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ISBN: 978-85-518-4881-4
CDD: B869.1
A madrasta de pedra
lukata, Lasana
isbn: 978-85-518-4881-4
1ª edição, janeiro de 2023.
LL
São João de Meriti, 10 de outubro de 2022
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pais separando
entre eles o menino
dando a mão a um e outro
mesóclise
a mãe próclise
com palavras negativas
o atraía para antes do verbo
o pai ênclise
com um ar imperativo
arrastava-o para depois do verbo
três lâmpadas
uma a uma apagaram-se as luzes
e a ideia de futuro
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mo
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na sala de aula
quando a professora perguntava
como era a minha família
eu dizia que era um tritongo
havia cigarra
dançávamos jongo
mas a mãe se foi
a cigarra morreu
a dança acabou
a tristeza invadiu
meu pai e a mim
e viramos ditongo
mas veio a madrasta
que teve três filhos
me jogou num hiato
e fiquei feito um i
em ICARA-í
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éramos três,
mas a mãe se foi,
veio a madrasta,
teve três filhos,
tornamo-nos seis
e fiquei feito um i
em ICARA-í,
mirrado de medo;
descobri seu segredo
no escuro do guarda-roupa,
brincando de esconde-esconde,
topei com a verdadeira certidão de nascimento,
seu nome Diamantina e por todas as esquinas
da casa ela estava, nome de flor, por dentro, minério;
uma infância ensombrecida, medo recalcado
ante a presença pétrea da madrasta.
i, letra com medo.
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mundo pedra:
pedra mãe
e
mãe de pedra
pedra menino
menino pedra
espíritos
de
pedra
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(dessocialização)
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na década de 70,
madrasta me chamou para brincar,
tinha comprado dois bodoques
para atirar bolas de barro.
uma menina deu-me uns toques:
seus estoques são de pedras...
apareci de capacete;
naquela tarde azul-ferrete,
no seu vestido flores brancas,
menina branca como a garça,
pousavam em suas botas negras,
minhas aéreas esperanças.
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na sala de aula
quando a professora perguntava
como era a minha família
eu dizia que era um triângulo
e todos sabiam que era um retângulo:
madrasta, meu pai, minha mãe e eu;
mas a mãe se foi,
em triângulo retângulo nos tornamos,
eu e meu pai dois catetos em queda,
dominados pela hipotenusa;
madrasta oposta a meu ângulo reto,
forçava-me a ser um ângulo torto,
dizendo que cedo eu estaria morto.
sendo o lado mais longo do triângulo
retângulo, ela teve a vida curta.
shamir cortou esta pedra hoje.
a morte repartida para todos.
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tarde cinza
uma vespa pica o gafanhoto,
paralisa-o, leva-o para o ninho
e põe sobre ele ovos
que se alimentam da vítima...
assim também aos domingos-
paredes tristes do passado-,
por fora se não comovido,
por dentro me tem agitado,
da longínqua janela do poema
vejo a cimentada cena:
cercado por madrasta e três filhos,
meu pai sentado no sofá,
gafanhoto picado, cristalizado, morto.
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Madrasta
tudo arrasta,
tudo desastra,
tudo contrasta,
tudo vergasta.
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Rio de Janeiro,
muitas de tuas casas
foi meu avô quem fez;
muitas de tuas casas
foi meu pai quem fez;
muitas de tuas casas
foi meu irmão quem fez
e chegou a minha vez...
mas vieram certas garças separando
da marreta, do ponteiro e me dando
uma peneira toda azul e desde então
passo a noite peneirando estrelas,
mesmo as estrelas têm de ser peneiradas.
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madrasta de pedra.
pedra onde a palavra não entra.
pedra imaterial e ainda pesa.
pedra de fogo e ainda acesa.
enlaivada, enraivada pedra bruta.
seu grito ainda ecoa em meus ouvidos.
rascante voz de garça.
bebia água, cuspia gelo.
um golpe feroz
pode desprendê-la da parede...
dura comigo por toda a infância,
quase me fez de pedra,
quase fui seu pedreiro,
quase fui seu herdeiro,
entanto mais forte
tornei-a minha poesia,
elegida elegia de pedra,
pedra com musgo-,
onde não pude me firmar.
.
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a bem da verdade,
não tive pai e mãe;
Deus me botou com os outros,
para viver com as pessoas...
eu não sabia a diferença entre aranha e arranha
e veio a mulher estranha
me ensinou com as suas unhas:
madrasta.
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mar tombador...
com seu pó cinza,
cor de pedra,
que soprava pelas costas
e parecia uma pedrada,
madrasta,
feiticeira como Circe,
como Medeia,
tombou a garça,
tombou minha mãe,
tombou meu pai,
tombou a mim
os seus amantes,
os inquilinos;
só não tombou
Pai, Filho, Espírito Santo
que para tanto se precaveram,
usando Pedro e esta pedra
não a deixou entrar no céu
com seu pó cinza.
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lua minguante
unha cintilante
da madrasta
metáfora gasta
meia palavra basta
causa dor
me afasta
me aplasta
me agelasta
me devasta
pego a pasta
e escrevo
a tragédia
do menino
e a liberdade
limitada pela pedra.
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o 5º Ofício atirava?
o 5º Ofício queimava?
eu já ouvia falar do Santo Ofício...
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na escuridão marítima
cego apoio-me na garça
vou com suas pernas
o coração aberto como uma ferida
sem rota
anda pelo mar
este grito que não tem onde atracar
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perna encolhida,
nem terra;
asas fechadas,
nem céu;
pescoço em S.
nem ser.
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após o naufrágio
minhas poesias
todas doentias
exalam maresias
e nos destroços,
somente nos destroços,
reconheço minha infância.
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o poeta no supermercado
empurra um carrinho vazio
entre gôndolas verdes
na esperança de que ao menos uma
faça bem aventurada
porém obediente aos tempos difíceis
o poeta não esbanja economiza
e sem ser avarento
vai empurrando o carrinho vazio
atropelando a lógica
sentindo a emoção e a força
de empurrar o vazio
este substantivo abstrato
tão concreto dentro de mim
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ela surgiu,
comia pão empedrado,
choviam pedras no telhado,
anunciando aquela dura chegada.
na escola
por vezes chamado à pedra
para escrever com giz
o que foi escrito a fogo.
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meia-noite...
segundo a segundo,
o som do ponteiro do relógio
é como a enxada que capina,
por ordem divina da madrasta,
dois terrenos 12 x 36,
os dois de uma vez.
o enxadeiro, um menino, franzino,
de espírito forte.
em vez de armistício,
madrasta lhe dá armistrondo
e seus versos perversos vai compondo
entre uma ferida e outra.
a propriedade dos terrenos 12 x 36,
contestada na justiça por madrasta,
uma partilha sem critério
punha tudo em nome dela
e o juiz era o meu pai.
até um palito de fósforo nesta casa é meu!
desde então à meia-noite,
segundo a segundo,
o som do ponteiro do relógio
é como a enxada que capina
e pesado como um pássaro
que chegou da tempestade,
o menino cedo levanta,
para capinar o abismo
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mergulhei profundamente
e vi um peixe parecendo pedra
e era peixe;
madrasta parecendo humana
e era pedra.
quando olhei madrasta
uma voz, aos cinco anos, me disse:
está vendo este nome?
atrás deste nome tem outro nome,
é este o nome: Diamantina.
e no fundo do guarda-roupa,
descobri o nome exato de madrasta.
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no guarda-roupa
ao descobrir na pasta
o nome de madrasta
seu verdadeiro nome
ela arregalou os olhos
como dois escolhos
como dois abrolhos
depois ficou irônica
dizendo Diamantino
me reduziu pra Tino
e do seu ponto de vista
a pedra era eu
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vedada a duplicidade,
não podem subsistir
dois registros de nascimento
de uma mesma pessoa,
mediante fraude;
cancela um deles,
prevalece o mais antigo,
o nome dela é Diamantina.
não expõe ao ridículo,
há muitas Diamantinas no país
e no mundo,
o nome dela é Diamantina
corresponde ao que ela é,
coração duro, coração de pedra,
Juiz quebrou esta pedra hoje.
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na arrebentação
a pedra aguda
golpeei com meus versos
esculpindo madrasta
barbeando espumas
até encontrar sua cara verdadeira
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menino,
este jardim empedernido,
este duro poema,
não nasceste alfazema
para te adaptares às pedras...
foge das perdas!
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na sala de aula
a professora ensinava as sílabas
com o sibilante som dos lábios;
em casa, madrasta,
com o sibilante som do chicote.
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lua cheia,
a garça muda de cor,
visão binocular,
vejo a vida por dez furos...
as caspas do tijolo caindo
do blusão escuro do passado.
o que era não era...
vejo a vida por dez furos,
meu pai, mestre das fachadas,
revestia os muros
com azulejos decorados,
casca-de-ovo,
azul-esverdeados,
como estive enganado...
meu pai ergueu os muros,
madrasta fez a massa,
estiveram sempre juntos,
e com apenas cinco anos,
sendo filho de Netuno,
destruí minha mãe,
esfregando dois tijolos
na presença do juiz
e em seguida a defensora
com a voz de tesoura,
mutilou minha mãe:
você destruiu seu filho!
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por necessidade?
não...por vontade meu pai pedreiro
iniciou a reforma da casa.
arrancou janelas de cedro-cheiroso,
colocou janelas de ferro
e eu vendo o naufrágio...
arrancou minha mãe, colocou a madrasta,
sem protocolos, quebrou as paredes, anosos tijolos
e eu vendo o naufrágio...
a reforma começou por minha mãe
naquele inútil ambiente para mim, para sempre,
a sílaba demolida, num eterno naufrágio...
pai, a casa é sua, a decoração é sua,
amadureça o projeto, pare a quebradeira,
desmonte os andaimes...
é tanto barulho, poeira, entulho,
cuidado com as surpresas da reforma,
o desgaste da ferramenta nas arestas desta pedra...
não há vazamento atrás da parede do chuveiro,
a parede chora, o chuveiro chora, há túnel que chora...
pai, não estava combinado tirar os ninhos dos beirais,
demolir a minha infância.
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hoje, sexta-feira,
comendo salaminho me veio este poema:
meu pai era meu amigo,
andávamos juntos para cima e para baixo.
analfabeto não sabia usar a caneta,
mas na bolsa de ferramentas levava
a caneta-diamante para cortar pisos,
azulejos e eu ficava olhando o diamante,
friamente, separando o que estava unido.
o diamante frio, o salaminho comido frio,
dessas friezas cortantes veio o poema;
conheci o verbo cortar
no seu sentido mais terrível muito cedo...
e eu era vidroso como meu pai.
toda sexta-feira chegava do trabalho
e íamos à barraca do Seu Rafael;
lá, eu pequeno, perguntava-me:
o que é que você quer?!
ele já sabia que eu ergueria os olhos
para os salaminhos pendurados.
pegava-me no colo e eu puxava um...
mas quando madrasta chegou,
meu pai se tornou meu inimigo;
brincando no guarda-roupa descobri,
ela possuía duas certidões de nascimento,
seu verdadeiro nome Diamantina-,
a implacável pedra que nos separou.
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tenho 48
e meu primeiro bolo de aniversário foi aos 40.
feito por poetas.
chamaram-me, puxaram-me,
saí do quarto como quem sai do útero
para claridade de velas.
ali nasceu o menino
e tem agora 8 anos.
o bolo era uma garça-azul pousada na mesa
e tratei de servir as asas.
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Fedra
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admiravam-se todos
de o meu frágil caule de menino
suportar o peso desta flor.
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madrasta, modesta,
economizava cada beijo
para seus futuros filhos.
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des
pen
cou
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corvo-marinho,
não adianta copos de vinho
com essa rima lembrando tudinho.
fui eu a garça empurrada do ninho,
ave crescida entre os rochedos,
dos muitos medos,
tornar-me pedra foi o principal.
duro passado desembrulho,
meu pai tornou-se pedregulho
a serviço da madrasta.
sinto saudade da vida...
não adianta, converter-te em vinho,
a memória-ancinho – prepara a terra para poema.
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inútil...
por mais que role esta pedra
(que me escapa)
por mais que coma picanha,
não consigo descê-la
do outro lado da montanha.
sempre a mesma mal fechada cicatriz,
a mesma voz endurecida
a desolimpizar-me...
uma vida condenada a poucos avanços,
tantos recuos...
e no entanto,
tirei prazer da pedra.
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Kaspar Hauser...
simples como uma pomba,
sem a prudência da serpente,
sua história comovente,
sem ofender ninguém,
mesmo assim o odiaram,
ainda assim esfaquearam...
salmo 123, a oração do desprezado,
abandonado a vida inteira,
em completo isolamento,
apascentava o desprezo.
órfão como eu- a poesia socorreu-,
e não foi madrasta.
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na aula de campo
do curso de História do Recôncavo Fluminense,
nas ruínas do Porto de Nova Iguaçu,
veio até à cerca um tenro filhote de boi mugindo,
com uma garça pousada na região lombar,
entre o filé-mignon e o contrafilé.
abaixei-me, ele abaixou a cabeça, estendi-lhe a mão.
que lindo! Tiraram fotos... a garça que não é boba voou no ar:
quando se tem açúcar, há formigas nas frases e nas fezes.
eu que não entendia a linguagem de boi,
de súbito encostou-se ao meu ouvido um anjo com cara de boi,
visões de Ezequiel, traduzindo os mugidos do filhote:
por que estende para mim esta mão cheia de sangue?!
não resistiu às iguarias do rei, sequer reflete sobre a morte
e se afoga nos excessos!
matou meu pai, minha mãe e eu não estava desmamado.
como a sua, minha família era um tritongo,
meu pai, minha mãe e eu, agora tenho madrasta,
e a relação com as madrastas não é muito boa.
sigo após ela e me dá coices de pedra...
no curral todos temos garça-boieira.
madrasta é sem garça, sem graça, chuchu,
falando em chuchu, Daniel resistiu às iguarias do rei,
preferiu legumes, vida longa aos Daniels
que carregam a morte em mente.
na cova dos leões o anjo não teve trabalho.
os leões mais velhos deixaram os filhotes comer primeiro.
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horizonte alado
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no jogo de damas
fui a pedra isolada e enfraquecida,
a pedra perto de ser promovida,
imobilizada pela astuta cilada da madrasta;
o jogo de damas,
por nove anos, opôs-se a mim
até ser poema.
o reino das artes é tomado à força.
no jogo de damas
confrontam-se pedras
brancas e pretas.
no jogo de damas,
por que as brancas têm sempre a saída?
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domingo azul,
apareceu a sogra com um namorado convidando
a filha para ir ao restaurante.
(a mãe que nunca a levou a um restaurante)
minha mulher disse que já estava tudo pronto,
era só eu colocar no prato, o convite não se estendia a mim.
arrumou os dois filhos e os cinco partiriam, ICARA-í;
de súbito fechei a porta após a sogra e escondi a chave.
tudo bem, ICARA-í,
não hoje, primeiro domingo com minha família.
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entrou na farmácia
a olhar as gôndolas:
barbeador descartável,
seringa descartável,
toalha descartável,
fralda descartável,
lembrou-se da infância,
do menino descartável
que não tinha serventia
nem a sua poesia
para o reino deste imundo;
carta expulsa do baralho
pela madrasta a olhá-lo,
verdemente,
pelas lentes de contato
cosméticas, descartáveis
que ocultavam
as pedras de seus olhos.
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