois era um
cenário sempre associado com a morte. (SIMI, 2005, p. 126).

Talvez a resposta fosse mais simples. Leone comparava os duelos dos westerns com
as touradas espanholas. Seguindo esse raciocínio, é possível associar ao estilo de encenação
de Leone aos espetáculos espanhóis, e em muitos níveis: a dramaticidade exagerada era ob-
tida através do tratamento dilatado do tempo; acentuada pela abundância de close-ups e pela
fragmentação do espaço fílmico; reforçada pelos movimentos lentos dos adversários que se
estudam, como a espécie de dança que os toureiros fazem com os touros; e evocada pelo
trompete estilo mariachi que toca, invariavelmente, as melodias dos degüellos.
Na banda sonora, o filme também introduziu novos elementos de estilo. Morricone ela-
borou músicas que criavam jogos intrincados entre sons diegéticos e extra-diegéticos (como no
duelo final, que será analisado mais adiante). Instrumentos exóticos, populares ou incomuns,
como celesta, violão flamenco e castanholas, são incorporados aos arranjos. O uso de efeitos
sonoros amplificados, associado a longos períodos de silêncio, está mais acentuado.
Os novos recursos introduzidos por Leone foram copiados por quase todos os diretores
de spaghetti westerns. Os filmes da safra 1966-1968 adicionaram a figura de um segundo
herói e a motivação da vingança. Muitas vezes essas duas variações narrativas vinham juntas.
E na maior parte dos filmes a ação dramática seguia dois personagens de forma intercalada,
ferramenta narrativa que evoluiria, a partir dos anos 1970, para as narrativas em rede (com
múltiplos protagonistas), uma característica central da continuidade intensificada.
A partir do ano seguinte, os estúdios norte-americanos começaram a demonstrar inte-
resse em importar os filmes do ciclo. Isso significou uma série de coproduções internacionais

52 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


e mais dinheiro nas mãos dos produtores de Cinecittà. Mais dinheiro significava mais filmes,
e os produtores começaram a oferecer trabalho a um grupo de roteiristas e diretores enga-
jados politicamente, como Franco Solinas, Fernando Morandi e Sergio Sollima. Todos eles
tinham ligações com o Partido Comunista da Itália.
Nessa época, não havia muitos produtores interessados em bancar filmes políticos
ambientados na época atual, cujo potencial de bilheteria era reduzido. Por isso, esses rotei-
ristas e diretores decidiram aceitar as ofertas para fazer spaghetti westerns e aproveitar essas
oportunidades para injetar subtexto político esquerdista nos enredos, quase sempre criticando
duramente a política intervencionista dos Estados Unidos na América Latina. Convém lem-
brar que, neste mesmo período, os EUA apoiavam uma série de golpes militares em países
da região, inclusive Brasil, Chile e Argentina.
Os títulos realizados por esse grupo seguiam basicamente as mesmas revisões estilísticas de
esquemas do western estabelecidos por Sergio Leone (direção de arte, fotografia, música, desenho
de som etc.), aproveitando o fato de os enredos dos filmes do ciclo serem ambientados na região da
fronteira entre Estados Unidos e México para criar uma variante política do spaghetti western. Os
spaghetti políticos constituem uma vertente secundária da segunda fase do ciclo de cinema popular
italiano, fase esta dominada pelos duplos protagonistas e pelas tramas de vingança.
O enredo básico dessa variante do ciclo consistia na injeção de subtexto político à
estrutura narrativa de Por uns Dólares a Mais: a relação de amizade entre dois pistoleiros,
sendo um mexicano revolucionário e um norte-americano individualista – e os filmes em
geral terminavam com este último ganhando uma consciência política ou sofrendo uma pu-
nição simbólica por manter-se individualista. Uma Bala para Um General (Quien Sabe?,
Damiano Damiani, 1966), Tepepa (Giulio Petroni, 1968) e Os Violentos Vão para o Inferno
(Il Mercenario, Sergio Corbucci, 1968) são exemplos.
Todos os filmes de maior sucesso do período replicaram táticas estilísticas e narrativas
dos filmes de Leone, sobretudo os close-ups extremos. Tempo de Massacre (Tempo di Massa-
cro, Lucio Fulci, 1966) e Django, o Bastardo (Django Il Bastardo, Sergio Garrone, 1969) são
histórias de vingança; assim é também A Morte Anda a Cavalo (Da Uomo a Uomo, Giulio Pe-
troni, 1967), que adiciona à fórmula o relacionamento entre o jovem herói e um pistoleiro mais
maduro, cuja motivação é misteriosa e acaba sendo revelada num flashback; O Dia da Desforra
(La Resa dei Conti, Sergio Sollima, 1966) combina uma dupla de heróis amorais com subtexto
político; Sartana (Gianfranco Parolini, 1968) e Sabata (Gianfranco Parolini, 1968) apresentam
heróis que dominam armas tecnologicamente avançadas para atacar os inimigos. Esses dois
filmes, cujo diretor deu ênfase a uma encenação de estilo mais acrobático, com saltos de dublês,
trocas de socos e menos violência gráfica, dariam partida à terceira fase do spaghetti western.
Hughes (2003) e Fridlund (2006) concordam que o período entre 1964 a 1968 corres-
ponde ao momento mais fértil do ciclo de produções italianas populares. Nesse Intervalo de
quatro anos, os produtores de Cinecittà mantinham em média seis longas-metragens sendo
filmados simultaneamente. Nenhum dos dois, contudo, atenta para o fato de que esse período
também coincide com a fase mais prolífica de Sergio Leone. No decorrer desses cinco anos,
Leone fez quatro longas-metragens – mais da metade de todos os filmes que dirigiu. Os dois
últimos vieram a ser os filmes do ciclo mais conhecidos internacionalmente: Três Homens

53
em Conflito e Era uma Vez no Oeste, ambos 100% financiados por estúdios americanos (no
primeiro caso, a United Artists; no outro, a Paramount).
Em Três Homens em Conflito, Leone deu sequência ao processo de intensificação das
práticas narrativas e estilísticas. A construção narrativa exacerba a estrutura do filme ante-
rior, com três anti-heróis como protagonistas. Num filme americano, os três seriam vilões, já
que ganham a vida roubando. Através de esquetes que documentam encontros e desencontros
entre eles, o trio atravessa o território do sudoeste norte-americano, arrasado pela guerra civil
(a ação dramática se passa em 1862), em busca de uma fortuna em ouro roubado, enterrada
num cemitério militar. Na própria definição do diretor, trata-se de “um novo estilo de wes-
tern, com personagens picarescos inseridos num cenário épico” (LEONE, 2000, p. 236).
De fato, a dinâmica estabelecida entre os personagens de Clint Eastwood e Eli Wallach
– o primeiro é o típico herói spaghetti, taciturno e de gestos largos, enquanto o segundo, um
homem de nome latino que se move de modo rápido e não para de falar – exerceu influên-
cia na variante cômica do ciclo, que se estabeleceria na década de 1970. Três Homens em
Conflito equilibra momentos de tensão, sequências de violência gráfica que flertam com o
melodrama, gags e diálogos de tom humorístico:

O épico cínico e engraçado de Leone intercala eventos históricos reais – ocorri-


dos entre o fim de 1861 e o começo de 1862 – com as picarescas aventuras do
“bom” Clint Eastwood, do “mau” Lee Van Cleef e do “feio” Eli Wallach, cuja
performance barulhenta e carnavalesca domina o filme. Os eventos históricos
eram deliberadamente distorcidos para evocar as duas guerras mundiais do sé-
culo XX. (FRAYLING, 2005, p. 51).

No terreno da prática estilística, Leone expandiu recursos que já apareciam nos fil-
mes anteriores. Ennio Morricone escreveu a música da sequência do cemitério (figura 1.25)
antes das filmagens, de modo que Leone pudesse controlar a duração e os movimentos de
câmera de cada plano, na filmagem, a partir do som. A composição recessiva de tomadas em
profundidade de campo com moldura, frequentemente associada aos close-ups extremos de
rostos que são usados como molduras, está cada vez mais abundante; por vezes Leone usa
enquadramentos fechados que focalizam apenas os olhos dos atores.
Neste filme, Leone destaca mais outra ferramenta estilística, criada a partir da téc-
nica pictórica do trompe l’oeil13: os heróis frequentemente são surpreendidos (assim como
o espectador) pela entrada inesperada em cena de outros personagens que estavam fora do
campo visual captado pela câmera um instante antes, mas já deveriam ter sido notadas pelo
personagem mostrado naquele momento.
A direção de arte foi precedida de extensa pesquisa iconográfica, perseguindo a acui-
dade histórica: armas (revólveres, rifles, canhões) tinham que condizer exatamente com o
equipamento produzido no ano em que a trama se passava. Os filmes norte-americanos de
até então – inclusive westerns – não tinham esse tipo de preocupação com a verossimilhança
histórica e com o desenvolvimento coerente e realista do cenário e dos figurinos, uma ferra-
menta de estilo que constitui um exemplo claro da prática do worldmaking.
A obsessão com os detalhes, possível graças ao orçamento de US$ 1,3 milhão, incluiu
a construção de dois novos sets – uma estação ferroviária em La Calahorra, no deserto es-
panhol, e o cemitério circular onde ocorre o duelo final, montado num vale ao lado do rio
Arlanza, perto de Madri – além da redecoração das duas cidades cenográficas usadas em Por
um Punhado de Dólares e Por uns Dólares a Mais (o vilarejo de Hojo de Manzanares foi
semidestruído para dar lugar a Peralta, cidade arrasada pela guerra, enquanto o set de Mini
Hollywood foi “maquiado” três vezes, para dar lugar a Valverde, Santa Fé e Santa Ana).

13 Técnica artística, advinda da pintura e da arquitetura, que consiste em criar uma ilusão ótica con-
seguida ao forçar relações de perspectiva fala entre objetos, formas ou pessoas; a expressão francesa
original, que pode ser traduzida como “engana o olho”, é bastante sugestiva.

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Enquanto Leone conduzia a equipe por um cronograma de doze semanas de filma-
gens, entre maio e julho de 1966, o estúdio United Artists preparava o lançamento dos dois
primeiros longas-metragens de Leone nos Estados Unidos. Os filmes chegaram aos cinemas
norte-americanos em janeiro de 1967. Foram frequentemente exibidos em par, no circuito
de drive-ins. Ambos atingiram bilheterias superiores a US$ 4,5 milhões, consideradas mui-
to boas para produções pequenas, exibidas longe das grandes salas de projeção. O sucesso
dos filmes de Leone provocou uma retomada na produção de westerns dentro dos Estados
Unidos, permitindo que cineastas como Sam Peckinpah e Don Siegel realizassem novas pro-
duções do gênero (FRAYLING, 1981, p. 43).
A influência de Leone foi importante para diretores como Peckinpah. O cinema deste
detém um débito de estilo em relação aos filmes de Leone, em particular no que se refere à re-
presentação da violência e ao uso do perfil de herói amoral dentro de narrativas ambientadas em
um universo inóspito. Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch, Sam Peckinpah, 1968) é
um ótimo exemplo da incorporação de recursos estilísticos de Leone dentro do cinema norte-a-
mericano. O violentíssimo tiroteio final e o herói – líder de uma quadrilha de assaltantes – são
recursos estilísticos que reapropriam as revisões esquemáticas operadas por Leone.
O modo realista de representação da violência passou depois a ser adotado pelos ci-
neastas da geração New Hollywood14. Martin Scorsese (Taxi Driver, 1976; Touro Indomá-
vel/Raging Bull, 1980), Francis Coppola (O Poderoso Chefão/The Godfather, 1972; Apo-
calypse Now, 1979), Arthur Penn (Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas, 1967) e William
Friedkin (O Exorcista/The Exorcist, 1973; Comboio do Medo/Sorcerer, 1978) adotaram esse
estilo de representação, determinando uma maneira de filmar a violência que acabaria sendo
instituída dentro dos esquemas dominantes à disposição dos diretores contemporâneos.
Enquanto isso, Leone planejava uma mudança. Ele entregou à United Artists um pro-
jeto de filme de gângster. Os executivos do estúdio não estavam interessados. Queriam mais
westerns. Leone recebeu uma proposta da Paramount: dirigiria mais um filme do gênero e,
se fosse bem-sucedido, ganharia sinal verde para fazer Era uma Vez na América (C’era uma
Volta in America, Sergio Leone, 1984).
Com US$ 3 milhões, Leone planejou Era uma Vez no Oeste como um mosaico de
citações a clássicos do western, a começar pelo tema – a chegada do progresso, representado
pela construção de uma ferrovia transcontinental, abordado em filmes como O Cavalo de
Ferro (The Iron Horse, John Ford, 1924) e A Conquista do Oeste (How the West Was Won,
John Ford/ Henry Hathaway/George Marshall, 1962). Era, na verdade, uma intensificação do
alusionismo praticados nos filmes anteriores, mergulhando fundo no pastiche.
Para este filme, Carlo Simi construiu três cenários no deserto espanhol: uma estação
ferroviária decadente, onde foi filmada a sequência de abertura, um chalé suíço no meio de
uma planície seca e uma cidade cenográfica completa, incluindo outra estação ferroviária,
celeiros, galpões e prédios de até três andares. Desta vez, com interiores decorados, para que
as filmagens acontecessem sempre dentro do set (COX, 2009, p. 197). Uma linha ferroviária

14 Termo de Peter Biskind para a geração de jovens cineastas norte-americanos que emergiram a partir
de meados da década de 1960, influenciados pela Nouvelle Vague francesa, entre os quais estavam
os movie brats Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, George Lucas, Steven Spielberg e William
Friedkin.

56 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


de dois quilômetros foi construída, para que o trem – uma locomotiva espanhola decorada
como um trem americano do século XIX – pudesse ligar os três sets.
Cada cenário obedecia a uma lógica interna não explícita na narrativa. O chalé suíço expres-
sava a confiança de Brett McBain (Frank Wolff) de que a linha férrea passaria pelas terras dele,
transformando-o em milionário. Isso confirmava a prática do worldmaking. Os sets construídos
em La Calahorra foram deixados de pé, de modo que outros diretores pudessem reutilizá-los. Isso
aconteceu, por exemplo, em O Preço do Poder (Il Prezzo Del Potere, Tonino Valerii, 1969).
Antes de se decidir por filmar na Espanha, Leone visitou o território real do oeste
americano, procurando locações para o longa-metragem. Ele acabou desistindo de filmar nos
EUA, decepcionado com a urbanização crescente das planícies outrora desérticas, onde John
Ford filmara seus westerns. Essa viagem rendeu apenas uma sequência: o passeio de carrua-
gem de Claudia Cardinale pelo Monument Valley, cenário favorito de Ford, que o cineasta
de origem irlandesa usou em oito filmes, como Rastros de Ódio (The Searchers, 1958) e No
Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939).
Intensificando mais uma vez a construção narrativa em larga escala, quatro são os per-
sonagens centrais da trama; e quatro são os temas musicais, cada um correspondendo a um
personagem e representando sua personalidade através de sonoridades características. Desta
vez, Leone e Morricone evitaram o uso de elementos da diegese – ruídos e efeitos sonoros
– dentro das composições, buscando uma sonoridade claramente neorromântica, porque ro-
mântica era a atmosfera da história.
O tema do herói Harmonica (Charles Bronson), que pouco fala e vive com uma gaita,
é executado pelo próprio personagem em alguns momentos e em outros não, num jogo entre
música diegética e extra-diegética. A gaita é o único instrumento que executa o tema, simbo-
lizando a solidão e a recusa do personagem a viver em sociedade. Já o tema do vilão Frank
(Henry Fonda), cuja vida está conectada atavicamente com a de Harmonica, é uma extensão
do outro tema, solado numa guitarra elétrica – instrumento mais moderno e mais agressivo,
como o personagem. Quase sempre os dois temas são tocados em sucessão, indicando o
choque de destinos que o filme realiza no final.
Para Cheyenne (Jason Robards), o pícaro da história, Morricone compôs um tema
satírico, executado por um banjo sincopado e acompanhado de piano elétrico. Jill McBain
(Claudia Cardinale), única mulher do filme, ganhou um tema romântico executado com or-
questra de cordas completa. Havia ainda uma quinta música para Morton (Gabriele Ferzetti),
o empresário que sonha em ver o oceano, cujo tema para piano cuja execução lembra vaga-
mente o som de ondas quebrando.
Durante as filmagens, Leone executava a música para os atores. Ele planejava, com
o diretor de fotografia Tonino Delli Colli, a duração e a decupagem exatas de cada tomada,
para que os movimentos de câmera pudessem ser sincronizados com as evoluções musicais.
O melhor exemplo desta técnica está na tomada que mostra a chegada de Jill à cidade de
Flagstone, em que a grua eleva a câmera para mostrar o panorama (prédios sendo cons-
truídos, movimentação de cavalos) no exato momento em que o acompanhamento lírico de
piano e vozes femininas evolui em um crescendo até ganhar corpo com a adição de cordas.
Nos Estados Unidos, a receptividade do público foi fria. Na Itália, lançado na véspera
de Natal, pouco chamou a atenção do público (COX, 2009, p. 205). O filme só fez sucesso
real no circuito de salas alternativas, tendo ficado por dois anos consecutivos em cartaz numa
sala de Paris. Devido ao fracasso, o projeto do filme de gângster foi cancelado. Leone diria
em seguida que não faria mais nenhum western.
A partir de 1970, começava uma nova fase no ciclo de spaghetti westerns. Esse pe-
ríodo, cujo apogeu vai aproximadamente até 1973, é marcado pela introdução de recursos
cômicos e acrobáticos no esquema dominante do gênero. Na verdade, esse ciclo consiste na
produção de comédias pastelão disfarçadas de faroestes, num jogo intertextual que inscreve
os códigos do western em narrativas cômicas e circenses.
Os marcos iniciais desta fase foram Sartana (1968) e Sabata (1969). Hughes (2003, p.
219) identifica a origem desses filmes em um personagem de Leone: o Coronel Mortimer de
Por uns Dólares a Mais. Naquele filme, Mortimer demonstra gosto por armas avançadas –
possui uma luneta para observar vilões de longe, abre um cofre usando ácido e anda com um
arsenal de rifles desmontáveis na bagagem.
Sartana (Gianni Garko) seria, então, uma revisão exacerbada do Coronel Mortimer, in-
clusive no figurino preto e no uso de um rifle desmontável. Sabata deixa ainda mais flagrante
a inspiração, porque Parolini escalou Lee Van Cleef, interprete de Mortimer, no papel-título.
O herói ganhou passado idêntico ao do personagem de Leone: ambos são ex-oficiais do
Exército Confederado que, derrotados na guerra civil e desiludidos, se transformaram em
caçadores de recompensa.
Em Sabata, Lee Van Cleef repete o figurino negro, fuma o mesmo cachimbo de Morti-
mer e se mostra expert em rifles desmontáveis e pistolas Derringer (mesmas armas utilizadas
em Por uns Dólares a Mais). Por outro lado, havia sequências de ação cada vez mais acrobá-
ticas, com dublês dando saltos perigosos.

58 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Essa atmosfera picaresca, traço da cultura ibérico-mediterrânea, pode ser vislumbrada
nos filmes de Leone, mas neles inscrita de modo mais sutil. A revisão do esquema realizada
por Parolini consistia em exacerbá-la na direção da comédia. Essa exacerbação tomou forma
ainda mais concreta em Meu Nome é Trinity (Lo Chiamavano Trinità, Enzo Barboni, 1970),
que concentra sua ação dramática em torno do relacionamento conflituoso entre dois irmãos,
Trinity (Mario Girotti) e Bambino (Carlo Pedersoli). Os dois preferiam derrubar inimigos
com socos. Saíam de cena os duelos com espaço fílmico fragmentado, close-ups e violência
gráfica; entravam as brigas coreografadas como números de circo, filmadas em planos ge-
rais, com direito a tortas na cara. Barboni eliminava do cardápio estilístico a representação
gráfica da violência, já que seus filmes visavam um público-alvo formado por crianças. Esta
aí outra revisão do esquema dominante determinada por um limite contextual.
Em termos comerciais, a receita deu certo. Meu Nome é Trinity faturou quase oito
bilhões de liras (COX, 2009, p. 279) e escalou a lista das maiores bilheterias da Itália até as
primeiras posições. A sequência oficial, Trinity Ainda é Meu Nome (Continuavano a Chia-
marlo Trinità, Enzo Barboni, 1971), foi ainda melhor e assumiu o posto de filme mais rentá-
vel de todos os tempos na Itália. Tal sucesso provocou uma onda de westerns estilo pastelão
durante os anos finais do ciclo.
Embora usassem recursos estilísticos e narrativos oriundos do cinema de Leone, como
a direção de arte realista (Trinity vestia roupas rasgadas e surgia em cena sempre coberto de
poeira) e as trilhas musicais estruturadas como canções pop, intercalando versos e refrões,
esses filmes revisavam outros recursos numa direção que desagradava a Leone. Ele fez seu
próprio comentário sobre a onda de faroestes cômicos sob a forma de filme. Meu Nome é
Ninguém, 1973) foi produzido por ele e dirigido por Tonino Valerii.
Na prática, atuando como diretor de segunda unidade, Leone dirigiu quase dois terços
das cenas (COX, 2009, p. 300-301), incluindo todas as sequências registradas no Monument
Valley (EUA). Mas, antes de chegar lá, Leone já havia dirigido um quinto western. Quando
Explode a Vingança (Giù la Testa, Sergio Leone, 1971) foi um projeto concebido e condu-
zido de maneira tumultuada, bastante semelhante a Meu Nome é Ninguém. O projeto nasceu
para se tornar um comentário crítico de Leone contra a politização do spaghetti western, que
ele enxergava nos filmes ambientados na Revolução Mexicana (FRAYLING, 2005, p. 64).
Na ocasião, Leone ofereceu a direção a Giancarlo Santi, que não chegou a completar
uma semana no cargo. Os dois atores principais, Rod Steiger (que ganhara um Oscar pouco
antes) e James Coburn (grande astro de ação da época), fizeram pressão junto ao estúdio
United Artists para que Leone assumisse a direção, o que acabou efetivamente acontecendo.
Em termos de prática estilística, Quando Explode a Vingança detém algumas das im-
pressões digitais de Leone, apesar da ausência de dois parceiros habituais (Simi e Delli Col-
li). Essa ausência redundou em diferenças perceptíveis: se os figurinos e cenários seguiam a
ambientação grotesca e suja dos filmes de Leone, o cuidado com a acuidade histórica tornou-
-se bem menos obsessivo, e isso pode ser observado facilmente no roteiro. Por exemplo, a
história ocorre em 1913; o Exército Revolucionário Irlandês (IRA), ao qual pertence um dos
dois heróis, só seria criado seis anos depois, e esta informação era de domínio público, mas
o erro factual entrou no filme.

59
O uso de close-ups extremos, a ironia, os diálogos intercalados por silêncios e ruídos
naturais amplificados, a técnica do alusionismo reaparecem. Já a música de Morricone, com-
posta após as filmagens, era mais convencional, com apenas um tema principal e orquestra-
ção neorromântica.
A ação dramática focaliza a amizade entre Juan (Steiger), um bandido mexicano anal-
fabeto, e Sean (Coburn), revolucionário irlandês do IRA, no México para lutar ao lado dos
camponeses na Revolução do país. A dinâmica entre ambos era idêntica à estabelecida entre
Blondie e Tuco em Três Homens em Conflito; Juan era um típico pícaro de Leone (como
Tuco e Cheyenne), enquanto Sean faz o tipo taciturno, confiante e cínico.
A maior preocupação do diretor era criticar os filmes da segunda fase do spaghetti wes-
tern. Já vimos que quase todas essas obras compartilhavam o esqueleto narrativo: a relação
entre um camponês revolucionário (porém ingênuo) e um gringo individualista. Leone inverteu
esses papéis, transformando o estrangeiro num revolucionário. E ele tinha uma visão política
niilista; achava que o spaghetti western estava sendo explorado politicamente e queria criticar
esse procedimento. Assim, concebe uma trama em que o camponês se torna herói involuntário
da Revolução, mas não acredita nela e perde toda a numerosa família. Enquanto isso, o idealista
irlandês se desilude com sua crença política e morre. Ambos se envolvem com política e, por
causa disso, experimentam tragédias.
O lançamento foi um fracasso. Nos EUA, o filme apareceu numa versão com 154 mi-
nutos, foi retirado de circulação, cortado (perdeu 34 minutos) e recebeu outro título, A Fistful
of Dynamite (Por um Punhado de Dinamite, óbvia alusão marqueteira aos filmes da trilogia
com Clint Eastwood). Não adiantou. A bilheteria alcançada lá não atingiu as mesmas cifras
dos três primeiros westerns. Parecia que Leone estava perdendo a popularidade.
Ao mesmo tempo em que este fazia seu comentário sobre a politização do spaghetti
western, o ciclo popular descobria a variação cômico-acrobática das tramas ambientadas no
“Velho Oeste” espanhol. O sucesso desses filmes levou ao já citado Meu Nome é Ninguém,
cujo enredo é construído sobre um tema característico do spaghetti western – o relaciona-
mento entre dois pistoleiros, um mais jovem e outro mais velho – em que cada personagem
personifica uma variante do western.
A ação acontece em 1899. De um lado, temos Jack Beauregard (Henry Fonda), pistoleiro
de 51 anos, decidido a se aposentar para ir morar na Europa; do outro, um jovem caçador de re-
compensas (Mario Girotti) que idolatra o colega mais velho, mas não quer vê-lo partir de forma
melancólica, e o incentiva a enfrentar sozinho o Bando Selvagem– título do grupo de assaltantes
de Meu Ódio Será Sua Herança (1969), e que alude visualmente aos capangas da vilã do filme
Dragões da Violência (Forty Guns, Samuel Fuller, 1957), numa dupla referência construída
através do alusionismo – para garantir a si próprio o status de lenda do oeste.
A escalação dos dois atores deixa evidente a intenção de Leone e Valerii. Fonda era,
junto com John Wayne, um dos veteranos mais associados aos clássicos filmes de western;
já o italiano Girotti era a face mais conhecida da vertente cômico-acrobática dos spaghetti
westerns, graças ao papel de Trinity (cujo figurino esfarrapado é repetido). Colocá-los juntos
no mesmo filme era uma jogada de cineastas que desejavam sintetizar os dois arquétipos do
western (um norte-americano, outro italiano) em um só produto.

60 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Meu Nome é Ninguém reelabora a técnica do alusionismo, usada não apenas para com-
binar alusões a longas-metragens diferentes, mas, sobretudo, para combinar fases diferentes
do western num produto conscientemente elaborado para servir como uma espécie de despe-
dida, um réquiem do gênero, que a essa altura declinava rapidamente tanto na Itália quanto
nos Estados Unidos. Em outras palavras, puro pastiche.
Meu Nome é Ninguém foi bem nas bilheterias italianas, superando o primeiro exem-
plar da franquia Trinity, mas não alcançou nenhuma repercussão nos Estados Unidos
(FRAYLING, 2005, p. 69). Esta aversão dos espectadores norte-americanos aos westerns
acrobáticos, aliás, pode ser apontada como um dos fatores decisivos para a decadência
definitiva do spaghetti western, cuja produção praticamente desapareceu após 1973, tor-
nando-se residual até sumir em definitivo a partir de 1978.
Após Meu Nome é Ninguém, Leone deixou de lado as produções italianas para se
concentrar no sonho de filmar as memórias de infância filtradas pelos esquemas dos filmes
de gângster. Ele levaria mais de dez anos para conseguir financiamento e fazer Era uma Vez
na América, produção marcada por brigas de bastidores com os produtores norte-americanos
e, consequentemente, por uma série de interferências do estúdio em suas práticas narrativas e
estilísticas. Essas interferências ajudaram a fazer o filme fracassar e praticamente decretaram
o final da carreira de Leone.
ELI WALLACH EM “TRÊS HOMENS EM CONFLITO” (1966)
2. A FORTUNA CRÍTICA DE LEONE

2.1 O IMPACTO DO GÊNERO E DO AUTORISMO

Em texto sobre Três Homens em Conflito, publicado em 2002 no jornal Chicago Sun-
Times, Roger Ebert revisou as reflexões que havia escrito em janeiro de 1967, no mesmo
periódico, sobre o filme de Leone. No novo artigo, Ebert fez um mea culpa público por não
ter sido capaz de julgar, na época do lançamento, a suposta qualidade do trabalho de Leone,
que só agora, 35 anos depois, era capaz de enxergar. O texto deixa clara a existência de
uma barreira ideológica que se infiltrava, às vezes sem que houvesse consciência disso, no
discurso dos críticos, sobretudo entre os anos 1960 e 1970. Era uma barreira que isolava os
filmes “de arte”, feitos sem objetivos comerciais imediatos, daqueles categorizados como
puro entretenimento, supostamente inferior:

Na estreia do filme nos Estados Unidos, no final de 1967, pouco depois de seus
antecessores Por um Punhado de Dólares e Por um Punhado de Dólares a Mais,
as plateias tiveram certeza de que o apreciaram, mas será que saberiam dizer por
quê? (...) Minha reação foi forte, mas eu ainda não completara um ano como críti-
co de cinema e nem sempre tive a sabedoria de valorizar mais o instinto do que a
prudência. Ao reler minha velha crítica, vejo que a descrição corresponde à de um
filme quatro estrelas, porém dei-lhe apenas três, talvez porque se tratasse de um
spaghetti western e, assim, não pudesse ser arte. (EBERT, 2006, p. 495).

Ebert não era voz isolada em 1967. Muito pelo contrário. Ele sintetizava, de forma
geral, a argumentação que levou a maior parte dos críticos da época a ignorar ou minimizar
a importância dos faroestes italianos e da obra de Leone em particular. Em geral, os críticos
partiam de pressupostos negativos para avaliar qualquer filme do ciclo. Eram produções fei-
tas para consumo massivo, visando o lucro. Ainda havia a noção de que um western realizado
na Europa era intrinsecamente inferior a qualquer outro feito nos Estados Unidos, por ter sido
realizado por alguém que não podia compreender o espírito do gênero, já que este lidava com
a formação da identidade cultural norte-americana.
O texto deixa claro, nas entrelinhas, o jogo de expectativas negativas que existia den-
tro da crítica em relação ao western europeu. Esperava-se que um exemplar do ciclo italiano
fosse qualitativamente sofrível, e esperava-se também que os críticos condenassem instanta-
neamente esses filmes, inclusive sem dedicar muita atenção neles. O artigo deixa claro como
Ebert já percebia, em 1967, que gostava do filme, mas somente o recuo proporcionado pelos
anos – e com a mudança da opinião geral dos outros críticos sobre o spaghetti western em
geral, e o cinema de Leone em particular – ele se sentiu seguro para avalizar essa opinião.
Esta mudança gradual de opinião exemplifica bem o processo de revalorização a que
a obra de Leone foi submetida desde então. Mudanças na forma como a teoria do cinema
tem lidado com o conceito de gênero fílmico detêm grande importância nesse processo de

63
revalorização. Durante muito tempo, pelo menos até os anos 1970, o gênero foi colocado
num polo oposto em relação ao conceito de autoria. Essa oposição foi tratada através de di-
ferentes gradações de ênfase, mas sua premissa essencial permaneceu estável durante muito
tempo: filmes de gênero constituem uma categoria estética menos importante, porque detêm
objetivos comerciais imediatos. Este raciocínio começou, timidamente, a ser relativizado por
algumas correntes teóricas nos anos 1950. Esse processo de relativização só ganhou força
realmente depois dos anos 1970. Ainda assim ele ainda permanece até hoje, às vezes de for-
ma inconsciente, porque o seu duplo – a noção de autoria – ainda é encarada de acordo com
seus preceitos românticos.
De todo modo, o resgate positivo do conceito de gênero tem trazido em seu bojo a
tendência à revalorização do spaghetti western e, em particular, da obra de Leone. É possível
citar exemplos institucionais que confirmam essa impressão. Em agosto de 2004, o Museum
of the American West, um dos mais importantes espaços de preservação da memória da co-
lonização do oeste daquele país, dedicou uma mostra aos filmes de Leone, expondo peças
de figurino, cenário e cartazes das produções dele (um evento desse tipo seria impensável
nos anos 1970, quando críticos e diretores de western nos Estados Unidos consideravam o
spaghetti western uma espécie de insulto). Em 2007, a 64ª edição do Festival de Veneza (um
dos espaços mais tradicionais do cinema “de arte”) realizou a mostra especial A História
Secreta do Cinema Italiano: Spaghetti Westerns, em que 32 longas do ciclo, realizados entre
1964 e 1976, foram exibidos em sessões especiais, com curadoria de Quentin Tarantino.
Todos os exemplos citados – a mudança de opinião de Roger Ebert, as mostras em
espaços culturais consagrados, a experiência de Alex Cox – refletem uma guinada na traje-
tória midiática do spaghetti western, ao longo dos últimos 40 anos. Esse fenômeno pode ser
compreendido como resultado de um complexo processo de integração entre os conceitos de
gênero e autoria – um processo, aliás, que ainda está longe de refletir harmonia.
A noção de gênero precede em muitos séculos a invenção do cinema. O vocábulo
vem do latim genus e significa espécie, categoria ou agrupamento (STAM, 2003, p. 27;
AUMONT; MARIE, 2001, p. 141). A palavra já era utilizada na filosofia e na biologia, para
designar grupos de objetos ou seres com características em comum, quando começou a ser
empregada na arte e na estética, a partir do século XVII, para categorizar conjuntos de obras
que compartilhavam características de quaisquer ordens (enredo, narrativa, estilo etc.). Na
teoria do cinema, contudo, o problema da definição do conceito sempre foi complexo:

O que é um gênero? Quais filmes devem ser chamados filmes de gênero? Como
sabemos a qual gênero eles pertencem? Embora pareçam fundamentais, essas
perguntas quase nunca são feitas – muito menos respondidas – no campo dos
estudos cinematográficos. (ALTMAN, 2003, p. 27).

Historicamente, uma teoria dos gêneros fílmicos só começou a ser objeto de estudo,
sobretudo nos Estados Unidos, entre o final dos anos 1960 e o começo da década seguinte
(NEALE, 2000, p. 8). Por sua vez, críticos que atuavam em periódicos nunca se preocupa-
ram em com os contextos socioculturais em que usavam o termo. Tudor (1985) afirma que

64 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


a crítica sempre evitou, deliberadamente, cunhar uma definição clara do termo, para escapar
de uma armadilha conceitual que pudesse enfraquecer seus argumentos.
Ao longo dos anos 1970, o gênero foi tratado como um sistema, que podia ser identi-
ficado “por suas regras, componentes e funções (por sua estrutura profunda estática), ou ao
contrário, pelos componentes individuais incorporados à espécie (por sua estrutura superfi-
cial dinâmica)” (SCHATZ, 1981, p. 18). Aos poucos, a ideia do gênero como sistema tornou-
-se insuficiente. Steve Neale observou que o gênero não é exatamente um sistema, mas “um
conjunto de processos de orientações, expectativas e convenções que circulam entre a indús-
tria, o texto e o sujeito” (NEALE, 1980, p. 19). Essa compreensão do termo implica que gê-
neros não são entidades historicamente estáveis. Todo gênero incorpora novos componentes
e sofre alterações com o tempo, em todos os níveis de significação. O gênero muda à medida
que mudam também os três atores entre os quais circulam os seus processos de significação.
Edward Buscombe propôs que o gênero fílmico deveria ser concebido como um con-
junto de obras constituídas por dois grupos de componentes, que denominou de formas ex-
ternas e internas (BUSCOMBE, 2004, p. 306). Steve Neale (2000, p. 11) instituiu o termo
iconografia para dar conta do conjunto de formas externas. Ele observou que a iconografia
– que inclui elementos de cenário, figurino, iluminação, cor e composição pictórica – exerce
um papel mais imediatamente reconhecível para a classificação de gêneros do que as formas
internas, que por sua vez podem ser encontradas nos aspectos narrativos recorrentes (entre os
quais estão temas, caracterização de personagens, eventos da trama etc.).
Ao trabalhar dentro de um gênero, um cineasta precisa seguir, ao menos parcialmente,
um repertório de convenções que reforce torne, aos olhos da audiência, seu filme integrante
do gênero. O diretor de um filme de gênero deve organizar as formas internas e a icono-
grafia, ainda que através de diferentes práticas narrativas e estilísticas, para tornar o filme
reconhecível como exemplar do gênero. Nesse sentido, o gênero funciona como um esquema
(GOMBRICH, 2007). O modo como cada diretor lida com os problemas de representação
específicos do gênero pode determinar sua capacidade criativa.
Tudo isso implica que, necessariamente, o gênero exerce o papel simultâneo de limite
e pré-condição ao uso dos recursos narrativos e estilísticos por parte do diretor. Qualquer
escolha que este opere, para resolver problemas de representação, pode ser efetuada dentro
de um repertório recorrente em suas práticas cinematográficas, mas precisa levar em conside-
ração o gênero de filme que ele está realizando: “Não se filma uma cena de amor da mesma
maneira em uma comédia familiar, em um filme (...) destinado ao circuito de arte, ou em um
filme pornô” (JULLIER; MARIE, 2009, p. 65).
A inscrição de um cineasta no rol dos autores passou a depender, ao longo dos anos
1970, da maneira como este cineasta era capaz de trabalhar temas, códigos estilísticos e nar-
rativos de maneira original, introduzindo novos elementos dentro do repertório de conven-
ções daquele gênero específico, desde que o repertório de códigos desse mesmo gênero con-
tinuasse funcionando. Na prática, para se afirmar como autor, um cineasta trabalhando dentro
de um gênero devia, sempre que possível, lidar com os esquemas através dos processos de
revisão e síntese. Desta maneira, era possível cunhar assinaturas estilísticas reconhecíveis.

65
Há um parêntese importante aqui. Os processos de significação do cinema, como de
resto em todas as artes de massa, necessitam provocar no público certas experiências reco-
nhecíveis. Ressaltando como o repertório de gêneros, se utilizado de maneira simplista, pode
“fazer com que o gênero soe como uma ameaça determinista à criatividade”, Graeme Turner
(1997, p. 89) observa que o cinema “tem de lidar com o familiar e o convencional mais do
que, digamos, a pintura e a poesia”:

Nas artes populares, a percepção individual não tem o lugar privilegiado de


que desfruta nas formas mais elitistas, como a literatura. Em vez disso, o prazer
vem do familiar, do reconhecimento de convenções, da repetição e reafirmação.
(TURNER, 1997, p. 89).

Bordwell e Thompson concordam com esse raciocínio, observando que a mera repe-
tição de códigos de gênero pode ocasionar, após muitos filmes, um desinteresse por parte do
público com relação ao gênero. Eles enfatizam que os gêneros são construções socioculturais
dinâmicas, que mudam com o tempo, e que essas mudanças ocorrem a partir de operações
intertextuais que caracterizam procedimentos autorais:

Audiências esperam que o filme de gênero ofereça algo familiar, mas também
demandam novas variações desse algo. O cineasta pode inventar algo moderada
ou radicalmente diferente, mas terá que basear essa mudança na tradição. O jogo
interno entre convenção e inovação, familiaridade e novidade, é central para o
filme de gênero. (BORDWELL; THOMPSON, 2008, p. 321).

Esse raciocínio explicita o diálogo entre gênero e autoria injetado pela noção de in-
tertextualidade, que por sua vez está conectada ao problema do estilo. O paradigma do pro-
blema/solução de Bordwell (2009) favorece essa leitura intertextual da dicotomia gênero X
autoria. A exigência que dará a qualquer cineasta o estatuto de autor é o equilíbrio entre o
novo e o familiar. Ou seja, mesmo operando dentro de uma rede de limites e pré-condições,
o cineasta será tão mais autor quanto mais conseguir inserir elementos originais na poética
do cinema, através do estilo:

Há (...) inovação e originalidade nos filmes de gênero, e os melhores exemplos


podem atingir um equilíbrio muito complexo e delicado entre o familiar e o
original, a repetição e a inovação, a previsibilidade e a imprevisibilidade. Os
produtores de filmes populares sabem que cada filme de gênero tem de apresen-
tar duas coisas aparentemente conflitantes: confirmar as expectativas existentes
do gênero e alterá-las um pouco. (TURNER, 1997, p. 89).

Não parece ser coincidência o fato de que foi justamente a partir dos anos 1970, à
medida que a teoria do cinema passava a aceitar a possibilidade de autoria dentro do gênero
através dos conceitos de estilo e intertextualidade, que o cinema de gênero tenha alcançado

66 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


um patamar de reconhecimento maior e mais efetivo, a ponto de a valorização do cinema
de gênero pelos praticantes da arte cinematográfica ser nomeada por Bordwell (2006, p. 51)
como uma das características da continuidade intensificada.
Tampouco parece coincidência o fato de que, mais ou menos na mesma época, os fil-
mes de Leone tenham alcançado certo grau de reconhecimento. É de se destacar, entretanto,
que esse reconhecimento nunca veio acompanhado do estudo de suas práticas estilísticas e
narrativas. Mesmo a pesquisa de Frayling sobre o spaghetti western no princípio dos anos
1980 – uma pesquisa pioneira, marco fundamental no processo de revalorização da obra de
Leone – deu mais destaque aos contextos socioculturais de produção e recepção do que às
práticas estilísticas e narrativas.
Há, ainda, um último aspecto que é preciso observar, antes de seguir adiante. A obra
de Sergio Leone não despertou reações negativas da crítica apenas por pertencer a gêneros
cinematográficos, sobretudo o western. Precisamos lembrar que Leone fazia parte de um
ciclo popular, encarado na época como subproduto desprezível que visava apenas o lucro. Se
os westerns americanos eram colocados numa categoria inferior em relação ao cinema dito
“de arte”, os filmes do ciclo italiano não passavam, para os críticos, de imitações de segunda
categoria dessa categoria já inferior – ou seja, eram o subproduto de um subproduto.
Essa maneira extremamente negativa de ler o spaghetti western, que pode ser rastrea-
da no discurso da maioria dos críticos dos anos 1960 e 1970, era agravada por dois fatores.
Primeiro, o western lidava com a identidade cultural do povo americano; os filmes eram a
tentativa mais flagrante de construir uma mitologia própria para uma nação formada essen-
cialmente por imigrantes, e que se ressentia da falta de uma história oral. Em segundo lugar,
o spaghetti western era mais um dos diversos ciclos de cinema popular italianos, feito para
consumo de massa.
Assim, não é difícil compreender os motivos pelos quais os críticos cinematográficos
dos anos 1960 e 1970 desprezaram ou minimizaram a importância do spaghetti western e de
Leone. Os filmes dele (e dos demais diretores do ciclo) eram recebidos com reservas mesmo
antes de serem vistos, pelo simples fato de que eram realizados dentro de um sistema de pro-
dução fortemente interessado no lucro. Pouco importava que o cinema sempre tivesse sido
uma atividade tão industrial quanto artística. Os diretores do cinema “de arte” recebiam mais
atenção e respeito porque faziam filmes cuja preocupação com as finanças era menor. Mes-
mo relativizada, a recepção reservada atualmente pela crítica cultural aos produtos oriundos
da cultura de massa ainda segue esse princípio.

2.2 A ANÁLISE DA FORTUNA CRÍTICA

Primeiro pesquisador a examinar a fortuna crítica de Leone no período entre 1964 e


1978, Christopher Frayling afirma que a análise retrospectiva do discurso contido nos textos
mostra claramente a tendência à desvalorização prévia dos longas-metragens:

67
Quando os westerns de Leone (...) começaram a ser lançados internacionalmen-
te, foram invariavelmente destroçados pelos críticos. O argumento, repetido com
monótona regularidade, era o seguinte: devido ao fato de os westerns feitos em
Cinecittà não possuírem raízes culturais na história ou no folclore americano, não
passavam de imitações baratas e oportunistas. (FRAYLING, 1981, p. 121).

A compilação de Frayling incluiu, principalmente, textos publicados em revistas da


Inglaterra. A ela, acrescentamos críticas divulgadas nos Estados Unidos; um ensaio acadêmi-
co sobre o spaghetti western; opiniões de colegas contemporâneos de Leone sobre os filmes
dele; e todas as críticas de filmes de Leone publicadas na revista Cahiers du Cinéma – um
total de nove textos entre maio de 1965 e maio de 1972. A escolha dos Cahiers teve dois
critérios como base. Além de ser a principal publicação de referência entre cinéfilos e críticos
de todo o mundo, sobretudo na época em que Leone atou, a revista estava fora do recorte
analisado por Frayling.
A análise dessa fortuna crítica confirma apenas em parte, o relato de Frayling sobre a
existência de preconceito contra Leone. Esse preconceito parece estar efetivamente relacio-
nado à militância de Leone no cinema de gênero e, mais do que isso, à vinculação dele ao
ciclo popular italiano que era, então, encarado como mero subproduto, sem valor cultural.
O recuo proporcionado pelos anos nos permite enxergar, contudo, um processo gradual de
valoração positiva a que Leone foi submetido. Esse processo começou no final dos anos 1960
e continuou ao longo dos anos 1970. Frayling não foi capaz de identificá-lo.
Apesar de tudo isso, as conclusões a que Frayling chegou nos proporcionam um exce-
lente ponto de partida para a análise da fortuna crítica de Leone. Ele diz que os críticos cons-
truíram um repertório mais ou menos estável de argumentos, que apareciam, com variados
graus de ênfase, em praticamente todas as críticas:

Os filmes eram gratuitamente violentos, e seus personagens apresentavam uma


obsessão recorrente relacionada a dinheiro; as trilhas sonoras soavam em vo-
lume excessivo, e as letras eram indecifráveis; os orçamentos eram claramente
baixos, algo denunciado pelos cenários franzinos, por variações no processo de
coloração e por imperfeições técnicas no processamento de imagens pelo siste-
ma Techniscope; as atuações dos italianos eram toscas e histriônicas, e as dos
norte-americanos lacônicas, inexpressivas ou simplesmente inexistentes; em
resumo, o público era submetido ao mesmo tipo de hipérbole cinematográfica
barata e suja que havia se tornado marca registrada dos miniépicos “sandália e
espada” de Cinecittà. (FRAYLING, 1981, p. 121).

O trecho sintetiza o que os críticos pensavam sobre os filmes de Leone em meados


dos anos 1960. De início, é significativo notar um paradoxo. Embora o cinema de gênero
fosse encarado como menos importante, os críticos emitiam julgamentos de valor sobre os
spaghetti westerns baseados no grau de obediência aos esquemas que constituíam o reper-
tório do gênero em sua vertente americana (supostamente superior). Assim, se os diretores
italianos não replicavam os esquemas desenvolvidos nos Estados Unidos, isso tornava esses

68 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


filmes automaticamente inferiores àqueles. O raciocínio era claro: cineastas europeus esta-
vam mais interessados no lucro do que na criatividade. Muitos críticos percebiam que Leone
propunha uma revisão narrativa e estilística dos esquemas do western. Mas esse processo de
releitura crítica do gênero era desprezado.
A questão da violência representada de forma gráfica reaparece insistentemente nos tex-
tos dos anos 1960 – e com maior ênfase nas críticas publicadas nos Estados Unidos. Algumas
delas eram muito agressivas. No programa de TV Today Show, exibido rede NBC, Judith Crist
fazia resenhas curtas (também publicadas no guia semanal da emissora, e reunidas num livro em
1974). Ela foi uma das mais duras críticas de Por um Punhado de Dólares: “Essa porcaria de 99
minutos só serve para espectadores com pendor por lixo sangrento” (CRIST, 1974, p. 211). A
violência ofendia a moral puritana dos americanos; um filme a que exibisse não podia ser bom.
Em tom mais irônico, o influente crítico do The New York Times também condenou o recurso:

A grande novidade do filme é a quantidade abundante de episódios espetacu-


larmente violentos. Sergio Leone (...) o povoou com generosos respingos de
sangue, inclusive um homem gordo sendo esmagado por um barril, um pelotão
inteiro de soldados massacrados, e buracos de bala jorrando sangue. Por fim,
o anti-herói é espancado até virar uma massa sangrenta sem vida, da qual ele
milagrosamente se recupera para matar seus espancadores. (...) É notável que o
gringo esbelto que cavalga para San Miguel e virtualmente dizima a população
da área antes de ir embora não é, de maneira alguma, devotado à justiça ou a aju-
dar os bons contra os maus. Ele é um pistoleiro cínico e frio cujo único interesse
reside em se apropriar do que houver por lá de valioso. (CROWTHER, 1967).

O perfil do herói, como a violência representada com realismo gráfico, era uma revisão
estilística operada por Leone. Nos dois casos, inclusive, a rejeição de Hollywood tinha também
um limite cultural imposto aos diretores: o sistema de autocensura, criado para evitar boicotes
da parcela mais conservadora da população americana, representada por organizações como a
Liga Americana da Decência15. Num primeiro momento, essa revisão estilística foi interpretada
como uma violação dos princípios morais que permeavam os westerns americanos.
Um aspecto muito evocado pelos críticos dizia respeito à falta de acuidade histórica
da música dos spaghetti westerns, já que as canções dos pioneiros no século XIX pouco ou
nada tinham a ver com a música que se ouvia nesses filmes italianos. Ocorre que não era me-
nos verdade que a representação musical do Velho Oeste verdadeiro, oferecida pelos filmes
americanos, também nada tinha de realista.
Os vaqueiros que viajavam por estados como Texas e California no século XIX usa-
vam violino caipira e berimbau de boca. Instrumentos como violão, acordeão, piano e gaita,
que protagonizam os arranjos da maioria das canções ouvidas nos westerns norte-ameri-
canos, foram instrumentos introduzidos na cultura daquele país apenas na virada entre os
séculos XIX e XX, portanto num período posterior àquele em que está ambientada a ação
dramática da maior parte dos westerns (BERCHMANS, 2006, p. 75).
15 A National Legion of Decency foi fundada em 1933, por arcebispos da Igreja Católica, para com-
bater filmes que, na visão da população conservadora, incentivavam a corrupção moral dos jovens.

69
Alex Cox (2009) associa a estética da hiperviolência dos spaghetti westerns ao “am-
biente de violência arbitrária” (COX, 2009, p. 10) que a sociedade ocidental experimentava.
A segunda metade da década de 1960, convém lembrar, foi a época da política interven-
cionista norte-americana na América Latina e da repressão soviética a levantes na antiga
Tchecoslováquia; enquanto isso, “a televisão exibia documentários sem fim sobre as duas
guerras mundiais e notícias de última hora sobre o Vietnã” (COX, 2009, p. 10). O universo
ultraviolento e amoral dos spaghetti westerns podia ser lido, de certa forma, como um espe-
lho fraturado do ambiente sociocultural daqueles tempos:

Violência – arbitrária, do tipo que aparecia a qualquer instante do seu lado –


parecia ser a norma [na sociedade ocidental]. E quando uma série de filmes que
exalava uma atmosfera de violência arbitrária, incessante, insana, quase juvenil
apareceu, todos os jovens fomos fisgados – ainda mais considerando que os
filmes pareciam irritar o establishment cultural. (COX, 2009, p. 10).

Uma crítica minuciosa que sintetiza toda a argumentação negativa dos críticos pode
ser encontrada no longo ensaio de Eduardo Geada (1978) dedicado ao spaghetti western.
Pelo rigor da análise acadêmica escrita por Geada, que ultrapassa o caráter ligeiro dos textos
publicados nas revistas especializadas, o relato constitui um dos mais detalhados exemplos
do discurso depreciativo elaborado pela crítica em relação ao trabalho de Leone. Por isso, es-
colhi este estudo para analisar em profundidade a argumentação que desqualifica as práticas
narrativas e estilísticas de Leone.
O autor inicia o ensaio decretando que o spaghetti western é uma forma menor de
cinema, um “cinema oposto a qualquer mercadoria formal, um cinema de puro divertimento,
mercadoria rentável por excelência” (GEADA, 1978, p. 21). A definição de cinema “popu-
lar” (assim mesmo, entre aspas), que está no centro da crítica de Geada, é particularmente
expressiva de suas intenções depreciativas:

O cinema “popular” de grande consumo é, por definição e por exigências in-


dustriais óbvias, um cinema de estereótipos, isto é, um cinema industrial de
protótipos que são todos do mesmo tipo. (...) O que faz o sucesso renovado do
spaghetti western, como de qualquer outra variante do cinema dito popular, do
melodrama ao filme policial, é a repetição sistemática dos códigos, a utilização
exaustiva da mesma retórica visual e sonora, da estrutura narrativa instituída.
(GEADA, 1978, p. 21).

A análise de Geada usa a dicotomia gênero X autoria para proclamar a primeira cate-
goria como inferior. Ora, já vimos que o faroeste (assim como o thriller, o filme de horror,
o melodrama, a comédia, o musical e qualquer outro gênero fílmico) só funciona, junto à
audiência, quando a construção narrativa e estilística inclui certos elementos pinçados de um
repertório de convenções previamente conhecido pelo espectador.

70 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Muitos desses códigos são aquilo que Geada denomina, pejorativamente, de “estereó-
tipos” ou “protótipos”. Quando se refere a estereótipos, protótipos e tipos, o autor português
está usando um vocabulário oriundo da semiologia e referindo-se ao conjunto de códigos do
western. Mas ele usa os três termos como sinônimos, o que enfraquece sua análise. Apesar
de serem “palavras vizinhas” (CHATEAU, 2006), elas não devem ser confundidas, sob pena
de provocar um desvio considerável nas intenções originais do autor. Para evitar essa con-
fusão, é mais proveitoso trabalhar com definições específicas: “O estereótipo seria um tipo
estável ou fixo; o protótipo seria o primeiro exemplar que estabeleceria uma série de tipos;
e o arquétipo seria o tipo original ou a origem de um tipo” (CHATEAU, 2006). O autor nos
lembra que “essas definições não lhes retiram completamente a ambiguidade” (CHATEAU,
2006), mas será que Geada as utiliza com o rigor metodológico necessário?
É preciso lembrar que o cinema de gênero trabalha com muitos níveis de estereótipos,
e isso não é um procedimento intrinsecamente negativo. Buscombe (2004) nos lembra de
que um diretor que faz filmes de gênero não pode excluir todo o repertório de códigos deste
gênero. Quem pode imaginar um western cuja ação não se passe no oeste norte-americano?
Que não tenha caubóis, pistoleiros, cavalos e revólveres? Que não inclua na narrativa um
duelo ou tiroteio, ou pelo menos a expectativa de um episódio violento?
Geada demonstra ter perfeita consciência do processo de releitura crítica que Leone
levou a cabo em seus filmes. O último não se resumiu a replicar estereótipos. Ele revisou
os esquemas circulantes disponíveis, muitas vezes através de procedimentos narrativos e
estilísticos – por exemplo, o alusionismo e o pastiche – que só vieram se tornar estereótipos
depois de Leone.
Utilizando nove fotogramas retirados de filmes representativos do gênero (a maioria
dirigida por Leone), o português enumera nove “estereótipos” que considera fundamentais
para as práticas narrativas e estilísticas dos cineastas do spaghetti western. Ele as analisa
detidamente, com o objetivo de realizar uma “desconstrução ideológica do lugar-comum
cinematográfico” (GEADA, 1978, p. 22). Vale a pena discutir a interpretação negativa que
Geada faz desses procedimentos, além da associação entre cada ferramenta e a poética da
continuidade intensificada. Estes são os códigos:
(1) O herói individualista, acompanhado de um cavalo e uma pistola como extensões
do próprio corpo, habita o cenário clássico do western – o deserto –, que é mostrado em pou-
cas tomadas, e raramente em planos gerais, para evitar que o público reconheça no cenário
uma “autenticidade duvidosa” (GEADA, 1978, p. 22);
(2) A insistência com que os diretores do western europeu incluem cenas que se pas-
sam em saloons, abusando de enquadramentos “exóticos”, com uso frequente de câmera
subjetiva e com a presença maciça de jogadores profissionais nos cenários;
(3) O carinho especial que o herói demonstra para com sua arma, a partir da inclusão
de sequências em que este a limpa (o que Geada chama de “ritual de adoração”), bem como
o uso frequente de carabinas em lugar das pistolas;
(4) A presença de metralhadoras automáticas em vários filmes, embora essa arma de
guerra se tenha popularizado num período histórico posterior – especificamente durante a
Primeira Guerra Mundial (1914-1918) – ao recorte temporal em que a maioria dos westerns

71
italianos se desenrola. Geada vê a metralhadora como um instrumento narrativo inserido na
diegese sem qualquer razão narrativa ou justificativa histórica, apenas para justificar uma
violência de cunho mais espetacular;
(5) A multiplicação das situações violentas (duelos, emboscadas, lutas, assaltos etc.)
como forma de transformação de uma circunstância excepcional num momento cotidiano, de
forma que “a passagem do banal para o excepcional se efetue sem interrogações” (GEADA,
1978, p. 27) por parte do espectador;
(6) A alta frequência das cenas envolvendo lutas corporais, sem o uso de armas, como
forma de exaltar a superioridade física do herói, que sempre ganha esses embates;
(7) A pouca importância da mulher nos enredos dos filmes, a não ser como “ornamen-
to erótico que vem nos lembrar, eventualmente, o desejo e a virilidade do herói” (GEADA,
1978, p. 28);
(8) O deslocamento do duelo – momento culminante que quase sempre finaliza o en-
redo de um western norte-americano – para o início ou para o meio da ação dramática, o que
implica na “redução de todas as motivações da luta, sejam elas de caráter moral, social ou
político, a um combate individual” (GEADA, 1978, p. 30);
(9) Utilização do cenário revolucionário da fronteira mexicana, característico da ter-
ceira fase no spaghetti western, com a mera função de “fornecer ao filme um cenário exótico
de violência” (GEADA, 1978, p. 31).
A tese de Geada é a seguinte: os filmes do ciclo de spaghetti western oferecem ao
espectador uma experiência estética inferior à sua contraparte norte-americana, porque não
têm qualquer tipo de preocupação histórica, utilizam recursos de estilo e narrativa de modo
retórico e exagerado, com o intuito de bloquear o senso crítico do espectador e, assim, via-
bilizar o objetivo primário de seus diretores e produtores, que é o lucro financeiro. Ele tem
razão nessa argumentação? Vamos analisar os argumentos um a um.
O primeiro argumento insiste no fato de que o herói do spaghetti western está sempre
acompanhado de um cavalo e uma pistola. Cavalos e pistolas são “estereótipos” que vulga-
rizam o gênero. Geada parece esquecer que já era assim no western americano. Cavalos e
revólveres estão entre os códigos inescapáveis do western; fazem parte da iconografia carac-
terística do gênero, são elementos que inscrevem o filme dentro de sua categoria genérica.
Nos filmes de John Ford e Howard Hawks – diretores citados por Geada como exemplos
superiores do gênero – o herói sempre usou o cavalo como meio de transporte e carregou
pistolas.
Geada também afirma que os diretores de spaghetti westerns evitavam o uso de planos
gerais do deserto para evitar a questão da “autenticidade duvidosa” da paisagem. Ele não
leva em conta que a paisagem é diegeticamente justificada, já que a ação dramática mostrada
nesses filmes se situa quase sempre na fronteira entre Estados Unidos e México, em estados
como o Texas. Nesta região, a paisagem natural é parecida com o deserto espanhol.
O segundo argumento de Geada diz respeito à maciça quantidade de cenas que se
passam em saloons, associada às aparições frequentes de jogadores profissionais e ao uso da
câmera subjetiva. Geada acerta na descrição, mas oferece uma interpretação discutível. Ele

72 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


retém uma convenção de gênero e considera o uso exagerado dessa convenção como proce-
dimento estilístico desprezível. Nos westerns norte-americanos, como nos lembra Edward
Buscombe (2004, p. 307), o saloon também é um cenário recorrente; além disso, é quase
sempre mostrado como um ambiente hostil ao herói, em filmes como Minha Vontade é Lei
(Warlock, Edward Dmytryk, 1959), Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, Howard Hawks,
1959) e muitos outros.
Nesse último título vemos, também, um exemplo do uso da câmera subjetiva como recurso
de estilo que sugere ao espectador a presença de um vilão prestes a atacar. Esta foi uma ferramen-
ta desenvolvida por diretores associados ao film noir, nos anos 1940, e que passou a integrar os
esquemas cinematográficos em geral, extrapolando em muito o western. Até hoje, a utilização de
ângulos subjetivos sinaliza ao espectador a presença de alguém à espreita. A eficiência narrativa da
cena em que John Wayne e Dean Martin procuram um pistoleiro dentro de um saloon, em Onde
Começa o Inferno, depende fortemente desta função narrativa da câmera subjetiva. E o filme de
Howard Hawks é tido pelo próprio Geada como um dos melhores exemplares do western. O que
Leone fez foi simplesmente ampliar – ou melhor, intensificar – o uso do recurso.
O terceiro item de Geada diz respeito às armas. Este é outro código fundamental do
western americano (BUSCOMBE, 2004, p. 307). Toda a ação dramática de Winchester 73
(Anthony Mann, 1950), para citar apenas um exemplo, gira em torno de um exemplar do a
que se refere o título. Buscombe observa que a preocupação do herói com sua arma é die-
geticamente explicável, e tem ligação direta com o primeiro argumento de Geada: o herói
do western, que convive com a expectativa sempre próxima da violência, depende do bom
funcionamento da arma para permanecer vivo.
Nesse ponto, os filmes de Leone nos dão a oportunidade de examinar uma revisão estilís-
tica recorrente nele. Esse procedimento consistia em isolar um código específico do western e
explicitá-lo através de uma retórica inflamada, no limite da ostentação. Os heróis de Leone, de
fato, se preocupam com suas armas. O Coronel Mortimer de Por uns Dólares a Mais limpa o
arsenal de rifles e revólveres desmontáveis, que carrega consigo, todas as noites. Há duas longas
cenas que mostram pistoleiros limpando armas em Três Homens em Conflito. Ocorre que isso é
natural dentro do mundo hiperviolento habitado por esses personagens.
O terceiro item de Geada se confunde com o quarto, quando ele aponta o uso frequente de
carabinas e metralhadoras. Geada percebe uma das características centrais do spaghetti western,
que é a crescente mecanização do herói, o domínio que ele detém sobre a tecnologia – carac-
terística fundamental para estabelecer sua superioridade frente aos adversários. Ocorre que o
herói do faroeste italiano é amoral, violento e individualista e reflete um comportamento socio-
cultural cada vez mais comum na sociedade ocidental hedonista dos anos 1960. A mudança no
perfil do herói consiste em outra contribuição de Leone à continuidade intensificada.

O anjo vingador não está tentando provar que os vilões estão errados, salvar a
população ou resgatar a mocinha. Ele está lá tentando obter algum lucro pessoal;
como seria de se esperar, ele acaba recebendo sua recompensa, não um beijo ou
um aperto de mãos, mas uma sacola cheia de dólares ou uma caixa contendo um
tesouro. (BETTS, 1992, p. xii).

73
No caso do quinto item, é possível considerar que o procedimento narrativo de inserir
sequências de ação a cada intervalo de 10 minutos estava em consonância com o processo
de aceleração do ritmo dos filmes, em curso a partir do início dos anos 1960 em toda a ci-
nematografia ocidental. A média de duração de um plano, nos anos 1960, era de oito a onze
segundos (SALT, 2009, p. 280); esse número foi consistentemente acelerado ao longo das
décadas seguintes, até chegar a quatro segundos em 2003 (SALT, 2009, p. 378).
Ademais, esse processo de aceleração não passava apenas pela duração menor dos planos, já
que as próprias cenas, como um todo, também se tornaram mais curtas e movimentadas, durando
em média três minutos cada (BORDWELL, 2006, p. 57). Leone foi um dos diretores que iniciou
esse processo de aceleração da narrativa, depois tornado global, como diz o quinto item da relação
de Geada. Ele estava revisando a construção narrativa em larga escala, num processo que foi re-
tomado por muitos outros cineastas posteriores. Esse item inclui também o sexto item da relação.
O sétimo argumento é a pequena importância da figura feminina. Geada está correto.
Mas essa observação se aplica a todo o western, e não apenas aos filmes italianos:

Dentro dos filmes [de western] foi sempre assim: um pequeno cardápio de estereó-
tipos femininos (mãe, professora escolar, prostituta, dançarina de salão, rancheira,
índia, bandida) que não se equiparava à realidade. (BUSCOMBE, 1988, p. 240).

O penúltimo tópico da argumentação diz respeito ao deslocamento dos duelos, que


tradicionalmente ocorriam no final das películas, para o início ou o meio da ação dramática.
Geada deixa de perceber que um duelo no início do filme, do ponto de vista narrativo,
tem uma função dramática diferente de um duelo no final: o primeiro funciona como exposi-
ção (quem é o herói, qual a sua personalidade etc.), enquanto último tem a função de resolver
o conflito central da ação dramática. O filme que ele usa como exemplo, Era uma Vez no
Oeste, começa com um duelo (cuja função narrativa é apresentar o herói à audiência). Mas
o mesmo filme termina do modo tradicional, com outro duelo – um confronto clássico entre
herói e vilão. Ou seja, não se trata do deslocamento de uma cena dentro da estrutura narrati-
va, mas de um jogo intertextual com outros westerns: uma releitura crítica, uma revisão do
esquema (feita nesse caso através da chave da ironia e da paródia).
A conclusão final: Geada reclama de todas as alterações efetuadas nos esquemas nar-
rativos do western clássico. Ele parte do pressuposto segundo o qual um filme seria melhor
se seguisse rigidamente os esquemas dominantes do gênero. Essa asserção contradiz um
dos pressupostos do autorismo, segundo o qual o estilo é a maneira de o cineasta inscrever
elementos autorais dentro de um filme de gênero.
Então, se usarmos o autorismo como eixo teórico para ler criticamente a argumen-
tação de Geada, a maioria dos argumentos elencados para desvalorizar o spaghetti western
podem ser invertidos, passando a atribuir ao ciclo valor positivo, já que, ao operar um jogo
intertextual com os esquemas narrativos do western, revisando-os (quase sempre em direção
à continuidade intensificada), Leone e outros diretores italianos estariam inscrevendo marcas
autorais dentro do gênero, através da releitura crítica. Mas Geada, preocupado em provar que
o spaghetti western tem menos valor do que o americano, perde o raciocínio de vista.

74 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Por fim, o nono argumento diz respeito ao uso do cenário histórico da Revolução
Mexicana como cenário de vários filmes do ciclo italiano, inclusive Quando Explode a Vin-
gança, de Leone. Novamente, se a descrição de Eduardo Geada corresponde à realidade, sua
interpretação dela – a noção de que a Revolução Mexicana é irrelevante para os enredos dos
filmes, fornecendo somente um pano de fundo exótico para a ação violenta dos personagens
arquetípicos do ciclo – nos parece fortemente tendenciosa.
Já vimos antes que toda uma vertente politico-ideológica do ciclo popular italiano nas-
ceu do envolvimento de roteiristas e diretores filiados ao Partido Comunista. Para roteiristas
engajados como Franco Solinas – escritor de filmes políticos como A Batalha de Argel (La
Battaglia di Algeri, Gillo Pontecorvo, 1966) –, ambientar a ação dramática no cenário da
Revolução Mexicana era muito mais do que fornecer um cenário exótico para um western
popular. Esses diretores queriam contrabandear temas políticos para dentro de filmes com
grande alcance popular.

2.3 CINEASTAS, INTELECTUAIS E OS CAHIERS DU CINÉMA

Alguns cineastas (inclusive americanos) e intelectuais oriundos da literatura também


escreveram sobre o spaghetti western, oferecendo abordagens diferentes em relação à obra
de Sergio Leone. Depois de assistir a Por uns Dólares a Mais, o veterano Anthony Mann
invocou o argumento da falta de raízes culturais para criticar o cinema de Leone. Para Mann,
o filme “esquecia do verdadeiro espírito do Velho Oeste”:

Nós [diretores norte-americanos] contamos histórias de homens simples, não de


assassinos profissionais; homens simples, levados à violência pelas circunstân-
cias. Num bom western, os personagens têm uma trajetória com começo, meio
e fim. Eles lutam pela vida no decorrer dessa trajetória. Já os personagens de
Por uns Dólares a Mais encontram apenas o lado negro da vida ao longo do
caminho. Homens maus, grotescos. Meu Deus, e aqueles rostos?! Um ou dois
close-ups tudo bem, mas 24?! É demais! Os tiroteios a cada cinco minutos reve-
lam o medo do diretor de entediar a plateia, porque elas não têm um personagem
consistente a seguir. Numa ficção, você não pode incluir mais do que cinco ou
seis minutos de suspense, pois o diagrama de emoções deve ser crescente, não
essa narrativa que parece o eletrocardiograma de um doente cardíaco. (MANN
apud WAGSTAFF, 1992, p. 245).

A crítica de Mann talvez seja a mais lúcida de todos os impropérios dirigidos a Leone
no período. Ele combina, num trecho relativamente curto, ataques ao tratamento que Leone
deu às três vertentes da poética do cinema. Na temática, Mann rejeita o perfil individualista
e violento dos heróis do spaghetti western, criticando a amoralidade da caracterização psi-
cológica dos personagens. Na construção narrativa, ele cria a metáfora do eletrocardiograma
para sugerir que o ritmo acelerado do filme era prejudicial à narrativa. E na prática estilística,
condena o uso abundante dos close-ups extremos.

75
Apesar da crítica lúcida, é fácil identificar o que incomodava Mann: as ferramentas
que ele rejeita consistem em recursos de estilo que revisavam os esquemas dominantes da
prática cinematográfica. Esses recursos faziam a técnica chamar a atenção para si, indo na
contramão do princípio da invisibilidade do estilo que caracterizava a poética da continui-
dade clássica, e que era importante para os diretores que emergiram antes dos anos 1950.
De todo modo, as alterações na poética do cinema estavam acompanhando mudanças
que ocorriam em todo o contexto sociocultural do ocidente, o que incluía outras artes narra-
tivas. Em artigo de 1972, Simone de Beauvoir usou Três Homens em Conflito para ilustrar
uma diferença que ela via entre o cinema e a literatura dos anos 1960, e que diz respeito à
mesma mudança de paradigmas socioculturais:

Alguns filmes de aventura me mantêm em suspense – alguns westerns, por


exemplo, inclusive italianos, como Três Homens em Conflito. Histórias que
normalmente pareceriam caricatas se fossem contadas por escrito conseguem
encantar na tela. Há um estranho deslocamento (...) entre a evidência imediata
daquilo que vemos e a improbabilidade dos fatos. Se um diretor usa esse des-
locamento de forma inteligente, pode produzir os mais deliciosos efeitos. Esta
é a base do humor do faroeste italiano. Mas só funciona quando feito de forma
inteligente. (BEAUVOIR apud FRAYLING, 2005, p. 129).

Ironicamente, ela deixa escapar o preconceito que havia contra o ciclo. A expressão
“inclusive italianos” soa quase como um pedido de desculpas pelo elogio involuntário, jus-
tapondo a essa ideia a noção de que o western americano era superior. Outro intelectual a
se manifestar sobre Leone foi Alberto Moravia. Em janeiro de 1967, Moravia escreveu um
artigo analisando a questão das raízes culturais do spaghetti western. Ele propunha uma ex-
plicação cultural para o fenômeno:

Não existe Velho Oeste na Itália, nem caubóis, nem bandidos na fronteira; ou melhor,
não existe esse tipo de fronteira, nem índios e nem pioneiros. O faroeste italiano não
nasceu da memória ancestral, mas do instinto nostálgico de cineastas que, quando jo-
vens, estabeleceram uma relação de amor com o western norte-americano. Em outras
palavras, o western de Hollywood nasceu de um mito; o italiano teve origem no mito
sobre um mito. (MORAVIA apud FRAYLING, 2000, p. 118).

O raciocínio de Moravia é compatível com o do próprio Leone, que dizia amar não o
western histórico, mas sua representação cinematográfica: “Para mim era possível abordar
o western com distanciamento, de um ponto de vista europeu, sem deixar de ser um cinéfilo
amante de westerns” (LEONE, 2005, p. 73).
Essa postura curiosa diante dos spaghetti westerns está relacionada às críticas que
iniciaram a gradual revalorização dos filmes de Leone. Desde essa época, porém, o que se
enxergava de positivo não estava tanto nos filmes em si, mas no suposto caráter de resistência
cultural que o spaghetti western exercia, sem que seus diretores tivessem consciência disso.

76 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


No que toca às práticas narrativas e estilísticas, Moravia não estava convencido das qualida-
des desses filmes, mesmo sem condená-los a priori:

Os personagens principais são delinquentes comuns que estiveram no pano de


fundo dos filmes norte-americanos, e que nos italianos invadiram o cenário para
se tornar protagonistas. Esses misantropos, caçadores de recompensa e trapa-
ceiros contrastam radicalmente com os grandes cenários e os tons épicos do
gênero western. Quando vê tudo isso, você acaba se perguntando: essas histórias
existem por quê? Apenas por causa de um punhado de dólares? Não existe algo
mais por trás? (MORAVIA apud FRAYLING, 2000, p. 118).

Embora os artigos de Moravia e Beauvoir sejam sintomáticos de uma mudança gra-


dual no discurso da crítica em relação ao cinema de Sergio Leone, a trajetória dessa mudança
pode ser rastreada com precisão quando se analisa a progressão cronológica dos textos sobre
os filmes dele publicados pela revista Cahiers du Cinéma, a Bíblia dos cinéfilos de todo o
mundo naquela época. Entre maio de 1965 e maio de 1972, a revista dedicou nove textos à
análise de cinco dos westerns de Leone.
O espaço editorial cada vez maior oferecido a essas críticas demonstra a atenção cres-
cente dedicada aos filmes. A primeira resenha, publicada no número 166, em seguida ao
lançamento europeu de Por uns Dólares a Mais, sequer merece ser chamada de crítica, pois
consiste de um único parágrafo que contém a ficha técnica do filme e uma sentença solitária e
desinteressada, que não contém nenhum tipo de análise estilística ou narrativa, resumindo-se
a decretar que se trata de uma “tentativa de repetir o sucesso de Por um Punhado de Dólares”
(MARDORE, 1965, p. 73). Nas entrelinhas, o texto sugere que os objetivos de Leone eram
puramente comerciais. É preciso observar, também, que o primeiro western dele, feito um
ano antes, havia sido ignorado pelos Cahiers.
O sucesso de Por uns Dólares a Mais levou à necessidade de que os Cahiers criticas-
sem o filme. Assim, o número 176 (março de 1966) trouxe um texto sobre ele. O artigo em
si não fala apenas do cinema de Leone; reúne quatro longas-metragens italianos e analisa-os,
um de cada vez, sob o pretexto de sintetizar a produção recente do país. Um parágrafo é
dedicado ao filme de Leone, que o crítico Jacques Bontemps considera “menos ruim” do que
o anterior. Bontemps desvaloriza o trabalho de direção, considerando como defeitos alguns
recursos de estilo que, anos depois, podem perfeitamente ser interpretados de forma inverti-
da: “Leone não tem critério nas composições visuais, os atores são histriônicos, a ação física
é ampliada ao máximo e os assassinatos numerosos a signos acabam reduzidos a signos sem
qualquer carga afetiva”. O decreto final diz que Por uns Dólares a Mais não passa de um
“buquê de flores artificiais” (BONTEMPS, 1966a, p. 12).
O texto sintetiza os mesmos argumentos detalhados anos mais tarde no texto mais
minucioso de Eduardo Geada. Bontemps classifica Leone como diretor “barroco” (é a pri-
meira de três menções feitas nos Cahiers ao estilo artístico que floresceu no século XVII,
relacionando-o ao trabalho de Leone), seguindo um clichê da época – Georges Sadoul havia
escrito pouco antes, em seu Dicionário de Cineastas, que Leone fazia jus à “tradição barroca

77
italiana” (SADOUL, 1979, p. 184). No texto dos Cahiers, essa classificação aparece asso-
ciada à metáfora das flores artificiais, e sugere que no filme há um gosto pelo exagero, um
predomínio da forma em relação ao conteúdo. Contraditoriamente, esse suposto barroquismo
assinala o único aspecto digno do (pouco) interesse que Bontemps encontra no filme:

O excesso a única possibilidade de um western europeu existir sem ser insuportável,


se fazendo exercício de estilo barroco e decadente num gênero que só está presente
pela ausência nostalgicamente sentida: o western. (BONTEMPS, 1966a, p. 12).

Para não deixar passar em branco o primeiro western de Leone, o número seguinte da
revista (nº 177, abril de 1966) retornou a Por um Punhado de Dólares, em crítica de um pará-
grafo. O texto do mesmo Jacques Bontemps recontextualiza o filme negativamente, calcado
na ideia da representação espetacular da violência:

Claramente superior a todos os demais westerns europeus, o que não significa,


de jeito nenhum, que tenha o menor interesse, já que se há alguém convencido da
pretensão da empreitada é o próprio Sergio Leone. Um desencanto total, portanto,
e uma violência exacerbada demais para ser eficaz (BONTEMPS, 1966b, p. 81).

No número 184 (novembro de 1965), Patrick Brion retornou a Por uns Dólares a
Mais, reafirmando alguns dos argumentos de Bontemps, como a suposta qualidade superior
de Leone em relação aos demais cineastas do spaghetti western (“sua austeridade o sobressai
do resto dos subprodutos do western hispano-italiano”). Como de hábito, a representação
gráfica da violência incomodava (“os assassinatos se sucedem invariavelmente, sem qual-
quer motivação psicológica”) e era responsável, na visão de Brion, pela suposta “degeneres-
cência do gênero”.
Ironicamente, nos dois últimos casos, os elogios têm relação direta com o que Brion
chama de “floreios barrocos”, e que podemos associar às preocupações formais: as composi-
ções pictóricas, os close-ups extremos, o desenho sonoro e principalmente o caráter irônico,
presente no alusionismo e que podemos associar à influência das tradições italianas da com-
media dell’arte. Exatamente os mesmos recursos que Jacques Bontemps havia criticado de
forma enfática no primeiro texto dedicado pela revista a Leone.
Ainda que a crítica de Patrick Brion esteja longe de ser positiva, é possível notar que o
eixo principal do texto está no mesmo fenômeno estilístico notado por Jacques Bontemps – a
tendência de Leone à revisão intensificada de certos recursos formais, que ambos associam a
um suposto exibicionismo “barroco”.
Depois de demorar a publicar as críticas dos dois primeiros westerns de Leone, os
Cahiers du Cinéma foram rápidos em analisar Três Homens em Conflito. O longa-metragem
foi lançado na França em 8 de março de 1968; o texto escrito por Sylvie Pierre apareceu no
número 200 da revista, no mês seguinte. A rapidez do processo de edição era um sinal claro
de que a carreira de Leone agora estava sendo acompanhada com mais atenção pela revista.

78 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Sylvie Pierre observa que Leone levava a cabo, ao contar a odisseia dos três vagabun-
dos por dentro de um território em guerra – que “não é nada além de um olhar europeu sobre
a guerra de trincheiras de 1914, não desejando ser um panfleto antimilitarista” – atrás de um
tesouro enterrado, “uma operação apaixonante” (PIERRE, 1968, p. 124).
Pierre registra procedimentos estilísticos recorrentes dentro do filme, como a tendên-
cia de Leone para os jogos com a entrada e a saída abrupta de personagens dentro do espaço
fílmico (ela se refere muitas vezes ao recurso que denominarei, mais à frente, de trompe
l’oeil cinematográfico), introduzindo a irrupção abrupta de uma figura dentro de uma paisa-
gem, ou vice-versa. Também destaca a verossimilhança dos acessórios utilizados por Leone,
evocando o realismo grotesco dos cenários e figurinos.
Apesar de o texto de Sylvie Pierre ser o primeiro a analisar mais detidamente recur-
sos de estilo, em nenhum lugar existe menção ao pertencimento do filme ao ciclo popular
italiano, que em 1968 estava, como já vimos, no momento mais numeroso e criativo de sua
trajetória. Para elogiar Leone, Pierre precisou destacá-lo desse ciclo.
Pois é exatamente o contrário desse pressuposto que se pode ler na sexta crítica sobre
Leone publicada nos Cahiers du Cinéma. A pretexto de comentar Era uma Vez no Oeste,
Serge Daney escreveu o texto mais significativo de todos os que se pode ler a respeito de
Leone nos Cahiers. A resenha foi publicada no número 216 (outubro de 1969).
A crítica de Daney é o texto que resolve melhor as ambiguidades sentidas nas resenhas
da revista. Os críticos estavam sempre prontos a decretar o spaghetti western como intrinse-
camente inferior ao western americano, embora conseguissem enxergar elementos dignos de
interesse no trabalho de Leone. A questão é que, até o texto de Daney, nenhum crítico havia
explicado claramente o que seria esse algo interessante. Daney foi o primeiro a explicitá-lo:
era o caráter de releitura crítica que Leone oferecia ao repertório do western tradicional, o
esforço para elaborar uma variação do esquema tradicional do gênero. Só que Daney não
comentou esse esforço a partir de uma análise estilística. Sua abordagem foi condizente com
a fase maoísta-esquerdista que os Cahiers viviam na época.
Daney pouco se demorou na discussão sobre o filme em si (“marca o apogeu e talvez
o colapso do ciclo”, afirmou, em uma sentença que se revelaria quase premonitória, pelo
menos a respeito de Leone), deixando-o de lado para se concentrar em defender a agenda
política do spaghetti western, e articulando-a com o processo de releitura crítica do gênero,
através de uma operação contínua de desconstrução do repertório de convenções:

Eles [os filmes de Sergio Leone] constituem a primeira tentativa, embora pou-
co consequente, de cinema crítico, ou seja, não mais em confronto direto com
a realidade (mesmo que às vezes o recurso à verdade histórica – que Leone
conhece bem – tenha um valor estratégico), mas com um gênero, uma tradição
cinematográfica, a única que conheceu uma difusão mundial: o western. Não é
pouca coisa. (DANEY, 1969, p. 64).

O texto de Daney é paradigmático, antecipando o resgate posterior que se faria do cinema


de Leone. Sem negar em nenhum instante o caráter popular – inclusive no modo industrial de

79
produção em série – dos spaghetti westerns, Daney critica os rumos que o western americano
havia tomado na década de 1950, com uma tendência supostamente excessiva de psicologizar
os personagens (“senso crítico, mas não cinema crítico”, diz, avançando um argumento que já
podia ser encontrado nos escritos de André Bazin sobre o western), e avaliza um cinema que lhe
parecia crítico do próprio cinema.
Em que pese o uso exagerado da terminologia marxista, é possível perceber que
o argumento de Daney consiste numa elaboração mais profunda e detalhada das ideias
lançadas antes por Alberto Moravia – o spaghetti western não consiste na elegia de um
mito, mas sim na elaboração de um mito acerca de outro mito – somada à noção de que
a revitalização dos filmes de gênero só podia ser realizada de fora. As “origens vis e bai-
xamente comerciais” (DANEY, 1969, p. 64) do ciclo italiano são, para ele, um aspecto
positivo do spaghetti western.
A expressão entre aspas talvez seja o trecho mais significativo do texto de Daney. Ela
denota claramente a linha de raciocínio que seria seguida por praticamente todos os críticos
ao longo do processo de revalorização da obra de Leone nos anos 1970: a importância do
spaghetti western não estava nos recursos de estilo, nem mesmo na fruição estética que os fil-
mes proporcionavam. O ciclo popular italiano era importante na medida em que representava
uma tentativa crítica de resistência cultural ao domínio norte-americano, desconstruindo-o
de dentro para fora.

Admitamos que em alguns países onde o cinema constitui uma indústria robus-
ta, o cinema B delimita uma espécie de lúmpen-cinema (cinema do lúmpen-pro-
letariado), bom de qualquer modo para fazer a máquina girar, amado de forma
esnobe e contraditória (em uma espécie de cinefilia “operária”) não podendo
aspirar à qualidade, nem mesmo à consciência clara dos elementos (temas, si-
tuações) que ele ilustra porque esta (a consciência) é reservada aos filmes de
qualidade. (DANEY, 1969, p. 64).

Essa passagem reforça o argumento central do texto. Centrando a argumentação na


primeira vertente da poética do cinema, Daney sugere que o spaghetti western não poderia
aspirar à qualidade do western americano, por ser uma cópia; ou seja, apesar de valorizar o
ciclo, o coloca num patamar inferior ao ocupado por “filmes de qualidade”. Em outras pala-
vras, os filmes de Leone só são bons na medida em que incitam à resistência cultural; mas,
de um ponto de vista estilístico, não têm nada de novo a oferecer.
Uma vez estabelecidos os contextos cultural e político em que se localiza a obra de
Leone, Daney analisa a utilização formal de esquemas do western. E afirma como caracterís-
tica mais importante deste procedimento o uso do pastiche como uma forma de explicitação
da cinefilia, do conhecimento e da paixão por filmes. Este uso do pastiche não se dá apenas
por uma questão de sensibilidade estética exagerada (embora esse argumento também esteja
lá), mas também por uma estratégia crítica:

80 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


[O pastiche] consiste ora em mostrar o que o western clássico ocultava, ora
a exagerar o este mostrava. A força dos filmes de Leone está em extenuar a
retórica habitual do western, em fazer do excesso de oferta o equivalente de
uma negação. Em relação a isso, seria interessante mostrar como ao western
convencional (...) Leone opõe uma sequência ininterrupta de tempos fortes que
se anulam reciprocamente: ao máximo de intensidade corresponde um mínimo
de sentido. (DANEY, 1969, p. 64).

Esse trecho é significativo. Após identificar a prática do pastiche e atribuir a ela uma
crítica à ideologia do gênero, Daney enxerga o alusionismo como sintoma de procedimentos
narrativos e estilísticos em direção à poética da continuidade intensificada. Ele está falando
dos “floreios barrocos” a que outros críticos se referiram, atribuindo a eles um lado positivo
(trazia consigo uma postura crítica) e outro negativo (provocava desequilíbrio entre forma e
conteúdo, com ênfase no primeiro item). Quando se refere a uma “sequência ininterrupta de
tempos fortes”, e obviamente sem usar o termo (que só seria criado décadas depois), Daney
está se referindo à continuidade intensificada. No final do texto, ele retoma o raciocínio de-
senvolvido no início; reconhece que quase não tratou do filme, mas se coloca na contramão
da corrente principal de críticos que não enxergavam valor na obra de Leone, observando que
sua prática intensificada em estilo e narrativa nada tinha de gratuita, e que era preciso dedicar
mais atenção aos seus filmes (algo que ele próprio, sintomaticamente, não faz).
A análise das críticas subsequentes publicadas nos Cahiers sobre filmes de Leone
mostra o quanto o texto de Daney foi determinante para o surgimento de um padrão um pou-
co mais favorável na recepção dos críticos, daquele momento em diante. Esse contexto fica
evidente já a partir do destaque editorial dado à crítica de Sylvie Pierre sobre o mesmo filme,
publicada no número 218 (março de 1970).
O texto não apenas cita diretamente o texto de Daney, mas procura desenvolver aspec-
tos do raciocínio dele. E, para isso, minimiza as observações a respeito das práticas estilísti-
cas e narrativas de Leone, concentrando-se na agenda política supostamente defendida pelo
filme (ou, pelo menos, investindo na mesma leitura ideológica que Daney havia feito). Antes
de falar qualquer coisa sobre o filme, Pierre realiza uma longa argumentação a respeito das
conexões culturais entre o western norte-americano e sua contraparte italiana:

O western não é nada além de um traço da ideologia sobre a história norte-


-americana, aquela inventando esta, pelo viés da mitologia, e de uma espécie
de justificativa moral. (...). Leone, e com ele todo o western italiano, tomam
emprestado a retórica ao western americano, mas fazem isso ao desenraizar a
comodidade de um sistema já completamente constituído de figuras que, não
tendo mais que se justificar em sua relação com o real, podem funcionar li-
vremente, isto é, de modo gratuito. O empréstimo não é pequeno; ele é feito
através de nada menos do que uma concessão, uma espécie de salto para fora da
história. (PIERRE, 1970, p. 54).

81
Quando se refere à retórica, ela faz questão de definir o conceito: trata-se do conjunto
de recursos de estilo que compõem os esquemas do western americano. Nesse ponto, Pierre
ignora o processo de revisão crítica desses esquemas levado a cabo por Leone, sugerindo que
os filmes não passam de “variações combinatórias” desses recursos.
Depois, num longo trecho que ocupa quase metade da crítica, ela se volta para o filme,
observando a preocupação com a acuidade histórica e citando como exemplo a reconstituição
minuciosa da cidade, das estações de trem e do saloons. Ela circunscreve um traço estilístico
que se tornaria, à frente, recurso importante da poética da continuidade intensificada:

Compreende-se muito claramente porque os westerns míticos de Cecil B. de Mil-


le, Ford ou Mann não tinham que se preocupar em ser documentários, sendo eles
mesmos documentos – documentos ideológicos americanos, imagens de um povo se
olhando no espelho. O western de Leone, embora fantasioso, tende paradoxalmente
à exatidão. Porque ele não se inventa de uma ciência difusa; é preciso que ele nasça
de certo saber, que só será arqueológico sendo monumental. (PIERRE, 1970, p. 54).

Na argumentação, Sylvie Pierre cerca o filme sem mergulhar nele. O cerne da análise
está na leitura ideológica do trabalho de Leone; uma leitura claramente devedora a Daney.
Antes de encerrar o texto, Pierre ainda nota o uso abundante do alusionismo dentro da trama
do filme, antecipando em muitos anos a definição que Noël Carroll (1998) faria do concei-
to – uma narrativa em camadas sobrepostas, em que o público amplo entende a trama e um
grupo menor, formado por cinéfilos, recebe piscadelas para um gozo estético privilegiado:

Tudo é permitido, desde que a cada instante o cinema funcione e se veja fun-
cionar. O resultado é de um narcisismo cinematográfico evidente. (...) O jogo
duplo que poderia parecer no início duvidoso, entre a eficácia e a contemplação,
tem de um lado o cinismo do saber fazer e a política comercial que assegura o
grande público; e do outro, o fato de que pisca o olho para os intelectuais, com
todas as êxtases estéticas permitidas. (PIERRE, 1970, p. 55).

A leitura marxista de Pierre a leva a julgar como negativo o recurso estilístico do alu-
sionismo (que até então, note-se, não havia sido citado por nenhum outro crítico dos Cahie-
rs); no momento em que Leone “pisca o olho para os intelectuais”, seu cinema perde parte do
caráter de resistência que forma, para os redatores dos Cahiers, a peça central de seus filmes.
Na conclusão do texto, no entanto, Pierre relativiza essa leitura, instituindo uma ambiguidade
característica dos textos dos Cahiers daquele período:

Sobre esse jogo duplo, não podemos insistir demais que ele seja apenas retórico,
reinscrevendo o filme na nossa história – a saber, a história de uma consciên-
cia pequeno-burguesa, infeliz, separada do real, e que se refugia na arte. Não
totalmente refugiada, no entanto, porque tendo sido denunciado esse refúgio na
vaidade, Leone não se instala nele. (PIERRE, 1970, p. 55).

82 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


O próximo filme de Leone, Quando Explode a Vingança, ganhou resenha nos Cahiers
no número 238 (maio de 1972). Foi um texto curto, retornando ao padrão de ficha técnica e
comentário rápido, dentro da seção Notas Críticas. Mais uma vez citando o texto de 1969 de
Daney, Pierre Baudry inicia a crítica colocando uma questão pertinente e importante:

Poderíamos até recentemente questionar o lugar dos filmes de Leone no spaghet-


ti western. (...) Para retomar a ideia de Daney (Cahiers nº 216), os westerns de
Leone são agora críticos, e não somente em relação ao cinema americano, mas
também em relação ao lúmpem-cinema italiano. (BAUDRY, 1972, p. 93).

Embora essa observação nos pareça fundamental, Baudry não se alonga nela (talvez
por falta de espaço). Ele procura justificá-la apontando uma alteração que os filmes de Leone
realizam na estrutura narrativa do western (seja ele americano ou italiano) – um deslocamen-
to operado na segunda vertente da poética do cinema:

Longe de retomar a linearidade dos encadeamentos ficcionais do cinema de


aventura e do western clássicos, os filmes de Leone, sobretudo depois de Três
Homens em Conflito, se organiza como uma série de esquetes, uma sucessão de
momentos fortes. (BAUDRY, 1972, p. 94).

A partir daí, Baudry envereda por uma leitura psicanalítica do filme, observando que
“nada chama a mais a atenção do que o desejo dos personagens”. Chama a atenção, no texto
de Baudry, a mudança da abordagem teórica. A orientação marxista ainda está lá, mas per-
cebe-se uma nova tendência à leitura psicanalítica, certamente influência da popularidade de
Lacan e Metz na teoria francesa de cinema dos anos 1970. Essa guinada em direção à psica-
nálise torna-se explícita na próxima crítica de um filme de Leone a aparecer nos Cahiers du
Cinéma: o texto de Michel Chion publicado no número 359 (maio de 1984, mesmo mês do
lançamento do filme na França) sobre Era uma Vez na América.
A diferença de abordagens fica mais flagrante devido ao período de 12 anos que se
passou entre as duas críticas (nesse período, Leone não lançou nenhum longa-metragem). O
processo de revalorização positiva dos filmes, contudo, continuou acontecendo. Isto fica evi-
dente quando se observa o destaque editorial dado a Era uma Vez na América. A publicação
dedicou capa, editorial, entrevista e crítica ao filme, incluindo ainda um artigo escrito pelo
próprio diretor. Tudo isso compôs um dossiê de 16 páginas.
Chion retoma e atualiza a argumentação lançada no texto de Serge Daney, embora sem
citá-lo diretamente. A ideia de um cinema popular de resistência cultural não é mais, na dé-
cada de 1980, suficiente para explicar o sucesso – e nem a qualidade – dos filmes de Leone.
Então, recorre novamente à ópera para dar o salto que lhe permite elogiar o filme:

Não é mais suficiente, para Leone, o procedimento de criticar o cinema ame-


ricano para poder existir como contestação. (...) Aqui, é a aparência que faz a

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diferença. É uma questão de forma, estilo e tom operístico. E em matéria de
ópera, Sergio Leone está em casa. (CHION, 1984, p. 11).

Insistindo na leitura psicanalítica, Chion faz referência à construção não cronológica


do enredo (característica da continuidade intensificada), observando que esta é mais intrin-
cada, sofisticada e complexa do que o jogo com os flashbacks apresentado em qualquer
filme anterior de Leone. Desta feita, Chion avalia que essa estrutura não usa os momentos
do passado como chave para a resolução de um trauma obsessivo, mas permanece vazia de
significado, sem levar a lugar nenhum – ou seja, é pura retórica. Implicitamente, a ideia do
efeito de ostentação, do “barroquismo”, aparece mais uma vez:

O que apaixona no filme, além do domínio da técnica, são as contradições. Entre


a reconstituição histórica e o caráter mítico da trama, entre a abundância de de-
talhes da infância e o apagamento das figuras paternas, entre o estilo de encena-
ção operístico e a integração de elementos instáveis e imprevisíveis como o jogo
cronológico, entre muitos formidáveis atores além do genial De Niro, o grande
ponto positivo é que o filme permanece aberto, suscetível ao enriquecimento
aditivo. (CHION, 1984, p. 13).

Analisadas em progressão, as críticas publicadas pelos Cahiers do Cinéma entre 1965


e 1984 funcionam como um microcosmo consistente da trajetória gradual como a crítica
lidou com os filmes de Leone. O desprezo com que eram recebidos seus primeiros westerns
deu lugar, lenta e gradativamente, a uma dose considerável respeito crítico.
No entanto, esse respeito não foi conquistado pelas práticas estilísticas e narrativas de
Leone, mas pelo suposto ato de resistência cultural a Hollywood que seus filmes represen-
tavam. Essa resistência não partia de uma atitude criativa consciente; não estava inscrita nos
filmes (e o fato de o próprio Leone ter dificuldade em reconhecê-la comprova isso). Portan-
to, a contribuição dele ao repertório da continuidade intensificada, através da instituição de
processos de revisão dos esquemas dominantes do cinema de gênero, foi sistematicamente
minimizada. É essa contribuição que tentarei detalhar, analisando os filmes cuidadosamente,
nos próximos capítulos.

84 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


3. PRÁTICAS NARRATIVAS DE LEONE

3.1 A NARRAÇÃO NA POÉTICA DO CINEMA

Em 1968, depois de assistir a Era uma Vez no Oeste em Paris, Jean Baudrillard decre-
tou Leone como “o primeiro cineasta pós-moderno” (BAUDRILLARD apud FRAYLING,
2005, p. 17). Isso aconteceu antes de a condição pós-moderna (LYOTARD, 1998) começar
a ser debatida em suas relações com a produção audiovisual da sociedade (HARVEY, 1989;
JAMESON, 1991; CONNOR, 1993). Mas o que exatamente Baudrillard tinha visto no filme
para fazer tal declaração?
Aplicando as características centrais do pós-modernismo ao cinema, Laurent Jullier e
Michel Marie (2009, p. 214-215) procuraram sintetizar da seguinte maneira o que chamam
de “cinema de terceiro grau”: nostalgia, ironia, paródia e autoconsciência sobre a índole
ficcional das narrativas, muitas vezes expressa por uma retórica do exagero; despreocupação
com teses éticas ou sociais, substituída pela relativização das questões morais e pela lógica
do espetáculo; representações mais realistas da violência e do sexo; retorno às regras clássi-
cas quando necessário e formulação de inovações formais apenas quando (e se) desejado; uso
deliberado e generoso do pastiche (que eles chamam de “piscadelas”).
Em maior ou menor grau, todas essas características podem ser encontradas nos filmes
de Leone. Nesse sentido, o ponto mais importante do uso de todos esses recursos está na
aplicação do paradigma do problema/solução de Bordwell aos spaghetti westerns. Podemos
ver como Leone trabalhou dentro de uma tradição, revisando-a e atualizando-a – e, mais im-
portante, intensificando-a – sem necessariamente desafiá-la. Em outras palavras: a aparição e
o desenvolvimento de características associadas ao pós-modernismo constituem um processo
de revisão de esquemas clássicos dominantes, que se coaduna perfeitamente com a poética
da continuidade intensificada.
Esse raciocínio torna possível argumentar que algumas das escolhas estilísticas e nar-
rativas efetuadas por Leone foram efetivamente influenciadas por uma sensibilidade pós-mo-
derna latente na Europa dos anos 1960. Se aceitarmos essa hipótese, poderemos compreender
que as características pós-modernas encontradas em Leone acabaram inscritas nos filmes
pelo que Bordwell chama de pré-condições de estilo; foi dessa forma que o contexto socio-
cultural influenciou Leone a fazer escolhas estilísticas que revisavam de maneira extravagan-
te os esquemas circulantes do cinema de gênero.
Voltemos a Baudrillard. A declaração dele se referia, principalmente, ao uso abundan-
te do alusionismo, então um recurso usado com discrição pelos cineastas. Baudrillard se refe-
re especialmente ao pastiche: “Um tipo de imitação que você sabe ser uma imitação” (DYER,
2007, p. 1). De fato, o gosto pela citação é um dos mais proeminentes recursos narrativos de
Leone, embora seja importante assinalar que a estratégia de citar obras anteriores, para ele,
obedeceu a várias gradações de intensidade e intenção (as citações podiam ser explícitas ou
cifradas, reverentes ou irônicas), constituindo exemplos variados da técnica intertextual que
Noël Carroll (1998) chamou de alusionismo. Nesse momento, além de verificar os diferentes

85
usos que Leone fazia desse recurso narrativo, nos interessa demonstrar de que maneira essa
experiência estética associada à condição pós-moderna emergiu deste contexto sociocultural
para tornar-se um traço do estilo individual de Leone.
O pastiche não foi um recurso narrativo que Leone escolheu adotar em Era uma Vez
no Oeste. A técnica já vinha sendo cortejada por Leone nos filmes anteriores. Variações mais
brandas de alusionismo podem ser percebidas desde Por um Punhado de Dólares; a técnica
foi continuamente expandida nos filmes seguintes, atingindo o patamar maior de ênfase em
Era uma Vez no Oeste, cujo enredo consiste numa espécie de antologia de momentos icô-
nicos de faroestes do passado, uma colcha de retalhos que combina, dentro de um enredo
coeso, inúmeras citações a obras anteriores – Christopher Frayling (2005, p. 60) enumerou
57 citações descritas pelos roteiristas. Esses momentos, encaixados na tessitura narrativa e
estilística do filme, consistiam de alusões a cenas, personagens, nomes e lugares retirados
de outros filmes. Eles provocavam no espectador uma percepção de reconhecimento de uma
prática imitativa. Embora não fosse a primeira vez que Leone trabalhava com a alusão, em
Era uma Vez no Oeste as citações eram tão abundantes e explícitas que traziam a técnica para
primeiríssimo plano, o que justificava o comentário de Baudrillard.
No entanto, o uso da alusão na narrativa cinematográfica não era uma novidade. Como
vimos antes, a intertextualidade – sob variadas formas, que incluíam alusões visuais ou so-
noras, citações sutis ou escancaradas – sempre foi elemento importante para a construção
narrativa no cinema de gênero (particularmente o western):

O gênero é particularmente propício para a citação, para a alusão, e, de modo


mais amplo, para todos os efeitos intertextuais. Cenas ou formas prescritas por
um gênero (...) são parecidas de um filme a outro e acabam constituindo uma
espécie de repertório que cada novo filme do gênero convoca, mais ou menos
conscientemente. (AUMONT; MARIE, 2001, p. 143).

Ocorre que, ao inserir citações em grande número, Leone estava investindo na varia-
ção retórica do alusionismo, uma prática intertextual que Noël Carroll (1998) afirma ter se
intensificado na virada dos anos 1960 para os 1970 (mesma época do lançamento de Era uma
Vez no Oeste). Carroll relata que a prática intensificada do alusionismo foi afirmada prin-
cipalmente por dois movimentos cinematográficos simultâneos: a geração New Hollywood
(EUA) e o Cinema Novo alemão. Ele faz questão de lembrar que as duas ondas cinematográ-
ficas compartilhavam a influência, que era a Nouvelle Vague:

Ao longo dos anos 1960, aspirantes a cineastas americanos e alemães olhavam


para Paris em busca de um modelo, assim como faziam os cinéfilos e amantes
da Sétima Arte em geral. Os cineastas aprenderam, ou acharam ter aprendido, o
que significava seriedade e ambição acerca de filmes. Eles também receberam
dicas sobre edição, composição visual e improvisação, como também apreende-
ram a noção de alusão. (CARROLL, 1998, p. 254).

86 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Carroll relaciona diversos tipos de alusionismo, apontando alguns dos principais ci-
neastas a adotar a técnica: Brian De Palma (um dos mais entusiasmados alusionistas, en-
chendo filmes com citações a Hitchcock), Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Rainer
Werner Fassbinder (cuja obra continha inúmeras alusões aos melodramas de Douglas Sirk).
As formas de alusionismo também eram múltiplas; os diretores podiam citar através de refe-
rências a enredos, temas, composições visuais, esquemas de cores e luz, diálogos. Podiam,
também, inserir no enredo personagens comentando ou assistindo esses filmes antigos.
Segundo Carroll, a onda do alusionismo era parte de uma estratégia de afirmação de
identidade, por parte de uma comunidade transnacional de cinéfilos, que crescera ao longo
da década de 1960. Daí, inclusive, a grande quantidade de alusões a filmes metalinguísticos,
que se referiam ao próprio fazer cinematográfico, como A Conversação (The Conversation,
Francis Ford Coppola, 1974) e Um Tiro na Noite (Blow Out, Brian De Palma, 1981):
A esse raciocínio, Bordwell acrescenta que, inseridas dentro da tessitura narrativa ou
estilística, as alusões podiam passar despercebidas para a maior parte da audiência, mas o
filme não deixava de ser compreendido por causa disso, ao mesmo tempo em que a narrativa
se constituía em dois níveis sobrepostos: “Um enredo comum para todo mundo e alusões
para os cinéfilos” (BORDWELL, 2006, p. 8). A fonte do prazer estético proporcionada pelo
alusionismo, portanto, estava no regozijo dos cinéfilos que percebiam as citações, enquanto
notavam que a maioria dos espectadores passava ao largo delas. Dessa forma, o cinéfilo se
reconhecia como integrante de uma categoria especial de consumidores cinematográficos.
Embora Carroll tenha evitado a menção a termos como pós-modernidade, a questão do
alusionismo encontrou espaço dentro desse debate a partir dos escritos de Fredric Jameson (1991)
sobre o pastiche. Jameson retomou o raciocínio de Baudrillard e associou a prática do pastiche à
condição pós-moderna no cinema. A contribuição de Jameson foi decisiva. Ele concretizou uma
definição estável de pastiche – espécie de paródia branca, em que a dimensão crítica da citação
paródica era nula – e o decretou como sintoma (mais do que característica) do esgotamento das
grandes narrativas, um dos aspectos centrais da condição pós-moderna. Os novos diretores usavam
o pastiche, dizia Jameson, porque todas as histórias que havia para contar já haviam sido contadas.
Restava aos cineastas combinar elementos de filmes anteriores para criar algo novo.
Embora usem molduras teóricas e termos diferentes, Carroll e Jameson falam do mes-
mo fenômeno. Eles concordam em um aspecto essencial: embora o alusionismo já aparecesse
pontualmente na narrativa cinematográfica desde os anos 1920, a cultura da alusão (da qual
fazia parte o pastiche) havia começado efetivamente na virada dos anos 1960 para os anos
1970, tendo sido intensificada aos poucos nas décadas seguintes. Pois foi exatamente nesse
momento que Sergio Leone introduziu sua revisão dos esquemas circulantes do cinema clás-
sico, ajudando a afirmar o pastiche como técnica narrativa importante entre os diretores dos
anos 1960. Operando dentro de uma geração de cineastas que cultuava o alusionismo, ele foi
um dos primeiros a executar a variação mais exagerada da técnica.
Por definição, o pastiche funciona como uma experiência estética que exige dois elementos
sobrepostos: a intenção, por parte do artista, em imitar um trabalho anterior; e o reconhecimento,
por parte da plateia, nesta intenção do artista (DYER, 2007, p. 2). Dyer examinou westerns de
Leone como exemplos paradigmáticos de pastiche. Neles, as referências a clássicos do gênero são
encenadas de forma deliberadamente reverente, para serem reconhecidas pelos cinéfilos na plateia:

87
Embora as referências explícitas aos westerns tivessem a intenção de expres-
sar uma visão caleidoscópica de todos os faroestes de Hollywood reunidos, e
embora essa técnica assumisse no decorrer do filme – através de um processo
de intertextualidade que hoje chamamos de pós-moderna – que os espectadores
pudessem reconhecer essas citações, ao menos de maneira vaga, o ponto central
do exercício era criar a impressão de que a audiência estava assistindo a um
filme que já havia visto antes, ao mesmo tempo em que essa impressão vinha
acompanhada da certeza de que ninguém havia visto a história ser contada da-
quele jeito. (FRAYLING, 2005, p. 33).

Não chega a ser surpresa que o pastiche tenha encontrado abrigo dentro de um ciclo
subvalorizado do cinema de gênero. Nesse sentido, é possível compreender o pastiche em
Leone como um esforço (consciente ou não) no sentido de superar a condição subvaloriza-
da. Demonstrar seu vasto conhecimento cinematográfico era, para Leone, uma maneira de
legitimar-se como artista. Talvez sem ter consciência disso, ele estava trabalhando com uma
narrativa em duas camadas, como diria Bordwell: um western para o público em geral e um
compêndio de citações que deliciavam críticos e cinéfilos.
Dyer enfatiza que o pastiche, por ser uma modalidade exagerada de intertextualidade,
tornou-se a prática intertextual mais comum dentro do pós-modernismo no cinema. Citando
Jameson, ele associa o pastiche a uma sensibilidade pós-moderna (DYER, 2007, p. 41) e
propõe uma diferenciação específica entre pastiche e paródia. O pastiche seria uma paródia
sem crítica, e não teria necessariamente humor. Jullier e Marie vão além na diferenciação:

Os pastiches são imitações que visam prestar homenagem ao estilo da obra-fon-


te ou se divertir com ela – diferentemente das paródias, que a atacam com uma
veia satírica. (JULLIER; MARIE, 2009, p. 194).

O trecho de Jullier e Marie traz à tona, de novo, a questão central da ironia, que per-
meia toda a obra de Leone, e está no bojo da releitura crítica e irreverente que ele fez do
sistema de códigos do western. Essa releitura irônica do gênero foi efetuada, também, através
de dois outros recursos fundamentais na constituição do estilo de Leone: o perfil cínico do
herói (recurso através do qual Leone operava a relativização das questões morais, apontada
por Jullier e Marie como característica central do cinema pós-moderno) e a representação
mais gráfica e realista da violência.
A transformação dos heróis em anti-heróis é característica da continuidade intensificada
(BORDWELL, 2006, p. 83). Bordwell observa que essa tendência foi ampliada ao longo das
décadas de 1960 e 1970, nos filmes americanos. Seria coincidência que a emergência desse
novo perfil de herói acontecesse justamente nesse período? É pouco provável. A aparição do
novo herói (ou anti-herói), que expressa de diferentes maneiras sua desilusão social, parece ser
uma característica que reflete a nova sensibilidade sociocultural da Europa e dos EUA. Nesse
sentido, seria correto afirmar que a condição pós-moderna exerceu um papel significativo – uma
pré-condição – no desenvolvimento dessa característica.

88 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Para Leone, o herói moralmente ambíguo, hedonista e violento que aparece em todos
os seus filmes era uma influência da tradição literária picaresca existente na Itália, como é
o caso da commedia dell’arte (LEONE, 2005, p. 203). Naturalmente, ele não se dava conta
de que a emergência desse herói mais cínico estava associada, pelo menos parcialmente, à
emergência de uma sensibilidade mais competitiva e hedonista que ocorria nos anos 1960.
Em sua pesquisa, significativamente, Bordwell não cita Leone como um dos diretores
que introduziu esse anti-herói no cinema ocidental. Sem dúvida, ele tem razão ao enxergar
esse papel em alguns diretores modernistas europeus (sobretudo Godard, Fellini e Antonio-
ni). Mas os personagens amorais, egoístas e violentos de Leone ajudaram, sem dúvida, a
constituir um alicerce narrativo sobre o qual muitos diretores dos anos 1970 trabalharam a
caracterização de seus personagens.
Uma maneira adequada de abordar esse ponto é através da tese de Will Wright (1975),
que procedeu à análise narrativa dos principais sucessos de público do western, na década
de 1960, chegando à conclusão de que, se no western tradicional a sociedade era constituída
por uma comunidade de boa índole, apesar de fraca (um problema que o herói, capaz de unir
moralidade às habilidades dos vilões, podia resolver), no novo western a sociedade passou a
ser vista como fraca, degradada e essencialmente corrupta.
Esse problema era insolúvel pelo herói. Se a sociedade era corrupta em seu âmago, não
havia nada que ele pudesse fazer. Nos enredos dos filmes norte-americanos pesquisados por
Wright, a gradual descoberta dessa natureza intrinsecamente corrupta da sociedade provoca-
va no herói um sentimento de repulsa e desilusão. Um sentimento de isolamento e amargura,
que o impedia de aceitar a integração a esta sociedade, cujos valores ele não podia e nem
desejava compartilhar. Como diz Graeme Turner:

A cumplicidade entre o indivíduo e a sociedade é eliminada, de modo que os he-


róis dos faroestes profissionais [rótulo dado por Wright a esta nova fase do gêne-
ro] descobrem que a única solução para seu problema é uma morte heroica e qui-
xotesca em defesa de seus códigos e reputação pessoal. (TURNER, 1997, p. 95).

O corpus da pesquisa de Wright inclui dois filmes de Leone. Wright não percebeu,
contudo, que havia uma diferença crucial entre os anti-heróis de Leone e os bandidos desi-
ludidos, mas profundamente românticos, dos westerns americanos dos anos 1960. Essa dife-
rença era de ordem moral. Para os heróis americanos, o código de honra – uma importante
forma interna do gênero – continuava a ser inescapável. Desta forma, quando confrontados
com a fraqueza moral da sociedade, os heróis dos filmes americanos experimentavam uma
desilusão tão grande que só podia levar a duas saídas: a morte heroica em um ato de autoi-
molação – como nos casos de Meu Ódio Será Sua Herança (1969) e Butch Cassidy & Sun-
dance Kid (Butch Cassidy, George Roy Hill, 1969) – ou o isolamento autoimposto fora da
sociedade, caso de Mais Forte que a Vingança (Jeremiah Johnson, Sydney Pollack, 1972).
Nos filmes de Leone, contudo, o herói lidava com a corrupção e a degradação social de ma-
neira bem diferente. Ele também rejeitava o convívio social, mas não se isolava ou morria; passava
a viver uma vida errante, cínica e individualista, onde o que realmente importava era o dinheiro.

89
Para os heróis de Leone, se a sociedade tem valores morais inferiores ao herói, este último simples-
mente a deixava para trás e seguia em frente, sozinho. Em outras palavras, dane-se a sociedade.
A noção de releitura autoral do gênero – um processo criativo que incluía a desconstrução
sistemática dos códigos do gênero e a reconstrução crítica, livre da carga ideológica que esses
códigos carregavam, ao mesmo tempo incorporando recursos particulares de estilo – parece
fundamental para demarcar o cinema de Leone como importante no processo de revisão de es-
quemas narrativos que transcreveram para o meio audiovisual essa sensibilidade pós-moderna.
Joe (Clint Eastwood), protagonista de Por um Punhado de Dólares, é bem diferente do he-
rói típico dos westerns norte-americanos. Embora compartilhe com eles a perícia no uso de armas
de fogo e o distanciamento emocional em relação aos personagens que vivem em comunidade,
todo o resto é diferente. Ele é mais violento, mais irônico, mais solitário e, sobretudo, mais amoral.
A cena de abertura do filme destaca essa diferença. Joe é mostrado cavalgando em direção a um
vilarejo humilde cuja paisagem – prédios baixos e velhos – localiza a ação dramática num território
inóspito. Não sabemos quem ele é, mas sabemos que é diferente do herói americano: a montaria
e o figurino demarcam distância considerável do western tradicional. Joe não cavalga um cavalo
branco ou negro, mas uma mula (figuras 1 e 2) – a montaria revisa ironicamente um código do
western. A roupa é maltrapilha: calças velhas, poncho e chapéu sujos, tudo coberto de poeira.

FIGURA 1: A primeira tomada de Por um Punhado de Dólares enfatiza o terreno seco e sem vida, por onde
passa uma montaria – sabemos que nela está o herói

FIGURA 2: A câmera se ergue e revela uma silhueta diferente do herói tradicional do western: roupa velha
e suja, barba por fazer, ele está montado numa mula.
Ao parar para beber água (figura 3), Joe presencia uma cena que sinaliza a completa
ausência de autoridade legal na comunidade. Uma criança se esgueira para dentro de uma
casa, de onde é expulsa a chutes e tiros por dois homens que espancam o pai do garoto, mo-
rador do casebre em frente (figuras 4, 5 e 6).

FIGURA 3: A arquitetura das casas não lembra em nada os casarões de madeira das cidades do western
dos EUA: são casebres de tijolo caiados de branco.

FIGURA 4: Dois pistoleiros chutam e atiram contra uma criança: releitura crítica de uma convenção de
gênero, já que nos EUA a censura não permitiria essa cena.

FIGURA 5: Armados com revólveres, os pistoleiros espancam o pai da criança a pontapés, sem que este,
desarmado, tenha chance de reagir.
FIGURA 6: A câmera se aproxima para mostrar um pontapé na vítima, enquadrado em close-up: exemplo de
representação gráfica da violência.

Joe observa tudo com expressão impassível (figura 7). Ele percebe que há, na casa inva-
dida pelo menino, uma mulher prisioneira. É evidente que ali está sendo cometida uma injustiça.

FIGURA 7: O herói assiste ao espancamento sem esboçar reação: amoral e individualista, o herói é diferen-
te do protagonista-padrão do western nos EUA.

Um dos espancadores nota a presença de Joe e se adianta, em atitude hostil (figuras 8 e 9),
mas nenhum dos dois dá uma palavra.

FIGURA 8: No contra-plano, uma composição recessiva típica de Sergio Leone: uma figura em primeiríssimo
plano e outra ao fundo, criando perspectiva.
FIGURA 9: Percebendo a presença de Joe, um dos pistoleiros se adianta, numa atitude claramente hostil,
esperando para ver se ele reagirá: close-up extremo.

Joe baixa o rosto e continua a beber água, indiferente ao que ocorre ali (figura 10). Per-
cebendo que ele não representa perigo, o agressor vai embora. A criança e o homem espancado
entram em seu casebre e trancam a porta. A mulher, atrás da janela, olha para Joe com expressão
reprovadora, mas ele apenas dá de ombros (figuras 11 e 12). Não é problema dele.

FIGURA 10: Percebendo a reação do antagonista, Joe se apressa a beber água e sinaliza que não pretende
reagir ao espancamento covarde, reforçando o perfil amoral.

FIGURA 11: Depois do espancamento, a mulher numa janela com grades olha para Joe, com expressão de
desaprovação: ele poderia ter ajudado, mas não o fez.
FIGURA 12: O anti-herói de Leone devolve o olhar com uma expressão neutra, quase cínica, enfatizando a
mensagem: ele não tem nada a ver com aquilo.

Na cena, podem ser encontradas diversas características recorrentes em Leone, mas


a mais ostensiva é o perfil do herói. A atitude displicente de Joe demarca uma distância
considerável entre ele e os protagonistas dos westerns americanos, onde a moralidade que se
concretizava no código de honra compartilhado por bandidos e heróis praticamente exigiria
que o herói reagisse àquela barbaridade.
Se assim o fizesse, o herói estaria chegando a uma comunidade cujos habitantes são
essencialmente bons, mas fracos. Graças à sua coragem e habilidade, ele seria capaz de elimi-
nar as ameaças. Mas Joe não faz nada disso. Ele não sente a mínima vontade de se integrar à
sociedade. Aliás, o próprio senso de comunidade não existe no filme. Com poucas exceções
(o dono da taverna, o coveiro, o sacristão da igreja), quem mora na cidade é pistoleiro (ho-
mens) ou viúva (mulheres).
Há outros aspectos nesta cena que devem ser considerados. Há, por exemplo, alusio-
nismo e ironia. Esses elementos ficam evidentes no plano de abertura, que focaliza o chão
– pedregoso, sem vegetação, esturricado. Ouve-se o galopar de um animal. As patas entram
em quadro (figura 1); a câmera faz um leve movimento para a direita e segue o cavaleiro,
revelando aos poucos o ambiente: o vilarejo mexicano, com casas de estuque e tijolo, sem
moradores à vista. Uma cidade-fantasma.
O enquadramento inicial e o movimento da câmera oferecem uma releitura do western
tradicional em vários níveis. Um deles é a composição pictórica. Nos filmes americanos, a
tomada de abertura quase sempre era um plano geral aberto que inseria o herói no ambiente.
Leone reproduz esse procedimento ao mesmo tempo em que o critica com ironia, através
do cenário, do animal e do figurino maltrapilho: estamos num western muito mais grotesco.
Outro aspecto importante desta cena é a questão da representação da violência. Leo-
ne registra uma ação que dificilmente seria permitida pelo Código Hays. Dois pistoleiros
chutam e atiram contra uma criança de cinco anos. Cenas de violência contra crianças eram
proibidas em filmes americanos. Em seguida, os dois pistoleiros espancam o pai dela com
chutes e socos. Tudo isso às barbas do herói, que nada faz.
Joe continua o seu caminho e entra na cidade, ouvindo o ressoar do sino de uma igreja; o
som repetitivo acrescenta às imagens uma atmosfera desoladora. Ele passa por uma forca. Observa
as ruas desertas e cruza com a futura vítima do enforcamento. Os moradores dos casebres olham
para fora através de brechas de portas ou de janelas entreabertas. Estão curiosos, mas evitam sair de

94 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


casa. Tudo isso reforça a ideia de ausência de um senso de comunidade. A ausência desse senso é
fator importante na construção do perfil do herói de Leone, que tinha consciência de estar revisan-
do certas convenções do gênero. Ele explicava assim a introdução desse novo herói:

[Antes] Você não podia mostrar violência porque o herói tinha que ser uma pessoa
otimista, de moral positiva. Não podia sequer representá-lo com realismo: os per-
sonagens principais tinham que se vestir como modelos de passarela. Eu introduzi
um herói que tinha índole negativa, era sujo, parecia um ser humano normal, e es-
tava totalmente à vontade com a violência que o rodeava. (LEONE, 2000, p. 126).

Mais à frente, Joe passa por um grupo de pistoleiros que goza dele (“não é inteligente
vagar longe de casa”) e, num gesto aberto de hostilidade, atiram em direção às patas da mula
que ele monta, da mesma maneira que os dois pistoleiros vistos na cena anterior haviam feito
com o menino. Moral da história: não existe mesmo nenhum tipo de autoridade naquela cida-
de. Mais uma vez, Joe parece impassível e não faz qualquer menção de revidar.
A essa altura, tanto o ambiente onde transcorre a ação dramática quanto o herói já
estão bem delineados, assim como está demarcada a diferença entre este último e sua con-
traparte norte-americana. Estamos em um lugar onde as regras habituais de civilização não
existem. As ruas vazias e os comentários dos personagens confirmam que ali não há nada que
lembre uma comunidade. A julgar pelo comportamento do herói, que não demonstra surpresa
em encontrar esse cenário, não se trata de uma exceção; embora tenha testemunhado aconte-
cimentos em que a expectativa da violência é explícita, além de moralmente injusta, Joe não
esboçou sinal de indignação. Ao contrário. Após alguns minutos de conversa com o dono da
hospedaria local, inteirando-se do contexto social daquele lugar (dominado por duas gangues
rivais), Joe já elaborou um plano para tirar proveito dele.
Então, se dirige à mansão que Silvanito – o hospedeiro – indicou ser da gangue mais
poderosa – os Rojos –, diz saber que estão contratando pistoleiros e pede que o observem.
Em seguida, se dirige à mansão no lado oposto da rua, sede do grupo rival e lugar onde se
encontra o grupo de pistoleiros que troçou dele, minutos antes.
Hoje, com o perfil do herói apreendido pelas plateias, ninguém se surpreende com o
que vem a seguir. Mas o tiroteio demarca uma série de desafios ao sistema de códigos do
western, com a introdução de elementos de ironia, de uma encenação que fragmenta o espa-
ço fílmico de maneira incomum, bem como de uma forma mais gráfica de representação da
violência. Todos são recursos que revisam os esquemas estilísticos e narrativos do gênero, e
se tornariam depois ferramentas da continuidade intensificada.
Joe para diante dos pistoleiros (figura 13) e desafia os quatro em tom debochado. Diz
que não ficou chateado com a recepção violenta, mas que sua mula sim. Após a reação hostil
já prevista, ele os enfrenta num duelo clássico, sacando e acertando todos os quatro com tiros
antes que qualquer um deles consiga revidar. Em seguida, se dirige à taverna de Silvanito.
Ao passar pelo coveiro, boquiaberto, pede desculpas: “Errei a conta. Quatro caixões”. Leone
encerra o tiroteio, decupado de maneira bem diferente do que seria feito num western norte-
-americano, com uma piada irônica.

95
FIGURA 13: A cena inicia com um plano de conjunto em que dois bandidos emolduram Joe, mais atrás:
composição recessiva com o protagonista no centro.

A cena escancara o caráter individualista de seu herói. Joe não está preocupado em
defender os moradores. O plano que ele estabelece consiste em trabalhar alternadamente para
as duas quadrilhas, de forma a ganhar dinheiro dos dois lados. O bem estar da comunidade
não interessa em absoluto ao anti-herói de Por um Punhado de Dólares; ao se deparar com
uma oportunidade de ganhar dinheiro, tudo o que ele deseja é embolsar o máximo possível.

FIGURA 14: No contra-plano, três dos pistoleiros são mostrados em camadas diferentes, numa composi-
ção recessiva que enfatiza a profundidade de campo.

FIGURA 15: Estabelecidas as relações espaciais, Leone passa a fragmentar a cena em enquadramentos
mais fechados, começando com um plano médio de Joe.
FIGURA 16: O primeiro close-up extremo evoca uma convenção do western, com o chapéu encobrindo os
olhos e aumentando a aura de mistério do herói.

FIGURA 17: As testemunhas que assistem ao confronto são mostradas também em close-ups, os rostos
queimados de sol aumentando a verossimilhança.

FIGURA 18: Joe não tira o cigarro da boca nem para falar; o cigarro mastigado entre os dentes virou
marca dos personagens que Eastwood fez para Leone.

Esta cena também demarca uma maneira diferente de decupar um tiroteio – um con-
junto de escolhas estilísticas incomuns nos westerns de até então. Leone alterna close-ups
extremos de rostos (de Joe, dos pistoleiros e de algumas das testemunhas, como o garçom

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e o coveiro), planos-detalhes (revólveres, mãos e dedos, nas figuras 19, 20 e 21) e poucos
planos gerais e médios (figuras 13 e 15), produzindo um efeito de fragmentação do espaço e
distensão do tempo fílmico que se tornariam uma marca registrada.

FIGURA 19: A atitude dos pistoleiros muda do deboche para a tensão, expressada pelo silêncio; enquadra-
mento combina close-up extremo com composição recessiva.

FIGURA 20: A abundância de close-ups extremos fragmenta o espaço fílmico e produz um efeito de dilata-
ção do tempo que amplia a tensão.

FIGURA 21: O uso da câmera baixa permite que Leone registre no mesmo plano os tiros sendo disparados e
os pistoleiros atingidos caindo: desafio aberto à censura.
Nos planos gerais, Leone com frequência registra as cenas utilizando grande profundi-
dade de campo, encenando duas ou mais ações a diferentes distâncias da câmera; uma delas
é sempre muito próxima (a figura aparece numa das bordas da imagem, funcionando como
moldura dela) e outra fica distante. São composições recessivas (WÖLFFLIN, 2000, p. 101)
com todas as camadas visuais mantidas em foco nítido.
Quase sempre, quando esse recurso é usado, as ações vistas em primeiro e segundo
plano estão correlacionadas, uma interferindo na outra. Por exemplo, em primeiríssimo pla-
no, entrando em quadro por um dos lados e servindo como uma moldura que dava profun-
didade ao quadro, fica uma figura (mão, revólver, coldre, nuca), enquanto ao fundo outras
figuras reagem ao elemento em primeiro plano (figuras 21 e 22). Veremos no próximo capí-
tulo como influências pictóricas diversas (diretores como Eisenstein, Mizoguchi e Welles, e
também pintores dos quais Leone gostava) influenciaram esse tipo de composição pictórica.

FIGURA 22: Composição visual recessiva típica de Leone: mão em primeiríssimo plano, vítimas num segundo
plano distante, tudo registrado com nitidez.

Por fim, a maior de todas as transgressões. Leone filmava no mesmo plano a arma
disparando e a vítima atingida desabando (de novo, figuras 21 e 22). Esse procedimento
estilístico sofria, em 1964, um limite de censura. Um cineasta americano não podia filmar
dessa maneira. Num tiroteio de filme de Hollywood, a bala saindo do revólver e seu efeito
(a vítima sendo atingida) tinham obrigatoriamente que ser mostrados em tomadas diferentes,
para que o corte entre os dois planos suavizasse a violência da situação dramática. Mas Leone
estava livre desse limite, já que trabalhava na Itália e sem nenhuma obrigação contratual com
estúdios dos Estados Unidos.
Ao insistir em não cortar no momento dos tiros, ele também realizava uma repre-
sentação mais realista da violência. Foi a partir de cenas como essa que os filmes de Leone
passaram a ser acusados, pela crítica da época, de transformar a violência em pura retórica,
em espetáculo sem significado moral. Essa forma gráfica de representar a violência, contudo,
é recorrente nos demais filmes de Leone, tem relação direta com a relativização dos limites
morais (pré-condição que também produziu o perfil ambíguo do herói) e mostrou-se muito
influente no cinema das próximas décadas.

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Nesta cena em particular, Leone adaptou a composição recessiva com moldura e pro-
fundidade de campo à violação deliberada de uma convenção estilística do western norte-a-
mericano: a tomada que mostra Clint Eastwood atingindo os quatro pistoleiros foi composta
com a mão do ator em primeiríssimo plano, para que o público pudesse ver detalhadamente
os quatro disparos do revólver, enquanto os atores que interpretam os vilões vão caindo,
sucessivamente, em segundo plano, dentro da mesma composição imagética. Não há cortes.
Ao filmar as quatro mortes numa única tomada, Leone conseguia três objetivos: relia critica-
mente um código do western, enfatizava a expertise do seu anti-herói, e concebia um plano
de composição pictórica inventivo.
O novo herói, a ironia e a questão da violência contribuíram para que os filmes de
Leone recebessem, na época, um julgamento negativo de valor. No entanto, com o recuo
proporcionado pelo tempo, é possível observar (e a própria crítica o fez, a partir dos anos
1970) que esses recursos concretizavam a sensibilidade pós-moderna.
Outras três cenas de Por um Punhado de Dólares levaram a crítica a pensar que Leone
estava indo longe demais na questão da representação da violência. A primeira mostra o
massacre de uma tropa de soldados mexicanos cometido pelo líder dos Rojos, Ramón (Gian
Maria Volonté). A segunda é uma cena, em que Joe invade um casebre para libertar a mulher
prisioneira (Marianne Koch) vista no início do filme. Ele o faz matando cinco homens, um
dos quais é baleado à queima-roupa enquanto está ferido e desarmado – espécie de heresia
que violava o código de honra do western norte-americano. A terceira mostra Joe sendo es-
pancado pelos Rojos, numa longa sequência recheada de close-ups sangrentos.
A violência em si não chegou a ser um problema na primeira cena. Não se vê sangue
em nenhuma tomada. Ela é mais chocante pela quantidade de mortes e pela gratuidade com
que os soldados são dizimados por um só homem, armado com uma metralhadora. Volonté
interpreta a cena com modos sádicos: enquanto maneja a arma, ele gargalha incontrolavel-
mente, o prazer em matar é visível no seu rosto. Depois da matança, a cena acaba com o úni-
co sobrevivente tentando escapar. Ramon o acerta de longe, praticamente sem mirar. A cena
o estabelece como vilão, contrapondo sua habilidade com um rifle à do herói com revólveres.
Numa leitura apressada, aos olhos de espectadores menos atentos, poderia parecer não
haver diferença entre herói e vilão. Afinal, os dois não sentem nenhum pudor em apertar o
gatilho para arrecadar dinheiro. Leone soluciona o dilema com esta cena, enfatizando um
aspecto psicológico: Ramon é um psicopata. Gosta de matar, sente prazer com isso. Joe não;
só mata quando tem algo a ganhar. Não chega a ser uma grande diferença num universo tão
violento e individualista (para a crítica da época, um western com herói e vilão tão parecidos
era um escândalo de amoralidade), mas demarca uma distância narrativa importante.
A ausência do código de honra característico do western é explicitada de forma mais
ostensiva numa cena mais à frente, em que o personagem se compadece da situação difícil
da família com a qual cruzou na cena de abertura (já analisada). Depois de presenciar ou-
tras humilhações, Joe decide intervir e libertar a família. Um herói tradicional de faroeste
não precisaria explicar essa intervenção, pois ela seria natural e esperada pelo público; um
homem tão individualista quanto Joe, porém, tem que fazê-lo – e o faz de maneira lacônica,
mas reveladora: “Conheci uma pessoa como você, e não havia ninguém lá para ajudar”, diz,

100 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


na única frase pronunciada por ele em todo o filme que alude a um episódio (misterioso)
do passado. Será que a desilusão, a solidão e a impassividade de Joe advêm de um trauma
pessoal que ele jamais superou?
Propositalmente, Leone não responde a essa questão. Ele não está interessado em psicolo-
gizar o personagem. Esta cena também exemplifica a construção da narrativa através da técnica
do alusionismo; só que aqui, ao invés de aludir a algum western do passado, Leone insere uma das
muitas referências bíblicas no filme (a criança se chama Jesus, e o episódio evoca a passagem de
Herodes descrita no Novo Testamento), sugerindo uma leitura do personagem de Clint Eastwood
como uma espécie de anjo vingador. Ainda não se trata de pastiche, mas o alusionismo é evidente.
O terceiro momento transgressor é o espancamento de Joe pelos capangas dos Rojos.
A cena dura dois minutos e 39 segundos (159 segundos). É o momento mais sangrento de
Por um Punhado de Dólares. Leone registra o espancamento nos mínimos detalhes, inician-
do com um close-up extremo do rosto ensanguentado de Clint Eastwood (figura 23).

FIGURA 23: A cena de espancamento de Joe dura 159 segundos e inclui uma série de close-ups extremos do
rosto ferido: representação gráfica da violência.

Na banda sonora, a violência é sublinhada e amplificada pela risada maníaca que um


dos integrantes da gangue jamais interrompe em nenhum momento da agressão, um som que
proporciona ainda continuidade temporal às tomadas da agressão (figura 24).

FIGURA 24: Durante o espancamento, um dos integrantes da gangue dos Rojos permanece gargalhando
histericamente, enquanto o herói sofre.
Eastwood leva chutes, socos, tem a mão queimada e pisoteada (figuras 25 e 26). Esta
é outra subversão de um código do western. Nos filmes norte-americanos, o herói sempre
enfrenta dificuldades para cumprir sua tarefa, mas nunca submetido a tanta violência. O grau
de violência (acentuada pelo sangue e pelos ângulos de câmera mais próximos) leva a ence-
nação em direção à continuidade intensificada.

FIGURA 25: ... e já que o herói não tem mais forças para se levantar, passa a ser agredido com chutes e
pontapés pelo restante da gangue, aumentando o sadismo.

FIGURA 26: O plano-detalhe que encerra a cena do espancamento mostra um dos pistoleiros quebrando os
ossos da mão esquerda de Joe com a bota.

3.2 DUPLA DE ANTI-HERÓIS

Em seu segundo western, Leone repetiu o perfil do herói e intensificou a construção


narrativa em larga escala, criando dois protagonistas que dividem o tempo de tela e bifurcam
a trama em duas narrativas paralelas. Os heróis de Por uns Dólares a Mais são igualmente
solitários, implacáveis e tecnologicamente avançados. A divisão do protagonismo era um
passo em direção à narrativa em rede, outra característica da continuidade intensificada.

102 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


A narrativa em rede consiste, para Bordwell (2006, p. 89), em enredos cujo protago-
nismo é dividido entre mais de um personagem. Essa construção narrativa era praticada des-
de Grande Hotel (Edmund Golding, 1932), só que de forma menos enfática – quase sempre
era possível reconhecer um, entre os personagens importantes, que detinha o ponto de vista
da história, de forma que se pressentia nele um protagonista oculto – e numa quantidade
menor de filmes. Nos anos 1960, a divisão do protagonismo começava a ser mais explorada,
e com graus maiores de ênfase. É o que acontece em Por uns Dólares a Mais, onde o tempo
de tela e o ponto de vista da narrativa são divididos igualmente.
Entre os dois heróis existe rivalidade, mas também respeito. Entretanto, ambos são
igualmente individualistas. Não estão interessados em valores sociais. Daí a profissão que os
dois cultivam: caçadores de recompensas – uma profissão que, a partir deste filme, se tornou
uma espécie de clichê narrativo onipresente nos enredos dos spaghetti westerns (e também
de alguns faroestes norte-americanos posteriores).
A sequência de abertura de Por uns Dólares a Mais oferece um exemplo simples, e ao
mesmo tempo bastante rico, do perfil do herói de Leone e da vontade do diretor em revisar
criticamente os esquemas do western, quase sempre através da ironia e do distanciamento
crítico. O mais interessante é que nenhum dos protagonistas aparece em quadro. A tomada
mostra, à grande distância e de ângulo alto, um cavaleiro cruzando uma planície deserta. Esta
imagem bate com a típica cena de abertura dos faroestes tradicionais norte-americanos, que
quase sempre começam com um plano de conjunto mostrando o herói e o ambiente onde a
ação dramática ocorre.
No entanto, apenas alguns segundos são necessários para que seja possível perceber
algo diferente. No filme italiano não há a tradicional música sinfônica. No lugar da música,
pode-se ouvir, através do canal central do sistema sonoro, uma série de ruídos: um assobio,
um rifle sendo engatilhado, um cigarro acesso e depois tragado.
Esses ruídos sinalizam ao espectador que a câmera não representa uma visão objetiva
da ação dramática, mas sim um ângulo subjetivo. O uso de sons fora do quadro indica que
compartilhamos o ângulo de visão de alguém que pertence à diegese, alguém cujo olhar é
o olhar da câmera. Quem seria ele? A continuidade da longa tomada esclarece o mistério.
Ouve-se um tiro de espingarda cujo eco percorre toda a planície. O cavaleiro que galopa à
distância cai do cavalo (figura 27). Está morto. Os créditos aparecem, acompanhados da
música de sabor satírico de Morricone, com tiros de espingarda e galopes de cavalo demar-
cando a percussão e abrindo buracos de bala nos títulos (figura 28), outro elemento de ironia
acrescentado por Leone, num jogo inteligente entre a diegese (os tiros) e a extra-diegese (a
brincadeira com os grafismos, representados pelos créditos).
Esse mesmo jogo entre a diegese e a extra-diegese aparece na melodia principal, ini-
cialmente assobiada pelo assassino dentro da diegese, e depois solada (também com asso-
bios, numa dupla alusão ao personagem que acabara de matar o cavaleiro e ao filme anterior
de Leone, cujo tema central era assobiado) dentro da canção de abertura (ou seja, fora da
diegese). O nome de Leone, no final dos créditos, é “abatido” a tiros.
Além do uso dos sons fora de quadro e da utilização da ironia na construção narrativa
(através tanto das imagens quanto do som), é importante assinalar a releitura crítica de uma

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convenção do western, que é a inversão da tomada panorâmica de abertura como momento
de apresentação simultânea do herói e do cenário. Ao evocar a tradição da tomada panorâmi-
ca de ângulo alto – um dos planos preferidos de John Ford, repetido em filmes como Rastros
de Ódio (1956) e Legião Invencível (She Wore a Yellow Ribbon, John Ford, 1949) –, Por uns
Dólares a Mais incentiva o espectador a pensar que o cavaleiro que ele vê à distância seria o
protagonista do filme, como ocorre em quase todos os westerns norte-americanos.

FIGURA 27: Abertura subverte uma convenção do gênero ao mostrar um cavaleiro (normalmente o herói)
sendo abatido por um tiro disparado à distância.

FIGURA 28: Ao introduzir a música e os créditos, Leone cria um jogo entre o diegético e o extra-diegético,
fazendo o som dos tiros funcionar como percussão.

Em seguida, Leone deliberadamente subverte essa expectativa ao fazer com que o


cavaleiro seja atingido por um tiro e morra. Se morre, ele não é o herói. E se o herói está
sempre presente nessa tomada de abertura, então ele é o homem fora do quadro, o caçador de
recompensas, como esclarece o letreiro que finaliza a cena. Um homem que se esconde para
abater outro, cuja chance de defesa é nula, quase como se estivesse numa caçada de animais
– alguém cuja moralidade é, no mínimo, duvidosa. Não importa se a vítima do disparo era
um criminoso; importa que ele não teve chance de se defender. O código de honra do western
americano é mais uma vez deixado de lado.

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O efeito pretendido – confundir o espectador através da violação explícita de uma
convenção para, a partir daí, levá-lo a questionar o uso dos códigos do gênero no restante da
narrativa – é alcançado através de da combinação de encenação simples (um plano-sequên-
cia com a câmera fixa, recurso de estilo comum até os anos 1940, mas em desuso nos anos
1960), sons fora do quadro, música que incorpora ruídos da diegese e intervenções gráficas
(os créditos “perfurados” pelos tiros ouvidos na trilha sonora).
Não custa lembrar que esse procedimento – subverter as convenções de gênero – deve
ser compreendido como uma tentativa consciente de estabelecer e levar a cabo um projeto
autoral calcado nas noções de intertextualidade e estilo: ao recorrer ao repertório de con-
venções estabelecido e reconhecível, e ao mesmo tempo questioná-lo (através da ironia e
do alusionismo, principalmente), Leone está realizando um “jogo interno” entre elementos
familiares e elementos novos – está inscrevendo autoria dentro do gênero.
A ironia, outro recurso narrativo importante, aparece fortemente mais adiante, em cena
que define o personagem de Lee Van Cleef. Ao descer do trem na estação de Tucumcari, Van
Cleef se dirige à cabine do bilheteiro, onde ao lado está colado um pôster oferecendo uma
recompensa de US$ 1.000 (figura 29) por um assassino.

FIGURA 29: O cartaz, com prêmio oferecido pela captura de um criminoso “aumentado” pelo próprio, é
exemplo da ironia com que Leone tratou o western.

FIGURA 30: O bilheteiro, sorrindo (e enquadrado num close-up que fragmenta o espaço fílmico), afirma que
ninguém tem coragem de enfrentar o assassino.
Enquanto o bilheteiro ri de uma piada (figura 30), o homem vestido de negro mantém
a expressão fechada (figura 31); descola cuidadosamente o pôster da parede (figura 32) e
guarda. O bilheteiro para de sorrir.

FIGURA 31: A expressão do Coronel Mortimer (também enquadrado em close-up), que olha para o bilheteiro
sem se perturbar, faz o outro homem parar de sorrir.

FIGURA 32: O gesto cuidadoso que ele faz em seguida – descolar e guardar o cartaz de recompensa – permite
antever a personalidade metódica do personagem.

O personagem de Van Cleef se chama Coronel Mortimer. É um ex-oficial do Exército


Confederado (derrotado na guerra civil) que virou caçador de recompensas. As três cenas
analisadas aqui têm o objetivo narrativo principal de estabelecer a personalidade dele, sem
qualquer eixo de ligação com a ação dramática (nesse ponto, a construção narrativa evoca
outra característica da continuidade intensificada, em que os eventos que compõem a trama
possuem ligações mais frágeis). E esta personalidade se ajusta perfeitamente à atitude amo-
ral, individualista e violenta do protagonista de Por um Punhado de Dólares.
Mortimer vive e trabalha sozinho. Não demonstra nenhuma vontade de integrar-se
à sociedade – daí o caráter taciturno. Sua rotina consiste em viajar de cidade em cidade, à
procura de malfeitores a capturar. A postura passa a noção de calma mesmo nas situações de
tensão, o que denota experiência; trata-se de alguém que vive essa rotina violenta há muito

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tempo, e já se acostumou com ela. Para se proteger dos perigos que a rotina lhe impõe, Mor-
timer se mostra paciente e meticuloso com tudo o que diz respeito à proteção pessoal – as
roupas limpas e o zelo que demonstra ao descolar o cartaz da parede e dobrá-lo com cuidado,
por exemplo, são sinais visuais desse pragmatismo.
Essa personalidade pragmática é manifestada de forma mais ostensiva em cenas sub-
sequentes, que enfatizam o domínio tecnológico do personagem. Ele possui lunetas para
observar os inimigos e mantém limpo um arsenal de rifles desmontáveis (figuras 33 e 34).
Quando precisa abrir um cofre, recorre à tecnologia – usa um ácido que corrói as trancas
internas, abrindo o cofre sem danificar o dinheiro.

FIGURA 33: Durante todo o filme, o Coronel Mortimer carrega consigo um arsenal de revólveres e rifles
desmontáveis, que ele limpa todas as noites.

FIGURA 34: Caçador de recompensas experiente, ele sabe que quem lida com a morte só fica vivo se for
dominar as mais recentes tecnologias da violência.

Esse aspecto do domínio da tecnologia não apenas demarca uma distância considerá-
vel dos heróis dos filmes americanos (os quais, em geral, desgostam da necessidade de usar
armas de fogo, embora sejam bons no manejo delas), mas também explicita a aproximação
do herói do spaghetti western ao contexto social dos anos 1960, quando a sociedade estava
mais exposta a imagens de violência por conta da televisão e de outras mídias de massa (era

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a época da Guerra Fria, dos confrontos no Leste europeu, dos conflitos bélicos na Coréia e
no Vietnã), e cuja urbanização acelerada não apenas enfatizava a importância da tecnologia,
mas disparava uma onda de hedonismo e competitividade social que isolava cada vez mais
os indivíduos.
Mortimer também personifica outro aspecto-chave da obra de Leone, que é o diálogo
por vezes paradoxal e contraditório entre passado e futuro, entre tradição e modernidade. Se
por um lado o ex-oficial confederado incorpora os traços amorais do novo herói, por outro
mantém um pé no passado; quando a trama principal é revelada, consistindo na perseguição
a um assaltante chamado El Indio (Gian Maria Volonté), descobrimos aos poucos que ele
tem uma motivação pessoal para querer capturar o bandido: vingança. Essa descoberta acon-
tece através de flashbacks progressivos, avanço em direção à fragmentação cronológica do
enredo, característica da continuidade intensificada na construção narrativa em larga escala.
Nesse ponto, é essencial chamar a atenção para um ponto importante: o cinema mo-
dernista europeu dos anos 1960 vivia, de maneira geral, uma tendência à fragmentação da
narrativa fílmica, tanto do ponto de vista cronológico quanto do número de personagens. O
primeiro aspecto era conseguido através do uso de flashbacks. David Bordwell rastreia o
início do uso desse recurso duas décadas antes que Leone começasse a dirigir: “Nos anos
1940, apesar de os manuais de roteiros mandarem escritores evitarem flashbacks, os filmes
estavam cheios deles” (BORDWELL, 2006, p. 89). A influência de Cidadão Kane (1941),
nesse caso, não pode ser desprezada.
No entanto, foi nos anos 1960 que essa tendência passou a ser intensificada. As ex-
periências de Alain Resnais – sobretudo nos filmes Hiroshima Mon Amour (1959) e O Ano
Passado em Marienbad (L’année Dernière à Marienbad, idem, 1961) – com a desconstrução
da narrativa incentivaram roteiristas e diretores a fragmentar ainda mais o enredo, e de modo
mais ousado. Essa fragmentação se dava tanto numa dimensão cronológica (a narrativa cro-
nologicamente linear dava lugar a filmes recheados de flashbacks, nem sempre motivados
por lembranças de personagens ou por alguma exigência do roteiro) quanto em termos de
unidade narrativa, expressa através do desenvolvimento de maior número de personagens,
eventualmente dividindo o protagonismo do filme entre alguns deles. Como já vimos, essa
prática narrativa gerou as chamadas narrativas em rede, que se tornariam mais complexas
a partir dos anos 1970. Sergio Leone deu sua contribuição ao processo de fragmentação da
narrativa, experimentando suas duas principais variações.
Mas voltemos, por enquanto, à questão do perfil do herói. Segundo Will Wright, a
temática da vingança proliferou no western a partir do início dos anos 1950 e se tornou
bastante comum na década seguinte, aparecendo em filmes como Winchester 73 (1950), Um
Certo Capitão Lockhart (The Man From Laramie, Anthony Mann, 1955) e A Face Oculta
(One-Eyed Jacks, Marlon Brando, 1960), todos protagonizados por homens torturados por
traumas do passado e em busca de vingança.
A trama de vingança, porém, tem desdobramentos diferentes em westerns norte-ame-
ricanos e italianos. No primeiro caso, o herói é obrigado a deixar temporariamente a socie-
dade, de modo a perseguir a vingança sem sofrer uma condenação de ordem moral; ele está
livre para retornar ao convívio social quando conquistar essa vingança, ou se desistir dela.

108 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Isso acontece, por exemplo, no ciclo de sete filmes de Budd Boetticher protagonizados por
Randolph Scott, como Sete Homens Sem Destino (Seven Men From Now, 1956), e na série
de cinco títulos de Anthony Mann estrelando James Stewart, entre os quais Região do Ódio
(The Far Country, Anthony Mann, 1954).
Nada disso ocorre no mundo de Leone, onde o senso de civilização – a sociedade para
onde o herói pode voltar após o acerto de contas com os traumas do passado – está ausente.
Sem dúvida, os heróis de Boetticher e Mann influenciaram concretamente o trabalho de
Leone; no entanto, trabalhando longe dos limites impostos por Hollywood e influenciado
– conscientemente ou não – pela contracultura irreverente da Europa, que funcionava como
pré-condição para o desenvolvimento de recursos estilísticos, Leone pôde levar essa incom-
patibilidade entre herói e sociedade a um patamar mais intenso. A dissociação entre herói e
sociedade é definitiva. Não permite um retorno, porque não há para onde retornar.
O western americano compartilhava da representação social, em que a sociedade era
vista como corrupta e hedonista, minimizando dessa forma os laços sociais e afetivos entre
os indivíduos. Mas a cultura norte-americana tratava de enfatizar o herói como um guardião
nostálgico de uma sociedade antiga, cujos valores morais eram mais puros e positivos. Vendo
o mundo se tornar mais cínico, esses homens frequentemente buscavam uma morte honrosa
ou passavam a viver isolados.
Leone partiu da mesma percepção – a urbanização que isolava os indivíduos – e pro-
pôs uma leitura diferente, em que o herói observava a corrupção com cinismo, dava as costas
para a sociedade e passava a levar uma vida errante e amoral. Para sobreviver num ambiente
hostil, ele tinha que se acostumar com a violência. Tinha que dominá-la.
Essas características estão sintetizadas em Mortimer. Seu individualismo taciturno empresta
traços do caráter estoico dos heróis de Boetticher, e é possível vislumbrar a influência dos heróis
traumatizados do western psicológico dos anos 1950, mas Leone revisava esse esquema ao mis-
turar essas características com ironia, senso de humor negro, religiosidade cristã – um traço da
cultura italiana também perceptível na grande quantidade de simbologia religiosa presente nos
filmes – e uma irreverência quase juvenil, cuja origem está na contracultura europeia da época.
Em Por uns Dólares a Mais, Mortimer divide a cena com um segundo herói: Monco
(Clint Eastwood). Este último é o mesmo personagem que liderava a ação dramática do filme
anterior, apesar do nome diferente. Sergio Leone deixa isto evidente ao repetir o figurino
(poncho marrom, chapéu e jeans empoeirados) e os maneirismos do personagem (o hábito
de andar com pontas de cigarro nos bolsos ou no canto da boca, que acende sempre antes de
pronunciar alguma frase irônica; os gestos largos e o andar preguiçoso, contrastando com
a velocidade e a precisão necessárias nos momentos em que a violência irrompe; o caráter
taciturno, de poucas palavras; e o humor negro).
Para acentuar ainda mais a semelhança, Leone introduz o personagem em uma cena
que consiste numa variação do primeiro tiroteio de Por um Punhado de Dólares. O paradig-
ma do problema/solução de David Bordwell se aplica perfeitamente a este exemplo. A cena
constitui um problema de representação de natureza idêntica ao outro caso: o personagem
se apresenta de forma irônica a um grupo de pistoleiros que não lhe conhece e deixa uma
espécie de cartão de visitas ensanguentado, baleando quatro deles.

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A maior diferença para o filme anterior é o cenário. Em Por um Punhado de Dólares, a
cena de apresentação do herói acontece na rua; em Por uns Dólares a Mais, ocorre dentro de
uma taverna (o cenário repleto de figurantes sinaliza o orçamento mais generoso que Leone
teve à disposição). Monco chega à cidade de White Rocks em meio a uma tempestade; o iní-
cio da primeira tomada da cena sincronizado na trilha sonora com o ribombar de um trovão
(figura 35), num plano de conjunto criado a partir de um movimento de câmera ostensivo,
que chama a atenção para si.

FIGURA 35: Erguida por grua, imagem revela toda a cidade: movimento de câmera ostensivo é uma ferramen-
ta de estilo que remonta aos anos 1930.

Esse tipo de plano, aliás, aparecera apenas uma vez em Por um Punhado de Dólares
(introduzindo a sequência do duelo entre Joe e Ramon), passou a ser muito utilizado por
Leone nos filmes seguintes. Trata-se de um movimento de câmera tornado famoso em E o
Vento Levou (Gone With the Wind, Victor Fleming, 1939); é uma reminiscência do período
clássico do cinema, tendo sido comum nas grandes produções de Hollywood dos anos 1940
e 1950. Esta é uma evidência de que o repertório de escolhas estilísticas de Leone baseava-se
na solução disponível mais eficiente (revisada e intensificada, se necessário), e não exclusi-
vamente no zeitgeist. Ele usava o que tinha à mão, independente da origem.
Monco está vestido com o poncho do filme anterior. O nome do personagem é outro,
mas o figurino e os gestos são idênticos. Mesmo ensopado, ele acende o indefectível cigarro,
levantando levemente o chapéu de modo que os olhos apareçam apenas no final da tomada
– o mesmo gesto feito segundos antes do primeiro tiroteio de Por um Punhado de Dólares
(figura 36). Depois, entra no saloon.
Ele aborda um frequentador e pergunta por um conhecido ladrão. Leone providencia
a resposta, antes que o homem responda à pergunta, dentro da própria composição recessiva
da tomada: Monco e o interlocutor têm as cabeças nas extremidades do quadro, enquanto a
área central focaliza, em segundo plano nítido, uma mesa com quatro jogadores. Todos usam
roupas escuras, menos o que está de costas para a câmera; este veste um colete dourado, e
está no centro da imagem (figura 37).
É o bandido, claro. Monco se dirige até a mesa. Sem falar, agarra o baralho e distribui
as cartas apenas entre ele e o bandido procurado (figura 38). Os outros sujeitos na mesa
se entreolham, sem entender nada. Ouve-se o ruído do bar, que proporciona a sensação de

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continuidade temporal e sublinha a tensão crescente, num momento de distensão do tempo
narrativo característico do trabalho de montagem de Leone, acentuado pelos close-ups dos
dois personagens (figura 39 e 40).

FIGURA 36: Primeira aparição de Monco (Clint Eastwood) evoca Joe, de Por um Punhado de Dólares: poncho,
cigarro e chapéu encobrindo olhos.

FIGURA 37: Monco pergunta onde está o criminoso, e a composição recessiva já dá a resposta: o homem
está centralizado em segundo plano (colete dourado).

FIGURA 38: Sem diálogos, o jogo de intimidação praticado por Monco é encenado por Leone através de
planos-detalhes de mãos e cartas de baralho...
FIGURA 39: ...além de uma decupagem que privilegia os close-ups e a troca de olhares; a técnica fragmen-
ta o espaço e provoca a sensação de tempo distendido.

FIGURA 40: Em pé, filmado em contra-plongé, Monco domina a encenação; o bandido, sentado, está subjul-
gado e é filmado em plongé (ver figura anterior).

Os dois homens trocam socos (figura 41). Monco rende um adversário com um golpe
de caratê (figura 42) no pescoço – uma alusão aos filmes de artes marciais orientais que
começavam a chegar aos cinemas europeus nos anos 1960 – e o agarra pela camisa.

FIGURA 41: Quando a pancadaria começa, Leone troca os close-ups e planos-detalhes por planos gerais e
médios, enquanto os atores percorrem todo o bar.
FIGURA 42: Durante a luta, Monco atinge o criminoso com um golpe de caratê – uma citação divertida aos
filmes asiáticos de artes marciais dos anos 1960.

Ele está enquadrado em close-up, ligeiramente à esquerda, de costas para a porta de


entrada da taverna, que fica enquadrada do lado direito, equilibrando a composição. O foco
é nítido tanto no primeiro plano (Monco e o bandido) quanto no segundo (a porta de entrada
da taverna, na figura 43), criando uma composição recessiva com moldura e profundidade
de campo.
Esse tipo de encenação, que usa vãos de portas e janelas para revelar ou ocultar per-
sonagens de acordo com conveniências narrativas é um recurso estilístico consagrado desde
a época do cinema mudo. Louis Feuillade, responsável por muitos seriados de média-metra-
gem influentes na década de 1910, já utilizava esta ferramenta para deslocar o foco principal
da ação dramática dentro do próprio quadro, guiando o olhar do espectador sem precisar
mover a câmera ou cortar (BORDWELL, 2008, p. 91). Leone revisou esse elemento de um
esquema clássico de encenação, criando uma variação mais intensa dele.
A coreografia é precisa. No momento em que o adversário é dominado, a porta está
vazia (figura 43). Como a composição visual mantém o foco nítido sobre ela, reservando-lhe
praticamente toda a metade direita do quadro, isso cria uma expectativa natural no público, que
instintivamente desloca sua atenção para ela. No instante seguinte, três pistoleiros entram juntos
pela porta e param sob o umbral (figura 44). Monco está de costas para a entrada da taverna – de
frente para o espectador – e não registra a aparição dos bandidos; o público os vê antes dele, e

FIGURA 43: No momento em que Monco subjulga o adversário, a composição enquadra a porta de entrada,
do lado direito, provocando a expectativa de que...
FIGURA 44: ...alguém entre por ali, o que acontece poucos segundos depois – três pistoleiros aparecem
para resgatar o homem que Monco dominou.

isso coloca a audiência na posição de saber mais sobre o enredo do que o personagem, o que ins-
tantaneamente cria uma dimensão suplementar de suspense, aumentando ainda mais a tensão.
Ao chegar, os pistoleiros nada dizem. Mas, por causa do som das botas no piso de ma-
deira, do ranger da porta e do silêncio que toma conta da taverna, Monco percebe a presença.
Ele desvia o olhar do rosto do bandido preso pela camisa para e olha para frente, tenso. O
líder dos pistoleiros está no meio, um passo à frente dos outros; ele tem apenas metade da
barba – um toque cômico para aliviar a tensão no seu momento mais intenso. O pistoleiro
ordena que Monco largue o colega; está enquadrado em close-up extremo (figura 45).

FIGURA 45: O pistoleiro no centro, filmado em extremo close-up, ordena que Monco largue o comparsa; ele
tem apenas metade da barba feita, num toque de ironia.

Leone justapõe mais três close-ups iguais à ordem do bandido – um para cada pisto-
leiro. Aliada ao silêncio, a sucessão de rostos fragmenta o espaço fílmico e acentua mais a
tensão; por um momento, o espectador perde a noção espaço-temporal do momento.
Monco se move então, largando o bandido espancado, ao mesmo tempo em que gira e
atira três vezes em dois segundos (figura 46). Os pistoleiros não têm tempo para revidar. O
momento resgata a composição recessiva da cena do tiroteio de Por um Punhado de Dólares:
a mão com o revólver em primeiríssimo plano e a ação principal (os pistoleiros atingidos

114 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


FIGURA 46: Encenação do tiroteio é similar à composição recessiva usada em Por um Punhado de Dólares:
tiros e vítimas dentro do mesmo quadro.

pelos tiros) em segundo plano, tudo fotografado em profundidade de campo. Nos dois filmes,
encontramos a mesma escolha estilística para solucionar um problema de representação idên-
tico. Ademais, atirador e vítimas, de novo, estão dentro do mesmo quadro.
A tensão se foi, mas a cena não acabou. O adversário espancado se arrasta para a
direita, tentando escapar. Monco não se dá ao trabalho de olhar para ele, e nem mesmo se
vira para atirar: dispara na direção do som do arrastar sobre o piso de madeira (figura 47).

FIGURA 47: Ainda resta o criminoso que estava no bar desde o início; embora ele esteja ferido e desarma-
do, Monco o mata com um tiro a sangue-frio...

Depois, guarda o revólver no coldre, girando em torno do dedo indicador com veloci-
dade, repetindo o gesto clássico dos heróis do western americano (figura 48).
Essa cena organiza vários elementos do que podemos afirmar como exemplos diretos
da prática estilística recorrente em Leone: um conjunto de soluções estilísticas e narrativas
para problemas de representação que o diretor resgata, revisa e reutiliza, sempre que con-
frontado com problemas parecidos. O uso abundante de close-ups extremos, a utilização dos
ruídos diegéticos (os sons do bar, os passos sobre o piso de madeira) para injetar tensão e
dar continuidade temporal à narrativa, as composições recessivas, a ironia, o alusionismo e a
subversão a códigos do western são padrões recorrentes dentro dos filmes dele.

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FIGURA 48: ...numa tomada em que vítima e agressor estão, de novo, enquadrados no mesmo plano. A cena
termina com um plano-detalhe do revólver no coldre.

Tanto Mortimer quando Monco são profissionais da violência. Ambos vivem à mar-
gem da sociedade, transitando de uma cidade para a próxima sem se fixar. Ganham a vida
caçando bandidos, e seguem trajetórias paralelas; se cruzam na estrada e se reconhecem
como iguais, nascendo daí respeito mútuo e clima de competitividade, que funcionam como
uma espécie de versão irônica – uma releitura irreverente – do código de honra segundo o
qual se comportavam os caubóis nos filmes americanos.
A primeira vez em que os dois se defrontam, aliás, consiste numa cena que confirma a
releitura crítica dos esquemas do western americano através da ironia e do alusionismo. Tra-
ta-se da variação cômica de um duelo, em que os pistoleiros atiram um no outro; no entanto,
por causa do respeito mútuo e também devido à ausência de uma razão de ordem prática para
que um mate o outro, Mortimer e Monco iniciam uma espécie de jogo cômico. Eles se enca-
ram, pisam um no pé do outro, trocam sopapos e finalizam o “duelo” atirando um no chapéu
do outro, de forma a demonstrar simultaneamente a habilidade espetacular com o revólver e
o senso de respeito para com o colega.
Esta cena foi a primeira a ser concebida por Leone para o filme. Quando contratou
Luciano Vincenzoni para escrever o roteiro, Leone descreveu esta cena para estabelecer o
tom de ironia que pretendia conseguir. Vincenzoni expressou objeção à cena, mas acabou
convencido de como ela era importante. A argumentação usada para convencer o roteirista
deixa claro o quanto Leone estava consciente da operação de releitura crítica do gênero:

A intenção era ser irônico, mas eu não conseguia imaginar John Wayne chutan-
do a bunda de Henry Fonda – parecia infantil. Mas Sergio (...) queria aplicar a
lógica de um jogo argumentativo entre crianças a dois personagens que eram
puro instinto. Sergio disse achar que o sucesso do western era universal porque
o comportamento macho do típico herói do gênero era idêntico ao dos adoles-
centes (...). O que ele queria fazer era transportar a nostalgia adolescente para o
western. (VINCENZONI, 2005, p. 171).

Numa única cena, Leone flertou com três tópicos que críticos incluem entre as expe-
riências estéticas características da condição pós-moderna: ironia, nostalgia (a inclusão de
memórias como forma de “reviver” um passado idealizado) e alusionismo.

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É importante não confundir ironia com humor. O discurso irônico evoca uma dimen-
são suplementar de entendimento que contradiz ou problematiza o que foi dito; ou seja, a
ironia seria uma “estranha forma de discurso onde você diz algo que você, na verdade, não
quer dizer e espera que as pessoas entendam não só o que você quer dizer de verdade, como
também sua atitude com relação a isso” (HUTCHEON, 2000, p. 16). O conceito de ironia,
então, apreenderia uma atitude política, que neste exemplo está expressa na revisão de um
código pertencente ao esquema narrativo do western americano: a expectativa da violência.
Quanto ao alusionismo, a cena consiste em um pastiche de cena de Vera Cruz (1954).
Nesse filme, os dois personagens principais, interpretados por Gary Cooper e Burt Lancaster,
competem para ver quem tem melhor pontaria, disparando tiros em tochas que enfeitam o
muro de uma mansão. Se substituirmos as tochas pelos chapéus, a cena torna-se idêntica.
O confronto entre Mortimer e Monco é uma das primeiras vezes em que Leone inclui
na trama de um filme seu uma alusão explícita a uma cena de outro filme (ou seja, pastiche).
Em Por um Punhado de Dólares já havia alusionismo, mas as citações eram mais sutis, refe-
rindo-se códigos característicos do repertório do gênero western, sem referenciar momentos
específicos de filmes. Frayling enumerou algumas dessas alusões:

Há inúmeras referências ao Novo Testamento: O Estranho cavalgando sua mula e


entrando em San Miguel como Cristo em Jerusalém; sua “crucificação” num poste
de madeira fora da cidade; sua participação na “Santa Ceia” do clã dos Rojos; sua
“morte” e posterior “ressurreição”; uma profusão de cruzes, cemitérios e caixões.
(...) Havia importantes referências à commedia dell’arte e à tradição carnavales-
ca, que podiam ser vistas no refrão musical satírico, no herói ardiloso, na ênfase
detalhada aos atos de comer e beber, na atitude sarcástica em relação à morte, no
gestual exagerado dos personagens hispânicos. (FRAYLING, 2000, p. 126-127).

No primeiro filme, as citações a westerns anteriores seguiam um padrão alusionista mais su-
til: a autoconsciência das convenções de gênero e a representação da violência (sem sangue) em Os
Brutos Também Amam (Shane, George Stevens, 1953); a poeira de Paixão dos Fortes (My Darling
Clementine, John Ford, 1946), acrescentando um toque realista a um tiroteio; a comunidade co-
varde de Minha Vontade é Lei (1959), cujos cidadãos preferem contratar um pistoleiro a eleger um
xerife, e assistem a um duelo como se estivessem no circo; a atmosfera pessimista e amargurada
de O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford, 1962), com
personagens que estão conscientes de que realidade e mito são instâncias diferentes.
Em Por um Punhado de Dólares, Leone usava o material de origem como inspiração
para a construção da narrativa. Entre seus objetivos não estava o reconhecimento da citação
por parte do público; ou seja, se seguirmos a definição de Richard Dyer (2007), ainda não se
tratava se pastiche; era uma forma mais discreta de alusionismo. Desde então, Leone intensi-
ficou essa técnica. Na cena do confronto entre os dois anti-heróis de Por uns Dólares a Mais,
a referência se transmuta em citação direta.
O pastiche também pode ser rastreado em outras cenas. Leone cita vários filmes, in-
cluindo Estigma da Crueldade (The Bravados, Henry King, 1958), cujo herói passa o filme

117
seguindo assaltantes acusados de matar sua mulher e filho; ele carrega uma foto dos dois num
relógio de bolso, que mostra a cada bandido antes de matá-lo. O personagem, interpretado
por Gregory Peck, serviu como modelo para Mortimer, que carrega um relógio de bolso
idêntico com a foto de sua irmã, estuprada por El Indio.
Leone acrescentou ao perfil do herói desenvolvido em Por um Punhado de Dóla-
res e Por uns Dólares a Mais algumas características. Essas características continuavam
avançando na direção da ironia, do grotesco, do carnavalesco – todas, não por coincidência,
experiências estéticas que contêm uma agenda política, uma crítica social inerente, expressa
através de uma forma irreverente e bem-humorada.
Como se sabe, os diretores de westerns norte-americanos nunca lidaram bem com o
humor. O gênero – em todos os seus momentos históricos – sempre foi muito sisudo; no uni-
verso masculino e misógino dos caubóis e pistoleiros não havia espaço para piadas. Portanto,
a inserção de elementos cômicos pode ser vista como outro aspecto da revisão crítica dos
esquemas típicos do gênero levada a cabo por Leone.

3.3 HERÓIS OU ANTI-HERÓIS?

Em Três Homens em Conflito, Leone continuou a intensificar alguns recursos narrati-


vos, enquanto ampliou o quadro em que a ação dramática se desenrolava. Se o primeiro wes-
tern se passava num só vilarejo e o segundo visitava meia dúzia de cidades na fronteira com
o México, o terceiro (na verdade, primeiro a ser 100% financiado com dinheiro americano, e
também pioneiro a ultrapassar o orçamento de US$ 1 milhão para uma realização de todos os
ciclos populares italianos) mostra três personagens cruzando o território dos Estados Unidos,
de norte a sul, em busca de um tesouro.
Leone aumentou de novo o número de protagonista, acrescentando um terceiro anti-
-herói à dupla do filme anterior: um ladrão (Eli Wallach) veio se juntar aos dois caçadores de
recompensas (Eastwood e Van Cleef, este último num papel diferente), fragmentando ainda
mais a ação dramática, no que tange à construção em larga escala.
O título original – The Good, The Bad and The Ugly, cuja tradução literal para o por-
tuguês seria O Bom, o Mau e o Feio – contém, por si só, boa dose de ironia e irreverência.
Esse título passava ao espectador a impressão inicial de que cada um dos três adjetivos podia
ser aplicado, de forma estável, a um protagonista. A impressão é acentuada pela sequência de
abertura, que associa cada ator a um adjetivo, usando grafismos e imagens congeladas (free-
ze frames) – este último, um recurso estilísticos que aludia às experiências com montagem
realizadas por Truffaut em Os Incompreendidos (Les 400 Coups, François Truffaut, 1959) e
Jules e Jim (1962). O público tinha sido acostumado, durante décadas assistindo aos westerns
americanos, que herói era herói, e vilão era vilão. Esse código seria subvertido.
O terceiro adjetivo – o Feio – contém vários níveis de ironia. Tomado literalmente,
o termo parece destoar dos outros dois, porque faz referência a uma característica de outra
natureza que não a moral. Por si só, esta interpretação gera um efeito cômico. Mas é preciso

118 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


enfatizar que no inglês a noção de Ugly evoca diretamente a experiência estética do grotesco.
Existe no termo, então, uma dimensão suplementar de significado que faz referência à expec-
tativa da violência, tomada de forma crítica e irreverente.
A ironia pretendida por Leone vai além da brincadeira com o título. A estrutura nar-
rativa atribuía explicitamente a cada protagonista um adjetivo, em três cenas de abertura
(todas desconectadas da ação dramática principal), para em seguida dar início a uma série de
esquetes, envolvendo uma série de encontros e desencontros violentos entre os três anti-he-
róis, num processo contínuo de embaralhamento dos papéis de herói e vilão. Uma estratégia
narrativa que o próprio Leone explica assim:

Sempre achei que termos como bom, mau e violento não deviam ser tomados
num sentido estanque. Assim, me pareceu interessante desmistificar esses ad-
jetivos num cenário de western. Um assassino pode muito bem ter virtudes.
Pode demonstrar altruísmo, enquanto um homem supostamente bom é capaz de
matar uma pessoa com total indiferença. Alguém que parece inicialmente ser
violento pode, se formos capazes de conhecê-lo melhor, se mostrar mais nobre
do que parece, e até mesmo ser capaz de expressar carinho e ternura em certas
situações. (LEONE, 2005, p. 203).

A última frase se aplica perfeitamente ao terceiro protagonista – o Feio – introduzido


por Leone à estrutura em larga escala, por sua vez bastante semelhante à utilizada nos dois
westerns anteriores. O perfil desse anti-herói, contudo, é um pouco diferente. Tuco não fecha
a boca nunca, mente o tempo todo, procura levar vantagem em tudo. Está sempre suado,
sujo e maltrapilho. Ao contrário dos dois caçadores de recompensas (frios, profissionais e
eficientes), Tuco vive nervoso e agitado. Ele anda com um revólver amarrado num cordão
que pendura no pescoço, ao lado de crucifixos e amuletos. E tem um tique nervoso: se benze
de um jeito engraçado, fazendo o sinal da cruz invertido.
Christopher Frayling (2005, p. 221) observa, com razão, que Tuco deriva de um ar-
quétipo que pertence à tradição da commedia dell’arte e da literatura popular dos países
mediterrâneos, e não ao western. Ele é um pícaro, um vagabundo astucioso, como Sancho
Pança em Dom Quixote de La Mancha. Graças a esse personagem, que reapareceria em tra-
balhos subsequentes (com outros nomes, e interpretados por diferentes atores, mas mantendo
sempre a mesma caracterização), Umberto Eco comparou os filmes de Leone aos romances
da Renascença, que resgatariam tradições medievais europeias com um senso de “nostalgia
pagã” (ECO apud FRAYLING, 2005, p. 221).
É importante observar que a predileção por personagens com o perfil picaresco podia ser no-
tada, com mais discrição, nos filmes anteriores. Piripero (Joseph Egger), o agente funerário de Por
um Punhado de Dólares; Juan De Dios (Ralf Baldassarre), responsável por tocar o sino do vilarejo
no mesmo filme; e o profeta sem nome (de novo Egger) que dá dicas a Monco numa sequência
quase surrealista em Por uns Dólares a Mais, introduziram essa tradição do folclore italiano no
spaghetti western. A diferença é que, aqui, Leone traz do cenário de fundo para o primeiro plano
narrativo esse personagem arquetípico que pouco tem a ver com a tradição do western.

119
Tuco empresta ao filme, ainda, outro elemento da cultura italiana que marcaria forte
presença nos filmes subsequentes do diretor: o apego que certos personagens demonstram
pelo núcleo familiar mais próximo (pai, mãe, filhos e irmãos), cultivado junto a um desapego
flagrante pelas regras sociais. Se o apego à família existe claramente no sistema de códigos
do western norte-americano, o desapego às regras sociais não um padrão recorrente no gêne-
ro, mas sim na cultura ibérico-mediterrânea.
Essa operação de inserção de um traço cultural estrangeiro dentro do esquema narra-
tivo do western foi problemática, especialmente por causa do perfil do herói de Leone. Em
termos práticos, conciliar um protagonista tão amoral e solitário com essa cultura de apego
à família não parece ter sido tarefa simples. Mas Leone encontrou na própria estrutura social
italiana uma característica que o ajudou a driblar essa contradição: um traço cultural que o
sociólogo Edward C. Banfield (1958) de familismo amoral.
A pesquisa de Banfield procurou identificar, na década de 1950, aspectos da cultura
da região ao sul da Itália que pudessem explicar o relativo atraso econômico em que esta se
encontrava em relação ao restante do país, após a Segunda Guerra Mundial. O aspecto central
da questão, para Banfield, estava relacionado à união de dois pulsos sociais aparentemente
incompatíveis: um sentimento de forte apego ao núcleo familiar básico (pais, filhos e irmãos)
e outro sentimento, igualmente forte, de desapego a qualquer outra forma de organização so-
cial. Essa união formaria o que o sociólogo denominou de familismo amoral: um modelo de
comportamento social oriundo da combinação de uma série de fatores estruturais e culturais,
incluindo a religiosidade católica, a estrutura familiar fragmentada em núcleos menores a
cada geração (desde o século XIX) e – talvez o fator mais importante – a crescente urbaniza-
ção das sociedades. Banfield associava essa urbanização a um sentimento cada vez maior de
isolamento. O conjunto de tudo isso é assim descrito pelo sociólogo:

[O familismo amoral é] a inabilidade de determinados cidadãos agirem com a


intenção de realizar o bem comum ou, mais precisamente, de realizar qualquer
objetivo capaz de transcender o interesse material imediato do núcleo familiar
mais próximo. (BANFIELD, 1958, p. 9-10).

Banfield atribui a origem do familismo amoral a uma conjunção de fatores. O catolicismo


presente na Itália, a organização da família em pequenos núcleos que vão se desprendendo aos
poucos da estrutura familiar mais ampla (consequência direta da guerra), o culto aos valores
familiares dos ibéricos etc. Os comportamentos gerados a partir deste traço cultural estariam
resumidos em uma série de axiomas que Banfield enumera como características de um familista
amoral: profundo desprezo às instituições sociais e à comunidade como um todo; individualis-
mo exacerbado; desinteresse em lutar pelo bem comum (a não ser para tirar vantagem própria
para si ou para a família); crença de que só funcionários estatais têm obrigação de defender a
coisa pública; noção forte de que todos os políticos são corruptos e não farão nada além do
estritamente necessário para se manter nos cargos; ideia de que a lei sempre será desrespeitada
se não houver razão para temer uma punição; e, mais importante de tudo, a firme certeza de que
todos os indivíduos fora de seu núcleo familiar agem exatamente como ele.

120 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Todos esses axiomas estão claramente representados na obra de Leone. Em outras
palavras, traços da cultura italiana abriam caminho dentro dos filmes de Leone, como expres-
são cultural desses novos contextos sócio-históricos do país, mesclados à iconografia e aos
esquemas narrativos de um gênero fílmico estrangeiro. Nesse sentido, o familismo amoral
pode ser considerado como mais uma pré-condição determinante da assinatura narrativa e
estilística de Leone; uma pré-condição expressa dentro da caracterização de personagens, e,
portanto, dentro da vertente temática da poética do cinema.
Por definição, um familista amoral se comporta seguindo os padrões clássicos de certo
e errado, mas somente dentro de seu núcleo familiar mais próximo, pois considera que ape-
nas estas pessoas são dignas de confiança dentro de uma sociedade cada vez mais corrupta.
Uma vez inserido em círculos sociais mais amplos, que vão além da família, o familista
amoral deixa de lado as noções de certo e errado, passando a se comportar da maneira mais
conveniente para si e para os parentes mais próximos. Como se pode perceber, este é um
comportamento ajustado à sensibilidade mais individualista e hedonista dos anos 1960.
Os primeiros heróis de Leone, já vimos, são homens solitários. Quando não pertencem
a nenhum núcleo familiar, essas pessoas se tornam individualistas amorais. É o caso de Joe/
Monco/Blondie. Esse personagem, portanto, pode ser visto como um amálgama de partes
do herói americano (retendo dele o caráter solitário e desprezando a noção de que ele está
pronto para defender os valores morais da sociedade, mesmo que esta não lhe admita como
integrante) com o comportamento familista amoral da cultura italiana.
Na verdade, quando Joe liberta Marisol e sua família em Por um Punhado de Dólares,
dizendo ter conhecido alguém como ela antes, ele está expondo uma motivação oculta: já
teve uma família – mãe, esposa ou namorada – que foi destruída, tendo por isso se tornado
uma espécie de espectro vagando pelo deserto; um familista amoral sem uma família.
Mortimer, de Por uns Dólares a Mais, apresenta a mesma caracterização. Por trás
do caçador de recompensas meticuloso está um ex-militar disposto a vingar a morte de sua
irmã. Evocando o personagem de Gregory Peck em Estigma da Crueldade, como já apontado
anteriormente, Mortimer encontra motivação para seguir em frente olhando repetidamente a
fotografia da irmã, dentro de um relógio de bolso. Mas o primeiro protagonista de Leone em
que a característica do familismo amoral aparece explicitamente é Tuco.
Três Homens em Conflito leva adiante a prática dos dois tipos de alusionismo. Na di-
mensão mais discreta, Leone foi buscar inspiração em obras que trabalhavam o mesmo tema
(a ambiguidade moral) com humor negro, e que tinham a guerra como pano de fundo: Mon-
sieur Verdoux (Charles Chaplin, 1947), sobre um bancário desempregado que se transforma
num assassino para continuar sustentando a família, e o romance Viagem ao Fim da Noite,
de Louis Ferdinand Céline, um dos escritores prediletos dos romancistas beatniks, que tanto
influenciaram a contracultura dos anos 1960.
No nível do pastiche, Três Homens em Conflito amplia e diversifica o número de cita-
ções, tornando-as mais facilmente reconhecíveis aos cinéfilos, especialmente aos americanos
(convém não esquecer que Leone estava sendo bancado por um estúdio de Hollywood e fazia
o filme para um público-alvo eminentemente estadunidense).

121
Entre as citações reconhecíveis está a cena em que Tuco assiste à chegada de um trem
com um prisioneiro amarrado à frente (figura 49), momento que evoca O General (The
General, Buster Keaton, 1926, figura 50); a aparição de uma carruagem cheia de corpos no
deserto (figura 51), aludindo a O Homem que Luta Só (Ride Lonesome, Budd Boetticher,
1959, figura 52); e o clássico movimento de grua que parte do plano médio de um persona-
gem para, ao erguer e afastar a câmera ao mesmo tempo, revelar um panorama devastador
da guerra civil norte-americana, com cadáveres e feridos que se estendem até a linha do
horizonte (figura 53), numa citação clara a E o Vento Levou (1939, figura 54).

FIGURA 49: O prisioneiro confederado amarrado na locomotiva, perto do final de Três Homens em Conflito,
é uma referência a um clássico de Buster Keaton...

FIGURA 50: ...a comédia O General (1926), também ambientada na guerra civil norte-americana, e que contém
um momento visualmente idêntico.

No filme também está uma das sequências mais violentas da obra de Leone: o espanca-
mento de Tuco num campo de concentração. Durante quatro minutos e um segundo (241 se-
gundos), um capanga de Angel Eyes bate em Tuco, para tentar extrair dele uma informação.
A cena foi inteiramente cortada da versão lançada nos Estados Unidos em 1967.

122 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


FIGURA 51: A carruagem que avança sem controle pelo deserto, com todos os ocupantes mortos, faz
referência a um longa-metragem de Budd Boetticher...

FIGURA 52: ...O Homem que Luta Só (1959), em que o herói também intercepta uma carruagem-fantasma,
acontecimento que modifica o curso do enredo.

FIGURA 53: O uso da grua para descortinar um panorama revelador dos horrores da guerra civil norte-
-americana é uma referência a uma cena clássica de...
FIGURA 54: ...E o Vento Levou (1939), de Victor Fleming, cuja sequência similar é um dos momentos mais
citados da Era de Ouro do cinema americano.

A obsessão com o realismo da pancadaria (worldmaking) é importante para o resultado


da cena. Leone pesquisou como ocorriam sessões de tortura na guerra e teve o auxílio do
próprio ator Eli Wallach, que serviu no Exército norte-americano como paramédico. Wallach
contou que quando uma vítima de tortura desmaiava os agressores a faziam recobrar a cons-
ciência pressionando o nervo supraorbital, sobre as pálpebras. A pressão exercida nesse local
era suficiente para que um homem inconsciente voltasse a si quase imediatamente. Leone
usou a informação e incluiu esse procedimento na montagem final.
Para Era uma Vez no Oeste, Leone mais uma vez adotou a estratégia de intensificar
elementos do esquema narrativo usado nos filmes anteriores. Dando sequência à lógica de
ampliar o número de protagonistas, Leone reaproveitou a dinâmica do trio de Três Homens
em Conflito, acrescentando um quarto personagem principal – uma mulher, primeiro (e úni-
co) personagem feminino importante de Leone. Há ainda um quinto personagem importante,
o empresário Morton (Gabriele Ferzetti), mas este não se caracteriza como protagonista, pois
tem consideravelmente menos tempo em cena do que os outros quatro.
Jill McBain (Claudia Cardinale) consiste no centro emocional do enredo, que gira em
torno de disputas por um pedaço de terra no meio de uma região deserta do oeste, situada
sobre uma das poucas reservas de água subterrânea do território. Por causa da presença de
água, logo se descobre que a ferrovia transcontinental que cruza o país de leste a oeste, e
que está sendo construída no exato momento em que a ação dramática se desenrola, terá que
passar pelo tal terreno, o que o valorizará.
Ex-prostituta recém-casada com o dono do terreno, Jill herda as terras logo que o su-
jeito e seus filhos são assassinados, no início de Era uma Vez no Oeste. Assim, ela se torna
alvo da disputa entre Frank (Henry Fonda), o assassino de olhos azuis cujo objetivo é tornar-
-se empresário, e Harmonica (Charles Bronson), misterioso forasteiro errante e de passado
incerto que se põe ao lado da moça por motivos que só são totalmente esclarecidos no final
do filme. Leone usa a técnica dos flashbacks progressivos (mesmo recurso narrativo utiliza-
do em Por uns Dólares a Mais e que intensifica a fragmentação da construção narrativa em
larga escala). A equação se completa com a aparição de Cheyenne (Jason Robards), líder de
uma gangue de ladrões de banco que se envolve no caso por acreditar que Frank teria sido o
assassino da família de Jill e estaria tentando atribuir a ele a autoria dessas mortes.

124 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


A dinâmica entre os três personagens masculinos é, em essência, a mesma estabelecida
no enredo de Três Homens em Conflito. Um dos heróis, Harmonica, tem a mesma caracte-
rização do Joe/Monco/Blondie: um homem de passado desconhecido, que não demonstra
nenhum interesse de estabelecer laços sociais; de poucas palavras, com gestos lentos e lar-
gos; pontaria certeira demonstrada num duelo contra um trio de pistoleiros profissionais, que
acontece logo nos 15 minutos iniciais, como já havia ocorrido tanto em Por um Punhado de
Dólares quanto em Por uns Dólares a Mais.
Um olhar atento nos revela traços do familismo amoral, na forma do passado misterio-
so que, como havia ocorrido com Mortimer em Por uns Dólares a Mais, é revelado através
dos flashbacks que somente no final expõem com clareza a motivação dele: obter vingança
contra o homem (Frank) que matou seu irmão. Harmonica é, como Joe/Monco/Blondie e
também como Mortimer, um familista amoral sem família.
O segundo protagonista, Frank, descende de Angel Eyes (Três Homens em Conflito).
A diferença é que neste filme ele é caracterizado claramente como um vilão psicopata, ao
contrário do que ocorria no filme anterior, em que Leone propositalmente embaralhava os
papéis de herói e vilão. A escalação de Henry Fonda representa mais uma tentativa delibe-
rada do diretor no sentido de subverter as expectativas do público em relação a convenções
do gênero. Afinal de contas, Fonda era, desde a década de 1930, um dos mais atores mais
associados ao papel do mocinho do western, tendo protagonizado filmes como Consciências
Mortas (The Ox-bow Incident, William Wellman, 1943) e Paixão dos Fortes (1946).
No filme, Fonda interpreta um canalha desalmado. A cena de apresentação do perso-
nagem demonstra como Leone se deliciava com o jogo intertextual entre o seu personagem
e os heróis do western americano interpretados pelo ator (ou seja, alusionismo). Nela, Frank
lidera pistoleiros na chacina da família de Jill. A decupagem esconde propositalmente o rosto
do ator até o momento mais tenso, quando este (até então visto apenas de costas) prepara-se
para matar um garoto de seis anos, para não deixar testemunhas.
A cena inicia com a família McBain preparando-se para o almoço (figura 55). Uma
súbita revoada de pássaros, acompanhada da inesperada ausência dos ruídos dos animais do
bosque (que até aquele momento podiam ser escutados com clareza), alerta os moradores
para a presença de algo ameaçador entre os arbustos (figura 56).

FIGURA 55: A mesa exagerada e a arquitetura requintada do chalé no meio do deserto sinalizam os sonhos
ambiciosos da família irlandesa McBain.
FIGURA 56: Sons fora do quadro são importantes para Leone: a interrupção súbita do canto dos pássaros
alerta Brett McBain para a presença de humanos no bosque.

O homem, o adolescente e a menina são mortos a tiros, sem que os agressores se mos-
trem (figura 57). Resta apenas o menino mais novo, que está dentro de casa.

FIGURA 57: Da mata, sem que os agressores se mostrem, vem uma saraivada de tiros que mata o patriar-
ca e dois adolescentes; resta apenas um menino.

É um ato de violência vil, contra crianças e um homem desarmado. Uma violência desse
tipo jamais seria cometida, num western americano, por homens brancos – por índios, sim,
como ocorre em Rastros de Ódio (1956), em cena citada explicitamente aqui através de o súbito
silenciar dos animais, que também denuncia a presença dos agressores no filme americano – ou
seja, pastiche. Há, entretanto, uma diferença crucial, além da raça dos agressores. Em Rastros
de Ódio, o massacre em si não é mostrado (está contido numa elipse). Numa só cena, usando as
técnicas do pastiche e da ironia, Leone subverte duas vezes um esquema do gênero.
São cinco os pistoleiros. Vestidos com sobretudos guarda-pó, eles saem da mata em
seguida. Leone os filma de longe, ligeiramente fora de foco e com contraluz acentuada, de
forma que não podemos ver seus rostos (figura 58). Há um corte, e o contraplano os mostra
de costas (figura 59). Eles se aproximam da criança mais nova. A música lúgubre de Ennio
Morricone, tocada com uma guitarra elétrica, acentua a dramaticidade. O menino olha para o
líder do grupo, que está à frente (figura 60).

126 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


FIGURA 58: Só então a gangue sai do esconderijo nos arbustos e caminha lentamente até o chalé; o con-
traluz impede que o público veja os rostos dos bandidos.

FIGURA 59: Após um corte, o ângulo muda para uma tomada alta dos pistoleiros de costa, avançando na
direção da criança indefesa: composição recessiva.

FIGURA 60: Num traveling para frente, a câmera gira em torno dos pistoleiros até transformar uma
composição recessiva em profundidade de campo...
FIGURA 61: ...num close-up extremo do rosto de Henry Fonda; comentário irônico sobre Fonda ser, ao lado
de John Wayne, o maior mocinho do gênero.

FIGURA 62: Também focalizado num close-up extremo, o mais jovem dos McBain encara o vilão; a justapo-
sição de close-ups parece congelar o tempo.

FIGURA 63: Frank (Fonda) decide não deixar testemunhas do massacre: ergue o revólver, cospe fora um
pedaço de tabaco e atira na direção da câmera...
Sem cortar, a câmera faz um giro de 180 graus, agora para exibir diretamente o rosto
do líder dos pistoleiros, reenquadrado em close-up extremo: é Henry Fonda. A decupagem é
deliberadamente estudada para causar um choque na plateia, que sabe da presença de Fonda
no filme (o nome aparece nos créditos, durante a cena anterior), mas ainda não tem ideia de
que papel ele desempenhará.
Com expressão enfastiada e gestos calculadamente lentos, o bandido cospe um pedaço
de fumo – recurso dramático exaustivamente explorado por Leone, e hábito comum em he-
róis do western americano, como aquele interpretado pelo próprio Fonda em O Retorno de
Frank James (The Return of Frank James, Fritz Lang, 1941) e também por John Wayne em
Legião Invencível (1949) – e avisa aos comparsas que não devem deixar sobreviventes. O
rosto do menino, amedrontado, é justaposto ao olhar frio de Henry Fonda (figuras 61 e 62).
O pistoleiro atira na criança a sangue frio. No momento do tiro, há um dissolve e a imagem
do cano do revólver, apontando diretamente para o espectador num close-up extremo, se
funde com a imagem de uma locomotiva avançando em direção à câmera (figuras 63 e 64).
Nesse caso, é interessante observar que Leone optou por não utilizar a tradicional
representação gráfica da violência, narrando o assassinato em si através de uma elipse. Esta é
a primeira vez, nos quatro westerns de Leone, em que um ato de violência cometido por um
protagonista não é exibido explicitamente. A atitude é compreensível, afinal: exibir direta-
mente o assassinato a sangue frio de uma criança poderia provocar no público uma rejeição
não a Frank, o personagem, mas ao próprio Leone.

FIGURA 64: ...num cross-fade em que a imagem da arma se transforma numa locomotiva indo em direção à
câmera (e o som do tiro vira o resfolegar do trem).

O terceiro protagonista de Era uma Vez no Oeste, Cheyenne, tem origem na caracteri-
zação de Tuco como um pícaro: um bandido romântico e tagarela. Apesar de roubar e matar
gente desarmada, ele fica furioso ao saber que os assassinos da família McBain usavam
guarda-pós cor de terra, idênticos ao que o bando liderado por ele utiliza (“eu jamais atiraria
numa criança”, diz). Cheyenne se revela um individualista amoral (ou um familista amoral
sem família); como Harmonica, é um solitário, mas a simpatia instantânea dele por Jill não
traz qualquer traço de interesse sexual. Ao contrário: Cheyenne associa Jill à própria mãe (“a
mulher mais fina que já conheci”, afirma). A mãe de Cheyenne não sabia quem tinha sido o

129
pai dele (“por uma noite, certamente foi o homem mais feliz do mundo”), mas criou o filho
com liberdade e sabedoria, pelo menos na opinião dele. Em outras palavras, a importância da
noção de família para Cheyenne o torna mais digno de simpatia.
Por fim, o quarto protagonista é uma mulher. Para construir a caracterização de Jill,
Leone recorre ao alusionismo: a situação vivida pela personagem (mulher pressionada a ven-
der uma propriedade valiosa contra a sua vontade) é idêntica à experimentada pela dona da
taverna (Joan Crawford) de Johnny Guitar (Nicholas Ray, 1954). Ao contrário do que ocorre
neste, porém, Jill é fraca. Não se envolve em confrontos, se vê dominada fisicamente por pis-
toleiros, é obrigada a fazer sexo com o personagem de Henry Fonda (um dos muitos estupros
encenados ao longo da obra de Leone), e não consegue impedir a venda de sua propriedade
(que acaba sendo comprada e devolvida a ela pelo personagem de Charles Bronson; ou seja,
ela só consegue alcançar o objetivo com a ajuda de um homem).
Quanto ao pastiche, basta lembrar do comentário de Jean Baudrillard. A estrutura nar-
rativa de Era uma Vez no Oeste foi concebida como um mosaico em que uma citação levava
à próxima, e assim por diante. O objetivo de Leone era realizar uma elegia ao gênero, home-
nageando-o ao contar a história dele através das citações, que podiam consistir tanto em relei-
turas críticas e irônicas de determinados códigos quanto em alusões diretas que respeitavam
e homenageavam nostalgicamente esses códigos.
Algumas citações são óbvias, como a cena de abertura, com três pistoleiros esperando
a chegada de um trem numa estação semideserta (figura 65) – a mesma situação dramática é
mostrada em segundo plano durante Matar ou Morrer (1952, figura 66). Ou a cena em que
o menino Timmy McBain se esgueira por entre árvores para caçar pássaros (figura 67),em
tomadas que aludem a uma cena de Os Brutos Também Amam (1953), em que outra criança
faz os mesmos movimentos para atirar em um cervo (figura 68).
A chegada da locomotiva, na abertura (figura 69), consiste numa citação múltipla.
Visualmente, alude a uma tomada famosa de O Cavalo de Ferro (1924, figura 70), obtida
com a câmera colocada num buraco sob os trilhos; tematicamente, a chegada da ferrovia – e
o consequente despertar da cobiça de pistoleiros – simboliza a domesticação da região selva-
gem pelo homem branco colonizador. Esse tema foi explorado em muitos westerns, inclusive
Os Conquistadores (Western Union, Fritz Lang, 1941) e A Conquista do Oeste (1962).

FIGURA 65: A sequência de abertura de Era uma Vez no Oeste, que flagra a monotonia de três pistoleiros
aguardando a chegada de um trem, é citação de...
FIGURA 66: ...Matar ou Morrer (1952), em que três pistoleiros esperam um comparsa em cenário parecido,
que inclui até uma caixa d’água em segundo plano.

FIGURA 67: Em Era uma Vez no Oeste, pouco antes da chegada dos pistoleiros ao rancho da família McBain,
a câmera segue um menino fingindo caçar pássaros...

FIGURA 68: ...em uma citação direta a Os Brutos Também Amam (1953), em que uma criança caça um cervo
e é interrompida pela chegada de um cavaleiro.
FIGURA 69: O ângulo baixo de câmera escolhido para filmar o plano que mostra a locomotiva pela primei-
ra vez em Era uma Vez no Oeste, durante os créditos...

FIGURA 70: ...é exatamente igual à imagem icônica da viagem do trem no clássico do cinema mudo O Cavalo
de Ferro (1924), um dos primeiros longas de John Ford.

FIGURA 71: Uma das sequências mais lembradas de Era uma Vez no Oeste faz reverência aos westerns de
John Ford através das montanhas de Monument Valley.
FIGURA 72: A reserva indígena no Utah (EUA) era o local preferido de John Ford, que fez lá oito longa-me-
tragens, inclusive o clássico Rastros de Ódio (1956).

Um longa-metragem citado várias vezes é Johnny Guitar (1954). Além de o perso-


nagem feminino ter sido inspirado na protagonista dele, o personagem Harmonica também
descendeu do mesmo filme, só que trocando o violão por uma gaita. O herói feito por Henry
Fonda em O Retorno de Frank James (1941), que também se chamava Frank, retém um
hábito de muitos dos personagens de Leone: mascar tabaco. A cena em que Cheyenne entra
num bar e bebe água, revelando um par de algemas, foi copiada de Os Comancheros (The
Comancheros, Michael Curtiz, 1961).
Isso tudo sem falar da sequência em que Jill, viajando de Flagstone (uma combinação –
mais um pastiche – de Flagstaff com Tombstone, duas locações clássicas do western) para o rancho
do marido, atravessa a região do Monument Valley, onde John Ford filmou oito westerns, consa-
grando o cenário como um dos mais característicos do gênero (figuras 71 e 72). Praticamente todas
as cenas de Era uma Vez no Oeste comportam uma ou mais citações explícitas como essas. No que
se refere ao pastiche, o longa-metragem representa o ponto mais alto do estilo de Leone.

3.4 FIM DA LINHA

O filme seguinte, Quando Explode a Vingança, marca uma ruptura na estratégia de


intensificação. Pela primeira vez, Leone tinha um objetivo primário que não expressava qual-
quer relação com o enredo do filme em si (como vimos antes, ele queria fazer um comentário
pessoal sobre os spaghetti westerns de cunho político-ideológico). Além disso, Quando Ex-
plode a Vingança foi concebido como um filme que Leone apenas produziria; ele só assumiu
a direção com as filmagens em andamento, devido à pressão dos atores principais.
Ainda assim, na qualidade de produtor, Leone participou de todo o processo de desen-
volvimento do roteiro, incluindo a caracterização dos personagens e a estrutura fragmentada
da construção narrativa em larga escala (unidade narrativa dividida entre dois protagonistas;
quebra da continuidade cronológica através do uso constante de flashbacks progressivos). Dessa
supervisão surgiu um dos mais explícitos familistas amorais da obra de Leone: o assaltante Juan
(Rod Steiger).

133
A própria figura de Juan é suficiente para inscrevê-lo na galeria de pícaros de Leo-
ne: pés descalços, barrigudo, barba mal aparada, cabelos desgrenhados e grudados no rosto
queimado de sol, roupa suja e puída, largas manchas de suor nas axilas, barrigudo, risada
maníaca.
Juan é o primeiro protagonista de um filme de Leone que possui família: seis filhos (de
mães diferentes), irmãos e sobrinhos. Juntos, os integrantes do clã abrem o filme assaltando
uma carruagem. A encenação e a decupagem enfatizam os elementos picarescos, a ironia, o
senso de grotesco; são todos elementos característicos de um legítimo anti-herói inspirado na
tradição literária da commedia dell’arte.
O filme abre com uma tomada insólita, que mostra um formigueiro sendo destruído
por um jato de urina (figura 73) – mais tarde, esta cena comporá uma rima narrativa me-
tafórica com o balé de violência da sequência final, em que uma multidão de camponeses
indefesos acaba assassinada num tiroteio com militares. O responsável é Juan (figura 74).
Ele apanha carona numa carruagem (figuras 75 e 76) que leva um bispo (mais uma vez, a
iconografia religiosa é usada para adicionar uma camada suplementar de ironia) e meia dúzia
de burgueses bem vestidos (figura 77).

FIGURA 73: Jato de urina destrói formigueiro: close-up extremo e rima irônica com o final, numa metáfora
em que as formigas representam os revolucionários.

FIGURA 74: A figura grotesca e bizarra de Juan (Rod Steiger) o inscreve instantaneamente na galeria de
pícaros da tradição literária ítalo-espanhola
FIGURA 75: O condutor da carruagem (primeiro plano) autoriza Juan a subir a bordo (segundo plano):
composição recessiva em profundidade de campo.

FIGURA 76: A atuação histriônica de Steiger faz par com o figurino – cabelos suados, pés descalsos,
calças curtas demais – para sublinhar o grotesco da figura.

FIGURA 77: Os burgueses na carruagem, inclusive um bispo, recepcionam o mexicano com desprezo; a
composição recessiva tem outro rosto como moldura.
FIGURA 78: Os close-ups extremos dos rostos dos personagens são intercalados com planos-detalhes de
bocas com pedaços de comida presos entre os dentes...

FIGURA 79: ...que irá reverberar dramaticamente mais tarde, quando Juan tentar estuprar a mulher numa
arena circular; o estupro é encenado como um duelo...

FIGURA 80: ...Em que planos gerais, com a encenação realizada em diagonal, são intercalados a close-ups
extremos dos personagens – e não apenas dos rostos!
O modo como Leone filma os burgueses comendo, enquanto riem de Juan falando
em inglês (e pensando que ele não os entende) enfatiza ainda mais o grotesco: profusão de
planos-detalhes de bocas mastigando pedaços de comida (figura 78), com restos presos nos
dentes. Mais à frente, camponeses atacam a carruagem, e só então descobrimos que tudo
não passa de uma emboscada tramada pelo próprio Juan, que lidera o assalto. A sequência
termina com uma cena que mostra Juan estuprando uma das mulheres da carruagem – mais
um estupro para a longa galeria de cenas semelhantes nos filmes de Leone.
Leone não filma o estupro em si (que está contido em uma elipse). A abordagem de
Juan à mulher tem decupagem semelhante a um duelo: sem diálogos, num cenário circular,
em que os dois rivais se movem um ao redor do outro (figura 79), o tempo distendido através
da fragmentação do espaço fílmico em close-ups extremos e planos-detalhes, até que o me-
xicano alcança a mulher e a agarra (figura 80). Juan domina a moça e, expressão vitoriosa,
encerra a cena com uma frase irônica: “Se desmaiar agora, vai perder a melhor parte!”. A
linha de diálogo é coberta por uma imagem que resume perfeitamente o grotesco da situação:
um close-up extremo da bunda do ator Rod Steiger.
Além de Juan, Quando Explode a Vingança tem um segundo protagonista: o irlandês
Sean (James Coburn), membro do IRA, que se encontra no México para auxiliar os campo-
neses na rebelião contra o governo nacional (o filme se passa entre os anos de 1910 e 1920,
durante a Rebelião Mexicana). Embora destoe dos demais heróis de Leone, por ter ideologia
e motivação políticas, Sean passa por uma jornada no decorrer do filme, tornando-se mais
desiludido. Ele faz amizade com Juan e se decepciona com a causa revolucionária (após des-
cobrir que os líderes camponeses estão mais interessados em enriquecer do que em levar a
revolução ao poder), sacrificando-se no final por ter contribuído para a destruição da família
do assaltante. Este, por sua vez, vê todos os filhos, irmãos e sobrinhos serem mortos, tornan-
do-se sem querer um herói dos revolucionários; um herói que odeia a revolução.
Apesar do credo político, um aspecto de Sean reflete o seu individualismo amoral.
Através de flashbacks inseridos gradualmente com lembranças de Dublin, percebemos que a
mudança para o México não ocorreu apenas por razões ideológicas, mas também por um mo-
tivo afetivo: a namorada por quem era apaixonado havia sido assassinada, fazendo-o deixar a
Irlanda para tentar superar o trauma. Mais um familista amoral sem família.
Quanto ao uso de múltiplos protagonistas, Leone parecia gostar da ideia de ter uma di-
nâmica entre heróis com caracterizações distintas. Isso pode ser conferido em todos os filmes
dele, a partir de Por uns Dólares a Mais, e também aparece em Meu Nome é Ninguém, última
incursão de Leone pelo western. Nesse último caso, é importante frisar que o filme não foi
dirigido oficialmente por ele. Leone aparece nos créditos como produtor e argumentista. Na
prática, sabe-se que ele trabalhou com o roteirista Ernesto Gastaldi, escolheu parte da equipe
criativa (incluindo Ennio Morricone) e dirigiu todas as cenas registradas nos Estados Unidos,
em variadas locações nos estados de New Mexico e na cidade de New Orleans. Essas cenas
consistem de aproximadamente dois terços do filme (HUGHES, 2004, p. 246).
Nesse longa-metragem, a técnica do pastiche aparece bastante, a começar pelo próprio
título (a frase Meu Nome é Ninguém foi retirada do diálogo de Ulisses com o Ciclope, na
Odisseia de Homero). Porém, dessa vez Leone utiliza com mais frequência o alusionismo

138 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


mais sutil. Um bom exemplo recai na aparição do Bando Selvagem: embora o nome da qua-
drilha seja uma alusão ao título original de Meu Ódio Será Sua Herança (1969), sua repre-
sentação visual alude a outro longa-metragem, Dragões da Violência (1958).
Os dois protagonistas são caracterizados de maneira arquetípica, cada um evocando
uma vertente do western. A escalação dos dois atores principais deixa isso explícito. Para
representar o veterano Jack Beauregard, Leone trouxe de volta Henry Fonda. No papel do
jovem fã que pretende suceder o ídolo está Mario Girotti (pseudônimo: Terence Hill), intér-
prete do personagem Trinity.
Da mesma forma que ocorrera em Era uma Vez no Oeste, a escalação de Fonda faz
parte de um jogo intertextual com personagens anteriores interpretados por ele mesmo: ho-
mem solitário, de poucas palavras, que nos filmes americanos era um altruísta. Aqui, ele é
um solitário interessado exclusivamente em coletar dinheiro suficiente para comprar uma
passagem de navio que lhe permita viajar para a Europa. O mesmo jogo intertextual justifica
a escalação de Girotti. Embora todos se refiram ao personagem dele como Nobody (em por-
tuguês, Ninguém), o que é ao mesmo tempo brincadeira irônica (porque o que ele mais deseja
é ser alguém) e pastiche (citação à Odisseia, de Homero), é óbvio que se trata do mesmo
Trinity dos dois filmes assinados por Enzo Barboni. A caracterização de Nobody é a mesma
de Trinity, até mesmo no figurino. Ele também é errante e solitário.
Nobody é um pícaro, um vagabundo que usa de esperteza para se safar de confusões.
Veste roupas sujas, é preguiçoso, prefere usar as mãos ao revólver (embora seja um ás com
uma arma nas mãos). Nesse ponto, ele se distancia um pouco do herói característico de Leo-
ne, pois é menos violento; de fato, Nobody nunca é apresentado como um criminoso, capaz
de matar por dinheiro, como os heróis anteriores de Leone. Essa característica provoca a
substituição dos duelos a bala, em algumas cenas, por trocas de sopapos coreografadas como
número de circo, como ocorria nos spaghetti westerns que Leone estava criticando.
Na prática estilística o filme é desigual, às vezes reproduzindo e outras vezes se afas-
tando dos recursos recorrentes em Leone (esse fato é provavelmente explicado porque, afinal
de contas, Tonino Valerii era oficialmente o diretor). As coreografias de tapas e chutes são
encenadas e decupadas através de técnicas que preservam o senso de espaço e tempo fílmi-
cos: as tomadas são mais longas, há menos close-ups e mais planos gerais; e a encenação
frequentemente mostra os atores atuando num eixo horizontal em relação à câmera, com pro-
fundidade de campo menor do que nos westerns anteriores. Este mesmo estilo de encenação
pode ser observado nos filmes de Valerii, como O Preço do Poder (1969) e Dias de Ira (Il
Giorni Dell’Ira, Tonino Valerii, 1967).
No que se refere à temática e à construção em larga escala, a cena analisada a seguir
respeita bem mais os esquemas do gênero do que os demais filmes de Leone. Trata-se de uma
briga de bar, momento familiar para qualquer espectador acostumado com westerns; e foi
filmada usando-se o estilo clássico de continuidade invisível, como um diretor veterano de
westerns nos Estados Unidos o faria, nos anos 1930-1960: predominância de planos america-
nos ou médios, de longa duração. A encenação horizontal resulta em imagens planimétricas,
com menos senso de profundidade.

139
Após este filme, Leone não retornaria mais ao western, tendo se dedicado ao projeto
que acalentava desde o começo da carreira: um épico gângster cujo conceito central era a vio-
lência como motor propulsor da prosperidade dos Estados Unidos. Embora lidasse com um
gênero diferente, Leone trouxe consigo todo o repertório de técnicas estilísticas e narrativas,
a começar pelo perfil dos heróis, pelas citações abundantes e pela representação da violência.
O filme de gângster, que nos anos 1930 tinha sido um dos gêneros mais populares dos
Estados Unidos, passava por uma onda de revitalização após o grande sucesso de O Poderoso
Chefão (1972). Francis Ford Coppola, assim com a maior parte dos cineastas da geração New
Hollywood, assimilara alguns recursos estilísticos desenvolvidos pelos diretores europeus
dos anos 1960, inclusive Leone. Seus filmes já tinham heróis amorais e violência gráfica.
Mesmo assim, Leone teve problemas de ordem moral. Ele precisou lutar para con-
vencer executivos que os dois personagens centrais eram viáveis para uma audiência ame-
ricana. O problema estava no perfil violento de ambos. O épico mostrava a ascensão de
Noodles (Robert De Niro) e Max (James Woods), de jovens e ambiciosos ladrões de padaria
no Brooklyn a chefes de um império mafioso. Nessa trajetória, os dois agiam sem qualquer
limite moral: assassinatos, assaltos, estupros. Ninguém sofria qualquer tipo de crise de cons-
ciência por causa disso, e nem mesmo uma punição simbólica. Mas o filme foi feito.
A cena em que Noodles corteja a atriz Deborah (Elizabeth McGovern), e termina
estuprando-a após ficar furioso com a recusa dela em ceder às investidas, sintetiza algumas
dessas características. Sua análise permite perceber como Leone ajustou o perfil do anti-herói
para um gênero urbano, em que ele é obrigado a viver em sociedade. No século XX, afinal de
contas, a opção de abandonar a sociedade e viver vagando pelo deserto não existia mais. Era
preciso seguir regras sociais, mesmo que apenas por aparência.
O longa-metragem é narrado do ponto de vista de Noodles que, chegando à velhice em
1968, começa a recordar o passado. Toda a atmosfera é de nostalgia, incluindo a música – a
mais convencional composta por Morricone para Leone, repleta de orquestras de cordas e
big bands jazzísticas que evocam a música verdadeira ouvida nos tempos da juventude do
protagonista – com citações a fraseados musicais de trechos de canções conhecidas (ou seja,
pastiche). O tema central, que aparece em diversas versões e arranjos no decorrer do filme,
consiste numa adaptação da canção espanhola Amapola, de 1922.
A nostalgia enfatiza uma “insatisfação latente com a cultura do presente, deixando um
vazio que preenchemos com a nostalgia por um passado idealizado” (HUTCHEON, 1998).
Trata-se de outra experiência estética associada à condição pós-moderna. A nostalgia é ele-
mento central também na estrutura narrativa não-cronológica, já que a maior parte do enredo
consiste nas lembranças entrelaçadas de dois períodos distintos do passado (1923 e 1933), a
partir da mente de um homem que se encontra mais de três décadas depois.
Aliás, a construção narrativa em larga escala enfatiza a maior ousadia em Leone em
direção à intensificação de sua prática narrativa. As memórias do mafioso são contadas de
forma não linear, com flashbacks fora de ordem, que confundem deliberadamente a realidade
com a fantasia, de forma que o espectador nunca tem certeza se está vendo o que ocorreu
realmente ou representa uma versão idealizada do passado de Noodles, distorcida pelas pró-
prias memórias do delinquente. Era Uma Vez na América trafega indistintamente entre três

140 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


épocas, indo e voltando no tempo. Durante todo o filme, somos levados a pensar que o pre-
sente narrativo é o ano de 1968; o passado é acessado através de lembranças induzidas pelo
ópio – o personagem é frequentador de bares de ópio – e que Leone revela, somente na cena
final, serem distorcidas em variados graus de realidade.
Nesse ponto, Leone utiliza outro recurso narrativo da continuidade intensificada: a
subjetividade das tramas, ou de parte delas, que se passariam exclusivamente na mente de um
personagem, sem correspondência direta com a realidade diegética (BORDWELL, 2006, p.
80). A cena final foi pensada para pôr em nova perspectiva toda a trama: aquelas memórias
do passado corresponderiam à realidade ou não passariam de um sonho de ópio do mafioso?
Ao longo deste capítulo, analisamos os recursos recorrentes empregados por Leone
para estruturar a temática e a construção narrativa em larga escala de seus filmes. Confirma-
mos, através de uma análise fílmica detalhada, que os padrões narrativos recorrentes na obra
dele (pastiche e alusionismo em variados graus de ênfase, heróis violentos, individualistas e
de moral ambígua, representação gráfica da violência, ironia e nostalgia, releitura de gêneros
rigidamente codificados) sempre buscavam revisar os esquemas narrativos da fase clássica
do cinema.
Procuramos, também, analisar os contextos socioculturais nos quais esses padrões re-
correntes surgiram para Leone, instituindo-se como limites ou pré-condições que o influen-
ciaram nesse processo. Vimos, assim, que o traço em comum entre os usos que Leone fazia
dos recursos narrativos disponíveis era o pendor pela ostentação, o gosto pelo exagero, aquilo
que os críticos dos Cahiers du Cinéma chamaram de “barroquismo”. Por sua vez, esse pen-
dor confirma a intensificação de características narrativas comuns ao repertório do cinema
clássico, em direção à poética da continuidade intensificada.
No próximo capítulo, aplicaremos a mesma metodologia para analisar a prática estilís-
tica de Leone (ou seja, a terceira vertente da poética do cinema). Pretendemos confirmar até
que ponto essa retórica inflamada também aparece na maneira como ele solucionava outros
problemas de representação com os quais se defrontava. Saímos do terreno narrativo para
discutir, agora, questões de forma fílmica.

141
CENA DE “ERA UMA VEZ NA AMÉRICA” (1984)
4. PRÁTICAS ESTILÍSTICAS DE LEONE

4.1 CONSTRUINDO UM REPERTÓRIO AUDIOVISUAL

Um ponto de partida promissor para a análise minuciosa da prática estilística de Sergio


Leone é o estudo detalhado do confronto final entre os três anti-heróis de Três Homens em
Conflito. Essa sequência é particularmente eficiente, para nossos objetivos, porque se trata do
“momento mais famoso da história do spaghetti western” (HUGHES, 2004, p. 120). Através
de sua análise, pretendemos relacionar os padrões estilísticos mais reconhecíveis de Leone
para, a seguir, analisá-los um a um, relacionando-os com os contextos e influências que per-
mitiram ou mesmo determinaram sua utilização.
A sequência completa pode ser dividida em duas cenas. A primeira consiste no en-
contro final dos três personagens, depois de chegarem separadamente ao cemitério militar
onde sabem que está enterrado o tesouro. A segunda é aquilo que Sergio Leone chamava de
trielo – um duelo a três – para decidir quem tomará posse desse tesouro. É possível encontrar
na sequência, também, os padrões narrativos recorrentes em Leone, já analisados no capítulo
anterior. O exame minucioso dessa sequência permitirá, inclusive, estabelecer conexões os
recursos de ordem narrativa e os demais, de natureza estilística.
A sequência é ambientada num cemitério militar abandonado. No local está enterrada
uma carga de 200 mil dólares em moedas de ouro, escondidas em um dos 10 mil túmulos de
soldados mortos durante a guerra civil. Depois de cruzarem todo o território norte-america-
no, de norte a sul, entre encontros e desencontros violentos, os três anti-heróis chegam ao
local quase ao mesmo tempo. É o clímax do filme.
Ao todo, a sequência tem 149 planos. As duas cenas que a compõem têm duração
completa de nove minutos e 23 segundos (563 segundos); a duração média de um plano tem
3,8 segundos. É uma média baixa para um filme de 1966, o que caracteriza uma montagem
bastante veloz. Naquela década, os filmes costumavam ter, em média, entre oito e onze se-
gundos por plano (SALT, 2009, p. 280); mas Leone realizou Três Homens em Conflito em
1966, quando o processo de aceleração da montagem – uma das características centrais da
poética da continuidade intensificada – estava em curso.
Para começar a análise, é importante lembrar que se trata de um filme de gênero. Já vi-
mos como o gênero funciona como uma pré-condição do estilo; portanto, é de se esperar que
haja algum tipo de confronto físico. No mínimo, algum tipo de expectativa de que haja um
duelo; a expectativa da violência funciona como um dos mais fortes códigos do western. Se
os três pistoleiros se encontrassem no cemitério, desenterrassem o ouro, apertassem as mãos
e fossem embora, o público ficaria frustrado. O motivo dessa frustração seria a violação deste
código tão importante. A questão, aqui, não era violar deliberadamente esse código, mas
relê-lo criticamente, revisando o esquema dominante de construção narrativa do western.
Toda a sequência é estruturada como uma convenção de gênero: um confronto cujo
arco dramático evolui até se transformar em um duelo clássico, só que entre três pistoleiros
ao invés de dois. Os heróis se encaram e se estudam longamente, em uma espécie de arena

143
circular feita de pedras no centro do cemitério. Blondie encerra o duelo com dois tiros certei-
ros, matando Angel Eyes, enquanto Tuco descobre que seu revólver está descarregado, pois
Blondie havia retirado as balas na noite anterior.
Nesse ponto reside um aspecto importante da releitura, operada através da ironia.
Somente ao final da sequência o espectador descobre, junto com Tuco, que todo o duelo,
cuja ação dramática evolui num tenso movimento de crescendo, construído através de uma
combinação cuidadosa de montagem visual, edição de som e música, foi uma farsa. Blondie
sabia desde o início que Tuco não representava ameaça, de modo que pôde concentrar toda
a atenção em Angel Eyes, enquanto os outros dois pistoleiros tinham que dividir a atenção
alternadamente entre um e outro adversário.
Estando em vantagem diante dos dois, não havia sido dificuldade para Blondie eli-
minar o adversário mais perigoso. Na verdade, a sequência toda constitui uma subversão
do código do duelo em três níveis: (1) há três adversários em cena, ao invés de dois; (2) se
num western normal o pistoleiro mais rápido ganha, aqui vence o mais astuto, pois ele usa
um truque desleal para sair em vantagem; (3) tanto quanto Tuco foi enganado por Blondie, o
espectador foi enganado por Leone.
Tuco é o primeiro a chegar ao cemitério. A primeira tomada, cujo corte está em sin-
cronia com a última nota da melodia que sublinhou a cena anterior, consiste num close-up
extremo do rosto do pistoleiro, com expressão exultante (figura 81). Ele olha diretamente
para a câmera; esta representa o túmulo procurado, aquele onde está escondido o tesouro. Há
dois aspectos interessantes na escolha do ângulo de câmera para este plano em particular. Em
primeiro lugar, o ângulo escolhido, em que a câmera assume o ponto de vista do túmulo onde
o tesouro está enterrado. Esse ponto de vista força o personagem a olhar diretamente para a
câmera, um procedimento raro nos esquemas dominantes do cinema clássico, mas bastante
comum no modernismo europeu dos anos 1960, cujos cineastas gostavam de lembrar ao
espectador que ele está assistindo a um filme, à maneira de Bertolt Brecht.
Esse recurso estilístico era evitado no cinema de Hollywood porque se temia que ele que-
brasse a ilusão de imersão na história proporcionada pela poética da continuidade clássica. A revi-
são dos esquemas realizada pelos cineastas europeus dos anos 1960, contudo, estava progressiva-
mente reabilitando a ferramenta, que fora usada nas duas primeiras décadas do cinema mudo – por
exemplo, no plano final do western O Grande Roubo do Trem (The Great Train Robbery, Edwin
S. Porter, 1903). A Tortura do Medo (Peeping Tom, Michael Powell, 1960) e As Aventura de Tom
Jones (Tom Jones, Tony Richardson, 1963), por exemplo, constituem alguns dos filmes em que
esse recurso foi usado. Então é possível afirmar que, ao incluí-lo no repertório estilístico utilizado
em Três Homens em Conflito, Sergio Leone estava (conscientemente ou não) se alinhando ao
grupo de diretores que iniciaram a poética da continuidade intensificada.
O segundo ponto que chama a atenção é a abundância do enquadramento em close-up,
sobretudo na variação extrema. Esse tipo de composição, embora comum, é muito mais fre-
quente no cinema de Sergio Leone do que no repertório de qualquer outro cineasta contem-
porâneo dele (COUSINS, 2004, p. 33). Para se ter uma ideia, dos 149 planos que constituem
a cena, nada menos que 77 deles são close-ups – ou seja, 51,67%, mais da metade de todos
os planos utilizados na montagem final.

144 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


FIGURA 81: Close-up de Tuco olhando para a câmera (então um tabu); o corte para este plano é sincrônico
com o corte da música (cena anterior) para o silêncio.

FIGURA 82: Tuco olha para o túmulo onde o tesouro supostamente está enterrado; a banda sonora inclui
apenas sons fora de quadro (vento, pássaros e corvo).

FIGURA 83: Agora, os sons emitidos por ele (respiração e ruídos da escavação) se somam à trilha sonora;
o pistoleiro é mostrado em planos gerais e médios.
FIGURA 84: A sombra de Blondie entra em quadro sem que Tuco o veja se aproximar; sabemos que é ele por
causa do leitmotiv (a música tocada com uma flauta).

FIGURA 85: Blondie é enquadrado em contra-plongé (ele comanda a ação); o corvo – ave de mau agouro na
mitologia – grasna mais alto em segundo plano sonoro.

FIGURA 86: Tuco é filmado em plongé (ângulo que representa submissão); ele avalia a possibilidade de
atirar em Blondie para ficar com o tesouro só para ele...
FIGURA 87: ...e Leone narra essa hesitação cortando para um plano-detalhe da mão do pistoleiro se apro-
ximando lentamente do revólver no bolso.

FIGURA 88: Tuco desiste de reagir e volta a cavar; com o alívio da tensão, a câmera se afasta e passa a
filmar os personagens num clássico plano de conjunto.

FIGURA 89: Uma pá entra em quadro por baixo do frame (trompe l’oeil), acompanhada pelo leitmotiv musi-
cal do trio: antes de vê-lo, sabemos que Angel Eyes chegou.
FIGURA 90: Blodie se recusa a cavar e diz que se for baleado, o tesouro estará perdido para sempre; o
close-up extremo de Angel Eyes indica o alto nível de tensão.

FIGURA 91: Blondie chuta a tampa do caixão e revela um esqueleto lá dentro; a localização do tesouro,
que parecia certa, volta a ser um mistério para os outros

FIGURA 92: Blondie apanha uma pedra no chão, escreve algo embaixo dela e começa a caminhar para o
centro do cemitério; agora, ninguém domina ninguém.
FIGURA 93: Um degüello começa a ser executado enquanto Blondie caminha; o violão flamenco faz floreios
cuja intensidade cresce no momento em que...

FIGURA 94: ...Blondie deposita a pedra no chão e a câmera faz um zoom in na pedra; a música se torna mais
dramática e agora inclui um solo de trompete.

FIGURA 95: O refrão apoteótico soa em volume máximo, enquanto os três se movem lentamente dentro da
arena, num plano geral que dura 22 segundos...
FIGURA 96: ...e é sucedido por outro plano geral, mais longo (39 segundos) e com a câmera mais distante,
que descreve as relações espaciais entre os pistoleiros.

FIGURA 97: Leone corta para um plano médio e a música cessa de repente; agora só se ouve o vento soprar,
o canto longínquo de pássaros e o corvo.

FIGURA 98: Blondie também é filmado em plano médio, com a mesma duração da tomada anterior, dedicada
a Tuco; a simetria de ângulo e duração dos planos...
FIGURA 99: ...se estende também à tomada dedicada a Angel Eyes; Leone sinaliza através da decupagem a
equidade de forças entre os três protagonistas

FIGURA 100: O próximo bloco de três tomadas recorre a uma das composições prediletas de Leone: um
elemento em primeiríssimo plano (cabeça e ombro)...

FIGURA 101: ...e a ação dramática acontecendo ao fundo (outro pistoleiro); as duas camadas da imagem
permanecem focalizadas com nitidez.
FIGURA 102: A mesma composição recessiva é dedicada aos três personagens, reforçando a isonomia de
força e astúcia; todos os sons diegéticos são eliminados...

FIGURA 103: ...enquanto o degüello de Morricone ressoa ao fundo; a ausência de planos gerais fragmenta
o espaço fílmico e induz a uma representação indireta...

FIGURA 104: ...do tempo, que parece passar mais lentamente do que o normal; a câmera permanece está-
tica em todos os planos dessa sequência...
FIGURA 105: ...enquanto a duração das tomadas é progressivamente encurtada; a montagem ainda é simé-
trica, dedicando o mesmo tempo e os mesmos...

FIGURA 106: ...enquadramentos para todos os protagonistas; a cada mudança de enquadramento, a câmera
se aproxima um pouco mais dos rostos.

FIGURA 107: Durante os primeiros close-ups, é possível perceber que Blondie permanece calmo, olhando
fixamente para a sua direita, para o local onde está...
FIGURA 108: ...Angel Eyes, cuja fisionomia é tensa mas firme; os olhos dele dançam de um lado para o
outro do rosto, denotando indecisão (ausente no adversário).

FIGURA 109: A fisionomia de Blondie parece rígida como uma rocha; ele não traga o cigarro e continua a
olhar exclusivamente para a direita, desprezando Tuco.

FIGURA 110: Angel Eyes, por sua vez, olha para um lado e para o outro; ele parece mais tenso, enquanto
os close-ups extremos duram menos a cada rodada.
FIGURA 111: Dos três pistoleiros, Tuco parece ser o mais agitado; sua musculatura está inteiramente
rígida de tensão e seus olhos não se fixam em nenhum ponto.

FIGURA 112: Leone inclui mais uma rodada de planos com composições recessivas (moldura, encenação em
diagonal e profundidade de campo); o primeiro plano...

FIGURA 113: ...é sempre ocupados pelos revólveres e mãos (que se aproximam lentamente das armas) dos
heróis; a tensão está prestes a chegar ao máximo.
FIGURA 114: Leone explora várias vezes no filme o defeito físico de Lee Van Cleef, que havia perdido a
ponta do dedo médio da mão direita num acidente.

FIGURA 115: A ausência de sons diegéticos deixa o espectador sem pontos de síncrese e contibui para a
percepção de que o tempo parece estar congelado.

FIGURA 116: Durante a rodada de close-ups extremos dos olhos dos pistoleiros, o nervosismo de Tuco fica
mais evidente, assim como a calma de Blondie...
FIGURA 117: ...cujo olhar fixo parece adivinhar o desfecho da cena; perto do fim, o degüello ganha uma
percussão militar e a música se torna ainda mais épica.

FIGURA 118: Angel Eyes permanece imóvel, mas seus olhos agora já não param de dançar entre um lado e
o outro do rosto, denotando indecisão e impaciência.

FIGURA 119: O movimento da mão de Angel Eyes acontece no exato momento em que a música para de tocar;
os planos se sucedem em alta velocidade.
FIGURA 120: Ouve-se um tiro, e o próximo plano que vemos mostra Blondie com o revólver apontado para
Angel Eyes; o silêncio acentua a gravidade do momento.

FIGURA 121: Após um rápido plano geral, a câmera se aproxima e mostra Angel Eyes caindo; ele se arrasta,
ferido, procurando a arma que lhe escapou das mãos.

FIGURA 122: Enquanto isso, Tuco saca o revólver e tenta atirar, mas descobre que sua arma não tem
munição: Blondie a havia descarregado na noite anterior.
FIGURA 123: Angel Eyes consegue pegar o revólver e se vira para Blondie; o close-up acentua rapidamente
o nível de tensão, já que o pistoleiro agora pode revidar.

FIGURA 124: Antes que isso aconteça, porém, Blondie acerta o segundo tiro; o impacto da bala jogo o corpo
sem vida de Angel Ayes diretamente dentro da cova.

A tendência de Leone para destacar o rosto dos atores, buscando principalmente os


olhos, está expressa nesta sequência de forma evidente. Dos 77 planos que utilizam o clo-
se-up, 56 destacam rostos. Mais de um terço de todas as composições pictóricas (37,58%)
esquadrinham os rostos dos atores. Os enquadramentos variam entre close-ups normais (om-
bros e rosto, como nas figuras 106, 107 e 108), close-ups extremos (somente o rosto, com
as extremidades da cabeça e do queixo cortadas, a exemplo das figuras 109, 110 e 111) ou
close-ups ainda mais extremos que focalizam apenas os olhos (figuras 116, 117 e 118).
Algumas pré-condições socioculturais (releitura crítica do gênero, inovações do ci-
nema modernista, concorrência com a televisão), tecnológicas (limitações no uso de lentes
anamórficas) e financeiras (o close-up extremo muitas vezes escondia a pobreza do cenário,
porque o rosto do ator preenchia toda a tela) foram determinantes para que Leone operasse
essa escolha estilística, optando pelo uso cada vez mais abundante do close-up. Detalhare-
mos essas origens da ferramenta estilística adiante.
É importante estabelecer a conexão entre o uso do close-up e outro recurso de estilo:
o tratamento peculiar do tempo fílmico, com dilatações e compressões, distensões e acele-
rações da narrativa que permitiam ao diretor manipular a percepção da passagem do tempo

159
interno da cena, ao passo em que, na poética da continuidade clássica, os cineastas represen-
tavam a passagem do tempo da forma mais natural possível, sem cortes bruscos que pudes-
sem abalar a sensação de que o tempo transcorria em paralelo à vida real (no cinema clássico,
saltos cronológicos ocorrem basicamente nas elipses e transições entre cenas).
Essa conexão entre a preferência por close-ups e o tratamento do tempo diegético
parece ter uma relação direta com a representação mais fragmentada do espaço fílmico, par-
ticularmente nos momentos de drama mais intenso, em que a câmera fica mais próxima
dos personagens e a montagem é mais veloz. Leone sustentava a representação fragmentada
do espaço fílmico durante o máximo de tempo possível, para então justapor aos close-ups
e planos-detalhes uma ou outra tomada panorâmica em que os personagens se tornavam
pontinhos minúsculos se movendo na tela (figuras 95 e 96). Essa economia de planos gerais
contribui para não deixar tão claras as relações espaciais entre os personagens da cena.
A fragmentação do espaço fílmico fica mais evidente a partir do instante em que a
sequência entra em sua segunda cena, quando os três personagens passam a se encarar em
igualdade de condições, já que até então as relações de forças entre eles eram desequilibradas
(figura 93 em diante). Não por acaso, é exatamente nesse momento que a música de Ennio
Morricone é ouvida pela primeira vez. Mas, por enquanto, retornemos ao início da cena,
quando Tuco chega (figuras 81 e 82). Ele começa a cavar (figura 83), quando a sombra
de um homem entra no quadro pelo lado esquerdo (figura 84), ao mesmo tempo em que é
possível ouvir, na trilha sonora, o fraseado que funciona como leitmotiv e, assim, identifica
o dono da sombra antes que possamos ver seu rosto. É Blondie. A melodia de cinco notas
(LÁ-RÉ-LÁ-RÉ-LÁ), associada ao instrumento que a executa (a flauta doce) o identifica.
Até então, Leone decupa a ação recorrendo a ângulos de câmera clássicos: Tuco é fil-
mado em plongé, do ponto de vista de Blondie, enquanto este é enquadrado em contra-plongé
(figura 85). Blondie está no comando. Tuco hesita (figuras 86 e 87), mas volta a cavar (fi-
gura 88), aceitando a superioridade momentânea do outro.
Nesse momento, Angel Eyes chega. A entrada em cena do personagem de Lee Van
Cleef é semelhante à chegada de Clint Eastwood, e sintetiza outro recurso estilístico im-
portante na obra de Leone: a relação por vezes contraditória entre aquilo que está sendo
mostrado no quadro e os elementos que estão fora dele; uma espécie de trompe l’oeil cinema-
tográfico (figura 89). Os dois personagens focalizados pela câmera só percebem a chegada
do terceiro ator quando uma pá entra em quadro por baixo do frame. No mundo real, essa
aparição quase sobrenatural seria literalmente impossível. Afinal, os dois homens estão num
terreno amplo, sem qualquer barreira aos olhos; um lugar silencioso. Seria impossível que
outro ser humano se aproximasse de qualquer lado sem ser ouvido, ainda mais considerando
que esses dois homens são pistoleiros profissionais de categoria já comprovada.
Nos filmes de Leone, contudo, essa relação do espaço em quadro com o espaço fora
do quadro é constantemente fantasiosa; os personagens focalizados pela câmera muitas vezes
só enxergam aquilo que está dentro do quadro, numa espécie de adaptação para o cinema da
técnica do trompe l’oeil. Essa técnica também vale para a aparição de Clint Eastwood diante
de Eli Wallach, reforçada pelo fato de que Tuco sabia, perfeitamente, que o adversário estava
apenas alguns minutos atrás de si e, portanto, chegaria rapidamente até ele. Frayling (2000)
explica assim a relação entre o espaço do quadro e o que está fora dele, na obra de Leone:

160 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


De repente, objetos surgem de fora do frame, vindo de trás do campo de visão
da câmera. Frequentemente a câmera revela coisas surpreendentes para nós,
coisas que os personagens deveriam ter sido capazes de ver antes. Pelas regras
clássicas de Hollywood, esse trabalho de câmera é inteiramente redundante e
sem motivo. (FRAYLING, 2000, p. 230).

Uma das características do cinema clássico é a subordinação da forma ao conteúdo;


os cineastas formados até a década de 1950 justificavam narrativamente todo tipo de escolha
estilística que operavam. Mas nos filmes europeus dos anos 1960 já não era assim. Nesse
sentido, ao inserir na decupagem composições visuais que pareciam gratuitas, apenas por
razões estéticas (e ainda por cima recorrentes), torna-se óbvio que Leone estava, conscien-
temente ou não, operando uma intensificação na prática estilística, ao mesmo tempo em que
cunhava uma assinatura pessoal.
A entrada em cena de Angel Eyes oferece um exemplo de outro elemento recorrente
do estilo pictórico de Leone: a composição recessiva com moldura e profundidade de campo.
No plano (figura 89), a pá está bem próxima à câmera e funciona como uma espécie de mol-
dura que tensiona a ação principal mostrada à distância, em segundo plano; as duas camadas
da imagem aparecem em foco nítido. Esta é a maneira predileta que Leone encontrou para
dar profundidade a seus planos gerais, mantendo a tensão da cena como um todo. Aliás, é
muito frequente que a figura em primeiríssimo plano seja um close-up extremo, muitas vezes
de rostos. Esse tipo de composição é repetido em outros cinco planos que integram a cena
(figuras 92, 100, 101, 102 e 112). Mais à frente, vamos esclarecer os limites e pré-condições
que originaram a adoção dessa ferramenta, bem como sua ênfase tão pronunciada, na obra de
Leone. Ela também aponta para uma intensificação na retórica visual dos filmes.
No momento em que aparece, Angel Eyes toma de Blondie o comando dramático
das ações. Ele ordena que os dois mercenários cavem (figuras 90). Blondie não obedece,
e explica: o tesouro não se encontra ali (figura 91). Ele é o único que sabe a cova correta.
Então apanha uma pedra (figuras 93 e 94) e escreve o nome da cova sob ela. Os três terão
que duelar pela posse da pedra e do tesouro.
Toda essa primeira parte abusa de duas outras características centrais para Leone: o
desenho de som que enfatiza ruídos naturais amplificados e o desenho de produção sujo e
realista. Nos dois casos, é possível perceber claramente a preocupação do diretor com os de-
talhes, com a criação de uma atmosfera que transmita ao mesmo tempo a verossimilhança do
ambiente e da situação dramática vivida pelos personagens. Ou seja, as duas características
partilham o princípio: expressividade dramática sem prescindir da verossimilhança.
Efeitos sonoros e diálogos compõem o trecho, que transcorre sem música, com uma
breve exceção – o fraseado de flauta com cinco notas que serve de leitmotiv para sinalizar
a entrada em cena de Blondie, “respondido” por outra frase, de três notas, que por sua vez
é o leitmotiv de Tuco. Ouve-se apenas o vento, o canto de pássaros e a respiração ofegante
de Tuco. Ele apanha um pedaço de madeira do túmulo vizinho (num rasgo de humor negro
característico de Sergio Leone, a pá improvisada é retirada de cima da cova verdadeira em
que o tesouro está enterrado, algo que Tuco só vai descobrir muito depois) e começa a cavar.

161
A partir desse momento, há cinco sons audíveis. Dois deles são provenientes de fontes
sonoras que estão em quadro (a respiração de Tuco e os ruídos produzidos pela escavação).
Os outros três provêm de fontes sonoras situadas fora do quadro: o barulho do vento sopran-
do, o canto dos pássaros (sutil, mas intermitente) e o grasnar periódico de um corvo, mais alto
e forte que o piar dos outros pássaros.
Esses dois grupos de sons têm importâncias narrativas diferentes, pois afetam a percep-
ção da cena pelo espectador de maneiras distintas. Os dois sons cuja fonte de origem está visível
são produzidos por Tuco, único personagem em quadro; eles providenciam pontos de síncrese
(CHION, 1994, p. 58) entre a trilha de áudio e as imagens (tanto dentro de cada plano quanto na
justaposição entre eles). Esses pontos de síncrese asseguram ao espectador que a sincronia entre
informações visuais e auditivas está sendo respeitada. Nesse caso, os sons não contêm em si nenhu-
ma informação narrativa relevante. Eles apenas reforçam a impressão de realismo para o público.
Os outros ruídos – os sons fora de quadro – são mais importantes, do ponto de vista ex-
pressivo e emocional, apesar de menos percebidos pela audiência. O público não vê pássaros,
corvo ou vento em momento algum da cena; por uma questão fisiológica de seleção operada
pelo aparelho auditivo da espécie humana, relega automaticamente esses ruídos a um plano
secundário de percepção sonora. Nesse tipo de situação, os sons fora de quadro atingem o
espectador diretamente numa dimensão sensorial, produzindo um efeito – uma sensação –
que não sabemos explicar como ocorreu, porque não identificamos a sua origem, já que não
pensamos no que esses sons secundários fazem conosco.
É frequente, nos filmes, que o espectador sinta certas sensações (medo, angústia, isola-
mento etc.) sem conseguir explicar concretamente qual a combinação de elementos visuais e/
ou sonoros que causou essa sensação. Só a análise cuidadosa, do ponto de vista da percepção,
pode revelar como tal efeito foi construído pelo diretor. Os sons fora do quadro, com bastante
frequência, têm enorme grau de responsabilidade na construção dessas cenas.
O piar dos pássaros, o vento e o grasnar do corvo têm a função de proporcionar ao
espectador uma noção tridimensional do espaço fílmico onde a cena se desenrola. Mas esses
três ruídos possuem, também, a função suplementar – e primordial – de criar uma atmosfera
de isolamento, de decrepitude, de morte. Tuco está num cemitério; o corvo, na mitologia gre-
ga, simboliza a má notícia, o azar e a morte. A presença desse pássaro, sinalizada pelo som
fora de quadro, é expressiva; acentua a tensão do momento, porque o espectador realiza uma
conexão de ideias sem pensar: a morte está por perto. Algum perigo se aproxima.
Antes de prosseguir, é preciso chamar a atenção para o uso que Sergio Leone faz
do silêncio. Não é aquele silêncio que Jean-Claude Carrière (1994) denomina de “silêncio
absoluto”, referindo-se à ausência irrestrita de ruídos, vozes e música, um silêncio criado
artificialmente em estúdio, pois “não existe na natureza” (CARRIÈRE, 1994, p. 34), mas a
um silêncio que se coaduna com a definição do termo oferecida por Michel Chion:

A impressão de silêncio em uma cena de filme não vem simplesmente da au-


sência de ruídos. Ela só pode ser produzida como resultado de contexto e pre-
paração. O exemplo mais simples consistiria em preceder a cena que contém o
silêncio de outra cena repleta de barulho. Portanto, o silêncio nunca consiste de
um vazio neutro. Ele é o negativo do som que ouvimos antes; é o produto de um
contraste. (CHION, 1994, p. 57).

162 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


O silêncio, expresso pela ausência de música e diálogos, bem como pela amplificação
acentuada (ou seja, hiper-real) de sons naturais produzidos por seres e objetos que estão
presentes, é outra ferramenta estilística recorrente em Leone. Esse elemento de estilo surgiu
como resultado da conjunção de duas pré-condições: o sistema de produção dos filmes em
Cinecittà (quase sempre realizados sem captação de som direto) e a influência do cinema
japonês. Voltaremos a este tópico à frente.
A chegada de Blondie surge em sincronia com o primeiro trecho musical da cena.
Nesse ponto, é imprescindível explicar o uso do leitmotiv em Três Homens em Conflito. A
melodia do tema principal consiste numa sequência de cinco notas (o fraseado emula o grito
de um coiote, animal que habita a diegese do filme, o deserto), que corresponde a uma “per-
gunta”: LÁ-RÉ-LÁ-RÉ-LÁ. Esse fraseado simples recebe, em seguida, uma “resposta” em
contraponto de outra frase musical, que consiste de mais três notas (FÁ-SOL-RÉ).
A inovação de Ennio Morricone consistiu em utilizar a mesma sequência de notas
como leitmotiv para os três protagonistas, significando que eles são três versões da mesma
personalidade. O espectador infere qual o leitmotiv de cada um através do instrumento utili-
zado para executar o fraseado musical. Para Blondie (o menos brutal dos três), a sequência de
notas é tocada numa flauta doce; para Angel Eyes (o mais malvado), o instrumento utilizado
é a ocarina (em uma versão feita de argila, cujo som é bastante grave e sombrio, como o
próprio personagem); e Tuco (o mais engraçado) é acompanhado por uma sobreposição de
duas vozes masculinas que gritam as cinco notas, com o casamento sugerindo uma textura
selvagem, como o grito original do coiote que inspirou a composição.
No decorrer do filme, o espectador associa uma sonoridade específica a cada herói.
Ao conceber essa estrutura, Morricone procurava reforçar o conceito central, elaborado por
Leone, de que os três protagonistas se equivalem em força e astúcia, tendo moralidades muito
parecidas; eles podem ser compreendidos como aspectos diferentes de um mesmo persona-
gem. O compositor também respeitava um princípio central nas composições para todos os
filmes de Leone: o uso de elementos da diegese – no caso, a inspiração do coiote – como
elementos integrantes da música: “[Esse som] tinha que ser eloquente, para imitar o uivo do
coiote e também para evocar a selvageria do universo do Velho Oeste” (MORRICONE apud
FRAYLING, 2000, p. 236).
O uso do leitmotiv fica mais complexo quando dois personagens estão contracenando.
Nesse caso, Morricone desdobra o fraseado musical em dois momentos distintos, ponto e
contraponto, cada fraseado executado pelo instrumento característico de um personagem.
Há uma “pergunta” (tocada com o instrumento relacionado ao personagem que comanda a
cena emocionalmente) e em seguida a “resposta” (executada no instrumento associado ao
personagem em posição inferior). Este é o caso específico do uso da música no momento
em que Blondie aparece. Assim que a sombra entra em quadro, ouvimos as cinco notas que
emulam o grito do coiote, executadas com uma flauta: Blondie. Num jogo bem-humorado e
irônico entre a diegese e a extra-diegese, a música parece alertar Tuco, que ergue a vista para
verificar quem se aproxima. Nesse ponto, Leone corta para um contraplano de Eastwood,
enquadrado em plano médio e contra-plongé, enquanto ouvimos a “resposta”, gritada por um
homem. Compreendemos: Tuco está momentaneamente dominado.

163
A iminência de um ato violento fica evidente; Leone sinaliza isso através do desenho
de som. O grasnar do corvo, antes ouvido de maneira esparsa, se torna mais insistente. O
espaço ouvido entre um grasnar e outro diminui sensivelmente. Em seguida Angel Eyes
chega; sua chegada é realçada pela introdução de um segundo trecho musical – as três notas
do contraponto (FÁ-SOL-RÉ), compondo uma segunda “resposta” à “pergunta” de Blondie.
Embora seja o mesmo fraseado, o instrumento que o executa não é a ocarina, característico
do personagem de Lee Van Cleef, mas um órgão de igreja. Qual a razão possível para que, a esta
altura do filme, uma convenção musical firmemente estabelecida dentro da narrativa seja desres-
peitada? Talvez seja uma tentativa deliberada de confundir o espectador; talvez o novo instrumento
seja uma referência à simbologia cristã, tão presente dentro da obra de Leone como um todo. Seja
qual for a razão para a troca de instrumento, o efeito pretendido – surpresa – é alcançado.
Por fim, os diálogos dominam auditivamente o trecho da cena a partir da entrada de
Angel Eyes. Como em todos os spaghetti westerns, as frases são dubladas. Essa técnica possi-
bilitava que Leone escolhesse o elenco, especialmente os coadjuvantes, pela aparência, à moda
de Eisenstein, sem restrições relacionadas à nacionalidade e, portanto, à língua nativa de cada
ator. Os atores podiam falar em qualquer língua, e alguns deles preferiam simplesmente contar
números, construindo frases com o mesmo número de sílabas do que a linha estabelecida pelo
roteiro. Eles sabiam que depois, na pós-produção, outro ator diria aquela frase em estúdio.
Por tudo isso, a sincronização das vozes com o movimento labial era pouco meticulo-
sa. Embora os sons vocais fossem emitidos sempre que os atores abriam a boca, os movimen-
tos labiais nem sempre correspondiam aos sons emitidos. De fato, essa característica não era
específica da obra de Leone; a questão da sincronia labial funcionava dessa maneira em todo
o cinema italiano, como nota Michel Chion:

Há vários níveis de sincronismo [entre som e imagem] e, particularmente no caso


da sincronia labial, esses níveis exercem certo papel no estilo do filme. Por exem-
plo, os franceses estão acostumados a uma sincronização cuidadosa e fiel, e acham
estranha a pós-sincronia nos diálogos dos filmes italianos. O que eles estranham,
na verdade, é um estilo de sincronização mais livre, mais solta, frequentemente
descompassada em um décimo de segundo. Esta diferença é particularmente notá-
vel no caso da voz. Enquanto uma sincronia muito fiel faz o som da voz correspon-
der precisamente ao movimento dos lábios, os filmes italianos levam mais em con-
sideração a totalidade da fala e menos o corpo que fala. No geral, a sincronia mais
livre provoca um efeito menos naturalista, mais poético. (CHION, 1994, p. 65).

Como Chion observa, esse recurso estilístico ia de encontro às preocupações realistas


para as quais Leone dedicava grande esforço. De qualquer modo, era um recurso gerado por
uma pré-condição marcante que havia se tornado hábito de todos os cineastas da Itália.
Vale a pena salientar que essa falta de sincronia entre os diálogos e os movimentos
labiais dos atores também pode explicar, pelo menos parcialmente, o fato de Leone usar o
mínimo possível de diálogos em seus filmes. Esta é outra razão que pode ser apontada como
pré-condição influente no uso dos efeitos sonoros (e do silêncio) para ajudar a contar a his-
tória. Se prosseguirmos com o raciocínio, a criação de pontos de síncrese através dos ruídos

164 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


torna-se ainda mais importante. Afinal de contas, os pontos de síncrese mais naturais no
cinema estão justamente na sincronia entre as vozes dos atores e os movimentos labiais – e
os filmes de Leone não podiam usar esse recurso, tendo que sinalizar buscar a percepção da
sincronia entre as bandas visual e sonora em outro lugar. Esse lugar, obviamente, estava na
mixagem dos efeitos sonoros em volume e intensidade maiores do que o habitual.
Mais um aspecto de estilo que pode ser observado na primeira parte da cena é o desenho
de produção, que inclui cenário, figurinos e maquiagem. Três Homens em Conflito marca um
ponto alto da obsessão de Leone com a acuidade histórica e a verossimilhança. Em 1964, o con-
ceito da direção de arte de Por um Punhado de Dólares era representar os personagens vivendo
num ambiente de natureza hostil. Nas filmagens de Três Homens em Conflito, essa preocupação
havia evoluído para a necessidade de parecer o mais historicamente acurado possível.
Uma das possíveis razões para isso era a reação de Leone contra algumas das críti-
cas que seus filmes recebiam, argumentando que ele se preocupava mais com o espetáculo
do que com a representação fiel da realidade. Leone reagia contra essas críticas apontando
para aspectos artificiais da aparência dos filmes americanos, como o colorido saturado que
marcou toda a produção de Hollywood depois da ascensão do Cinemascope, em 1953, com
pistoleiros usando camisas amarelas, roxas, azuis ou vermelhas (figuras 125 e 126):

FIGURA 125: Vera Cruz (1954), considerado um dos mais realistas westerns dos anos 1950, usava figuri-
nos de cores saturadas para oferecer visual grandioso.

FIGURA 126: Mesmo depois de vários dias cavalgando sob o sol do deserto, os personagens de O Homem que
Luta Só (1959) estão sempre limpos e arrumados.
Westerns passaram a ser encenados como jogos infantis, com atores caindo para
frente ao invés de serem jogados para trás pelo impacto dos tiros. Não se via
sangue. Por um Punhado de Dólares quebrou as regras, no que diz respeito à
representação da violência, e agregou um realismo que é possível notar nos
novos filmes. (LEONE, 2005, p. 82).

Assim, desde o primeiro western que fez, Leone instruiu Carlo Simi a pesquisar em
livros históricos e preparar uma vasta documentação fotográfica da época e do local onde a
ação dramática ocorria. Na cena analisada, essa preocupação fica evidente ao se examinar em
detalhes a locação do cemitério militar (figuras 82, 83, 88, 89 e 92).
Cemitérios eram locações familiares em westerns. Quando aparecem, em clássicos
como Paixão dos Fortes (1946) e Rastros de Ódio (1958), são sempre mostrados como lu-
gares cobertos com grama, com lápides organizadas, de aparência bucólica. O cemitério de
Três Homens em Conflito não é nada disso. Fica num vale quase sem vegetação, coberto de
poeira. É composto por 10 mil túmulos, a maioria com lápides improvisadas que consistem
de pedaços de madeira com nomes inscritos – muitas marcadas com a palavra Unknown, ou
Desconhecido –, cruzes toscamente construídas com gravetos ou pedaços de pau.
Essa representação improvisada de um cemitério (figura 127) pode parecer macabra,
mas é historicamente correta. Simi desenhou a locação com base em fotografias de Matthew
Brady (figura 128). Tudo isso – a preocupação com o realismo, a construção detalhada dos
cenários e objetos cênicos, as pesquisas iconográficas extensas – constituem uma operação
de worldmaking; ou seja, era mais uma prática estilística que buscava a intensificação.
O worldmaking também se estende aos figurinos. Tuco usa botas velhas, calça e casa-
co de veludo marrom (empoeirado) e uma camisa branca encardida (figura 83) de suor. An-
gel Eyes veste calça, colete e chapéu pretos (figura 99). Num jogo intertextual com seus dois
primeiros westerns, Leone faz Blondie resgatar, de um soldado moribundo que ele encontra
algumas cenas antes, um poncho idêntico ao que Joe e Monco usam nos filmes anteriores
(essa operação pode ser compreendida como um pastiche dos próprios filmes dele, inclusi-
ve). Dessa forma, no clímax de Três Homens em Conflito, Blondie usa exatamente a mesma
roupa que Joe e Monco vestiam nos outros dois filmes (figura 85). Todos os três personagens
estão cobertos de poeira, suados, rostos queimados de sol, barba por fazer.
O realismo dos figurinos demarca uma diferença crucial, em relação aos filmes ame-
ricanos. Nesses últimos, o herói sempre usa camisas roupas limpas, troca de roupa durante
a trama (mesmo quando viaja sem bagagem), está barbeado e de banho tomado. O uso da
cor em Leone, aliás, também obedece ao princípio do realismo; num universo de natureza
inóspita, em que os homens passam várias horas por dia sob o sol abrasivo, as cores – das
roupas, das casas, de tudo – se desgastam rapidamente:

Nós tínhamos um ponto de partida, um princípio estético: num western, você


não pode usar muitas cores. Escolhíamos uma paleta mais sutil – preto, marrom,
vermelho escuro, branco encardido – porque os prédios são feitos de madeira
e as cores dos exteriores eram muito gastas. Ambos tínhamos uma queda por
tonalidades de areia. (DELLI COLLI, 2000, p. 229).

166 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


FIGURA 127: Mais de 10 mil lápides improvisadas com pedaços de madeira foram concebidas pelo diretor
de arte Carlo Simi e construídas no deserto da Espanha.

FIGURA 128: Um cemitério militar da guerra civil registrado por Matthew Brady em 1862: referência visual
para a locação de Três Homens em Conflito.

Na primeira cena, ainda falta analisar o casamento meticuloso entre as trilhas de áudio
e imagens. A quase total ausência de música mascara um pouco esse entrelaçamento, mas ele
se faz presente de forma muito ostensiva na segunda parte, quando começa o trielo propria-
mente dito, que decidirá sobre a posse do tesouro.
Emocionalmente, o filme entra num novo estágio, a partir da segunda cena da se-
quência. Os três personagens se colocam em igualdade de condição; o enredo evoluiu até
apresentar o cenário característico de um duelo típico de western, uma convenção de gênero.
A partir daí, a cena sofre uma grande mudança de ênfase dramática. Nenhuma palavra será
pronunciada por qualquer um dos personagens até o final, um trecho que tem o total de qua-
tro minutos e 39 segundos (529 segundos) sem diálogos.
O desenho de som, os silêncios e as falas pontuadas de frases curtas, ironia e aforismos
– esta última, recurso muito usado em filmes contemporâneos que adotam a autoconsciência
como recurso narrativo, tratando diálogos e narração em off como slogans publicitários – dão
lugar à música. Trata-se de um degüello que, seguindo a tradição da parceria entre diretor e
compositor, é estruturado como uma canção pop, com dois versos em crescendo intercalados
por um refrão solado por um trompete.

167
A melodia é executada por esse instrumento nos refrões, momentos em que a música
se torna mais intensa; durante os versos que os intercalam, a melodia é dedilhada ao violão
flamenco, com alterações na velocidade e na intensidade da execução (rápida e forte em
alguns momentos, lenta e dramática em outros). Castanholas e uma seção de cordas em
segundo plano sonoro (esta última proporcionando o elemento de ligação que faz a ponte
entre o verso e o refrão) completam a harmonia, o ritmo seguindo fielmente a decupagem das
imagens – delicado para tomadas longas, vibrante quando a justaposição de tomadas se torna
mais rápida e os planos, mais curtos.
O mais importante, nesse procedimento estilístico, é a quebra deliberada de uma con-
venção característica da poética da continuidade clássica. Nos momentos de tensão dos wes-
terns de Leone (especialmente duelos), muitas vezes a música é mixada em volume mais
alto do que efeitos sonoros e vozes, os quais são, às vezes, eliminados por completo da trilha
sonora. O procedimento viola o esquema dominante do uso da música no cinema, desde os
tempos dos filmes mudos: a inaudibilidade da música (GORBMAN, 1988, p. 57).
Segundo Claudia Gorbman, a música cinematográfica está quase sempre, quando uti-
lizada da maneira clássica, subordinada a imagens e diálogos. Até os anos 1960, os diretores
usavam composições musicais para cumprir três funções narrativas principais: pontuar a
ação física (muitas vezes substituindo os efeitos sonoros), expressar e conduzir as emoções
da plateia, e dar um senso de continuidade às imagens. A música estava subordinada não ape-
nas à trilha de imagens, mas também aos diálogos. Desse modo, o espectador a percebia num
registro inconsciente, sem “ouvi-la” realmente – sem prestar atenção nela; essa inconsciência
sobre a presença da música seria elemento fundamental para reforçar a atenção dirigida pelo
espectador à progressão dramática da narrativa. É a mesma lógica da invisibilidade aplicada
à montagem no cinema clássico: sem cortes bruscos (no caso, sem intervenções sonoras
estridentes, que chamassem a atenção para si), a atenção do espectador ficava sempre volta-
da para a trama. Com isso, havia melhores possibilidades de engajá-lo emocionalmente na
história que estava sendo contada.
Nos filmes de Leone, esse uso “inaudível” da música é frequentemente recusado. Leo-
ne traz a música para o primeiro plano sonoro, muitas vezes subordinando o ritmo das ima-
gens a ela, ou retirando todos os outros sons (vozes e ruídos) da mixagem, fazendo a música
influenciar a leitura que o espectador faz das imagens. Leone realizava isso, essencialmente,
através de duas técnicas: (1) a sincronia entre a montagem imagética e a evolução melódica
da música de Morricone; e (2) a predominância da música sobre todos os demais sons da
trilha sonora, em certos momentos. Detalharemos tudo isso mais à frente.
É fundamental observar que esse procedimento não apenas revisava o esquema do-
minante do uso da música no cinema, mas também estava em consonância com a autorre-
flexividade pretendida pelos diretores modernistas da época, para quem deixar a técnica ser
percebida pela plateia era uma atitude natural. Portanto, esse uso da música constitui uma
opção estilística que se coaduna perfeitamente com a poética da continuidade intensificada.
Além disso, em certo sentido, a música é usada por Leone para reforçar a escolha
dos ângulos de câmera e modular dramaticamente a cena. O casamento entre a evolução da
música e a edição de imagens é meticulosamente planejado para interligar cada instância de

168 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


aproximação da câmera em relação aos pistoleiros (do plano geral ao médio, do médio ao
close-up, do close-up normal ao extremo etc.) com um aumento gradual na intensidade da
execução musical. No exemplo, sempre que Leone muda o enquadramento, aproximando
a câmera de cada duelista e compondo planos cada vez mais fechados, a música cresce em
intensidade; enquanto isso, a montagem é progressivamente acelerada e a duração dos planos
torna-se menor. Tudo isso gera um efeito de ampliação crescente da tensão, acentuada pela
fragmentação do espaço fílmico que os enquadramentos fechados proporcionam.
Essa era a versão de Leone para uma ferramenta típica dos diretores modernistas eu-
ropeus – o uso do falso raccord com intenção de suspense –, que a utilizavam para subverter
uma convenção da linguagem cinematográfica e libertar o cinema da linearidade de tempo e
espaço (BURCH, 1992, p. 36).
Bordwell acrescenta uma ideia importante para explicar porque, no decorrer dos anos
1960, os diretores começaram a fragmentar cada vez mais o espaço fílmico. Para ele, os
cineastas foram influenciados pela popularização dos formatos Scope de imagem, pois esses
formatos de imagem possuíam mais espaço lateral, de forma que era possível mostrar o ce-
nário mesmo durante um close-up. Para Bordwell, a tela Scope levou os diretores a encarar
o quadro não mais como uma janela a ser preenchida com elementos visuais, mas como uma
superfície que podia ser dividida em unidades rítmicas (BORDWELL, 2007, p. 311). O uso
recorrente da composição recessiva típica de Leone seria uma maneira possível de dividir o
quadro Scope em diferentes unidades, da forma descrita por Bordwell.
Antes de elaborar um pouco mais a ideia, voltemos à cena e a analisemos em detalhes.
Há, nela, uma ironia suplementar: existe lugar mais adequado para um duelo do que um ce-
mitério? Mais à frente, Leone dará cabo dessa ironia com um toque de humor negro, fazendo
o corpo sem vida de Angel Eyes escorregar diretamente para dentro de uma cova no momen-
to em que ele é atingido, dispensando assim os serviços de um coveiro (que, obviamente, não
existe, uma vez que o cemitério está abandonado).
Trata-se de uma cena de suspense, no sentido hitchcockiano do termo. O duelo, num
western, é um momento de suspense. Segundo Hitchcock, a distinção entre suspense e terror
é similar a um ataque aéreo utilizando bomba voadora ou V2. A primeira faz um “barulho de
motor de popa”, de forma que as pessoas sabem que ela estava a caminho; quando o barulho
para, a bomba cai e explode, segundos depois. Já a V2 não faz ruído, e explode sem que as
pessoas se deem conta disso. No primeiro caso, a sensação experimentada pelas pessoas é o
suspense; no segundo caso, terror (HITCHCOCK, 1998, p. 146-147).
O elemento central do suspense, portanto, é a expectativa. Para criar suspense, o ci-
neasta precisa ordenar certos elementos integrantes da narrativa, de forma que o público
possa antecipar um resultado e saboreie a expectativa, a ansiedade da espera por esse resul-
tado. Quando os pistoleiros se reúnem, olhando uns para os outros, as mãos cada vez mais
próximas dos revólveres, sabemos o que vai ocorrer em seguida.
Leone dava um tratamento especial ao tempo fílmico nesses momentos de suspense.
Ele manipulava recursos estilísticos para sustentar essa expectativa pelo maior tempo possí-
vel; daí a sensação de tempo congelado, ou distendido, nos momentos de suspense inseridos
em seus filmes. É o caso do trielo. Vivenciamos a expectativa do tiroteio durante muito mais

169
tempo do que acontecia em outros westerns, quase como se assistíssemos à cena em câmera
lenta – um recurso que Leone efetivamente nunca usa.
Nesse sentido, a audibilidade da música em certos trechos do filme – sua percepção
consciente por parte do espectador – era muito importante para libertar os acontecimentos
do duelo da linearidade espaço-temporal do resto da trama. À fragmentação espacial da cena
(conseguida através dos cortes rápidos e dos planos cada vez mais fechados) correspondia
uma eliminação (total ou parcial) dos sons diegéticos, com o predomínio da música, o que
acabava por tornar subjetiva a percepção da passagem do tempo. Daí vem a sensação de
câmera lenta, de tempo dilatado: embora a música proporcionasse continuidade temporal,
a fragmentação do espaço e a eliminação dos sons diegéticos contribuíam para inscrever os
duelos de Leone em uma dimensão onde o tempo passava mais devagar. O tratamento que
Leone dava ao tempo de seus duelos tem ligação importantíssima com a presença da música.
No exemplo, a música é introduzida como acompanhamento da caminhada de Blondie
em direção ao centro da arena. Ela começa com uma frase de trompete. Blondie deposita a
pedra no chão e a câmera faz um zoom, reenquadrando-a em plano-detalhe (figura 94), ao
mesmo tempo em que Morricone cria um súbito crescendo, adicionando violinos em unísso-
no e violão dedilhado; o crescendo corresponde com exatidão ao zoom. A sincronia entre os
movimentos da imagem e a evolução dramática da melodia é impecável. Não se pode deixar
de prestar atenção na música, mesmo que se tente, inclusive porque todos os sons diegéticos
são eliminados da trilha sonora. Ele é um dos exemplos mais eloquentes da revisão do esque-
ma dominante de uso da música no cinema levado a cabo por Leone.
O que se segue é quase um balé. Os três pistoleiros em círculos, lentamente, um olhan-
do para o outro, entre planos médios e close-ups de olhares desconfiados. Após o zoom, Leo-
ne justapõe duas tomadas panorâmicas (figuras 95 e 96), com respectivamente 22 e 39 se-
gundos de duração. São planos gerais abertos, em que os personagens se tornam minúsculas
manchas se movendo na tela. Esses dois planos indicam ao espectador as relações espaciais
entre os pistoleiros. Eles são essenciais para que se entenda o desenrolar da ação, pois daí em
diante Leone não incluirá mais nenhum plano geral, fragmentando sucessivamente o espaço
fílmico e aproximando cada vez mais a câmera dos heróis.
Durante os dois planos gerais os sons diegéticos somem. Não há diálogos e nem efei-
tos sonoros; apenas a música, que acelera e desacelera, pulsando no mesmo ritmo dos movi-
mentos da câmera, até que cada pistoleiro se coloque numa posição equânime dentro da arena
circular. O efeito de percepção obtido pelo conjunto (encenação, montagem visual e música)
é de que o tempo passa em câmera lenta.
Durante o primeiro plano geral, a música evolui do verso para o refrão, em um cres-
cendo cuja melodia é conduzida por uma seção de violinos que evolui até atingir a apoteose
durante o refrão. É aí que entra o trompete, executando um solo em tom de lamento; a harmo-
nia é sustentada por um coral masculino e violinos. No exato momento em que Leone insere
o segundo plano geral, o trompete inicia o solo do refrão. A sincronia é absoluta. Leone corta
para um plano médio de Tuco (figura 97) e, mais uma vez, a justaposição da imagem é sin-
crônica com o movimento da música, que é interrompida no exato instante do corte.

170 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Os três homens estão parados. A câmera se aproxima cada vez mais. A decupagem é
simétrica, dedicando o mesmo tempo de tela a cada um dos pistoleiros, e mostrando-os su-
cessivamente com o mesmo enquadramento; essa simetria sinaliza ao espectador a igualdade
de condições. Eles são equivalentes em força e astúcia, e estão cientes disso. Leone inicia
com planos médios (figuras 97, 98 e 99); corta para composições recessivas em profundida-
de (figuras 100, 101 e 102); e daí para planos-detalhes (figuras 103, 104 e 105). Vêm então
três close-ups (figuras 106, 107 e 108), depois três close-ups extremos (figuras 109, 110 e
111); uma composição recessiva com o primeiríssimo plano em close-up extremo (figura
112); três planos-detalhes simétricos das mãos de cada pistoleiro (figuras 113, 114 e 115);
três planos de close-ups extremos dos olhos (figuras 116, 117 e 118).
No início desse trecho, durante os planos médios, o silêncio enfatiza a gravidade do
momento; apenas os pássaros, o vento e os corvos quebram o silêncio. Quando a decupagem
passa aos planos simétricos de composição recessiva com profundidade, a música retorna.
Não o degüello ouvido antes, mas uma melodia minimalista, três notas executadas por uma
celesta; trata-se de uma alusão explícita – pastiche – ao clímax do filme anterior de Leone,
Por uns Dólares a Mais, em que o duelo final também ocorre numa arena circular de pedras
e é sublinhado pela melodia tocada por uma celesta.
Aos poucos, o dedilhar em estilo flamenco retorna, injetando trechos episódicos do
degüello anterior em intercalação com a melodia da celesta. Trechos do degüello soam mais
agressivos, pois surgem inesperadamente, acompanhados de percussão e sinos. Assim que
a decupagem chega aos close-ups extremos, Leone abandona a simetria e passa a alternar
close-ups de olhos, de rostos e planos-detalhes; ele acelera a montagem, reduzindo cada vez
mais a duração dos planos. Nesse exato momento, o verso do degüello evolui novamente em
direção ao refrão apoteótico, com o solo de trompete sublinhando uma longa e alucinante se-
quência de close-ups extremos de olhos, mãos e revólveres, até que a mão de Angel Eyes faz
um rápido movimento lateral (figura 119) e ouve-se um tiro; a música para imediatamente.
O plano seguinte mostra Blondie com o revólver na mão (figura 120). Ele atirou pri-
meiro. Só então Leone retorna para um rápido plano geral aberto, que focaliza toda a arena
circular, para depois aproximar a câmera e mostrar o personagem de Lee Van Cleef caindo
(figura 121). Tuco tenta disparar, mas não consegue (figura 122). Blondie não atira nele.
Quando Angel Eyes finalmente encontra a arma, Leone o focaliza num close-up extremo
(figura 123), criando subitamente um breve instante de suspense antes de Blondie o atingir
pela segunda vez; o impacto da bala joga o pistoleiro dentro de uma cova (figura 124).
A associação das técnicas utilizadas por Leone, sobretudo no trecho final da cena, pro-
voca uma extraordinária fragmentação do espaço fílmico; a consequência desse tratamento
retórico da imagem e do som é a distensão do tempo fílmico e a intensificação do suspense.
Nöel Burch (1992) afirma que todos os cineastas modernistas europeus da época esta-
vam sofisticando a decupagem visual ao construir articulações espaços-temporais não mais
dentro de cada plano, mas sim através das relações entre os planos; não mais através da
encenação, e sim através da montagem imagética. Resnais, Godard, Rohmer e Antonioni são
citados como exemplos de cineastas que desenvolveram esse recurso estilístico em diferentes
direções, desenvolvendo um cinema que, ao provocar certa desorientação espaço-temporal
do espectador, consequentemente o obrigava a manter distanciamento crítico da obra:

171
A concepção internacional de modernismo cinematográfico foi largamente di-
fundida a partir do neorrealismo tardio e dos trabalhos do jovem Bergman, atra-
vés dos filmes de Antonioni, Bresson, Fellini e Buñuel, até os Jovens Cinemas
dos anos 1960, especialmente a Nouvelle Vague. O ideal de objetividade de
Bazin e os elogios dos Cahiers sobre a mise-en-scène sóbria foram confrontados
por um cinema de fragmentação, ambiguidade, distanciamento e efeitos estéti-
cos flagrantes. (BORDWELL, 1998, p. 87).

Essa última sentença pode ser aplicada integralmente ao cinema de Leone. Burch
(1992), de novo, explica a construção dessas articulações espaços-temporais mais difusas,
propondo que a percepção do espectador não inclui apenas elementos dentro do quadro, pois
é afetada também por tudo o que circunda esse quadro, tanto visual quanto auditivamente (e,
no caso de Leone, podemos afirmar que é afetada também pela música autoconsciente). Bur-
ch afirma que a composição pictórica funciona como elemento central de um cubo percepti-
vo; a construção do espaço e do tempo fílmicos só se realiza dentro da mente de cada espec-
tador, depois que este articula aquilo que vê no quadro com os elementos que sabe estarem
fora do quadro, em todas as seis direções possíveis: os quatro limites da tela (as duas laterais,
em cima e em baixo), atrás da tela (e dos personagens) e em frente à tela (atrás da câmera).
E como é possível, para o público, ter conhecimento de todo esse espaço fílmico extra-
campo? Através da associação mental entre o plano que está sendo visto e o espaço fílmico
completo, que cada espectador reconstitui articulando o plano visto com os demais planos
que integram a cena. O som exerce um papel fundamental nesse processo cognitivo, pois
na vida real o espectador ouve em 360 graus, tendo dessa forma uma noção mais ou menos
precisa daquilo que existe fora de seu campo visual. O ponto central do raciocínio de Burch
é que os diretores europeus dos anos 1960, ao revisarem dessa forma as táticas de encenação
típicas dos esquemas da continuidade clássica, estavam expandindo as possibilidades cria-
tivas da arte cinematográfica (BURCH, 1992, p. 36). Embora Burch significativamente não
mencione Leone, podemos afirmar que a cena do trielo constitui um exemplo da nova forma
de articulação espaço-tempo a partir da decupagem e da música.
A cena analisada contém amostras de quase todas as características importantes da
prática estilística de Leone: tratamento particular do tempo fílmico, distendendo-o para mo-
dular a tensão; uso abundante de close-ups extremos; composições recessivas com moldura
em profundidade de campo; atenção obsessiva aos detalhes e preocupação com a acuidade
histórica; música que mistura elementos satíricos e neorromânticos, incorporando influên-
cias do concretismo modernista; desenho de som hiper-real, com ruídos naturais amplifica-
dos que constroem uma atmosfera emocional, ao mesmo tempo em que inserem as imagens
numa ambiente tridimensional; e cuidado meticuloso com a articulação entre som e imagem.

172 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


4.2 COMPOSIÇÃO E ENQUADRAMENTO

De todos os padrões estilísticos recorrentes na obra de Leone, o uso abundante de clo-


se-ups – sobretudo de close-ups extremos – é a ferramenta mais associada ao seu trabalho.
Close-ups extremos de rostos (em que o enquadramento vai do queixo à testa do ator) ou
apenas de um par de olhos são, até hoje, instantaneamente associados ao trabalho de Leone
por cinéfilos, pesquisadores e cineastas. Para se ter uma ideia, quando Quentin Tarantino
dirige uma cena e deseja que o diretor de fotografia filme um close-up extremo, pede da
seguinte maneira: “Faça um Sergio Leone” (FRAYLING, 2000, p. 490). É a senha para que
o operador de câmera saiba com exatidão o tipo de enquadramento desejado.
Curiosamente, o close-up era um recurso estilístico evitado pelos cineastas da geração
anterior a Leone. Parafraseando Godard: para Rossellini, De Sica e outros, evitar o close-up
era uma questão de moral16. Eles associavam esse tipo de enquadramento ao melodrama
norte-americano; aproximar a câmera do rosto do ator era uma maneira fácil de manipular
as emoções do público, forçando-o a sentir determinado sentimento e praticamente obrigan-
do-o a se identificar com o personagem em questão. Ao mesmo tempo, o close-up isolava o
personagem do espaço físico onde a ação dramática acontecia, violando dessa forma um dos
princípios fundamentais do neorrealismo: a integração dos atores ao cenário.
Mas, então, qual a origem do uso tão abundante do close-up dentro da obra de Leone?
Vamos investigar uma série de razões, mas antes disso é importante ressaltar que ele estava
consciente sobre o uso particular que dava ao close-up:

Nos Estados Unidos, todos fazem um close-up em um personagem quando ele


está prestes a falar algo importante. Eu sempre reagi contra essa prática. Meus
close-ups expressam uma emoção, não reforçam o verbo. (...) Então me cha-
mam de perfeccionista ou formalista, porque prezo por minhas composições
visuais. Mas não faço isso para deixar o filme mais bonito. Estou procurando as
emoções mais relevantes. (LEONE, 2000. p. 77).

Leone rejeitava o rótulo de formalista. Ele rebatia essa afirmação evocando toda uma
linhagem de diretores antes dele que valorizava os close-ups de rostos com funções expres-
sivas. Nesse ponto, Leone tinha razão. Alguns diretores soviéticos dos anos 1920, especial-
mente Sergei Eisenstein, concebiam o close-up como um estudo pictórico da face humana,
extraindo dele não uma informação objetiva, mas um efeito emocional: “a essência está em
filmar expressivamente. Devemos (...) usar o limite da forma simples e econômica que ex-
pressa o que precisamos” (EISENSTEIN, 2002, p. 137). Era uma espécie de antecipação
avant la lettre da poética da continuidade intensificada, narrando de forma expressiva e não
meramente objetiva.
Diretores europeus em ação nos anos 1920 e 1930, a exemplo de Eisenstein e Carl
Dreyer, lançavam mão desse recurso estilístico com frequência. No entanto, eles faziam parte
16 Referência à frase famosa de Godard (“todo traveling é uma questão de moral”), publicada nos
Cahiers du Cinéma nº 97 (julho de 1959).

173
de uma minoria. Na Europa, o esquema dominante da época apontava para o registro visual
de cenas em tomadas longas e com câmera distante dos atores. Esses recursos eram ainda
mais proeminentes nos países europeus do que em Hollywood, onde também constituíam um
esquema dominante (SALT, 2009, p. 245).
Nos Estados Unidos, os cineastas usavam o close-up com mais economia e cautela,
pois “receavam que um corte súbito para um pormenor pudesse desagradar a um público
habituado a ver teatro e estar, assim, sempre à mesma distância da ação” (COUSINS, 2004,
p. 31). Por isso a poética da continuidade clássica, consolidada nos Estados Unidos a partir
de 1917, foi organizada em torno do princípio da suavidade – ou mesmo invisibilidade –
dos cortes. As cenas eram filmadas inicialmente com a câmera afastada da ação; os cortes,
efetuados no meio de alguma ação física efetuada pelos atores, quando então os cineastas
introduziam planos mais próximos, e vice-versa. Dessa forma, os espectadores não perce-
biam os cortes, pois se evitava os sobressaltos visuais que desviassem a atenção da história
que estava sendo narrada. O som (música, ruídos e voz) também exercia papel importante
nesse fluxo contínuo de informações: suas propriedades físicas (intensidade, tom e timbre)
eram mantidas tão estáveis quanto possível, no decorrer de uma mesma cena, para evitar que
alterações acústicas bruscas proporcionassem a eliminação desse princípio da invisibilidade.
Constituindo um instrumento de exceção nos esquemas visuais dominantes do cine-
ma clássico, a partir de 1928 o close-up passou a ser utilizado ainda menos, por uma razão
técnica: a instituição do cinema com som sincronizado, fato ocorrido no ano anterior. Pelo
menos até 1932 (SALT, 2009, p. 242), decupar qualquer cena em muitos planos multiplica-
va as dificuldades técnicas, devido às dificuldades logísticas de captação e edição dos sons
diretos. Por isso, a maioria das cenas era filmada em estilo tableau, em composições visuais
que focalizavam os atores de corpo inteiro, em planos gerais. Esses planos permitiam, muitas
vezes, que cenas inteiras fossem filmadas em uma única tomada. Somente a partir de meados
dos anos 1930 observou-se a tendência, tanto nos EUA quanto na Europa, de filmar os atores
com a câmera cada vez mais próxima, variando os enquadramentos.
Além disso, desde o aparecimento da televisão, nos final dos anos 1940, a utilização
de close-ups vinha aumentando gradativamente, embora com menor intensidade no cinema.
Seriados de TV recorriam com frequência ao close-up dos rostos dos atores para permitir que
o público acompanhasse a modulação emocional do enredo com mais facilidade – verificar
o grau de emoção irradiado por um rosto em planos gerais ou médios, na tela pequena de
um aparelho de televisão, era bastante difícil, de forma que os diretores começaram a inserir
close-ups de reação dos atores nos momentos mais dramaticamente significativos.
Essa técnica não foi assimilada imediatamente pelos cineastas por duas razões. Primei-
ro, havia um complicador tecnológico, pois os formatos anamórficos de imagem introduzi-
dos em 1953, como o Cinemascope, exigiam lentes especiais que deformavam as bordas dos
enquadramentos próximos (BORDWELL, 2008, p. 52), dificultando os close-ups normais e
inviabilizando os extremos. Além disso, havia um preconceito dos profissionais do cinema
para com a televisão, vista então como uma ameaça à indústria cinematográfica.
No começo dos anos 1960, quando Sergio Leone começou a dirigir, os dois proble-
mas estavam desaparecendo aos poucos. O Cinemascope dera lugar ao sistema Panavision,

174 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


também anamórfico, cujas câmeras e lentes permitiam a filmagem de close-ups sem grandes
distorções (por outro lado, os close-ups extremos ainda eram muito raros, em parte porque
não era possível preencher todo o quadro com um rosto e manter o foco nítido). Também a
TV deixara de ser uma ameaça ao cinema, passando a influenciá-lo.
No caso de Leone, os orçamentos pequenos e a dificuldade que isso gerava para po-
voar os cenários com figurantes incentivaram o uso dos close-ups extremos. Tonino Valerii
(2003, p. 299) afirmou que Leone orientava os diretores de fotografia a fechar cada vez mais
os enquadramentos em close-up, aproximando cada vez mais a câmera dos atores. Ao invés
de enquadrá-los a partir dos ombros (close-ups normais), os operadores de câmera eram
instruídos a preencher todo o quadro com o rosto, do topo da cabeça até a ponta do queixo,
para evitar que cenários vazios, sem figurantes, aparecessem nas laterais do quadro largo.
Por causa de tudo isso, historiadores do estilo (BORDWELL, 2008, p. 322; COU-
SINS, 2004, p. 33; BORDWELL, THOMPSON, 2009, p. 418; SALT, 2009, p. 247) concor-
dam entre si: Leone foi o diretor que mais usou close-ups extremos, especialmente de rostos.
Os números mostram que esta observação continua valendo; os filmes feitos por Leone con-
têm maiores índices de close-ups do que os trabalhos de qualquer outro diretor que trabalhou
antes ou depois dele. Para comprovar isso, contamos o número de close-ups em três filmes de
Leone (Por um Punhado de Dólares, Três Homens em Conflito e Era uma Vez na América)
e comparamos os dados obtidos com a média de usos de close-ups em longas-metragens
realizados nos anos de 1959 (SALT, 2009, p. 280) e 1999 (SALT, 2009, p. 369).
Para realizar esse levantamento comparativo, procuramos selecionar filmes realizados
por Leone sob diferentes modos de produção, e em épocas diferentes da carreira. Por um
Punhado de Dólares foi feito sob as normas rígidas de Cinecittà e com orçamento de US$
200 mil; em Três Homens em Conflito, Leone teve seis vezes mais dinheiro à disposição e
acesso a novas tecnologias; e Era uma Vez na América, além de realizado quase duas décadas
depois e se constituir como o último trabalho de Leone, é um trabalho de outro gênero, e foi
filmado no sistema de produção dominante em Hollywood17.
Apesar dos três contextos de produção serem bastante diferentes entre si, as estatísticas
demonstram que o uso do close-up em Leone variou pouco, ao longo de sua carreira, com
uma tendência ao uso cada vez mais generoso do recurso, especialmente quando associado
a reenquadramentos18. Vejamos: o primeiro western de Leone contém 221 close-ups nor-
mais (55 combinados com reenquadramentos) e 217 close-ups extremos (32 com reenqua-
dramentos). O filme tem 857 planos, descontados os créditos iniciais, dos quais 438 (ou seja,
51,10%) são close-ups; o total de close-ups supera a metade do número de planos do filme
inteiro. Na prática, um a cada quatro planos do filme consiste de close-ups normais, e um a
cada quatro é um close-up extremo. Além disso, um a cada três planos do filme (260 deles,
ou 30,33% do total) contém pelo menos um reenquadramento.
Realizado dois anos depois, Três Homens em Conflito alcança resultados parecidos – ligei-
ramente mais destacados – no uso do recurso. Do total de 1.472 planos, 325 são close-ups (84 com
17 A decupagem foi realizada com o auxílio do software Cinemetrics (www.cinemetrics.lv). As tabelas
completas com os números de cada filme estão nos Anexos.
18 Consideramos como reenquadramento tantos os movimentos de câmera (pans, tilts, gruas etc.)
quanto os planos que usam o zoom para aproximar ou distanciar as figuras mostradas na imagem do
espectador.

175
reenquadramentos), e outros 551 close-ups extremos (141 com reenquadramentos). Esses números
significam que um a cada três planos do filme (551 planos, ou 37,43%) é um close-up extremo; e
um a cada cinco (325 planos, ou 22,07%), um close-up normal. O longa-metragem tem, ao todo,
876 planos em close-up. Isto significa que 59,51% do total de planos do filme são composições
pictóricas em close-up – três em cada cinco planos realizados. A quantidade de planos que contêm
reenquadramentos é ligeiramente maior do que em Por um Punhado de Dólares: 458, ou 31,11%
– média de um a cada três planos.
Era uma Vez na América foi realizado exatas duas décadas após o primeiro western
de Leone. Teve orçamento de US$ 30 milhões de dólares e utilizou um formato de imagem
diferente (saía de cena a proporção 2.35:1, substituída pela 1.85:1, mais comum nos Estados
Unidos). Mas as alterações financeiras e tecnológicas exerceram pouco impacto no uso do
recurso estilístico. O total de planos em close-up, soados os normais e extremos, chega a
1.019 dos 1.687 que compõem os 22 minutos do filme: 60,40% dos planos são em close-up,
um aumento menor que 1% em relação a Três Homens em Conflito, feito 18 anos antes.
Leone usou 444 planos (26,31%) em close-up normal, ou um a cada cinco; e 575
planos em close-up extremo (34,08%), ou um a cada três. São médias praticamente iguais às
alcançadas no filme de 1966. Quanto ao uso do recurso, a variação mais significativa de Era
uma Vez na América para os westerns de Leone é a quantidade de reenquadramentos. No
longa-metragem de 1984, 675 planos (40, 01% do total, ou dois em cada cinco) contêm pelo
menos um reenquadramento. Esta taxa indica um aumento de 10% no uso desse recurso, em
relação aos filmes italianos de Leone (ver Tabela D dos Anexos).
Para efeito de comparação, Barry Salt (2009, p. 281) contou os tipos de planos em
uma amostragem de 20 dos 151 longas-metragens produzidos nos Estados Unidos em 1959,
e chegou a um percentual de 44,38% de close-ups (dos quais 10,08% são close-ups extre-
mos). Ou seja, um a cada três planos em filmes da época são close-ups, índice semelhante
aos longas-metragens de Leone; e um a cada dez planos são close-ups extremos. Dentro dos
westerns, esse número é ainda menor (os cineastas valorizavam os planos gerais, como forma
de destacar a iconografia do gênero). O Homem que Luta Só (1959), por exemplo, usa 25
close-ups extremos, ou exatos 5% de todos os 500 planos do longa-metragem – um a cada 20
planos do filme. Os diretores de westerns da geração anterior praticamente não usavam clo-
se-ups extremos. Em No Tempo das Diligências (1939), John Ford usou apenas dois planos
do tipo (ou 0,30% dos 656 que compõem o filme). É correto afirmar, pois, que Leone usava
de duas a quatro vezes mais close-ups extremos do que os outros diretores de sua época.
A pesquisa de Barry Salt demonstra que o uso dado pelos diretores contemporâneos ao
close-up é significativamente maior, sobretudo da modalidade extrema, mas o uso que Leone
fazia do recurso permanece mais eloquente do que a média. Em 1999, Salt contabilizou os
tipos de planos usados em 671 filmes lançados comercialmente nos Estados Unidos e na
Inglaterra, chegando ao índice de 47,89% de close-ups (dos quais 15,43% da modalidade
extrema). Isso nos mostra que um a cada três planos de um filme atual consiste em close-up
normal, e um a cada seis planos se enquadra na definição de close-up extremo. A comparação
nos mostra que os filmes de Leone contêm pelo menos o dobro de close-ups extremos e 10%
a mais de close-ups normais, do que os longas-metragens realizados em 1999.

176 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Outra conclusão importante mostra que Leone foi o único cineasta dos anos 1960 – e
permanece um dos raros diretores até a atualidade – a utilizar mais close-ups extremos do que
close-ups normais em seus filmes. A pesquisa de Barry Salt (2009, p. 280-281) demonstra que
os diretores dos anos 1960 usavam, em média, um close-up extremo para cada quatro close-ups
normais. No ano de 1999, essa relação era de três close-ups normais para cada extremo. Na obra
de Leone, ao contrário, a cada três close-ups normais, ele usava quatro extremos.
O resultado desse estudo estatístico nos mostra que o uso do close-up extremo pode
ter sido impulsionado por modas, pelos contextos de produção e pela influência da televisão,
quando Leone começou a dirigir; mas a consistência e a ampliação do uso desse recurso, ao
longo de duas décadas, demonstram que a ferramenta se tornou uma opção estilística cons-
ciente. Mais até do que uma solução para um problema de representação, o close-up extremo
se tornou uma assinatura estilística amplamente reconhecida.
O segundo recurso visual mais característico de Leone é o uso frequente da composi-
ção pictórica em profundidade de campo. Esse tipo de composição institui o que Bordwell
(2008, p. 219) chamou de “espaço recessivo”, seguindo o estudo de Heinrich Wölfflin sobre
a composição dos artistas barrocos na Europa do século XVII:

Há um momento em que enfraquece a relação entre os planos e passa a ser enfa-


tizada a sequência em profundidade dos elementos do quadro; nesse momento,
o conteúdo já não pode ser apreendido através de camadas estruturadas na su-
perfície, e a força motriz passa a residir na articulação dos componentes próxi-
mos e afastados. (...) Mesmo nos casos em que esse efeito [a encenação plani-
métrica] parece inevitável – por exemplo, quando um certo número de figuras
se alinha ao longo da boca de cena – o artista cuida para que essas figuras não
se cristalizem numa fileira perfeita, obrigando o observador a fazer incursões
constantes [com o olho] até o fundo do quadro. (WÖLFFLIN, 1996, p. 101).

Nas composições recessivas, o artista se esmera em criar linhas diagonais que cortam
o quadro do primeiro plano até o fundo. Os artistas podem criar esse efeito através de vários
recursos, inclusive as gradações de luz e cor. Mas a maneira mais simples de instituí-lo na
imagem sempre foi a disposição das figuras em diferentes planos de profundidade da ima-
gem. No cinema, a composição recessiva é obtida quando o diretor posiciona figuras (atores
e objetos cênicos) a diferentes distâncias da câmera, o que injeta mais perspectiva ao quadro.
Movimento, luz e cores contribuem para acentuar o efeito, mas a disposição das figuras é a
maneira mais eficaz de alcançá-lo.
Ao longo da história do cinema, a composição recessiva constituiu uma alternativa de
encenação relativamente pouco utilizada pelos diretores. Nos anos 1920 e 1930, a encenação
dominante tendia a posicionar os atores numa linha perpendicular à câmera, produzindo um
achatamento visual que resultava numa imagem planimétrica (WÖLFFLIN, 2000, p. 102),
com quase nenhuma profundidade. Isso era resultado não apenas da influência do teatro,
mas também dos equipamentos – sobretudo lentes e película – ainda incipientes, que não
permitiam aos diretores de fotografia obter profundidade de campo muito extensa, de forma
que os atores, para ficar em foco, tinham que se posicionar numa faixa estreita do cenário.

177
Apesar disso, havia exceções, incluindo diretores famosos, oriundos de escolas e paí-
ses diferentes, que popularizaram a composição recessiva como uma alternativa viável à ima-
gem planimétrica, embora esta tenha permanecido mais popular no cinema clássico. Sergei
Eisenstein, Kenji Mizoguchi, Jean Renoir, John Ford e Orson Welles estão entre essas exce-
ções. Cada um deles revisou e adaptou as composições recessivas de uma maneira particular
e ligeiramente diferente dos demais. Todos influenciaram o processo de revisão e adaptação
desse recurso que Leone levou a cabo, nos anos 1960.
O uso típico que Leone dava à composição recessiva, porém, era muito próximo da va-
riação executada por Orson Welles. Havia sempre uma figura em primeiro plano emoldurando
a ação ao fundo; a profundidade de campo era ampla, com grande distância entre as duas ações
em diagonal, que por sua vez sempre se relacionavam, uma influenciando a outra. Como Wel-
les, Leone tinha predileção por planos com câmera fixa, dentro dos quais o movimento dos
atores era mínimo. Ele tendia a enquadrar de modo quase estático; suas composições recessivas
consistiam em, muitas vezes, tomadas com câmera fixa, em que os atores em quadro pouco ou
nada se moviam. A sensação de movimento era gerada não no interior da composição pictórica,
como os cineastas que o inspiraram, mas através da justaposição rápida desses planos recessivos
com outros planos (ou seja, através da montagem e da fragmentação do espaço fílmico).
Na obra de Leone, as composições recessivas quase sempre aparecem numa variação
ainda mais agressiva do que a criada por Welles: figuras colocadas a poucos centímetros da
câmera, emoldurando uma ação que ocorre em segundo plano, muito distante; profundidade
de campo maior do que a utilizada por Ford e Welles – a distância entre o primeiro plano e
o fundo, ampliada pelo uso de lentes grande-angulares, era frequentemente de até 20 metros;
composições pictóricas com pouco ou nenhum movimento (da câmera e dos atores).
Usando a tela larga widescreen da forma sugerida por Bordwell (BORDWELL, 2007,
p. 311) – uma superfície dividida em unidades rítmicas –, Leone frequentemente unia os dois
recursos proeminentes (close-ups extremos e composições recessivas) no mesmo quadro.
Fazer isso era simples: bastava usar um rosto, mão, pé ou objeto (revólver, coldre) como
figura em primeiríssimo plano; essa figura preenchia 2/3 ou metade da tela. Dessa maneira, a
linha diagonal criada dentro do quadro levava o olho do espectador do primeiro quadro para
o fundo, ao longe, criando um jogo de tensão que ampliava o suspense alcançado.
Mas será que a influência de outros cineastas é a principal explicação para o uso fre-
quente dessa variação da composição recessiva? Provavelmente não. Leone certamente usou
Welles, Eisenstein, Ford, Mizoguchi e Renoir como inspiração, mas combinou essa influên-
cia com a paixão declarada por pintores europeus (FRAYLING, 2000, p. 233). Entre esses
pintores estão Edgar Degas (1834-1917), Francisco Goya (1746-1828), Giorgio De Chirico
(1888-1978) e Diego Velásquez (1599-1660). A influência dos pintores pode ser constatada,
inclusive, pela relativa ausência de movimento dentro do quadro; Leone enquadrava como se
pintasse uma tela. Os planos que usavam a composição recessiva aparecem, dentro das cenas,
com uma solenidade que induz o espectador a admirar o “artista” que os produziu. Era, talvez
intuitivamente, uma tentativa de se impor como autor.
De fato, a composição recessiva com profundidade de campo de Leone pode ser com-
preendida como uma adaptação das técnicas de Degas e De Chirico para a arte cinematográfica.

178 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Degas criava linhas diagonais nos quadros através do posicionamento das figuras a diferentes
distâncias do pintor; era comum que um modelo ficasse perto dele, numa das bordas do quadro,
funcionando como uma espécie de moldura; essa técnica é evidente na série de quadros de baila-
rinas que Leone adorava (figura 129). Aliás, Leone dizia que a predileção de Degas por retratar
os modelos sempre fazendo ações físicas convencionais também o influenciou na direção dos
atores (daí o gestual lento que os pistoleiros faziam quando se moviam).

FIGURA 129: La Classe de Danse (1873–1876), pintura a óleo que faz parte da série de obras mais famosa de
Edgar Degas, uma coleção da qual Leone era admirador.

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De Chirico era citado por Leone por outra razão, sobretudo pelo uso da nitidez agressi-
va nas composições com linhas diagonais, que incluíam um jogo de perspectiva forçada entre
as ações vistas em primeiro plano e no fundo (ambas muito nítidas). Esta é a concretização
mais clara da técnica do trompe l’oeil, que cria uma espécie de ilusão de ótica ao fazer certos
elementos do quadro parecerem maiores (ou menores, às vezes os dois ao mesmo tempo) do
que deveriam (figura 130).

FIGURA 130: Melancolia de uma Rua (1914), pintura a óleo que de Giorgio De Chirico: jogo com a perspectiva
faz com que as figuras pareçam de tamanhos enormes ou minúsculos.

180 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Goya e Velásquez exerciam influência menos evidente. O primeiro era uma referência,
sobretudo, no uso da iluminação chiaroescuro para produzir efeitos de profundidade; sua
influência pode ser mais percebida nas tomadas registradas em interiores, onde Leone não
conseguia obter profundidade de campo tão agressiva, tendo que usar a luz para criar linhas
diagonais. Já Velásquez influenciou mais na paleta de cores pastéis, cujas variações gradati-
vas constituíam outro recurso para criar diagonais.
O gosto de Leone pela pintura europeia era conhecido de seus colaboradores. Ele
costumava viajar a Madri para visitar o Museo Del Prado, onde estudou minuciosamente
quadros como Las Meninas (1656), de Velásquez. Leone colecionou telas de Giorgio De
Chirico. Antes de filmar Três Homens em Conflito, mostrou pinturas dos quatro artistas ao
fotógrafo Tonino Delli Colli, para que ele as usasse como referências (FRAYLING, 2000, p.
233) nas composições, na iluminação e no uso de tonalidades de terra e areia.
Em resumo, Leone combinou influências do cinema e da pintura para criar uma va-
riação da composição recessiva que se tornaria forte assinatura estilística. É importante ob-
servar, por fim, que ele frequentemente criava um “diálogo” visual entre as duas camadas da
imagem, com a figura em primeiríssimo plano participando ativamente da ação dramática,
interferindo com os elementos da encenação que estavam posicionados à distância, de modo
que o espectador precisasse percorrer toda a imagem com os olhos.
Na época em que Leone começou a dirigir, as composições recessivas com profun-
didade de foco estavam fora de moda. Em Hollywood, os diretores não podiam usá-las por
causa das limitações técnicas impostas pelas lentes anamórficas; na Europa, cineastas como
Michelangelo Antonioni, Theo Angelopoulos e Rainer Werner Fassbinder preferiam com-
posições planimétricas, que geravam imagens mais achatadas e sem profundidade (o efeito
chapado era, ainda, intensificado pelas lentes teleobjetivas, que começavam a ser tornar po-
pulares no mesmo período). Quando o espaço recessivo aparecia, os atores estavam quase
sempre distantes e/ou de costas para a câmera.
Os europeus preferiam esse recurso porque achavam que “a profundidade wellesiana
hiperdramatiza a ação, aproximando demais o primeiro plano do espectador” (BORDWELL,
2008, p. 219), dirigindo o olhar da plateia de maneira mais ostensiva. Já a imagem plani-
métrica, com o primeiro plano distante, exercia o efeito contrário: desdramatizava a ação,
dificultando a leitura das expressões faciais dos atores.
Para adotar a composição recessiva com profundidade de campo e moldura, Leone
precisou resolver impedimentos técnicos. A maneira mais comum de filmar uma composição
recessiva, nos anos 1960, era utilizando lentes de distância focal longa (teleobjetivas). Mas
essas lentes ofereciam pouca profundidade de campo. As teleobjetivas não permitem focalizar
com nitidez as figuras em primeiro e segundo plano; elas desfocam uma das duas camadas.
No caso das lentes especiais dos formatos Scope, que vinham sendo usadas desde
1953, a profundidade de campo era ainda menor. Tudo isso tornava complicada a tarefa de
manter em foco as duas camadas da imagem; se o diretor assim o desejasse, os elementos
em primeiro e segundo plano precisavam estar muito próximos um do outro. Para compor
uma imagem recessiva com alguma profundidade, os cineastas precisavam ordenar os atores
numa área que ia de três a oito metros de distância da câmera (BORDWELL, 2007, p. 313),
uma faixa de encenação muito mais estreita do que Leone desejava.

181
Em 1963, surgiu uma solução técnica para esse problema. Essa solução permitia que a
câmera ficasse a poucos centímetros de distância do elemento em primeiro plano, mantendo
o foco nele e também na ação dramática mais distante, a até 20 metros de distância. Essa
solução surgiu em Roma, no laboratório italiano da Technicolor. Foi lá que alguns técnicos
inventaram um sistema que funcionava de modo semelhante ao Cinemascope. O sistema foi
chamado de Techniscope (BARBUTO, 2009).
Para entender como funcionava o Techniscope, é preciso compreender antes o fun-
cionamento do Cinemascope. Esse último foi desenvolvido por causa da necessidade que os
grandes estúdios sentiram, nos anos 1950, em adotar formato de tela diferente do utilizado
pela televisão, vista como uma ameaça à sobrevivência do cinema. Até ali, as câmeras re-
gistravam as imagens na proporção 1.33:1 (1,33 metro de largura para cada metro de altura).
Com o Cinemascope, a proporção passou a ser 2.35:1.
Para registrar a imagem mais larga, os técnicos utilizavam uma solução matemática
que envolvia o uso, acoplado à câmera, de lentes especiais anamórficas. A câmera capta a
imagem mais larga, mas esta, ao passar pela lente, é esticada duas vezes no sentido vertical
(esquema 1). Desta forma, a imagem impressa no negativo fica distorcida. No momento
em que o filme é projetado, outra lente anamórfica acoplada ao projetor elimina a distorção,
reproduzindo o quadro original (BARBUTO, 2009).
A adoção de sistemas Scope por todos os grandes estúdios, ao longo dos anos 1950,
determinou uma série de restrições técnicas ao trabalho dos cineastas, todas relacionadas à
dificuldade de manipulação das lentes anamórficas. Essas lentes eram caras, maiores, pesa-
das e menos capazes de obter profundidade de campo. Tudo isso impôs limites severos aos
movimentos de câmeras e às táticas de encenação:

Lentes anamórficas têm efetivamente distâncias focais maiores do que as não-


-anamórficas e, portanto, oferecem menor profundidade de campo. Para com-
plicar mais, os mais prestigiosos filmes realizados em formato widescreen eram
filmados em cores, e as cores exigiam mais luz. (BORDWELL, 1997, p. 237).

ESQUEMA 1: Imagem fotografada com lente Cinemas- ESQUEMA 2: A imagem gravada na película pelo siste-
cope distorce a imagem esticando-a para cima, vol- ma Techniscope não é anamórfica e ocupa a metade do
tando ao normal apenas no momento da projeção. espaço na película, mas tem resolução mais baixa.

182 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


A adoção do Cinemascope forçou os cineastas a adotar a encenação com os atores dis-
postos num eixo horizontal, como uma “corda de roupa estendida” (COUSINS, 2004, p. 13).
É aí que entra o Techniscope. A solução era engenhosa: “Enquanto o Cinemascope aumenta
a relação entre largura e altura dobrando a primeira, o Techniscope faz o mesmo diminuindo
pela metade a segunda” (BARBUTO, 2009). Do ponto de vista matemático não faz diferen-
ça, pois a proporção de imagem obtida é exatamente igual, ou seja, 2.35:1 (esquema 2). Em
termos estéticos e financeiros, contudo, havia vantagens e desvantagens.
O principal problema do Techniscope estava relacionado à qualidade da imagem.
Como o Techniscope usava uma área menor do negativo, a imagem precisava passar por
uma ampliação maior na projeção; a textura ficava mais granulada e tinha cores desbotadas.
Mas o sistema tinha vantagens também. Era econômico: o diretor de fotografia só precisava
utilizar 50% do negativo em 35 milímetros necessário para registrar a mesma quantidade de
filme em Cinemascope. E havia vantagens estéticas:

[O Techniscope] usava as lentes comuns, que chamamos de esféricas. Pelo fato


de a diagonal do quadro ser menor, havia um aumento da profundidade de cam-
po em relação ao 35 mm e ao Cinemascope. Havia uma boa disponibilidade de
lentes zoom (...) [o que não acontecia com as lentes anamórficas, muito mais
caras e difíceis de encontrar]. Se poderia ter o quadro largo, permitindo o traba-
lho com a paisagem, liberando a mise-en-scène. E, de quebra, fazia o negativo
render o dobro, diminuindo os custos. (BARBUTO, 2009).

Na Itália, os produtores de Cinecittà adotaram o Techniscope como formato padrão


dos filmes de baixo orçamento, pois as vantagens financeiras eram expressivas. Leone, em
particular, viu no formato a solução para o problema das composições recessivas. A desvan-
tagem mencionada – textura granulada e cores desbotadas – não chegava a ser um empecilho
para ele, que apostava de qualquer forma nas cores gastas e na textura suja. De certo modo,
o sistema até favorecia a aparência rústica pretendida.
O Techniscope dava aos diretores de fotografia a possibilidade de trabalhar com uma
profundidade de campo maior. O formato, portanto, aboliu o limite tecnológico imposto
pelos equipamentos, de forma que Leone encontrou nesse formato as condições ideais para
adotar em seus filmes o tipo de composição recessiva radical que desejava.
Outro aspecto pictórico do estilo de Leone, menos evidente e mais sutil, é uso de uma
variação da técnica do trompe l’oeil. Já vimos como esta técnica abriu caminho na obra de
Leone através da influência de Giorgio De Chirico:

Quando descrevia sua admiração [pelo trabalho de Giorgio De Chirico], Leone


tendia a enfatizar os jogos com a percepção, o uso da ilusão e do trompe l’oeil,
as justaposições bizarras, o fato de que as coisas nunca eram o que pareciam ser.
(FRAYLING, 2000, p. 231).

183
Vimos, também, que ela aparece muitas vezes associada ao uso do close-up extremo
dentro da composição recessiva. Para jogar com a percepção do espectador, Leone usava
esses dois recursos; ele brincava, ainda, com a relação entre os elementos que apareciam
em quadro e outros que estavam fora dele. Esse recurso estilístico pode ser encontrado em
todos os filmes, com maior ênfase em Três Homens em Conflito. A característica já pôde ser
observada duas vezes na cena do cemitério, quando Blondie e depois Angel Eyes aparecem
para Tuco. Ambos esgueiram-se para dentro do quadro sem que sua movimentação chame a
atenção dos personagens em quadro, o que seria realisticamente improvável.
Um dos exemplos mais claros da maneira como Leone adaptou à mídia cinematográ-
fica a ideia fundamental do trompe l’oeil (ou seja, criar uma ilusão imagética que “engane
o olho”) está na tomada de abertura de Três Homens em Conflito. Aliás, nesse momento
específico, Leone usa a técnica não apenas para brincar a percepção do espectador, mas
também para subverter uma convenção do western (o plano de abertura que mostra o herói
cavalgando à distância).
A tomada inicia com um plano geral que mostra a paisagem do deserto (figura 131).
O plano geral, associado ao ângulo alto, sugere uma abertura nos moldes de um western

FIGURA 131: A tomada de abertura de Três Homens em Conflito inicia com um plano geral aberto, em que
se pode ver o deserto seco com montanhas ao fundo.

FIGURA 132: Com câmera fixa e sem cortes, o rosto de um pistoleiro entra em quadro, pelo lado esquerdo,
enganando o espectador: trompe l’oeil no cinema.
norte-americano, mas o que se segue é a aparição surpreendente do rosto em close-up ex-
tremo de um pistoleiro, que entra em quadro pelo lado esquerdo do frame (figura 132). O
efeito alcançado é, ao mesmo tempo, irônico e hiperdramático – ou pós-moderno.
Leone usa o trompe l’oeil para pregar peças visuais no espectador e criar efeitos cô-
micos repletos de ironia. Em outra cena, Tuco e Blondie estão numa estrada vazia (figura
133), conversando e caminhando de vagar, até o momento em que uma tropa de militares os
cerca, entrando no quadro por todos os lados (figura 134). Seria literalmente impossível que
os militares conseguissem se aproximar dos dois pistoleiros sem serem vistos ou ouvidos,
uma vez que eles são muitos e invadem o quadro também pela frente, a mesma direção para
onde, apenas um instante antes, Tuco e Blondie estavam olhando (lodo depois, Leone foca-
liza o espaço à esquerda dos dois, mostrando o exército inteiro ali, algo que deveria ter sido
notado pelos dois).

FIGURA 133: Blondie e Tuco caminham pela estrada e consultam um mapa, tentando descobrir onde fica o
cemitério militar em que o tesouro está enterrado

FIGURA 134: No instante seguinte, uma tropa de soldados cerca os dois, entrando em quadro pelos dois
lados e pela frente: trompe l’oeil cinematográfico.

185
4.3 CENÁRIOS, FIGURINOS E OBJETOS CÊNICOS

Leone tinha 16 anos quando fez assistência de direção em Ladrões de Bicicleta (1948).
Não era exatamente um serviço profissional, mas um estágio não remunerado. Ele era encar-
regado de lidar com figurantes, servir café e sanduíches. Pode parecer sem importância, mas
essa experiência deixaria um legado ao seu trabalho como diretor.
A afirmação pode parecer estranha: o cinema de Leone lidava com a fantasia e não
com a representação fiel do mundo, como queriam os neorrealistas. Mesmo assim, a ex-
periência deixou marcas na prática estilística: o cuidado obsessivo com detalhes, tanto na
verossimilhança quanto com seu potencial dramático e narrativo. Leone ilustrava essa in-
fluência contando sobre uma reunião que presenciara entre o diretor Vittorio De Sica e os
roteiristas Cesare Zavattini e Sergio Amidei (FRAYLING, 2000, p. 51).
O trio debatia uma cena: o protagonista saía de casa segurando um sanduíche de mor-
tadela. Zavattini sugeriu que o sanduíche estivesse embrulhado numa folha do jornal comu-
nista Unità. Amidei concordou, mas achou que a mensagem seria menos explícita e mais
eficiente se o espectador pudesse ler apenas a última sílaba do logotipo (‘tà’). De Sica então
entrou na conversa. Era melhor trocar o sanduíche por uma maçã:

Diante da câmera, o protagonista morderia a maçã pela primeira vez e então


começaria a sua jornada para o desastre. Honestamente, eu ouvia a declaração
dele quase como se fosse capaz de comer a maçã. De Sica conseguia descrever
a cena como se estivesse acontecendo diante de nossos olhos. O cinema, para
ele, significava atenção total a esses pequenos detalhes. (LEONE, 2000, p. 51).

A lição que ele extraiu do episódio foi o cuidado com cada detalhe. Leone aprendeu
que o efeito visual do objeto mostrado na tela era tão importante quanto o efeito emocional
que provocaria no espectador. A aparência realista dos westerns de Leone, o cuidado com a
verossimilhança, veio daí – o neorrealismo, portanto, pode ser apontado como pré-condição
de um importante recurso estilístico de Leone.
O tratamento estilístico que ele deu à aparência de seus filmes era resultado de um
olhar treinado dentro do contexto sociocultural do cinema europeu dos anos 1950 e 1960,
interessados em oferecer filmes que fossem uma contrafação das produções excessivamente
espetaculares (e por isso mesmo, de aparência artificial) que tinham origem em Hollywood.
Para alcançar a verossimilhança desejada, Leone investiu na obsessão com os detalhes.
E, à medida que suas produções tinham orçamentos maiores, essa preocupação passou a se
tornar uma mania perfeccionista. Durante as filmagens de Três Homens em Conflito, certo
dia, Leone procurou o diretor de produção, Fernando Cinquini, e o avisou que havia se es-
quecido de filmar um plano previsto no cronograma. Era um plano-detalhe da espora da bota
de um pistoleiro. Cinquini o tranquilizou. Aquilo podia ser filmado em qualquer outro dia,
mais para o final das gravações.

186 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Semanas mais tarde, com as filmagens chegando ao final, Cinquini procurou Leone e
sugeriu que ele filmasse o plano da espora. Não era possível, retrucou Leone. Ele precisava
recriar o cenário com 300 figurantes (incluindo uma tropa inteira de atores vestidos de milita-
res), rifles, cavalos e uma carruagem. “Em segundo plano, Leone queria captar toda a vida da
cidade”. (FRAYLING, 2000, p. 228). Pode-se afirmar, de fato, que a influência neorrealista
nesse aspecto não só funcionou como pré-condição para Leone, como também gerando mais
tarde exemplos de worldmaking.
Carlo Simi foi outra influência no desenvolvimento desse recurso. Ele instituiu, desde
Por um Punhado de Dólares, a prática da pesquisa iconográfica em livros de fotografia e
arquitetura, jornais e bibliotecas. Em Por um Punhado de Dólares, Simi recorreu a livros
que documentavam as construções do Velho Oeste real para sugerir as construções baixas,
de estuque branco, e os prédios de madeira do centro da cidade. E tudo tinha que ser velho,
com janelas tortas, pintura descascando e portas que rangiam.
No que se refere ao figurino, Simi criou o poncho de Clint Eastwood, importante
para localizar geograficamente o filme na fronteira entre EUA e México, e apostava nessa
noção da verossimilhança. Simi sugeriu que o restante das roupas – trazidas pelos atores ou
alugadas a um fornecedor de figurinos – seguisse o mesmo princípio da arquitetura: “Disse
que seria uma boa ideia sujar os chapéus, para que a audiência pudesse sentir a sujeira e o
suor daquele ambiente.” (SIMI, 2005, p. 124). A abordagem de Leone – o cuidado com os
detalhes, o senso de acuidade histórica, o estabelecimento de uma história paralela que não
aparecia diretamente no enredo, mas cujos detalhes podiam ser sentidos, numa espécie de
proto-worldmaking – era semelhante.
Um aspecto cultural que precisa ser considerado, no que se refere a esse aspecto da
representação do ambiente sujo do Velho Oeste, é a emergência da contracultura. Nos anos
1960, os homens usavam cabelos longos e barba mal feita, uma aparência que não tinha sido
comum nas décadas anteriores. Mesmo que Leone não tenha sido influenciado por isso, a
mera existência da contracultura permitiu que o público – mais jovem, mais irreverente, mais
acostumado a essa moda – aceitasse mais facilmente o visual sujo dos westerns de Leone.
A primeira cidade cenográfica que Leone e Simi construíram reforça esse cuidado com a
acuidade histórica e com a verossimilhança dos detalhes. A cidade, usada em Por uns Dólares a
Mais, era El Paso. Simi consultou fotografias da locação real e descobriu que não se parecia em
nada com o vilarejo do primeiro filme. El Paso era, na época, uma cidade economicamente de-
senvolvida. Assim, ele optou por um estilo de arquitetura diferente, com construções de madeira
novas e grandes, de dois ou três andares. A ideia (fictícia, mas compatível com a realidade his-
tórica) era que a cidade havia sido erguida ao redor das ruínas de um antigo forte militar cons-
truído pelos espanhóis. Essa fortaleza teria sido reformada para abrigar um banco e assim não
se assemelhava em nada à aparência que bancos normalmente tinham em westerns americanos:

Quisemos nos afastar do banco localizado na rua principal, com uma porta co-
mum e grades nas janelas, e então eu desenhei uma velha fortaleza espanhola,
ainda com partes semidestruídas. Parecia com uma prisão, uma caixa-forte.
(SIMI, 2005, P. 125).

187
O arsenal de armas do Coronel Mortimer também foi resultado de pesquisas. Leone
queria que Mortimer usasse uma arma diferente em cada cena e todas tinham que ser histo-
ricamente acuradas. O revólver tornou-se um Buntline Special de 12 balas e com suporte de
ombro. Mortimer utilizava uma pistola Derringer sob a manga do casaco e tinha um arsenal
de rifles desmontáveis. Todas eram réplicas construídas a partir de livros pesquisados por
Simi (HUGHES, 2004, p. 45). As armas funcionavam de verdade.
Três Homens em Conflito foi o filme em que Leone e Simi se esmeraram com mais
rigor para oferecer ao público uma representação historicamente acurada da guerra civil
norte-americana. Eles passaram duas semanas pesquisando na Biblioteca do Congresso, em
Washington (EUA), fotocopiando livros históricos que documentavam, em fotos, detalhes
das armas e roupas usadas na década de 1860. A arquitetura, as táticas de batalhas, os cam-
pos de concentração para prisioneiros de guerra, os veículos (locomotivas, carruagens), nada
foi improvisado. O worldmaking, ainda discreto nos outros filmes, tinha sido intensificado.
O arsenal de réplicas incluiu um revólver Colt Navy e dois rifles (um Henry, com
mira telescópica, e outro Sharps) para Clint Eastwood (figura 135); um revólver New Model
Army Remington para Lee Van Cleef; e uma pistola montada com partes de três revólveres
por Eli Wallach, operação realizada em frente à câmera, numa cena do filme: o cano de um
Colt, o tambor de uma Smith & Wesson e o punho de um Colt Navy (figura 136).

FIGURA 135: Um dos dois rifles utilizados pelo personagem de Clint Eastwood em Três Homens em Conflito
tinha mira telescópica e era da marca Henry.

Durante as filmagens, Leone pediu emprestado ao Exército espanhol uma miríade de


armas históricas, incluindo morteiros e canhões da marca Parrott – o mesmo tipo de arma
que havia sido usado na guerra dos Estados Unidos (HUGHES, 2004, p.110). Até mesmo
a locomotiva foi adaptada para ficar parecida com os veículos da época, com laçadores de
boi na parte da frente (onde às vezes os dois amarravam soldados considerados traidores) e
vagões especiais para transporte de carga militar.
Leone, Simi e Vincenzoni dedicaram atenção especial ao trabalho de Matthew Brady
(1822-1896), pioneiro do foto-jornalismo americano. Nos anos da guerra, ele acompanhou
de perto várias batalhas e reuniu mais de seis mil fotografias. Leone teve acesso a esse ma-
terial e usou-o extensivamente, inclusive para encenar as batalhas de maneira parecida com

188 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


FIGURA 136: Tuco monta, diante da câmera, um revólver composto de peças oriundas de três diferentes
armas: um Colt, um Smith & Wesson e um Colt Navy.

FIGURA 137: Soldados da União se aglomeram em trincheiras escavadas: alusão ao estilo sangrento de
combate que marcou a Primeira Guerra Mundial.

FIGURA 138: Moradores de Peralta fogem às pressas da cidade, com bombas explodindo ao fundo: alusões
aos bombardeios aéreos da Segunda Guerra.
os registros de Brady. Os créditos de Três Homens em Conflito, com stills retirados de cenas
do filme e coloridos artificialmente, consistem num pastiche do trabalho de Brady, provavel-
mente influenciados pela pop art de Andy Warhol.
Para se certificar que a experiência recente das duas guerras mundiais que haviam
devastado a Europa não passasse despercebida, Leone incluiu alusões às batalhas em trin-
cheiras da Primeira Guerra Mundial (figura 137), aos bombardeios aéreos com populações
de cidades fugindo às pressas (figura 138) e às instalações dos campos de concentração
nazistas (figuras 139 e 140).
Leone incluiu alusões em homenagem a Brady, inserindo os três anti-heróis dentro de
eventos reais ocorridos na guerra e fazendo-os presenciar batalhas que simulavam imagens
históricas registradas pelo fotógrafo (figuras 141, 142, 143 e 144). Ao mesmo tempo, esse
procedimento unia as práticas do alusionismo e do worldmaking. Décadas depois, filmes
como Forrest Gump (Robert Zemeckis, 1994) e JFK (Oliver Stone, 1991) intensificariam
essa revisão do esquema, inserindo personagens fictícios em imagens de arquivo reais.
A acuidade histórica da guerra não ficou restrita às armas e objetos. Leone se esmerou
nas representações indiretas da guerra, assumindo que a verossimilhança da representação
seria percebida pelo espectador, ainda que inconscientemente. Foi por essa razão que o ita-
liano povoou o cenário com figurantes sem braços ou sem pernas, para sugerir visualmente
as consequências nefastas da guerra.
Esse esforço culminou na construção do cemitério militar. A locação, construída num
vale perto de Almería, foi desenhada por Simi com dois propósitos. O primeiro era a acui-
dade histórica; o set precisava ser idêntico a um cemitério improvisado para enterrar mortos
após grandes batalhas. Simi encontrou a inspiração numa foto de Matthew Brady (1862),
que mostrava as lápides improvisadas – pedaços de madeira e gravetos cruzados – e a grande
quantidade de mortos. Já vimos como a construção do set copiou o estilo tosco dos túmulos.
Além disso, o cemitério precisava satisfazer a um desejo de Leone: tinha que ter uma
forma circular, contendo no centro uma arena semelhante ao cenário do clímax de Por uns
Dólares a Mais. Simi recorreu à lógica (figura 145): talvez o cemitério improvisado tivesse
sido erguido em torno de algum cemitério civil, mais velho e menor. À medida que a guerra
fizesse mais vítimas, ele seria expandido em círculos concêntricos, para fora. Os túmulos
mais antigos, perto do centro, teriam lápides de mármore envelhecido; os mais recentes, nos
círculos mais externos, onde estariam enterrados os soldados mortos em conflitos, consis-
tiriam apenas de pedaços improvisados de madeira. Foi seguindo essa lógica que o cenário
foi construído. Este é um bom exemplo de worldmaking: para erguer um cenário, o diretor
de arte criou toda uma história da locação, que não aparecia no filme, mas podia ser sentida
pelo espectador (figura 146).
Como a acuidade histórica tinha débito considerável com o trabalho de Matthew Bra-
dy, Leone incluiu uma alusão específica a ele. Numa curta cena que se passa numa estação
ferroviária, Brady é visto de relance, fotografando um grupo de soldados prestes a embarcar
para a batalha (figura 147). Os militares fazendo poses parecidas com as que eram vistas nos
retratos que o verdadeiro Brady fazia das tropas (figura 148).

190 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


FIGURA 139: Prisioneiros marcham para o interior de um campo de prisioneiros: torres de sentinelas que
emolduram a imagem sugerem uma prisão nazista.

FIGURA 140: O ângulo escolhido para encerrar o plano da entrada dos prisioneiros não deixa dúvidas sobre
a alusão aos portões dos campos de concentração.

FIGURA 141: Foto de Matyhews Brady (1863: soldados do exército da União preparam os canhões para o
confronto, pouco antes de uma das batalhas da guerra.
FIGURA 142: A encenação da batalha que antecede a explosão da ponte buscou inspiração dos registros
fotográficos feitos por Matthew Brady.

FIGURA 143: Corpos se estendem em todo o campo de batalha, até o horizonte, momentos após a batalha de
Gettysville (1863): fotografia de Matthew Brady...

FIGURA 144: ...que se tornaria, algumas décadas mais tarde, um dos mais famosos registros históricos
de uma guerra civil ocorrida no século XIX.
FIGURA 145: Rascunho do cemitério militar (o cenário da sequência final de Três Homens em Conflito)
desenhado por Carlo Simi: uma arena circular no centro.

FIGURA 146: Sergio Leone contou com 250 soldados do Exército da Espanha para, em dois dias, erguer 10 mil
lápides improvisadas com mármore e madeira.

FIGURA 147: Como forma de homenagear Matthew Brady, Leone incluiu uma cena em que o fotógrafo é
mostrado em ação, retratando um grupo de oficiais.
FIGURA 145: A pose que os atores fazem é alusão a alguns dos famosos retratos de militares e figuras
públicas dos EUA que Brady realizava na época (1862).

Em Era uma Vez no Oeste, Leone manteve essas preocupações com acuidade, mas
abriu concessões ao realismo porque seu objetivo, dessa vez, não era representar a realidade
histórica, mas sim representar a mitologia criada sobre o Velho Oeste. Era uma Vez no Oeste
não era uma história sobre os Estados Unidos do século XIX, mas uma história sobre os
filmes que representavam os EUA do século XIX.
Ainda assim, o trabalho de Carlo Simi pode ser verificado no esmero com que a loco-
motiva que aparece no filme recriou os verdadeiros trens dos Estados Unidos no século XIX;
no chalé suíço erguido no meio do deserto por um trabalhador visionário que tinha a certeza
de enriquecer nos meses seguintes; na estação ferroviária semideserta que serve de cenário
para a longa cena de abertura (que também tinha uma história prévia: teria sido erguida de
modo caótico, unindo pedaços de madeira de qualquer jeito); e nos sobretudos guarda-pó
amarelados que os pistoleiros usam, cuja existência podia ser confirmada nos livros de foto-
grafias que documentavam a vida no Velho Oeste.

4.4 O SOM: VOZ, RUÍDOS, SILÊNCIOS E MÚSICA

Se o neorrealismo funcionou como pré-condição para o desenvolvimento de recursos


estilísticos no desenho de produção, também o fez no trabalho com o som. Neste último caso,
a influência se deu de forma mais sutil, indireta, através de um conjunto de tradições seguido
pela indústria cinematográfica italiana, as quais se impuseram como limites que afetaram
muitas escolhas estilísticas de Leone na área da construção da narratividade através do som.
A análise da maneira como Leone trabalhava o som nos permite destacar quatro re-
cursos recorrentes: (1) a música era feita para ser apreciada pela audiência, prática que ia de
encontro ao princípio da inaudibilidade das composições musicais (GORBMAN, 1988, p.
57); (2) a articulação meticulosa entre as camadas sonora e visual do filme, com sons – die-
géticos ou não – sincronizados minuciosamente com os cortes visuais; (3) o desenho de som
enfatizando ruídos naturais amplificados e silêncios, ao mesmo tempo reduzindo o uso de
diálogos, criando assim uma categoria de filmes de Michel Chion (2009, p. 121) chamou de
“lacônicos”; (4) a inclusão de sons diegéticos na harmonia, como tiros, chicotadas e galopes.

194 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Os quatro recursos consistem de revisões nos esquemas dominantes de construção
sonora dos filmes da época, sobretudo os americanos; posteriormente, a partir dos anos 1970,
alguns desses recursos se tornariam populares no cinema de Hollywood. Já vimos antes
como o uso que Leone dava ao primeiro (a inaudibilidade da música) alterou significativa-
mente o esquema dominante da composição musical para cinema. A seguir, vamos analisar
os outros três, além de verificar como os contextos socioculturais, tecnológicos e econômicos
possibilitaram às quatro ferramentas emergirem dentro da obra em Leone.
Em Cinecittà, como já vimos, o modo de produção desprezava a gravação de som di-
reto (FABRIS, 2006, p. 206). O motivo principal para essa prática era financeiro. Gravadores
de som sincronizado com a película custavam caro e eram pesados, exigindo a contratação de
equipes de técnicos cujos salários inviabilizavam financeiramente a utilização em locações
externas, caso dos desertos espanhóis, onde eram filmados os spaghetti westerns.
Além disso, os diretores vinculados a Cinecittà estavam acostumados a trabalham com
a dublagem posterior. Essa prática era comum na Itália desde a ascendência do neorrealismo,
na década de 1940. Os cineastas neorrealistas, que começaram a filmar quando a Segunda
Guerra Mundial se aproximava do fim, não apenas estavam impossibilitados de gravar som
direto nas locações, como vislumbravam uma vantagem estética nessa limitação: “A filma-
gem de cenas sem gravação [de áudio], com sincronização realizada posteriormente, (...)
tornava possível uma maior liberdade de atuação” (FABRIS, 2006, p. 206). Sem ter que se
preocupar se o microfone estava captando os diálogos, os diretores ganhavam tempo, filma-
vam mais rápido e economizavam dinheiro para usar na pós-produção.
Quando Leone começou a dirigir, no início da década de 1960, o gravador Nagra III
– primeiro equipamento portátil capaz de gravar som direto sincronizado com a película, e
que começara a ser utilizado em 1959 – tinha se tornado popular entre os diretores europeus.
Com uma exceção: os italianos. Acostumados com o sistema de pós-sincronização de áudio,
os cineastas da Itália continuaram filmando sem som direto.
Ainda por cima, como a maioria das cenas ocorria em locações externas, a captação dos
diálogos ficava financeiramente inviável nas produções dos ciclos populares de Cinecittà. O
aluguel dos equipamentos – gravadores, mesas de mixagem, monitores de áudio – era caro. O
som direto estava descartado19. A experiência como diretor assistente fez Leone se acostumar
com isso. Mesmo a partir de Três Homens em Conflito, quando a melhoria das condições de or-
çamento lhe permitiu começar a trabalhar com som direto, Leone continuou usando a técnica de
reconstituir vozes e ruídos na pós-produção. No filme de 1966 ele registrou os diálogos nos sets,
mas o objetivo era utilizar esses sons apenas como faixas-guia para auxiliar os dubladores. Por
fim, o fato de que havia atores de várias nacionalidades nos sets, cada um falando uma língua
diferente, inviabilizava definitivamente o uso de som direto. E nem Leone nem os produtores
de Cinecittà tencionavam abrir mão desses elencos internacionais, pois ter atores oriundos de
vários países facilitava a divulgação do filme por toda a Europa.

19 Essa situação, aliada aos elencos multinacionais (incluindo atores americanos, italianos, espanhóis,
alemães e franceses), gerou situações curiosas nas locações. Era comum que houvesse, na mesma cena,
atores falando em duas ou três línguas diferentes. Quando Tuco (Eli Wallach) discute com o padre
Ramirez (Luigi Pistilli), em Três Homens em Conflito, o norte-americano falava em inglês e o colega
respondia em italiano. Um não entendia o outro, embora o roteiro determinasse que eles eram irmãos.

195
O único filme em que Leone efetivamente usou o som direto na trilha final de áudio
foi Era uma Vez na América. Isso aconteceu por insistência dos dois atores principais, Robert
De Niro e James Woods. Eles convenceram Leone que as interpretações ficariam melhores
com a utilização do som direto. Nesse filme, 65% dos diálogos foram gravados nos sets
(FRAYLING, 2000, p. 443). Não por acaso, é também o filme mais convencional de Leone,
em termos de experiências narrativas com ruídos amplificados e silêncios.
Durante o ciclo de spaghetti westerns, todos os filmes eram dublados em quatro lín-
guas diferentes (inglês, italiano, francês e alemão). Esse modo de produção afetou a estrutura
narrativa dos spaghetti westerns, e não apenas na textura sonora. Quanto menos diálogos,
menos tempo de aluguel de estúdios de som era necessário (ou seja, mais barato ficava o
filme). Assim, os roteiros incluíam mais cenas de ação física (perseguições de cavalo, ti-
roteios, duelos, brigas etc.); uma a cada 15 minutos, em média, e sem diálogos. Portanto, a
contexto de produção gerava uma revisão significativa do esquema dominante de construção
narrativa, apontando para a continuidade intensificada. Essa estrutura narrativa – sequências
de ação mais numerosas e mais longas, intercaladas por cenas que faziam a ação dramática
avançar – se tornaria muito popular no mundo todo, a partir dos anos 1970.
O orçamento se constituía ao mesmo tempo como limite e pré-condição da prática es-
tilística. E se uma das consequências disso foi o aumento do número e da duração das cenas
de ação, outra foi a necessidade de encontrar uma maneira alternativa de enfatizar a evolução
do enredo, pois no cinema clássico a maior parte da exposição acontece através de diálogos,
ainda que a plateia nem sempre se dê conta disso. Michel Chion chama o esquema dominante
da construção sonora de verbocêntrico, assinalando que esse esquema se consolidou ao final
dos anos 1930, em Hollywood, e continua hegemônico (embora a importância dos efeitos
sonoros tenha aumentando desde o surgimento do sistema Dolby, em 1975):

O que é [o cinema verbocêntrico]? Um cinema em que o diálogo é o centro invi-


sível da atenção, porque ocorre simultaneamente a uma ação visual (...) paralela
ao diálogo, embora não tenha relação intrínseca com ele, servindo apenas para
pontuá-lo. (...) Assim, a ação visual dá ao diálogo um impulso ou estímulo que
faz a cena parecer mais cinematográfica, nos fazendo esquecer que o diálogo é
o coração e o motivo de a cena estar ali. (CHION, 2009, p. 73).

Chion nos dá uma série de exemplos de ações corriqueiras – beber algo, acender um
cigarro, comer, dirigir, dar um laço no sapato, jogar sinuca etc. – que nada acrescentam à nar-
rativa, a não ser uma dinâmica visual que mascara o caráter verbocêntrico da cena em si: é o
que está sendo dito pelos personagens, e não o que eles estão fazendo, que faz a ação dramá-
tica avançar. Eles poderiam perfeitamente estar parados, um ao lado do outro, e a trama seria
compreendida do mesmo modo; só que as imagens estáticas tornariam o filme visualmente
desinteressante, o que acabaria por revelar o caráter verbocêntrico à plateia.
Os filmes de Leone não descartam completamente esse esquema, mas o revisam. A causa
maior desse processo está no modo de produção: sem poder gravar som direto, trabalhando com
orçamentos limitados e atores de várias nacionalidades, Leone teve que encontrar outra maneira

196 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


de narrar o avanço da trama (ou seja, teve que solucionar o problema de representação revisando
a solução mais comumente disponível).
Tudo isso pode ser comprovado estatisticamente; basta comparar o número de frases
ditas pelos personagens de um western de Sergio Leone com a quantidade de falas presentes
em qualquer western norte-americano da mesma época. Para isso, selecionamos um corpus
aleatório de 23 westerns realizados entre os anos 1930 e 1960, por diretores renomados (in-
cluindo Ford, Hawks, Mann e Boetticher) e contamos cada linha de diálogos representada
pelos atores desses filmes. Fizemos o mesmo procedimento nos sete filmes de Sergio Leone
estudados nesta pesquisa (inclusive Era uma Vez na América e Meu Nome é Ninguém). A
justaposição desses resultados mostra que todos os sete filmes de Leone têm menor quantida-
de de falas do que qualquer outro filme integrante do corpus selecionado (ver Tabela C dos
Anexos, que está ordenada do filme mais lacônico ao mais tagarela). Os sete filmes de Leone
ocupam os sete primeiros lugares da lista.
Para efeito de comparação, Por um Punhado de Dólares possui 687 linhas de diálogo em
99 minutos (menos de sete linhas por minuto). O Homem que Matou o Facínora, feito dois anos
antes, contém 1093 frases em 123 minutos, quase nove por minuto – taxa idêntica a Rastros de
Ódio (1956), do mesmo John Ford. Onde Começa a Inferno (1959) soma 1526 linhas em 141
minutos (onze por minuto), enquanto Rio Vermelho (Red River, Howard Hawks, 1948) é ainda
mais tagarela: 1628 em 133 minutos, mais de doze falas por minuto e taxa idêntica a Duelo ao
Sol (Duel in the Sun, King Vidor, 1946), o mais verborrágico dos westerns.
Embora as condições financeiras fossem mais favoráveis a cada filme, Leone não tor-
nou seus filmes mais verbocêntricos por causa disso. Ele continuou economizando diálogos.
Há, em Três Homens em Conflito, 946 frases em 179 minutos (cinco por minuto), apesar de
este filme ser protagonizado por um dos personagens mais tagarelas de Leone, que é Tuco. Já
Era uma Vez no Oeste contém 686 linhas de diálogos em 175 minutos – pouco mais de quatro
por minuto, ocupando o primeiro lugar de nossa lista de westerns lacônicos.
Mesmo quando comparamos os filmes de Leone a diretores norte-americanos de wester-
ns psicológicos com heróis que pouco falam, como Budd Boetticher e Anthony Mann, a discre-
pância permanece. Sete Homens Sem Destino (1959) e O Resgate do Bandoleiro (The Tall T,
1957), ambos de Boetticher, apresentam respectivamente 642 e 691 frases em 73 e 78 minutos,
taxas que indicam pouco menos de nove frases pronunciadas por personagens a cada minuto.
De Mann, Winchester 73 e Um Certo Capitão Lockhart (1955) possuem 1103 e 1102 linhas de
diálogos em respectivamente 92 e 104 minutos – ou seja, quase doze e mais de dez por minuto20.
Baseando-se nessa amostragem, podemos afirmar que Leone foi o mais lacônico de to-
dos os diretores de westerns. E ele levou essa característica consigo quando filmou Era uma
Vez na América, sua primeira incursão fora do gênero. O filme completo tem 1359 linhas
faladas pelos atores em 229 minutos (menos de seis frases por minuto).
Antes de seguir em frente, é necessário um último comentário relacionado ao esquema ver-
bocêntrico. Ao contrário do que Chion parece deixar implícito, esse esquema não foi adotado (e
20 A metodologia para realização dos cálculos foi a seguinte: extraiu-se a trilha de diálogos em por-
tuguês dos DVDs dos filmes constantes da pesquisa, e contou-se o número de linhas, dividindo-se o
resultado pela duração em minutos oficial, constante no banco de dados do Internet Movie Database
(IMDb). Cada fala considerada consistia de duas linhas de até 40 caracteres cada.

197
tampouco permanece dominante) por razões de comodidade narrativa ou preguiça. Os diretores
não impulsionam a trama para frente usando diálogos apenas porque é mais fácil, mas também
por razões relacionadas às práticas cognitivas da espécie. Trata-se de um traço antropomórfico:
quando nossos ouvidos detectam o timbre da voz humana (que soa sempre dentro de uma faixa
de propagação de ondas sonoras que vai de 300 a 1300 Hz), direcionamos naturalmente nossa
atenção para esses sons (e desprezamos todos os demais), tentando reconhecê-los e interpretá-los.
Com base nesse princípio, os sound designers costumam mixar, na trilha sonora de qualquer filme,
diálogos em volume mais alto do que efeitos sonoros e música, salvo em momentos de exceção. Se
não fosse assim, os espectadores não apenas seriam privados de acompanhar a trama, mas também
ficariam fisicamente exaustos pelo esforço mental e auditivo de tentar decifrar as palavras por
detrás dos outros sons.
Mas voltemos a Leone. Quando começou a dirigir filmes, ele foi confrontado com esse
problema de representação. Procurou solucioná-lo aplicando aos efeitos sonoros a mesma
obsessão pelos detalhes que usava nas áreas da direção de arte e do desenho de produção,
e que por sua vez era oriunda da experiência neorrealista do princípio da carreira. Leone
desenvolveu um recurso estilístico incomum na época: a construção sonora da narrativa com
uso generoso de efeitos sonoros, sobretudo ruídos naturais amplificados na mixagem. Esse
recurso consistia no uso de sons (quase sempre provenientes da diegese) cujo volume era
equalizado em maior intensidade, obtendo um efeito perceptivo que os sound designers cha-
mam de realismo emocional, e que consiste na reprodução, dentro da trilha sonora do filme,
de um modo de audição mais aguçado do que o normal, em que os pequenos ruídos ganham
uma dimensão sensorial. Chion usa o termo tradução para nomear o fenômeno:

O espectador reconhece os sons como verdadeiros e compatíveis, não tanto porque


eles reproduzem concretamente aquilo que seria ouvido na mesma situação no
mundo real, mas porque eles traduzem, expressam ou transmitem as sensações –
não necessariamente auditivas – relacionadas à situação. (CHION, 2009, p. 488).

Esse procedimento não era comum na época. Como as tecnologias de gravação e pro-
jeção eram rudimentares, a maioria dos diretores dedicava pouco tempo para pensar a trilha
de áudio. Em Hollywood, a banda sonora era preenchida com música (quase sempre de sabor
neorromântico, inspirada nos compositores europeus do século XIX), que intercalava os diá-
logos e era intensificada, em termos de volume, nos trechos sem a voz humana.
De todo modo, ruídos e efeitos sonoros usados até então eram poucos, rudimentares,
e serviam mais para criar um senso de ambiência – aquilo que Michel Chion (1994, p. 87)
chama de “vasta extensão” sonora – e sugerir a tridimensionalidade do espaço fílmico do que
para criar pontos de sincronização (CHION, 1994, p. 58) entre aquilo que se ouve na banda
sonora e as imagens que são vistas simultaneamente na tela. Nesse ponto, Leone seguiu a tri-
lha aberta por pioneiros no uso dos ruídos como elementos de construção da narrativa, como
Robert Bresson (e seu uso expressivo e emocional de sons fora do quadro) e Jacques Tati
(que utilizava efeitos sonoros em volume amplificado para guiar a percepção do espectador
dentro do próprio quadro), ambos – junto com Jean-Pierre Melville, Stanley Kubrick, Akira

198 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Kurosawa e o próprio Leone – nomeados por Chion como diretores de filmes integrantes da
variação lacônica do esquema dominante de construção sonora.
Note-se que, num cinema que propunha a fragmentação cada vez maior do espaço
fílmico, com abundância de close-ups, os sons auxiliam bastante o espectador na organiza-
ção cognitiva do espaço fílmico fora de quadro. Essa construção tem relação com a maneira
como a fisiologia do organismo humano faz nossos cérebros processarem o som. Ao con-
trário das imagens, que são projetadas numa tela e por isso têm limites (laterais, superior e
inferior), os sons são percebidos num raio de 360 graus. Ouvimos sons o tempo inteiro, pois
não podemos “fechar” os ouvidos (como fazemos com os olhos). Por essas características, o
cérebro se acostuma a isolar os ruídos, processar os mais importantes e descartar os demais.
Na hora de dormir, o cérebro “desliga” os sons para que possamos adormecer; acordados,
usamos inconscientemente os sons para compreender o que se passa ao nosso redor, inclusive
construindo mentalmente as partes desse espaço que não conseguimos ver.
Na época de Leone, a figura do sound designer21 ainda não existia. Os diretores que
experimentavam técnicas novas nesse campo expandiam as possibilidades em diferentes di-
reções. Leone explorou o uso mais intenso dos ruídos como ferramenta narrativa. A atenção,
aqui, recai sobre o volume amplificado dos ruídos; de novo, a prática estilística aponta para a
revisão de um esquema dominante em direção à continuidade intensificada. Além disso, esse
tipo de mixagem favorecia a moda, comum entre os diretores europeus da época, de deixar
a técnica ser vista ostensivamente pela plateia: “um cinema em que a retórica se tornava um
fim em si mesma” (CHION, 2009, p. 107). Essa tendência maneirista era evidente em Leone
(já vimos que todos os críticos dos Cahiers du Cinéma a notaram), e também pode ser obser-
vada em vários outros recursos estilísticos, incluindo a música.
De fato, os filmes de Leone instituíram uma paisagem sonora repleta de sons diegéti-
cos que serviram de assinatura estilística: o sopro do vento, os tiros que reverberam longa-
mente nos vastas planícies, os ruídos produzidos por animais do deserto (coiotes, corvos).
Todos são sons que povoam o universo do spaghetti western.
Se o uso dos ruídos naturais (reconstituídos em estúdio e intensificados na mixagem)
era a principal técnica utilizada por Leone para construir a paisagem sonora, ele não destaca-
va todos e nem qualquer ruído, mas ampliava a intensidade de poucos efeitos narrativamente
importantes em cada cena (em geral, dois ou três ruídos específicos), às vezes para produzir
pontos de sincronismo, outras vezes para guiar a atenção do espectador para determinadas
áreas da imagem, ou ainda para dar ênfase emocional a algum aspecto da narrativa.
Essa terceira função – a ênfase emocional – consistia em um recurso estilístico que
estava emergindo naquele momento, no cinema europeu: os ruídos passavam a exercer uma
função que era, então, exclusiva da música. Este recurso se tornaria ferramenta extensamente
explorada no cinema contemporâneo, a partir da década seguinte, principalmente depois que
os filmes passaram a ter as trilhas sonoras finalizadas no sistema Dolby Estéreo22. Jacques
Tati foi um dos grandes pioneiros dessa técnica, descrita assim por Michel Chion:
21 A denominação de sound designer para os profissionais que pensam criativamente a trilha sonora
apareceu nos créditos de um filme pela primeira vez em 1979, quando Walter Murch recebeu esse cré-
dito pela mixagem de Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (STAM, 2003, p. 237).
22 O sistema Dolby Estéreo (1975) permitiu que cineastas passassem a finalizar o som dos filmes em até
quatro canais. O Dolby Estéreo alcançou popularidade a partir de Guerra nas Estrelas (Star Wars, George
Lucas, 1977), tornando-se o sistema de projeção de áudio padrão em todo o mundo (SERGI, 2004).

199
A impressão geral de fluxo sônico contínuo por parte do espectador não resulta de
características de edição e mixagem concebidas separadamente, mas sim da com-
binação de todos os elementos sonoros. Jacques Tati, por exemplo, usava efeitos
sonoros cuidadosamente planejados, gravados separadamente e depois inseridos
no continuum da trilha sonora em pontos específicos. Caso ouvidos isoladamente
em sucessão, eles resultariam numa trilha sonora fragmentada e cheia de inter-
rupções, se não fosse pelo uso de um background sonoro contínuo que amarrasse
todos os demais elementos numa massa sonora única. (CHION, 1994, p.46).

Já vimos um exemplo do funcionamento dessa técnica na sequência do trielo. Naquela


cena, é possível ouvir dois grupos de sons, entre os quais se destaca claramente o grasnar do
corvo – uma ave de mau agouro – acima de todos os outros sons que compõem a primeira
parte da sequência. Isso quer dizer que o corvo está mais próximo dos pistoleiros do que os
outros pássaros, e é por isso que o ouvimos mais claramente. Uma das principais funções da
equalização do volume dos vários sons de uma cena é exatamente essa: estabelecer, de forma
sutil, as relações espaciais entre todos os elementos que constituem o espaço fílmico da cena.
No entanto, é possível argumentar que Leone tinha outro objetivo ao estruturar assim o
som dos pássaros. Para criar ambiência e tridimensionalidade, ele obteria um resultado mais
eficiente se procurasse inserir os sons de cada pássaro em diferentes faixas de frequência sonora.
Assim, os espectadores ouviriam uma trilha mais complexa; seus aparelhos auditivos seriam
capazes de calcular instintivamente a distância e a direção de cada animal em relação ao ponto
de escuta. Nesse caso, no entanto, seria perdido o efeito emocional obtido com o grasnar do
corvo. Se Leone faz o grasnado sobressair acima de uma massa indistinta de cantos de vários
outros pássaros, o faz porque sabe que esse som particular exerce um efeito de percepção no
espectador mais importante para a narrativa do que os sons dos demais pássaros.
Leone também realizou experiências com o uso criativo de sons fora do quadro para
impulsionar a narrativa sem a necessidade do uso de diálogos. Um exemplo dessa técnica
pode ser encontrado numa cena de três minutos e 19 segundos (199 segundos) de Três Ho-
mens em Conflito. A cena consiste de uma montagem intercalada de três ações distintas:
enquanto uma parada militar cruza a cidade, Blondie limpa o revólver num quarto de hotel,
e três bandidos contratados por Tuco se aproximam do quarto para matá-lo. Leone narra as
três ações sem diálogos, usando a montagem paralela e os sons.
A cena começa com Blondie limpando seu revólver (figura 149). A condição em si
adiciona tensão à cena, pois compreendemos que ele não terá condições de reagir ao ataque
que virá. Podemos ouvir os ruídos produzidos pela pequena vassoura com que ele tira a poei-
ra da arma (ou seja, os sons são amplificados artificialmente); ao fundo, em segundo plano
sonoro, ouve-se os ruídos produzidos pela parada militar.
Leone corta para o desfile (figura 150). O som que estava em segundo plano, na toma-
da anterior, eleva-se sincronicamente ao primeiro plano. O corte seguinte mostra a terceira
ação simultânea: os pistoleiros sobem as escadas para irem até o quarto onde está Blondie
(figura 151 e 152). O som do desfile volta a ficar em segundo plano; esse som tem grande
importância na cena, pois é o elemento responsável por interligar no tempo e no espaço as
três ações que estão sendo representadas em paralelo. Mas os sons em primeiro plano agora
consistem nas pancadas das botas nos degraus.

200 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


FIGURA 149: O plano inicial da cena mostra Blondie limpando o revólver, o que acentua o suspense: a
plateia não sabe se ele terá tempo de reagir ao ataque.

FIGURA 150: Fora do hotel, um desfile militar produz os sons do ambiente (passos, galopes, carruagens) que
providenciará unidade temporal e espacial à cena.

FIGURA 151: Dentro do hotel, os três bandidos começam a subir as escadas para emboscar Blondie: sons
de botas aparecem em primeiríssimo plano...
FIGURA 152: ... enquanto continuamos a ouvir, em segundo plano, os sons ritmados e contínuos do desfile
militar; os bandidos se aproximam cada vez mais...

FIGURA 153: ... ao mesmo tempo em que Blondie, sem saber do perigo, limpa o tambor do revólver; Leone
fragmenta o espaço fílmico através de close-ups.

FIGURA 154: A cavalaria agora passa em frente ao hotel, e os ruídos produzidos pelos cavalos e pelos
soldados ficam mais nítidos: perigo maior para Blondie.
Leone repete a sequência de cortes, enfatizando a aproximação dos bandidos (figura 153,
154, 155 e 156). É importante observar como ele amplia o suspense recorrendo à fragmentação
do espaço fílmico através dos close-ups extremos: rostos, botas, revólveres, patas de cavalo (no
desfile). Os sons produzidos por esses objetos são ouvidos em volume amplificado. O espaço
fílmico é extraordinariamente fragmentado, mas o espectador jamais se sente desorientado, por
causa da mixagem consistente do som: o barulho do desfile militar dá unidade aos close-ups.
No exato momento em que o primeiro dos três bandidos chega à porta do quarto, os
militares obedecem a uma ordem do comandante e interrompem a marcha por um instante
(figura 157). Os outros bandidos que se aproximam param, mas um deles dá um ligeiro
passo à frente, produzindo um leve tilintar da espora (figura 158). Esse ruído, normalmente
imperceptível, é mostrado de forma intensificada, em primeiro plano sonoro, o que assinala
sua importância narrativa para a cena; diegeticamente, ele se torna perfeitamente audível
devido ao contraste com o súbito silêncio provocado pela interrupção do desfile militar. A
audição deste som é resultante de contexto e preparação adequados.
O ruído alerta Blondie para a situação – e o espectador compreende que ele percebeu
porque, assim que o tilintar da espora é ouvido, Leone corta para um close-up extremo que o
mostra erguendo o olhar, as sobrancelhas arqueadas em sinal de alerta (figura 159). Então os
cortes se aceleram. Ouve-se apenas o sopro do vento e, bem ao longe, ocasionais explosões
que nos lembram da guerra em andamento. O silêncio acentua a gravidade da situação. Os
bandidos esperam (figura 160). Blondie acelera o processo de remontar as peças do revólver
e carregá-lo com balas (figura 161).
O desfile militar é retomado (figura 162). Os passos e galopes são ouvidos novamen-
te, interrompendo o silêncio. Os bandidos estão prontos para atacar, e se aproximam da porta
do quarto (figura 163). Nesse ponto, Sergio Leone recorre a uma convenção de filmes de
suspense, que ocasiona o que Michel Chion (2009, p. 477) chama de “efeito empatético” (um
“efeito criado pela música que está em harmonia com o clima emocional da cena”): inclui
um cue musical simples, um crescendo de violinos, para acentuar ainda mais o suspense.
Quando a porta do quarto é aberta, Leone corta para uma composição recessiva: o revólver
de Eastwood em primeiríssimo plano, os bandidos espremendo-se na porta ao fundo (figura
164). O herói atira três vezes; sincronicamente, a música para (figura 165). Blondie atira a
queima-roupa (figura 166) em um dos bandidos que ficou ferido.
No que se refere à construção da trilha sonora, é importante atentar para o cuidado
com que os ruídos (as botas, a espora, os sons do desfile, o revólver) foram intensificados e
orquestrados de forma a guiar a percepção das imagens por parte do espectador, eliminando
assim a necessidade do uso de diálogos explicativos para a apreensão da história.

203
FIGURA 155: O bandido para de caminhar e olha para frente, focalizado em close-up extremo: ele chegou
ao destino, fato confirmado pelo plano seguinte...

FIGURA 156: ...um close-up que focaliza o número do quarto onde o espectador sabe que Blondie está hospe-
dado; os ruídos da tropa dominam a trilha sonora.

FIGURA 157: O desfile para diante do hotel; o súbito silêncio atrapalha os planos dos bandidos, que
deixam de contar com a “cobertura” sonora para atacar.
FIGURA 158: Como reação instantânea, os três pistoleiros deixam de se mover, mas o movimento dos pés
faz a espora da bota de um deles tilintar...

FIGURA 159: ...num ruído suave que alerta Blondie; focalizado em close-up extremo, ele ergue os olhos com
as sobrancelhas arqueadas, em sinal de alerta.

FIGURA 160: O silêncio momentâneo é quase total; só se pode ouvir, ao longe, ruídos de explosões causa-
das pela guerra; os bandidos aguardam para atacar...
FIGURA 161: ...enquanto Blondie acelera o processo de remontar o revólver, num close-up acentuado
pelos cliques das peças de metal em volume amplificado.

FIGURA 162: Após uma ordem do comandante, o desfile militar reinicia, criando uma nova sinfonia de ruídos
e funcionando como “deixa” para o ataque.

FIGURA 163: Em close-up, um dos bandidos aproxima a mão do trinco da porta; um crescendo de violinos
acentua a tensão, pois não sabemos se Blondie reagirá.
FIGURA 164: Os bandidos entram no quarto e são alvejados por três tiros; Leone filma a tomada em
composição recessiva com profundidade de campo.

FIGURA 165: Em seguida, num plano médio, Blondie ergue-se – sinal de que agora ele tem o domínio da cena
– e explica: o tilintar da espora lhe serviu de alerta.

FIGURA 166: Ato contínuo, ele atira a queima-roupa no bandido ferido e desarmado, rompendo o código de
honra característico do western norte-americano.
No que se refere ao desenho de som, o momento mais famoso de Leone é a cena de
abertura de Era uma Vez no Oeste. São 15 minutos e 39 segundos praticamente sem palavras
e sem música, uma sinfonia de ruídos amplificados. A metáfora da sinfonia é pertinente, uma
vez que a ideia dos ruídos diegéticos veio de Ennio Morricone, que chegou a escrever música
para a cena, mas sugeriu que os ruídos acentuariam melhor a monotonia dos pistoleiros que
aguardam a chegada de um trem na estação de Flagstone.
A cena começa dentro da estação. A porta enferrujada abre devagar; passos produzem
o ruído ritmado de botas batendo na madeira. Os planos-detalhes iniciais, que não permitem
ver o local (figuras 167 e 168), e os ruídos amplificados preparam os sentidos do espectador
para descobrir o lugar através dos sons. Eles permitem que a plateia organize mentalmente o
espaço fílmico, mesmo aquele que está fora do quadro.
Existem dois grupos de sons que se pode ouvir ao longo desse trecho inicial: o primei-
ro é formado pelos ruídos produzidos pelas pessoas dentro da estação (passos, abrir e fechar
de portas, giz raspando o quadro negro); o segundo é constituído por uma miríade de sons
que caracterizam o ambiente externo como um espaço vasto e vazio: um moinho enferrujado,
o vento, galinhas, um cachorro, um canário, uma goteira, o zumbido de uma mosca e uma
coleção de ruídos que, intensificados, contribuem para dotar o espaço fílmico de uma quali-
dade aural quase viva.
Esse conjunto de sons possui duas funções. A primeira é a já citada caracterização da
monotonia. Esta tem uma relação com o recurso estilístico do alusionismo: o esqueleto nar-
rativo da cena é uma alusão a Matar ou Morrer (1952), em que a mesma situação dramática
(três pistoleiros esperam a chegada de um trem) é encenada. A segunda função é auxiliar o
espectador a explorar o ambiente de forma sensorial, experimentando uma imersão no local,
só mostrado por inteiro após quase um minuto (figuras 169 e 170)
Os sons incluem as brincadeiras de um dos pistoleiros com um canário numa gaiola
(figura 171), a risada nervosa do vendedor de bilhetes (figura 172) e a fuga barulhenta da
índia que trabalha no local (figura 173). Instalados na estação, os pistoleiros procuram ati-
vidades para preencher o tempo. Um deles caminha pela plataforma (figuras 174 e 175) e
se posta abaixo da caixa d’água (figura 176). Ele está sob uma goteira (figura 180); coloca
o chapéu e acompanha o ruído ritmado da água, que cria uma espécie de melodia percussiva
(figura 181). Outro pistoleiro anda até o coche onde os cavalos bebem água (figura 177).
Ele brinca com a água e estalar as juntas dos dedos (figura 182), criando uma segunda linha
rítmica percussiva. Esses ruídos se sucedem mecanicamente, lembrando o tique-taque dos
pontos do relógio, o que reforça ainda mais a ideia de monotonia.
O terceiro pistoleiro põe o chapéu sobre os olhos, mas não consegue dormir (figura
178), pois os ruídos o impedem. Primeiro, um telégrafo soa logo ao lado dele, que arranca os
fios (figura 179). Depois, uma mosca pousa em seu rosto e passeia sobre ele (figura 183),
enquanto o homem tenta espantá-la soprando com a boca. Quando ele finalmente se irrita e
resolve a situação, prendendo a mosca com o cano do revólver (figura 184), ouve-se o apito
de uma locomotiva. O trem está por chegar (figura 185). A espera terminou.
Durante esse segundo trecho, a edição de som é planejada para guiar a percepção do
espectador de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, é claramente perceptível a criação de

208 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


padrões rítmicos minimalistas, para exprimir a sensação de monotonia. Cada pistoleiro está às
voltas com seu próprio padrão rítmico: a goteira, os estalos dos dedos, o zumbido da mosca.
Há um motivo visual e rítmico que afeta todos os personagens: o rangido do moinho
abandonado, que aparece com destaque (figuras 175 e 193). O moinho funciona como um
relógio e simboliza a passagem mecânica do tempo. O rangido sinaliza que a ação acontece
em tempo real, já que é possível ouvi-lo durante toda a cena, com uma breve interrupção (o
momento em que o pistoleiro arranca os fios do telégrafo, instante em que o filme adota mo-
mentaneamente o ponto de escuta do personagem, para provocar no espectador a percepção
da tranquilidade que ele sente ao quebrar o aparelho e interromper o ruído).
Muitas vezes, o som ouvido pelo espectador durante um plano, quase sempre oriundo
de algum objeto, animal ou pessoa fora do quadro, chama a atenção para esse novo elemento
ainda não visível, que só aparecerá na imagem um pouco depois de ser ouvido, quase sempre
no plano seguinte. Nesse caso, a percepção da imagem por parte da plateia é dirigida pela
organização (em termos de volume, intensidade e frequência) dos ruídos ouvidos no plano
imediatamente anterior. O público é preparado, no plano anterior, para perscrutar a imagem
seguinte e procurar instantaneamente, dentro dela, a fonte da origem daquele novo ruído.
Tudo isso é importante nos planos gerais e médios, quando há muitos elementos vi-
suais dentro do quadro, disputando a atenção do espectador. Um bom exemplo está no mo-
mento em que os pistoleiros saem para a plataforma da estação (figuras 174 a 185); há uma
sequência de planos gerais que utilizam esse recurso. Durante o plano que mostra um dos
pistoleiros caminhando na plataforma (figura 174), a intensidade do som do moinho sobe
gradualmente; o plano seguinte mostra o moinho em primeiríssimo plano (figura 175).
À frente, há um plano do pistoleiro que cochila (figura 178), enquanto ouvimos o som
(agora longínquo) do moinho. No meio do plano, o ruído frenético do telégrafo (que não está
em quadro) ocupa o primeiro plano sonoro; a tomada seguinte mostra o telégrafo em primei-
ro plano visual (figura 179). Logo em seguida, enquanto o terceiro pistoleiro está parado sob
a caixa d’água, o público ouve uma goteira fora de quadro (figura 180); o plano seguinte
localiza a goteira em um ponto exatamente acima da cabeça do pistoleiro (figura 181). Por
fim, o apito da locomotiva é ouvido enquanto vemos um close-up extremo de um pistoleiro
(figura 185), mas o trem só aparece no plano seguinte (figura 186). Em todos esses casos, é
sempre o som oriundo de um elemento fora do quadro que guia a atenção do espectador para
determinado ponto ou aspecto da imagem que aparecerá no quadro seguinte.
O uso de sons fora do quadro é, junto à análise da música, um dos aspectos mais abor-
dados dentro da área de estudos do som cinematográfico (CHION, 1994, p. 73). A cuidadosa
construção sonora dessa cena reafirma o potencial criativo dos sons fora de quadro. Trata-se
da técnica desenvolvida por Jacques Tati e Robert Bresson – efeitos sonoros organizados e
inseridos dentro de uma paisagem sonora contínua que dá unidade à trilha sonora – acres-
cida de um elemento novo: o silêncio, nesse caso usado para dar ênfase emocional à ideia
de monotonia. Esse senso de monotonia só é possível de conseguir através de uma técnica
especificamente criada para expressar o silêncio:

209
Outra maneira de expressar o silêncio (...) consiste em expor o ouvinte a ruídos.
Refiro-me a tipos sutis de ruídos, como o tique-taque de um relógio, associados
normalmente a ambientes tranquilos e silenciosos. Esses elementos normalmente
não atraem atenção das pessoas; não seriam sequer audíveis se os outros sons (trá-
fico, conversas, local de trabalho) não fossem eliminados. (CHION, 1994, P. 57).

É esse o caso da cena. Leone gera a percepção de monotonia ao deixar o espectador


ouvir ruídos que ele normalmente não ouviria: uma mosca, o estalar de dedos, o telégrafo,
o moinho, o vento etc. Momentos de silêncio como esse são comuns também nas cenas que
antecedem duelos e confrontos decisivos, em todos os filmes de Leone. Nesse caso, expres-
sam não a ideia de monotonia, mas o modo de percepção aguçada de um ser humano que
está exposto a um grande perigo. Nesses momentos, somos capazes de ouvir até os menores
ruídos. A audição, como afirma Chion, é um sentido igualmente relacionado ao ouvido e à
mente. Leone explica assim o uso do silêncio em seus filmes:

Aos poucos, fui notando que todos os diretores de quem eu gostava eram parecidos
em sua obsessão pela velocidade. Eles instruíam os atores a acelerar suas falas até
o ponto em que você mal conseguia distinguir as últimas sílabas de uma frase das
primeiras sílabas da próxima. Nunca havia o menor intervalo para mostrar que
talvez a pessoa quisesse pensar antes de responder. Eu não concordava com esse
sistema, achava-o muito artificial. O senso de ponderação antes de uma resposta
era algo que só conseguia encontrar no cinema japonês. Durante muito tempo, quis
dar aos meus filmes esse ritmo. (LEONE, 2000, p. 291-292).

Analisando-se essa passagem, é possível encontrar duas características fundamentais


para a construção desse recurso estilístico. Em primeiro lugar, é nítida a influência do neor-
realismo: a hesitação antes de uma resposta faz parte da realidade física e emocional de
uma conversa, e a eliminação dessas pausas dá aos diálogos da maioria dos filmes de ficção
um senso de artificialidade. A segunda característica é a necessidade de afirmação autoral,
realizada através da revisão crítica das convenções de gênero (nesse caso, os diálogos em
velocidade acelerada, característicos dos filmes de Hollywood nas décadas de 1930 e 1940).
Na segunda parte da cena, a tomada que mostra a chegada do trem (figura 186) con-
siste num dos momentos de ironia em que Leone brinca com seu próprio nome: a linha de
crédito que nomeia Leone como diretor “interrompe” a trajetória da locomotiva, como se
fosse um freio. Os três pistoleiros, calculadamente dispersos, aguardam o desembarque de
alguém. Leone encena essa espera com close-ups e planos-detalhes das mãos perto das armas
(figuras 187), em composições recessivas.
O resfolegar do trem proporciona o senso de continuidade temporal (criado pelo moi-
nho antes de o trem chegar); os ruídos naturais amplificados (passos, dedos batendo nos
coldres) acentuam a tensão e fornecem pontos de síncrese. O apito do trem anuncia a partida;
sem que ninguém houvesse desembarcado, os pistoleiros dão as costas (figura 188). Nesse
exato momento, ouve-se uma nota musical executada por uma gaita; por um instante, o es-
pectador é levado a imaginar que este som específico é extra-diegético.

210 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


FIGURA 167: Após o rangido que demarcou a abertura da porta da estação ferroviária, vemos apenas um
par de botas, que fecham a porta com um movimento.

FIGURA 168: Um plano-detalhe destaca a arma e as balas na cintura do homem que acaba de abrir a porta:
a informação visual indica que se trata de um pistoleiro.

FIGURA 169: Um plano médio do bilheteiro, intimidado pela sombra do invasor (à esquerda), revela o inte-
rior do prédio; o som de outra porta abrindo indica que...
FIGURA 170: ... o pistoleiro não está sozinho; em primeiro plano, um segundo pistoleiro aparece em outra
porta; um terceiro invasor aparece em seguida...

FIGURA 171: ... e começa a brincar com o pássaro cujo canto domina a sinfonia de ruídos, assustando-o com
barulhos produzidos pela boca e fazendo-o se calar.

FIGURA 172: O bilheteiro, focalizado em close-up extremo, pede que os homens esperem; ele é trancado no
banheiro sem que os pistoleiros digam nada.
FIGURA 173: Enquanto isso, a índia que trabalha no lugar foge correndo, os pés levantando poeira e
produzindo barulho; é possível ouvir galinhas ali perto.

FIGURA 174: Os pistoleiros saem do prédio da estação para a plataforma de madeira velha; o ranger
ritmado e monótono de um moinho prepara o corte para...

FIGURA 175: ... um plano geral em que o moinho serve como moldura da ação principal – o pistoleiro
caminhando – vista em profundidade de campo.
FIGURA 176: O pistoleiro que caminhava posta-se embaixo da caixa d’água, com a ferrovia em segundo
plano; o ruído do moinho agora está mais distante...

FIGURA 177: ... mas o ritmo monótono dos rangidos agudos proporcionam senso de continuidade à cena,
cujas tomadas fragmentam todo o espaço fílmico.

FIGURA 178: Outro pistoleiro tenta cochilar, com a caixa d’água e o moinho atrás; o ruído de um telégrafo
começa a ser ouvido em primeiro plano sonoro...
FIGURA 179: ...e então o telégrafo aparece no primeiro plano da imagem, situado logo ao lado do pistoleiro,
que demonstra irritação com a interrupção do cochilo.

FIGURA 180: Um close-up introduz outro personagem, que começa a ouvir o ruído próximo de uma goteira,
certamente caindo da caixa d’água logo acima...

FIGURA 181: ...e então Leone revela, num plano-detalhe, a origem do ruído, com as gotas d’água se formando
lentamente, o que enfatiza a monotonia.
FIGURA 182: Sentado junto ao coche dos cavalos, o terceiro pistoleiro brinca com a água e depois começa
a estalar os dedos: uma sinfonia completa de ruídos...

FIGURA 183: ...coroada pelo surgimento de uma mosca, que vem perturbar o cochilo do primeiro pistoleiro;
ele tenta soprá-la para longe, sem sucesso...

FIGURA 184: ...até que, num movimento brusco e certeiro, prende o animal com o cano do revólver, no
momento exato em que ouvimos o apito do trem...
FIGURA 185: ... que aparece ao fundo da tomada seguinte, uma composição recessiva em profundidade de
campo, com nuca de pistoleiro em close-up extremo.

FIGURA 186: Leone usa os créditos para criar humor sutil: a aparição do nome dele na tela “interrompe” a
marcha do trem, que finalmente para na estação.

FIGURA 187: Pistoleiros aguardam na plataforma: dedos batem no coldre, sonorizando uma composição
recessiva com moldura e profundidade de campo.
FIGURA 188: Com o trem em movimento, os pistoleiros dão as costas para ir embora; o toque de uma gaita
(música diegética) interrompe a trajetória dos três.

FIGURA 189: Leone corta para um close-up extremo, a primeira aparição de Harmonica no filme: ele desceu
do trem pelo lado oposto, para escapar da emboscada.

FIGURA 190: Plano geral enfatiza as relações espaciais entre pistoleiros e Harmonica: a composição
recessiva mostra que o confronto está prestes a começar.
FIGURA 191: Composição recessiva em profundidade: depois que Harmonica para de tocar, a melodia con-
tinua (extra-diegética), solada por um banjo.

FIGURA 192: Mesmo com uma mala na mão esquerda, Harmonica consegue alvejar os três pistoleiros; mas
ele cai de costas, criando tensão: será que morreu?

FIGURA 193: Leone amplia suspense saindo do cenário do tiroteio e inserindo plano-detalhe do moinho,
motivo visual e sonoro mais importante de toda a cena.
FIGURA 194: Close-up focaliza o rosto de Harmonica e o herói se movimenta: ele ficou ferido, mas não
morreu; o moinho imediatamente para de girar, jogando a cena...

FIGURA 195: ... num silêncio absoluto, enquanto Harmonica se ergue: a interrupção brusca do som dá gravi-
dade ao momento e sugere poder sobrenatural.

FIGURA 196: Herói recolhe bagagem e se prepara para ir embora; composição recessiva mostra moinho
parado ao fundo, emoldurado por pés e mala do pistoleiro.
Então os personagens param. Eles ouviram a gaita. Só então percebemos que a música
é diegética, executada por um personagem fora do quadro; trata-se de uma brincadeira de
Leone com uma convenção musical, produzindo o equivalente sonoro à técnica do trompe
l’oeil (uma técnica que Michel Chion denomina trompe l’oreille, ou “enganar o ouvido”).
Esse som traz consigo a tomada seguinte, que mostra Harmonica, o passageiro aguardado
(figura 189). Ele continua a tocar, enquanto os pistoleiros o encaram (figuras 190 e 191).
Segue um breve diálogo; depois que Harmonica começa a falar, a melodia continua a
ser ouvida (em segundo plano sonoro, executada por um banjo em staccato, acompanhado
de guizos); ou seja, a música passou de diegética a extra-diegética (nesse caso, obedecendo à
tradição clássica da inaudibilidade da música, já que o espectador não se dá conta dessa tran-
sição). Após o tiroteio (figura 192), o ruído do moinho (figura 193) é elevado ao primeiro
plano sonoro. Harmonica caiu, junto com os três pistoleiros (figura 194). Após o próximo
corte, ele se levanta (figura 195). Exatamente ao mesmo tempo em que a plateia descobre
que Harmonica está vivo, o moinho para de se mover. O silêncio domina a cena (o sopro do
vento também é interrompido, o que justifica diegeticamente a interrupção do ruído do moi-
nho). Harmonica se ergue, com o moinho visível em segundo plano (figura 196).
A ideia da cena surgiu numa conversa entre Leone e Morricone. O último contou que
havia ido a um concerto concretista em Florença, em que o artista havia entrado no palco
com uma escada e, diante de uma plateia quieta, passara vários minutos arranhando e batendo
nela. Durante a conversa, Morricone começou a filosofar: “qualquer som do cotidiano, retira-
do de seu contexto e isolado pelo silêncio, se torna algo indefinível e diferente, algo que não
faz parte de sua natureza intrínseca” (MORRICONE, 2000, p. 283). Essa ideia, oriunda da
música concreta, é uma de suas marcas mais reconhecíveis como compositor:

Expandindo os limites daquilo que o público e os produtores estavam prontos a


aceitar, ele introduziu harmonias corajosas e sonoridades incomuns. Seu maior
talento estava na arte de escolher tons agradáveis ao ouvido e mixar instru-
mentos tradicionais a sons inesperados, às vezes originados do folclore italiano,
outras vezes escolhidos entre sons produzidos por objetos cotidianos que eram
retirados de sua função primeira, como uma xícara ou uma máquina de escrever.
(EHRESMANN, 2009).

Morricone tentava introduzir elementos da música concreta, nos filmes em que traba-
lhava, desde 1962. Sua primeira experiência consistiu em um arranjo para uma canção folk.
Foi a gravação que sedimentou a parceria com Leone. A música tinha uma letra que falava
sobre a saudade de um homem pela cidade de origem. A fim de evocar na música a nostalgia
sugerida pela letra, Morricone havia incorporado sons da vida rural ao arranjo. Também
havia incluído um coro vocal masculino e fraseados de flauta doce, lado a lado com melodias
soladas numa guitarra elétrica Fender Stratocaster. A justaposição de flauta e guitarra criava
uma tensão extra, já que a primeira é um instrumento normalmente usado para sugerir uma
presença rural, enquanto a segunda constitui obviamente uma sonoridade urbana.

221
Leone gostou do conceito. O tema de Por um Punhado de Dólares derivou dessa
composição, acrescida de chicotadas, badalos de sino, batidas de martelo, tiros e galopes de
cavalo, além da melodia assobiada (ao invés de cantada). Nesse ponto, a influência da música
concreta, através de Morricone, foi determinante para a revisão desse esquema operada por
Leone. Além disso, do ponto de vista do diretor, é também importante associar a incorpora-
ção de sons da diegese dentro da música à influência indireta do neorrealismo. O que Leone
estava buscando era uma música que tivesse algum tipo de conexão com o verdadeiro Velho
Oeste; ou seja, que traduzisse para o reino da música a verossimilhança das imagens.
Já vimos: a música que se ouvia no Velho Oeste, no século XIX, era rústica: canções
nostálgicas de imigrantes. Eram acompanhadas por violino caipira e berimbau de boca. Ro-
das de violão e gaita, e bares com pianos, que evocam hoje a imagem que temos daquela
época, consistem de uma convenção criada pelos westerns americanos. Esses instrumentos
só se tornariam populares entre o final do século XIX e o início do século seguinte. Nosso
imaginário associa o Velho Oeste a esses instrumentos graças ao retrato historicamente in-
correto que Hollywood fez da música popular do período (BUSCOMBE, 1988, p. 193-194).
O que a parceria propunha era uma síntese: nem música caipira (rústica demais), nem
música concreta (moderna demais), nem orquestrações neorromânticas (que suavizavam a
brutalidade do ambiente diegético). Por um lado, Morricone introduziu inovações, como
sons da diegese dentro dos arranjos; e, por outro, manteve elementos da música cinematográ-
fica clássica: arranjos que enfatizavam cordas (violino, violoncelo) e madeiras (flauta, oboé),
e recursos narrativos que propunham alto grau de sincronização entre as bandas sonora e vi-
sual, tais como leitmotivs, ostinati e mickeymousing23. Não custa lembrar que esses recursos
estavam a serviço de uma música feita para ser ouvida no plano consciente pelo espectador.
Desde Por um Punhado de Dólares, Morricone partiria sempre dos mesmos elementos
para construir a música dos filmes de Leone: instrumentos exóticos, como ocarina e oboé
(Três Homens em Conflito), celesta e berimbau de boca (Por uns Dólares a Mais); ruídos da
diegese usados como elementos rítmicos ou harmônicos; estruturas simples de música pop
(versos e refrões); instrumentos populares nos anos 1960 (guitarra, piano elétrico, bateria);
e sincronia entre música e montagem, inclusive com música composta antes das filmagens.
A última característica da música de Morricone para Leone são os degüellos antece-
dendo os duelos. Já analisamos a música de um desses momentos (o trielo de Três Homens
em Conflito). Do ponto de vista da composição musical, entretanto, o mais interessante de-
güello de Morricone está em Por uns Dólares a Mais. A música é ouvida durante o confronto
entre o Coronel Mortimer e El Indio, numa arena circular de pedra da qual Leone tanto
gostava. Nosso foco de interesse está no jogo entre os sons diegéticos e extra-diegéticos
que constituem a composição musical, chamando a atenção do espectador para a música e
contribuindo, junto com a fragmentação do espaço fílmico em close-ups extremos e planos-
-detalhes, para a sensação de que a cena se passa mais lentamente, como se deslocada para
outra dimensão espaço-temporal, onde o tempo passa mais devagar.

23 Um leitmotiv consiste num fraseado ou trecho melódico associado a personagem, local ou situação
dramática; um ostinato é uma figura rítmica ou melódica repetitiva, usada para dar dinâmica a cenas com
visual monótono; mickeymousing é como ficou conhecida em Hollywood a técnica de sincronizar trechos
musicais e movimentos dos personagens (GORBMAN in HILL; CHURCH GIBSON, 1998, p. 45).

222 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


FIGURA 197: Desarmado, Mortimer aguarda El Indio dentro da arena de pedras de Agua Caliente: composição
com moldura em profundidade de campo.

FIGURA 198: A banda sonora (vento, tilintar das esporas de El Indio) ganha o acréscimo de música diegética:
o relógio toca melodia melancólica executada por celesta.

FIGURA 199: A celesta sublinha o close-up do Coronel Mortimer, com expressão neutra; optando de novo
pela simetria, Leone corta para um close-up de El Indio...
FIGURA 200: ...e a câmera faz um zoom para frente, enquanto o vilão observa a semelhança entra o rosto
da mulher no relógio e a figura do Coronel Mortimer...

FIGURA 201: ...semelhança acentuada pela composição com moldura em profundidade que centraliza o
relógio, tornando-o o motivo visual mais fundamental da cena.

FIGURA 202: Violinos se juntam à celesta, que perde a textura mecânica: agora a música ecoa na cabeça
dos personagens (é tanto diegética quanto extra-diegética).
FIGURA 203: A entrada em cena de Monco ocorre num trompe l’oeil (ele aparece sem aviso) e evoca
visualmente o plano 3.183 (com o relógio centralizado).

FIGURA 204: O terceiro personagem se junta ostensivamente a Mortimer, o que Leone sinaliza reunindo os
dois num único plano médio, deixando...

FIGURA 205: ... El Indio sozinho do outro lado da arena circular; o plano médio, simétrico, expressa a
igualdade de forças, agora que os duelistas têm condições iguais.
FIGURA 206: Monco se afasta para observar o duelo, num plano geral bem aberto; a música se transforma
num jogo entre a celesta do relógio (diegética)...

FIGURA 207: ...e um arranjo com violão flamenco e castanholas (extra-diegética) em contraponto; ao
primeiro plano geral de Mortimer corresponde...

FIGURA 208: ...um plano geral idêntico, em contra-plano, de El Indio; a encenação aproxima aos poucos a
câmera dos atores, mas sem esquecer a simetria...
FIGURA 209: manifestada tanto nos ângulos idênticos de câmera (caso dos close-ups) quanto na duração
igual dos planos dedicados a mostrar cada um dos duelistas.

FIGURA 210: Quando os personagens passam a ser filmados em close-ups, a composição ganha um solo de
trompete mariachi: o típico degüello de Leone...

FIGURA 211: ... só que exibindo em contraponto a melodia diegética da celesta do relógio, que é executada
mais devagar à medida que a corda vai terminando.
FIGURA 212: A velocidade mais lenta de execução indica que o duelo está mais perto de acontecer, já que
os pistoleiros podem atirar assim que a música parar.

FIGURA 213: Entre os close-ups extremos dos dois pistoleiros, Leone insere close-ups de Monco, cigarro na
boca, que assiste sentado e impassível ao duelo.

FIGURA 214: Composição recessiva com moldura (Mortimer) em profundidade de campo quebra simetria da
montagem, até então respeitada escrupulosamente.
FIGURA 215: A melodia da celestra fica lenta, quase parando; plano-detalhe mostra a mão de El Indio se
movimentando nervosamente em direção ao revólver...

FIGURA 216: ...mas o Coronel Mortimer, ficalizado num plano-médio em contraluz, consegue atirar primeiro:
não há mais música diegética nem extra-diegética.

FIGURA 217: O impacto da bala joga El Indio para trás; a trilha sonora agora consiste apenas do sopro
forte do vento e dos ruídos produzidos pelo vilão, que...
FIGURA 218: se arrasta no chão da arena, tentando alcançar o revólver, sob os olhares de Monco e
Mortimer, este último pronto para atirar novamente.

FIGURA 219: No mesmo instante em que consegue empunhar a arma de novo, El Indio inclina a cabeça e morre;
não é necessário um segundo tiro do adversário.

FIGURA 220: Monco mastiga o cigarro tranquilamente e felicita o vencedor com um toque de humor negro
e ironia típicos de Leone: “Bravo!” Fim da cena.
A cena começa com uma composição recessiva (figura 197). O vilão tem o controle
da cena, pois está armado, enquanto a pistola do adversário está no chão. Na banda sonora,
ouve-se apenas o sopro do vento e o tilintar das esporas do vilão. El Indio puxa um relógio
de bolso (figura 198). É um ritual particular que o espectador já conhece: antes de enfrentar
um adversário, ele dá corda no relógio e avisa que podem atirar assim que a campainha parar.
A melodia da caixa de música é o leitmotiv de El Indio; nós a ouvimos, os pistoleiros
também. Música diegética. É uma celesta. Eles se encaram; Mortimer é mostrado num close-up
(figura 199), a música soando em primeiro plano sonoro. Então, algo estranho acontece: ao
olhar para a fotografia no relógio, El Indio percebe a semelhança física da dona do objeto com
o coronel. Um zoom focaliza o rosto dele em close-up extremo (figura 200).
Sincronicamente, ao aumento da nuance dramática da cena, corresponde uma altera-
ção na execução da melodia: a celesta diegética, antes ouvida na textura sintetizada de um
relógio mecânico (ou seja, destituída das frequências mais altas e baixas), ganha o acompa-
nhamento de uma orquestra de cordas, os violinos – obviamente extra-diegéticos – adicio-
nando lirismo à música. De repente, a reverberação que ouvíamos junto à melodia do relógio
(diegeticamente executada num espaço aberto) desapareceu. A alteração quase imperceptível
na textura do som sinaliza que, a partir daí, a música está tocando dentro das cabeças dos
personagens. A função da orquestra é sublinhar a torrente de sentimentos que invadem os
adversários, agora que ambos reconhecem uma motivação extra, pessoal e emocional.
Leone acentua a percepção de reconhecimento, por parte de El Indio, justapondo mais
duas composições simétricas recessivas (figuras 201 e 202), a primeira delas centralizando o
relógio de bolso na mão dele. A melodia diegética do relógio começa a se tornar mais lenta,
um sinal de que a corda está acabando (ou seja, o tiroteio está para começar). A orquestra de-
saparece suavemente, ao mesmo tempo em que o eco agregado à celesta retorna. O momento
emocional passou; a percepção cognitiva de ambos agora está voltada exclusivamente para
o momento do duelo. Tudo isso é comunicado ao espectador pelo jogo diegético envolvendo
a música, as características físicas do som e seu casamento com as justaposições de planos e
os movimentos de câmera.
O enquadramento com moldura que mostra o relógio centralizado, na mão de El Indio,
faz uma rima com o plano que introduz o personagem de Clint Eastwood na cena (figura 203).
Trata-se de uma composição recessiva que investe no trompe l’oeil. Monco aparece na arena
sem que os dois adversários tenham percebido sua chegada.
A chegada de Monco demarca nova alteração na música. A orquestra retorna para
assinalar o final da melodia do relógio com um crescendo de cordas que forma um grande
acorde em uníssono. A música é reiniciada logo depois num arranjo inteiramente diferente:
violão flamenco e castanholas fazem floreios e se mesclam em intervalos regulares à celesta
do relógio. Dessa maneira, o compositor insere o tema de El Indio dentro de um dos tradicio-
nais degüellos tão adorados por Sergio Leone.
Do ponto de vista da emoção, esse trecho (em que mudam a dinâmica e o arranjo da
composição) assinala um interlúdio. El Indio não está mais em vantagem. A presença de
Monco garante que isonomia ao duelo entre os dois adversários (figuras 204 e 205). Uma
vez que isso está estabelecido, o que Leone enfatiza recorrendo a um plano geral aberto

231
(figura 206) que aponta a simetria dos três personagens dentro da arena circular, bem como
a disposição de Monco para não participar do acerto de contas, o duelo está para começar.
Visualmente, Leone encena o duelo recorrendo aos mesmos recursos estilísticos que re-
petiria mais tarde em Três Homens em Conflito: planos gerais (figuras 207 e 208), close-ups
(figuras 209 e 210) e close-ups extremos (figuras 211, 212 e 213), sempre prezando pela sime-
tria (enquadramentos e duração idênticos para os dois duelistas) e pela aproximação sistemática
da câmera em relação aos atores. No plano sonoro, a melodia evolui num crescendo e culmina
com um solo de trompete escudado por coral masculino.
Uma composição recessiva (figura 214) demarca uma ruptura na simetria visual (pois
não vemos o contraplano) e sinaliza a superioridade emocional de Mortimer. O solo de trom-
pete é abruptamente encerrado. Voltam o violão flamenco, as castanholas e a caixa de música
em contraponto (os dois primeiros saem de cena aos poucos). A melodia do relógio torna-se
mais lenta (figura 215). Quando a música para, Mortimer atira primeiro e vence o confronto
(figura 216 e 217).
Não há mais música; o contraste entre o final do degüello e a súbita escassez de sons
produz um efeito de silêncio. Pode-se ouvir apenas o resfolegar da respiração de El Indio, fe-
rido mortalmente (figuras 218 e 219), enquanto Monco, num toque de ironia e humor negro,
mastiga o cigarro: “Bravo!” (figura 220). O sopro constante do vento e os sons produzidos
pelos pistoleiros são os únicos efeitos sonoros remanescentes.
Ampliadas ainda mais, todas as características presentes podem ser encontradas na
cena da chegada de Tuco ao cemitério, em Três Homens em Conflito. Professores dos cursos
de Cinema em instituições de ensino norte-americanas, como a University of Southern Ca-
lifornia, fizeram seus alunos – entre os quais George Lucas e John Milius – estudarem essa
cena detalhadamente, analisando-a plano a plano (FRAYLING, 2005, p. 190). O objetivo
era aprender como realizar um casamento sincrônico entre sons e imagens. Foi assim que a
continuidade intensificada, nos moldes de Leone, começou a se popularizar entre os diretores
dos anos 1970 (e, através desses, entre os cineastas das gerações subsequentes).
Chegamos, então, ao quarto e último recurso recorrente da prática estilística de Leone
em relação ao som dos filmes. Embora rara, a prática estilística de buscar a sincronia entre
sons e imagens não era exatamente nova nos anos 1960. Em 1940, Sergei Eisenstein já havia
teorizado sobre esse recurso dramático, que chamou de “montagem vertical” (EISENSTEIN,
1992, p. 106). Para ele, o cineasta que conseguisse pensar a trilha musical em sincronia com
a trilha de imagens seria capaz de unificar dois fluxos de informação em um ritmo único e
indivisível, que então seria percebido pelo espectador como um todo mais poderoso:

Devemos saber como apreender o movimento de uma determinada peça musical


fixando seu caminho (sua linha ou forma) como a base da composição plástica
que deve corresponder a música. (EISENSTEIN, 1992, p. 113).

Eisenstein era obcecado por sincronia. Ele achava que todo diretor devia perseguir os
mais diversos tipos de sincronia na construção da narrativa (entre música e cor, entre compo-
sição pictórica e encenação, entre som e enquadramento, entre diálogos e música etc.). Quem

232 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


assim o fizesse, estaria montando seu filme de maneira vertical, e não mais apenas horizontal.
A montagem vertical dava mais trabalho, mas oferecia uma recompensa àqueles que a praticas-
sem. Usando o vocabulário dos músicos, Eisenstein propôs que as diversas sincronias possíveis
entre elementos visuais e sonoros dariam ao filme uma harmonia mais rica e complexa (nesse
sentido a justaposição de planos, ou montagem horizontal, funcionaria como a melodia). A
prática da montagem vertical elevaria a qualidade artística do filme.
Esse esquema da relação entre música e imagens não se tornou dominante, talvez
porque a arte cinematográfica tenha nascido como a arte das imagens em movimento; su-
bordiná-la a outra arte (a música) não parecia (para muitos, continua não parecendo) correto.
Não é possível saber com certeza se Leone estava ciente da teoria de Eisenstein, mas parece
bastante claro que as experiências que ele levou a cabo a partir de Três Homens em Conflito,
junto com Ennio Morricone, concretizam com precisão as ideias de Eisenstein. E, de todas
as cenas dos filmes de Leone que se valem desse esquema, é a chegada de Tuco ao cemitério
que as põem em prática de maneira mais relevante.
O objetivo dramático da cena é nulo. Ela poderia ser descrita em duas linhas e durar
poucos segundos, sem prejuízo à narrativa. Mas foi mantida na edição final para alcançar
um efeito de percepção intensificada junto ao espectador, envolvendo-o emocionalmente na
busca pelo tesouro e preparando-o para o duelo final; é um momento típico do cinema mo-
dernista dos anos 1960, em que a técnica se deixa ver. A cena documenta, em três minutos e
26 segundos (206 segundos), a frenética corrida de Tuco por entre os túmulos do lugar. Ele
tenta encontrar o local exato onde a fortuna de US$ 200 mil está enterrada.
A cena é composta por 23 planos, cuja duração média é elevada, para os padrões de
Leone: 8,9 segundos. Apesar disso, a cena parece transcorrer com muita velocidade. A razão
principal disto é que Leone imprime a sensação de velocidade não através dos cortes rápidos,
mas do movimento incessante do personagem – que corre sem parar por entre os túmulos –,
da câmera (que gira em velocidade, às vezes transformando os túmulos em um borrão) ou de
ambos, ao mesmo tempo. O efeito geral é de pura energia.
Leone inicia a cena com um trompe l’oeil. A tomada imediatamente anterior mostrara
Tuco mergulhando para frente; o plano seguinte o mostra aterrissando sobre uma lápide
(figura 221). Seria impossível que ele, correndo em direção ao cemitério, não tivesse visto o
mar de túmulos que se estende até o horizonte.
No exato instante em que Tuco entra no enquadramento e atinge a lápide, o toque solene de
um sino inicia a música. O plano de abertura tem 56 segundos. O pistoleiro contempla o cemitério
(figura 222). A câmera recua e sobe ao mesmo tempo, em outro plano de grua que faz alusão a E
o Vento Levou (1939). Eufórico, Tuco joga fora o mapa que informava a localização do cemitério
(figura 223) e corre para frente, rumo ao centro (figura 224), enquanto a música evolui.
A composição musical não se resume a ficar em segundo plano narrativo, pontuando
as ações do personagem; torna-se, ela mesma, a razão de a cena existir. Trata-se de uma mú-
sica feita explicitamente para ser ouvida pelo espectador, arrancando a cena da continuidade
cronológica do filme e colocando-a numa dimensão simbólica e emocional. Além disso, a
sincronia alcançada entre os cortes, os mais sutis movimentos da câmera e a evolução de
melodia e harmonia é minuciosa.

233
FIGURA 221: No exato instante em que Tuco atinge a lápide, um sino marca o início da música, que segue com
um fraseado cíclico de quatro notas ao piano...

FIGURA 222: ... e incorpora um oboé, solando a épica melodia principal, enquanto uma seção de cordas faz a
harmonia, a partir do momento em que ele se ergue.

FIGURA 223: Eufórico com a descoberta do cemitério, Tuco joga fora o mapa; é possível ouvir o canto dos
pássaros, mixado em segundo plano da trilha sonora.
FIGURA 224: A câmera se ergue e se afasta do personagem: pastiche do famoso movimento de grua de E o
Vento Levou (1939), que Leone repete várias vezes...

FIGURA 225: em seus filmes; os ganidos do cachorro negro que entra no quadro por baixo do frame são os
últimos sons diegéticos ouvidos nesta parte da cena.

FIGURA 226: Quando Tuco começa a correr entre os túmulos, os sons diegéticos desaparecem e uma voz de
soprano passa a solar a melodia, dando-lhe um ar sacro.
FIGURA 227: Quando Tuco atinge o centro do cemitério – uma arena circular de pedras –, os violinos
passam ao primeiro plano do arranjo, executando a melodia.

FIGURA 228: Leone corta para um close-up de Tuco, arfando de cansaço e euforia, mas os sons diegéticos de
sua respiração não são ouvidos pelo espectador.

FIGURA 229: Quando Tuco começa a correr em círculos, observando os túmulos mais de perto, um coral
masculino é introduzido: as vozes dos soldados mortos?
FIGURA 230: O mar de lápides que quase não tem fim: um trecho em uníssono (violinos, trompete, oboé)
sublinha o momento mais apoteótico da música.

FIGURA 231: Tuco corre lentamente, parecendo indeciso; um interlúdio musical mantém os violinos em
ostinato, enquanto uma guitarra com wah-wah imita...

FIGURA 232: ...o grito do coiote (a gargalhada dos mortos?) e os ruídos da diegese – os passos no cascalho
– voltam a serem ouvidos brevemente, por um instante.
FIGURA 233: Tuco está cada vez mais frenético; a percussão marcial nos lembra que estamos num cemitério
militar, enquanto os movimentos circulares...

FIGURA 234: da câmera e as tomadas do ponto de vista de Tuco transformam as lápides num borrão; as
tomadas são cada vez mais curtas e movimentadas...

FIGURA 235: ...conduzindo a música a um clímax apoteótico, com sinos, trompetes, violinos e vozes
masculinas atingindo as escalas mais agudas.
FIGURA 236: De repente, um plano do céu azul com a câmera fixa interrompe o fluxo alucinante de
imagens; o rosto de Tuco passa num borrão e então retorna, em...

FIGURA 237: ...close-up extremo, olhando fixamente para a câmera, com a expressão de êxtase: ele
finalmente encontrou o túmulo que estava procurando.

FIGURA 238: No exato instante em que Leone corta para o close-up do túmulo, a música termina, com uma
interrupção abrupta que traz consigo o silêncio.
A música inicia com uma sequência de quatro notas, repetida várias vezes, executadas
num piano; no exato momento em que Tuco se ajoelha e olha para frente, um oboé começa
a solar uma melodia lírica, enquanto uma seção de cordas entra em seguida para completar
a harmonia, em segundo plano sonoro. Quando Tuco joga fora o mapa, emite um breve som
de satisfação com a boca (podemos ouvir, ainda, o barulho das folhas de papel amassadas).
Em contraponto a este grupo de sons diegéticos, Morricone insere um segundo grupo de sons
extra-diegéticos: um fraseado percussivo seguido de uma nova badalada do sino, mais forte e
prolongada. São duas inclusões simultâneas de elementos diegéticos dentro da composição.
A caixa, que introduz a percussão, é um instrumento militar; o sino expressa o simbolismo
religioso. Esses sons nos lembram que Tuco está dentro de um cemitério militar.
Se prestarmos atenção, ainda podemos ouvir o canto de pássaros em segundo plano.
A música faz um novo floreio, enquanto Leone injeta uma dose de ironia e humor negro,
fazendo um cachorro entrar em quadro (figura 225) – mais um trompe l’oeil. O cão foge com
um ganido. São os últimos sons diegéticos que ouvimos na próxima seção da cena, porque no
instante seguinte o pistoleiro começa a correr por entre os túmulos.
No momento exato em que Tuco começa a correr, dois fenômenos sonoros acontecem:
primeiro, todos os sons diegéticos (que ainda podíamos ouvir em segundo plano sonoro) desapare-
cem; está claro que a cena adota, então, o ponto de escuta subjetivo de Tuco, cuja atenção voltada
para a tarefa de encontrar o tesouro afeta sua percepção, desviando-a inteiramente para esse obje-
tivo, de modo que ele deixa de perceber todos os sons do ambiente. A composição de Morricone,
nesse sentido, seria uma representação sonora das emoções que ele sente no decorrer da cena.
Em segundo lugar, um novo badalo de sino introduz mais um elemento musical: a voz
de uma soprano feminina, que acrescenta dramaticidade. Só então, quando a música evolui
num crescendo, Leone começa a cortar (figuras 226 e 227). A voz passa a fazer a harmonia
e abre espaço para os violinos da orquestra, que solam esse trecho da composição. Quando
Leone corta para um close-up de Tuco (figura 228), arfando, não ouvimos os sons da respi-
ração, apenas vemos os movimentos de sua boca.
Enquanto Tuco começa a correr em círculos (figura 229), Morricone introduz um co-
ral masculino no trecho que liga o corpo da composição ao seu clímax, em que a voz aguda
da soprano retorna, dessa vez acompanhada de trompetes e de percussão militar. Esse trecho
da música incorpora diversos elementos que expressam do ponto de vista sonoro a ideia do
cemitério militar: as vozes masculinas, a caixa, o trompete, o andamento marcial, o sino. O
trecho termina com os vários instrumentos soando em uníssono (violinos, trompete, oboé),
sublinhando uma longa tomada em plano geral aberto (figura 230).
O interlúdio da canção inicia com uma breve seção de violinos em ostinato, acompa-
nhando planos médios de Tuco correndo. Nesse ponto o pistoleiro parece indeciso; os sons
diegéticos retornam, sinalizando essa indecisão, e passa a ser possível ouvir os passos de suas
botas resvalando contra o cascalho. Uma guitarra elétrica executa as três notas (FÁ-SOL-
-RÉ) que configuram o leitmotiv da “resposta” ao grito de coiote. Mas Tuco não desistiu. Os
violinos evoluem acima da voz da soprano para uma releitura do trecho mais dramático da
composição, enquanto Tuco acelera – e deixamos novamente de ouvir os sons diegéticos. A
cena entra em seu momento mais frenético.

240 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Leone mescla tomadas longas (figuras 231 e 232), que mostram o pistoleiro correndo
entre as lápides, e tomadas curtas de câmera subjetiva, que simulam o olhar de Tuco girando
entre os túmulos, em movimentos circulares cada vez mais rápidos. A harmonia entrelaça
vozes masculinas, trompetes e violinos (que se alternam solando a melodia), enquanto o
andamento marcial acentua o aumento gradual da dramaticidade; a evolução da música está
em sincronia com o processo de aceleração tanto da montagem (planos cada vez mais curtos)
quanto dos movimentos de câmera (cada vez mais rápidos), até que tudo o que conseguimos
ver são borrões (figuras 233 e 234).
Perto do final da cena, a execução da música evoluiu até as escalas mais agudas dos
instrumentos; uma série de badalos de sinos se junta à massa sonora liderada pelos violinos,
com toques de trompete e percussão militar em contraponto. Então, Leone força numa inter-
rupção abrupta no ritmo alucinante das imagens, justapondo a uma série de planos da câmera
se movendo furiosamente em círculo (figura 235) a um plano fixo do céu azul (figura 236);
após dois segundos, o rosto de Tuco entra em quadro, em close-up extremo, olhando dire-
tamente para a câmera (figura 237). No mesmo instante a música para e Leone corta para
um close-up de um túmulo (figura 238). Um silêncio sepulcral (sem trocadilhos) sublinha a
mensagem: é o tesouro.
Casamento meticuloso entre som e imagem, orquestração neorromântica com ins-
trumentos exóticos e rejeição ao princípio da inaudibilidade da música, elementos sonoros
oriundos da diegese. Todos os recursos estilísticos recorrentes na música dos filmes de Leone
estão presentes nesta passagem, bem como várias das ferramentas de estilo visual, sonoro e
narrativo: ironia, alusionismo, perfil do herói, worldmaking, close-ups extremos, composi-
ções recessivas com profundidade, trompe l’oeil, ruídos naturais amplificados. A cena fun-
ciona como um catálogo das principais ferramentas estilísticas de Leone.

241
SERGIO LEONE
5. O LEGADO DE LEONE

5.1 A GERAÇÃO NEW HOLLYWOOD

Após o final da Segunda Guerra Mundial, a frequência de espectadores às salas de


cinema caiu, todos os anos, por duas décadas. Por exemplo, 80,5 milhões de espectadores
pagaram bilhetes nos Estados Unidos para entrar em cinemas, em 1946; o número caiu para
30 milhões em 1960 (GOMES DE MATTOS, 2006, p. 118). Naturalmente, as razões dessa
crise podem ser explicadas por uma rede de contextos socioculturais, históricos, econômicos,
tecnológicos e políticos. Essa rede inclui a concorrência da televisão e de outras formas de
lazer, a quebra do monopólio dos grandes estúdios em 1948-49, a ascensão dos adolescentes
como categoria importante de consumo na segunda metade dos anos 1950, e outras.
O surgimento da poética da continuidade intensificada, nos anos 1960, deve ser com-
preendido como uma reação a essa crise; se não diretamente, com certeza de forma indireta,
já que foi a redução do número de espectadores que levou os grandes estúdios de Hollywood
a dar oportunidades para uma nova geração de cineastas – a primeira formada em universi-
dades de Cinema – que, por sua vez, rapidamente introduziu no repertório de técnicas esti-
lísticas e narrativas toda uma série de recursos que surgia na Europa desde o início dos anos
1960, e que os cineastas veteranos não haviam assimilado. Incluem-se, entre esses novos
recursos, muitas das ferramentas de estilo e narrativa recorrentes em Leone.
De fato, não é preciso ser um historiador para perceber que houve modificações signi-
ficativas nas práticas estilísticas e narrativas dos cineastas desde então. Se um leigo comparar
títulos realizados nos anos 1940-1950 e realizações posteriores, notará diferenças flagrantes.
Assistamos a Sangue de Pantera (Cat People, Jacques Tourneur, 1942) e sua refilmagem A
Marca da Pantera (Cat People, Paul Schrader, 1982); ou as duas versões de O Destino Bate
à Sua Porta (The Postman Always Ring Twice, Tay Garnett, 1946; e Bob Rafelson, 1981).
Chegaremos, sem grande esforço, ao mesmo vaticínio de David Bordwell:

Os filmes norte-americanos mudaram enormemente. Tornaram-se mais sexies,


mais profanos, mais violentos; piadas sobre peidos e kung fu estão por todo lugar.
A indústria se transmutou num hipopótamo corporativo, enquanto novas tecnolo-
gias transformaram a produção e a exibição. E, para chegar à minha preocupação
central, ao longo das mesmas décadas algumas estratégias narrativas de enredo e
estilo foram trazidas à proeminência. (BORDWELL, 2006, p. 1).

As alterações sugeridas por Bordwell foram graduais. A poética da continuidade inten-


sificada não consiste de um esquema fechado, mas de um conjunto de esquemas narrativos
e estilísticos que, desde então, foram (e continuam sendo) constantemente revisados. Essas
revisões têm sido impulsionadas pelos mais variados limites e pré-condições, que vão desde
alterações nos modos de financiamento de filmes (que hoje é feito com dinheiro oriundo de
investidores de vários países, incluindo nações do Oriente Médio) até as incessantes inova-

243
ções nas tecnologias de produção (câmeras digitais de alta definição, gravadores digitais),
circulação (filmes distribuídos por redes de fibra ótica, downloads através da Internet) e pro-
jeção (sistemas 3D digitais, IMAX, TVs de alta definição, Blu-Ray). Todas essas alterações
continuam a intensificar a continuidade intensificada: “Podemos esperar por variações cada
vez mais extravagantes de estilo. Talvez os filmes do século XXI sejam os filmes dos anos
1980, só que mais exagerados” (BORDWELL, 2006, p. 179).
Esse último trecho consiste de uma paráfrase de outra frase presente no capítulo an-
terior, quando ele dizia que os filmes dos anos 1980 eram os filmes dos anos 1960 intensifi-
cados. Bordwell fundamenta aí sua tese de que a poética do cinema contemporâneo nasceu
nos anos 1960. Nesse sentido, a pesquisa que aqui se conclui funciona como estudo de caso
do período mais delicado de transição dos esquemas clássicos de construção da narrativa
cinematográfica para os esquemas intensificados, focalizando a obra de um cineasta cuja
contribuição para a consolidação dessa nova poética tem sido pouco observada.
Neste último capítulo, pretendemos relacionar alguns dos padrões recorrentes de estilo
e narrativa na obra de Sergio Leone ao repertório de esquemas da continuidade intensificada,
mostrando como muitos diretores que vieram depois de Leone recuperaram e revisaram suas
práticas estilísticas e narrativas. Para alcançar esse objetivo, vale a pena detalhar a influência
de Leone nos cineastas que emergiram a partir dos anos 1960, conhecidos como a geração
New Hollywood: os movie brats Francis Ford Coppola, Brian De Palma, George Lucas, Ste-
ven Spielberg, Martin Scorsese, John Milius, William Friedkin, Peter Bodganovich, Arthur
Penn, Sam Peckinpah e outros.
Os filmes desses diretores introduziram no sistema dos grandes estúdios dos EUA as
ferramentas estilísticas e narrativas que nasceram dos esquemas revisados pelos diretores eu-
ropeus. Foi através deles que a poética da continuidade intensificada tornou-se globalizada.
Por isso, é importante traçar paralelos entre os filmes de Leone e a obra dessa geração. Tal ta-
refa pode nos ajudar a compreender com mais precisão a contribuição de Leone ao repertório
estilístico e narrativo do cinema contemporâneo, cujos cineastas, por sua vez, também têm
revisado essas ferramentas, sempre a partir dos limites e pré-condições impostos por fatores
como a evolução tecnológica, a competição com novas formas de entretenimento (videoga-
mes, Internet), os sistemas globalizados de produção cinematográfica e outros.
A emergência dos movie brats, nos anos 1960, aconteceu de maneira bastante rápida.
A transição dos veteranos para os novos diretores foi abrupta, e esse fato está diretamente
ligado, como já dissemos, à queda da frequência do público aos cinemas. Pressentindo que
a plateia dos anos 1960 era mais jovem e que os filmes realizados pelos diretores veteranos
pareciam não dialogar com esse público, os executivos da indústria apressaram a aparição
de uma nova geração de cineastas, capaz de falar ao novo público com naturalidade. Esses
diretores jovens eram admiradores do neorrealismo e da Nouvelle Vague: eles “se afastavam
do clássico para dialogar com o modernismo europeu” (MASCARELLO, 2006, p. 336).
Leone é pouco citado entre os diretores influentes dos anos 1960, mas seus filmes
exerceram forte impacto sobre a geração New Hollywood. Esse impacto não apenas aparece
nos filmes, como veremos logo mais, mas foi reconhecido diretamente por alguns deles. John
Milius lembra que a sequência do cemitério de Três Homens em Conflito era analisada plano

244 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


a plano durante aulas de edição, na University of South California, para que os alunos pudes-
sem observar o uso que Leone fazia dos close-ups extremos e a sincronia entre a música e os
cortes (FRAYLING, 2000, p. 398). John Carpenter usou o tema de Harmonica na cerimônia
do próprio casamento (FRAYLING, 2005, p. 192). Ele contrataria Morricone para fazer a
música de O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982), e incluiria uma das mais famosas
linhas de diálogos de Era uma Vez no Oeste (ou seja, pastiche) em Assalto à 13ª DP (Assault
on Precinct 13, 1976).
No caso desse último, Carpenter incorporou vários recursos da obra de Leone, alguns
deles através do alusionismo: perfil do herói (o protagonista do filme é um assassino que li-
dera vários policiais na reação ao cerco de uma delegacia de polícia por uma gangue de rua),
representação gráfica da violência, close-ups e composições recessivas. Carpenter explicita a
influência de Leone através de diálogos colocados na boca do assassino (quando perguntado
o que o levou a matar alguém, ele responde que sempre teve “algo a ver com a morte”, citan-
do uma frase célebre do citado filme de Leone).
George Lucas telefonou a Leone enquanto montava Guerra nas Estrelas (1977), pe-
dindo dicas sobre a sincronia entre música e imagens (FRAYLING, 2005, p. 86). Kubrick
admitiu que a representação da ultraviolência vista em Laranja Mecânica (A Clockwork
Orange, 1971) tinha sido inspirada pelos westerns de Leone (COUSINS, 2004, p. 289). Du-
rante a pré-produção de Barry Lyndon (1975), o mesmo Kubrick conversou com Leone,
fazendo perguntas sobre as técnicas que ele usava para trabalhar com música gravada antes
das filmagens, de forma a perseguir a sincronia existente entre os fluxos visual e sonoro
(FRAYLING, 2005, p. 82). Scorsese admitiu a influência de Leone não apenas nele mesmo,
mas em vários dos colegas de geração:

Não há dúvida de que Era uma Vez no Oeste influenciou bastante a nossa ge-
ração dos anos 1970 – Spielberg, Lucas, Milius, John Carpenter – mas, falando
por mim, a maior influência está na coreografia dos planos, na sincronia destes
com a música, e no tempo interno de certos momentos, como os cortes que vão
e vêm entre um rosto e uma mosca, o chapéu e a goteira, todas aquelas imagens
da abertura de Era uma Vez no Oeste. (...) Estilisticamente, isso encontrou seu
caminho em filmes como Touro Indomável [1980], A Cor do Dinheiro [The
Color of Money, 1986] e outros. (SCORSESE, 2005, p. 202-203).

Brian De Palma, citado por Noël Carroll (1998) como um dos principais cineastas
americanos a adotar o alusionismo como ferramenta de estilo, recorreu a recursos comuns em
Leone com ainda mais ênfase do que Scorsese e Carpenter. A profusão de close-ups de rostos
e planos-detalhes é nítida em seus filmes, bem como a utilização regular de composições
recessivas altamente estilizadas, como pode ser visto em filmes como Síndrome de Caim
(Raising Cain, 1992) e A Fúria (The Fury, 1978).
Entre as ferramentas de estilo recorrentes em Leone que foram integradas ao repertório
de esquemas dos diretores da geração New Hollywood, estão: execuções sangrentas, close-
-ups extremos, composições recessivas, uso de ruídos naturais amplificados e protagonistas

245
amorais em O Poderoso Chefão (1972); close-ups extremos, hiperviolência e uso de ruídos
naturais amplificados em Touro Indomável (1980); protagonistas amorais como a dupla de
motoqueiros traficantes de drogas em Sem Destino (Easy Rider, Dennis Hopper, 1969) e
o vigarista que ensina truques sujos à própria filha em Lua de Papel (Paper Moon, Peter
Bodganovich, 1973); close-ups extremos e música minimalista com influências do concre-
tismo em O Exorcista (1973); direção de arte realista e abundância de single shots, muitas
vezes em close-up, em Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, Sidney Lumet, 1975); acuidade
histórica em Barry Lyndon (1975) e novamente a violência gráfica em Laranja Mecânica
(1971); composições recessivas em profundidade de campo com moldura, muitas vezes com-
binadas com close-ups extremos de olhos, em A Fúria (1978); composições recessivas em
profundidade de campo que muitas vezes criavam trompe l’oeil cinematográficos, como em
Tubarão (Jaws, Steven Spielberg, 1975); pastiche que alude a antigos westerns e aventuras
infantojuvenis dos anos 1930 e 1940 na série Guerra nas Estrelas (1977-1980-1983), cuja
música persegue o mesmo casamento meticuloso entre som e imagens visto em ET – O Ex-
traterrestre (ET The Extra-terrestrial, Steven Spielberg, 1982); Nesse último caso, o diretor
alterou a montagem final apenas para sincronizar a modulação do arranjo de John Williams
ao fluxo de imagens de toda a sequência final, que inclui a cena em que o extraterrestre faz
as bicicletas voarem24.
Por que os diretores dos anos 1970 estavam adotando as técnicas estilísticas e táticas
narrativas que surgiam na Europa, a exemplo dos recursos de Leone? O fenômeno não pode
ser relacionado apenas à redução do número de espectadores. A influência dessa adoção de
novas práticas estilísticas foi indireta (afinal, como Bordwell nos lembra, o espírito do tempo
não liga a câmera), na medida em que apressou a emergência de diretores mais jovens.
Um dos contextos socioculturais que deve ser mencionado como explicação parcial
para o desenvolvimento da continuidade intensificada está a influência crescente da televi-
são. Nos anos 1960, os filmes – até então vetados pelos grandes estúdios para exibição na TV
– começaram a ser mostrados na tela pequena. Por isso, os chefes de produção de todos os
estúdios solicitaram aos diretores que revisassem seus procedimentos técnicos, concebendo
os filmes como obras seriam exibidas em telas de diferentes tamanhos. O resultado dessas
recomendações é que os diretores passaram a aproximar cada vez mais a câmera da ação
dramática, utilizando mais close-ups, planos médios e single shots (BORDWELL, 2006, p.
148-149). A televisão explica o aumento de planos próximos, que permitiam a melhor com-
preensão da ação dramática por parte dos espectadores.
O surgimento de equipamentos – câmeras e gravadores de som portáteis, novas lentes
de distâncias focais variáveis, películas mais sensíveis à luz, máquinas de edição não-linea-
res, Steadicam – gerou revisões constantes das práticas estilísticas, desde os anos 1970. O
aspecto comum em todas essas revisões é que, cada vez mais, os diretores jovens procuravam
capturar a atenção dos espectadores de maneira mais intensa, de forma a evitar sua dispersão.
Como se sabe, ver um filme na TV é um ato que favorece bem mais a dispersão do que fazer
o mesmo numa sala de cinema.

24 Esta informação é registrada nos extras do DVD do filme, em entrevistas com Spielberg e John
Williams.

246 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


As inovações técnicas na área do som seguiram esse princípio: fisgar a atenção do es-
pectador com mais ênfase. Uma maneira de fazer isso era usar mais os efeitos sonoros ampli-
ficados, objetivo facilitado pelo surgimento, em 1975, de um processo eletrônico de redução
do ruído natural que escapava da película por causa do atrito com o projetor eletrônico. O
Dolby NR (sigla de noise reduction) logo ganhou um upgrade sob a forma do sistema Dolby
Stereo, no qual filmes registrados em película de 35 milímetros podiam ter trilhas sonoras
reproduzidas em até quatro canais independentes (SERGI, 2004, p. 27).
As possibilidades criativas abertas por essas tecnologias levavam a novas revisões
dos esquemas de construção narrativa no cinema, sempre em direção à poética intensificada.
Como os recursos desenvolvidos por Leone apontavam na mesma direção, muitas das suas
soluções para problemas de representação foram adotadas – e, em muitos casos, revisadas ou
adaptadas – pelos novos cineastas.

5.2 OS CINEASTAS CONTEMPORÂNEOS

As características socioculturais que modificaram os hábitos dos cinéfilos se conso-


lidaram de fato na virada entre os anos 1970 e 1980. E a constante evolução tecnológica
continuou provocando mudanças incessantes nesse panorama. Cinemas drive-in e de bairro
deram lugar a cadeias de Multiplex, quase sempre localizados dentro de grandes shoppings
centers. Formatos mais baratos de vídeo doméstico (primeiro o VHS, a partir de 1980; depois
o DVD, de 1995 em diante; e atualmente o Blu-Ray) motivaram o aparecimento de uma gera-
ção de cinéfilos colecionadores de filmes, agora disponíveis para serem vistos e revistos em
casa. Hoje, o panorama de produção, circulação e consumo de filmes é multifacetado, está
em constante evolução e muda muito rapidamente. As salas de projeção coletiva continuam
a existir, mas disputam espaço com home theaters capazes de reproduzir longas-metragens
com fidelidade de imagem e som similar à projeção em película.
Esse panorama sociocultural, que envolve os aparatos de produção, circulação e exi-
bição de filmes, também afetou as práticas estilísticas e narrativas dos diretores, motivando
sucessivas revisões nos esquemas dominantes de construção narrativa. Os recursos desenvol-
vidos nos anos 1960 estão na base desse processo. Um exame atento de filmes contemporâ-
neos confirma que muitas técnicas criadas ou adaptadas pelos diretores modernistas europeus
têm sido revisadas. Os recursos desenvolvidos por Sergio Leone têm um papel importante
dentro desse repertório estilístico.
A influência de Leone no cinema atual pode ser medida com mais precisão quando o
colocamos ao lado de Quentin Tarantino, cineasta mais celebrado pela crítica internacional
desde a década de 1990, desde então apontado como um dos poucos renovadores estilísticos
do cinema contemporâneo. Ele sempre deixou clara a admiração pelo trabalho de Leone:

Havia um grau de verossimilhança em seus filmes [de Leone] que outros fil-
mes da época não tinham. Mesmo que então os filmes dele fossem vistos como

247
surrealistas, tinham uma aparência realista que não era possível encontrar em
títulos dos anos 1950 e 1960. (...) Era uma vez no Oeste foi como uma escola
de cinema para mim. Eu o vi na TV quando criança, e foi uma grande experiên-
cia porque dava para apreender da experiência um novo estilo de direção. (...)
Com Era uma Vez no Oeste, foi como se ele [Leone] dissesse: este aqui é o seu
faroeste norte-americano, OK? Agora vou subvertê-lo. (TARANTINO, 2003).

Desde Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992), Tarantino se serviu abundantemente


de vários recursos de estilo característicos de Leone: close-ups extremos, representação grá-
fica da violência, heróis amorais e violentos. O alusionismo está no centro nevrálgico do tra-
balho de Tarantino, assim como foi característica fundamental para Leone; de fato, há muitas
citações a filmes de Leone em obras como Kill Bill (2003) – em que trechos de músicas de
Morricone foram usados – e Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, 2009).
Os filmes de Tarantino consistem numa espécie de catálogo das práticas estilísticas e
narrativas do repertório da continuidade intensificada. O caso específico da obra dele é parti-
cularmente significativo para este livro, porque há uma ligação direta entre ele e Leone. Mas
é importante assinalar que Tarantino, como muitos diretores contemporâneos, não simples-
mente replica as soluções de Leone para problemas de representação. Ele utiliza os esquemas
disponíveis e os revisa, adaptando-os a novos contextos, novos limites tecnológicos e a seus
objetivos narrativos. Esse processo contínuo de revisão concretiza, também, a ideia de que
o autorismo pode ser harmônico com o conceito de gênero. Tarantino tem sido descrito por
muitos críticos como uma espécie de usina de reciclagem cinematográfica:

Talvez a mais constante crítica ao trabalho de Tarantino seja de que ele se re-
sume a reciclar filmes antigos (o crítico da revista New Yorker, David Denby,
se refere a ele como um “idiota de cinemateca”). Essa crítica confunde reunião
criativa de elementos dispersos com reciclagem. Tarantino (...) tem um conheci-
mento profundo sobre a maneira como os filmes são feitos e como seus diretores
atingem certos efeitos. Tem também um enciclopédico conhecimento de gêne-
ros internacionais, como o wu xia chinês, filmes de samurai e máfia japoneses,
e filmes de ação e kung fu de Hong Kong. Enquanto seus filmes homenageiam
todos esses gêneros, sua referência mais persistente está nos crescendos de vio-
lência incontroláveis do spaghetti western. (STONE, 2009).

Não é coincidência que o rótulo de pós-moderno seja frequentemente aplicado ao tra-


balho de Tarantino; tampouco é coincidência que a técnica do pastiche seja associada aos
filmes dele (use-se ou não o termo). Nesse ponto, Tarantino compartilha com Leone o gosto
pela citação, pela homenagem ao mesmo tempo nostálgica e irônica, irreverente e subversiva.
Antes de concluir, é importante assinalar que os recursos estilísticos e narrativos da
continuidade intensificada são utilizados por cineastas de quaisquer nacionalidades, idades,
raças, sexos, sem vinculação a gêneros ou movimentos estéticos. O que diferencia uns di-
retores de outros é o grau de utilização dessas ferramentas e o tipo de adaptação ou revisão
esquemática que se faz delas, a partir das características pessoais e/ou contextuais (ou seja,
por causa de limites ou pré-condições) de cada profissional.

248 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


Ferramentas que compõem o repertório dessa poética podem ser encontradas em pra-
ticamente qualquer filme; e várias dessas ferramentas foram desenvolvidas com a contribui-
ção dos filmes de Leone. Vejamos alguns exemplos: em Onde os Fracos Não Têm Vez (No
Country For Old Men, Joel e Ethan Coen, 2007), a cena em que o assassino profissional
(Javier Bardem) localiza a mala de dinheiro roubada é inteiramente construída com o uso de
sons naturais amplificados (particularmente os bips de um localizador eletrônico); close-ups
e planos detalhes fragmentam o espaço físico.
A música neorromântica com influências concretistas, incorporando sons da diegese,
foi um recurso explorado em Desejo e Reparação (Atonement, Joe Wright, 2007), cujo com-
positor, Dario Marianelli, incluiu os sons da máquina de escrever usada pela personagem
narradora ao longo dos trechos musicais orquestrados. Ruídos hiper-reais amplificados, pro-
fusão de close-ups extremos (a maioria de rostos), composições recessivas e worldmaking
foram ferramentas adotadas em O Senhor dos Anéis: a Sociedade do Anel (The Lord of the
Rings, Peter Jackson, 2001). A violência ganha uma representação ultrarrealista em Irre-
versível (Irreversible, Gaspar Noé, 2002), em que um homem tem a cabeça destroçada por
golpes de extintor de incêndio.
Composições recessivas com moldura e profundidade de foco são utilizadas tanto com
lentes grande-angulares quanto com teleobjetivas em Vício Frenético (The Bad Lieutenant:
Port of Call – New Orleans, Werner Herzog, 2009). Close-ups extremos que focalizam apenas
os olhos ou literalmente uma unha de um personagem, filmados com lentes grande-angulares,
são frequentes em Um Olhar no Paraíso (The Lovely Bones, Peter Jackson, 2009). Esses mes-
mos recursos – o close-up extremo e a composição recessiva com moldura – são revisados de
maneiras diferentes em Fogo Contra Fogo (Heat, Michael Mann, 1995), cujo diretor evita as
grande-angulares e usa teleobjetivas, deixando a imagem mais planimétrica (no primeiro caso)
ou desfocando uma das duas camadas da composição recessiva (no segundo caso).
Todos exemplificam com propriedade a ideia de Gombrich (2007) a respeito dos es-
quemas circulantes nas artes pictóricas: cada diretor se apropria dos esquemas disponíveis,
sejam eles dominantes ou não, e os revisa, de acordo com os limites e pré-condições dentro
das quais trabalha, e levando em consideração suas experiências prévias e seus próprios pro-
blemas de representação. Nos exemplos anteriores, Peter Jackson e Michael Mann reelabo-
ram dois recursos abundantes em Leone (o close-up extremo e a composição com moldura)
através de dois processos distintos de revisão, o primeiro usando lentes grande-angulares e
o segundo, teleobjetivas. É provável que a experiência de Mann com a televisão – onde ele
trabalhou por muitos anos antes de começar a dirigir filmes – tenha funcionado como in-
fluência, nesse caso, já que as lentes teleobjetivas são muito mais usadas na TV.
Exemplos da poética da continuidade intensificada podem ser rastreados em quase
todos os filmes contemporâneos, com variadas gradações de ênfase. Nesse sentido, não se
trata de uma prática estilística que se pode adotar ou descartar, mas sim de um repertório de
esquemas que revisaram os princípios gerais das três vertentes da poética do cinema, sem
quebrá-los ou abandoná-los, mas ajustando-os a novos contextos socioculturais, tecnológi-
cos, políticos, ideológicos e econômicos. E esse conjunto de ferramentas narrativas e estilís-
tica está disponível a todos os cineastas.

249
Ao longo do último capítulo, pudemos traçar conexões estilísticas e narrativas entre a
obra de Leone e filmes de diretores contemporâneos. É importante ressaltar que o objetivo
desta seção é demonstrar que Leone, efetivamente, desempenhou um papel importante no de-
senvolvimento de algumas dessas ferramentas, que constituem a continuidade intensificada.
Não se trata de reivindicar para Leone o papel de principal criador (muito menos de criador
solitário) dessa poética, já que tal figura histórica jamais existiu.
Como já vimos, quando se fala em continuidade intensificada (usando-se ou não o termo
criado por Bordwell), é lugar-comum citar Godard, Bergman, Truffaut, Fellini, Antonioni, Tar-
kovski, Resnais e outros diretores modernistas europeus, todos associados a um cinema feito para
um consumo segmentado, para o qual muitos estudiosos usam o termo “cinema de arte”. Todos
esses diretores, sem dúvida, exerceram papéis destacados na constituição da poética da continuida-
de intensificada. Mas outros cineastas que aturaram na mesma época e trabalharam com gêneros de
índole popular, especialmente aqueles que atuaram dentro de ciclos de produção massiva – como
é o caso de Sergio Leone –, continuam a ter seus papéis históricos, dentro desse processo, mini-
mizados ou mesmo desprezados. Esse fenômeno ocorre inclusive com aqueles que, como Leone,
passaram por algum tipo de revalorização crítica ao longo de suas carreiras, tornando-se dignos de
respeito. Como pudemos ver, esse respeito é, de certa forma, apenas relativo.
A abordagem estilística, especialmente quando amparada na análise fílmica minucio-
sa, pode ajudar a concretizar possibilidades de leitura alternativa da história do cinema, tendo
o desenvolvimento do estilo como eixo principal. Essas possibilidades nos parecem impor-
tantes, não apenas porque relativizam a importância do gosto e do juízo de valor na constru-
ção de uma historiografia do audiovisual, mas para que seja possível compreender melhor
como se dá o desenvolvimento e a o aprimoramento das soluções estilísticas para problemas
de representação – ou seja, as escolhas operadas pelos diretores, cada um dentro do contexto
sociocultural específico no qual trabalhou – dentro do cinema.
Sergio Leone não encapsula a imagem do artista como gênio, no sentido romântico do
termo (COMPAGNON, 2010). O gênio artístico, para filósofos como Kant, Schopenhauer
e Nietzsche, constituiria um dom natural que não pode ser aprendido ou ensinado, pois nas-
ce da intuição pura; pode ser, no máximo, refinado através das técnicas de produção, do
conhecimento e da cultura (aliás, nesse ponto, Nietzsche difere dos outros dois filósofos
mencionados, já que considerava a cultura como um aspecto limitador – e não amplificador
– do gênio). No caso de Leone, quando estudamos com cuidado os limites e pré-condições
que circundavam os contextos histórico, sociocultural, tecnológico e econômico no qual ele
operou, concluímos que nenhuma das marcas estilísticas recorrentes em seus filmes nasceu
de uma inovação radical ou de uma revisão estilística sem lastro histórico discernível.
Leone não rompeu com a tradição audiovisual que o precedeu; ele a reforçou e ampliou
em diferentes direções. Ele foi, sim, um renovador de tradições cinematográficas. Os processos
de revisão dos esquemas estilísticos que ele levou a cabo são produto da rede de contextos dentro
da qual ele se desenvolveu como cineasta. Essa constatação não diminui sua importância como
artífice da poética dominante do cinema contemporâneo. Para concluir: pode-se perfeitamente não
gostar dos filmes de Leone, assim como se pode simplesmente achar desimportante a maneira
como ele filmava bundas de cavalo, mas a análise estilística minuciosa da obra dele demanda um
reconhecimento crítico que deve ir além de uma nota de rodapé nos livros de história do cinema.

250 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


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262 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


ANEXOS

TABELA A:
NÚMEROS DE PRODUÇÃO DE SPAGHETTI WESTERNS (1960-1980)
ANO WEISSER1 FRIDLUNG2 CATÁLOGO % DO TOTAL
BOLAFFI3
1960 - 1 2 - (135)
1961 4 1 - - (152)
1962 2 2 - - (160)
1963 14 14 - - (164)
1964 27 35 13 8,1 (160)
1965 42 58 34 18,7 (182)
1966 69 68 52 22,9 (227)
1967 66 70 66 27,7 (238)
1968 83 73 71 29,6 (240)
1969 43 33 26 10,8 (241)
1970 34 42 35 15,9 (220)
1971 54 51 39 18,4 (211)
1972 51 44 42 15,5 (277)
1973 24 20 18 7,7 (234)
1974 19 12 8 3,3 (240)
1975 10 13 5 2,5 (201)
1976 5 3 2 0,85 (234)
1977 4 2 3 2,0 (150)
1978 3 3 2 3,5 (56)
1979 0 1 0 -
1980 1 0 0 -
Total 555 546 418 13,00 (3111)
Fonte: The Spaghetti Westerns: A Tematic Analysis (FRIDLUND, 2006, p. 8).

263
TABELA B:
PRODUÇÃO DE FILMES EM GERAL E WESTERNS
EM HOLLYWOOD (1926-1967)
ANO TOTAL DE TOTAL DE PERCENTUAL DE
FILMES WESTERNS WESTERNS
1926 700* 199 28
1927 678 145 21
1928 641 141 11
1929 562 92 16
1930 509 79 16
1931 501 85 17
1932 489 108 22
1933 507 65 13
1934 480 76 16
1935 525 145 28
1936 522 135 26
1937 538 135 25
1938 455 122 27
1939 483 123 25
1940 477 143 30
1941 492 130 27
1942 488 120 25
1943 397 103 26
1944 401 95 24
1945 350 80 23
1946 378 98 26
1947 369 95 26
1948 366 108 30
1949 356 97 27
1950 383 130 24
1951 391 109 28
1952 324 108 33
1953 344 92 27
1954 253 69 27
1955 254 68 27
1956 272 83 31
1957 300 70 23
1958 241 54 22
1959 187 39 21
1960 154 28 18
1961 131 22 17
1962 147 15 10
1963 121 11 9
1964 141 21 15
1965 153 22 14
1966 156 20 13
1967 178 20 11
* total aproximado
Fonte: The BFI Companion to the Western (BUSCOMBE, 1988, p. 427)
264 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN
TABELA C:
QUANTIDADE DE LINHAS DE DIÁLOGO EM FILMES DE GÊNERO

DIÁLOGOS DURAÇÃO LINHAS


P/MIN
Era uma Vez no Oeste (1968) 686 linhas 175 minutos 3,92
Quando Explode a Vingança (1971) 728 linhas 157 minutos 4,63
Meu Nome é Ninguém (1973) 593 linhas 117 minutos 5,06
Três Homens em Conflito (1966) 943 linhas 179 minutos 5,26
Por uns Dólares a Mais (1965) 719 linhas 132 minutos 5,44
Era uma Vez na América (1984) 1359 linhas 229 minutos 5,93
Por um Punhado de Dólares (1964) 687 linhas 99 minutos 6,93
O Homem do Oeste (1958) 730 linhas 100 minutos 7,30
Vera Cruz (1954) 694 linhas 94 minutos 7,38
Johnny Guitar (1954) 834 linhas 110 minutos 7,58
Matar ou Morrer (1952) 670 linhas 85 minutos 7,88
Legião Invencível (1949) 838 linhas 103 minutos 8,13
Paixão dos Fortes (1946) 795 linhas 97 minutos 8,19
Os Brutos Também Amam (1953) 1011 linhas 118 minutos 8,56
Sete Homens Sem Destino ((1956) 642 linhas 73 minutos 8,79
O Resgate do Bandoleiro (1957) 691 linhas 78 minutos 8,85
O Homem que Matou o Facínora (1962) 1093 linhas 123 minutos 8,88
Rastros de Ódio (1956) 1116 linhas 119 minutos 9,37
O Homem que Luta Só (1959) 689 linhas 73 minutos 9,43
Céu Amarelo (1948) 961 linhas 98 minutos 9,80
No Tempo das Diligências (1939) 1005 linhas 96 minutos 10,46
O Preço de um Homem (1953) 953 linhas 91 minutos 10,47
Um Certo Capitão Lockhart (1955) 1102 linhas 104 minutos 10,59
Onde Começa o Inferno (1959) 1526 linhas 141 minutos 10,82
Dragões da Violência (1957) 917 linhas 79 minutos 11,60
Minha Vontade é Lei (1959) 1417 linhas 122 minutos 11,61
Região do Ódio (1954) 1128 linhas 97 minutos 11,62
Winchester 73 (1950) 1103 linhas 92 minutos 11,98
Rio Vermelho (1948) 1628 linhas 133 minutos 12,24
Duelo ao Sol (1946) 1793 linhas 144 minutos 12,45

265
TABELA D:
USO DE CLOSE-UPS E MOVIMENTOS DE CÂMERA EM FILMES
DE SERGIO LEONE
POR UM TRÊS ERA UMA
PUNHADO DE HOMENS EM VEZ NA
DÓLARES CONFLITO AMÉRICA
Close-ups sem movimento 166 241 275
Close-ups extremo sem 185 410 347
movimento
Outros enquadramentos sem 246 363 390
movimento
Close-ups com movimento 55 84 169
Close-ups extremos com 32 141 228
movimento
Outros enquadramentos com 173 233 278
movimento
Total de planos do filme 857 1.472 1.687
Plano mais longo do filme 86 segundos 87,2 segundos 247,4 segundos
Média de duração de um plano 6,5 segundos 7,1 segundos 7,9 segundos

(Footnotes)
1 Dados compilados por Thomas Weisser (1992).
2 Dados compilados por Bert Fridlund (2006).
3 Estatísticas publicadas anualmente pelo Catálogo Bolaffi (dados oficiais do Governo da Itália).
4 Estatísticas publicadas anualmente pelo Catálogo Bolaffi (dados oficiais do Governo da Itália).

266 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


ÍNDICE ONOMÁSTICO

FILMES
A Era uma Vez na América 56, 61, 83, 175, 176,
A Batalha de Argel 75 196, 197, 265, 266
A Conquista do Oeste 56, 130 Era uma Vez no Oeste 17, 54, 56, 74, 79, 85, 86,
A Conversação 87 124, 129, 130, 131, 132, 133, 139, 194,
A Cor do Dinheiro 245 197, 208, 245, 265
A Face Oculta 108 Estigma da Crueldade 117, 121
A Fúria 245, 246 ET – O Extraterrestre 246
A Marca da Pantera 243
A Morte Anda a Cavalo 53 F
A Pistola Não Discute 44 Fogo Contra Fogo 249
A Queda do Império Romano
A Tortura do Medo 41 G
Apocalypse Now 56, 199 Guerra nas Estrelas 199, 245, 246
As Aventura de Tom Jones 144 Gunsmoke 41
Assalto à 13ª DP 245
H
B Helena de Tróia 40
Barry Lyndon 245, 246 Hiroshima Mon Amour 108
Bastardos Inglórios 248
Ben-Hur 40 I
Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas 56 Irreversível 249
Butch Cassidy & Sundance Kid 89 J
Joe, o Pistoleiro Implacável 52
C Johnny Guitar 130, 133, 265
Cães de Aluguel 248 Jules e Jim 118
Cidadão Kane 47, 108
Cleópatra 41 K
Comboio do Medo 56 Kill Bill 248
Consciências Mortas 125
L
D Ladrões de Bicicleta 35, 40, 186
Desejo e Reparação 249 Laranja Mecânica 245, 246
Dias de Ira 139 Legião Invencível 104, 129
Django, o Bastardo 53 Lua de Papel 246
Dragões da Violência 60, 139, 265
Duelo ao Sol 197, 265 M
Mais Forte que a Vingança 89
E Matar ou Morrer 52, 130, 131, 208, 265
E o Vento Levou 110, 122, 124, 233, 235 Meu Nome é Ninguém 25, 59, 60, 61, 138, 197,
265

267
Meu Nome é Trinity 59
Meu Ódio Será Sua Herança 56, 60, 89, 139 R
Minha Vontade é Lei 73, 117, 265 Rastros de Ódio
Monsieur Verdoux 121 Região do Ódio
Rio Vermelho
N Roma, Cidade Aberta
No Tempo das Diligências 57, 176, 265
S
O Sabata
O Cavalo de Ferro 56, 130, 132 Sangue de Pantera
O Colosso de Rhodes 25, 40, 41 Sartana
O Destino Bate à Sua Porta 243 Sem Destino
O Dia da Desforra 53 Sete Homens e um Destino
O Enigma de Outro Mundo 245 Síndrome de Caim
O Exorcista 56, 246 Sodoma e Gomorra
O General 122
O Grande Roubo do Trem 144 T
O Homem que Luta Só Taxi Driver
O Homem que Matou o Facínora Tempo de Massacre
O Manto Sagrado Tepepa
O Poderoso Chefão Tim Relâmpago
O Preço do Poder Touro Indomável
O Resgate do Bandoleiro Três Homens em Conflito
O Retorno de Frank James Trinity Ainda é Meu Nome
O Senhor dos Anéis: a Sociedade do Anel Tubarão
O Xerife do Queixo Quebrado
Onde Começa o Inferno U
Onde os Fracos Não Têm Vez Um Certo Capitão Lockhart
Os Ano Passado em Marienbad Um Dia de Cão
Os Brutos Também Amam Um Olhar no Paraíso
Os Comancheros Um Tiro na Noite
Os Conquistadores Uma Bala para Um General
Os Incompreendidos
Os Últimos Dias de Pompéia V
Os Violentos Vão para o Inferno Vera Cruz
Vício Frenético
P
Paixão dos Fortes W
Por um Punhado de Dólares Winchester 73
Por uns Dólares a Mais
Y
Q Yojimbo
Quando Explode a Vingança 46, 59, 75, 83,
133, 265

268 | RODRIGO CARREIRO · ERA UMA VEZ NO SPAGHETTI WESTERN


ATORES, ARTISTAS, CRÍTICOS, DIRETORES, ESCRITORES,
ROTEIRISTAS E TEÓRICOS
Cardinale, Claudia
Carpenter, John
Carrière, Jean-Claude
A Carroll, Noël
Aldrich, Robert Céline, Louis Ferdinand
Amidei, Sergio Chaplin, Charles
Angelopoulos, Theo Chion, Michel
Antonioni, Michelangelo Chirico, Giorgio De
Argento, Dario Cinquini, Fernando
Autry, Gene Cleef, Lee Van
Coburn, James
B Colli, Tonino Delli
Baldassarre, Ralf Compagnon, Antoine
Barboni, Enzo Coen, Joel e Ethan
Bardem, Javier Cooper, Gary
Banfield, Edward C. Coppola, Francis Ford
Bava, Mario Corbucci, Sergio
Baudrillard, Jean Cousins, Mark
Baudry, Pierre Crawford, Joan
Bazin, André Curtiz, Michael
Beauvoir, Simone de
Bergman, Ingmar D
Bertolucci, Bernardo Damiani, Damiano
Bodganovich, Peter Daney, Serge
Boetticher, Budd Degas, Edgar
Bonnard, Mario Denby, David
Bontemps, Jacques Dreyer, Carl
Bordwell, David Dmytryk, Edward
Boyd, William Dyer, Richard
Brady, Matthew
Brando, Marlon E
Brecht, Bertolt Eastwood, Clint
Bresson, Robert Eco, Umberto
Brion. Patrick Eisenstein, Serguei
Bronson, Charles Egger, Joseph
Buñuel, Luis
Burch, Nöel F
Buscombe, Edward Fassbinder, Rainer Werner
Fellini, Federico
C Ferzetti, Gabriele
Caiano, Mario Feuillade, Louis

269
Fleming, Victor
Fonda, Henry L
Ford, John Lancaster, Burt
Frayling, Christopher Lang, Fritz
Friedkin, William Leone, Sergio
Fulci, Lucio Lucas, George
Fuller, Samuel Lumet, Sidney

G M
Garko, Gianni Mankiewicz, Joseph L.
Garnett, Tay Mann, Anthony
Garrone, Sergio Mann, Michael
Gastaldi, Ernesto Marianelli, Dario
Geada, Eduardo Mascarello, Fernando
Gibson, Pamela Church Marshall, George
Girotti, Mario Martin, Dean
Godard, Jean-Luc Mattos, A. C. Gomes de
Golding, Edmund McGovern, Elizabeth
Goldoni, Carlo Melville, Jean-Pierre
Gombrich, E. H. Metz, Christian
Gorbman, Claudia Marie, Michel
Goya, Francisco Milius, John
Mizoguchi, Kenji
H Moravia, Alberto
Hathaway, Henry Morricone, Ennio
Hawks, Howard
Herzog, Werner N
Hill, Terence Nietzsche, Friedrich
Hitchcock, Alfred Niro, Robert De
Hopper, Dennis Noé, Gaspar

J P
Jackson, Peter Palma, Brian De
Jameson, Fredric Paolella, Domenico
Jeunet, Jean-Pierre Parolini, Gianfranco
Jullier, Laurent Peck, Gregory
Peckinpah, Sam
K Pedersoli, Carlo
Kant, Immanuel Penn, Arthur
Keaton, Buster Petroni, Giulio
Koch, Marianne Pierre, Sylvie
Koster, Henry Pollack, Sydney
Kubrick, Stanley Pontecorvo, Gillo
Kurosawa, Akira Porter, Edwin S.

270 | COLEÇÃO CINEMA ESTRONHO


Powell, Michael Velásquez, Diego
Vincenzoni, Luciano
R Volonté, Gian Maria
Rafelson, Bob
Ray, Nicholas W
Renoir, Jean Wachowski, Larry e Andy
Resnais, Alain Wallach. Eli
Richardson, Tony Walsh, Raoul
Robards, Jason Warhol, Andy
Rohmer, Eric Wayne, John
Rossellini, Roberto Welles, Orson
Wellman, William
S Williams, John
Sadoul, Georges Wise, Robert
Salt, Barry Wolff, Frank
Schopenhauer, Arthur Wölfflin, Heinrich
Schrader, Paul Woods, James
Scorsese, Martin Wright, Joe
Scott, Randolph Wright, Will
Sica, Vittorio De Wyler, William
Siegel, Don
Simi, Carlo Z
Sirk, Douglas Zavattini, Cesare
Sollima, Sergio Zinnemann, Fred
Solinas, Franco
Spielberg, Steven
Stam, Robert
Steiger, Rod
Stewart, James
Sturges, John

T
Tarantino, Quentin
Tarkovski, Andrei
Tati, Jacques
Tessar, Duccio
Thompson, Kristin
Tirard, Laurent
Tourneur, Jacques
Truffaut, François
Turner, Graeme

V
Valerii, Tonino

271

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