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Gonzalo Dávila Bolliger

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

Bolliger, Gonzalo Dávila.


B692r Rumo ao âmago da própria voz / Gonzalo Dávila Bolliger. – Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2021.
258 p. : 21 x 29,7 cm

ISBN 978-85-518-3219-6

1. Literatura brasileira – Poesia. I. Título.

 CDD B869.1

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

Rumo ao âmago da própria voz


bolliger, Gonzalo Dávila

isbn: 978-85-518-3219-6
1ª edição, novembro de 2021.

créditos das imagens:


pp. 19, 65, 97,113, 141 e capa: Jorge Donato, artista plástico e arquiteto peruano da cidade de Arequipa
pp. 132-133: Gonzalo Dávila Bolliger

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
rio de janeiro, rj – cep: 20090-050
www.autografia.com.br

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.

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Para melhor apreciar a obra, leia a mesma no fluxo, do começo ao
fim, como se fosse um único poema.

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Prefácio

A jornada entre o mundo interno e o mundo externo, é esse o tema central da obra.
A qual deve ser lida do começo ao fim, como um único poema de mais de 3000 versos. Os
sonhos, a morte, a infância, a alienação das cidades, os mitos, a busca incessante pela
paz, tudo se mistura e ressoa como quando somos levados para o fundo de um pesadelo.
Ele foi escrito como tal entre 2008 e 2018, porém, o poema mais antigo incluído na
obra data de 2005. Foi o segundo livro que conclui. É posterior ao livro Poemas Esparsos
(poesia) e é anterior aos livros As Realidades Invisíveis (prosa; também publicado pela
Autografia) e A Melancolia (poesia). Foi minha obra mais ambiciosa e onde reuni os maiores
esforços.
Entre as influências da obra estão a poesia de T.S Eliot; o romantismo inglês (como
o poema Darkness de Lord Byron e Kubla Khan de Coleridge); os Últimos Poemas, do
poeta chinês da dinastia Tang: Meng Chiao; os Vinte Poemas de Amor e uma Canção
Desesperada, de Pablo Neruda; o Altazor de Vicente Huidobro; o já clássico Paranóia do
nosso Roberto Piva; o Trilce do peruano César Vallejo; a obra brilhante de Sylvia Plath; o
obsessivo Edgar Allan Poe; e a poesia francesa do fim do século 19, como As flores do mal
de Baudelaire e as Iluminuras de Rimbaud.
Mas é da música, principalmente do rock progressivo e psicodélico dos anos 60 e
70, que vem a maior inspiração para a obra. Tanto em relação às imagens e aos
sentimentos presentes como ao ritmo, ao conceito e à sequência entre os poemas. Pink
Floyd (desde o Piper at the Gates of Dawn do Syd Barret ao The Wall e além) e King
Crimson (como pode ser visto inclusive na capa) foram essências ao livro, foi dali que veio
grande parte da essência da obra. E o próprio título surgiu ao ouvir em um bar de rock uma
música do Cream, grupo que também influenciou muito no espírito dos versos.
Assim, em parte, este livro tenta transpor essas correntes de música para a literatura.
Além de dezenas de ideias e imaginações da época, enquanto vagava pelas ruas ou pela
universidade e pensava no mundo.
É um livro que vejo como colorido e ao mesmo tempo sombrio. E espero que, de
alguma forma, impacte vocês.

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- Por que você está gritando entre os espelhos?
- É que estou tentando ouvir a própria voz.
- Mas se teus gritos ecoam de espelho em espelho, e se eles se multiplicam, se juntam e
dispersam, como é que você pode ouvi-la?
- É que preciso fazer isso, mesmo que seja para saber que não existe.

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Rumo ao centro
Dessa pupila que se expande

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Eu pensava muitas coisas por minuto. Eu construía castelos, túneis, muralhas catedrais;
escavava um poço onde punha com maestria um por um meus pensamentos. Lembro de
decorar cada parede, rabiscar com um negro profundo brancas superfícies de silentes
rachaduras...

Sim, eu conhecia cada um de meus gritos. Olhava a cidade como um espelho estranho
ao meu ser e me punha a ouvir como minha própria voz ecoava sem saída, se debatendo em
labirintos negros de corais, como um animal esganiçado, como o grito de uma criança que se
afoga. Sim, eu passei a vida rascunhando gritos em uma sala de espelhos...

E às vezes alguém vinha e batia na porta. E eu fechava. E às vezes batia de novo. Eu


olhava os olhos daquela menina perdida, desoladamente bela como um charco sem estrelas.
E depois os olhos do menino insone, com olheiras de livro, que me pedia encarecidamente uma
conversa. Mas mesmo assim eles não podiam conhecer os corredores escuros, a umidade
cavernosa daqueles recantos onde só eu tinha a chave. Um sorriso sincero de seus lábios
bastava, me convencia de que não me entenderiam e eu fechava a porta com força, com raiva,
estremecendo só de pensar que pudessem ouvir meus gritos em surdina.

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E o que mais eu fazia fechado no meu mundo? Eu ficava horas pensando na idade que
eu tinha, contando os barcos que flutuavam à deriva. E sempre ficava em dúvida se o que
passava eram horas ou anos, porque tudo era neblinoso e eterno. As lagartixas desciam e
subiam as paredes, os relógios se transformavam em morcegos e eu olhava o mundo da janela,
tentando encontrar um reflexo das folhas que caiam...

“Pai, quantos barcos de papel ainda flutuam pela sala? A casa está se inundando e não
consigo reviver minhas lembranças”. “E onde, onde está a minha alma?” - Eu me via em um
cemitério junto a milhares de seres que seguravam guarda-chuvas, junto a uma estátua que se
corroía pelo ar estagnado... E depois meu pai, ao me mostrar um mapa-múndi, me dizia: por
mais que eu te soletre o mundo tens que te desmembrares dessa sepultura em que nasceste”.
E ao pé da escada eu ficava lançando bolinhas para o alto, vendo como as lagartixas subiam
e desciam as paredes...

E de noite, quando as lágrimas são sempre mais fundas, eu lembrava de um tempo em


que meus olhos repousavam noutra terra, em que as vozes eram ditas noutra língua, em que
havia uma escada que subia para dentro. “¿Abuela, cuántos cuartos hay en esta casa
interminable?” “¿Tía, cómo hago para no levantarme mientras duermo?” “¿Y cuántos, cuántos
muertos hay en el ojo de un fantasma?”
Antes de dormir, cansado de chorar, eu me deitava no colo da minha mãe e perguntava:

“Mãe, por que não consigo parar de pensar em sofrimento?”

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Então, um dia, entre as agruras do sonho, acordei sobressaltado com o grito dos
relógios. Eu tinha adormecido, desde meus quatro anos eu tinha adormecido. Não, não
adormecido. Era mais uma mistura de sono, vigília e insônia. Eu dormira um sono fundo, mas
dentro dele meus olhos estavam abertos e, por mais que tentasse, não conseguia adormecer.

“Eu passei a vida rascunhando gritos em uma sala de espelhos!” - gritei – “Eu passei a
vida rascunhando gritos em uma sala de espelhos!” E agora me lembrava deles girando e
girando a minha volta, e eu flutuando entre os ecos, tentando desesperadamente segurar a
minha sombra.

Levantei-me da cama e havia realmente espelhos em volta de mim. “Sou o rei dos
espelhos” – gritei - passei anos e anos sonhando com eles e agora estão aqui, bem ao meu
lado. “Jenny!” “Narciso!” “Pandora!” Arco íris!”... Jenny! Narciso! Pandora! Labirintos! Arco íris!
Negros Arco íris!... Ouvi que repetia vários desses nomes e não entendia nada o que dizia. Mas
eles, com seus mil olhos me incitavam a dizê-los, e eu ia me transformando em criaturas
mitológicas, pedaços de sonhos, alegorias infaustas e inúteis. “Sou o rei dos mortos!” – repeti.

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E o que os outros diziam? Meus pais falavam que eu nunca tinha dormido por anos, que
eu fazia as mesmas coisas que os outros, que saia de casa e comprava travesseiros como
todos. No máximo tinha um olhar de névoa que agora se assemelhava mais ao de um
redemoinho...

Mas eu sabia que isso não era a verdade. Quase me arrastando, abri a porta do quarto,
atravessei a sala e sai.

No começo senti uma brisa suave, um sol que me fazia sentir vivo, e fiquei distraído
vendo as pessoas de dentro de seus quartos, contemplando as montanhas que cercavam a
cidade, sentindo ao longe o mar que me esperava. Mas logo vi que não haviam montanhas,
que o mar não existia e que as pessoas se assemelhavam a fantoches. Com o desespero de
quem busca uma miragem procurei a mulher de olhos oceânicos, a mulher que com sua tristeza
compensaria essa ausência... ...Mas, em toda essa jornada, o único que me deparei foi com o
deserto e a névoa...

Sim, em pouco tempo a cidade me dava um tédio profundo. Os edifícios, as indústrias,


as risadas, as crianças brincando como se não conhecessem a verdade, tudo me dava uma
imensa vontade de fechar os olhos novamente. Nem mesmo as pontes e a visão do meu corpo
no fundo me tiravam da apatia...

Então, quando já me sentava em uma esquina e tentava adormecer - vi que de uma


casa uma porta se abria.

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Ao entrar a casa se transformava em um palácio. A mesa de jantar se alongava ao
infinito, as lâmpadas se tornavam castiçais e as paredes brancas se tingiam de um dourado
igualmente insuportável... E entre os inúmeros pilares alguns seres me olhavam. Eles não
tinham rosto e usavam máscaras de plástico.

E ao me verem se puseram a rir...

“Por que vocês riem? É assim que eu vejo o mundo! Uma massa acéfala de sombras
que apenas ficam grunhindo e grunhindo.”

Houve um enorme silêncio. Senti somente como se aproximavam e imitavam os meus


gestos na penumbra.

“Eu não sou um espantalho... Eu sou um artista, o maior dos artistas! E sabem por
quê? Porque eu sou o rei dos mortos, não há nada sobre a morte que eu não saiba.”

Os vultos dos mantos e dos vestidos me cercaram. Da janela, ouvi o começo de uma
incessante tempestade.

“E o que nos importa? Nos só queremos rir e dançar! Não queremos saber sobre a
morte ou sobre a sua Irmã, que é a infância.”

“Queremos só ficar rodopiando de um lado para o outro, trocar de máscaras como


quem troca de esqueleto!”

“E acredite! Não há nada melhor do que beber vinho e sentir as joias escorrendo de teus
dedos, rir de um vulto que quer voltar ao seu mundo e não deixamos!”

E então os bobos da corte me puseram espinhos, me trataram como um grande


espantalho. “Sou o rei dos espantalhos” eu disse, “se não posso ser o rei dos mortos serei o rei
dos espantalhos!” E as damas, as rainhas-esqueleto me olharam, abaixaram a cabeça em
negativa e se afastaram

As últimas luzes se apagam. Ouço, ao longe, o grito surdo dos relógios

“Vocês não podem me ouvir?”

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De volta a casa me deparei, de novo, com os infindáveis espelhos mas, no meio deles,
para minha surpresa, um menino me esperava.

“Você não sabe quem sou? Enquanto dormia estivemos juntos e eu te dei a mão e te
guiei por todos os tempos e lugares, por todos os Templos onde a aurora é abolida e os animais,
como escravos, sacrificados para a lua”

“Não, você está errado. Foram vinte anos passados nesta cama, vinte anos sem ao
menos ver ou sentir o formato das nuvens.”

“Não Gonzalo. Você não lembra de nada. Você se levantava todas as noites e com os
olhos semiabertos dava voltas pela cidade. Parecia mais alguém com insônia do que um
sonâmbulo em si. E ao voltarmos mergulhávamos em livros, voávamos montanhas, tínhamos
crises de choro terríveis em que nada saia dos nossos olhos mas inundava de deserto nossas
almas.”

- Alma??! Penso que o problema é que ficamos muito tempo presos nela. E isso só diz
respeito a nós, entende? Vivemos anos e anos de ilusões, miragens, perdidos naquele algo
que os outros chamam de loucura.

- Mas é aí que está, o eu é o mundo e o mundo é o eu. Não há nada no mundo que não
seja um reflexo da alma e nada na alma que não seja um escombro do mundo. Tudo o que
pensamos diz respeito ao que vemos.

No meio da penumbra vi que seu corpo diminuía e crescia várias vezes...

“Você fala com a voz de um adulto.” – eu lhe disse.

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Ao acordar os espelhos haviam desaparecido por completo. Sobre o meu corpo havia
apenas um livro de letras vermelhas. Não o identifiquei no começo, ele era estranho e parecia
ter vindo de outro mundo. Mas logo o reconheci ao abri-lo e ver suas imagens sonoras, suas
imagens que pareciam sair do papel e inundar de cores ondulantes a sala. E eu gostava
desse tipo de imagens, lembrei como em meus sonhos ficava repetindo elas como um
mantra, que enquanto as repetia eu podia sentir me transformando nos personagens que
criava, em criaturas mitológicas e etéreas, na fusão eterna do crepúsculo com um criança que
se afoga.

E nisso lembrei de tudo com a lucidez de um vidente. Um dia, quando eu era criança, o
vento estagnado contou-me um segredo: “por mais que as pessoas pareçam reais, elas se
desvanecem, na noite, como sombras” e sim, foi desse momento em diante que decidi
adormecer...

“Eu pintei os cinco painéis do cérebro humano!” – gritei – Eu pintei os cinco painéis que
me farão recompensar ser o senhor dos vazios!!”

E então, entre os espelhos que ressurgem, e com o orgulho arquejado de quem sonha
muitas mortes por minuto, eu me levanto e grito aos que como eu não passam de
espectros: “Jenny! Narciso! Arco íris! Negros Arco-íris!!” “Jenny! Narciso! Pandora!
Pavilhões! Labirintos! Arco íris! Negros Arco íris!!!”

E eu digo isso enquanto espero que me dissolva nos espelhos

Que minha alma seja absorvida pela névoa

E que eu encontre, enfim, meu epitáfio:

“Há apenas dois Deuses que regem o universo

A infância e a morte.”

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Quando não houver mais nada
As sensações irão dissipar-se
Por todo o infinito e a alma
Irá se transformar no universo.

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OS DELÍRIOS
DE NARCISO

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Nasci nas ranhuras da montanha,
Cresci nelas como um arbusto raquítico e seco,
Minhas folhas, que são poucas
Experimentaram o vento de todos os lugares,
Pois sou o filho pródigo da fuga
O inconsolado, o peregrino, o inconstante
De olhos enormes e boca silenciosa como a noite.

Filho da loucura do crepúsculo dos Deuses,


Observo tudo de um monte íngreme, terrível.
Meus olhos - são os olhos de Deus;
E minhas mãos, sozinhas, ergueram estátuas
Maiores que as do próprio Egito formidável.
Em mim, feneceram milhões de Afrodites
Que não encontraram, no rosto de Narciso, o amor.

Fui o verdugo e suicida que fez do sonho a sua imagem!


Que de lembranças vagas e esparsas enfim
Da inexistência, construiu o seu reflexo.
Aquele que em um dia de sol e de suor galgou a torre
Que continha, em si, a insônia de uma vida.
Solitário como um abismo belo, intratável,
Pretensioso como um porco, eu.

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DENTRO DOS
MARES
SOMBRIOS

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Os mares me chamam
Seduzindo-me para dentro do seu olho
Vermelho como a morte e o desejo.
Em suas águas há sempre um novo abismo,
Um novo mistério a ser sondado,
E por mais que haja em toda essa busca
e ausência
Uma dor insuportável de perder-se,
A minha alma é fraca como uma criança
E arqueja-se sempre às suas ânsias infinitas
Refletidas no espelho do coração do oceano...

Desde criança os mares me chamam,


Desde criança os anjos repicam o meu nome...
Animais estranhos sempre habitaram minha alma,
Deuses perversos sempre atiçaram meus desejos...
Meus braços abertos no abismo
Sempre congregaram todos os sonhos e misérias
De toda a insana humanidade.

Mas eu nunca me contentei com a única vida que foi dada.


Todas as noites ao soarem os últimos sinos
Os Deuses convocam Prometeu para o suplício
E ele sempre busca algo perdido, algo
Que vive em suas entranhas e o consome
Clamando por libertar-se de suas amarras eternas
Implorando que consiga por dentro dormir
Em busca de um sonho que o liberte de si
Em busca da luz que dos astros não vem...
Dentro dos mares
Sombrios.

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PEREGRINAÇÃO

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Caminho pela catedral de meus segredos,
Há corredores infinitos
E paredes brancas e sem vida.
O que eu vejo ninguém jamais viu
E os meus sonhos também são assim,
Uma leve oscilação entre a torre do castelo
E a fossa hedionda de meus medos.

Aqui não há pássaros, aqui não sopra o vento,


Os quadros de Dorian Gray cada vez estão mais velhos,
Aqui não há esperança
Pois tudo aqui é passado.
Os espíritos que vagam nestes labirintos
Não sorriem como os de lá, no mundo humano
Apenas abaixam a cabeça e cantam, baixinho, tristes melodias...

Versos saltitam no silêncio dos quartos


E posso ouvir um uivo atrás do espelho,
Algo sofre, algo em mim eternamente sofre
E dentro do meu peito esse algo murmura:
“Eres vazio como um espantalho”.
Viro-me, não há nada além do escuro,
A criança se foi faz muito tempo... Talvez jamais tenha existido.
O silêncio da minha arte então me assusta!
Volto a percorrer os degraus em espiral
Sempre subindo
Sempre fugindo
Sempre
Me afogando...

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Abro a última porta, giro a última chave.
Nunca imaginei que seria tão imensa
A sala onde tudo começa,
A sala onde tudo teima em terminar.
- A vida então é essa eterna peregrinação
Em busca de algo que jamais poderás ter?
- Sim, e o que fazer?
Apenas te resta chorar,
Pobre serafim.

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O
LABIRINTO

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Era um labirinto. E não mais
Que um labirinto.
Portas e janelas incessantes se abriam
E, como se há tempos tivessem esperado a tempestade,
Se fechavam.

Nada era real. Naquele mundo


De duendes e bruxas
Meu corpo, ternamente, repousou
E sonhou tudo o que antes
Jamais teria coragem de sonhar.

Era um labirinto. Cheio de gritos


E sussurros e gemidos e segredos
Silenciosamente sussurrados através da grande porta.
E eu a abri,
Como quem abre a Caixa de Pandora.

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O O O O

O O O O

O O O O

O O O O

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A SALA ONDE O
TEMPO
ESTÁ RETIDO

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A sala onde o tempo está retido
Possui milhões de labirintos
Cada um contendo um raro e estranho artifício
Uma infinita e ardilosa biblioteca.
E cada livro de cada infinita biblioteca
É um segundo ínfimo de cada vida
Que representa por si só e separadamente
Uma única e indecifrável existência.

As engrenagens do tempo estão todas ali


Esperando serem reveladas por cada misero espírito
Que se atreve a entrar em seus mistérios
E a desafiar as infindáveis vidas que estão nas bibliotecas:
O relógio universal está no centro do infinito,
No ponto onde convergem os mais distantes absurdos,
E o teto da sala está coberto por mágicos espelhos
Que seduzem os incautos peregrinos
A experimentarem os mais diversos elixires...

A sala onde o tempo está retido,


Distante de tudo,
Recria-se a si mesma,
Toda vez
Que um ser,
Perdido,
A encontra.
Mas seu grande relógio,
Não pode parar;
E os seres solitários
Reclusos continuam para sempre
Tentando consertar o seu destino.

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O ÁRIDO O
SUBMARINO

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Há duas naturezas que permeiam o humano:
O árido.
O submarino.

Árido:
Rocha áspera sob um céu avermelhado.
Algumas aves, poucas criaturas,
Sombras simples caminhando
Rumo a um inatingível infinito...

Submarino:
Afogamento, escuro, ecos
Inúmeros peixes, nenhuma criatura
Ao longe apenas
Um grito
E mais distante ainda - nas tempestades
Do sonho
Uma vaga e melancólica esperança de socorro...

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O CORAÇÃO DO
OCEANO

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O grito, o grito não mais me pertence.
O grito pertence a todos ou não pertence a ninguém
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

Haverá, por acaso, diferença


Entre a poesia e a música? Entre
A erupção sonora dos sentidos
E o marulho silencioso das palavras?
As artes congregam todos os símbolos
Em seu grande ventre constelado de segredos.
E as palavras, quando bem colocadas, podem
Subjugar os sons, a fúria e seus mistérios
E fazer mover de forma mística, harmoniosa
As engrenagens do tempo, da razão e da loucura.
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
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ACERCA DO
SONHO E DA
REALIDADE

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LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

Não há mais ninguém que possa me salvar

Não há mais luz que perpasse o oceano

O mundo real está distante como um sonho

E acima de mim os antigos impérios desmoronam

Tudo está confuso como a cabeça de um Deus

Que não consegue distinguir o que criou

Daquilo que sempre houvera existido

Alheio a seus desejos.

No fundo do oceano, onde as mãos

Apalpam o próprio rosto da miséria

O ser percebe como foi que se afogou

E fica horas lendo o livro que conta a sua história,

A sua pungente e magnífica história,

ACERCA DO SONHO E DA REALIDADE.

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O REI
FINALMENTE
PRESO
EM SEUS
LABIRINTOS

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Trevas. Silêncio.

Narciso? Prometeu?

Abre a porta... Desterra

As cortinas invisíveis do mistério.

Lá fora apenas o marulho das vozes

E dos corpos, deslizando, suavemente, no abismo...

Ah, o rei da tristeza, o escravo, o condenado


O fugitivo, o náufrago, o poeta
Sempre vê os seus desejos sucumbindo no horizonte
Por mais que ele os busque e os clame eternamente
No azul doentio do céu de seus delírios.

E o que poderia, afinal, acabar com sua insaciável solidão?


E o que poderia, afinal, dar-lhe a paz tão almejada?
As nuvens cinzentas todas as noites se aproximam
E a sua alma, cheia de ecos,
Sempre se refugia no antro de seus gritos
Como uma criança que não aprendeu a controlar seus pesadelos,
Como um pássaro que jamais conseguiu alçar as suas asas...

E noite após noite


Lágrima pós lágrima chorada
Sempre preso em seus labirintos
Sempre perambulando em um mundo vazio
Cheio de arbustos secos e vozes sem sentido,
O rei busca seus desejos no céu sem esperança
E quando finalmente ele os encontra
Encontra apenas a dor em sua essência!

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Ah, o rei da tristeza, o escravo, o condenado
O fugitivo, o naufrago, o poeta
Sempre olha para o alto
A espera de um feixe
Que o salve
da miséria.
Mas seus olhos céticos
e cinzas
Não podem ver mais do que um mundo
que morre
e desagrega
Como a sua própria alma
Negra
Como a morte.

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O ARCO ÍRIS
NEGRO

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Branco

Brotam espíritos brancos de terras vermelhas e negras.


Alguns nascem tristes outros - felizes.
O branco é a cor do vazio
Mas o branco gera - todas as cores.
Branco Branco Branco Branco

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Amarelo

Dia pálido quase branco


Luz tênue atravessando os sonhos
Alegre, tênue, fugaz
Amarelo, a cidade de almas violetas
Vestidas na cor das extintas estrelas.

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Azul

Esperanças e lágrimas, lembranças


Um oceano infinito diante da vida.
Embaixo do mundo uma mãe e uma criança,
Um passeio eterno rente à praia.
Antes que chegue o arco íris
A infância, com um sorriso cinzento.

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Violeta

Há guerra em todas as almas:


Guerra de negro, vermelho e azul.
No fim, o azul arqueja o pescoço.
É difícil resistir ao grande Arco-Íris
Negro como o próprio coração.

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Vermelho

Dias iguais se repetindo


Chamas incendiando antigas casas
Antigas vidas, antigos sonhos, velhos medos
Um mundo inteiro imerso em vapores vermelhos
Céu lacrimejante de mártires azuis
Vermelho.

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Cinza

Flores murchas queimavam-se no vento,


Corpos esquálidos debatiam-se no lodo.
O som e a fúria haviam-se extinguido,
No tempo apenas existia a espera.
O branco e o negro haviam, para sempre
Se juntado.

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Negro

Os pálidos dias amarelos findaram.


Mesmo nos sonhos o negro sempre vence.
Negro Negro Negro Negro
Corsários destroem-se no horizonte cinzento,
Corvos proíbem a luz no arco íris.

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As portas do castelo se fecham
A sombra é arrastada para dentro
As paredes douradas o despertam
E ele se acha entre os vestidos flutuantes
Dormindo, em insônia, vendo o mundo...
E não é que seus olhos
Se esforçam por reter essas sombras cambiantes?
Mas ele, como antes, ainda projeta
Suas próprias cores para o mundo...

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TA TÁ!
TA TA TA TÁ!

Vozes ecoam entre antigos pilares,


O palácio antes vazio
Agora possuí uma única estátua:
O feiticeiro espera os convidados
Com sua alma tendida sobre a mesa...

Ao retinir de doze badaladas


Chegam os exaustos convidados,
Eles se sentam em seus assentos de flamas
E eles põem suas entranhas
Junto à alma do grande feiticeiro.

Então, no mundo onde reina o silêncio


O feiticeiro levanta sua voz ambivalente:
Ele toca a lira de exóticos perfumes
E o perfume de belas liras olvidadas
Muitas das quais ainda não decifradas.

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A voz do feiticeiro

(Atordoado em meio a uma multidão de criaturas


Que vagam, como moscas, em volta de carniça)

Oh convidados, meus leitores


Acerquem-se aos reinos de Ícaro
E toquem o áspero coração deste pássaro-deserto!
Nesta terra nem os Deuses pensam,
Nestes castelos de dia e noite reina o sol
E não há tempo para que se possa descansar...

A lua é uma rainha flácida e fleumática


Mantida entre as torres violáceas do mistério
E ninguém pode admirá-la sequer vê-la
Pois os que a veem, a admiram
(ou mesmo apenas sonham)
Ficam como as ervas que cercam o palácio
Pisadas pelos príncipes de pés insaciáveis
Que levantam as bandeiras
do palpável.

E entre os pilares do sol há um rei


Que não se sabe rei ou escravo
E entre os pilares do rei há um refém
Que sequer sabe o que são o sol e a lua
Nestes reinos disformes de Ícaro,
Nestes reinos selvagens de Ícaro,
Onde todos giram sem cessar
E onde todos, quando cessam
estão mortos...

- Bobos da corte, palhaços, bailarinas da dor


Rei cor de vinho de vinho cor de vinho
Todos vivendo nos extremos da corda
Em um dos lados há o fogo,
No outro um estagnado oceano!

- Oh convidados, meus leitores


Meus semelhantes, meus hipócritas, pupilos!!
Não abandonem estes arabescos dourados,
Eles irão se emaranhar como serpentes em teus crânios
E fazê-los sofrer como quem dentro -
Do próprio túmulo em que houvesse nascido -
Lesse o seu próprio epitáfio.

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Através dos arabescos entra-se em uma antecâmara que recepciona o palácio: as paredes são
cobertas por janelas que jamais refletem de forma direta a luz do sol; pilares a transformam em poeira que
debilita os entes que a respiram; uma névoa paralisa os que (na sala onde o tempo está retido) tentavam controlar as
engrenagens da loucura ; cicadáceas, baobás e samambaias formam pântanos primevos; um aquário cobre o piso e
separa os seres estranhos do mundo flutuante; estátuas tão antigas como o barro sussurram que o centro do mundo
não existe; “no além-câmara há mais saguões que recepcionam o palácio”, me confessam; pelas janelas veem-se todos
os lugares mas não há como saber se são reais ou reflexos do aquário: a câmera é tão vasta que suas portas levam a
um número infinito de salas...

E sentados em assentos de pedra estão os sábios, petrificados diante do mundo das ideias eles pensam
controlarem a antecâmara e terem a luz que dos astros não vêm em suas mãos. Ao perguntar como chego à sala dos
jardins (onde o sonho de cada homem se refaz) eles não dizem nada, estão distraídos a observar a inércia de uma
iguana, a inércia de uma iguana que se ilude acerca da luz que absorve, acerca de ser um asceta à espera do arco
íris...

Uma menina, no entanto, que entre o marasmo das samambaias se distrai,i me diz que está indo para lá (a
sala dos jardins) e aponta a porta, perdida na distância, entre o tempo, na neblina...

Antes de ir, porém, observo o aquário e escuto os seres pela lua enfeitiçados. Eles não podem escapar dessa
prisão, a luz artificial nunca os revive

E a iguana, imóvel

Sobre o mesmo velho galho

Entre as samambaias milenares

Diz que os raios deste sol

São todos fracos por igual...

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Os jardins flutuantes

Brahamánticos elefantes carregam um branco obelisco


Escravos e escravas se acariciam entre si
Aves voam da mão de um mago e espalham o sêmen sagrado
E odaliscas se beijam espremendo seus seios
Enquanto eunucos, altivos
Nas gaiolas da carne se contorcem...
Mas há jardins que poucos podem ver
E neles minha alma, cansada do fluxo do mundo
Contempla aquela que faz seus sonhos correrem...

Em pequenos jardins flutuantes


Dorme minha menina de flores submersas
E o que ela sonha eu jamais saberei.
Se sonha comigo ou se sonha com Deus,
Se em seus sonhos é feliz ou se chora como o mar,
Eu que vivo em meus sonhos jamais saberei.
Mas minha alma tenta entre as hordas do céu
Acompanhar seus frágeis movimentos
Que dançam nas estações do vento
E navegam em direção a seu ser.

E nos meus sonhos ela sonha,


Sonha com luas que giram ao redor de seus seios,
Com penhascos que a ameaçam expulsá-la do éden,
Com pétalas que se deitam em seu ventre de estrelas,
E com anjos que a contemplam no seu juízo final
Para que responda a pergunta, crucial
Que crucifica cada ser capaz de sonhar:
(“Foste feliz ou infeliz? Encontraste
O inferno ou o paraíso em tua vida?”)

E em meus sonhos onde sonha


Ela dança sozinha esperando um feitiço,
E em meus sonhos onde sonha
Ela dança sorrindo, tenuemente sorrindo
Enquanto a abraço no doce fel de meus lábios
E ela dança comigo, apenas comigo
Através dos espelhos que lhe lembram a infância
Através dos pilares de nuvens celestes
Enquanto eu espero que entreabra seus olhos
E que o paraíso de seus sonhos multifacetados de imagens
Inunde sua dança de multicoloridas estrelas...

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Mas aqui, porém, há uma dança maior,
Uma dança mais triste e mais velha
Que apenas mostra dentes cariados
E corpos que se debatem em fúria:

(Bailarinas nuas na penumbra cantarolam)

Esta é a dança que a todos seduz,


A dança dos pobres dos ricos
Das mariposas sem asas
Esta é a dança dos dias sem fim.

Esta é a dança que a todos induz,


A dança dos escravos dos reis
Das folhas que caem em vão
Esta é a dança da espera sem fim.

Esta é a dança que a todos seduz,


A dança dos escravos sem reis
Dos reis sem escravos, do céu sem limite
Esta é a dança da anarquia sem causa
Dos olhos sem pálpebras imersos na luz.

Esta é a dança que a todos seduz,


A dança das bailarinas sem sombra
Do tédio, da orgia, da invariável, aurora;
A dança que para sempre se irá repetir,
Esta é a dança das mariposas sem luz.

E ela em seus jardins continua sonhando


E ela em seus palácios submersos continua,
Não sei se algum dia ela irá despertar-se,
Não sei se algum dia poderá me ver e me amar.
Quando duas pérolas vivem sonhando
Como túneis jamais irão se encontrar.

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O que podemos fazer para sair desses túneis?
Desses subterrâneos onde
Escuro após escuro
Nos deparamos com a morte?

Oh, toquem a flauta que desperta os prisioneiros!


Oh, não deixem o rei e o feiticeiro dormirem!
Vocês sempre externos, sempre alheios
Toqueis o som do inferno de fora
Para os que estão no inferno de dentro!!
-Oh arlequins! Arlequins!! Arlequins!!!
Se preparem para encenar meu pesadelo!
Em minha mente cores, cores cores
Como balas de canhão em um sangrento arrecife
O mundo exterior invadindo o interior
As vozes do aquário pelas chamas abafadas,
- Oh arlequins!!! Arlequins!! Arlequins!
Que máscaras são essas? Para onde
Estão me conduzindo? Que sorrisos
São esses à minha volta entre meus gritos?
As imagens se dissolvendo entre as luzes
As luzes se extinguindo entre os incêndios
Sombras mascaradas sem nome invioláveis
Encenando meu maior pesadelo...

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O grande teatro
Das ilusões perdidas

(Após o arco íris, as montanhas, o oceano, labirintos


E após ter galgado deveras o palácio de cristal,
As portas do grande teatro se abriram
E eu finalmente caí na mente coletiva
Dentro da qual eu sempre estivera)

As portas do teatro se abriam


E eu não podia mais reter as imagens fraturadas
Que se levantavam como verdadeiras muralhas
Diante da minha insaciável loucura;
Senhoras e senhores,
O grande teatro das ilusões perdidas
Havia se adentrado em meu próprio esqueleto
E os flutuantes jardins se desfaziam para sempre
Como se eu jamais os houvesse sonhado!

As cortinas cor de rosa se abriram,


As eternas marionetes me saudaram,
“Bem-vindo oh sempre morto sempre ausente!”
“Bem-vindo oh peixe-morto lula órfã ostra estéril!!”
E eu não tinha mais escolha
Além de encarar aquele cortejo radiante
De eternas marionetes disfarçadas de viventes...

E seus atores estavam mascarados,


Cada um levava uma máscara representando sua alma,
E uma máscara representava um falo sem limites
Outra uma taça de champanhe transbordante
Uma outra um vestido de nódoas sempre limpo
E outra ainda uma nuvem como emblema.

E no meio do palco em uma mesa em um festim


As princesas de cabelos azuis verdes e vermelhos
Olhavam-se umas às outras entediadas
E os cavaleiros jogavam o baralho que move os continentes
Após terem conquistado os monopólios de ouro-negro

E o único que todos diziam


Entre mil e uma palavras pronunciadas
ERA

O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO

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E eu me desesperava como em um redemoinho
Acurralando-me como um feto sem placenta
Olhando a todos como um alma pressa ao limbo
Sem entender qual era o ponto de chegada
E tentando me esconder no ar que expelia;
Mas eles sorriam sorriam e sorriam
E apenas repetiam, repetiam, repetiam

O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO

(Cenário em ruínas. Cortinas abertas em uma boca fétida, sem dentes)

Senhores e senhoras
O grande teatro das ilusões perdidas
Havia se fincado finalmente
No coração da cordilheira de meus nervos!

“O que vocês estão fazendo?” -


(eu gritei para os atores) –
Nós
Estamos empilhando os destroços
Das estátuas que tentaram alcançar o paraíso!!

Um segurava uma Bíblia, o outro um Alcorão,


Outro um Veda e outro ainda uma espada
E em um canto que apenas por mim ser visto poderia
Refugiavam-se as criaturas notívagas sem lume
Que a busca do ouro e do poder não suportavam...

E nesse canto o albatroz já não alçava as suas asas


E nesse recanto todos caçoavam do albatroz
E Sherazade contava os seus sonhos para os surdos
E não era Ulisses que conquistava Penélope – a bela -
Mas sim os bárbaros que se aproveitam do banquete,

- “O que vocês estão querendo dizer com tudo isso?”

Os atores novamente se viraram para mim


E dessa vez, com os livros abertos em seus braços,
Apenas repetiram, repetiram, repetiram

O que todas as obras disseram,


O que todas as religiões esconderam,

O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO!

(Flores se espalham pelo piso. Os atores dialogam entre si)

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“Yuppie! Yuppie! O que faremos hoje?
O que faremos depois? O que
Faremos jamais?”

“Comeremos um pouco de esterco


E depois nos sentaremos sobre os tapetes dourados
Onde fizemos o amor sem amor
E faremos um grande desfile de peles
Enquanto vemos um pouco da tela sagrada
E nos deleitamos com o que no tédio fazemos
– a guerra -
Confesse, não é divertido?”

“Enquanto a máscara escarlate não vem


Oh, iremos nos divertir mais um pouco...
Masturbando-nos enquanto ela não chega
E fingindo interesse pelas patéticas questões da igreja...”

“Não é isso que devemos fazer?


Peguemos mais alguns animais
E os levemos pela coleira entre as estradas da morte!
Aqui o universo é um eterno banquete
E queimemos os que não acreditam em Deus!”

(Arroz caindo do céu - o grande matrimônio da alegria se formando)

“Yuppie! Yuppie! O que faremos hoje?


O que faremos depois? O que
Faremos jamais?”

“Iremos à vidente Astrolábia


E perguntaremos sobre o nosso destino
O qual é sempre o mesmo
E o qual por todas as gerações se repete.
Andaremos por imensos salões
Fumaremos as orgias do tédio
E quando tristes ficarmos
A ouvir uma música alegre iremos
Pois a alegria é nosso lema sagrado
E a tristeza uma música inútil”

“E quando nada disso adiantar


E quando nada disso adiantar e quando nada disso
Adiantar Faremos Juntaremos Rezaremos
Juntaremos Comeremos Guardare E quando nada disso
Nada disso Adiantar e quando nada nada nada
Nada nada... quando... nada nad n nad

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(e eu me desesperava dando voltas ao redor da minha mente
Como se estivesse sendo pela minha própria inspiração afogado
Pois havia por toda a vida repetido repetido e repetido
Um monologo sem pausas e sem pausas e sem pausas...)

De todo esse nascimento sem pátria


De toda essa infância sem alma
De tantos romantismos inúteis
E desses prazeres todos que duram menos que os sonhos
O que era o único,
O único que poderia sobrar?

Oh, o que todas as obras disseram,


O que todas as religiões esconderam,

O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO!

O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO!!

...

As cortinas cor de rosa se fecharam,


Os horizontes de todos os céus se comprimiram.
Eles tiraram as máscaras,
Atrás destas apenas outras máscaras se viam
Iguais, mas que jamais ser retiradas poderiam...
E após eles irem para frente do teatro
E as cortinas atrás deles se fecharem,
Eles tocaram com as mãos o piso do inferno,
Olharam para mim como se eu fosse o único presente
E, em coro, em límpida harmonia, promulgaram:
-Você sempre foi velho. Observe, como crescem
Ervas grisalhas sobre tua deserta cabeça!
- Você sempre foi velho. Estar acima quiseste
Mas foste sempre pelas nuvens vencido!!
--Você sempre foi velho. Nunca
Poderás desfrutar da infância do mundo...
Mas o mundo inteiro parecia o teatro
E como se fosse adentrar-se
Nas vulvas de uma mulher que se amasse
E não chegar a útero algum,
Assim aquelas máscaras sem rosto
Jamais de meus marejados olhos sairiam
E apenas uma palavra, uma única e triste palavra
Ecoaria para sempre em minha mente:

O VAZIO O VAZIO O VAZIO O VAZIO

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Feitiços

TA TÁ!
TA TA TA TÁ!
TÁ! TÁ!
TA TA TA TÁ!

Vozes ecoam entre antigos pilares,


Incensos sobem pelos ares,
O palácio antes vazio
Agora possui os ecos de todos os convivas
E o feiticeiro ergue os braços que sustêm o universo
E o recompõe ante seus olhos relâmpago-azulados
Enquanto as janelas que rodeiam o salão
Tremem com sua voz de noite irremediável:

“Estamos na terra do cacto, dos abutres, da escória


E o que podemos fazer neste árido enterro
Para redimir este vazio em que nascemos? Para
Suportar o chão de estrelas mortas
Em que espelhamos nossos sonhos sem quimeras?”

“Se não podemos sorrir, ohhh


Pelo menos iremos vingar a nossa dor
E fazer da dor uma semente! Uma semente
Que faça que vicem em nossos crânios as flores
Enquanto os vermes já estão a constituir a nossa mente!”

(O caldeirão borbulha restos de esperança,


Os cardumes sem rumo como náufragos passeiam,
E as cegas criaturas do aquário se debatem
Como se já soubessem de antemão
O resultado de toda essa insana encenação)

“Há apenas um elixir para toda essa agonia


E o elixir está em minha mão que sangra como fonte
E que como dilúvio expande-se ubíqua e perene;
Ao juntar-se o sangue em um cálice único, dourado
Cria-se o sentido último da vida.”

CORO:

“Ele promete mulheres de todos os reinos


Ele promete o poder dos astros nunca vistos
A beleza dos jardins que os sonhos refletem,
Ele promete os três frutos da vida
Em um único cálice de êxtase fundo!!”

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TÁTÁ!
TA TA TA TÁ!

(Dentro de um quadro várias figuras se movem. Elas às vezes parecem que discutem, outras
que murmuram entre si)

O velho marinheiro, o manco de Lepanto, o guesa errante


Kubrick Frida Kahlo Jung Schopenhauer
Mandela Joana D’arc Nostradamus Nefertitis
Sylvia Plath Miles Davis Hipacia Zarathustra Galileo
Meng Chiao Ptlometeeu Dostoiesky Pink Floyd
Einsten Confúcio Van Gogh Gandhi Altazor...

...Todos nesse grande retrato, they are dying dying dying!


E no meio a janelas que dão a todas as paragens,
No centro dessa sala circular que espelha o cosmos,
“O que eles dizem?” Eles dizem que querem subir ao paraíso,
Não ao paraíso dos anjos ternos de mãos castas
E olhos iguais a inválidos insetos
Mas sim ao paraíso das almas que almejam
Ter destruído os pilares dos castelos!!

.....

“Como não desejar que as torres não caiam


Que a música possa exprimir as cores da mente
Que uma teoria em um só pilar explique a beleza e a névoa
E que as máscaras sem rosto saiam da sua apatia?”

Então há uma grande bola de cristal


Que se posiciona no eixo entre todos os espectros,
E eles ficam em volta dela como corvos
E tentam alcançá-la com seus tentáculos de enxofre

Mas
Eles jamais conseguem alcançá-la. ESTAMOS
ESPERANDO UMA DOSE MAIOR DE SOFRIMENTO. Eles dizem.
UMA CHAMA, SIM, QUE NOS TRANSFORME EM OUTROS SERES
E

- rrrrtarckll!

- rrrrrrtarlatál!!

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(De súbito algo rompe a bola de cristal. Os livros se espedaçam e ressoam passos em
surdina)

Agora passam máscaras sem rosto


E passam máscaras com chifres e verrugas
E eles passam e não passam
E deixam no ar um odor a sangue decomposto

“Eu quero isso! Não aquilo! – eles dizem -


Apenas ao eliminarmos nos outros o reflexo
E em nós a liberdade,
É que nos livraremos do vazio!”

E passam botas e luvas e chicotes


E passam tanques e cavalos e bandeiras
“Reviveremos no tempo o tempo sem limites
E faremos do sangue o alimento ao próprio sangue”,
E em um espelho imenso vê-se um fosso
Onde as metralhadoras e espadas se confundem,

Entre os restos do Teatro surge a sombra


E tudo o que ela toca vira pedra
arbeit macht frei arbeit macht frei
Carthago delenda est Carthago delenda est
គ្មានចំណេញក្នុងការថែរក្ាគ្មានការបាត់បង់ក្នុងការបេ្ុុះណមាណចញ

.
(E agora uma figura se destaca entre as demais. Ela brada em meio aos corpos
para que se juntem ao redor da sua alma)

Um padre surge entre os restos do dia,


Dissolve os livros em seus braços de eunuco,
Esconde as armas em sua pança de marmota
E diz que ao se levantar todos se abaixem
Pois pressente o invisível no palpável -

“Eu quero isso! Eu quero aquilo!” – eles dizem -


“As moedas, as montanhas, a não-culpa
O paraíso aqui e o paraíso acolá.”

E onde antes havia um cemitério surgem flores -


O padre passa de mão em mão a esperança
E vai sorvendo lentamente o seu licor...

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A rainha está sentada sobre vísceras e casas destruídas. Izbás, palafitas, icebergs... Ela manda
chicotear muitas mulheres, manda os negros pintarem os seus rostos, aos órfãos os culpa
pela morte dos seus pais e aos mendigos pela queda das indústrias... E ela olha para um
mapa, põe os barcos à vapor rumo ao futuro, os continentes desloca para dar o ouro aos seus
filhos, e entre colheradas de chá vai ouvindo, aquelas vozes que se perdem na penumbra...

“Estou jogando minhas últimas moedas


A felicidade minha da minha mulher e de meus filhos,
Espero a sorte como esperei a Jesus e a Buda
Estou jogando e continuarei até a morte.
Meus primeiros filhos já se foram soterrados pela neve
Aquela que amava me deixou por um homem com indústrias
E eu jogarei meus últimos cabelos
Até que possa escolher a minha morte”

“Ele era um bom homem eu juro,


Trabalhava cortando cana e cuidando dos escravos,
As vezes na chuva se escondia em meus seios
Falava que era fraco que o amamentasse.
Mas, às vezes, uma fúria crepitava seus cabelos
E ele arrancava cada um de meus dentes,
Proibia que meus filhos nascessem ou deixassem de nascer.
E, enquanto limpava a casa de minha pálida senhora
Eu sempre fitava, com inveja, aqueles retratos antigos.”

“Por anos servi o reino das armas


Servi o exército azul, o vermelho e o preto,
A cada ano em um continente sitiado,
Às vezes matando, outras salvando e em outras
Apenas redigindo suas mortes.
Por anos servi
Servi as armas e sua
Proliferação infinita,
Vivi pouco, é verdade, mas eu
Conheci as estepes onde a carne é exposta,
As cavernas onde os homens se escondem...
Eu vi a cor de todos os desertos.

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TA TÁ!
TÁ!
TA TA TA TÁ!!

(Entre os antigos pilares o feiticeiro ressurge. Ele faz o que pedem e os venda enquanto
gritam:

Oh, grande e cego feiticeiro


Magnânimo e ambíguo feiticeiro
Metade homem e metade mulher
Metade besta e metade ave solar
Não nos deixe a sós com as questões
Nos perguntando por que e aonde vamos
Ou se é que vamos e se ir e o que queremos
Pois quando a lua vaga com terríveis pesadelos
E um bebê chora gritando por socorro
Não temos nunca um céu que nos proteja
“Oh, não queremos o vazio
Queremos um mágico vazio!”
“Não, não queremos o vazio
Queremos o mágico vazio!”
“Nos dê a mão oh Maldoroor Mortimoor Altazor!!”
“Madame Sartris de unhas longas e olhos negros”
Quando o sol se juntar com a lua
E o dia for negro e vermelho
Quando os homens e os frutos se calarem
E as almas vagarem no escuro como ilhas
Quando as orações se juntarem em um grito
E as horas forem quentes e estéreis
E quando os olhos forem lágrimas de vidro
E os lábios se cortarem em espelhos
E os rostos se furarem e caírem
E um vômito de sangue escorrer
E tudo refletir e refletir
Nada mais que um negro arco íris,
Saberemos que o eclipse
Não esconde jamais o paraíso.

“Oh, não queremos saber a verdade


Oh, não nos deixem saber a verdade.”

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De dentro do armário ele me apontou um véu de noiva:
“Vês essa moça? Ela está feliz e casada para sempre.”
E do fundo do escuro uma máscara chorava...

O escrivão acordou em um mar de papéis


Até o amanhecer devia pô-los numa única gaveta.
E nesse tão falado alcázar dos sonhos
Pediu sem esperança um tapete voador.

Um ferreiro martelava há vinte horas,


Quando feliz ouviu a voz do capataz:
“Seja escravo que um dia serás rei”.

Afora do palácio um velho suplicava...


E quando o príncipe lhe perguntou o que queria
Ele disse: “Coca! Coca cola!!”

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Nas cortes do rei escarlate

Bobos da corte, palhaços, bailarinas da dor,


Rodopiando no salão de paredes douradas
Minha amada despertou-se e oh
Ela está dançando
Está dançando a dança da dor.

Sorrindo, sorrindo e sorrindo


Através dos labirintos de luzes
Através dos incensos da morte
Nas cortes do rei escarlate
Onde os violinos distorcem a mente
E onde as flores de plástico rosa
Exalam o perfume sagrado!

Todos juntos de mãos dadas


Ou por um abismo separados
Todos juntos sorrindo e cantando
Entre os pilares do Deus congelado
Sob os candelabros dos anjos azuis
Nas cortes do rei escarlate
Nas cortes
Do rei escarlate!!

- Bobos da corte, palhaços, bailarinas da dor,


O que fizeram com ela? Com ela
Que antes chorava em meus sonhos
Como uma criança ante seus pesadelos? Como
Uma libélula ante o fogo das trevas?
...

Então ela se aproxima e sussurra em meu ouvido


Baixinho em meu ouvido que jamais serei feliz:
“Jamais irás retornar a tua infância,
Jamais terás o meu amor
E por mais que queiras ser Deus, Deus
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Como bem sabes, não existe.”

II

E então os candelabros da mente se apagam


E então o escuro transpira da alma como um griittto
E então os espíritos brancos perambulam
Pelos ocos refúgios d'alma humana
E então as brilhantes roupas uma a uma
Caem deixando a mostra os esqueletos

Nesta sala sem portas vejo um rei,


Um rei negro que sangra como um bode,
Sentado sobre seu trono cor de vinho
(de vinho cor de vinho cor de vinho)
Ele sussurra um áspero feitiço
Como se só eu o fosse ouvir
E como se o nosso sangue, espesso como o nada
Fosse da mesma substância:

DÁ! DÁ!
DA YÁ!

“Não se pode suportar o cárcere de pedra


Em que os passos ressoam como túmulos vazios”

“Não se pode suportar este real


Em que as ampulhetas amputam nossa mente”

Não se pode Não se pode

DÁ! DÁ!
DÁ! DA YÁ!

“Apenas no momento em que precede o despertar


É que o tempo é deveras abolido”

“Apenas no momento em que precede o despertar


É que o tempo é deveras abolido”

“Apenas no momento em que precede o despertar

É que o tempo deveras é abolido”

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III

Sonâambulas sonâaambulas
A cada vez que vão comerem
As sombras se flagelam, tentando
Esquecerem que são sombras,
Sonâaambulas sonâaaambulas
Como uma procissão de avestruzes sem pescoço
Enterradas em lodo de pútridas vertigens
Elas tentam encontrar a luz que não existe
Ignorando a tempestade de fora do palácio
E a funesta orquestra dos relógios
Que o eterno trauma do nascimento
perpétua,
Sonâaaambulas sonâaaaambulas
Sempre insones por não saberem-se insones
Sempre buscando o amor em cinzas retorcido
E sempre ansiando o dínamo mais fundo do relógio
Elas se arrastam pelos corredores úmidos de sangue
E arranham os que choram os seus corpos decompostos
Enquanto as paredes se comprimem e os pêndulos da lua
(Ah, os pêndulos lunares que distorcem as estrelas!)
Irrequietos lançam griitttos que enlouquecem as paredes
Irridentes intranquilas incandentes riiidencias
E, girando e girando a minha volta
As sombras me conduzem ao exílio,
- Para fora para fora para fora
DAS CORTES DO REI ESCARLATE.

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As joias estão abandonadas na penumbra

Brincos caem em silêncio pela mesa

A luz tênue se espalha lentamente

Não há sombra que se reflita no espelho

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Peter Pan se perdia entre as flores da noite
Tentando encontrar o bálsamo da vida,
O bálsamo de seus olhos pelo sol tão fatigados.

Mas submergiam as trevas os relógios


E eu era apenas uma criança sem nome
Perdida entre os uivos do bosque.

E fariam as pérolas escondidas na noite


O que as bruxas jamais o fizeram?
O que as corujas jamais entenderam?

Como pérolas imersas nas trevas


Mulheres nuas brotavam das nuvens
Prometendo um recinto de paz e alegria.

Mas os relógios não podiam deter o frêmito


Que se entreabria pela vulva das flores,
Que ecoava entre os lábios da noite.

E fariam as bruxas escondidas na noite


O que as fadas jamais o fizeram?
O que as estrelas jamais entenderam?

Peter Pan se perdia entre as flores da noite


Mas quanto mais se escondia entre as sombras
Mais as flores dentre seus sonhos
cresciam.

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Catarina

(Deitada no interior de uma capela. Capela sem teto


E com apenas uma única janela)

Da tua janela vê-se o desejo dos homens, Catarina;


De teu ventre nascem as formigas do sonho,
De teus olhos as cataratas do éden
E em teu leito que congrega a essência do mundo
Pairam as folhas do abismo absoluto.

Da tua janela, Catarina


O universo como um tigre se incendeia
As araras de todo o bosque te veneram
As lontras todas em pé te observam
E as abelhas aturdidas se reúnem
Para louvarem teus cabelos
(Teus cabelos negro-claros como a lua)
E para festejarem os teus seios,
Esses teus seios morenos como rios...
E nessa noite, Catarina,
E nessa noite absoluta em que morremos,
O relâmpago que vem do oriente, do distante
Cruza o escuro para ver-te, realçar-te,
O teu corpo em infinitos debruçado
A tua nudez no mais sutil divertimento...
Com a mão posta no fruto proibido
Rejuvenesces as árvores antigas
Enfeitiças os antílopes em príncipes
E fazes que povos de todos os credos
Se congreguem em teu umbigo sagrado
Esperando, nessa noite, nascerem de novo...

Poderás me dar a felicidade jamais alcançada, Catarina?


Poderás redimir a minha vida, Catarina?
“Eu apenas posso dar-te
O que poderia dar a qualquer outro homem”
Sua flor negra se abre como um túnel
Me conduz à vertigem que leva ao nascimento
“Quando te dissolveres na última das noites
Verás que eu era apenas
A maior das concubinas”

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Uivos vários ecoavam na noite,
Na noite minha, na noite só minha
E cada uivo tinha apenas um nome
Que eu jamais saberia.

E eu me perguntava:
“De quem era a culpa?
Era do bosque? Do castelo?
De ambos?”

E eu me refugiava entre as ninfas do bosque,


Entre as ninfas que desfaziam o fogo
E repetia a pergunta:
“De quem era a culpa?
Era do bosque? Do castelo?
De ambos?”

E elas junto com os uivos repetiam,


“A culpa é das corujas, das corujas, das corujas
Das corujas que fazem um ninho negro na mente.”
E eu ficava sozinho tentando encontrar os pássaros-noite,
Os pássaros que carregam em suas garras os uivos.
- “Onde estão os arautos da noite?”

Eu perambulava entre as ramagens do sonho,


Eu me desfazia entre as névoas do outrora,
E eu apenas olhava enquanto elas fugiam
Para fora do bosque - para dentro de mim
Deixando em meu peito o vazio...

- “Onde estão os arautos da noite? da noite? da noite?


Os arautos que fizeram das estrelas o eco de um uivo?”

Como um feitiço que entre as nuvens viesse


As corujas ao meu chamado se apoiaram nos galhos
E, ao olhar para elas e seus olhos de fogo,
Um epitáfio disseram - resumindo minha vida:
“Nós apenas somos os arautos dos uivos,
A culpa está em algo mais profundo que o uivo
E em algo mais misterioso do que a noite em que vives.”
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...

Então, cansado, divagando


Sobre o negro dos meus olhos
Eu encontrei-me em um templo abandonado
E, ao contrário do que a noite induzia,
Para minha cândida esplêndida alegria,
Araras e borboletas pousavam
Em todos os cantos das suntuosas paredes e
Belas mulheres estavam nuas entre luxuriantes orquídeas,
Completamente nuas na amplidão da abóboda celeste!

Mas, ao aproximar-me, querendo


Ver de perto a ALEGRIA,
As araras e borboletas, a exaltação da vida e a beleza,
Estavam empalhadas, costuradas
E os musgos, pouco a pouco
as cobriam
Enquanto, no centro das ruínas circulares,
Onde o mais sagrado deveria encontrar-se,
As mulheres nuas, belas e sublimes
Estavam todas mortas, os corpos distendidos
E o sangue jorrando de seus seios roxos, gangrenados
Como o leite dos sepulcros...

O universo era cada vez mais escuro


Crianças-fantasma em desvario gritavam
Mães jamais encontravam seus filhos
Eu ouvia canções de pesadelos remotos
Aberrações das árvores sem sombra surgiam
E pássaros morcegos lobos e ursos
Intermitentemente tentavam matar-me
Por mais que eu nunca
Morresse
E garras sinistras
Intermitentemente se cravassem em mim...

Eu corro dos lobos famintos


Eu fujo dos ursos de mãos enormes
Eu escapo das rãs que maculam a alma
Eu expulso os vermes que na carne se alojam
E eu me desvio das corujas abaixando a cabeça
Mas a tempestade me açoita sem trégua ubíqua imponente
Ferindo meu rosto de lágrimas e chuvas de noites remotas
Fustigando meus olhos de névoas vozes quedas fissuras
E fazendo que eu olhe a lua implorando rezando gemendo
Para que eu possa escapar desse bosque sem anjos
Para que eu possa finalmente esquecer minha sombra
Para que eu possa dissolver-me em um desses charcos
Em um desses charcos onde se reflete apenas

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“Oh lua, quanto tempo tem o eterno?
Deverá se permanecer nesta terra em que nasceu-se
Por toda a eternidade e mais um dia? Sempre
Teimando entre estar em um castelo ou
Sozinho entre os ecos deste bosque?”

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Faróis

(De volta ao castelo,


Embaixo da janela uma praia deserta)

Eu vislumbro as fantasmagóricas águas do mar


Como se estivesse a mirar o útero ancestral
Que gerou nossas efêmeras e tristes sepulturas,
E nele eu vejo ilhas longínquas
Irremediavelmente uma das outras separadas.

E em cada uma delas há um farol


Que se sente eterno no amanhecer de cada dia,
E em cada uma delas há um bosque, um nevoeiro
Que, ao tornar-se parte inerente do farol
Cresce até abranger a ilha inteira.

Mas, ao sentir a brisa todos sabem


Que as folhas em si mesmas apodrecem
E que as sombras no brilho se dissolvem:
Triste é ser uma árvore crescendo no deserto
E saber que em uma noite será coberta pelo mar...

Poucos, porém, sentem a brisa


Que acompanha o ofegante marulho das gaivotas;
E, nestes áridos castelos do oceano
Infindáveis festins preenchem de falsas cores o interlúdio
Dos dois alvos braços do absoluto inexorável.

Solitário em meu castelo sou um dos poucos que vislumbram


A marcha sem destino dos filhos do crepúsculo sem deuses
E, como pagamento de toda essa agonia, ecos
Abruptam-se em mim desfazendo-me em ondas
Enquanto milhares de faróis proclamam
minha sina...

- Um homem, novamente
Está enlouquecendo.

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Somente no momento que precede o despertar

É que o tempo é deveras abolido

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1.

“Você pode me ouvir?”


Talvez você consiga ler
Mas, deveras, não pode me ouvir.

Aqui embaixo é úmido


E galhos tortuosos
Comprimem velhos retratos.

Lá fora talvez haja terra


Em que os pés se sustenham.
Mas aqui há apenas
Um chão flutuante de água, nuvens e trevas.

E agora encostas o ouvido


Frente ao branco muro
Que o céu-inferno separa...

.....

Não podes me ouvir.


Por mais que rostos famintos
Borbulhem de dentro do mar.

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2. Os mosaicos eternos

Tempo Tempo Tempo Tempo


Catedraais imensas sem sinos
Vozes subterrâneas proclamando o eterno,
Teus olhos abarcam os olhos de Deus
Tuas mãos as frias cinzas da aurora.

Cátedra adentrada nos vazios do futuro


Por tudo o que passas a vida e a morte se abraçam!
O que passa foi e sempre nunca sempre é
As folhas caindo vagarosamente
Pelos trilhos silenciosos do parto-e-sina rotineira...

Tempo - Nesses mosaicos onde olhas


As frias inscrições do teu enterro futuro e passado
Não há espaço para que possas rezar.

Tempo Tempo Tempo

Tempo – um quarto escuro –


Onde os fragmentos da carne
Apenas se re-encontram em raros
E absurdos, espelhismos.

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3. O quarto escuro

Negro Tudo negro


Tudo profunda profunda escuridão
Poço onde as mãos estilhaçadas
Jamais encontram seu espelho
Túnel sem saída – noite
Que jamais pode separar-se do seu dono
A imagem de um homem cinzento
Com uma arma sempre apontada contra si

Negro Tudo negro


Cortinas abertas em um quarto sem luz
Vozes febris se debatendo como gralhas sem amor
Tudo o que absorve e destrói todas as cores
Praia deserta onde habita o silêncio
Castelos por ninguém jamais co-habitados!
Haverá por acaso
Resquícios de um mundo
Onde floresçam marsmallhows
E distantes nuvens de algodão?

Negro Tudo negro!


Tudo profunda profunda escuridão!
Caverna onde as mãos amputadas perseguem seus senhores
Dentes brilhando através da grande noite
Um vulto de mil olhos sempre a espreitar
Nosso esqueleto feito de outros milhões de pesadelos!!
Oh memória! Oh assassinos! Suicidas!
Oh mar! Oh primaveras! Oh ausências!
Oh tudo o que a escuridão jamais vislumbra!!
Ó eterno vazio de uma mente só lembranças...

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4.

“Podem me escutar teus ouvidos?”


Talvez possas ouvir sílabas
E desordenadamente reorganizá-las como queiras.

ortuooresoãnedorucseo

As árvores raquíticas, porém


Não podem alcançar as preces
Dadas pelas outras sombras da noite.

A terra de sangue, nuvens e trevas


Onde nossas raízes asfixiam o outrora
Não pode suportar tantas súplicas
Dadas ao negro coração das estátuas de agora.

Apenas um vento escuro me toca,


Nunca ninguém além da memória –rainha escutou-me
Mas eu jamais consegui escutar-lhe a resposta.

omsemoresõanedorucseo

Por mais que subas degraus


E enumeres as constelações de cada palavra que nasce
E que alimenta a mortífera máquina-caos
Não podes, deveras, escutar meu sofrimento.

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5. Cátedra

Em meio a escadas que flutuam


E a degraus que nada levam
Em meio a lentas tristes melodias
E a lágrimas distantes que não podem ser mais vistas,
Algo levanta o tom da voz enquanto morre
E predica um veredicto intransponível:

Onde os anjos como escravos se arquejam


Onde as maléficas flores jamais morrem,
Onde os cães ladram por um golpe que os cale
Onde tudo o que se vive é um eterno suicídio,

Onde os rios esguios jamais encontram sua foz


Onde tudo é solidão e cátedra e dor,
Onde todos os rostos são de pedra
Onde os pássaros voam roubando nossos sonhos,

Onde tudo se repete eternamente


Formando eternos círculos de fogo,
- o escuromente -
Pasta negra e sem fundo
Onde tudo se origina e se aniquila.

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6. A sala invertida dos espelhos

Detrás de cada espelho há o negro


E detrás de cada negro outro espelho,
Ao perder-se nos labirintos da aurora
Jamais se encontra a palavra
Pelo caos arquitetada:
Cada espelho consome outro espelho
E cada palavra ao se repetir se consumindo
Provoca outro negro inviolável
Na sala invertida dos espelhos:

Abretereidosespelhos!
Detrás de cada escuro
Há uma estátua que se arqueja
Sem nenhuma humildade
Sob a face das estrelas -
E detrás de cada grito
Que a todas
As penumbras
Produziu,
Uma única palavra de mil faces
Ressoa na constelação do ser humano:

Abreteauroraparadentrodosespelhos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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7. A canção sem voz que vem de dentro

As nebulosas nos esperam


Olham como vamos para baixo para
Cima sempre sendo e nos tornando
Cósmica poeira,
Elas observam e esperam nosso grito
Que é tudo e não é nada

Abretereidosespelhos
Qual a causa desse girar sem reflexo
De nós mesmos? Desse
Tentar tocar o fundo sem fundo da pupila?
Nós, sempre aspirantes da verdade
Tentamos buscar o norte e o sul
Neste sol que é uma lua sem limites
Escura em todas as estações da morte,

Abretereidosespelhos
O escuro nos pensa através
Há uma voz sem o seu rosto
A pupila se expande pelo mundo-oceano
Não há norte não há centro não há sul
Só uma lâmpada vazia

Abretereidosespelhos
Tudo é leve e é espesso
A voz que sai de dentro e de fora
Não é humana nem não-humana
Ela brilha e escurece, ela é
O que simplesmente é

Abretereidosespelhos
Quando vemos os estilhaços da lâmpada escura
Contemplamos aquilo que vem
De todas as escuras auroras...
A verdade, essa Deusa de olhos turvos
Nebulosa que nos envolve e evapora

Abretereidosespelhosparadentrodetimesmo

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8. Otempodeveaboraslido

Chovia e fazia sol,


Ventava e tudo se estagnava,
Vultos rezavam e vultos protestavam,
Deuses nasciam e Deuses feneciam,
Não havia como saber
Se o tempo deveras existia,
Ele podia estar disfarçado
Ou disperso infinestavelmente
Pelos poros de cada criatura que viva ou morta persistia:
Tudo era único desde aquele ponto
Quando o atrás à frente se aglutinam.

(Do nada surgiu o número 1,


Dele se desmembrou o universo...
No 4 espelhou-se o nascimento,
A mesma agonia transparente
Que não tem ouvidos, nem voz, nem firmamento...
E do universo surgiram espelhos
Que, o refletindo, mais universos
Recriaram. Palavra-pós-palavra
Cosmogonia de dados deglutindo sua carne
Como símbolos obscuros no absurdo)

Chovia e fazia sol,


Úmido-árido-áspero-suave-
-silente-ruidoso-vulcânico-calmo-
--Catádrico! Tétrico! Telúrico!!
Nos sulcos onde os rios se perdiam,
Nos profundos vales onde a noite
Recobre seus súditos com sua brilhosa capa branca
E os faz recordar antigos-recentes-eternos labirintos

Tempo Tempo Tempo Tempo

Chovia Ventava Rezavam Feneciam


Fazia sol Se estagnava Nasciam Protestavam
1, 3, 6, 2... 6, 4, 5, 1... 3, 2, 4...
Morto ou vivo naquela caixa-una tudo o mesmo,
Relâmpagos negros sobre mortas estrelas,
Haveria como galgar o espelho? Como
Reviver as raízes que no vórtice da alma se perdiam?
Ó fantasmas! Ó auroras! OH INSÔNIAS!
Ó túmulos! Sepulturas! Oh vastos úteros desertos!!

Tudo girando girando girando


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Girando Girando Girando
Tudo girando girando girando
Girando Girando Girando
Aves levantando o seu voo Folhas
se abismando Lâminas Agulhas Martelos
caindo se adentrando sangrando Chicotes
morrendo ferindo penetrando
Tétrico! Telúrico! mergulhando a carne
Vulcânico! Silúrico! se afogando
dispersando
girando

Girando Girando Girando


Tudo girando girando girando
Girando Girando Girando
Ao abismo Ao eixo Ao centro
Gritos mortos, grunhidos, espasmos
Girando Girando Girando
Tudo negro negrura negroante negrura
Visões lentamente esmorecendo
O quarto cada vez mais se comprimindo

Girando Girando Girando


Tudo girando girando girando
Olhos por trás de mim Olhos na frente de mim
Olhos por todos os lados ferrugens por todos os lados
Vômito por todos os poros Cadáveres por todos os vivos
Girando Girando Girando
Meu corpo minha mente Tudo
Apodrecendo-me derretendo-me asfixiando-me
Visões lentamente esmorecendo
O quarto cada vez mais se comprimindo
Girando Girando Girando
Girando Girando Girando

Girando Girando Girando

Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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9. A janela

Em claustro o pássaro tenta libertar-se


Carregando consigo uma âncora
Feita dos cadáveres da alma
E das amargas filhas da verdade.

Algo imóvel no entanto


Na espinha dorsal do tempo permanece.
E por mais que mãos estilhaçadas
Acurralem um sol que tenta não morrer
Apenas em um lugar onde luz alguma há
É que se esconde um templo de vitrais fantásmagais
Onde as imagens dos primórdios se revelam.

(Ruptura do ego e sua prisão


Arremesso da alma contra o cosmos
Um mar voraz além de tudo
Uma janela entre o homem
E o céu que o protege)

A janela se abre... Apenas


Pode ver-se o espetáculo de fora
Ou sonhar que se está dentro,
Mas não se pode voar através
Da grande cátedra que a tudo submete...
E as portas, herméticas, se fecham.

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“Você pode me ouvir?”

...

Ouve, há um mar de onde borbulham


Todas as sombras que fogem dos sonhos
Um tempo sem tempo onde os pilares e mastros
Adormecem de tantos espelhos,
Números e letras que giram sem eixo,
Paredes porosas de sonâmbulas sombras

Sim, oh mundo cátedra e vulcânico


Infinito de estilhaços e naufrágios de outrora
Mundo de forcas e pulsos cortados
De sois com manchas negras e carcaças girantes
Totens e fósseis que redemoinham no acaso
Sinos e nevascas de antigas torturas
Torres de sangue aves e cegos sem ouvidos
Rostos com furos ocas folhas olhos sem pupila

Tudo se juntando deuspersando na caixa


Una e tenebrosa,
1, 6, 5,7, 4... Sub subterrâneo, tudo para no zero e no infinito
Sempre remorrer,
Quantos rios ainda teremos de contar
Para que o mundo se dilua?
Tempo, como poderemos beber dos espelhismos
Se estes se escondem no fundo das sombras?
Ó mar de árvores que crescem para baixo
Sem nunca encontrarem o seu rosto
Oh céu de raízes cortadas e estagnadas auroras
Sussurros explosivos de névoa sem saída

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Desperto-me. A cidade é azul.
Caminho dentre a névoa que se originou dos meus sonhos,
Os anjos decaídos em arranha-céus se penduram,
Gigantescos bonecos da minha infância remota
Compartilham com eles a brancura dos prédios.

O mundo sempre foi grande demais para mim...

O mar está longe. Apenas


Há o ruído de automóveis, o farfalhar
De enormes pássaros metálicos, a vinda
De esquálidas alegorias que o deserto sobrevoam,
De carnavalescas máscaras de plástico
Que dançam,
Sedentas,
Por encontrarem sua sombra...

Estou só. Sobre mim


Há apenas o peso de um universo sem estrelas
E atrás das montanhas, como uma miragem, no horizonte
Um infinito TTTTTTTT T T T T T T T T TTTTTTTTTT
Atravessa o meu corpo e rompe minha alma
Em incandescentes fagulhas de estátuas
PELO MAR DESTRUÍDAS.

(Quando eu era mais jovem tive um sonho


Em uma noite fria como os ponteiros de um relógio:
Imersos em uma chuva que parecia não cessar
Os edifícios cada vez mais brancos se tornavam
E, ao olhar atentamente para eles, viam-se
Difusos e pálidos rostos debruçados nas janelas
Que, fechando os livros que sustinham em seus braços,
Sorriam sarcásticos e secos frente a meu assombro
Como se eu mesmo em um desses edifícios
estivesse.)

Agora as tardes são secas,


Calcinantes como um corpo pisado
Por um milhão de formigas gigantes.
E, insone nesta terra de fantasmas,
Eu atravesso a névoa que cresce
E se dissolve, como um espectro do meu ser,
Seduzindo-me, incitando-me, rendendo-me
Aos extensos labirintos submarinos
Do suntuoso reino interior...
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Porém, hoje não há espaço para a loucura.
Sob uma velha construção está um homem
Que sozinho joga xadrez, a ver quem vence
Se é sua formidável razão ou seu vazio...
“Onde estão os outros? Os outros? Os outros?
Os outros? Os outros? Os outros? Os outros?”
E ele (jovem e velho, passado, presente e futuro)
Diz asperamente, tornando-se de súbito altivo:
- Os outros não te podem ver e tu,...............)
Tu jamais os verás ( ..........................................
- Os homens são de pedras, as almas são de pedra
E estas, estas são as cidades desertas da alma.

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O epitáfio da estátua

Nesta estátua as pombas suas escórias depositam,


Em todas as estátuas há máculas que jamais se apagarão,
Cada estátua é um depósito de intrigas,
O olhar de toda estátua uma fonte de amargor.

O sol ainda pulsa seus dedos sobre esta terra estiolada,


Os jogadores à distância seus afazeres continuam,
Mas uma aridez infinita penetra meus ossos calcários
E os transforma em pedras secas como a morte.

Estou menos altivo do que antes (no começo da jornada) mas


O que pode fazer a estátua além de pensar em sua própria altivez?
Ela está condenada a isso. Por mais que queira
Pensar na humildade das pombas,
esse não é seu destino.

Seu destino é pensar em sua glória, em quantos anos


Sua desgastada sombra irá abranger outras estátuas,
Por quanto tempo irá perdurar nas pombas que a detestam...
Mas há um grande colosso inverossímil paradoxo
Que em cada crepúsculo da sua vida lhe condena:

“Como a estátua pode tornar-se soberana


Se sua soberbia se baseia na quantidade
De fezes que ao longo das décadas
As pombas foram depositando em sua glória?”

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Noite de insônia 1104

Sublunar
Sublunar

Anjos caíam
Como balas sem refúgio
E eu - um animal noturno -
Procurava nas asas da noite
Um ovo de ouro
Denso como um sonho
Que sempre me esquecera sonhar.

Os anjos malignos, no entanto


Por todos os seres se espalham
E estes, perdidos nas concavidades dos meus olhos
Algo maior que os seus corpos me apresentam;
Caminhando entre as ruas e pontes dos meus sonhos
Eu os posso ver como a um tropel de alegóricas imagens
Mesmo eles sequer sentindo minha sombra:

Ao longe ao lado há um circo,


Um circo onde animais e crianças convivem,
O circo é tudo o que os outros acreditam
Ser desprovido de resquícios de razão;
O circo é a Dor vestida de palhaço - é um palhaço vestido de Dor,
As feras se debatendo em invisíveis coliseus.

Embaixo de uma ponte há um velho,


Um velho que rasteja em busca da luz,
Ele é tudo o que muitos acreditam
Não merecer casa onde pôr seu esqueleto;
O ser rastejante é a Miséria, a Miséria
De ver os anos escorrendo de seus dedos
Como fetos que jamais fossem nascer.

Em cima, em um alto edifício há um homem


Um homem solitário de alma bela,
Ele busca uma mulher que o perceba
Mesmo sendo da cor-noite que o rodeia;
O homem triste, de binóculos, sombrio
É o Desamor em um grito condensado
Dilatando suas forças pelas ruas do absurdo...

Nas ruas da noite há as prostitutas e há seus corpos,


Cada uma tentando esconder-se em sua sombra,
Amaldiçoadas por amuletos mais antigos que o Nilo
Elas sofrem no olhar das velhas que as invejam
E clamam em silêncio que ninguém as abandone;
As prostitutas da noite são a Ânsia, a Ânsia
De jamais poderem ser vistas como humanos.
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Virando as esquinas há os esqueletos e há sorrisos
Alegres por poderem usufruir das prostitutas,
Ébrios não notam que seus risos caem como sarnas
E flutuam como as sombras de lâmpadas-fantasma;
Os esqueletos gordos ricos são o Tédio,
O Tédio de beber de um gole o universo
E não encontrar prazer em sua essência...

E oh, no negro céu há um cemitério


Em que brilha um mar de brancas cruzes
E oh, em cada túmulo um pássaro se afoga
Gemendo como uma criança sem relíquias
Como uma igreja cujos pais se suicidaram -
O cemitério é a Morte vestida de dor,
A dor de ter uma sombra sempre ao nosso lado
Repetindo como um eco nosso fado!

E oh, no fim dos tempos há uma nave


Uma nave que promete os feitiços da infância
E ao redor da nave há os espectros que se arquejam
À espera do tão almejado país das maravilhas
E cada qual traz um pedaço do seu sono
E um pedaço do seu suor e juventude
E cada qual um telescópio e uma lupa
Para recuperarem a perdida Cristandade
Agora coberta pelo musgo da verdade,
Mas a nave é a Ciência, a Ciência
Que lentamente acaba em um poço
Ao mostrar do que são feitos a Terra, o humano e seus sonhos!!

...

Sublunar
Sublunar

Ao longe, de uma casa, eu vejo todos


Tristes e alegres e no mais
(Indiferentes)
Se dirigindo à Câmera da Profunda Hibernação
Onde a Dor, a Morte, o Desamor
A Ânsia, o Tédio, a Ciência e a Miséria
São adormecidos pela fada da Inocência
Enquanto eu me perco, para sempre
pela noite...

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Exílio

Como um anjo decaído de um inexistente paraíso


Eu rodopiei como um objeto aleatório pelas ruas
E, mesmo sem saber o que buscava nesse exílio,
Meu destino brotava das fendas do principio
E convergia com a noite extensa, primordial
Que repicava lúgubres e etéreas canções de ninar...

E eu era a noite, a noite apenas,


Eu era a lua constelada de morcegos,
As estrelas vestidas de luto por seus vivos
E eu era a noite, a noite apenas
Uivando dentro de mim como um túnel.

Então eu olhei para trás e o que vi


Foi a cabeça de Orfeu decapitada.
A grande casa dos meus avôs estava ardendo
E dentro dela meu feto - em uma sombra de fogo -
Erguia-se altivo, pusilânime e cego!
“Tudo o que passa já morreu,
Tudo o que passa morrerá”
Repetia a cabeça repetia
Regurgitando minha noite sem cessar
“Tudo o que o que passa já morreu
Tudo o que belo triste era se perdeu!”

Cansado de repassar a visão pelas ruínas


Joguei-me no chão que o meu sangue construíra.
A cinza espiral dos sonhos destruídos
Erguia-se incólume pela noite apenas minha
E talvez até pairasse entre os príncipes do céu;
Mas, como a cabeça repetia, repetia, repetia
Rodopiando entre meus gritos sem cessar:
“Apenas os homens que não decaíram podem vê-los,
Apenas aqueles que nunca sentiram suas fendas
Podem sonhar um paraíso
Que se esconde na noite
sem quimeras.”

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Talvez esta cidade já estivesse sitiada,
As pombas e o fogo, o fogo e as pombas
Hão sempre de destruir a perspectiva
De qualquer paraíso construída.
E o crepúsculo invertido
Há sempre de abrir as asas consteladas
Apenas para prolongar a sede já instaurada.

O mundo é um vasto, vasto açougue...

“Silvando e silvando através do horizonte violáceo


De cidade em cidade foste enterrar o teu cadáver
De cidade em cidade foste embalsamar o teu fantasma
E por mais que quisesses
Fazer parte da vida de teus assassinos,
Não há mais saída...
Para os que colhem as frutas apodrecidas do Éden,
O que poderia restar, afinal
Além do ostracismo em um pântano estéril?”

Ruínas de palácios... bosques ao longe se incendiando...


Uma fuga... Os salões do êxtase em crise... Gras-
Nidos... A queda de uma bike
No asfalto... O silêncio
De um jovem pelos cisnes acordado...

(Esta cidade é grande,


Como uma boca de mil dentes
Dela escapam miasmas invisíveis ao olhar
Mas letais aos seres incapazes de voar)

O castelo está longe... A bruma e a fumaça cobrem seu semblante


Nem mais o frenesi do tédio habita estas paragens...
Bobos da corte, palhaços, bailarinas da dor... Médicos
Advogados, engenheiros... Os antigos feitiços
Finalmente mostram sua face por enxofre corroída:

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As concubinas e as santas entre os risos evaporam
As cátedras dos reis vão desmoronando...

(Esta cidade é grande,


Há muitas cavernas para onde se possa fugir
Mas em nenhuma delas há cristais
Onde reluzam estalactites em forma de mulher)

Fábricas... empresários... mulheres acasalando com máquinas estéreis...


Criaturas... diáfanas... etéreas... fantasmas entre os carros...
Aqui os seres constroem enormes relógios
Mas estes não contam o tempo, tempo, tempo
Mas apenas o dinheiro, o dinheiro, o dinheiro...

(Em cidades como estas nos perdemos


Em cidades-universo como esta
Umas às outras amparadas
Temos o prazer de escolher a nossa morte
E o canto do cisne que no fim compensará
A nossa queda feita de jardins piramidais)

Cidade azul tísica amarela


Mar seco... mar-dinheiro...dinheiro e mais dinheiro...

Olhando para o alto, para baixo


Jamais para dentro, para dentro
Eu vejo espectros da eterna alegria!
Mas, haverá outros seres como eu? Dândis
Deteriorados e não apenas aparentes? Mulheres
Que procurem uma brecha entre a fumaça? Suspensas
No ar como errantes andorinhas? Alguém
Que decifre estas orações tão secretas?

............... De um edifício a outro são poucos os telefones que gritam...

. . ...Explosões de morfina no horizonte Martelos rompendo os nervos em surdina Corpos


Definhando na gangrena de sonolentos e mecânicos relógios................ ......... ..... ... .. . .
........Um Oásis! Ah, ela se foi... .. . .... ... .. . . . .

.................... ......... .....

......rá rá rá......

.............rá rá rá ráá......rá.......rááá........................................................
....................... ... ... .. . . . .

Todos à distância me espreitam


E seus corpos projetam uma luz de outro mundo
Que forma uma muralha entre nós...
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Mas então, todos os espectros que eu jamais podia ver
E do qual por eles jamais ser visto poderia,
De repente abrem seus olhos sem máculas, de vidro
E me cercam rindo em um enorme, suntuoso sacrifício
Batendo palmas como se eu fosse um animal
Dançando e dançando através da minha mente:

“Matem o porco! Matem o porco!


Ele comeu nossa ração! Ele
Usufruiu o prazer de olhar nossas mulheres!”
“Esquartejem-no! Triturem-no! Devorem-no!”
“Matem o porco! Matem o porco!”
“Este é o funeral das almas bipartidas!!”
“Enterrem o porco! Enterrem o porco!”
“Enterrem esse corpo que se veste
Das pérolas do nosso trabalho usurpadas!”
“Não! Tu terás que enterrar-te. Enterrar-te
Com tuas próprias patas com que cavaste tua glória!”
“Tua suja, hilária, inglória, glória!!”

Talvez esta cidade já estivesse sitiada,


As árvores escassas entre o ar estático,
As flores murchas entre as cadavéricas cores,
O sol tênue entre o céu imaturo,
O eterno impasse de não se poder respirar...

Deverei atacar ou recuar?

Os meus inimigos, as pessoas


Como na minha infância me devoram
Em um pandemônio, em um banquete
Jamais em uma orgia.

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O epitáfio das cobaias

- Ó, pareces um morto mas não és


O mesmo morto que eu conheci.
Antes te disfarçavas da cor dos edifícios mesmo tendo tantas cores
como um fantasmagórico arco íris e antes
ao te perguntarem: “Por que estás caminhando sem rumo nesta noite?” fazias
um sorriso maior que os lábios de um palhaço e escondias
teus destroços,
em uma mala multicolorida como os olhos de um bebê...
Agora, porém, tiraste a máscara e junto com ela a própria pele do teu rosto. E és triste,triste,
triste... Triste como um céu onde os pássaros não cantam, como um céu
onde os pássaros apenas cantam seu enterro...
- Então, não queres conhecer a alegria? A alegria que jamais em ti existiu ou que em algum
dado momento se perdeu?
Não queres ver o nosso mundo? O nosso mundo onde todos os males são remediados ou
pelo menos adormecidos como se jamais existissem?
- ABRAM-SE OS PORTÕES DA CÂMERA DA PROFUNDA HIBERNAÇÃO!!

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Os portões se abrem. Pessoas das mais diversas espécies estão deitadas em camas de aço com os olhos
semiabertos frente a um grande telão que lentamente gira sobre si mesmo e ele diz que aquilo é a alegria do
mundo mas eu apenas posso ver nele um apanhado de restos de carniça cada vez mais pútridas musgosas
e inodoras sempre inertes sob o mesmo céu anestesiado embaixo do qual jovens tomam comprimidos
casaais encadeados para sempre se masturbam hospitaais albergam esqueletos com veias injetadas
mendigos pedem areia para seus estômagos de palha professores leem livros enquanto abusam colegiaais
mulheres se vislumbram entre manequiins pintados de batom multidões se arquejam a um Deus que vive no
inferno do mais alto arranha-céu e todos se sentam sorrindo como cobaias sorrindo frente a uma grande
mágica tela que projeta jovens de pílulas azuuis casais encadeados com seus gemidos em frascos enjaulados cérebros
de morfina em hospitais estagnados exércitos de panos por mendigos se formando intelectuaais com livros de trava-
línguas e cigarros e bucetas em seus cantos enfurnados mulheres em gigantescos e gosmentos manequins de papelão
se transformando multidões presas em um eterno paraíso artificial...
- Ó, pareces um morto! E não tens mais remédio
Pois tudo o que te mostro desprezas e tudo o que tens
Apenas te deixa nos lábios um eterno vazio...
E ele me deixa a sós entre os pássaros sombrios, a sós no arco-íris da minha mente, na vertigem dos
horizontes e escarpas que griittam griiittam griiiitttam, um pedaço de mim que entre a turba se perdeu...

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O epitáfio das sombras

Era uma silhueta tímida que se perdia no horizonte. Era uma silhueta tímida que não
parava de correr perseguindo e fugindo do horizonte.
A silhueta foi crescendo até se transformar em um espelho tão grande como o céu. E era o único
que eu via. O único rosto que habitava meus sonhos. A silhueta a esgueirar-se entre as montanhas sempre
fugindo, sempre buscando, sempre vazia...
Então, um dia, entre as agruras do sonho, eu lhe dei o grito mais alto que pude. As nuvens todas
nesse momento se abriram, os pássaros de todos os céus se silenciaram. E então ela veio e começou a
contar a sua história (a sua pungente e magnífica história) enquanto caminhávamos, sem pressa, através
das íngremes escarpas que, como uma escada em espiral, ora iam ao céu ora ao inferno, sob aquele
horizonte ora amarelo e estridente, ora violáceo e frio...
“Vês estas cruzes?” – ele me disse apontando um pequeno cemitério- “não posso te dizer se estou
vivo ou se estou morto. Minha vida sempre esteve tanto ali como na desenfreada busca do horizonte, ela
sempre me pareceu como um sonho sem sentido”.
(As nuvens todas formando um olho se juntaram - no leito de morte os pássaros seus cantos retomaram)
Então ele abriu um dos túmulos daquele extenso descampado. Dentro do âmago das trevas um feto
estava morto – e seu coração pulsava
todavia.

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O epitáfio de todos

Dois velhos estavam sentados em um banco,


Eles nada diziam e seus olhos nada viam
Além do vazio que em seus olhos se estampava.
- Vocês estão esperando algo? – perguntei
-Por quê? – um dos velhos retrucou –
-Parece que estamos esperando algo?
Eles continuavam a olhar fixamente para um ponto entre as árvores da praça. As folhas das
árvores caíam em seus corpos, seus corpos se decompunham entre a névoa, seus olhos
eram como gotas enervadas de sangue que a qualquer momento os deixariam cegos (como
os oráculos, como Homero, como Tirésias), mas parecia que seus corpos jamais iriam acabar de
decompor-se. Parecia que, nascendo assim, é que dessa forma morreriam...
- Parece. Faz anos que passo por aqui e a cada jornada eu vejo vocês no mesmo banco com
a mesma expressão.
-Pois é.
-A vida é monótona.
-Uma conjugação de diferentes tipos de tédio.
- Mas vocês não esperam nada? Nenhuma esperança?
- Não temos esperança, apenas esperamos.
- Mas então por que esperam?
-Não temos nada a esperar, mas nada além disso a fazer.
-Vocês não têm sequer a esperança de ter uma esperança? Sem isso não há como ter
nenhuma possibilidade de ser feliz.
E eles me fitaram como se estivessem a ouvir o maior dos absurdos.
-Meu jovem, deixa te fazer uma pergunta. Se você responder eu conseguirei te dizer que sou
feliz:
- Pode perguntar.
- Como pode haver a esperança se existe a morte?

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A caixa de Pandora

Pandora se mirava em um espelho


Que refletia a cosmogonia de outros seres
Ansiosos por encontrarem o silêncio...
Até que ela virou-se para mim que a esperara
E prometeu-me mostrar o seu Segredo
Que unia e separava nossos gritos.

Qual o trovão que rompeu o eixo do universo


E rompeu o crânio de todos que viviam? Qual
A noite que transformou os fantasmas em sombras
E fez que pensassem serem homens? - Apenas
Sei que encontrei-me semivivo entre os defuntos
E que Pandora como um sonho escondia sua face
(Sua face sob seus cabelos negros como a lua)
E que lentamente levantei-me do meu corpo
E vislumbrei um mundo não escuro porém claro,
Claro como um deserto de casas, homens e ruínas
Recoberto; de casas, homens e ruínas,
Asfixiados por terríveis névoas milenares...
Então Pandora, altiva, ao recortar-se entre as ruínas
Parte dessa névoa desmembrou
E com seus dedos o véu do cosmos espargiu;
Por aquelas ruas sempiternas caminhamos,
Enquanto as casas cada vez eram mais pobres,
E tudo, árido árido árido
Repetia-se no mesmo céu eterno e fugitivo
Como se estivéramos a reviver as nossas mortes...
Dentro das casas viam-se homens e mulheres
Indefinidamente iguais como espelhos
E dentro das casas, das tabernas, das alcovas
Viam-se lagartos a escorrer de olhos ocos
Enquanto pelas ruelas solitárias esqueletos
Espalhavam-se fincados nos detritos
Como árvores que pelo vento se plantassem
E que do rio de esgoto se nutrissem;
Até que o sol foi eclipsado pelas sombras
E o céu ermo de sois e de estrelas transformado
Em um depósito de todos os matizes da tristeza.
Ao chegarmos ao antro mais miserável da cidade
Onde a solidão como um pássaro-morto era completa
Ela mostrou-me a caixa na qual os raios de sol se extinguiam
E onde os gritos se concentravam em silêncio,
E eu lhe perguntei: “Qual é a história desta caixa, Pandora? Eu quero
Ouvir a história desta caixa, Pandora!!!!!!!!!!”
O piso de vidro a qualquer momento iria sucumbir-nos
O céu a qualquer momento nos tragaria em seu ventre
Os últimos pássaros fugiam para a Tebas desolada
As sombras fugiam dos crânios e nos sepulcros se fincavam
Ela abriu os braços e começou a girar sobre si mesma
E, histérica histérica histérica
Se desnudava e ria repetindo
Algo que eu podia sentir
Mas jamais entender:
“Todos nós somos órfãos. Não porque nossos pais
tenham morrido
Mas sim porque jamais existiram”

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“Você quer ouvir a história da morte?
A morte nasceu em um dia em que tudo estava vivo
E todos a olharam espantados, epilépticos, perplexos
E se perceberam todos mortos, mortos, mortos,
Mortos como as árvores, as pedras, o rio, o oceano
Mortos como as montanhas, os vulcões, o céu, a tempestade
Mortos como tudo o que não chora por ser morto
ESTA É A CAIXA DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA
Então a morte como um ovo sem casca foi se abrindo
Até habitar o âmago do âmago do homem
E os Deuses e Mitos começaram a brotar d’alma humana
Como se da caverna os morcegos da escuridão se afugentassem
E a Terra foi se transformando em um espectro inacabado
De tudo o que os homens faziam para livrar-se do seu fado
ESTA É A CAIXA DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA
E os homens construíram templos, igrejas, cidades
Mumificaram seus cadáveres com o adubo de seus feitos
Transformaram-se em estátuas insípidas de esterco
Empilharam livros contendo nada além do seu vazio
Mas as cidades tornaram-se mais vivas do que eles
Mesmo sendo desertas como um sonho sem imagens
E os templos e igrejas foram se incendiando pouco a pouco
Como a luz que expira no próprio nascimento
ESTA É A CAIXA DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA
E se colocasses no crânio uma mágica lanterna
E visses o que está por trás de cada universo aprisionado
E se penetrasses no escuro, nessa lua
Verias uma fileira de homens ocos, desolados
Sob uma ponte entre o mar e suas rezas
A buscarem as estrelas que regozijam a mãe-terra
Mas, ao olharem bem, o céu é todo chumbo
E a alegria não é mais do que uma nuvem,
ESTA É A CAIXA DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA
Não há flores que escondam o epitáfio em que nascemos!
Não há sois que brilhem na noite que morremos!
Então por que temes, em teu quarto, no escuro, na surdina
Que venham bater em tua porta e dizer: “vim te buscar eu sou a morte?”
Nós somos a morte, somos nós a máscara escarlate!
Giramos em uma chama, chama adentro
E ardemos pois a chama de nós se alimenta
¡ESTA É A CAIXA DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA!
Somos a dor, não só a morte mas a dor
¡¡ESTA É A CAIXA DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA!!
Suas vestes haviam caído seu corpo estava nu como um sepulcro

Se olhares para o fundo desta caixa


Verás que há a espera jamais a esperança
¡¡¡ESTA É A CAIXA DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA!!!
Tudo o que era sofrimento agora é caos
¡¡¡¡ESTA É A CAIXA DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA!!!!
¡¡¡A CAIXA DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA!!!
¡¡DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA!!
¡DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA!
DE PANDORA DE PANDORA DE PANDORA

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Na estação ferroviária

TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOO
LA LA LA LA LA LA LA LA LA
OOOOOOOOOOOOOOOO
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
LA LA LA LA LA LA LA LA LA
Desagregando-me destruindo-me arrastando-me
Desvanecendo-me dissolvendo-me perdendo-me
Eu estou fora estou dentro estou entre
Passei a vida perseguindo fantasmas
Quem me vê vê meu espectro
Jamais conseguirei deixar-pegar o trem
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO

TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
Apitos Estrondos Cataclismos Suicídios
Disparos Comoções Enterros Fogos-fátuos
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT

Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah
Desagregando-me desmembrando-me arrastando-me
Desvanecendo-me dissolvendo-me para sempre me perdendo
Voz da morte propaga sono entre os viventes
Homem triste carrega mala da verdade
“O tempo passa passa passa
E as janelas da estação jamais se rompem”
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOO
TTTTTTT T T T T T T T TTTTTTTTT
Nesta estação em que passou-se a vida inteira
Nesta estação em que apenas ouvem-se os gritos
Ou o silêncio absoluto de estar morto
Eu espero o trem e não sei sequer o que este significa
Mas apenas que em sua presença ou ausência
Há uma agonia que morte alguma seria capaz de superar
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOOOOO
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah Ah
Daqui a pouco o trem chegará
E eu irei rumo a seu centro
Rumo a seu centro inexistente como um túnel
Rumo a seu centro do qual as almas jamais voltam
TTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOO
TTTTTTTTTTTTTTTTT
Voltam voltam voltam voltam
Sombras arquejantes dando as mãos
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
“Que horas são?” “São três da tarde
E ele sequer abriu os olhos”
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOOOO
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
LA LA LA LA LA LA LA LA LA
Mas uma pergunta, uma única pergunta
Aflora nesta estação de espera interminável:

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Em todas estas cidades por onde deixamos nossas fezes
Conseguiremos remos remos
Deixar lápides que provem que vivemos?
que vivemos?
que vivemos?
que vivemos?

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In the wonderland

Longe dos trilhos dos trens


Um menino se esgueira através da memória
Em oníricas planícies nevadas
Onde o sol se contorce escondendo morcegos
E um grito de terras longínquas
Se espalha como um tumor pelo céu.

Ele sempre esteve lá


Por mais que vozes, furiosas, dos bondes, o chamassem...
Sempre só entre os pássaros sombrios,
Quase como um espantalho imóvel na noite,
Sem nenhuma reação ao sofrimento
Além de meramente sofrer.

Sim, In the wonderland


Onde as crianças brincam e comem marsmallhows
E ele se agasalha da chuva deserta de seus sonhos
Vendo a procissão que na noite se dissolve
E ouvindo, ao longe, o som mecânico da vida,
Sempre triste na terra do nunca
No nunca
Da terra.

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Na estação ferroviária

TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOOO
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOOO
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOOO
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOOO
Eu que vivo em sonhos e que em sonhos morrerei
Terei alguém para levar-me para dentro desse trem
Ou acompanhar-me no exílio de estar fora?
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
Eu que vivo em sonhos e que em sonhos morrerei
Poderei encontrar nesta cápsula de aço
Um refúgio que mimetize o paraíso
Ou que me faça pelo menos esquecer
Que tudo nesta vida
Não passa de miragem de miragem de miragem?
TTTTTTTTTTTTTTTTTTTTTT
OOOOOOOOOOOOOOOOOO
LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA
OOOOOOOOOOOOOOOOOOOO
TTTTttttTTTToTTTtTTTTTtTTTTTTTTT
TTTTTttttTTTTOTlaLaTTTttttTTTTTtTtTTTT
TTTTTtttttOOOOLALaTTTahAHHhAhhhaHhhhTTTTTTTT
Poderei, enfim, regurgitar minhas ruínas?

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Céus de névoa se fecham,

Não há mais nada que ande pela terra,

Um sol se expande e sucumbe

No oceano-tempestade dos sonhos.

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Jenny segurou a minha mão,
Ela me levou através da tempestade.
“Para onde estamos indo?” – perguntei –
E uma voz (que eu nunca tinha ouvido) sussurrou:
“Para dentro, para dentro, para dentro
Onde os pássaros não cantam
E um mar invisível reverbera.”

Não havia como não segui-la,


Não havia como não amar aquela imensa solidão.
E sem que percebêssemos caímos em um poço
Sinistro e perverso como a ausência de um sorriso.
Nos primórdios do tempo pousamos nossa dor,
No fundo daquele poço onde os fantasmas borbulhavam
Fizemos nosso casulo de onde jamais poderíamos sair...

Rostos desconhecidos nesse absurdo debruçaram seus anseios,


Eles profetizaram pesadelos há muito esquecidos.
“Éramos prisioneiros, Jenny? Tínhamos
Algum meio de fugir daquela obscura caverna?”
Crianças por trás da folhagem riram de nossas pretensões
E, no deserto dessa insônia
Eu ouvi um silêncio, quase um vazio,
Um baque a repercutir por toda a vida:
“Que mar seria esse?”

Ela me levou a um quarto,


(de paredes rachadas e vozes comprimidas)
Onde apenas pinturas de mim se refletiam.
“Que estranho! Quem havia pintado tais figuras?”
Ela não soube responder. Apenas
Fitou seus olhos suaves sobre os altivos-frágeis olhos

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Que em cada quadro irrequieto reluziam...
“Um dia eu pensei que era Jesus
Pensei por um momento que o messias fosse eu”

Mas meus pais me disseram que não,


Negaram meus anseios de me transformar no universo.
“Por que tanto sofrimento?” – me disseram –
Eu olhava para o alto na imensidão do céu anis
Onde milhões de espelhos o meu rosto contemplavam
E, dentro dos meus sonhos, eu gritei (como em sonhos seguintes
gritaria)
“Por que tanta cobiça? Por que tanta
Ingrata solidão?”

Cansado em uma pedra eu me sentei,


E por um momento minhas ambições desvaneceram.
“Havia apenas a dor... não é, Jenny?
A dor de um céu azul
Sem nuvens, sem estrelas, límpido, vazio...”
E naquela pedra, cansado, eu chorei.
Talvez para alimentar o mar
Que dentro de mim parecia não caber.

Cruzamos então uma ponte, tudo era deixado para trás,


O rio fluía embaixo, bem embaixo, de mim.
“Jenny, para onde vamos?”
Seus olhos não tinham um rumo definido;
Eles só queriam adentrar-se, adentrar-se, adentrar-se
Sem nenhuma expectativa de saída
Sem nenhum grito a irromper no firmamento.

Chegamos então a uma sala,


Onde as portas beiravam o infinito
Após outras salas de infinitas portas
ter transporto.
“Qual dessas portas Jenny, minha Jenny
Nos fará sair da tempestade
E fazer- nos voltar a terra firme?”
- Qual, qual dessas portas?

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Ela não disse nada,
Seus olhos absortos pousavam suas mãos no infinito...
“Para onde estamos indo?” – perguntei –
E ela, com uma voz ainda mais aflita, sussurrou:
“Para dentro, para dentro, para dentro
Sempre deslizando através da tempestade
Rumo a um lugar que não existe
Rumo talvez a nossa alma”.

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O QUARTO
DA DOR

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Em um dia que é sempre presente,
Um gigante coberto de fezes recebeu-me:

“Bate três vezes na porta da dor,


A dor é sempre maior que tua alma
E sempre mais bela que teus sonhos.
Bate três vezes na porta da dor,
A dor sempre arqueja
As mais altas estátuas.”

SLADEN LADEN LADEN LADEN

Os enormes vitrais mostravam figuras


De inúmeros servos por mãos divinas chicotados
E por mais que eu tentasse fugir da antecâmara sombria
As portas estavam seladas pelo sangue de meus dias
E o boneco de um homem, enforcado
Penderia, para sempre
Como um amuleto do mal em minha mente.

“O jantar está servido –ele me disse- as entranhas


De todos os exaustos convidados
Se espalham pela mesa.
Para transformar-te em Buda, Jesus
Ou outro messias que aos mortais se imortalize
Terás de devorar essas entranhas, devorá-las
Junto com as próprias entranhas de teu corpo
Que tanto em teus sonhos idolatras...”

SLADEN LADEN LADEN LADEN

Então ele abriu uma porta e mais outra e mais outra


Cada uma parecendo mais estreita e baixa do que a outra
Como se estivéramos a regredir ao nosso início:
“E só me seguires e eu te levarei ao quarto da dor
Onde todas as dores que sentiste,
As sentirás de uma única vez.”

“Bate três vezes na porta da dor,


A dor é sempre maior que tua alma
E sempre mais atraente que a carne;
Bate três vezes na porta da dor,
Quanto mais nela bateres
Mais dela necessitarás para sorrires.”

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O JARDIM DOS
PRAZERES

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Era o jardim dos prazeres situado entre os braços da aurora,
Era o jardim da aurora frente aos portais do paraíso.
E nesse jardim minha mãe se chamava Alegria
E me segurava na montanha-russa apenas nossa
Enquanto me dizia, em meu ouvido:
“O mundo é um céu sem limites,
Não um açougue... um açougue...
O mundo somos este jardim e somos nós.”

À distância as crianças brincavam


Enquanto as gangorras balançavam, vazias
pelo parque
Que escurecia da janela do meu mundo...
Mas eu sempre estava em meu espelho
E o único que habitava meus sonhos
Era o extenso jardim dos prazeres
Mais vasto que o corpo materno
E mais imponente que a voz das estátuas

Fazia frio. Nevava. Escurecia.


E então, quando as cortinas do quarto se fechavam,
Meu pai abria a porta da biblioteca secreta
E, como se estivesse a girar um cata-vento,
Girava o globo me mostrando
Os continentes, os oceanos, as savanas
Os templários, os dinossauros, as galáxias,
E me colocava em seus ombros de colosso
Levando-me à grande grande cavalgada
Rumo ao fim e começo de todos os tempos,
Rumo ao coração das extintas estrelas!

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Mas ah, a tempestade começava lá fora
E incessantemente as cortinas tremiam
Como se o vento estivesse carregado de gritos
E como se os morcegos ao romper a janela
Fizessem do quarto um santuário de monstros...

...

Era o jardim dos prazeres situado entre os braços da aurora,


Era o jardim da aurora frente aos portais do paraíso!
E não se saberá nunca se o quarto mudou,
Se na verdade havia enterros nas primeiras auroras!
Um muro enorme começou a separar-me do jardim
Todos diziam que o menino sem-Deus era doente
E que ninguém sabendo do que se tratava
Necessitaria de todos os hospitais de todos os mundos
Para que pelo menos pudesse prolongar sua vida,
“Minha mãe
Meu pai
Onde estão todos?”

“Deixa-me pai girar o globo mais uma vez...

Deixa-me mãe deitar-me mais uma vez ao teu lado

Quando vou à escola os meninos me batem porque não consigo brincar”

Muralhas concêntricas girando em torno da dor


Abandonando a alma como se fosse um boneco

Torturando-a como se o vento engendrasse fantasmas


Cortinas carregadas de gritos não me deixando dormir
Cabeças de cavalos em funestos candelabros

Oh, onde está você, oh minha alma, oh aurora??

E porque não consigo brincar eu imagino castelos de ar, eu faço do meu quarto um refúgio, eu passo as horas
reinventando o passado, eu fito os olhos de meus bonecos sem vida
e eles me dão medo
pois brilham no escuro como se fossem humanos ...

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Agora na biblioteca as folhas flutuam os quadros a minha luz absorvem

E os pêndulos tingem-se de sangue podre gangrenado

Quando alguém além do muro no jardim


Aponta o dedo e diz: “Ele, ele ali recluso
Esse homem, sim, esse homem,
Esse homem está enlouquecendo!!”
E então se cai em um poço mais profundo que a dor
E então se enterra a cabeça entre as pedras
Pois a imagem do jardim traga os resquícios da mente
E os transforma em ruínas de templos esquecidos,
E então o dia longo interminável como um livro nunca escrito
E então a noite vaga vagarosa como um sonho nunca tido
-Oh meu pai!
-Oh minha mãe!
Não se poderia abrir uma brecha
Entre a muralha do tempo?
Não se poderia nesta casa
Destruir o negro reino da aurora?
“Estás doente, temos que levar-te ao hospital...”

“A entrada ao carrossel é proibida”

Nesta casa, Nesta casa


Nesta casa abandonada!
Onde brotam cadáveres azuis
E não se sabe jamaais
Se o vulto é nosso ou de um fantasma
Nesta casa, nesta casa
Onde um palhaço controla nossos sonhos
E onde os brinquedos roídos pelos ratos
Nesta casa, nesta casa
Formam teias de ecos na memória
Nesta casa, nesta casa
Nesta casa eternamente abandonada!

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Retornei ao jardim dos prazeres
Enquanto o céu, enegrecido, sucumbe ao meu redor.
Uma menina diante de um coelho se debruça
E após persegui-la lhe perguntei que horas são
Ela me diria que o tempo não havia
Que apenas a eternidade existirá
A eternidade e a morte
A morte, a eternidade, A MEMÓRIA

“Se ficares muito tempo preso a teu passado


Chegará um tempo, um tempo
Em que não poderás mais retornar.”

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Nesta casa de milhares de escadas

Há quartos que não podem ser abertos

Fantasmas que conversam ao ser vistos

Um livro que flutua na penumbra

O menino vê o céu e não entende

Pergunta aos girassóis sobre a neve

É meio dia e tudo está escuro

Desci as escadas que levam ao passado

Retratos tremiam das paredes como sonhos

No fim da vida vi um morto

E ele estava vivo.

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Las puertas de la cocina se abren...
Mis abuelos juegan cartas en la mesa, mi tía les sirve un té tibio… Y en la pared hay
un reloj, un reloj que señala que de pronto todos dormirán

“Te hemos esperado hace mucho, hijo”

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Entre as escadas os passos sobem e descem

Encosto o meu ouvido no chão frio

Sob a cama escuto o de dentro:

O poço me olha e diz que sou a noite As estrelas se dissolvem ao


me olharem Há mortos que nadam ao ser vistos Árvores negras me
cercam e me sugam Quando criança eu olhava o infinito Ele se
retorcia como os dedos de um cadáver Uma folha se desagrega e se
contorce Estou girando lentamente em suas águas
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Como um
Redemoinho
Em que todo o tempo
Fosse pelo gigante engolido
Assim o jardim os rostos horizontes
E os bustos de pálidas mulheres
Se dissolviam nas águas
Da caverna
Que um mundo
De ecos
Refletia
e

À deriva À deriva
Segurando
Um relógio Pulsante
De carne eu
A um estanque
DE ÁGUAS MORTAS

Flutuava

Onde
Com a dissolução
Das clepsidras
Os morcegos
Em enormes
Répteis
De asas negras
Se tornavam

E a morte

Da memória
Carregavam

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Eu tentava reter o ritmo das águas, represá-las em minhas mãos que com o vento
apodreciam... “Havia rios que, ao invés de descerem, subiam as montanhas” – me diziam – Mas,
embaixo da terra, o que eles podem além de descerem
de descerem
sem retorno?

......................................

Um tribunal emerge em meio as trevas, um tribunal me cerca e forma um olho ao


meu redor... “Assassinaste a ti mesmo, aos outros suicidaste e por
quê? Quantos poderiam estar vivos se não estivesses flutuando flutuando? - Passaste a
vida a olhar os pêndulos no escuro... És um inútil, um inútil um inútil” “Um pedaço de
carne que de si e dos outros se alimenta” “Lâminas deveriam cortar o teu esôfago,
enforcar
com ele tua vida”

Eu lhes disse que ao jogar-me nas águas meu corpo não

Reviveria outro corpo que eu não tinha a culpa

A culpa a culpa a culpa a culpa

Mas eles faziam que eu chorasse

Faziam que ao dormir eu me afogasse

Os pêndulos oscilam e oscilam oscilam


E oscilam o escuro Abro os olhos
Acordo Adormeço Os pêndulos oscilam
E oscilam oscilam e oscilam
Não sei há quanto tempo estou aqui. Meses, segundos
Gerações Medi a vida em gotas que caem uma a uma .
Rastejo em busca do meu rosto O oh meu corpo
Se decompõe e volta a recompor-se O meu reflexo
Aumenta Diminui Para não vê-lo
Rastejo e deixo um morto aonde passo Ao levantar-me
Transformo-me em verme sanguessuga
Os pêndulos oscilam e oscilam Oscilam
E ecoam Sem que eu jamais os possa OU-VE-EER

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Chamas povoam o céu de pesadelos... Pterodátilos
Ao tentar devorarem os meus olhos, anseiam
Transformar-me em um ser que espera a morte

Como um
Redemoinho
Em que as águas
De todas
As cavernas
Em dejetos
E em mortos
Revivessem
Como um
Rede-moinho
Em que os órgãos
Do meu corpo
Em espasmos
E em sangue
Se solvessem
Dessa forma
Pela boca
Do gigante
Eu nadava
E,
Vomitando
Vomitando as lem-
branças a saliva as saudades
as hemácias as ausências Tudo
Dessa forma
Ao fundo
Do meu pâncreas
Eu caia
E
No fundo
Desse órgão
Eu ouvia,
Eu ouvia
Os seres
Ancestrais
Que repetiam,
ESTE É O TRIBUNAL
DOS CEGOS IMORTAIS.

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Os cegos em vultos brancos se transformam... A caverna
Mostra paredes lisas e um mundo sem reflexos... Ao desvanecer-se a penumbra, o que vejo?
São mulheres carregando aparelhos de tortura... produzindo, venenos em frascos de falsos elixires...
Estertores que em silêncio se transformam... ESTÁS NO HOSPITAL
NO HOSPITAL EM QUE PASSASTE TODA A TUA VIDA - e várias vozes
do fundo da brancura reverberam - ESTÁS NO HOSPITAL! NO HOSPITAL!
TODOS ESTÃO DEITADOS AQUI EM LEITOS IGUAIS
PORÉM POUCOS O PERCEBEM E OS QUE O FAZEM
GRITAM SOCORRO DESDE O NASCIMENTO

Luzes brancas outras luzes amortecem Leitos e mais leitos


Se dissolvem em lânguidas dormências Lâmpadas
Absorvem os que morrem ao nascerem

Estou mais calmo... A primeira das mulheres ela é bela,


Bela como um sepulcro que jamais foi saciado...
Porém, há algo estranho em seus olhos algo
Que empalidece minha pele, que faz
Que com as paredes me confunda

A enfermeira ohh
De um olho ela está cega, de um olho
Ela não pode ver metade da caverna!

Oh Oh Oh Oh

“O que você quer?” – ela me diz –


“Todos os vulcões estão extintos,
Eles só podem ser revividos pelos sonhos, portanto
O único que não podes fazer é dormir”

Não me deixes dormir se não não voltarei

Não me deixes dormir se não serei sacrificado

Não me deixes dormir se não não voltarei

Não me deixes dormir se não não voltarei

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Oh Oh Oh Oh

O ESCURO A LUZ

O ESCURO A LUZ O HOSPITAL

Caminho por uma rua deserta,


É cedo e as pessoas estão nos escritórios.
Os postes se apagam sem motivo,
Ouço passos de alguém que se aproxima
E quando caminho ele me segue
E quando paro ele gira ao meu redor
E do nada me aponta um revólver. Meeu pai
Gira o globo no escuro. Caio

Abro os olhos. Os mesmos objetos


Se recortam na penumbra desse quarto
E a mesma seringa se inserta sobre a mesa.
Porém, não consigo me mover. Uma sombra
Que tem o rosto de um dos pacientes
Se aproxima e me diz algo
Inexprimível.

Novamente abro os olhos. Dessa vez


Me levanto e com alívio abro as cortinas
Mas atrás destas apenas
Há cortinas.
Abro os olhos. Imóvel
Espero que a escuridão se desvaneça
E a mim mesmo repito
Que não durmo.
A sombra, novamente, se aproxima

O ESCURO A LUZ

O ESCURO A LUZ O HOSPITAL

Não. Não um hospital.


Poderia ser um hospício, um quarto, um orfanato
Uma gruta, um castelo, um labirinto
Uma cátedra, um poço, um túnel, uma torre
Uma montanha, uma cidade, um deserto
Um bosque, um oceano, um espelho
Hermético, escuro, tétrico, letal,

Qualquer planeta extremamente solitário


Qualquer planeta extremamente solitário

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As águas não nos deixam ver as profundezas

Os nossos rostos em silêncio se dissolvem

Não há nada que se mova ao ser imagem

Não há voz que não se mova em aparências,

As águas não se deixam ver o que criaram

De tão fundas não podem ver nossos reflexos

Sombras nadam escondendo umas às outras

Sonhos hibernam atrás das águas negras

Foi quando ao pôr os olhos nelas, ao movê-las

Vi vulcões que expelem o escuro – pterodátilos cruzando o oceano

Remamos pela névoa, as samambaias

Das margens sugam sombras, temos tempo

“O oceano sem luz está distante” – ele me diz

ELES QUEREM FURAR OS NOSSOS OLHOS ELES QUEREM FURAR OS NOSSOS OLHOS

Remamos e remamos, ao remarmos

Estranhas criaturas nos chamam para dentro:

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Celacantos, trilobitas e um anfíbio

Um anfíbio, gigantesco, a me olhar como um inseto

ELES QUEREM FURAR OS NOSSOS OLHOS ELES QUEREM FURAR OS NOSSOS OLHOS

Gêiseres, enxofre, vulcões submarinos

“Por que estás remando para trás?”

Abro os olhos. Estamos em um pântano Há muitos mortos para que se possa

rem ar E há um mamute nesse pântano afogad

Abro os olhos. O cego não está mais do meu lado

Um pterodátilo põe o tempo na quilha desse

Ao cegar-me eles furam o barco em que hibernamos

Redemoinho para dentro do meu sonho

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O hipnotista, o senhor dos relógios,
O que todos os pêndulos oscila, Um cirurgião opera um morto, extrai
O hipnotista, o senhor dos espelhos, me oscila Um órgão que de mim é gangrenado

O órgão se rebela e segurando-se, EXCLAMA: E ele faz os rios subirem as montanhas!


“Eu não quero morrer! Eu não quero morrer!” E ele revive os vulcões submarinos
Onde os sonhos dos mortos se originam!

Gangorras balançam vazias e sozinhas


Céu cinzento gritando o silêncio

Um menino é queimado pelas pipas

Olhos-orifícios das paredes me contemplam. Aranhas ao cruzá-las despertam gritos surdos. “Deverias
respirar os tribunais sem expeli-los, deverias até que te dirão que te dirão “Passaste a vida a ver os
pêndulos que oscilam” e ao flutuariarás terás uma visão: Pedaços de carne pendiam das paredes, a
enfermeira os provava e ao fazê-lo
saboreava carne humana

Vômitos ventosidades ventres ventrículos vitrina cidade multidões música orquestra morte muletas totens
tesouros tiaras araras fissuras varandas pegadas dados docas maremotos touros carrapatos mortos mortos
mortos

- Mortos que mataste, mortos que mataram, mortos suicidas, mortos genocidas, mortos que não sangram, mortos que perdem
os cabelos, mortos de açúcar, mortos de mentira, mortos que não morrem, mortos que não vivem, mortos sempre
mortos, mortos nunca sempre vivos mortos mortos natimortos

Bate três vezes em seu peito

Eu via minha mente a flutuar em águas surdas

Enfermeira, o hipnotista contou-me um segredo:


As pessoas estão dormindo dormindo
Dormindo profundamente
E não sabem nunca sabem E não sabem nunca sabem
Que estão mortas todas mortas... Que nadam
No sangue
Que vomitam

Entre os ventiladores os pterodátilos voam


Tenho medo de romper as minhas asas

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“Oh, você é um tonto
É apenas a febre que te faz pensar assim.”

(A enfermeira tira a roupa lentamente. Sorri como se se tocasse diante de um espelho. Ela me chama com seus dedos
sorrateiros. Me envolve em carícias suaves e sonoras)

Suas vulvas se abrem em degraus subterrâneos


Me levam por paredes quentes e salgadas
Há quartos de mel e de pelugem recobertos
Paredes que tremem ao tocarem-se as papilas
E, ansioso por obter o terremoto eu
Tropeço,
Suas vulvas se abrem em degraus assustadores
Me arrastam por paredes quentes mas salgadas
Há quartos de mel e de penugem que asfixiam
Paredes que apagam suas luzes ao tocá-las - abro a porta:
DENTES DENTES ENORMES
SÃO DENTES-PÁSSARO DENTES DE PÁSSARO CARNÍVORO
Para aliviar-me do cansaço e da penumbra ela balança
Balança e balança gemendo e gemendo
Mas não há prazer em sua pele
Em sua pele pálida que apaga as estrelas,
Ela está derretendo
Eu estou derretendo com ela

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Remamos por três dias e três noites

Ao remar-nos movemos o oceano

Abro a porta. Eles te dirão que te dirão Passaste a vida a olhar os pêndulos que oscilam E flutuariarás como um olho entre os
mortos O escuro se avoluma

O médico ao sair da sala diz: ESTÁ TUDO Ok

Por isso se eu dormir, acordarei ali naquele antro

E estarei morto, morto

Como uma criança cega em teus braços...

Todas as águas são de sangue

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Não me deixes dormir se não não voltarei

Não me deixes dormir, não me deixes dormir

Não me deixes dormir se não serei sacrificado

Não me deixes dormir se não não voltarei

Não me deixes dormir se não não voltarei

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o
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É um corredor que jamais cessa,
Um corredor sem paredes, apenas com espelhos
Espelhos que de dizer tanto nada dizem
E que o maior dos pensamentos jamais destruirá

É uma escada em espiral que jamais cessa


Uma escada branca recoberta
Pelos espectros de todos os que mortos
Ainda vivem e anseiam pela queda

É um poço sem fim e sem princípio


Que no meio desta vida se percebe estar caindo
Uma ferida se abrindo nos interlúdios da noite
Que no meio de um sonho se percebe estar sonhando

É um antro onde o humano se mescla ao ancestral


Espectro de todo inaudito sofrimento
Um lugar tão embaixo das estrelas e da terra
Que se ouvem os grunhidos do inferno

Mas tudo é visto pela mosca. Ela ronda o mundo e vê as casas que perdem inquilinos

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Há um relógio que conta as cores para trás e o coelho não para de girar e o
ventilador não para de tremer e o mundo, o babuíno, escoa pelo ralo do universo

vozes flutuantes palpitações difusas de cores intranquilas

estridências estrimências tremitentes tremulares

“Quantos números tem o inseto de um olho?”

“Quandos silabares os andaimes de um túnel?

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O velho olhou a lua. Trouxe a chave e destrancou a porta do seu olho. De súbito, o vento
veio com antigos terremotos. Eram as vozes de crianças soterradas. O palhaço sorria
violeta céu imenso LA LÉM LA LÉM LALÉM LALÉM

é é é é

“O tédio é a eternidade contida no finito”

“O homem é uma pedra que sangra”

“O olho é uma boca céu imensa”

“O coração é um pulmão que pulsa ar”

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“Ah, o azar é uma menina que teima em ser travessa” “A verdade

é uma Deusa de olhos turvos”


“Tudo o que não é eterno é eternamente inútil”

“Porque o tempo não volta é que continuamos os mesmos”

Há um musgo negro nas arestas do sonho


Os vestidos que flutuam são laranja
Não goteja
O quarto permanece sem girar

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Ela se deitou e esperou o amante. Da janela algumas pessoas a olhavam, como se
esperassem ver alguma mancha em seu corpo. O amor é uma febre -pensou- e contrariada
pôs o seu vestido lentamente.
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No iceberg uma foca foi morta com um arpão na cabeça. Os homens que a mataram, acostumados com o
trabalho, cortaram lentamente a pele e tiraram a gordura. Após isso, voltaram ao barco e pensaram com
orgulho nos lucros que teriam (lampiões seriam acessos e iluminariam a cidade). Então, já a alguns metros
do gelo, um deles, um pouco cansado, olhou para trás: sem conseguir se conter, ficou tremendo ao ver um
arco íris sobre os restos da carcaça.

Ele contou as horas para que sua mãe voltasse. Não conseguindo entender como ela o
deixara, passeou o olhar por aquele imenso salão. Mesmo a biblioteca parecendo um sonho,
entre os livros e CDs se sentiu entediado. Encostado na janela, ficou observando um trem
que se perdia no horizonte...

Um jovem colocou a cabeça entre as pedras. A umidade e o vento geavam seus


cabelos. “Merda, é tarde é daqui a pouco vão sentir a minha falta”... E então, embaixo
da imensa queda d’água, ele teve uma visão:

“Robôs desfaziam as estrelas


Em um castelo extraterrestres sonhavam os humanos.”

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mão da mente

brilhooscuro
horizontes

Para dentro

de um espaço

Inviterno

al
O OCASO!!
almahazen!

quasares
penínsulas

CORSÁRIOS

Ilha-estrelas

Uma úlcera terrível

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Escoa, escoa tudo pelo ralo do universo... os pães, os aromas, os livros, as
cidades, a última anatéma

Há um fogo que se expande no horizonte dos planetas sem tempo – uma a uma as
estrelas e as estátuas se corroem no espelho do infinito

Há um triângulo no centro do abismo – suas bordas, de gelo, ecoam um silêncio


mais azul que o vazio

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É um corredor que jamais cessa
Um corredor sem paredes apenas com espelhos
Espelhos que de dizer tanto nada dizem
E que o maior dos pensamentos jamais destruirá

É uma escada em espiral que jamais cessa,


Uma escada branca recoberta
Pelos espectros de todos os que mortos
Ainda vivem e anseiam pela queda

É um poço sem fim e sem princípio

Que no meio desta vida se percebe estar caindo

Uma ferida se abrindo nos interlúdios da noite

Que no meio de um sonho se percebe estar sonhando

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Mas tudo é visto pela mosca. Ela junta os cacos do abismo, os põe

ONDE O PARALÍTICO SUSTÉM O UNIVERSO.

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Aves fogem caindo como a neve No coração de safira havia um barco à deriva

ilariam lambrea ilariando

Um talismã ribombeia nos ouvidos do abismo

estrelas azuuis Da caverna se escuta um infinito amarelo

As folhas se abrem negras como a dor riorolando

timbre deslocado do mundo árvores esparsas

da é um saliva bordas metal o mangue nas

meningites meninges coágulos de gritos


sargaços hematomas eclusas de clivagens

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Persianas estilhaçariam o mar junto à parede
da gaveta sem armários que

Quando ela veio a primavera já passara

Alfinetes montanha solidão

“De que é feita essa neve sem água?”

“Do que as fontes dos cumes mais profundos?

As carpas do sonho desenham as cores dos tempos infinitos

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É um descampado contido em um quarto

É uma guerra de disparos que jamais irão ser vistos

É um redemoinho de luzes que brilhando se aniquilam

É um mar de espelhos que se rompem e se recompõem eternamente

É um corredor o céu é laranja pessoas violetas caminham há um peso sem fim no coração

é um os olhos gritam que flutuam não há portas no poente uma fratura está escuro exposta nos

Um cabelo cor de esôfago percorre as ruas que percorrem o infinito de folhas diamante d daria

A ilha foi ao continente zebra zebracólar a vida dos bonsais

E é esse

O sol

Argênteo

que exala

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meninges coágulos

sargaços eclusas eclusas de clivagens

marasmo

catatônico

candente

É um corredor que cobre o mundo


Que vai do zenit ao nadir em um segundo
E que, sendo astuto como a faca de um lagarto
Junta as escadas numa única cortina
É um corticorrenoites que não cia
Que se expande pelos fios dos fantasmas
E faz as nuvens deixarem de ser cascas
E as casas surtarem como pipas
É um infinito de uma noite que não dia
Um laranjaesteriolado estremitente
Indolente cemitério boca aberta
Que embolora os azuis sem sentimento
É um lúgubre chuvas enluvado
Que protege o não-teto das paredes
Lenta lentania vagueante
Que sucumbe no cair de antigas folhas
É um carrosseel de fantasmas que fenecem
Um porão onde se guardam as noites sem estrelas
Noites em que os enforcados resplandecem
Onde o retrato da morte jamais rejuvenesce
É um umbral de um infinito em mil pedaços
Um indizível que se diz todas as noites
Escuro que palpita antigos mortos
Móveis que ao mover-se se não movem
É um corredoor que se abre em vários outros
Um poço aberta de um infinito amarela
Que no estranho de um tigre se enuncia
A pele de um tapete sem temperos
É um abajur que se reflete em giramundos
Pregos-horizontes na cabeça de androides
Rostos de em névoa de edifícios se solvendo
Que em sorrie um granito de madeira
É um lalemdomanida fluorescente
Um tetraterremoto impalpelavel
Uriraluante rrimozora oiboidea

Mas tudo é visto pela mosca. Ela junta os cacos do abismo, os põe

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OS GRANDES OLHOS
DE BUDA

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Buda põe seus olhos sobre os meus,
Sorri como se eu fosse um aprendiz.
A temperatura da tua alma está alta – ele me diz –
Ela sobe e desagrega cada parte do teu ser.
“Acalma, acalma a tua alma,
Acalma e fecha os olhos lentamente
Inspira e expira a dor do existir.”

Eu chorava. Desde criança eu chorava.


A vida toda tentara rezar para a virgem
Sem que jamais eu conseguisse acreditar...

Sentado em flor de Lótus ele segura a minha mão,


Me observa como a quem segue um deus errado.
Sem dizer nada ele me afasta o termômetro
Desfaz o tempo e a matéria em seu olhar.
Seus olhos se expandem e contraem,
Sua íris absorve as estrelas,
E ele me leva a um sonho
Em torno do qual o mundo gira:

Das montanhas víamos milhares de eremitas


Cada um numa gaiola tentando libertar-se
E todos diziam serem presos como as folhas
Mesmo sendo as grades de ar como os sonhos.
“Vês, você é assim como eles
Não entende que a busca
É que te faz não ter a PAZ.”

No quarto da não-vida e da não-morte meditamos,


No quarto da não-vida e da não-morte contemplamos
As ondas que em um copo se formavam:
“O oceano em um copo de água,
O universo em tua mente”.

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Mas ouve, ouve a voz dos precipícios:

“Há anos, em um época que talvez não recordes


Cometeste um pecado, um pecado absurdo
Que apenas sabes que existe
Mas que jamais souberas explicar.

Em uma noite negra,


Em um secreto recanto da memória,
O farfalhar das asas de um pássaro acordou-te
E não conseguiste jamais adormecer:

As crianças dormiam, dormiam como sonhos


Embaladas por brancos anjos de marfim
Mas tu, desperto, ao caminhar entre elas, como um espectro
De seus próprios pesadelos, recebeste a mácula
Que somava as que todas as crianças possuíam...

...

Há anos, em uma época que não mais existe,


Algo cindiu tua fronte de vermelho
E ainda hoje, ao observar o vazio do espelho,
Pensas em cada lágrima atroz que derramaste
Ao tentar, em vão, recordar o teu pecado.”

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DENTRO DA
TEMPESTADE

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Jenny surgiu entre as brumas do absurdo
Como se por um longo tempo eu houvesse sonhado
E somente agora sua imagem
Fosse reaparecer em minha mente.
E nessa continuação do sonho em que sonhava
Não havia mais imagens se sucedendo sem sentido
Mas apenas um retrato estático, inerte
Fincando-se nos pórticos da lua.

Estávamos, enfim, no coração do universo


Fustigados pela tempestade das lágrimas humanas
E milhares de almas seguravam guarda-chuvas
Como se estes fossem protegê-las de seus gritos.
Mas ela apenas mirava a tempestade,

A tempestade sem relâmpagos, límpida, vazia

A tempestade sem ecos, sem fantasmas, sem prenúncios

Enquanto eu gritava no túnel de seus olhos

E a abraçava pra que o orbe não saísse do seu eixo,


Como se a tempestade fosse varrer-nos deste mundo
E fazer-nos rodopiar como folhas no absurdo,
“Isso é tudo o que conseguimos, não é, Jenny?
Espectros em um mundo sem fadas,
Estátuas tristes sob os pórticos lunares!
Jamais conseguiremos crescer,
Jamais conseguiremos nos livrar
Dos cadáveres que um dia plantaram para nós”

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(E do fundo da tempestade vinha apenas uma voz,
A sua voz se repetindo como um eco, um disparo, um suicídio)

“De tanta chuva iremos morrer,


Morrer para sempre,
Não como
As outras
Crianças
Morrem
Por segundos
Quando sonham.”

(E o disparo se desfazia entre as brumas do absoluto,


Silêncio atroz a ferir o eco do Nefasto)

“Apenas nós estávamos despertos, Jenny?


Apenas nós
Perambulávamos entre aquelas crianças
Semicegas, semisurdas, semitudo
Embaixo, sempre embaixo,
Da chuva que nossas almas inundava?”

Automóveis eram dirigidos por mulheres nos volantes desmaiadas... Do alto

De edifícios, bebês eram lançados e caiam em charcos pela lua refletidos...

Todos estavam cegos, surdos, uns aos outros amarrados... Todos

Cegos, surdos, amarrados sem no entanto se tocarem...

Sonâmbulos se arrastavam deixando como lastro o suicídio

Bêbados dessecavam nos varais suas lembranças

Mendigos pediam um pedaço de estrela em agonia

E eu me via sempre só a pisar em charcos feitos pela chuva

Sem jamais, como a criança que a morte não conhece,

Ver o mundo da janela de trás do automóvel...

Jenny, minha Jenny! Por que


Não nos protegemos dessa abominável tempestade
E ficamos felizes para sempre
Ou, pelo menos, na eternidade deste sonho?

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Por que, Jenny, minha Jenny
Não nos protegemos dessas nuvens
Dessas nuvens que cobrem esta lua
Desse oco que em cada olho se reflete desses
Automóveis que o caos elaboram por que
Não ficamos cegos como um feto
E vivemos sem culpa dentro da mente sem limites?
E então, com seus olhos maliciosos
Ela olhou-me sem sequer pestanejar
E, como um único grito que brotasse
Das profundezas de uma casa abandonada,
Sua voz, frágil e altiva
Fundiu-se, inexoravelmente, com a minha:
Um guarda-chuva pode proteger-nos da chuva
Mas não pode proteger-nos da dor,
Nenhum cristo poderia realizar essa façanha,
Nenhuma cruz rente ao leito poderia afugentar os pesadelos!
Somente há como suportar a dor alheia,

Não há como suportar a própria dor!

Somente há como suportar a dor alheia,

Não há como suportar a própria dor!

Somente há como suportar a dor alheia,

Não há como suportar a própria dor!

Somente há como suportar a dor alheia

Não há como fugir da própria dor

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NOS PAVILHÕES
VERMELHOS

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Pipas penetram no celeste céu de outrora
O vento me toca de leve como um mártir,
Eu não distingo o sonho, a memória e a noite
Balões sobem rente minha borbulhante retina.
Há crateras em tudo, crateras
Que cospem chamas azuuis e noites sem estrelas.

Diante da visão eu me detenho,


Encosto minha vida em uma rede
E fico observando como lentamente ela passa.
Me balanço de um lado para o outro
Como se estivesse a deslizar no ar em que respiro
E tudo se mistura em uma súplica
E tudo é quente e tedioso como a espera
De algo que sabidamente jamais irá acontecer.

As folhas caem. O vento fere


Lá longe vozes distantes como a memória
Tentam me acurralar em um mundo febril
Onde as árvores para sempre continuam crianças,
E as pipas reinam no céu azul do sofrimento
Como se tentassem fugir do purgatório, buscar
Um pedaço de sol que não existe em suas almas...

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Entediado de me balançar sem jamais ter o sol
Levanto-me e de país em país perambulo
Adormecendo e acordando como se fosse um fantasma
E por cada lugar que passo faço um Templo
Não dedicado às divindades e sim aos meus sonhos.
Então, ao me perguntarem por que
Não fixo meus pés num lugar,
Digo que busco
Aquela pipa perdida…

Tenho oito anos mas meus pés conhecem as terras


Onde o sol nasce e onde ele se põe,
Nos dias de sol me escondo sob as muralhas da China,
Nos de chuva no templo das serpes medito;
E triste, no topo do mundo
Observo o voo do grou perdido
Que, ao ver o mundo
Jamais encontra o seu lar...

Ao sair de casa e deixar meus brinquedos,


Pego o Hakama que escapou dos meus sonhos,
Vejo as cerejeiras que no poente adormecem
E quando, de tão triste, quero para sempre dormir,
Dou uma volta na lua, giro pelos anéis de saturno
Até que alguém apaga a luz e me proíbe de ler.

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Mãe, após noites lendo este livro

Fechei estas paisagens e parei de sonhar.

Fiz o que me disseste – fechei este livro

E tentei com as crianças brincar.

Eu não sei se estou aqui ou no futuro, mãe...

Meu corpo é de criança mas a voz, a voz

Mãe, me deste o livro que contém o universo. Um dia, meu pai abriu-o e soletrou-o para mim. Não
posso deixar suas imagens. Canta o mundo sua tênue melodia, mas ele nunca canta para mim... Apenas tu
me cantas a canção de ninar, apenas com tua voz eu adormeço sem temer não acordar...

Não posso deixar suas imagens. A noite do mundo acabaria mas eu jamais veria estas estrelas, o
choro secaria mas jamais saciaria esta sede…Com teu livro abro todos os livros, abro, desperto, as nuvens
de todos os sonhos... E são tantas as imagens, tantas, que eu nunca poderei acabar a obra que escrevo,
que eu nunca a deixarei completa como o Livro que me dás…

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Mas mãe! Os livros, os livros também não me deixam dormir, não me deixam nem em meus sonhos
brincar! Agora que estou no oriente eu fecho os olhos, fecho os olhos e, em um segundo, o que vejo? Vejo
neves eternas, inacessíveis penhascos e mãe, que horror! Tudo flutuava flutuava

em um abismo infinito…

Mãe, não te afastes... Não antes que me leves para o fundo de teus sonhos...

“Dorme, filho dorme...Apenas ao fazê-lo entrarás em outras eras... “

Por que o quarto está cada vez mais comprido, mãe?

Os pavilhões não podem parar de repetir-se... Lampiões alumbram os antigos condenados... “Dorme,
filho dorme, abre a porta”. Em um pátio um menino lê um livro, ele se levanta e vê o horizonte: Gueixas
penteiam seus cabelos como a neve, uma outra está chorando...”Por que sofres? -eu pergunto- e ela me olha
como se eu não soubesse da verdade... ...De uma torre há um vapor que cobre o mundo, ruelas estreitas são
cobertas pela neve: os lampiões vermelhos se repetem, janelas se abrem entre os infindáveis
pavilhões... “Fecha a janela, mãe, tenho medo” AS ESTRELAS UMA A UMA SE APAGAM

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Caminho atravessando janelas,
Elas me perseguem enquanto persigo meus medos,
Como um animal eu olho o espelho
E ando para trás sem reconhecer minha imagem.

As janelas refletem minha fuga.


Não há como avançar. Elas dão a um mundo escuro
E pálido, feito o grunhido de um animal enforcado...
Tudo me persegue. Quadros
Espreitam o meu sono, despertam
ECOS ORIUNDOS DE ANTIGAS CONFISSÕES.

Tudo está ficando confuso.


Como sempre como antes
De cada grito dado no epicentro da noite.
E o mundo treme ante meus pés
E eu caio
Caio
Caio
Estilhaçando-me nos cacos
Das infindáveis janelas quebradas...

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(Os pavilhões se abrem. Na frente de um templo um vulto me lê a inscrição)

“O sol está enclausurado entre as paredes.


A lua dança no lago sem encontrar sua imagem.
No fundo desses recintos há um espelho
De água contida e fogo emudecido
Em que as estátuas decepadas – de Buda,
Krishna, Ísis e Xiva – se refletem.
E nesses pavilhões onde a dor é coroada
Perfilam as sombras do mundo perdido.

Ao entrar nesses redutos, todos sabem


Não se pode mais sair...
Os imortais não vivem mais entre as nuvens
O pássaro de barro já não ganha mais a vida
Brahma não mais inspira e expira a substância universal,
O elefante que carregava o mundo está morto.
Há uma cabeça de rinoceronte na parede
Mas seus olhos estão secos e nem as lágrimas
fluem.

Há muito, muito tempo, os pavilhões eram dourados.


Tambores percorriam estas paredes com ecos sagrados
Rituais reviviam sacerdotes e crianças não nascidas
A mãe Ganga purificava as almas em seu leito
E quando alguém estava cansado da chama,
Da chama eterna que o fazia respirar,
Isolava-se nas montanhas morrendo de fome...

Mas os pavilhões já não são mais dourados.


Há quantos milênios eles foram pintados?
Quando eles serão terminados?
Quem foram os arquitetos desse espetáculo horrendo?
Foram eles que criaram os pavilhões vermelhos
Ou eles é que foram criados?”

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Sou a criança que vê o nascer-e-destruir do universo,
Tenho cada idade em um de meus cabelos,
Ciclo por ciclo conheci o que passou o ser humano
Vi o falcão voar e voar de novo e de novo.
Mas, ó céus que por vezes infinitas
Fizeram-me sentir um velho frente à morte,
Em um dia, pelos desfiladeiros sagrados
Vi algo, porém, que jamais havia visto:
Os bambus choravam e choravam
Não como sábios e sim como crianças
E suas lágrimas, estrelas líquidas, formavam
As corredeiras da morte...
Então, ao perguntar às folhas que ocorria
As folhas, trêmulas, o céu me apontaram:
“Choram porque as nuvens não formam rosto algum,
Porque a entrada dos dragões para sempre é proibida.”

“Ah, quem havia instaurado tal silêncio?


Quem deixara a Terra em órbita sozinha?”
O umbigo do céu mostrava-se vazio,
Nada surgia do hálito das nuvens.
Foi quando ouvi um murmúrio entre os rochedos,
Eram jovens com ideias de outros reinos:
“Ó imperecível! Ouvimos teu lamento,
Tu, que viste o nascer-e-destruir
Do mundo em um segundo,
Tu, apenas tu,
Podes salvar o reino humano.”
E então eles cobriram-me de flores
Sacrificaram os ídolos de outrora
E deram-me a noiva sagrada, aquela
Que ao segurar um punhado de terra
Traria a esperança às montanhas…

No topo das montanhas nos beijamos,


Ao beijá-la as flores na neve reviveram;
Os pavilhões vermelhos se solveram,
Os arco-íris suas cores retomaram
Abriram as janelas do sonho os povoados
Pipas e balões voaram livres pelo espaço
E, enquanto a morte reinava no abismo
O eremita,
O eremita iniciava-se no amor!

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Mas, ó céus que por vezes infinitas
Fizeram-me sentir um velho frente à morte,
Fiz o único que me era proibido.
Do alto olhei para o fundo,
Para o fundo terrível das gargantas do Yang Tsé:
Formigas construíam pavilhões jamais desfeitos
Tiranos destruíam templos e edificavam outros novos
Cidades surgiam da névoa e em segundos feneciam
Messias com doutrinas a paz do cosmos proclamavam
Exércitos se matavam para provarem as doutrinas
Ah, e a lua morria e revivia o sol
Todas as noites se afogava
Exércitos messias templos mais messias
Cidades exércitos cidades mais tiranos
A lua morrendo e revivendo o sol
Todas as noites se afogando
E a ave, ao reter em suas garras
O sonho do crepúsculo vermelho,
Um mundo, maior que o dos mortos
Me desmembrava, iniludível, para mim:
Montanhas sucumbiam e voltavam a crescer
Mares tornavam-se sangue e voltavam a ser mar
Meteoros davam voltas e não podiam encontrar-se
O sol e a lua eram sugados e expelidos pelo negro,
- Tudo tão vasto! Tão cruel!! Ah, fechei os olhos,
E voltei a dormir no reino humano:
Eles juntavam as moedas, compravam alfinetes
E, crendo-se donos do teto em que habitavam
Viviam como cegos à beira
do abismo
Alfaiates Pescadores Comerciantes Cortesãs
Cortesãs Comerciantes Pescadores Artesãos
Tudo de geração em geração se repetindo
As rochas sepultando o tempo em um segundo
O rio levando as almas para dentro para dentro
E os gibões, filhos dos homens
Nas corredeiras, em silêncio, se afogando,
(Ah, tudo o que eu vira mas que antes
Possuía algum sentido)
Rostos e mais rostos contemplando as gargantas
Cada vida
Para a eternidade
Dessas águas
Nada mais
Que a marca
De uma folha
De bambu.

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Não há corpo não há alma não há nada
Não há vontade não há tempo nada água
Flutuar de sonho em sonho flutuar
Para encontrar-se há que lançar-se
Portos Povoados Universos submersos

Não esperar voltar a respirar


Quem, quem grita de dentro do espelho?
Bolhas crepitam – gelos flutuantes

O oceano agora está irrequieto


Ele está grávido do meu espírito
Que é breve como a espuma
E tênue como a palidez do oceano;
Eu e o veleiro o olhamos,
Fantasmas povoam as águas cor de jade,
“O que deveremos fazer? Redemoinhos
Levam os últimos sonhos para dentro para dentro, haverá
Como desfazer esse céu esse vermelho? Não será
O universo
Nada mais
Que uma criança
Que chora,
Minha mãe?”

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Aqui o tempo nunca passa,

Aqui não é dia e não é noite.

Memória, onde o suicídio é impossível

Para esconder-te roubava sonhos de outras eras

Imergia-me na infância de outros mundos;

Mas as paredes, sempre brancas, tingem-se de sangue

E tudo, como um órfão

Eternamente me abandona...

MINHA MENTE ERA UM TEMPLO

ONDE EU REZAVA MAS NUNCA HAVIA DEUSES.

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A esfera gira acima do arco íris

E tudo é árido e submarino

E tudo treme nas sobras do dia

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Para não suicidar-me busquei todos os Deuses

Mas, os Deuses, um a um, cometiam suicídio.

“Buda, por que há pássaros sombrios em teus olhos?”

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Na Dinastia Tang um monge olhou o mar. Viu como as ondas batiam nas rochas e como, pouco a pouco, inundavam o
templo

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Estamos sentados no piso da sala

Uma água surge do fundo das paredes

“Pai, quanto tempo ainda temos? Quanto

Antes que a casa em que nascemos se inunde?”

Ao brincarmos meu pai percebe que estou triste

Que olho o teto como se esperasse a morte

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E então, para que eu não passe

Os anos contando os barcos que flutuam,

Ele me abre, novamente

A enciclopédia dos sonhos...

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Céu amarelo

A árvore treme o universo que se expande

Praia distante Na Malásia uma concha

Algas sonolentas lançadas ao acaso

Do iceberg um pinguiim vê o último arco íris

Um macaco se equilibra no galho do abismo

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O ÂMAGO

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Estamos indo longe demais?

Deverei,

Parar meus devaneios?

Se eu parar

Tudo novamente irá recomeçar?

"Un niño se sienta en los restos del día

Y ve su rostro que tirita en las estrellas”

É um lugar selvagem onde habita a alma

E como uma larva ela recolhe-se em si mesma

Usurpando a realidade do seu reino

E a transformando em um espelho do seu ser

"A criança se deita no colo de seus pais,

Sua mãe lhe canta uma canção de ninar.

E então essa música ressoa em seu futuro

Como uma canção que, justamente por ser bela

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Le enterrará cada alegría

En el oscuro porvenir"

A poesia é uma música de imagens

Distorcida e atoante como a larva

Harmônica em sua própria distorção

Necessária ao homem como um grito -

Como um grito que,

Mesmo não ouvido

Tem que ser passado geração a geração

O escuro o escuro chora as primeiras palavras que tivemos

Para que o homem, enfim, não pare de gritar

E o fluxo, como um rio de sangue, continue

“Teremos como deter esse fluxo? Teremos

Como parar de sofrer? Oh meu pai, oh minha mãe!

Por que sempre temos que sofrer? Por que

Não há um paraíso sem a presença do inferno?"

E os que sofrem e os que sentem

Essas vozes em cada recanto do seu ser

E os que sofrem e os que sentem

Essas raízes ancestrais os asfixiando,

Sentem e sofrem, sofrem e sentem

O espinho cravado no peito gangrenado

Que não pode ser tirado pois tirá-lo

Significaria tirar o coração...

"Teríamos como sair desse fluxo?

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Teríamos, como parar de sofrer?"

"No fundo, bem no fundo

Não queremos sofrer? Sofrer

Para sentir o que ninguém jamais sentirá?"

"Mas, mesmo se não o quiséssemos

Conseguiríamos deter o poder dessas ondas

Que nos tragan siempre y siempre y siempre

A la origen a la origen del dolor?

"A criança fecha a porta, aonde estarei sendo levado?”

“O granizo caindo nos telhados, los juguetes se cubriendo por los hongos

Niebla cubriendo el azul de una playa lejana...”

Estamos indo longe demais?

Estarei,

Enlouquecendo?

Mamá, papá, vamos con la bicicleta frente al mar frente a la vida

De um quarto

Fechado

A outro

Assim

Eternamente

Em todos

Os lugares

Que se esteve

Em todos

Os universos

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Da mente,

Olas gaviotas cielo cielo imenso

Ao fundo

Do todo

Que não pode

Ser tocado

Ao fundo

Do sangue

Que não pode

Ser contido

¿Por qué nunca se olvida la primera tempestad?

¿Porque nos mojamos

En ella para siempre?

Escada

Em teus vãos

Eu chorava

O mundo

Embaixo

Em festa

Continuava

Parque

Me encobriam

Tuas folhas

No es lluvia que hace temblar las hojas papá dice

Son las piedras de hielo, son la muerte... mira el techo

¡Está cubierto de granizo!

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De um quarto

Fechado

A outro

Assim

Eternamente

Em todos

Os lugares

Que se esteve

Em todos

Os universos

Da mente

Desde

A primeira

Tempestade

Até

O mar

Que traga

A tempestade

Os gritos

Se perdendo

Os gritos

Papá, mamá ¡enséñenme a montar la bicicleta!

Intento montarla pero no aprendo a vivir...

Os gritos

Se perdendo

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Se perdendo

No escuro

La casa, ¡la casa de mis abuelos se está incendiando!

¿Cuántos cuartos escaleras hay en el centro de tu ser?

Abuela, mientras mamá no llega, canta una canción para que duerma

No, no para siempre, solo mientras abuelo arregla este reloj... Mis padres,

Ellos no demorarán demorarán... ... ...

Memoria, ¡no dejes de mojar las hojas de este árbol!

¡No dejes que el granizo pare de caer!

Los cuartos

Los cuartos

De nuevo

Están vacíos

Estamos

Estamos indo longe demais?

Pela sala em que meus gritos rascunhava

Vi um menino que nas sombras se escondia

Tentando encontrar a própria voz entre as ruínas.

“O que você ouve?” - eu perguntei-lhe -

E ele, cobrindo os ouvidos, sussurrou-me:

“Os gritos por estes espelhos reverberam reverberam

Mas nunca sei o primeiro que foi dado”.

Ao olhá-lo, novamente, não o vejo.

Apenas seu reflexo, mais altivo

Veste o véu simbólico dos mitos

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E segura um livro em seus braços...

As montanhas regurgitam o eremita do seu berço

Os castelos se espedaçam com a volta do arco íris

Incêndios destroem as catedrais da mente em chamas

Cidades são pela mão de um anjo abaladas

Os pavilhões ao princípio me conduzem

O suicida faz de um sonho a sua imagem

Peter Pan do próprio choro se amamenta

A noite suga os ecos que a contemplam

Noites de fetos revestem de sangue a cidade

A tempestade o mundo deixa à deriva

Um corpo de mulher é pelo oceano invadido

Icebergs flutuam pelas veias das enguias

As rachaduras do céu formam minhocas

Relógios de carne no abismo gritam morte

O farol não escuta jamais o prisioneiro

Pra cada ser há um hospital que o assassina

O mundo rãs em fragmentos decompõe-se

Pedaços-carne explodem ressuscitam sempre mortos

Ilhas Continentes Ilhas – cosmos

Impassível ele-ela vê o efêmero e dança:

Um homem lê enquanto uma muralha o aprisiona

Múmias riem porque sabem que estão mortas

Outro cai de bicicleta ao ser por cisnes acordado

Multidões se aproximam para rir do meu cadáver

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Ratazanas estão devorando a minha mente

Arlequins invadem os destroços do teatro

Albatrozes circundam os penhascos do absurdo

Um homem joga xadrez perante a morte

O olho de Deus é por uma navalha estilhaçado

A caixa de Pandora se abre por completo

Crianças gritam no fundo dos meus olhos

Abro o livro - ele contém o sofrimento

As gargantas estão cobertas de edifícios

Aparelhos tornam lágrimas em máquinas estéreis

Os reis e feudos foram sempre cor do vinho

A lua irradia sua luz negra para sempre

Criança por criança se sacrifica em seu quarto

Após o eclipse toda a lua é escura

A janela tem como cortina um muro negro

Neva sempre sem que se saiba de onde vem a neve

O livro se fecha estou sozinho, no escuro

Os barcos de papel flutuam comigo, à deriva

Flutuo olhando a água que penetra as paredes

O escuro me dissolve, sou neblina

Ouço seus passos... eles

Estamos indo longe demais?

Ecoam pelas paredes do sonho...

Mamá, ¿qué puntitos son esos a lo lejos a lo lejos, en el cielo azul celeste? Son barquitos que pescan los sueños de la aurora, hijo, los
que dan la luz al mar... Papá, que bueno es ir en tus hombros y ver al elefante, a la jirafa, al león y no sentirlos tan inmensos, tan
feroces... Leamos el libro de la selva, armemos el rompecabezas infinito... juguemos a construir naves, castillos, barcos de piratas...
¿Dónde está el tesoro, papá? ... ¡Tengo miedo, mamá, tengo miedo del oscuro!... cuéntame, cuéntame cuantos carneritos hay para

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que duerma... 1,2, 3, 40, 120...ahora aparecen puntitos negros en el sol... ¿son manchas naturales o mi tristeza reflejada, papá?...
nado y nado sin salir del lugar... niebla cubriendo el azul de playas lejanas... ¿existió un día el cielo azul? ¿Hay otros que sufren como
yo? ... el jardín se desvanece... Cuántos, cuántos no deben de preguntarse en sus cuartos: “¿no habrá otros que se pregunten: ¿por
qué yo?”

Passos indo passos vindo... Ao acordar era o crepúsculo da aurora

Comienzo a acordarme, todo viene a mi memoria

Estarei,

Estarei

Enlouquecendo?

Imóvel eu olho o céu que gira

Infinitos universos se contraem e explodem

E tudo sou eu, oceânico e sombrio.

(Serão as portas do céu?

Serão, os túneis do inferno?)

Nesta estação em que passou-se a vida inteira

Em busca da luz que dos astros não vem

Você pode me ouvir?

Da tua janela, Catarina

Há apenas o peso de um universo sem estrelas

A realidade está distante como um sonho

O tempodeveaboraslido… Yuppie! Yuppie!

Onde está você, oh minha alma, OH AURORA?

Oh PA! Oh MA! Que gritos

São esses ao meu redor me asfixiando? Nesta sala

De espelhos, cada vez mais se dissolvendo? Neste

Quarto de espelhos, de retratos

Onde as lembranças jamais me abandonam?

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A porta do quarto último se abre,

Observo meu rosto no espelho,

No espelho de todos os espelhos,

No espelho em que todos se observam

Ansiosos por reterem

Algo além de uma imagem.

Amontoo brinquedos nessa sala,

Eles formam para mim o universo

Abres essa porta vês essa imagem

Formas salas de espelhos em teus olhos

E tu, que como eu

Sofres desde o irromper da aurora negra

Lembras então do teu início

Do teu início que é teu fim

E corres comigo no corredor de gritos sem saída

OOOOOOOOOOOOOOO

LA LA LA LA LA LA LA LA LA LA

OOOOOOOOOOOOOOO

LA LA LA LA LA LA LA LA LA

Flutuamos túmulos vazios no espaço

Nossas almas planetas distantes não nos ouvem

O lamento do sem-tempo nos alcança

O ouvimos estrelas sem luz entre as galáxias:

Não deixes dissolver-me nas águas do não-tempo

Não deixes esvaziar a mente no fogo negro dessa morte

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Que algo de minha alma ressoe antes na tua

Que as cinzas das tuas lembranças povoem meus sonhos

¿Mamá, papá? ¿Qué sombras esas que al despertarnos aparecen?

“Venha comigo, venha comigo” “só?”

“Eu não quero parecer só”

“Eu não quero parecer só!”

RUMO AO ÂMAGO DA

RUMO AO ÂMAGO DA

Rumo ao âmago da própria voz

Rumo ao âmago da própria voz

Rumo ao âmago da própria voz

Sem expectativa do calabouço onde se quer chegar

Sempre indo em direção a um incognoscível purgatório

Para recomeçar tudo o que jamais tem fim

o infinito o infinito infinito

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De um terminal saem ônibus estranhos. Uma placa

Indica que eles vão ao oceano.

“Quando tivermos dinheiro iremos para lá” – ela me diz – e da janelinha

vemos um cruzeiro branco que traga os homens para dentro.

A porta enferrujada se abre, é o sótão, pego um boneco que está embaixo da cama. Uma voz, atrás de

mim, me fala que ele morreu de fome há vinte anos.

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Meu amigo me leva em direção a um cemitério. Ele pede para que eu caminhe mais rápido antes que

seus cabelos fiquem brancos e caiam por completo. Mas, por mais que me apresse, nunca consigo

alcançá-lo

Tento atravessar a ponte alagada, chove tanto que não consigo ver o que há do outro lado. Com

medo vou saltando de cimento em cimento, tentando não escorregar no lodo que os recobre. Em

um deles eu fico a ver o que há no fundo, do nada saem peças brilhantes e sem forma, a água escura

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Gonzalo Dávila Bolliger nasceu em 1989, em Lima, Peru, e se mudou para foto: Felipe Lisboa Castro
o Brasil em 1994, quando os pais vieram estudar. Desde criança, foi uma
pessoa com um mundo interior muito rico e interessado por tudo. E é por
isso que começou a escrever cedo, desde os 14 anos. Ele estudou Letras na
USP e tem como outros livros: Poesias Esparsas; As realidades invisíveis
(livro de contos e novelas escritos com sequência, também pela Autografia),
A Melancolia (poesia) e a tradução do poema Altazor do chileno Vicente
Huidobro (publicado na Amazon e pela editora Maracaxá), entre outros.

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Este livro foi composto em Arial e
Times New Roman pela Editora Autografia
e impresso em papel offset 75 g/m².

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