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Rio de Janeiro, 2023

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L954m Lukata, Lasana.


A madrasta de pedra / Lasana Lukata. - Rio de Janeiro, RJ: Autogra-
fia, 2023.
172 p. ; 15,5x23 cm

ISBN: 978-85-518-4881-4

1. Literatura brasileira - Poesia. I. Título.

CDD: B869.1

Elaborado por Maurício Amormino Júnior - CRB-6/2422

A madrasta de pedra
lukata, Lasana

isbn: 978-85-518-4881-4
1ª edição, janeiro de 2023.

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
rio de janeiro, rj – cep: 20090-050
www.autografia.com.br

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.

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prólogo

esta obra estava em mim


No filme Balzac, do diretor Josée Dayan, 1999, encontramos as
frases na fala do próprio Balzac: “Contar a si próprio não dá boa
literatura. O bom escritor deve contar o sofrimento dos outros...
não o que vê no espelho.” Depende: Morador do Recôncavo Flu-
minense, há tempos venho trabalhando o tema da orfandade em
vida, o subcutâneo de um enteado e seu destino. Sim, rasuradas
as fronteiras dos gramáticos gregos que madrastamente separa-
ram os gêneros, há uma narratividade nesse tema que começou
a ser cantado/contado nos poemas por conta da leitura de Rainer
Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta, em que ele fala da infân-
cia como material para a escritura. Olhei a minha infância e vi
que as recordações não eram muito boas, mas era um material.
A experiência universal mostra que a relação da madrasta com o
enteado também não é muito boa, resolvi burilar o tema. Escrevi
o primeiro poema na virada do século cujo título é separação de
sílabas e as descobertas não pararam mais.
Um dia, brincando de pique esconde com as garotas, desco-
bri, dentro do guarda-roupa, numa pequena pasta, a certidão
de nascimento de uma mulher por nome Diamantina. Pergun-
tei quem era e madrasta disse, sou eu, mas não gosto desse
nome. A patroa registrou-me novamente com o nome que
tenho agora. Aquela descoberta foi de início a minha desgra-
ça porque onde eu estava madrasta estava me vigiando, mas

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dessa mesma desgraça nasceriam poemas, quando mais tar-
de refletindo e pesquisando, percebi que o primeiro nome de
madrasta correspondia à sua personalidade: Diamantina, uma
pedra. Madrasta tinha, de fato, dureza de coração e meus olhos
foram se abrindo para que eu visse o material que estava ao
meu redor. Na ocasião, uma índia, Jupiara, no centro do Rio de
Janeiro, disse-me, em tons de oráculo, que eu tiraria água de
pedra. Na hora entendi uma dificuldade a ser superada, porém
mais tarde veria que não.
Aos cinquenta anos, trabalhando o tema fiz outra descoberta:
eu morava na Rua da Penha, vinha de uma família de pedreiros,
que trabalha a pedra, meu pai pedreiro arrumou uma mulher com
nome de pedra e tive a vida dura. Ressalte-se na geomorfogenia,
Penha significa rocha isolada, ideia recorrente em todo o livro atra-
vés do topônimo Icaraí transfigurado em ICARA-í como símbolo
do isolado, do desprezo, da exclusão, do exílio, do poeta à parte.
Começava a organizar o delírio. Depois percebi que: meu vizinho
da esquerda era Pedro; o dos fundos era Pedro e meus vizinhos
da direita trabalhavam na pedreira, eram cortadores de pedras na
Pedreira de Nova Iguaçu e falavam na linguagem da pedra, por
exemplo, vai furar a pedra hoje?! No sentido amoroso. Todo esse
material estava perto de mim. Uma professora de Literaturas Afri-
canas na UFRJ ao ler o poema separação de silabas concluiu: é...
você tinha que escrever! O ciclo de cortadores de pedras na minha
família sofreu uma solução de continuidade para eu ser cortador
de palavras. Não usei a rigorosidade dórica, mas a harmônica liber-
dade jônica na construção dos poemas e talvez tudo o que fiz foi
informar sofrimento com a leveza da criatividade.
Para arremate me veio uma última iluminação, numa tarde
de outono, quando eu estava sentado escrevendo sobre o tema.
O que a índia Jupiara me disse sobre tirar água de pedra, não era
só uma dificuldade a ser vencida, mas algo novo, originário do

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próprio material: a pedra era a madrasta e a água, a poesia que
sairia dela. Eis o livro.
Em a madrasta de pedra não há um movimento da trama con-
vencional, mas a cada poema o leitor perceberá laivos de nar-
ratividade, terá a noção do acontecido que não era para ter
acontecido, mas aconteceu; verá a origem do menino, o esbo-
roamento da família original, a construção da nova família, a
relação de enteado e madrasta, o sentimento em relação ao pai
que flutua tragicamente entre atração e repulsa; verá que o seu
destino neste áspero contexto foi interpretar as pedras. Uma se-
vera identidade. Trata-se de uma poesia pedral. O madrastio é a
pedra de toque da maternidade.

LL
São João de Meriti, 10 de outubro de 2022

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À memória de todos os enteados
que tiveram suas vidas subtraídas
pelas madrastas

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“si (como el griego afirma en el Cratilo)
el nombre es arquetipo de la cosa.”

Jorge Luís Borges

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meu avô

meu avô, índio, cego


tinha com ele certas coisas...
quando mamãe adentrou a casa
ele bateu palma três vezes
dizendo Aluízio repara
porque o que está na barriga da tua mulher
é um macho
quando ele nascer prepara
uma roupa branca e passa nela linha verde
a primeira roupa dele tem de ser branca
costurada com uma linha verde
meu pai exagerou
e no meio das crianças
eu era o menino da roupa branca
passada por uma linha verde
e nas costuras do meu blusão
vinham pousar passarinhos.

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palavras insalubres

o morro era esse troca-troca,


ia caneca de açúcar, vinha pó de café;
ia um pouco de arroz, vinha concha de feijão;
ia a dura realidade, vinha bacia de ilusão;
ia lavagem por um pedaço do porco no Natal;
morro fraterno até no leite materno:
havia um pretinho com frio
e um branquinho com fome.
minha mãe não tinha leite,
sua estatura era franzina,
tinha seios de enfeite
e não era vaidade,
compreendo seus limites.
sagrada vida, sagrada pobreza,
no morro dos troca-trocas,
minha mãe vestiu o pretinho
e eu tive mãe de leite,
Beatriz, nutriz, afeto,
que manava leite e mel,
em nada inferior,
a mãe preta prometida,
cuja vida mui ferida
por palavras insalubres.

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mesóclise

pais separando
entre eles o menino
dando a mão a um e outro
mesóclise

a mãe próclise
com palavras negativas
o atraía para antes do verbo

o pai ênclise
com um ar imperativo
arrastava-o para depois do verbo

três lâmpadas
uma a uma apagaram-se as luzes
e a ideia de futuro

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casa

casa sem viga


quando tem briga
des

mo

ro

na

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ICARA-í

minha mãe embriagava-se de Vênus e de vinho


e madrasta passou a ser a viga da casa:
vigarista.
reformulou a casa
que passou, simultaneamente,
por um evoluir-se e reduzir-se.
eu, aguardando vir a ser,
não fui selecionado.
posto de lado,
sílaba que não servia
para expressar a nova família,
o novo poema.

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pedrinha vermelha (anagnórise)

madrasta me dando banho na bacia,


morena, dentes sem pena de triturar,
trazia em seu peito colar de pedras de
sangue, papoula vermelha,
na garganta uma ira solar;
endeusado pescoço de garça real,
nada a fazia descer de sua importância,
nada em seu corpo confessava fraqueza
e nas suas palavras não havia franqueza;
madrasta me dando banho na bacia,
de súbito caiu uma pedrinha do seu anel
repolhudo, cheio de pedrinhas coloridas
como as luzes do parque de diversão,
como as roupas de um palhaço triste.
pedrinha vermelha, cor do sangue
que ela tiraria de mim à base de chicote,
por fúteis motivos.
ao cair a pedrinha olhei o anel
(um buquê de pedras também murcha)
já o conhecia, minha mãe tinha razão,
ela já existia em nossa vida
e foi abrindo a ferida...
numa noite em Queimados,
meu pai falava com uma mulher
deitada na rede cujo rosto eu não via,
mas a mão para fora segurando o cigarro
e a vela acesa acendendo as pedrinhas

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como as luzes do parque de diversão.
sábado e domingo meu pai dizia trabalhar
e me levava como álibi...
ao cair a pedrinha, naquela altura, cinco anos,
eu já tinha demolido minha mãe perante o juiz
como traidora e sua defensora esbravejou:
você destruiu seu filho!
sim... seu amante me agrediu e ela nada fez,
eu não entendia e ao ver outro homem
em cima dela, pulei sobre ele, lutei para defendê-la,
a garça defende o ninho...
sim... minha mãe me destruiu e eu a destruí no tribunal,
mas a pedrinha vermelha prova que traída fora ela.

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elo

meu pai era pedreiro-barbeiro,


ficava olhando ele assentando,
depois fazendo a barba dos tijolos.
minha família era tijolo de seis furos.
uma família com juros e só eu paguei.
na quina de ás temos seis pontos.
a marmita do meu pai tinha seis partes,
na palavra ICARAí temos seis letras
e talvez se quebre o elo dos poemas.

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atrito

como a pederneira empedernida


que é preciso bater para brilhar,
cá estou a bater até agora
nesta garça erguida contra mim;
nesta pedra tão riscada
chamada madrasta que me disse:
sou a voz que debilita,
atormenta e te devora,
voz erguida contra ti,
contabesço teus caminhos...
esta pedra de isqueiro
dez mil vezes a risquei,
mas só cem me deram fogo.
desta pedra as centelhas
que acenderam estes poemas.
madrasta- chamei-te mãe-,
voz erguida para ti.

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demolidora descoberta

meninos a descobrir tesouros,


pepita que palpita o coração,
naquela manhã, no guarda-roupa,
brincando de pique esconde,
o descobrimento da certidão de nascimento...
da madrasta, numa pasta, devasta a vida do menino
e de repente tudo que o rodeia se incendeia, pedras de fogo,
no jogo das Cinco Pedrinhas.

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separação de sílabas

na sala de aula
quando a professora perguntava
como era a minha família
eu dizia que era um tritongo
havia cigarra
dançávamos jongo
mas a mãe se foi
a cigarra morreu
a dança acabou
a tristeza invadiu
meu pai e a mim
e viramos ditongo
mas veio a madrasta
que teve três filhos
me jogou num hiato
e fiquei feito um i
em ICARA-í

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Éramos Três
a Daufen Barch

éramos três,
mas a mãe se foi,
veio a madrasta,
teve três filhos,
tornamo-nos seis
e fiquei feito um i
em ICARA-í,
mirrado de medo;
descobri seu segredo
no escuro do guarda-roupa,
brincando de esconde-esconde,
topei com a verdadeira certidão de nascimento,
seu nome Diamantina e por todas as esquinas
da casa ela estava, nome de flor, por dentro, minério;
uma infância ensombrecida, medo recalcado
ante a presença pétrea da madrasta.
i, letra com medo.

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tritongo

os três de mãos dadas em única sílaba,


buquê de vogais como fosse inerente,
como se o horizonte fosse diamante
e só diamante risca diamante
e Diamantina teve três filhos
e cedo aprendi que- o horizonte era móvel-,
madrasta, Medeia, feroz, indomável,
partindo em pedaços a nossa mobília,
partindo em lamentos a nossa família.
shamir cortou esta pedra hoje.

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a palavra

a ideia de madrasta me escantear


precisava ser demonstrada por palavra.
eu estava sendo posto de lado,
sem importância.
em busca dessa palavra,
muitas vezes dormi e acordei aborrecido;
às vezes acordava com raiva de mim,
às vezes acordava com raiva do mundo,
às vezes com raiva de mim e do mundo.
falei com Deus sobre essa palavra,
Deus respondeu: meu filho,
isso que você me pede,
você tem que estudar mais.
e me tornei caçador de hiatos
para demonstrar aquele páthos...
passados dois anos,
descobri a palavra ICARA-í,
consegui fonemas, no poema,
fossem pessoas.

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Itanhênga (a pedra que fala)

madrasta, pedra que fala.


como a Pedra da Tijuca,
tudo em ti era eco, tudo seco,
repetição do que fizeram contigo,
abandonada pelas casas de família,
fazendo trouxinhas de repolho...
tão menina, onze anos, tantos danos,
quantos donos e esse ônus como pesa!
nunca teve uma boneca,
então fui o seu boneco,
pernas, braços arrancados,
a cabeça separada do meu corpo,
que madrasta criativa!
nos repolhos do mercado,
a infância decepada-,
e o homem não avança.

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Dulcora! Dulcora!

madrasta chega a casa trazendo drops Dulcora,


cantando para mim o jingle do drops Dulcora:
Dulcora! Dulcora!
chega mansa, suave como o verbo edulcora.
e quando meu pai chega essa madrasta me adora,
quando meu pai sai, ela canta: Cai fora! Cai fora!
madrasta chegou a casa trazendo drops Dulcora,
Dulcora! Dulcora!
não passavam de pedras coloridas por fora...
que meus dentes quebraram e quebraram meus dentes,
não chora! Engole o choro e a azeda bala dulcora.
mesmo morta, madrasta, a minha fala tratora.
Tratora! Tratora!

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Itacolomy

mundo pedra:

pedra mãe
e
mãe de pedra

pedra menino

menino pedra

espíritos

de

pedra

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petrologia

vindo de uma família de pedreiros,


que trabalha a pedra,
olhava as pedras solitárias, a Baía de Guanabara,
este útero de pedra que me lançou ao mar,
a paisagem do Rio de Janeiro de pedras:
Pedra do Arpoador, Pedra Bonita, Pedra Branca,
Pedra da Gávea, Pedra do Pontal, Pedra do Raio,
Pedra da Tartaruga, Pedra do Telégrafo, tudo pedra...
e aos sábados, meu pai pedreiro, chamava-nos à mesa,
um monte de pedras de dominó e descobri que estava só,
ao escolher uma pedra, quina de ás, num jogo clássico,
sob o olhar pétreo e sombrio de uma clássica madrasta
me chutando para escanteio, lançando-me para fora,
pela linha de fundo defendida por sua família, dizendo:
aqui seu verso não encaixa!
e tudo o que tive
foi um conjunto de sobras,
foi um conjunto de cobras,
foi um conjunto de pedras,
foi um conjunto de perdas,
foi um conjunto de Fedras.
escrever poemas até ficar sem pedras na mão.
a poesia permite digitar as feridas.

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meninos pulando carniça

(dessocialização)

na casa havia rotina de safári,


na parede a réplica de Portinari,
campo aberto, linha do horizonte,
duas colinas como seios, céu azul
e a encurvada lua minguante
que o menino se identificou...
cedo despontava a imaginação,
com penas de garça escrevia,
nem sempre a palavra lhe sorri,
tangendo feridas para o poema;
descobriu que a palavra carniça estava grávida,
fez o parto nascendo a palavra criança,
a brincadeira deveria ser pula-criança,
mas madrasta amava a palavra carniça
e mandava abaixar porque era carniça,
que ficasse quieto, petrificado,
nem o coração pulando no peito,
para ela e seus filhos pularem
como quem salta um animal morto.
uma infância entre pedras semeada.
verde, o concreto está mais frágil.

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bodoque

na década de 70,
madrasta me chamou para brincar,
tinha comprado dois bodoques
para atirar bolas de barro.
uma menina deu-me uns toques:
seus estoques são de pedras...
apareci de capacete;
naquela tarde azul-ferrete,
no seu vestido flores brancas,
menina branca como a garça,
pousavam em suas botas negras,
minhas aéreas esperanças.

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destoponímia

tristengo vindo de um tritongo


triturado por madrasta,
não me prolongo:
morava num quitongo, quitungo,
nunca fui bisungo,
brincando me evadia
para as terras de Trutungo,
lá eu dançava tritango,
aqui cantava vissungo,
lavrando pedras
de Diamantina.

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Ponte Rio-Niterói

eu tinha 9 anos quando começaram


a se unir os pilares da Ponte Rio-Niterói.
9 quilômetros sobre a água,
os pilares se unindo e a minha família separada,
construída sobre a água, não firmada
sobre um terreno rochoso, fim do ciclo,
começo do madrastio.
dos 72 metros de altura dessa ponte,
desse múltiplo de 9,
uma mãe atirou o filho n’água,
um menino de 3 anos,
nunca se soube o motivo,
mas passando sobre a ponte
sempre me vem à mente:
madrasta faria o mesmo.

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de um ponto mais alto

o mar não tolera vestígios


Herman Melville

em seu pétreo coração


madrasta me jogou da Ponte Rio-Niterói
quando eu tinha cinco anos...
meus sintomas de pássaro já estavam visíveis
e dessa baía em formato de útero renasci para o mar..
ela se foi cedo, mas deixou a dica
e agora eu mesmo quero pular
de um ponto mais alto:
de certa altura água é pedra.

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poema crocante
ao amigo José Augusto de Souza

madrasta chegava, eu já estava dormindo...


todos os dias acordava com um chokito na mão.
eu, menino auditivo,
de nome Cláudio recheado com a palavra áudio,
ingrediente para poeta,
prestava atenção na crocância, na quebra,
no estalejar da mordida
disfarçados pela argamassa de chocolate fingindo unir.
o bom poeta se vê na hora de condensar, caramelizar o verso.
um dia madrasta chegou e eu estava acordado,
antes de me dar o choquito quebrou um pedaço na boca
e aquele ruído seco nos dentes eram pedras desmoronando,
minha família demolida.
madrasta chegava, eu já estava dormindo...
seu nome a rigor, Diamantina,
serve de luxo, serve de adorno, serve para joalheiros,
serve também para vidraceiros, serve também para poesia.
riscava todos os corpos e nenhum podia riscá-la.
Diamantina não tinha peito diamantino,
mas um diamantino peito, petrificado coração.
agora ela dorme...
e eu a mexer pedras aprazíveis,
de açúcar.

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pesa sobre as asas dessa garça
meu cadáver de menino

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coequação

na sala de aula
quando a professora perguntava
como era a minha família
eu dizia que era um triângulo
e todos sabiam que era um retângulo:
madrasta, meu pai, minha mãe e eu;
mas a mãe se foi,
em triângulo retângulo nos tornamos,
eu e meu pai dois catetos em queda,
dominados pela hipotenusa;
madrasta oposta a meu ângulo reto,
forçava-me a ser um ângulo torto,
dizendo que cedo eu estaria morto.
sendo o lado mais longo do triângulo
retângulo, ela teve a vida curta.
shamir cortou esta pedra hoje.
a morte repartida para todos.

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a vespa

fui rainha terciária,


fui rainha secundária
e depois, num curto voo,
me tornei a Principal...
como um pedreiro usei barro, usei pedras,
usei a cabeça como martelo a socar a terra,
a fazer o ninho, dissimulando o tempo todo.
quando cheguei, de maneira contundente,
vestido em preto e amarelo, tiara preta,
de veludo, ele olhou o penteado,
minha tiara de abelha, arriei as minhas asas,
ocultei a minha estrada, extremamente perigosa,
ele não estava na escola;
minha boca em melúrias, falando em melhoras,
ele pensou que eu fosse abelha
e o horizonte-diamante-,
mas sou vespa e como onça
capturo, dilacero,
eu piquei meu enteado:
a despensa dos filhotes.
o meu vínculo com ele,
não tinha ética, emoção,
não era ser de mãe e filho,
era ser de macho e fêmea,
mas porque me recusou,
foi de presa e predador,
despedacei-o, sou Medeia.

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furta-cor

madrasta se despia facilmente.


serpente, nunca tinha visto uma pedra esfoliar-se.
madrasta sem capote era um pote de escamas,
perdeu as contas das camas que passaram por seu corpo.
em chamas, o garoto, incluído em suas tramas,
se não é meu, de mais ninguém!
e enxotava as namoradas...
e a súbita seta dessa garça
abriu no peixe uma fissura,
da cor escura passei ao colorido,
ouvindo alaridos de folhas ao vento...
lavando roupas foi me atraindo com bolhas de sabão,
sabia ela que eu amava as cores do parque de diversão,
e me convidava para aquela iridescência, ingressar no arco-íris,
sussurrando: furta-cor!
eu não podia furtá-la de meu pai
cujo amor era de pedra.
vade retro satanás,
com suas bolhas de sabão.

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no jardim

garças azuis saíam de tua boca.


desconfiei do mar que havia em ti.
mergulhei,
chamei de mãe,
me afoguei.
minha infância foi um paraíso com serpente.

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ESFEX

tarde cinza
uma vespa pica o gafanhoto,
paralisa-o, leva-o para o ninho
e põe sobre ele ovos
que se alimentam da vítima...
assim também aos domingos-
paredes tristes do passado-,
por fora se não comovido,
por dentro me tem agitado,
da longínqua janela do poema
vejo a cimentada cena:
cercado por madrasta e três filhos,
meu pai sentado no sofá,
gafanhoto picado, cristalizado, morto.

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II

atraída pelo cheiro de morango,


pelo colorido blusão,
madrasta picou-me também.
paralisado como um esquizofrênico,
sem ter como remover seu ferrão,
fui a despensa viva dos filhotes,
por ter na boca um não de pedra
e ela afervorada como Fedra...

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as partes nobres do frango

aromáticos domingos, corto-contundentes,


meu pai sentado, cristalizado e morto,
madrasta fazia questão de me servir o frango destroçado
e aéreas esperanças trucidadas sobre a mesa.
diabaleínas mãos pesadas, mãos de pedra,
força ativa do diabo – que separa-
para sempre no meu prato as não-nobres:
costela e asa.

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o peso da seiva

madrasta roubou meu pai,


expulsou minha mãe
e me deu o desamparo...
da orfandade vejo mães que passam
desdobradas em carinhos;
sinto frio,
não ouço mais o trucilar do tordo,
o musgo agasalha a pedra,
meu pai de mim não se aproxima.
esgotada a seiva,
no poema é sempre inverno
e nada afunda.

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à maneira de imagem

madrasta, três filhos, meu pai,


muito próximos entre si,
à maneira de cacho,
no leito do riacho,
reunidos, suspensos em orgulhos,
sentiam-se pedras roladas, lapidadas,
sem arestas, pedras polidas,
pedras lidas pelo tempo, cacho de pedras...
e eu que descia com as águas,
aguaceiro, brotava separado,
impossível de rejuntar pelo muito
que se dilataram.

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família de pedra

da Pedra saíram três lascas,


três faíscas, logo veio o fogo,
e o menino percebeu o exílio,
que já estava fora do jogo.

a Pedra a cada lasca


aumentava a nevasca,
uma neve carrasca...

Madrasta
tudo arrasta,
tudo desastra,
tudo contrasta,
tudo vergasta.

nos olhos chuviscos


catava mariscos,
a vida em chapiscos,
sabia que apriscos
sofreram rabiscos,
que sobre hibiscos
desceram coriscos,
riscos de vida...
bebeu inseticida,
comeu pasta para ratos,
bebeu água sanitária:
no refrigerante,

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no pão,
na água,
a mágoa não para...
de forma brusca
foi entregue às moscas,
hoje se entrega às garças.

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estilhaços

madrasta não teve três filhos,


da Pedra saíram três estilhaços,
todos sem braços,
todos madraços.

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triagem

Rio de Janeiro,
muitas de tuas casas
foi meu avô quem fez;
muitas de tuas casas
foi meu pai quem fez;
muitas de tuas casas
foi meu irmão quem fez
e chegou a minha vez...
mas vieram certas garças separando
da marreta, do ponteiro e me dando
uma peneira toda azul e desde então
passo a noite peneirando estrelas,
mesmo as estrelas têm de ser peneiradas.

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contexto de pedra

visão abrindo em círculos concêntricos,


nada diferente, só idênticos:
dentro da casa eu servente de pedreiro,
vindo de família de pedreiro,
que trabalha a pedra,
e meu pai pedreiro e minha madrasta,
com nome de pedra: Diamantina.
dos vizinhos confrontantes,
o da esquerda era Pedro e pedreiro,
o dos fundos era Pedro e pedreiro,
o da direita trabalhava na pedreira
e nós morávamos na Rua da Penha,
ouvindo palavras duras,
discurso de autopatia,
contexto de pedra.
madrasta, pedra sem brilho.
minha noite mais escura.
oh aqueles dias de menino entre pedras...
pedra de fogo, de raio, de sabão, pedreirada,
pedras nada preciosas, autodepreciativas...
disseram para eu pôr uma pedra
em cima desses poemas- e pus-,
mas escaparam...

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idade do diamante

a infância não foi ouro, não foi prata,


foi pedra, diamante, privado do afeto,
tratado como inseto,
psiquicamente subdesenvolvido,
preterido, mal querido, bem ferido
e ainda dizem: ressentido!

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a madrasta de pedra
a Salomão Sousa

nasci em uma família que trabalha a pedra,


não as pedras preciosas, mestres de obras,
e meu pai pedreiro arrumou uma mulher
com nome de pedra, Diamantina,
e eu tive a vida dura;
bato sempre nesta pedra,
o que aumenta a ferida...
quase engenheiro fui ser advogado para
eu mesmo tecer este poema acusatório,
com circunstâncias, agravantes,
influenciar na fixação da sua pena
e que a julgue o leitor.
madrasta, abelha-pedreira,
fazia meu pai carregar tijolos
para levantar casas para ela;
fazia-me carregar seus filhos nas costas
como uma vespa que narcotiza a aranha
e sobre ela cria suas larvas.
fui a pequena aranha a sonhar teias
de captura, de cópula, de muda,
mas não teve tempo de tecer
a frágil teia de refúgio...
em vez de pedra, trabalho a palavra,
duras palavras, trabalho pássaros pesados,
em vez de doze pedras, doze signos,
doze apóstolos, doze cavaleiros da Távola Redonda,

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doze deuses do Olimpo,
elegi para bordar- de consciência-, esta estrada,
este consórcio de tristeza e sofrimento,
doze trabalhos de Hércules,
convivendo com serpente desde menino.
em meus poemas passa raramente a leveza da andorinha,
quando então é primavera.
andorinha, poesia ligeira.

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musgo

madrasta de pedra.
pedra onde a palavra não entra.
pedra imaterial e ainda pesa.
pedra de fogo e ainda acesa.
enlaivada, enraivada pedra bruta.
seu grito ainda ecoa em meus ouvidos.
rascante voz de garça.
bebia água, cuspia gelo.
um golpe feroz
pode desprendê-la da parede...
dura comigo por toda a infância,
quase me fez de pedra,
quase fui seu pedreiro,
quase fui seu herdeiro,
entanto mais forte
tornei-a minha poesia,
elegida elegia de pedra,
pedra com musgo-,
onde não pude me firmar.
.

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tia

primeiro dia de aula


todos ajudando,
a garça pôs seu ovo
ditongado,
um azul-esverdeado,
para a merenda;
outro arrumava a pasta
e outro dava dicas...
a casa ao lado,
com criatividade,
madrasta me batia,
dizendo-se tia,
não sou sua mãe,
mãe é ditongo,
ti-a é hiato,
comigo é hiato,
tá ouvindo?

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partida

quando minha mãe se foi,


madrasta bicava a minha infância
por todos os lados
como a garça que expulsa a fêmea
e mata o filhote.

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unhamentos

a bem da verdade,
não tive pai e mãe;
Deus me botou com os outros,
para viver com as pessoas...
eu não sabia a diferença entre aranha e arranha
e veio a mulher estranha
me ensinou com as suas unhas:
madrasta.

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madrasta explosiva

lá em casa chegou uma mina chamada Diamantina,


uma mina antipessoal,
trazida e acionada por meu pai.
chegou com a bolsa cheia de intriga, trapaça, traição...
e eu, menino, não sabia contraminar as maquinações
do diabo, cavar galeria abaixo das maldades, sutilezas.
a mina não teve três filhos, dela saíram três estilhaços,
morreu meu pai, eu
e o meu sonho apanhou um estilhaço pelas costas,
ficou paraplégico...
tenho um sonho paraplégico
empurrado em cadeira de rodas,
pesadelo...
porque a vida perdeu braços e pernas também.

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à bruta

por que esta distância cada vez mais glacial?


por que ergueste um muro entre mim e ti?
por que os monossílabos, palavras enrugadas?
por que me negas a mão e me agride a pata leonina?
por que me voltas as costas?
por que do riso agora rosna?
e esta losna?
braços cruzados como asas fechadas de uma ave.
andas pontudo como a garça, andas à bruta!
somos Saul e Davi
e a sua lança tem sede de me encravar na parede!
os seus tijolos maciços de me esmagar a cabeça!
escapei várias vezes...
não venho de ti?! De onde vim, da casca do ovo?
viver assim de lança em riste, de raspão,
eu peço pão e me dás pedra?
por Deus do céu não sou filho do Miguel,
somos da tribo de Jacó, eu vim de ti, de minha avó,
indelicado pai, que me deste uma madrasta de pedra.
tuas palavras são mais secas que as pernas de uma garça
e à noite, terrivelmente amargo, tudo se apaga-,
e o meu sangue sai em busca de morcegos.

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ácidas rimas

no melhor momento de criança


chegou esta mudança, este áspero destino:
sexâmulo, madrasta chegou trazendo berço e túmulo
e em vez de estímulo, deixou-me trêmulo, tornei-me um pêndulo,
não tenho vínculo, sempre ridículo e já incrédulo, fiquei sonâmbulo,
sou um preâmbulo, sou um corpúsculo, um i minúsculo e meu
vocábulo,
só tem versículo; tudo é coágulo, um mau currículo, e não escapo
de seus
tentáculos, por sustentáculo tive uma pedra e um oráculo quebrou
a pedra,
se eu fosse Rômulo, fundava Roma, mas sou LASANA, fiz um poema,
um espetáculo em tom acídulo.

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influências literárias

mater semper certa est,


pater autem incertus.

nunca soube quem foi meu pai de verdade,


o do registro de nascimento assumiu,
DNA não funciona em musas,
mas que importa,
o céu tem mil estrelas
e às obras públicas aparecem tantos pais...
creio vim de sete infernos,
ao nascer, nas minhas frontes,
veio a garça e pôs o ovo todo azul-esverdeado,
rio e mar ao mesmo tempo, tempestade
com bonança...
nunca quis ser outro,
mas quem vem de sete ventos
e tratado a sete pedras,
sete vezes numa cruz,
tem na veia sete nomes:
uns me chamam de poeta,
outros, filho das ervas.
nunca soube quem foi meu pai
e também a minha mãe,
fui trocado na maternidade;
a certeza- além da morte-,
é que LASANA LUKATA
nasceu da poesia.

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loucos de Bedlam

o mar não tolera vestígios


Herman Melville

poemas de tijolo não deixam vestígios,


poemas de pedra atravessam séculos...
Pirâmides do Egito, Partenon de Atenas,
meu pai pedreiro empregou pedra em minha construção,
para suporte, acabamento, proteção trouxe madrasta,
veio revestir de pedras minha frágil infância, Proteu que
sempre se altera.
meu pai dizia esse menino das águas, de peixes,
não vai deixar vestígios, ele precisa se firmar...
e como o asfalto e o concreto tocado pelas pedras,
meu pai me trouxe um diamante como os loucos
de Bedlam.

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DOMIN-ó

meu futuro foi um diamante.


minha vida um jogo de pedras.
madrasta, três filhos, meu pai e eu,
aos sábados, jogávamos dominó
e um dia o destino me deu uma pedra:
Quina de Ás.
eu, que sempre fui panorâmico,
vi a mesa de pedra retangular
e madrasta sentada numa ponta,
rodeada por seus três filhos e meu pai,
formavam uma quina,
um conjunto de seres
de igual natureza,
da mesma espécie,
bastante cruel,
buquê de pedras,
redonda histeria,
terror.
um buquê de pedras também murcha,
também perde seus espinhos.
madrasta no centro de tudo,
tinha nome de pedra,
trazia no dedo anel buquê
com pedras coloridas;
meu pai, pedreiro,
que foi meu amigo,
tinha mãos e olhos de pedra;

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três filhos, estilhaços de pedra,
e na outra ponta da mesa, eu,
o número diferente, o sozinho,
a solidão.

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chamada, número 6

madrasta não me dava comida,


a professora sabendo que eu era
mal alimentado fazia a chamada,
número seis? Presente!
a professora notava olhar perdido,
eu presente só de boca.
a professora passou a sortear
um sanduíche com bife à milanesa,
ovo e alface e só saía o número 6.
mais tarde disse a empregada dela
que no saco só havia o número 6.
o número 6 começou a aparecer
nas seis partes da marmita desmontável
de meu pai, que à noite eu lavava.
fiz amizade com o número 6;
disseram que em vez de 14,
eu nasci em 6 de março,
tinha queda para artista,
comemoro as duas datas.
cresci, joguei no bicho, número 6!
perdi!
desconfiei do número 6.
na numerologia o 6 família,
arte, união, para mim, separação...
na pedra de dominó o 6:
quina de às.

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Quina de Ás

sou metade de pedra de dominó,


marcada com um ponto só...
na outra metade,
três já voltaram ao pó.
não falo por gozo,
mas com dó.

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a oitava pedra

madrasta sempre tinha a pedra mais alta;


colocava suas pedras na mesa
antes de todos;
madrasta me tinha por adversário,
nunca fez um bolo de aniversário.
recebi sete pedras, sete perdas...
recebi sete pedras e a pedra
que não esperava, a oitava pedra,
madrasta, pedra dobrada,
atravessada em meu caminho,
a feiticeira de sete catacumbas
no cemitério...
soprava um pó cinza em todo mundo.
perdi várias partidas para a morte.

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garça cinza

a Base Naval teve o aval,


de si mesma,
para empedrar o mar...

e a engenharia devolveu as pedras para Netuno


que na próxima fúria lançará todas sobre a terra,
é a guerra, esse entredizimar-se...

a Marinha empedrava o mar,


madrasta empedrava minha vida
com palavras duras,
já tinha empedrado meu pai,
que trouxe a pedra que o empedrou,
e fui dando território à amargura,
aderindo a esse modo penhascal,
um navio navegando às obscuras,
tropeçando no seu trágico destino.
como pode um diamante
num fluir de luz escura?
da pedreira veio a pedra mais dura,
a melancolia me deu a pedra mais cinza...
e a minha infância foi cinzenta
até à infância dos cinquenta
e não consigo renascer das cinzas.
quando madrasta chegou, cai no abismo
e estou caindo até agora,
eternamente me devora...

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estava prestes a vestir o cinza,
mas madrasta era Medeia feiticeira,
sob tonteira minha boca pediu baixa,
mas meus olhos não diziam a mesma coisa
e não tive ninguém que me ajudasse
e partimos para a quebra do contrato.

a Marinha empedrava o mar... o mar cinza.


com ondas duras,
quantas pedras dissolvera em tuas águas...
me ajuda a dissolver a minha pedra!

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pó de pedra

mar tombador...
com seu pó cinza,
cor de pedra,
que soprava pelas costas
e parecia uma pedrada,
madrasta,
feiticeira como Circe,
como Medeia,
tombou a garça,
tombou minha mãe,
tombou meu pai,
tombou a mim
os seus amantes,
os inquilinos;
só não tombou
Pai, Filho, Espírito Santo
que para tanto se precaveram,
usando Pedro e esta pedra
não a deixou entrar no céu
com seu pó cinza.

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BERLI-m

a guerra dentro de casa,


o piso em caquinhos,
perfurar a garça não pôde
aquele Muro de Berlim
erguido pelo próprio pai pedreiro
a mando da madrasta Medeia
engenheira da ideia
arquiteta do furor
sem revestimento e pintura
apenas chapiscado
brutais separações
BERLI-m
concreto dentro de mim

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ICARA-í

minha família tinha seis letras,


mas nunca teve seis litros.
cinco comiam carne, uma só ovos fritos;
cinco ouviam sonatas, uma vivia aos gritos;
cinco na unidade, uma de modo proscrito.
minha família tinha seis letras,
mas nunca teve seis litros,
nunca teve seis lotes,
nunca teve seis lastros,
nunca subiu aos astros,
cinco pensando em si,
nunca pensava noutros,
sempre ficavam neutras.
minha família tinha seis letras,
mas nunca teve seis litros.
uma quebrando a cabeça, cinco com gabaritos.
cantava a sílaba o seu áspero desprezo.

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mantenha a distância

lua minguante
unha cintilante
da madrasta
metáfora gasta
meia palavra basta
causa dor
me afasta
me aplasta
me agelasta
me devasta
pego a pasta
e escrevo
a tragédia
do menino
e a liberdade
limitada pela pedra.

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madrastio

forte chuva, de um alto muro


caiu um pintinho no quintal onde eu trabalhava.
piando como quem pela chama a mãe,
não apareceu.
após a chuva um morador o acolheu
e o levou para junto de suas criações.
o pintinho andava alegremente com os outros filhotes,
entanto a galinha esticando o pescoço,
olhou, olho e o bicou;
o galo olhou, olhou e o bicou...
e não eram bicadas, mas pedradas,
todos riam e eu me arrepiava
a cada bicada,
não sobreviveria,
aquele pintinho era eu...
manteve-se distante,
embaixo do sofá.
eu que lhe arrumara o madrastio-
levei-o de volta-,
achamos a mãe.

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5º Oficio

madrasta não contava histórias


na hora de dormir,
dizia realidades na hora de levantar,
que estava tudo em seu nome,
até um palito de fósforo
na casa era seu;

quando meu pai saía,


corria à minha cama
com cara de hospício
e dizia, levanta,
está vendo isso aqui?
é do 5º Oficio!

eu não tive livros infantis,


nem gibis;
meu livro infantil

era aquele documento do 5º Ofício,

todo dia esfregado no meu rosto


e não dava armistício,
em vez de alegrar,
amedrontava.

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na fase dos porquês
e madrasta não respondia
o que era o 5º Ofício;

passei a ter medo do 5º Ofício,


meus amigos temiam o escuro
e meu fantasma era o 5º Ofício,
o trauma do 5º Ofício;

se um filme falasse em 5º Pelotão,


que o sol era estrela de 5ª grandeza,
na cabeça me vinha o 5º Ofício,
perseguido pelo 5º Ofício
como um poeta perturbado por um verso;

o 5º Ofício atirava?
o 5º Ofício queimava?
eu já ouvia falar do Santo Ofício...

e o 5º Ofício andava nos telhados,


5º Ofício forçava a janela,
5º Ofício comia meus biscoitos,
5º Ofício riscava meus cadernos,
5º Ofício cortava minhas asas...
e meu pai abaixava a cabeça
para o 5º Ofício.

hoje embarco no ônibus


em frente ao 5º Ofício
e é só um cartório
que levou os meus bens,
mas cá por dentro

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ainda treme o menino
com suas taquicardias.

e o prezado leitor fica sabendo


que até uma sílaba, a mínima letra
neste poema é meu,
registrado em Cartório
do 5º Ofício.

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o gênio da poesia

no princípio música, pintura, poesia


disputavam minha mão direita.
um dia mamãe me levou à sua tia.
minha avó foi musicista e esta tia musicista
me pegou na mão direita, abriu a porta de
uma sala e falou para escolher.
havia vários instrumentos, entre eles o piano,
um trompete, um trombone, um xilofone, tinha
sax, violino, o olhar assim passando, demorou no violino
e ela disse já é seu, mas eu não tinha cinco anos,
e, na espera, a família, a orquestra, dispersou-se: o trombone
para um lado, o piano para outro, clarineta para longe, o pistão
emudeceu e não me deram o violino,
não me deram o que eu quis e queria muitas coisas,
ser humano integral.
e ficaram a pintura e a poesia disputando a mão direita.
a poesia sabia, de prelúdio,
que o nome Cláudio continha a palavra áudio,
a poesia, antes de Picasso, deu um passo,
fez palavras requebrarem as cadeiras nos ouvidos.
a pintura, silenciosa, exibia seus azuis, mas,
mãos aladas, mãos atadas,
a poesia tinha o gênio de madrasta que varria meus poemas
e varrendo as pedras do céu, com seu olhar esmagador,
um dia disse: você é meu!
se não for meu, não será de mais ninguém!

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à perna

madrasta me tinha à perna,


carregou-me a vida inteira
na barriga da perna
e não me deixava nascer para nada.
cheguei a nascer para o mar, para os sete mares,
mas sempre sob sete miras, ela erguendo sete muros,
os ventres das águas me vomitaram
por ordem e feitiço de madrasta,
salgada garça que expulsa a mãe e mata o filhote,
não me deixava nascer para nada...
deixei de nascer para muita gente,
eu ainda não nasci para muitas coisas,
eu ainda não nasci para o amor...
e se nasci, sou natimorto
que fica no porto dizendo poemas.
ondas cuspindo no cais,
esculpindo pedras,
a boia verde, à noite, acende
uma obscura esperança.

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pequena sílaba

o i em ICARA-í, esmilinguido, sou eu.


na minha infância, ao meu lado,
só tive sílabas fatais e nada mais.
eu fui a pequena sílaba
cravejada de desprezo,
a sílaba exilada, a ser eliminada,
ofendia o ritmo,
mas foi dela que um dia
dependeu toda a família
e ela estava lá.

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falsa crase

madrasta, falsa crase,


mesmo não sendo obrigatória
ela estava ali, espetando,
craseando o ì como um raio
e quando cresci se não saio,
teria traído, nos contraídos,
duas vogais numa só vogal,
reduzido meu papel de filho
ao de amante.

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Papai Noel

sobre a cama três camisas e éramos quatro.


Papai Noel se esqueceu de mim...
mas de tanto insistir,
Papai Noel -domado pela madrasta-,
me deu uma nova cicatriz.

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inoportuno

na escuridão marítima
cego apoio-me na garça
vou com suas pernas
o coração aberto como uma ferida
sem rota
anda pelo mar
este grito que não tem onde atracar

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distanciamento crítico
projetaria madrasta numa pedra,
se eu fosse pedreiro-,
porque depenava a liberdade à pedradas;

projetaria madrasta numa espada,


se eu fosse ferreiro-,
cortava todas as minhas conversas
e planos com meu pai;

projetaria madrasta numa estátua,


se eu fosse escultor-,
estátua buscando status,
neste mundo de Pilatos,

mas meu pai disse vai ser poeta...


e hoje projeto madrasta
todos os dias num poema.

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educação pela perda
minha infância amarga, agitada, cadavérica,
tropeçou na guerra de um lar:
meu pai no quarto, madrasta na sala, mesoclítica,
e minha mãe entrincheirada na cozinha...

minha infância não passou pela linguagem das cores,


seu colorido sólido foram bolhas de sabão,
infância albina, inesperada, sem caminho.

o mar, ondas obcecadas por alturas,


céu inquieto, estrelas nubladas,
não tive beijos de madrasta;
o sol uma tristeza amarela,
a luz não dava um passo,
a manhã se abria cinza;

pastor de remadas selvagens,


nada me disse o mar
e assomavam palavras com as faces terrosas,
aprendi a voar com as garças,
a pedra nada me quis ensinar.
tive educação pela perda.
por assim dizer, Rosa dos Ventos,
vínhamos no mar como um tritongo,
lentamente pela rota que nos deste,
por um único caminho,
meu pai, minha mãe e eu
e a tempestade separou os três navios,
nunca mais nos encontramos,
a não ser por cicatrizes.

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essa nota de tristeza
à Jéssica Iancoski

a noite tem os seus vivos, tem os seus uivos.


de dia o cemitério perde a força,
percebo que a caça é manca e desanimo.
minha flor já dá sinais de cansaço,
já em vias de secar...
vejo árvores inquietas,
ramos barbeados pelo outono
e a garça dar grandes passos...
pôr seu ovo azul-esverdeado,
entre o medo e a ira,
o coração ensimesmado como um repolho
sonha aberturas.
quisera ser barco, livrar-me das águas e voar com as aves,
ser como a urze que o outono não fere.
projetamos cores suaves e o vermelho-fogo nos ataca.
o que me espeta foi a garça que perdi,
o que me espanta é a garça do porvir:
será grande? será pequena?
será branca? será morena?
fingirá uma brancura?
cantares de pássaros não cobrem essa nota de tristeza,
essa falta de certeza,
esse grito imolado oferecido ao silêncio.
sou um cemitério sobre duas pernas.
ela diz que não... mas não me prova...
vai deixar-me a marca de Dante e Petrarca,

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a mesma marca de minha mãe e de madrasta
e com um pé que arrasta todo o peso da esperança,
sou como um cão no inverno,
encostado às cinzas do que foi...
a ferida ainda dói no cadáver.
o esqueleto tem a fome da carne.

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versículo

das pedras Deus pode suscitar filhos...


mas da pedra não pude suscitar mãe,
eu não sou Deus.

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pedreira

explorei uma pedreira


para atender as necessidades do poema
e fui mordido pela pedra...
o desprezo me agarrou pela garganta.

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garça

perna encolhida,
nem terra;

asas fechadas,
nem céu;

pescoço em S.
nem ser.

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cantigas de minar

para Lírian Tabosa


e Gabriela Mistral

todo bien tuviste


al tenerme a mí
(Me tuviste, Gabriela Mistral)

sereias dos navios chamando para o mar,


esse lugar retirado para acalanto,
para um canto paralelo,
penduro minha infância no horizonte.
o contratorpedeiro embalado pelas ondas
logo estaria a caminho das Índias para desmanche,
do beliche eu ouvia a melancolia, nitidamente, em rumorejos,
roxa voz, lá fora, batendo, querendo entrar e entrava...
de onde vinha?
sublinha,
o balanço do navio
é o berço-barco balançando,
barco sem defensa e à deriva,
ninguém para salvá-lo,
com um som ora grave, ora estridente,o
menino a herniar-se no universo,
madrasta, porto sem cabeço, entrando no quarto
para tripular um navio de guerra.
para me fazer adormecer,
acorrentava-me ao seio,

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braços salgados e frios
como correntes de âncoras
e num marítimo vaivém,
ia cantando, na surdina,
para ninguém ouvir,
cantigas de minar.
suas ameaças não eram fraudulentas,
todas se cumpriram,
tornei-me um menino vidroso,
Adernaldo, adernado,
a espatifar-se contra as pedras...
uma língua tão sonora
e usada como espora.
antigas cantigas,
tremura às cantigas de minar.
nada dispersa essas garças-da-noite
que à maneira de rebanho
se uniram no meu peito,
se meus primeiros sons
não foram bons,
hoje a penejar,
na cadeira de balanço,
a felicidade do poema
para você que não teve filhos
e eu que não tive mãe.

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lobo sem amor

“E meu coração visitado por


uma estranha vogal”
Saint-John Perse

o i é cinza como um navio de guerra,


estreito como um contratorpedeiro,
o i filho de pedreiro,
sombrio como um bagre,
teve infância de tigre,
encapelada,
emparedaram-lhe as ondas,
vogal fechada, estranha,
essa vogal que me acompanha,
impedida de se exteriorizar,
que não beija nem abraça,
solta grunhidos de cão,
agressivo como um lobo,
só se permite viver
sob o poder da poesia.

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sob o poder da poesia

“puede conservar-se un buen


recuerdo de la peor familia,
siempre que se tenga un
alma sensible”
Los hermanos Karamazov

e sobre a garça tempestades...


ludicamente cai a chuva,
brilham penachos de santelmo,
então invoco minha infância,
o poder da poesia adultera o passado
de um vice-morto que se arrasta
pelos conveses do poema,
ferido por palavras...
da verdadeira infância que se teve,
lucidamente o fruto amargo,
o desfecho uma vogal fechada,
agressiva como a garça, transverbera,
alma insensível...
cedo arrancaram as rodinhas extras da bicicleta
e caí, estou caindo até agora, abismos...
se não há boas recordações em ti, terra,
brutalmente, madrasta, o desprezo, a infância ácida,
me prepararam para o mar, o reduzir as luzes,
navegação às escuras,
abibliotecando meus cadáveres.

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maresias

após o naufrágio
minhas poesias
todas doentias
exalam maresias
e nos destroços,
somente nos destroços,
reconheço minha infância.

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conciso

o poeta no supermercado
empurra um carrinho vazio
entre gôndolas verdes
na esperança de que ao menos uma
faça bem aventurada
porém obediente aos tempos difíceis
o poeta não esbanja economiza
e sem ser avarento
vai empurrando o carrinho vazio
atropelando a lógica
sentindo a emoção e a força
de empurrar o vazio
este substantivo abstrato
tão concreto dentro de mim

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tortura
à memória de Emílio Pacheco

tartaruguinhas têm até à praia


um caminho tortuoso.
muitas ficarão sem mar...
tendo as patas já torcidas
e também recém-nascidas,
as torturam gaivotas,
as retorcem oito braços...
quem em seus primeiros passos
se esquece do abismo,
sai ileso das bicadas?
família... tudo para ser pilar
e foi pilão.

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doador de órgãos

sempre me perguntaram por que não era doador de órgãos,


por que eu não era solidário...
e agora respondo: a cigarra se nutre da seiva da planta,
assim como a criança se alimenta da árvore genealógica.
e quem vai querer este cérebro ferido desde os cinco anos?
o coração traído desde os cinco anos?
decepcionados olhos desde os cinco anos?
pela melancolia o fígado roído desde os cinco anos?
se desde os cinco anos os rins filtraram pedras?
não posso fazer filhos, transmitir meus machucados,
ser parceiro de ruínas, depositário de asperezas,
família de naufrágios;
nem posso me firmar para sair dos meus abismos
se há lodo sob os pés do meu lázaro interno.
o medo amputa meus sentidos,
a voz não passa nos ouvidos.
sempre me perguntaram por que não era doador de órgãos,
por que eu não era solidário...
e agora pergunto: quem vai querer meus olhos de outono
desde os cinco em abandono?
se a amargura flui por meus órgãos,
transparente como as asas da cigarra?
meus olhos, rins, fígado, coração a contraluz
são destroços de um naufrágio.

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Diamantina

não tente adivinhar a minha infância...


extintos os foguistas dos navios-carvoeiros,
nem tudo está arrumado
e posto à feição do leitor.
não tenho transparências de aquários.
catador de escorpiões na olaria
em que meus tios trabalhavam,
oriundo de família de pedreiros,
fui tratado à tijoladas.
há obras que requerem o fogo.
como pode o diamante descender do fogo ser tão frio?
meu sangue queima como álcool e querosene.
é justa a emoção petrificada,
traduzida, a linguagem endurecida,
sem fogo de artifício.
sim, no bater das pedras surge o fogo,
vivi entre dois fogos
e só aos cinquenta anos,
olhando o mar, a garça,
o voo empedrado,
percebi no horizonte
que tive um pai pedreiro,
que arrumou uma mulher
com nome de pedra
e tive a vida dura.

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palavras sem calor

ela surgiu,
comia pão empedrado,
choviam pedras no telhado,
anunciando aquela dura chegada.

na porta, eu menino, peito aberto,


ardente, caloroso
e ela acolhimento glacial.

por toda minha jornada


foi a pedra mais sombria,
em sua veias não se via
o frio sangue das serpentes.
que deus a colocou em meu caminho
me reduzindo a nada?

as pedras dos olhos pouco se moviam,


apesar da tragédia,
não me estava morta a veia do humor,
estive a ponto de desfigurá-la com uma sátira,
preferi a ironia...

na escola
por vezes chamado à pedra
para escrever com giz
o que foi escrito a fogo.

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na universidade me aconselharam
a deixá-la porque tinha nome de pedra
e era pedra em todos os sentidos.

há pedras que se formam nos rins, bexiga,


vesícula, coração...
as pedras se empregam nos edifícios, muros, calçadas
e poemas.

madrasta- pedra de amolar-,


onde afiei todos os meus versos.

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perversidade

meia-noite...
segundo a segundo,
o som do ponteiro do relógio
é como a enxada que capina,
por ordem divina da madrasta,
dois terrenos 12 x 36,
os dois de uma vez.
o enxadeiro, um menino, franzino,
de espírito forte.
em vez de armistício,
madrasta lhe dá armistrondo
e seus versos perversos vai compondo
entre uma ferida e outra.
a propriedade dos terrenos 12 x 36,
contestada na justiça por madrasta,
uma partilha sem critério
punha tudo em nome dela
e o juiz era o meu pai.
até um palito de fósforo nesta casa é meu!
desde então à meia-noite,
segundo a segundo,
o som do ponteiro do relógio
é como a enxada que capina
e pesado como um pássaro
que chegou da tempestade,
o menino cedo levanta,
para capinar o abismo

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do nascimento das pedras

Atenas nasceu da dor de cabeça de Zeus,


minha madrasta veio de Netuno,
que num acesso de raiva,
arrojando contras as rochas o tridente,
disse: haja pedras!
e nasceu Diamantina, que voando,
as pedras voaram majoradas distâncias,
foi cair na cama de meu pai,
esmagando minha mãe,
com olhos de diamante,
a lágrima fria.

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máscara verde

madrasta, pedra verde.


nem esmeralda, nem turmalina: Diamantina.
pedra revestida com o manto da verdura
que encobre e dissimula;
pedra com musgo
hidratado pelas minhas lágrimas...
que epitáfio escreveria nesta pedra?
Fernão Dias, “Caçador de Esmeraldas”
se enganou com as turmalinas,
morreu e era outono,
nem no outono as máscaras caem;
Lukata igualmente caçador,
de um passado que só cabe no poema,
caça outra pedra verde,
pedra em pele de esperança.
escorregadia esperança.

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peixe-pedra

mergulhei profundamente
e vi um peixe parecendo pedra
e era peixe;
madrasta parecendo humana
e era pedra.
quando olhei madrasta
uma voz, aos cinco anos, me disse:
está vendo este nome?
atrás deste nome tem outro nome,
é este o nome: Diamantina.
e no fundo do guarda-roupa,
descobri o nome exato de madrasta.

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o nome exato de madrasta

madrasta era de gêmeos,


duas caras,
uma de flor, outra de pedra,
uma de helena, outra de Fedra,
simulava o que não era,
dissimulava o que era.
à superfície da vida chamava-se Dália,
no fundo do guarda-roupa era Diamantina.
duas caras, duas certidões de nascimento,
registrada em Três Rios, registrou-se em Botafogo
com ajuda da patroa pôs-se um nome de proa, que esboroa;
dizia-se Dália e era Diamantina!
(eu sei por que os diamantes nunca me atraíram)
o nome Dália se despetalava, vazio de sentido,
só tinha sonoridade, na palavra Diamantina
a concretude, o nome mais puro, mais secreto,
o arquétipo no fundo do guarda-roupa, essência revelada,
pela linguagem, pela palavra: Diamantina.
pedra.

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em busca do poema escondido

havia um poema escondido no guarda-roupa,


havia um poema escondido na pasta de cartolina
cor de pedra, dentro do guarda-roupa,
havia um poema na certidão de nascimento,
naquele nome, nome de pedra,
o exato nome de madrasta,
encontrei a peste numa pasta,
caçando num bosque de roupas,
no alto daquele morro,
brincando de pique esconde,
sob súbitas rajadas de desprezo;
muitos convertem palavras em pedras,
duro depender da aspereza,
converter pedras em palavras,
escrever na pedra com plumas de garça,
uns escrevem no papel, outros no computador,
escrevo na pedra com o meu sangue,
triste do poema que começa com uma pedra...
nunca sabemos onde se escondem os poemas.
como o mar tem seus desertos,
os poemas também saem dos armários,
LASANA LUKATA é poeta caçador.
no Morro da Caixa d’Água,
eu era o menino que aguardava flores,
e o morro, sob chuvas, só exteriorizava pedras...
para uns pés descalços,
abaixo do limite do humano,

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quando descobri o exato nome de madrasta: Diamantina.
e mãos de pedra iam à frente, com penachos,
chefiando meus destroços para os poemas, poemas de pedra,
poemas das duras coisas, de enorme rigidez,
as mãos de pedra do destino.
não... não esconda o rosto do meu poema,
dessa infância chapiscada,
seja amigo dos defuntos, dos defuntos indigentes,
fui o albatroz que dormiu durante o voo e bateu no iceberg,
fui o ovo abandonado às pisaduras dos selvagens,
a vogal débil, sombria, estridente, exilada;
eu era apenas um menino de rios, lagos e mares;
entre garças, não imaginava extrair poesia da pedra,
desse nódulo, do sílex, ser poeta da pedra;
queria a Via láctea, poeira de estrelas,
brilhar com os vaga-lumes...
escapava-me o pesado voo da garça
que tem o peso da espada e da guerra.
entrei em contato com a pedra aos sete anos,
desde os cinco já sofria...
o poeta deve encontrar os poemas escondidos,
deve contar com os olhos fechados,
mas eu mantive os olhos abertos para a poesia,
saber onde se escondia...
dela meu rosto não se esconde,
ainda que nascida de um trauma,
de um naufrágio, da amputada existência...
perdido no mar- anseio por tua floração-,
em teu aquário.

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guarda-roupa

no guarda-roupa
ao descobrir na pasta
o nome de madrasta
seu verdadeiro nome
ela arregalou os olhos
como dois escolhos
como dois abrolhos
depois ficou irônica
dizendo Diamantino
me reduziu pra Tino
e do seu ponto de vista
a pedra era eu

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Direito de Família

vedada a duplicidade,
não podem subsistir
dois registros de nascimento
de uma mesma pessoa,
mediante fraude;
cancela um deles,
prevalece o mais antigo,
o nome dela é Diamantina.
não expõe ao ridículo,
há muitas Diamantinas no país
e no mundo,
o nome dela é Diamantina
corresponde ao que ela é,
coração duro, coração de pedra,
Juiz quebrou esta pedra hoje.

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passeio escolar

a escola nos levou à Quinta da Boa Vista


onde tudo era feroz;
à fábrica de sorvete onde tudo era frio;
à pedreira onde tudo era pedra:
pedras voando, pedras bebendo água,
pedras sobre pedras
e o trenzinho público transportando alunos.
o passeio da pedreira terminaria
na oficina de escultura,
aprender a esculpir na pedra...
a pedreira era uma úlcera
e conforme sucediam as explosões,
como olhos que se projetam das órbitas,
o rosto de madrasta projetava-se das pedras

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Agamenon

na arrebentação
a pedra aguda
golpeei com meus versos
esculpindo madrasta
barbeando espumas
até encontrar sua cara verdadeira

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duro poema

menino,
este jardim empedernido,
este duro poema,
não nasceste alfazema
para te adaptares às pedras...
foge das perdas!

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sons

na sala de aula
a professora ensinava as sílabas
com o sibilante som dos lábios;
em casa, madrasta,
com o sibilante som do chicote.

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tatuagem

hoje os nomes dos filhos


tatuados nas costas, nos braços,
nas cinturas, mas na noite
em que dormias
e a tatuagem não era crime,
percorri todo o teu corpo,
abri tua virilha,
havia outro nome
e não era nem meu pai,
mas a garça abrindo as asas,
lá estava o meu nome,
levando um nome triste
- o seu voo era pesado

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fachadas

lua cheia,
a garça muda de cor,
visão binocular,
vejo a vida por dez furos...
as caspas do tijolo caindo
do blusão escuro do passado.
o que era não era...
vejo a vida por dez furos,
meu pai, mestre das fachadas,
revestia os muros
com azulejos decorados,
casca-de-ovo,
azul-esverdeados,
como estive enganado...
meu pai ergueu os muros,
madrasta fez a massa,
estiveram sempre juntos,
e com apenas cinco anos,
sendo filho de Netuno,
destruí minha mãe,
esfregando dois tijolos
na presença do juiz
e em seguida a defensora
com a voz de tesoura,
mutilou minha mãe:
você destruiu seu filho!

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palinódia

não tive o calor de mãe


nem de madrasta,
uma era pilastra,
a outra, pedra fria.

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dia das mães

no dia das mães,


não havia dinheiro para dar uma rosa
para a minha madrasta.
na escola custava um e cinquenta,
meu pai desempregado...
na rua da escola,
por cima do muro,
fugia uma rosa repolhuda
e meu amigo fez cadeirinha,
ergueu-me, subi feliz
e desci triste:
a rosa desfez-se.
era noite.
por chegar tarde
apanhei, sem contar
que buscava uma rosa para ela.
cinquenta anos depois,
no sofá me perguntei:
a rosa despetalou-se
por saber quem era minha madrasta?!

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goiaba amarela

entre minúsculas goiabas verdes


de interior vermelho,
brilhava uma grande goiaba amarela,
amarelo-monje, amarelo chinês...
como crescera ninguém sabe,
apareceu da noite para o dia,
ah esses crescimentos da noite para o dia...
imperava no topo da goiabeira,
madrasta vendo disse é minha!
queria a goiaba amarela,
mas não estava liberta dos bens materiais,
tomou a casa do meu pai e me pôs na rua...
com olhar imperador me mandou pegá-la,
fiquei fascinado,
mas ao mais suave toque dos meus dedos
a goiaba desfez-se em águas,
eram as chuvas de março;
a polpa albina, esbranquiçada, madrasta frustrada
e meu coração considerando a recusa da goiaba...
a goiaba desfez-se por saber quem era minha madrasta?

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as surpresas da reforma

por necessidade?
não...por vontade meu pai pedreiro
iniciou a reforma da casa.
arrancou janelas de cedro-cheiroso,
colocou janelas de ferro
e eu vendo o naufrágio...
arrancou minha mãe, colocou a madrasta,
sem protocolos, quebrou as paredes, anosos tijolos
e eu vendo o naufrágio...
a reforma começou por minha mãe
naquele inútil ambiente para mim, para sempre,
a sílaba demolida, num eterno naufrágio...
pai, a casa é sua, a decoração é sua,
amadureça o projeto, pare a quebradeira,
desmonte os andaimes...
é tanto barulho, poeira, entulho,
cuidado com as surpresas da reforma,
o desgaste da ferramenta nas arestas desta pedra...
não há vazamento atrás da parede do chuveiro,
a parede chora, o chuveiro chora, há túnel que chora...
pai, não estava combinado tirar os ninhos dos beirais,
demolir a minha infância.

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drama incomum

“...por que só em meu peito


Então nunca dorme este espinho?”
Friedrich Hölderlin

ventos sopravam entristecidos,


as algas levemente líricas,
garça, pescoço a elevar-se.
meninos miravam a inconstante,
entesada lira do horizonte
e o egoísta queixava-se ao mar,
todas as tardes, sem voz,
pensava-se a única sílaba separada,
o único hiato,
sem saber que o empuxo nasce
do abismo
e a linguagem tropeça nos navios.

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a profetisa
sentado numa pedra
uma mulher me disse:
ei você aí da barbicha,
você é um homem trabalhador,
homem honesto, de família,
mas a sua vida é assim,
um pra frente, dois pra trás,
um pra frente, dois pra trás,
(a profetisa dramatizava os passos)
é uma mulher na sua vida,
pensei na ex, não é essa não!
é mais antiga,
pensei madrasta,
é essa aí que você pensou agora,
ela fez um trabalho
para você ter problemas financeiros
para o resto da sua vida,
por isso a sua vida é
um pra frente, dois pra trás,
um pra frente, dois pra trás...
ela tem o coração duro,
coração de pedra,
está doente e não sabe
e os espíritos não falam para ela,
quando ela deitar não se levanta mais,
Jesus quebrou esta pedra hoje.
nova, muito nova,
morreu em sete dias.
Cristo carpinteiro
fez serviço de pedreiro.

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Às de Espadas
um pra frente, dois pra trás,
um pra frente dois pra trás,
madrasta mesmo morta
ainda corta meus caminhos...
e os meus passos, fracassos,
um pra frente, dois pra trás,
um pra frente, dois pra trás;
madrasta fez feitiço
para eu ter problemas financeiros
para o resto da minha vida,
um pra frente, dois pra trás,
um pra frente, dois pra trás;
serei eterno Ás solitário numa pedra?
esperando um Ás de Copas
me responde o Ás de Espadas,
numa carta com a morte.

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mágoa

para calafetar a mágoa


eu tinha estopa,
tinha pano,
tinha papel,
tinha versos em metáforas
e também a poesia
endurecida pelo “como”

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pedra de granizo

madrasta morta, meu pai chorando


disse, fui comprar gás, ali tão perto,
do outro lado da esquina,
quando voltei estava gelada!
não pai, não se aparte o pensamento,
madrasta sempre foi gelada,
recusou meus quentes beijos,
meus incêndios de menino,
madrasta sempre foi gelada
e o frio sangue se extingue,
madrasta era unilíngue,
o idioma da frieza,
o seu rosto era de pedra,
uma severa tempestade.

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salaminho

hoje, sexta-feira,
comendo salaminho me veio este poema:
meu pai era meu amigo,
andávamos juntos para cima e para baixo.
analfabeto não sabia usar a caneta,
mas na bolsa de ferramentas levava
a caneta-diamante para cortar pisos,
azulejos e eu ficava olhando o diamante,
friamente, separando o que estava unido.
o diamante frio, o salaminho comido frio,
dessas friezas cortantes veio o poema;
conheci o verbo cortar
no seu sentido mais terrível muito cedo...
e eu era vidroso como meu pai.
toda sexta-feira chegava do trabalho
e íamos à barraca do Seu Rafael;
lá, eu pequeno, perguntava-me:
o que é que você quer?!
ele já sabia que eu ergueria os olhos
para os salaminhos pendurados.
pegava-me no colo e eu puxava um...
mas quando madrasta chegou,
meu pai se tornou meu inimigo;
brincando no guarda-roupa descobri,
ela possuía duas certidões de nascimento,
seu verdadeiro nome Diamantina-,
a implacável pedra que nos separou.

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ao pó tornarás

meu pai pedreiro voltou ao pó...


não fiquei só.
quando encosto em muro chapiscado, pergunto:
pai, é o senhor com sua eterna aspereza?!

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tarde atijolada
o pai pedreiro
trabalha no céu

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ao leitor

venho de uma família de pedreiros...


meu pai levantava casas para os outros,
de segunda a sábado regendo aquela orquestra
de sons desagradáveis com marretas, ponteiros, talhadeiras
e no domingo serrávamos a melancolia, as tábuas para o nosso
barracão;
no serra-serra mostrava meninas me olhando
e, como ostra que copula com o rochedo,
subia-me às narinas uma influência de flor abraçada ao serrote.
meu pai levantava casas para os outros,
levantava por cima de tudo a afirmação pela vida.
por necessidade estivemos em consonância com as pedras,
rodando de verso em verso até perdermos as pontas,
os instintos sem reflexão.
meu pai amava as letras,
mas meu avô não permitiu esses namoros,
só comigo veio o espanto da escrita.
venho de uma família de analfabetos,
de tempos apagados,
dessa pétrea desilusão,
não sei o que erguemos no passado,
o que derrubamos,
se quebramos estátuas buscando status,
se levantamos paredes ao redor de jardins,
se erigimos o muro da caverna de Platão,
à espera do reboco, grosso e fino, sou um muro
que murmura, chapiscado, insatisfeito.

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já estivemos a caminho do desmanche, da ruína, como
um navio;
sobrevoaram-nos corujas, garças, pousaram, nidificaram.
às vezes é preciso derrubar-se, passar pela loucura, nascer-
se outro,
levantar-se dos escombros como Nabucodonosor...
Cristo derrubou-se em três dias,
meu pai levantava casas em dois meses,
meu pai levantava casas para os outros,
podava pedras, metal, ferro para os outros,
para os outros não ficava uma aresta,
a nós a fresta onde entrava o vento frio
e saía a poesia... da nossa mundologia
ficou a lição - meu pai levantava casas para os outros-,
eu construo versos com você,
claros como um trompete, escuros como violinos,
eis a linguagem.
e que Netuno em raiva, com tridente, já não diga: haja pedras.

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andaimaria

para quem trabalha nas alturas


a existência é esse monta e desmonta,
cá embaixo nada é muito diferente:
temos a estrutura temporária dos andaimes.
as substâncias da minha infância
foram pedra, areia, cimento...
morávamos nos fundos de uma loja
de material de construção, vizinhos compravam
para levantarem casas;
eu ficava perguntando se havia loja de material
para construção de um poema, levaram-me à escola,
como andaime que cresce rente à superfície da edificação,
colocaram-me para crescer junto das palavras.
vindo de uma família de pedreiros,
a palavra andaime andava muito lá em casa.
andei por vários, meu pai mostrando as obras que fazia,
pisos antiderrapantes... por que caí?
ou vento forte derrubou?
a poesia trabalha dentro dos andaimes.
perdi as contas das quedas trabalhando nas alturas dos poemas.
olhando a torre imaginava os andaimes de Babel.
como foram levantados?
a vida foi muito alta para mim.
às vezes ultrapassamos alturas necessárias,
demasiado altas são as águias para as garças
e não sei de que altura me empurraram,
se ando em busca da altura perdida, de mim mesmo,

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da substância leve.
encontrei andaimes mais para demolir que edificar.
onde pisei, a dúvida se era andaime ou cadafalso.
sempre estive à esquerda do abismo.

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pedra escura

“...ao que vencer, dar-lhe-ei a pedra


branca, e na pedra um novo nome
escrito, o qual ninguém conhece
senão aquele que o conhece.”
Ap 2,17

disseram que nasceu atravessado,


que foi uma coisa podre que saiu de sua mãe,
garoto nojento, rosto hediondo,
jogavam na sua cara seus absurdos, ilogicidades...
onde já se viu um coração azul?
julgavam que andava com granadas na mochila,
que fabricava explosivos e não prestava, era malandro,
foi marujo, vagabundo, atraía acidentes em alto-mar,
estudou russo com a Gália, aluno do Ferreira Gullar,
aluno de Ronaldes, coquetel molotov,
cuidado com ele, cuidado com ele, eu conheço ele!
e ele há tanto tempo consigo e não se conhecia...
muita atenção naquele que diz: eu conheço ele.
na mochila livros que a polícia entornava no chão
e autorizado a pegar, a porta da viatura batia na testa...
inventor de garças com alvíssaras alvuras,
em vez de pedras brancas, só lhe deram as escuras,
com sombrios horizontes,
desfecharam gargalhadas pelas costas,
enlodaram sua pedra, ontem, hoje e para sempre.
ele, Sísifo, condenado a rolar a pedra escura.

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é assim que o viam e ficava rindo,
você não é o que disseram, disse a professora,
mas mesmo assim mandavam lhe oferecer propina,
ficavam a ver se pegava e a algema voltava vazia,
obrigados a reconhecerem sua conduta ilibada.
as meninas da escola, já senhoras evangélicas,
perguntavam a ele se ainda era aquele demônio.
(as mulheres não esquecem os demônios)
não, ele é o que vai pelas igrejas,
apontando o Caixa 2 dos pastores.
puseram o dedo no seu nariz,
disseram que ele era um empregadinho da Prefeitura
de São João de Meriti, heroizinho dos pobres,
da infância demolida, que portava a trágica esperança,
e seus escritos eram pesados, sem sabedoria,
equilíbrio,
não adepto da leveza, e no entanto, pintavam o
coração
de vermelho.
de duzentos e cinquenta alunos,
só ele pintou de azul o coração
e disseram que era louco,
azul por quê?
e a obviedade respondia, sou poeta
com sintomas de passarinho.
quando perguntavam o seu nome,
ele dizia, depende:
na pedra branca, LASANA LUKATA,
na pedra escura era Cláudio.

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fundas impressões...

subitâneo arrancaram-me a estaca,


desamparando a muda
definitivamente replantada no deserto.
por onde passo parece que as flores secam...
tudo retrocede menos a morte.
e como criar laços se nos tornamos assíndetos?
meu caminho estreito como um andaime,
infinitamente rigoroso,
não foram poucos os que com pedras
andaram para limitá-lo.
quiseram aumentar a ferida, tornar ferrugínea a poesia;
quiseram dar-me esperanças,
a falsa esperança é que falsifica a verdade.
contra a tosquia das minhas águas
naveguei em sentido oposto, sem motor,
e os ventos não me levaram por caminhos perfeitos,
pelas rotas serenas.
às escuras, tudo por aplainar, tropecei em baleias.
a inveja dispara seiscentos tiros por segundo.
coleprosos trazem nos lábios um sem querer,
no coração um por querer.
quando me olham, sinto estar na mira do profundo,
sepultado sob as folhas do outono.
e a vontade não é de pisar no meu peito, não,
é na minha cara.
e quem pode cicatrizar o abismo?
abdutora solidão, o poema não é enfermo,

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o poeta é sadio, aguardando o rocío
para escrever asperezas suaves.
enquanto isso, arde o gesto que me escapa:
num encarnado flamboyant,
a garça pousa entre as sombras,
em curvos ramos,
talvez seja sua forma ressentida.

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cantiga de aniversário
(à maneira de madrasta)

parabéns pra você


nesta data ferida
muita in-fe-li-ci-da-de
muitos danos de vida

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alegria infantil
a Ronaldes de Melo e Souza

tenho 48
e meu primeiro bolo de aniversário foi aos 40.
feito por poetas.
chamaram-me, puxaram-me,
saí do quarto como quem sai do útero
para claridade de velas.
ali nasceu o menino
e tem agora 8 anos.
o bolo era uma garça-azul pousada na mesa
e tratei de servir as asas.

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forma Rochedo

no morro não havia água encanada,


água era ouro, pedra de ouro.
madrasta de pedra chupava pedras de gelo.
só comprava formas de gelo Rochedo.
um dia bem cedo desejou um refresco.
naufragadas as pedras de açúcar,
mandou-me buscar as pedras de gelo.
a forma de gelo de alumínio Rochedo
gelava na casa da vizinha...
e fui o moço de recado:
- Minha madrasta falou para a senhora
mandar umas pedrinhas de gelo!
- Ela mandou dizer que mais tarde.
- Diz então para ela mandar minha forma Rochedo de volta!
- Disse que vai mandar sua forma Rochedo de volta
quando você enviar toda a água que ela mandou de volta!
entreguei o recado em bandeja de ouro.
das pedras dos olhos de madrasta,
naquela manhã saíram águas.

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enviando à superfície

sob duríssimas palavras convocou-me meu pai


a virar concreto, virar uma laje.
madrasta, pedra volumosa, saturada de água,
pronta para ser incorporada a um concreto ciclópico,
erguer muros, barragens, atalhar meu caminho
para o resto da vida, ria, diante de mim,
as pedras dos dentes, as mãos de pedra,
as pedras dos olhos, olhando aquela massa
plástica que logo endureceria:
- mexe essa massa menino!
palavras de ansiedade, ansiedades de andorinhas,
não de encorajamento como o costume dos que viram laje.
Saul se fez de surdo... garça não ingere pedras...
madrasta fria cobra, fria pedra, rupícola,
tinha nome rupestre, detestava plasticidade,
a liquidez do verbo na contextura do poema.
sedente por asperezas, estátua do tato,
queria mineralizar-me;
adicionava grandes pedras às conversas,
se as amigas, por exemplo, lhe dissessem,
dá comida a esse menino!
- quem estiver preocupada com ele,
enfie-o entre as pernas e leve para casa!
e as amigas saíam, uma a uma...
com uma rotina pétrea, miserável,
não fui menino de esperanças,
tive noites demoníacas, muitas lutas,

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preparação ao estoicismo...
vindo de uma família de pedreiros,
eu estava predestinado às pedras,
sentenciado desde o princípio
a este duro dialeto,
mas veio a madrasta, a ruptura
e fui consultar as letras,
os meus naufrágios,
as piores recordações
para filosofar a dor,
dizer minha própria história,
mandá-la à superfície.
a dor de dentes pode ser a dor
de toda a palavra-pedra
que por mim foi mastigada;
a dor de ouvidos
pode se ser a ferida profunda,
a dor da alma,
pela força das palavras,
das duríssimas palavras
que passaram por eles.
há os que escrevem no bronze,
madeira, gesso, mármore, metal,
eu escrevi na pedra, vestida de carne,
revestida de lodo, molhada,
com a qual não forniquei-,
Hipólito.

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revoada

meu pai levantava casa para os outros,


meu pai levantava pássaros para eu ver a revoada,
mas na chegada da madrasta
passou a levantar o braço para mim,
numa dura realidade
descia o braço de pedreiro
como o braço de maestro,
exigindo golpes no tambor
na orquestra da família,
que não se imaginava sem tambor,
e o tambor era eu,
infinitamente golpeado,
a sílaba escura.
meu pai levantava muro para os outros,
passou a levantar muros para mim,
a emparedar-me braços de concreto
crespos como os ventos de março,
em vez de ossos, ferros
e eu virava cambalhota
como o carro que capota,
me levantava mesto
por haver muro à minha frente...
a serviço da madrasta,
sempre à sombra desta ave,
meu pai levantava a hipótese
para meu rumo indeciso
de ser pássaro errante

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ou destinado às pedras,
então me fiz ao mar
tornei-me Ulisses,
marinheiro errante,
e quando via as aves,
suavizadas pela brisa,
pelos altos do navio,
lembrava que meu pai
levantava pássaros para eu ver a revoada-
em voz de pedra-,
madrasta os derrubava com um berro.

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Hipólito

Madrasta Medeia Harpia


difusa Medusa inconclusa Moreia
Mocreia
sem blusa
me acusa
de
Pedra

Fedra

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montanha

madrasta adorava separar os rabos das lagartixas,


ver o rabo se debatendo abandonado;
tinha prazer em separar o pai do filho,
despejando mentiras em seus ouvidos.
mulheres que separam os pais dos filhos...
como lagartixa a ser expulsa do palácio,
olhava-me com asco,
com ausência congênita de soldadura,
um adésmico,
resíduo a ser banido do cristal.
e vaguei com as lagartixas por paredes,
pedras, penedos e montanhas...
há quem olhe montanha
com sentimento de glória,
por exemplo o montanhista,
o alpinista social,
pelos olhos da lagartixa,
eu vejo separação.
sua base extensa pelo terreno,
largamente ambiciosa...
entre mim e meu pa
ergueu-se
a montanha madrasta
e um já não podia ver o outro.

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estacas

madrasta silabeava meu nome


com quem esquarteja.

na ira, fanhoseava ruínas.

admiravam-se todos
de o meu frágil caule de menino
suportar o peso desta flor.

arrancou as plumas da minha garça


que voava baixo
abatida pela melancolia.

dentro de mim abismos


e uma culpa coacervada.

sem mais destino que as pedras,


insone peixe entre rochas,
a herniar-se no universo,
passei a vida extraindo ferro de humanos,
sílabas sombrias, cravos amarelos.
de tanto ir às pedras
o mar perdeu a sua infância.

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com estacas no peito,
fui tratado como vampiro.
só a poesia cravou estacas ao meu lado
e me firmei.

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sórdida economia

madrasta, modesta,
economizava cada beijo
para seus futuros filhos.

o cofre cheio de ternuras,


não tinha alma para mim,
para me dar um abraço,

tive dias de inverno,


mesmo sendo primavera,
congelado passarinho...

quando madrasta chegou,


tive rútila esperança,
mas foi mútila tutela.

hoje uma Briareia,


com cinquenta braços,
a me encher de abraços,
não seria possível
obturar o abismo.

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pedradas

minha pequena vida numa garça branca


assustou-se com os ventos contrários da madrasta...
de azuis impressionáveis

des
pen
cou

contra esta pedra até hoje a destripar-me


esta pedra perfurada
nem por mim nem meu arpão,
mas pela poesia.
infância pedregosa...
destripando palavras,
ninguém viu em negrito
nem ouviu este grito,
devorado pelos peixes,
dispersado pelas ondas
desmelancolizado,
que importam as pedradas
se marquei as pedras com meu sangue?

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memória

corvo-marinho,
não adianta copos de vinho
com essa rima lembrando tudinho.
fui eu a garça empurrada do ninho,
ave crescida entre os rochedos,
dos muitos medos,
tornar-me pedra foi o principal.
duro passado desembrulho,
meu pai tornou-se pedregulho
a serviço da madrasta.
sinto saudade da vida...
não adianta, converter-te em vinho,
a memória-ancinho – prepara a terra para poema.

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voo

sabe a garça o voar pesado,


o voar de pedra...
embriaga-se de vento
para o voo luminoso.

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o poema

inútil...
por mais que role esta pedra
(que me escapa)
por mais que coma picanha,
não consigo descê-la
do outro lado da montanha.
sempre a mesma mal fechada cicatriz,
a mesma voz endurecida
a desolimpizar-me...
uma vida condenada a poucos avanços,
tantos recuos...
e no entanto,
tirei prazer da pedra.

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nunca

Diamantina nunca seria pedra de igreja:


orava o pai nosso ao contrário,
queria as coisas rápidas,
se atirou no imediato,
ansiedades de andorinhas,
adorava catacumbas;
Diamantina queria ser pedra de castelo,
mas meu pai muito singelo
começou com uma barraca
e de barro não passou
o pedreiro tão famoso
pelos outros explorado,
por ser manco, aleijado,
ficou preso à invalidez.
Diamantina queria ouro e teve cobre;
queria prata e teve ferro;
queria bronze e foi madeira,
em vez de ferro teve pedras;
Diamantina nunca seria pedra das cachoeiras,
arredondada-,
limitava-se a espetar,
me queria pedra de uma ilha isolada no oceano,
lobo sem lar,
um dia me pôs a mão no ombro,
mão de pedra,
e me disse: você pode ser muito bem aproveitado!
para pedra,

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como eu não era pedra, Diamantina, parecendo diamante,
foi passando por meu corpo e riscando cicatrizes;
Diamantina nunca seria pedra de jardim,
seria pedra para mim
que era inútil para pedra.

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sílaba intensa

aos cinco anos o problema


foi a madrasta,
aos nove anos foram seus filhos,
aos treze anos foi a bebida,
aos quatorze foi o futuro,
aos quinze foi Afrodite,
aos dezesseis foi o limite
imposto pelo pai,
a serviço da madrasta;
a morte maior que o ser,
quase foi antes do tempo...
aos vinte foram as armas,
por toda a vida foi o desprezo,
facilmente ferido pelas palavras,
expeliu seus naufrágios
sem uma gota de álcool nos poemas.
a líquidas distâncias arquitetam,
mas já não encontram onde ferir
esta sílaba intensa.

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piano

sobre minhas cordas vocais


o peso do desprezo desarmoniza versos
tangidos por espinhos;
estranha sonoridade tingida de tristeza.
vindo de uma família de pedreiros,
meu avô andava por andaimes,
minha avó corria os dedos nos pianos,
minha avó também usava martelos,
mas revestidos de feltro.
meu avô, meu pai não usavam feltro nos martelos,
a vida levada a ferro...
minha avó alternava pedais da máquina Singer
e da máquina singer.

entre minhas cordas vocais


meu pai pôs uma pedra
e o que já era pouca sonoridade ficou mudo,
piano apenas para exercício dos dedos
de sua pata leonina.

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soltar a pedra

um dia na Ponte Rio-Niterói


já passados quarenta anos então,
viu uma garça deixar cair um peixe,
uma tainha sobre o capot do carro.
levando aquele peixe endurecido,
peixe morto, peixe-pedra, tornando
o voo mais pesado, olhou para o mar,
vislumbrou a garça,
era preciso soltar a pedra,
que o tempo não venceu.

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órfãos

Kaspar Hauser...
simples como uma pomba,
sem a prudência da serpente,
sua história comovente,
sem ofender ninguém,
mesmo assim o odiaram,
ainda assim esfaquearam...
salmo 123, a oração do desprezado,
abandonado a vida inteira,
em completo isolamento,
apascentava o desprezo.
órfão como eu- a poesia socorreu-,
e não foi madrasta.

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coelho ao vinho

na aula de campo
do curso de História do Recôncavo Fluminense,
nas ruínas do Porto de Nova Iguaçu,
veio até à cerca um tenro filhote de boi mugindo,
com uma garça pousada na região lombar,
entre o filé-mignon e o contrafilé.
abaixei-me, ele abaixou a cabeça, estendi-lhe a mão.
que lindo! Tiraram fotos... a garça que não é boba voou no ar:
quando se tem açúcar, há formigas nas frases e nas fezes.
eu que não entendia a linguagem de boi,
de súbito encostou-se ao meu ouvido um anjo com cara de boi,
visões de Ezequiel, traduzindo os mugidos do filhote:
por que estende para mim esta mão cheia de sangue?!
não resistiu às iguarias do rei, sequer reflete sobre a morte
e se afoga nos excessos!
matou meu pai, minha mãe e eu não estava desmamado.
como a sua, minha família era um tritongo,
meu pai, minha mãe e eu, agora tenho madrasta,
e a relação com as madrastas não é muito boa.
sigo após ela e me dá coices de pedra...
no curral todos temos garça-boieira.
madrasta é sem garça, sem graça, chuchu,
falando em chuchu, Daniel resistiu às iguarias do rei,
preferiu legumes, vida longa aos Daniels
que carregam a morte em mente.
na cova dos leões o anjo não teve trabalho.
os leões mais velhos deixaram os filhotes comer primeiro.

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o leãozinho deu uma lambida em Daniel:
pai, esse Daniel tem gosto de nabo, chuchu aguado!
e cruzaram as patas esperando o próximo prato.
você é um poeta cretino.
a sua coesão me desmantela num olhar.
você faz versos, tira fotos com os animais, demonstra afeto,
mas nos restaurantes não hesita e pede ao ponto-
um contrafilé-,
seu pedaço predileto.

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lua minguante

madrasta abandonada aos 11 anos


numa casa de família para trabalhar...
a patroa a acordava, a lua ainda na janela,
vagarosamente na janela,
a lua minguante entristece a janela,
uma brancura ulcerada,
e ao redor desalmamento de estrelas.
dormia no sofá, encolhida,
porque se esticasse as pernas já era abuso.
vendo as fases do satélite dizia:
esta lua nunca está tranquila.
e as nuvens omissas não passam para dar paz
desta claridade ofensiva.
como o índio, meu avô, não gostava dos gaviões,
madrasta desgostava da lua...
lua minguante entristece a janela.
lua minguante, mulher oprimida.

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II
na casa da mãe de madrasta ouvi gemidos,
vinha do quarto...
madrasta sentada na cama olhando para o alto,
eu observando tudo da janela.
olhava para o alto do guarda-roupa,
onde havia seis bonecas.
desceu uma a uma,
deitou-se com elas na cama e de súbito sua mãe
entra e não vê a mulher adulta, mas a menina
em posição fetal, as pernas encolhidas
porque se esticasse já era abuso.
recurvada como uma lua minguante... chorando.
seis brinquedos para a irmã mais nova e ela:
nunca teve uma boneca.
- vocês me abandonaram numa casa de família...
a mãe tentava justificar aquela separação...
foi por necessidade, questão de sobrevivência.
a mãe só a chamava pelo nome verdadeiro, Diamantina,
não o nome que ela se deu.
vi seu rosto desmoronar-se em escombros...
na volta para casa a lua minguante perseguia o ônibus;
eu sentado na janela, ao meu lado ia Pedra reduzida a pó.

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transcura

ah minha garça empedrada,


ave da minha infância,
fui a sílaba amamentada
pela indiferença.
sem mais destino que as pedras,
eu, Sísifo, desde os cinco anos,
condenado a rolar, tu, Rocha
inquebrantável,
em meus livros se repete.

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esta sombra

tirei um dia de turista na minha cidade.


lutar contra a força do hábito,
enxergar coisas novas, ter olhos e ver,
converter componentes para um poema
é preciso fibra de coqueiro.
passando de ônibus na rua em que nasci,
jardineiro olhando árvores, vida, passarinhos,
vi um pé de coqueiro embaixo da amendoeira.
o ônibus balançando comecei a hesitar
se era coqueiro e amendoeira.
o coqueiro acolhido como um filho,
sob a sombra maternal da amendoeira,
já não era o coqueiro solitário
nem soluços se ouviam em suas folhas.
esta sombra, sobre mim, eu nunca tive.
o que tive foi a sombra de uma pedra.

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lobo do mar

lobo do mar embarquei,


comunguei com as garças,
ditonguei com o inseparável,
inalcançável e sondável horizonte,

horizonte alado

e a poesia lançou no meu pescoço


seu colar de incertezas,
a palavra escorrega como um polvo.
levei às águas uma infância machucada,
mas com o mar aprendi
como rápido se fecha uma ferida.

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porquinho

no jogo de damas
fui a pedra isolada e enfraquecida,
a pedra perto de ser promovida,
imobilizada pela astuta cilada da madrasta;

no jogo de damas, de dramas e tramas,


ela jogava com as pedras,
jogava com as mamas para me distrair
e eu não tinha lido Allan Poe...

no jogo de damas tive perdas, derrotas,


tive pedras capturadas, tomadas em série,
a sensação do vazio.

o jogo de damas,
por nove anos, opôs-se a mim
até ser poema.
o reino das artes é tomado à força.

no jogo de damas
confrontam-se pedras
brancas e pretas.

no jogo de damas,
por que as brancas têm sempre a saída?

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Quina de Ás II
esta pedra de dominó me dominou,
traduz a minha infância,
deduz a família,
expõe minha vida
de garça sozinha,
completa brancura,
carrego-a no bolso.

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o garimpeiro e o poeta
o garimpeiro quer a pedra grande,
o poeta, a grande poesia.
e ambos insistem, escavam, procuram
e os poemas que extraí
estavam a grandes profundidades
e com muitas fadigas mergulhei
no subsolo de madrasta.
escavei à luz de vela, à luz dos homens,
luz divina, vaga-lumes,
as namoradas com ciúmes me deixaram...
e como o filhote retorna à mãe morta,
assim volto à madrasta.
o garimpeiro peneira as pedras,
o poeta, as palavras.
disseram para eu deixar madrasta,
que era uma mina morta, esgotada,
mas, como o garimpeiro que insiste na mina exaurida,
eu talvez já não saiba escrever outra coisa
e bata sempre nesta pedra-,
onde só há ressonância.

Praça XV de Novembro, Valença, 23 de julho de 2022,


Jardim De Baixo, Jardim De Cima.

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jogo de mesa
jogo para me livrar das pedras...
o jogo de dominó era para ajudar a reunir;
lá em casa, para separar.
no outro lado da mesa estive intensamente
só.
sem conseguir me livrar de todas as pedras,
a cada partida havia aquela pedra recorrente,
emblema, Quina de Ás, presa em minha mão.

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por

por pai tive uma pedra


por pão tive uma pedra
por mãe tive uma pedra
por deus tive uma pedra
por pedra tive o poema
e a palavra era pesada

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reconciliação

Hermes, criança de colo,


roubou o gado de Apolo,
mas aos apelos do irmão
lhe entregou sublimes solos,
lhe deu a lira.
madrasta roubou meu pai,
o patrimônio,
um demônio,
uma pedra,
mas me deu a poesia.

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Fantasmas desprezados

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primeiro domingo

domingo azul,
apareceu a sogra com um namorado convidando
a filha para ir ao restaurante.
(a mãe que nunca a levou a um restaurante)
minha mulher disse que já estava tudo pronto,
era só eu colocar no prato, o convite não se estendia a mim.
arrumou os dois filhos e os cinco partiriam, ICARA-í;
de súbito fechei a porta após a sogra e escondi a chave.
tudo bem, ICARA-í,
não hoje, primeiro domingo com minha família.

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ditongo decrescente

aposentado por invalidez,


com aquele pouco dinheiro,
seguiu o ofício de pedreiro.
meu pai fisicamente manco,
ao me dar uma madrasta,
tornou-me psiquicamente manco.
pai, ditongo decrescente.
palavra potente que enfraquece.

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aí onde você está sentado

na frente da casa um banco em frente ao jardim,


onde um dia me sentei e meu pai a meu lado
repetindo as últimas falas de madrasta:
pois é, o que não era meu filho
foi o que me deu alegria na sociedade;
foi o que me ajudou quando precisei
e quase o matei.

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o menino descartável

entrou na farmácia
a olhar as gôndolas:
barbeador descartável,
seringa descartável,
toalha descartável,
fralda descartável,
lembrou-se da infância,
do menino descartável
que não tinha serventia
nem a sua poesia
para o reino deste imundo;
carta expulsa do baralho
pela madrasta a olhá-lo,
verdemente,
pelas lentes de contato
cosméticas, descartáveis
que ocultavam
as pedras de seus olhos.

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serventia

sempre procuraram em mim uma serventia.


um dia disse meu primo:
não sei o que você faz nessa família!
- Poesia.

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Este livro foi composto em Tuna pela Editora
Autografia e impresso em papel natural.

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