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BRIGITTE DIAZ

O gênero epistolar ou o
pensamento nômade
Formas e funções da correspondência em
alguns percursos de escritores no século xix

[I] UNIVERSIDADE DE SÃO Pfü.íLO


Tradução
Brigitte Hervot
Reitor Marco Antonio Zago Sandra Ferreira
Vice-rertor Vahan %opyan

ledusP EDITORA DA UNJlíaERSJDADE DE SÂO PAULO

COMISSÁO EDITORIAL
Presidente Rubens Ricupero
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
(Zarlos Alberto Perreira Martins
Maria Angela Faggin Pereir:a Leite
Mayana Zatz
Tânia Tomé Martins de ()astro
Valeria De Marco

EÀitora-assrstente

Ch4e Téc. Div. Editorial


Carla Fernanda Fontana
Cristiane Sifüestrin
ledusP
f

Copyright (C zox6 by Brigitte Diaz

Tíhilo do original em Prancês: L'Épistolaire ou la pensée nomade

Cet ouvrage, publié dans le cadre du Prograínrne dlde à la Publication


2014, a bénéficié du soutien de l'ínstifüt Fraríçais du Brésil.
Este livro, publicado no âmbito do Prograrna de Apoio à Publicação
zos4, contou com o apoio do Instituto Francês do Brasil.

í J @';-e=í-:a:S2'-::'-
R{luB{IQl?? FRANCAII}

Ficha Catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema


Integrado de Bibliotecas da usp. Adaptada co'n'torme normas da Edusp.
AJosé-Luis
Diaz, Brigitte.
O Gênero Epistolar ou o Pensamento Ní5made: Formas e Funções
da Correspondência em Alguns Percursos de Escritores no Século xíx
/ Brigitte Diaz; tradução Brigitte Hervot, Sandra Ferreira. - São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, zoí6.
171 p.; 'tx cm.

Inclui referências bibliográficas.


ISBN g78-85-y4-í6z3-s

i. Epistolografia. z. C;artas literárias. I. Hervot, Brigitte. n. Ferreiía,


Sandra. m. Título. ív. Título: Formas e Funções da Corresporu3ên«:à
em Alguns Percursos de Escritores no Século xsx.

CDD 8o8.6

Direitos em Ifngua portuguesa reservados à

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o55o8-o5o - São Paulo - sp - Brasil
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Printed in Brazil zoi6

Foi feito O depósito legal


POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA /?1,-,
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As cartas são textos híbridos e rebeldes a quaisquer identifica-


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ções genéricas. Gênero literário indefinível, flutuam entre cate-
l gorias vagas: arquivos, documentos, testemunhos. De tal forma
que não se sabe muito bem que lugar ?hes é atribuído na geogra-
fia otdenada da literatura. A crítica do século XIX situou-as nas
fronteiras do literário e as aprovou; gostou delas desde que não
ultrapassassem esse limite. ?4s cartas, então, se?tornaram? ?o?b3.e?
tos literários muito p?aradoxais: ao mesmo temp?o?? 53uç?çrqrr4?içr-
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vorosamente colecionadas, editadas, difundidas, comentadas,
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exatamente como obras de fa?t«? e 4e 4ireit?,?oforam?re§g?z?j4g2 ,19.
l estatuto subalterno de da?do;. biogr4fic.«?s ou ps,ic«?lógico4 p.ara . ?
servir" Â história de um homem e, eventualmente, de uma obra.
D-e S-ainte-B'emve -até Lafü,?on,fo?iconsen'?so-?pensa?rque seu inte-
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I resse maior, e inestimável, era o de mostrar-nos, "por trás das
teorias, os homens, e sob o encadeamento inflexível das ideias,
a imensa ondulação e a efervescência confusa da vida"'. Inti-
mamente amarradas a um indivíduo e à sua história, as corres-
I pondências eram apreciadas «3esde que fizessem ouvir a voz do
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i 1. Gustave Lanson, "Sur la littérature épistolaire", introdução a Choíx de let-


tres du XVII' siécle, Paris, Hachette, 1895, retomada em uma coletânea de
artigos de G. Lanson reunida por Henri Peyre, Essais de méthode, critique
et d'histoire littérarre, Paris, Hachette, 1965, P. 283.

11
homem privado. Essa redução de sua amplitude ao pessoal e ao i Apesar da relativa reabilitação literária das correspondências, as
íntimo provavelmente as tornou para sempre indigestas aos olhos desconfianças permanecem vivas a respeito desses textos supos-
das gerações de críticos do século seguinte. tamente fúteis, muitas VeZeS escritos nO praZer e para o prazer, e
Atualmente, interessar-se pelas correspondências é correr um Í qu?não-se-ajustam?m-su-a trivialidade profana e seu polimento
pouco o risco de falar "com Sainte-Beuve ", e, consequentemente, conversacio:ao obscuro e inquietante comércio com as musas
"contra Proust ". O primeiro "sempre gostou das correspon«3ên- Jenomina as iteratura. ar esprova'?rnene eria 'fü5"-m?
cias"; o segundo as odiou cordialmente, e pelas mesmas razões. exto de prazer" do que "texto de deleite": demasiadamente poli-
Mas é dificil concordar com Sainte-Beuve sem ser suspeito de bio- l
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dos, demasiadamente eufóricos, demasiadamente plenos, para
grafismo retrógrado. É verdade que esse pecado se tornou insig- que, na partilha bem orquestrada da troca epistolar, nenhum
?,pificante nesses tempos de pós-modernidade em que as teorias sujeito assumisse o menor risco. Aliás, as próprias cartas seriam
rígidas de antigamente ';e flexibilizaram para '?produzÍr,'-em m;;té- "textos"? Será que ela2?p?????odem postular esse estatuto literaria-
ria de crítica, um novo liberalismo no qual tudo - até mesmo o mente respeitável, outrora certificado pela crítica estruturalista?
antigo - e autoriza?do 'Prova ?o?eo afü?etorno do gênero epís- .Alguns ?hes recusam energicamente esse carimbo, esse pass?aporte
? tolar, que smi discretam'efüe 'ao-purgatório-crítico'füo -q'á;l nossa que as-'?deixar'?iaempé de%a esfera r?. ce?ssiv; '
modé-rni?de o- havia tra'?ncafiado? dotado de uma nova lite- me'ótêjFi'srorfüros ao?gesto-ae?comufücação-q-ue os fez nascer e
r'arfüaa'ae-d;ido-à re-cfü'fü';cêncÍa de interesse, bastante diferente, do desejo que-õs l'evou-aFé-uFíí ?at'ffrio único, esses " arrapos
é preciso frisar, da curiosidade um pouco licenciosa pela intimi- de?pap?eis"s?Hun§a te?rão a graí,'a soÍe'rre dos manusíEríFos de aloo'ul-ma
dade das celebridades que Barbey dAurevilly, no século passado, fu5ur;; obra Segundo esses criticos, essas Imhas de dtzer6, ou se)a,
adivinhava na admiração de seus contemporâneos por "essaS deli- as correspondências, demasiadamente imbricadas àS línhas de
ciosas coletâneas chamadas de Correspotau:lêtzcias"3. Elas podem vtda, prende?mem suas redes apenas o aor'riqu'?eiro "mise-raveÍ
ainda ser deliciosas para o leitor de hoje, mas com um gosto dife- an-i.o0toado dJe? )eg?redo.s:' ?que?uma ex4stência humana acumula.
rente, menos apimentado de indiscrição, daquele que Sainte- Quanto ao amante de correspondências, é habitualmente tachado
-Beuve procurava nelas, "esse guloso gato literário que discutia de fetichista, pois, inocente ou perverso, dependendo das cir-
tudo espirituosamente"4. cunstâncias, fixa seu desejo nesses objetos que são apenas engo-
dos, simulacros confeccionados pelos editores7. O leitor crítico
2. "Sempre gostei das correspondências, das conversaçoes, dos pensamentos,
de todos os detalhes sobre o caráter, os costumes, a biografia, em uma pala- 5. Em Modeste Mígnon, epopeia íntima da sedução epistolar, Balzac fala des-
vra, sobre os grandes escritores." Sainte-Beuve, "Diderot" [28 de junho de ses "suaves trapos de papéis" que lemos como um avaro lê "os do banco".
i83i], em OF.uvres: Portraits littéraires, Paris, La Pléiade, t. í, p. 867 (Biblio- Os epistológraf'os, que geralmente tendem a minimizar seus escritos, usam
thêque de la Pléiade). E também o título do número go da revista Roman- facilrnente tal expressão ou outras tão modestas quanto essa para evocar a
tisme (xgg5j, consagrado ao estudo das correspondências no século xíx. escrita "menor" da carta.
3. Barbey d'Aurevilly,"De Stendhal", em Les üeuvres et les hommes: Littérature 6. Para retomar expressões respectivamente de Georges Gusdorf e de Phili-
épistolaire, Paris, A. Lemerre, i8gz, p. 3g. ppe Hamon .
4. Barbey dAurevilly, "Proudhon, Correspomlance", em Le xíx" síécle: des 7? jÉ-aproximadamente a tese que Nor'bert Dodille desenvolve em seu artigo
íüuvres et des hommes, seleção de textos estabelecidos por Jacques Petit, sobre =La cc", isto é, sobre a Correspondarxce générale de Barbey d'Aure-
Paris, Mercure de France, 1966, t. II, P. 149. villy : "Contudo, de tanto fascinar-se com a carta, e de realçar, com belos

12 0 GEN ERO EPI STO LAR O U O PENSA hl ENTO N Ô MADE POR UMA BREVE füSTÓRlA DA CARTA 13

4.
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de correspondências seria, portanto, um desses inúmeros fantas- l


suscitam sob pretexto de comunicar, passando pela incorpora-
mas que recobrem o percurso da carta, desviando-a para o infi- l
ção beuviana da carta ao dornínio biográfico e pela depreciação
nito, os mesmos fantasmas que Kafka, esse epistológrafo a con- do gênero que se deu no século seguinte, ou ainda pela suspeita
tragosto, evoca com um terror resignado: lansoniana quanto à própria existência de um gênero epistolar, a
carta é um eterno tema de debates. Desde o século XVI, viu seu
' Como pode ter surgido a ideia de que cartas dariaín aos homens um preço subir ou cair na bolsa dos valores literários, conforme as pos-
' meio de comunicaçmo? Pode-se pensar em um ser longínquo, pode-se tulaçõe:í estrtic-as atribu7das p?elas teorias da literatura qu?es'e-su'?ce-
'a; ;aptarum;erp'rómm'o:'orestoult'rapAssaaforçahumanAb.Es'creve'rcartW :a'êram. No decorrer de s'?uahist?óriacontu'?rba?da,louvou-'?se,lite?ral-
? é se despir diante dos fantasmas: eles esperam por esse gesto com avidez8. .mente e em todos os sentidos, quase tudo na carta, mas também
?se dífamou rudo. -Sêm-fazer aquÍ m histórimê"d'etalhaao-do gê-nero
e de sua crítica, pode-se, contudo, levantar alguns marcos em seu
Uma forma em trânsito percurso ziguezagueante e entender alguns universais do meta-
discurso epistolar. Ao longo dos séculos, a crítica erigiu uma série
A prevenção vaga mas insistente contra o epistolar - decidida- de dicotomias flutuantes, sob cuja fronteira a carta, incompreen-
mente, um "gênero ruim" - não é nova; e parece dever renascer sível e inclassificável, lança-se e é lançada.
periodicamente de suas cinzas, sob as diversas metamorfoses Uma bifurcação essencial na evolução daquilo que alguns hesi-
dadas pela teoria literária vigente. Desde os debates humanistas tarão por muito tempo em chamar de gênero" é?a troca progres-
acerca do gênero epistolar, transformado no grande rival leigo da siva, no século XVII, da eloquência acadêmica da carta, clue guar-
eloquência sagrada9, até as teorias contemporâneas sobre esses ilu- dava na memória su-a antig?avocação o- ratória, pfü um estilo-4ue
sórios "espelhos de tinta"'º, ou seja, as cartas e os equívocos que epistol6grafos ou -t-e6'ricos--da-é'po'?ca qualifi-cam ?invariavelmente -
como 'Íinoce-ntm", "meaíocre'-o'u"?familiar"?,qual4dades jue carac-
?1?

traços de caneta, os encantos inesgotáveis, pelo menos sempre renovados, terizam o que se ch?aínaentão de "estilo méd'io'fü. O-s 7ecretário-s,-
chega-se a não poder mais esquecer a carta. O fim da carta tem tanta graça que se multiplicam no decorrer do século XVII, elegem esse estilo
que logo não se saberá ler o seu começo. Fetichizar é isso, de fato, deixar-
-se enganar, e a carta, no final das contas, é sobrefüdo um engano - pois médio como o mais adaptado à escrita da carta, que deve ser redi-
se não fosse, não seria tão comentada'ª ("La cc", Barbey dAurevill5 i4, La gida "sem nenhum ornamento nem qutro artjf4ç0o. p?ngu? ser (? 54çs? ?? ,
revue des lettres modernes, Paris, Minard, 1990, P. 9).
8. Franz Ka&a, Lettres à Mílena, Paris, Gallimard, 1956, P. z6o.
9. Como afirma Marc Fumaroli em 'ªGenêse de l'épistolographie classique'; 11. É a posição de G. Lanson : "Não existe arte epistolar. Não existe gêííero epís-
Revue d'histoire líttéraire de la France, "La lettre au xvn" siécle", n. 6, nov.- tolar: pelo menos no sentido literário da palavra gênero= (op. cit., p. z6o).
-dez. 1978. Fumaroli constata, entre outras, "a erninência extraordinária do Mesmo ponto de vista em Philippe Lejeune, que recusa ao gênero episto-
gênero epistolar na literatura humanista [.. . ] em continuidade direta com Iar a permanência genérica: "Não há uma essência eterna da carta, mas a
a tradição medieval, que tinha transformado a carta, com o sermão, em um existência flutuante e contingente de um certo modo de comunicação por
dos dois gêneros maiores em prosa" (p. 887). ,??? es.crito",Lepacteautobiographíque,Paris,LeSeuil,xg75,p.3í5(Poétique).
10. Empresto a expressáo do título da obra de A/íichel Beaujour, Miroirs d'en- " ;"'íz. F3rn uma sín'tese brilhante"', B"ernar" dªBeugriot rnostrou como-se opera,-m' uit'o
cre, Paris, Le Seuil, ig8o. O autor nela denuncia as ilusões enganosas - pro- cedo no século xvn, esse retorno para o estilo médio. Ver seu artigo : "Styles
duzidas, segundo ele, pelas escritas de si - e principalmente a lógica per- ou styles épistolaires", Revue d'hístoire littéraire de la France, ªªLa lettre au
versa do autorretrato. Ver, principalmente, pp. 335-336. XVII" siécle=, n. 6, p. g4, nov.-dez. íg78.

14 O GÊNERO EPISTOLAR OU O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CkRTA 15

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discursos comuns", assim como preconiza Paul Jacob em seu rosto de nosso corpo e aquelas revelam nossa alma". É verdade
Parfait secrétaire, em i646. Ao renegar o antigo decoro que julga que esse divórcio nas cartas teve início há muito tempo. Muito
inadaptado às novas sociabilidades epistolares, essa nova doxa ?he antes de füchelet, Vaumoriêrey Grimarest e outros codificadores
imprime uma paisagem retórica mais nuançada. Inscrita antiga- do novo "estilo médio", precursores, no século anterior, tais como
mente na esfera da erudição neolatina, aos poucos a carta con- Henri Estienne"' Ou ainda?Justo Lípsio - ao prolongarem as teorias
quista novamente o território movediço da cu4tura?mundana e erasmianas do gênero epistolar -, haviam proclamado sua dissi-
troca, nessa ocasião, os restos de uma eloqfüncia acadêmica por dência em relação ao modelo erudito e defendido uma concepção
uma nova estética-da negligência, mais apta, conforme se :?cre- mais livre da escrita epistolar, em nome de sua irredutível plura-
dita, a transcrever o discurso do indivíduo social que se expressa lidade, já exaltada por Erasmo em sua definição bem conhecida
nela. Com o'füan'ço áo 'século, 'aposEaZs;-'em Voiture"c6'ntra-Bal- da carta: "res tam multíplex propeque ad irxfmítum v???????????aria". Para eles,
zac e na graça de uma palavra supostamente sem afetação con- a escrita da carta origina-se em uma verdadeira subjetividade; é a
tra a altivez pedante da grande tradição oratória. Os autores de expressão liberta da preocupação de excelência retórica de uma
Secretários ratificam essa mutação retórica e sociológica, propon- pessoa e não mais a execução estabelecida de um discurso social
do-se, até mesmo, a encontrar outro termo para designar essa ou institucional'S. Montaigne não diz nada diferente a respeito
nova prática da carta que nada mais tem a ver com a antiga, nem do tema das carta.s: recusando a retórica epistolar de seu ternpo, /ª?
' .1<-l
em seus horizontes de expectativa, nem em sua poética: "Eu gos- que consiste em carregar ofensivamente a maté.riq?51.q.c,art,i í;om ..-}I.

7,
taria que se preservasse para as cartas de negócio e de respeito o - "ornamentos e prefácios", em??sobrecarr5?gá-la "co??????mlong?os diqcgrz
antigo Stíle Épístolaire, e que o resto das coisas que podem ser tra- sos, propostas e pedidosJ', em enfatiz4yl,a "com ?u?m?be%o rosár4o?de.
tadas com Amigas ou Amantes tivesse o nome que teríamos esco- palavras educadas", ele defende o uso livre de sua pe?na .submetida.
?hido", escreve significativamente La Févrerie, autor, em í863, de ao único capricho de sua inspiração: "Escrevo sempre minhas car-
um ensaio intitulado "Du style épistolaire"'3. ta?srapidamente-[ ]Começonormalmentesem'pro?)eto,-opriTh
No fim do século, não se espera mais das cartas a perfeição meiro traço produz o segundo""'.
bem cal7braáa 'de um'a composição retórica impecável, mas nelas Esse primeiro divórcio entre a carta e a tradição eloquente em
se mp'rfü?ia,bem ?aocontráFJo',- as' falhas, as hesitações e as pausas que se enraizava constitui, portanto, uma verdadeira revolução.
de uma palavra simplesmente humana. É nessa época que a carta Ao desprender-se de seus modelos fündadores e ao se autonomi-
reivin? Íc-a cÍara;efüe-o-'título de "espelho da alína", segundo uma zar, aos poucos, a carta abandonou o território literário ao qual
'?metáfora tão embl-emátic:M ju'anto-'fütabele'cida, já presente em pertencia havia muito tempo para divertir-se na no matz's land de
Demétrio. Nesses meados do século XVII, cria-se um novo con-
Ao mesmo tempo que consagra o modelo ciceroniano em seu Epistolae cice-
senso do qual Paul Jacob, entre muitos outros, ?se faz?o? intérprgte 14.

rorríano stylo scriptae (í58i), Henri Estienne, contudo, sublinha nele os rigo-
em:. dag5ecr-éta3re::"fláoe4s.tena?4arr'ais?ppd?e?roso?par?ayen- res e as indigências e esboça assim a crítica desse academicismo epistolar.
cer uma alma do que uma?carta enriquec.ida de belos pensamen- 15. Em Epistolica ínstitutio ( 1591 ), Justo Lípsio inventava de alguma íorrría uma
nova reh5rica não normativa para essa epistolaridade familiar, cu5o último
tos e as nossas palavras são como espelhos. Esses representam o horizonte é a expressão de si que se opera na relação com o outro.
i
i6. Montaigne, "Considérations sur Cicéror:ª, em Essais, texto estabelecido por
13. Citado em ídem, p. g4o. Pierre Viuey, Paris, Presses Universitaires de France, sg78, ]?ivro I, XL, t. i, PP. 253.

i6 o cÊüpxo EPISTOLAR ou O PENSAMENTO NÔMADE PORUMABREVE'HISTÓRIADACARTA 17


uma palavra singular, supostarnente estranha a qualquer intenção epistolar da urbanidade e da civilidade, que inaugura "essa idade
estética. Se Guez de Balzac ainda não hesitava em considerar suas feliz da lingua e do gosto"' tão cara a Sainte-Beuve . Ao mesmo
Épttres como um elemento inerente à sua obra'7, não é mais esse o
I

tempo que se registra essa clivagem, que cindirá por muito tempo
caso da maioria dos epistológrafos da ger:açáo seguinte, que não toda a prática epistolary é preciso provavelmente relativizar OS anta-
reivindica mais a postura do autor: epístológrafos, certamente, mas, gonismos que indica.
seguraínente, não autores epístolares'8. Se o B?alzac"es?????crito????rde Cgl Em vão, Sainte-Beuve concorda com todo o imaginário epistolar
tasô ainda parece, segundo a fala de Nisard, um "autor que prepara do século de Madame de Sévigné, e, em vão, se extasia diante do
amostras de seu estilo para todos os colecionadores de autógra-
/
,a. fos"'9, aqueles-ou aquelas'-q?ue vi'r'ã6-aepois' dele' I-e,-'entr'e -toaos,
milagre linguístico dessas conversações e dessas correspondências
"que ninguém compunha", mas às quais todos se dedicavam "com
Madame-de-S'évigné - -não vã6 se-c6ns'ider'a;-escritor;s'-nem vã'?o toda ainteligência e toda a alma"; Barbe?y dAurevilly, por sua vez,
,'Íy)"t--.?> ?querer sê-lo. j2, pr:ov?ente, a r-%?oxár péla quJ-'Güas - em vão, clama a invenção de uma palavra nova para exaltar esses -,F,'
cartas, em que so-uberam inve-ntar sfü e:õ'€iló";i-margem -dós'acad'E- tesourps4e?nataralid.3dequeasç?açtasrqpr?esen????tam?,??essal4te?r,ifüra "Lo,!?
r7 / micismos e sem se preocupar com a posíeria:ade, ganHaram justaf paradoxal em que "nem a arte de escrever, .nem o sentimento do T. ), .
mente, a nosso ver7odireTto Je ingressar-na líter0tura,?O SuCeSS0
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"6 - Í
escritor'7J3 ?na4a transpar?ece;?a liggç?ão entre literatura e gênero " % -
atribuído à ediçáo póstuma?dasLe'?ttres-de Voiture, providenciada epistolar, no século xvn, sutura-se de outra forma. Primeiramente,
./../. ' 0-s por seu sobrinho Martin de Pinchêne"ºy assinala o nascimento de pelo próprio-fato de?queo"?sepisto?lógrafos',- se com-efeito não são
uma nova sensibilidade epistolar que a ênfase eloquente de um mais doutos, são, se não letrados, pelo menos leitores muito bem
Balzac não podia mais preencher, e a emergência de uma nova informados sobre a produção literária de seu tempo. Se M?adame
metamorfose do epistológrafo, mais mundano do que literário de Sévigné, nas cartas à sua füh?a,?n,io pye?tende, 4e modo algum,
e mais virtuoso do que espirituoso. Eis aqui uma primeira cliva- críarumaob-ral?iteraria,pode-sepe-nsarqueelanãoetotalmente 2 "
gem decisiva que remete, sem se pronunciar a favor de nenhuma inoce'?ntequantoaoquesechamariaatualmente4e"literariedade" ""-:,
das duas, para uma epistolaridade nobre e oratória e sua prima d?e?suasmissivas, A falsa modésti.lue ela?pç55pr4a cultua ?a rqs?p ei !Q
"pobre", se assim se pode dizer, mas muito mais sedutora, o gênero da qualidade de seu estilo - objeto, contudo, de 2constantes av?alia7
çõescrfticas-éumprimeirosintomadisso:"Serápossívelyminha /;
17. "Contudo, Senhor, agradai ao público ao mesmo tempo em prosa e em ver-
querida filha, que eu escreva bem?"". E'?isarazão pela q'u'al ce'êtfü " , -),, , h.
sos; e se Vossa Mercê fizer imprimir os Poemas, não esqueça as Epístolas",
escreve Balzac a N. Heinsius, que se propunha a empreen«3er a edição com- 21. Sainte-Beuve, "M?me de Caylus, et de ce qu'on appelle Urbanité" [.18 de
pleta de suas obras. Citado por Bemard Bray, Jean Chapelain: Soíxante-dix- outubro de i85o], Causeries du lumlí, Paris, GarnierLFrües, i88i, t. Ill, P. 56.
-sept lettres inMítes à Nicolas Heínsius (i64g-i658 ), Haia, Nijhoff, 1966, P. 55. 22. Sainte-Beuve, "Mrne de Sévigné " [ i8zg ], em Portraíts defemmes, Paris, Gar-
i8. Roíger Duchêne explicitou essa distinção primordial no século xvíi em í
nier-Frües, i884, p. ií.
Écrire au temps de Mme de Sévigné: letÍres et textes líttéraires, Paris, J. Vrin, 13. "Hesita-se em escrever a palavra 'Literatura' diante de um livro desse tipo,
1981, PP. ss-46. pois, reunidas em livro, essas cartas, no fundo, não são um livro", Barbey
19. Désiré Nisard, Hístoire de la littérature française, Paris, Firmin-Didot Frêres, dAurevilly, "Lettres intimes de Mlle. de Conde à M. de la Gervaisais",
i854, t. ni, p. 4i8. em op. cit., 1892, P. 319.
20. A respeito das cartas de Voiture, ver o artigo de Micheline Guénin, "La lettre %. 20 de dezembro de i688, Madame de Sévigné, Correspondance, texto esta-
éducatrice de la sensibilité: l'exemple de Voiture", Revue d'histoire ?rttéraire belecido por Roger DucMne, Paris, Gallimard, 1970-1978, P. 437 (Biblio-
àe la France, "La lettre au XVII'- siêcle", n. 6, PP. 922-933, nov.-dez. 1978. théque de La Pléiade, t. III).

18 0 GÊNERO EPISTOLAR OU O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 19


l
i

críticos conseguiram ver nela uma verdadeira vocação de escri- maisoumenosconscientementeoepistológrafo3º.Observar-se-ia -,?, ?
tor"S, ,que seguiria as sinuosidades da carta para se satisfazer sem uma manifestação dessa memória textual da carta naquilo que se
-2
se exibir, enquanto outros descobriram nas cartas d.i marquesa po deria chamar "síndrome de Sévigné", facilmente identificável em
'?umver4.7?atr?adora inúmeros epistológrafos dos séculos XVIII e XIX. Para eles, o modelo
ern- Áue estariam emj?ogo o a?dvento de um estilo e a em?erp das cartas da marquesa impõe-se como referência incontornável,
de?u?rna obra em??p?qten??????cial. Como ela própria em geral reconhece, diante da qual se sentem obrigaaos a se situar, em um momento ,, (? ..7
suas cartas, alimentadas e estimuladas por suas leituras, têm tudo ou outro de sua correspondência. "Nem todo mundo pode escre- Qi o
s@'%

a ganhar com sua diversidade : %queles com quem falo ou a quem ver como Madame de Sévigné ", escreve Manon Phlipon à sua cor- -""íp '>z', Th: .
escrevo têm interesse em que eu leia bons livros"". respondente, desculpando-se de não ter nem a "forma fácil", nem Új
-'D
-D
No que concerne ao gênero epistolar, as opções estéticas nunca o "tom amável", nem a "finura e as graças" da ilustre epistológrafa3', O '
são inteiramente unívocas. Apesar de tudo, o imaginário crítico enquanto o j ovem Edgar Quinet agradece à sua mãe, nestes termos, '-)-
que prevalece até o firn do século xíx exaltará sem cessar na carta pelas cartas que ela ?he endereça: "Poderia muito bem dizer de tuas C?

l as manifestações desse natural que a literatura, supostamente, deve cartas o que se dizia das de Madame de Sévigné : quando leio uma
Í ;rrrsr»rür- üncLivros,
ignorar; aos T.iiirnc contrapõem-se
rnntrínrsçsm-çç?as
21. ("nrrpçntntlênrin<cmp-
Correspomlências que, rnmn
como delas, só tenho uma dor, a de pensar que tenho uma carta a menos
diz imprudentemente Barbey d'Aurevilly, não são livros porque não para ler"'. Em suma, por muito tempo, foi difícil manter uma cor-
K? são írutcs "de convenção" e que, por isso, têm .algum?a"chancede respondência sem demonstrar ou, ao contrário, repudiar sua filia-
s erem m'Àis ;erdadeiras-d6 que 'u; -livro"-'.- O- mTto 'do nafüral epÍsto - ção à padroeira do gê:xero. Por gma curiosa reviravolta, o que era
)IJ€i,,,
lmr'abriu,- 'para a liêeratura', 'a-e-r-a-Ja -suspeita, concomitantemente ao sentido em sua época como o princípio mesmo de uma escritu-ra '.'í.4
.1'
9ª" ':' Il errante e de7preocup?adacom?asnormas estétic-as in-staur'Âfsey d6is
::S».:.1
culto de um novo e paradoxal objeto literárji

:épreciso evitar essa mitologia tenaz que vê 'o'Ípisto}ó?


eSlgnay
p-or meÍo de-uma fe'li; palavra en'trecruzada, ;'e'pistolaturya"). M" aSª
o como
sécmlo-s -dep'éis, com?oomod?eloliterá'?rioab?soluto-sobre o qual 'as
e's-critas epist-ofü;s Ôrivadas devem s?eali'?nhar.
' umescritoringêmio.Seelechegaaserverdadeirament;ingênuoe
inábil na arte epistolar, a carta, por sua vez, nunca é, literariarnente
3 0. Bernard Beugnot evoca assim esse fenômeno : "Contra um certo retrato do
falando, uma forma virgem, j á que guarda na memória a lembrança epistológrafo como um viajante sem bagagem [ ... ] não seria necessário
de seus estados anteriores, segundo um efeito memorial que afeta encampar um epistológrafo colecionador involuntário, tributário de seu
passado epistolar?" ("De l'invention épistolaire: à la maniêre de soi", em
L'épistolarité à travers les siécles. Geste de communication e/ou d'écríture, atas
15. Sobre essa questão, podemos nos remeter à análise de Roger Duchêne em do Colloque de Cerisy (1987), dir. Mireille Bossis e Charles A. Porter, Stut-
seu artigo "Du destinataire au public ou les métamorphoses d'une corres- tgart, Franz Steiner, iggo, p. 33).
pondance privée". Revue d'histoire líttéraire de la France, n. i, sg76. 31. Para Henriette Cannet, 4 de setembro de i876, Lettres de Mme Rolan«l, publi-
z6. A expressão é de Bernard Bray . cadas por Cl. Perroud, Paris, Imprimerie Nationale, t. I, nouvelle série, p.
27. Madame de Sévigné, op. cit., p. 36o (t. I). 47z. Todas as cartas de Madame Roland citadas aqui remetem a: tomo I:
28. Barbey dAurevilly, "De Stendhal", op. cit., 1892, P. 38. i78o-i787 [igoo]; tomo II: i788-i7g3 [igozl. Nouvelle série: tomo I: i767-
19. "Ela [Madame de Sévigné ], por si só, é, que me desculpem a palavra, já i777 [igi3] ; tomo II: í777-i78o [1915].
que essa não existe na língua francesa!, toda a epistolatura de seu tempo" 31. Edgar Quinet, 24 de fevereiro de 1819, Lettres à sa mére, textos editados
(Barbey dAurevilly, =Correspondance inédite de la comtesse de Sabran e por Simone Bernard- Griffiths e Gérard Peylet, Paris, Honoré Champion,
du chevalier de Boufflers", op. cít., 189:1, P. 259). 1995i t- Íí p? 94-

20 O GÊNERO EPISTOLAR OU O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 21


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No século XVII, contudo, ao deixar aos poucos de ser solidá- lipsiano, em uma análise que se poderia aplicar a qualquer epis-
ria -à literatura, a carta apropriou-se de uma nova liberdade. Para tológrafo e a fortiori àqueles do século romántico: "Sua improvi-
quem a pratica, constitui um dos raros espaços de expressão em sação é um trompe-l'a=il que esconde os mecanismos de uma mne-
que é permitido escrever "à sua maneira". À antiga retórica epis- motécnica e as astúcias de uma arte cotidianamente exercid?.
tolar que requeria ao mesmo tempo o rigor da dispositio e a perti- Pr'?eira consequência pervers;a esse equivoco episto ar: a sus-
nência da elocutio, opõe-se uma escrita não premeditada que toca peita que pesa obrigatoriamente so'bre a autenticidade estilística
os acordes engraçados da irnprovisação e da fantasia. Negligên- da carta. Qualquer carta, até mesmo a mais inventiva, é sempre
cia e naturalidade então Se impõemy e por muito tempoy COm0 observada e recuperada pela norma epistolar, justamente pelo
os únicos valores estilísticos de uma escrita independente que fato de ela ser inventiva, como se espera que o seja ... Excessiva-
atende apenas ao princípio da invenção. A carta deseja ser urna mente revestida dos ornamentos oratórios ou falsaínente deslei-
í?, l página de liberdade na qual se podem gravar os sulcos capricho- xada?,seráquea carta não estaria sempre presa à arma i a «3íú
sos de emoções efémeras. De modo ostensivo, sua reaação acom- modelos retóricos que a perseguem? E a pergunta que todós os
panraossobressa?ltosdai?nspiração e o humor ?dodia,segundo epistolggrafo'ê' se fazem--ob:rigat'orÍam'?ente, para a qual nem sem-
# ª.,?, umprotocoloquesopoderi-aserodaimprovisaç?ão-"À/h a pena pre encontram respostas satisfatórias.
ªC""i@? - " ' é um ser caprÍchoso qu'e s-ó êo'nÍ;ce'?airí';press?ão Jo-momenío, e Cruel é o desapontamento quando descobrem a pompa de
s«S ama a liberdade de deslizar sem imposição"33, escreve, em s775, suas palavras que já se perpetuaram em todas as cartas, como o
,=,,.
.,-' 7 ' k'-« . . Manon'PEÍrpon,-em?pur?aconform'?idade com a ortodoíia episto- jovem H?????enriB7onstata com horror que suas cartas de
" -Q-> 1:.7 lar inaugurada um século antes. O paradoxo, contudo, é que essa amor, longe de "mostrar ingenuamente seus pensamentos", são
negligência idiossincrásica, por sua vez, se tornará rapidamente apenas "?frases" .e "exa?5os'JJ6. Mudando de opinião a respeito do
-. ')
o imperativo retórico de uma nova arte da carta. Por isso, o cará- mito da invenção epistolar, muitos epistológrafos, no século XIX
ter oximórico da escrita epistolar que se impõe, ao mesmo tempo, e depois, verão na carta apenas um discurso vendido a todos os
,: iÃ' 1-, y)<,coÍ"' ",.:,':'-"p: 'a-'::W'-";P-"::linguística em que cada um pode se lugares-comuns, aos quais é necessário recorrer, mesmo sem
' mover como bem quiser e como escrita dos lugares-comuns. Fato os querer, mas com toda lucidez: "Uma carta entre nós é uma
;)'?I
que se verifica na existência próspera dos Secretários dos meados melodia banal que deixamos ir ao acaso, escreve Mallarmé para ???
Il do século XVII até o início do século xx". Villiers de l'Ísle-Adam, enquanto ambas as nossas almas, que i)a?.. =
Imitação e invenção operam igualmente na carta que se escreve se dão tão maravilhosamente, fazem uma ária natural e divina
i no limite de certa forma de alienação retórica e de seu questiona-
ª'kCi': ""=ü-. mento, sempre suscetível de sucumbir a uma ou outra dessas atra-
ções. Como escreve Marc Fumaroli a respeito do epistológrafo 35. De modo geral, M. Fumaroli mostrou como, já no período humanista, os ' "'2 'ir.,?,,
teóricos mais críticos em relação à antiga norma epistolar nuançam con- ...-; , ?," " .? ª-J'.-l '-
sideravelmente a noção de singularidade do estilo do epistol%rafo, que
,;A.,,,,.I.,,.,+,? -, ,-,rsr,r, rla c;ncmlür;A-iAp Ars rxhln Acs pní<IcslAcr>Fn? rmp " .ª

33. z'xde5;aneirodeí775,LettresdeMmeRoland,t.í,n.s.,p.z5g. só poderia ser alcançada, conforme pensam, por meio de uma aprendiza- =-.' l
34. Cécile Dauphin, que estudou a evolução dos manuais epistolares no século gem paciente dos locí commu+íes da arte epistolar. Op. cit., p. 899. "..4 .r ,7:

XIX, de modo muito apropriado, considera isso uma "pedagogia do lugar- 36. Stendhal, "Journal", i4 de janeiro de i8o5, em CF.uvres intimes, texto estabe- ',,.,0 .,I??'
' .í.
-comum". Ver sobre esse tema sua obra: Prête-moi ta plume-.. Les manuels lecido por 'V. Del Litto, Paris, Gallimard, 1981, P. 177 (Bibliothí?que de La
épistolaires au xrx" síéde, Paris, Éditions Kimé, zooo. Pléiade, t. I). (Doravante abrevia«hs oi).

22 0 GÊNERô EPISTOLAR OLT O PENSkMENTO NÔMADE PORUMABREVEHISTÓRIADACARTA 13


«

à sua vulgaridade"-"'. h lógica .do ;%l-dit?epistola.ar é, entretanto, Sabe-se quanto essa intrusão das mulheres no campo das car-
tão tortuosa que denunci"ar-os clichês do gênero -é ainda sucum- tas vai suscitar lendas sobre a pseudofeminilidade de um gênero
bir a eles. Kafka, campeão da epistolaridade desencantada, teve cujo monopólio os homens aceitam deixar ao outro sexo, desde
dela uma experiência implacável: "Nossas cartas são incapazes que ele se limite a ser o instrumento um pouco frívolo de uma
de dar uma expressão satisfatória de nossos próprios sentimen- socialidade de encomenda4". Conhece-se a célebre expressão de
tos, até mesmo em nossos melhores momentos somos forçados i La Bruyí%re, na origem de uma corrente inesgotável de clicMs:
a recorrer a expressões como 'indescritível', 'indizível', ou ainda "Esse sexo vai além do nosso nesse gênero de escrita"4"; expres-
7'l , , , ,
/a um tão triste, ou tão bonito, seguido de uma frase 'que' rapi- são à qual faz eco, dois séculos depois, o lugar-comum bem enrai-
damente se esmigalha"38. zado e coletado por Flaubert em seu Dícíortárío das Lleias Feí-
Outra consequência - esta mais sociológica - do divórcio for- tas: Gene'rg epxs?tolar: %e ????????estiloreservado? exc?lus?i???????vam???en???????teas íi/,,
mal que cinde, no decorrer do século XVII, 0 gênero epistolar, sem mulheres". Enquanto isso, muitos concordarão em conceder ' l'q
privilegiar atradição de eloquência sobre a qual repousava nem o às mulheres "o cetro no gênero epistolar""-'. Pode-se também lem-
novo ideal de familiaridade39 que o remodela, é que ele provoca brar a versão um pouco pérfida que uma mulher, Mademoiselle de
uma nova distribuição para os atores da comunicação epistolar. Montpensier, deu do nascimento da carta familiar, atribuindo-a
Não se fala mais da mesma maneira na carta porque não são mais à relação quase patológica das Preciosas - no caso a marquesa de
os mesmos locutores que se expressam por meio dela. Mas pode- Sablé e a condessa de Maure - com a escrita: "Elas se escreviam
ríamos muito bem inverter essa relação lógica: porque é possfüel
falar de outro modo na carta que novos locutores vão se apropriar
desse suporte de comunicação, trocando a sociabilidade letrada e 41. Ver sobre essa questão o volume organizado por Christine Plante, L'épís-
acadêmica que estava ligada à carta erudita por uma sociabilidade
tolaire, un genre féminin ? Paris, Honoré Champion, igg8, e o artigo'funda-
dor de Fritz Nies na Revue d'Hístoire Líttéraire de la France, "Un genre fémi-
mundana cujo modelo canônico, muito mais acessível, torna-se nin?", ª%a lettre au xvííª siêcle", n. 6, nov.-dez. sg78. Nele, Fritz Nies abala o
o da conversação. Os eruditos deixarn o campo epistolar: eis que preconceito da feminidade do gênero, apresentando argumentos estatís-
ticos: no século XVII, encontram-se apenas 2% de mulheres entre os auto-
chega o reino dos munaanos, e sobretudo das mundanas, p?oisas res que assinam uma obra em que figura a palavra "lettre" [cartal.
mulheres vão encontrar'Fi0uralmente. seu lu.gm.? nessa. nova???? 41. "Não sei se jamais se poderá colocar nas cfüas mais espírito, mais fomia,
tolaridade que se despojou de seu cerimonial sábio4º. mais encanto e mais estilo do que o observado nas de Balzac e de Voibúre;
são vazias de sentirnentos, que surgiram a partir de sua época e devem seu
nasciímento às mulheres. Esse sexo vai além do nosso nesse gênero de escrita.
37. 31 de dezembro de i865, Mallarmé, Correspondance, Lettres sur la poésie, Elas encontram, em sua pena, formas e expressões que, em nós, freqí.iente-
texto estabelecido por Bertrand Marchal, Paris, Gallimard, 1995, P. z78 mente, são o efeito somente de um longo trabalho e de uma pesquisa árdua
(Folio Classique). [.. . ]. Se as mulheres estivessem sempre certas, ousaria dizer que as cartas de
38. Kafka, Jouríial, g de dezembro de 1911, Paris, Grasset, 1954, P. i63. algumas delas são, talvez, o que temos de melhor escrito em nossa Ifngua." La
39. Essa familiaridade, no sentido clássico do termo, governa ao mesmo tempo Bruyére, "Des ouvrages de l'esprit", em Les caractàres, Paris, ig65, p. go (cp).
o regime da conversaçao e o da carta e supõe uma negligência vigiada que 43. Como o faz Chamfort, que saúda essa rara excelência feminina: ;0 gêner:o
se quer sempre livre de afetação. epistolar foi na França cultivado pelas mulheres com um raro sucesso e urna
40. Como sugere M. Fumaroli a respeito daquilo que chama de a "translatio stu- grande variedade': Pierre Larousse, Grawl dictionnaire universel du xrxª siàcle,
dii" efetuada pela carta, que a transporta do laboratório erudito ao campo Paris, Administration du Grand Dictionnaire Universel, i87o, t. vii, P. 73:l.
da cultura mundana. Op. cit., p. g53.

24 O GÚNERO EPISTOLAR (IJ O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE IfüSTÓRJA DA CARTA 25,
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de um quarto ao outro. Foi em sua época que a escrita foi posta o espaço ?feçhad«:+-da?famjlja, no? qual ?estão confií?adas, ?e,icí?
em uso; antes, só se escreviam os contratos de casamento, e não pública onde !?t??omada da palavra ainda Ihes é p,çoibi????da. ?
se ouvia falar das cartas"44. - -A chegada das mulheres, no século xvíi, à cena da carta é a
Apesar dessa mitologia tenaz, não é dado como certo que o causa, ou a conseqfüncia - tafüez as duas ao mesmo tempo -, de
gênero epistolar seja um gênero feminino, nem no século xvss uma mutação das sociabilidades epistolares. Outrora instrumento
nem depois. Mais pertinente é a tese de Roger DucMne que de confrontação e de propagação das ideias no microcosmo huma-
opõe, no século XVII, a masculinidade tradicional do gênero epis- nista46, a carta torna-se mais humildemente o agente de ligação
tolar, enquanto gênero literário, à feminização de uma prática de um grupo, de um partido, de um salão, cimentando todos os
privada da carta4S.,O q'ue quer que seja, essa clivagem f: seus atuantes em uma conivência de artifício. DessaS novas liga-
r?) -
no-masculina estabelece uma nova oposição paradigínática que ções epistolares, as mulheres aparecem muito rapidamente como
./""í
, determina todo o futuro da prática epistolar e trabalha em pro- as transmissoras e os vetores privilegiados. A partir da metade do
() fundidade seu imaginário. Ver-se-á que no século xvm, e mesmo século, foram elas, manifestadamente, que "fixaram um modelo
ain4a no século XIX, as mul'füFjs. que qujrém esErever iecorr?erão das boas maneiras e do discurso, e transformaram a conversação -
muito mais frequentemente do que os homens à forma epistolar: mas também a correspondência, prolongamento literário daquela
-não por causa de-algu?mmisterioso-trop-ismo ferninino, mas por- - em uma verdadeira arte"4'. O que leva os pedagogos, escritores,
que ela permanece, então, a única modalidade de expressão situ- críticos a dissertarem à exaustão sobre a suposta predisposição
ada na-s' front;'iras 'mó'veÍis aa 'Íiteratura a mfü corieeaidm 'seffi -rfüerva das mulheres a essa modalidade de express.ío. Toda uma doxa vai
'às mulheres. É,- 'eítre muii6s ou-tros,-o caso de' Maóon' Phlipon, então se dedicar a racionalizar essa nova divisão das tarefas por
a futura À4adame Roland, que se apoderou avidamente desse uma lista de argumentos bastante perversa, já que fundamenta
gênero um pouco convencional, para torná-lo terreno de ensaio essa singular superioridade feminina no assunto em uma inferio-
de sua dissidência. Seu exemplo nos convida a pens:.?r que a con- ridade de fato. Com efeito, é graças à sua "natureza", que Ihes deu,
quista modesta e diária do campo epistolar foi - para ela como diz-se, "uma imaginação mais móvel, uma organização mais deli-
para outras - uma etapa liminar em direção à conquista da escrita, cada e uma mente mais impulsiva"48 do que as dos homens, mas
que será mais o feito das mulheres do século seguinte. Certa-
mente, Germaine de Staêl ou George Sand não precisarão mais 46. A respeito da difüsão da carta humanista, Geneviêve Haroche-Bouzinac
constata: "certas trocas de cartas ocupam um lugar comparável ao das revis-
tanto da mediação epistolar para se definir e se situar no espaço tas científicas. 0 aparecimento dessas revistas modificará sensivelmente
literário. Mas pqra muitas mulheres "comuns", o gênero episto- os dados do problema: o género epistolar deverá ser escolhido entre várras
lar permanecerá a única tribuna acessível, a meio caminho entre outras formas rápidas de difusão do pensamento. EssaS cartas humanis-
tas têm assim um estatuto que as coloca no limiar do público e do privado"
("Penser le destinataire", em Penser par lettre, sob a direção de B. Melan-
44. Mademoiselle«3eMontpensier,HistoiredelaprincessedePaphlagonie,citado çon, Montreal, Fides, 1998, P. 283).
por Myriam Maitre em Fritz Nies, op. cit., p. 5s. 47. Roland Bonnel e Catherine Rubinger (orgs.), Fe,mes savantes et fem-
45. 'À prática livre, eventualmente feminina, da carta favorecida pelo correio mes d'esprit. Women of French Eíghteen Century, Nova York/Washington,
opõe-se O jugo do gênero epistolar masculino herdado da tradição dos anti- P' Lªngí ºgg*í p' s'
gos e dos humanistas" (Roger Duchéne, "Genre masculin, pratique Eerni- 48. J.-B. Suard, "Du style épistolaire et de Mme de Sévign骪, artigo publicado
nine", em Fritz Nies, op. cit., p. 36). no Mercure de Frarrce em 1778, retomado nos Éléments de littérature, Paris,
Dentu, i8o3, t. III, P. 132.

26 0 cÊüzao EPISTOLAR otí O PENSAMENTO 'mÓu.nb POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 27
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também por um feliz efeito de sua falta de cultura, que as mulhe- i
ideias apresentam-se por si mesmas e organizam-se mais por sen-
res se destacam, supostamente, em um gênero no qual o natu- timento do que por reflexão"', ou ainda de Madame de Miremont,
ral - ou melhor, seu fantasma - destitui todos os outros critérios quando pensa que nelas "o coração [exerce] as fünções da mente"s=.
estilísticos. "Fechadas no interior da sociedade, e menos distraí- Mesmo a jovem Manon Phlipon, que, entretanto, sabe se indig-
das pelos negócios e pelo estudo"""y mantidas fora do mundo das nar também com a educação indigente reservada às mulheres,
ideias, as mulheres não conheceriam nem o peso, nem a rigidez, k
acredita que elas sejam "mais capazes de ter sentimentos do que
nem o rebuscamento. A postura social que as afasta obrigatoria- ideias"54. Rebeldes a qualquerpensarnento conceitual, as mulheres
mente? das?ocu?pações sérias as prepararia, em contrapartida, p:.?ra seriam, em contrapartida, dotadas de uma imaginação Íod-e-roTha,
observar, com mais ater'içÁ'o que os homens,"'tod'o's-os p?equenos que "reflete tudo", com certeza, mas q ue "riada cria?",para retomar a
acontecimentos 'q-fü-ocupa?m -ou- aivertem a chamada 'aÍta.?????s; célebre expressão de Thomasss. E porque são ju gadas?menosinte-
-dade"5º, forn'ec'enao,'jffisÍÔ, ,is deliciosas'f'ofocas-??e-'alim????????e?nt? lectuais, mas mais sensíi?"?ens,rne"?nos-raciõ'iiã,
as correspondências. É, portanto, pelo efeito de sua vir?gin?????dade mas?maissinceras, menos esclarecidas, mas m?ni-
intelectual que elas podem desabrochar em um gênero que r:q se atribui-a elas'?umprê"'?miodeexcelêncT?a arteepi?stolar 4- -
cada vez mais sua repugnância para com o peso da ciência e da a reflexão teórica esr" 6aniaa,-na quml a razNo 16gic:í-é-iíia-in€r-usa
erudição, e que valor?iza,em co-ntrapartida-,um tipo d-e inco; e na qual -o frfücor 'dos sentimentos é o úni?cocritério e-stéticê. 'Fato'
tência -do co-nteudo, sentida como prova de ausência de rebus- esse que leva os teóricos da carra do sécul'o XVIII' a d-estrrncha'rem à-
camento da forma. LouÍs PhÀli'p'on-de-la-Madeleine, autor do exaustão esse r ovo lugar-comum: "As mulheres só escrevem para
Matzuel épistolaire à l'usage de la jeunesse que servirá, durante muito expressar o que pensam; e ernprestam da natureza esses traços de
tempo, como regra e será constantemente reeditado no decorrer delicadeza que a arte não poderia fornecer"56.
do século xsx, explica o mistério desse dom feminino para a arte Não surpreenderá então o fato de que foi uma mulher, Made-
da carta por "essa indolência na qual são educadas, que as torna? leine de Scudéry, que contribuiu - em segredo, é verdade, de
mais aptas a sentir do que a pensar"S'. Conjuntamente à sexuali- tanto ela negar que assumia a postura de autoridade do autor -
zação do gênero, opera-se sua atribuição ao domínio do sensível. para fixar esse novo código epistolar e as práticas sociais que ele
Terá, depois, muita dificuldade em se extrair desse mundus mulíe- comanda. Resolutamente calcada no modelo da troca oral, a carta,
brís para se impor como um gênero igualmente propício ao exer- tal qual a concebe a ilustre Safo, modela seus enunciados como
cício considerado viril do pensamento.
As mulheres, por seu lado, tornam eSsas representações plausí- 51. Madame de Lambert, Réfiexíons nouvelles sur les femmes, Paris, F. Le Bre-
veis e, até mesmo, frequentemente se apropriam delas. Este é o caso ton, x7z7, PP. 15-26.
de Madame de Lambert, quando declara que, nas mulheres, "as 53. Madame de Miremont, Traité de l'Mucation des femmes, Paris, p.-I). Pierresi
177';h ' Ií p? "33-
54. z8 de março de 1772, Lettres de M'me Roland, t. í, n.s., p. 91.
49. I«iem. 55. l'homas. Essai sur le caractére, les rmxurs et l'esprit des femmes dans les diffé-
50. Idem. reíaíts siêcles, Paris, s77rz; ed. consultada, CEuvres complMes, Paris, Saint-Su-
51. Louis Philipon-de-la-Madeleine, Manuel épistolaire à l'usage de la jeunesse; rin, i8z5, t. Iv, p. 76.
ou Instructíons générales et particuliàres sur les divers genres de Correspondance, 56. M. de la Soriniére, "Réflexions sur le genre épistolaire", artigo publicado
g. ed., Paris, Ferra Jeune, i8z3, P. 13. no rvíercure de prance, pp. 1541-1546, jul. 1741.

18 0 GÊNERO EPISTOLAR OU O PENSkMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 19


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sua enunciação na conversa. Na carta como no salão, fala-se no Para ela, tal como para seus contemporâneos, a conversaç;ío consti-
mesmo tom dos mesmos assuntos : em ambos os casos, é exercida füi de fato a propedêutica para a arte da carta, que deve se submeter,
uma mesma "arte de dizer"S7. Por isso, a carta não é forçosarnente nos pontos importantes, a suas lições. De ambas as artes são banidos
pensada e praticada como um simples paliativo da conversação; a mundanidade e o pedantismo "que exalarn os Livros e o Estudo"
ela pode também ser seu feliz complemento ou mesmo seu adju- e devem ceder lugar a um estilo "ao mesmo tempo fácil, natural e
vante: acontece, com efeito, que circula no salão, na própria pre- l nobre"6', de acordo com o espírito da carta e com o do salão. Arte
sença dos correspondentes, agindo então como um tipo de estirnu- epistolar e arte da conversação conjugam os mesmos valores estéti-
lante para a conversação. Mesmo assim, ela é definida, na maioria cos e celebram uma mesma ética da sociabfüdade em que esponta-
das vezes, como a transcrição de uma conversa que não teria acon- neidade, naturalidade, diversidade, leveza supostarnente traduzem
tecido. À pergunta "o que é uma carta?", Ortigue de Vaumoriére, k
a erupção sutilmente controlada da palavra na cenografia regula-
(J,,
í',,-=-r =.fi
grande codificador do gênero, responde laconicamente em i68g: i
mentada da conversação. Segundo esse protocolo de comunica-
i(I
"Um esc?rito-mandado a u'?mapessoa au?sente par?alhetransrnitir o ção, a carta vê-se anexada ao domínio social, e a pa?lavra que se pro-
que Ihe -aírraffiós se juaéssemo's'Keu?ar"ssy ení:iua"nto?aaê?- duz nela, longe de ser singfüar, sempre é uma palavra ')á normalizada,
I=??iü selle de Scudéry afirma, retomando como sendo seu um velho cli-
í
í segmsdo os critérios requisitados por uma classe aristocrática para
cM que Cícero havia outrora divulgado: "As Cartas [sãol propria- a qual a escrita não poderia ser outra coisa senão um lazer gracioso
mente uma conversa de pessoas ausentes"59. e lúdico. O paradoxo dessa nova arte epistolar é que não deve dei-
Dessa estreita afinidade entre carta e conversação é testemunha xar transparecer nada do trabalho que exigiu anteriormente : "É pre-
ta?mbém o fato de que, muitas vezes no século XVII, OS autores de ciso escrever como se fala. Falar como se pensa e pensar segundo
manuais epistolares são igualmente os signatários de manuais de a ordem das coisas que se apresentam a nossa mente. Essa ordem
conversação, cujos preceitos, aliás, parecem plenamente intercam- vem da natureza, e por isso se diz que, para falar bem, é preciso falar
biáveis. É o caso de Ortigue de Vaumoriêre, que propõe ao público, nahiralmente", escreve, em 1662, O autor de um manual epistolar"z.
em i688, sua Art de plaire dans la conversatíon [Arte de agradar na Um século mais tarde, ainda prevalece esse imaginário do inesperado
conversaçãol e, em i6go, suas Lettres sur toutes sortes de sujets avec nos Modêles de lettres sur différents sujets [Modelos de cartas sobre
des avis sur la maniére de les écrire [Cartas sobre todos os assuntos diferentes assuntosl (i76i), de Louis Philipon-de-la-Madeleine:
com indicações sobre a maneira de escrevê-lasl. Quanto a Made- "A ar?te?de escrí,ver caxt'???sd??eve???ser tj???o sirnples quanto a arte de con-
moiselle de Scuô+éry, é naturalrnente sob forma de conversação que versar. IA carta dev; ser a?exp?re7são s?im"?plesef7cild?os-e-füim:I'nto 'e dío
ela apresenta em Clélíe seus elementos de reflexão sobre a carta"o. p e n s arn'?en?to".' S ab W Íse b em,-7ntretan?to, que p o r trá s-d o -co'rÍ'c eito d e
"estilo nafüral" se esconde a norma, totalmente interiorizada pelos
57. Empresto a expressáo de R. DucMne.
f epistológr?afos?e pelas pessoas do ?s?alão, 4e?uma conveniência cuja
58. Vaumoriére, Lettres sur toutes sortes de sujets, avec des avis sur la maniêre de
les écrire et les réponses à chaque espéce de lettre, Paris, i68g, t. í, cap. :i, intitu- ? obr4gaç;o?é?aparar ângi?ilos e arestas de qualquer discurso incisivo
}
lado "Ce qu'est une lettre".
5g. Clélíe, histoire romaine. Paris, A. Court+é, i655, p. ii4o. 6i. hlem.
6o. Clélie, III, segunda parte. Madame de Scudéry retomará essa arte episto- 62. De la Barre Matei, L'art d'écrire en fiançaís, ou la maniére de faire des com-
lar em"D e la maniêre d'écrire des lettres=, Conversations nouvelles sur divers pliments, des lettres, des discours en dialogues, des traductions, des harangues,
sujets, Paris, Barbin, i684, t. ii, p. 5o3-55.i. rhistoire, des romans, Paris, Jolybois, 1662.

30 0 GÊNERO EPISTOLAR OU O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 31


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ou %ra Ohe dar? ç po3mento que convém ao socioleto em sgjpta manent: para a posteridade, a carta permanecerá para sem-
"'?g?AJiás, é o que Mademoiseue de Scudéry a?ite facilmente pre na memória dessa sociedade policiada. Assim, a recepção ulte-
ao reconhecer quanto "as relaçõ es na alta sociedade e no mundo da rior da maioria dessas correspondências privadasy maciçamente
corte", bem como "certa Arte" e uma "mente hábil"63, são as armas publicadas no início do século XIX, vai centrar-se no seu estatuto
essenciais para quem quer brilhar na cena epistolar. O natural, que de documento histórico e sociológico. Stendhal vê na própria lfn-
romances galantes e Secretários exaltam com muito empenho, é gua dessas correspondências "a única imagem parecida que nos
sempre 'Eruto da educação ou de autocensura. Esse paradoxo é admi- resta desses tempos"66; e é também como as marcas quase sono-
rave}m=ntêf'ormulado
?rmpladi pOr Barbey dAurevilly, eSSe grande amador ras de um mundo morto que Sainte-Beuve as colecionará, procu-
íra". )lik respeito
de ('çpistolafüra". re de Madame de Sabran e de suas car- rando no precioso cofre de relíquias das correspondências o eco
tas ao cavaleiro de Boufflers, escreve: "Ela tinha nascido rratural, e longínquo dos murmúrios que cochichavam, outrora, nas casas
a sociedade à qual pertencia desenvofüeu-a nesse sentido"64. Aliás, dess:?s fadas de salão como as Sévigné, as Caylus ou até mesmo
durante muito tempo, a carta se lembrará dessa função socializante, Mademoiselle de Scudéry, essa "escrevinhadora", de quem, con-
ousaríamos até mesmo dizer, às vezes disciplinar, quando nos sécu- tudo, não gostava muito. Por meio das correspondências, Sain-
los seguintes se tornar o instrumento pe«flagógico privilegiado para te-Beuve, apaixonado por esse século XVII menor que se escreve
inculcar nas moças os bons cosfümes da sociedade. É sob a forma em voz baixa nas cartas e nas memórias, sonha em recompor a
epistolar, julgada provavelmente mais digerível para as "moças" do história impossível da conversaçáo durante esse Século de Ouro,
que um tratado pedante, que os pedagogos do século xvm vão esco- que rcpresenta para a conversação o Grande Século; e é graças à
lher, quase p or unanimidade, formular seus preceitos. Testemunho mediação das correspondências que ele concebe essa ressurreição
disso é a profüsão de obras da época que apresentarn de todas as for- que parecia improvável. Para ele, como para Barbey dAurevilly, a
mas invariáveis "Cartas sobre a educação das mfüheres"65. translação entre a conversação e a correspondência é lógica. Em
Circunscrita dessa forma a seu espaço mundano restrito, desde ambas, é um mesmo sopro que anima as mesmas palavras, pois o
o qéculo XVII a carta age como o motor de uma civilidade fundada "espírito epistolar de um homem sempre é o espírito de sua con-
na circulação regulai'nentada de uma palavra pretensamente liberta, versação transposto para suas cartas"67. As relações privilegiadas
' mas'qu-e,- 'na veraaae,'-'perm'an'e'c'e'sob'alta-vjgilÃncia. Verba vo'7a?txt, - que os dois grandes críticos mantêm com esse tesouro epistolar
recentemente exumado são emblemáticas da recepção do gênero
63. Clélie, op. cit., pp. 893 e ii4o.
64. Barbey d:Aurevilly, "Correspondance inédite de la comtesse de Sabran et
no século xíx: "Que conversação encantadora é também essa
du chevalier de Boufflers", em op. cit., P. 270. inesgotável correspondência de Voltaire! Ela existe há mais de
65. Citamos, entre outros, Damours, Lettres de Milady"' sur ri4uence que sessenta anos, e nunca nos cansamos dela"""y eSCreVe Émile Des-
les femmes pourraíent avoir dans rMucation des hommes, Paris, í784; Fevre
du-Grand-Vaux, Lettre à Mme la comtesse de"" sur ré«lucatíon des jeunes
Í
chanel em sua Histoíre de la conversation, na qual elogia as corres-
demoiselles, Paris, í78g; Méhégan, "Lettre sur I'éducation des femmes", em pondências. Certos desencantados do romantismo, mas também
ConsiMratíons sur les révolutions des arts, Paris, s775; Mademoiselle le Mas-
son le Golft, Lettres relatives à réducahon, Paris, i788; Ranto de Labore, Lettres 66. Stendhal, De ramou6 Paris, Garnier-Flammarion, 1965, P. 154.
síír l'Mucatron des femmes et sur leur caractére en général, Saint-Omer, s757; 67. Barbey dAurevilly, "I.'abbé Galiani" em op. cit., p. 343.
Abbé Reyre, L'école des jeunes demoiselles, ou Lettres d'une mêre vertueuse à 68. Émile Deschanel, Histoire de la co+'íversation, Bruxelas, Office de Publi-
sa fille, avec les réponses de la fille à sa mêre, Paris, i786. cité, i857, p. z44.

31)! 0 GÊNERO EPISTOLAR OtJ O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 33
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do igualitarismo democrático que anunciou a morte da sociedade restrita""y delimitada pelos costumes do final do século, pode-
de corte, concordam em procurar no co&e de relíquias das car- -se, contudo, recerisear as novas dicotomias que ele gera. A mais
tas os últimos vestígios, não somente dessa "idade feliz" da lfn- evidente, mas também a mais problemática para a sequência da
gua francesa, como diz Sainte-Beuve, mas também de certa arte história da carta, é a oposição entre o discurso social, que a carta
de viver em sociedade que não voltará mais. Essa tessitura de lín- impõe como norma discreta, mas imperativa, e a voz individual
gua, essa sociabilidade alegre, é o que Stendhal, nostálgico, chama que procura abrir seu caminho original na avenfüra epistolar"-'.
de :aAllegria, assassinada, conforme ele admite, pela Revolução"g. Desde o Grande Século até o Século das Luzes e a fortiori durante
Em contrapartida, para outros contemporâneos, menos sen- o século romântico, os epistológrafos, à escuta de sua própria voz,
síveis que Sainte-Beuve ao discreto encanto da tagarelice dos repudiam progressivamente o exercício usual do gênero epistolar
salões, essas correspondências - irrisórias palavras gefülas - nada conversacional e mundano para inventar novas regras do jogo mais
mais têm de vivo nem de sedutor. Até mesmo a correspondên- excitantes. Ao se recusarem a obedecer às formas de enunciação
cia de Madame de Sévigné, sublimada santa padroeira da socia- autorizadas na carta, vão, ao contrário, organizá-la em espaço de
bilidade epistolar, aparece apenas, vista por certos olhares críti- dissidência onde deverá surgir uma palavra singular.
cos do século romântico, como o empoeirado vestígio de urna Desse ponto de vista, a definição de gênero epistolar dada pela
sociedade confinada em um círculo estreito: "É um salão que se Ertcyclopédie é significativa: "Les lettres des moderrtes apenas pintam
conta para um outro salão"7º, diz Vigny a respeito de suas cartas o jargão de um tempo e de um século em que a falsa boa educa-
para Madame de Grignan ..'-. Quanto a Stendhal, primeiraínente ção colocou a mentira em toda parte [.. . ]. É um preenchimento
sob o encanto dessa possível literatura que as correspondências de ideias fúteis mundanas que chamamos de deveres"74. A defi-
de todas as Sévigné, Maintenon e outras Du Deffand fornecem, nição segue nesse tom, füstigando a futilidade de uma troca de
logo vê nelas apenas a vaidade acre do cortesão, mascarado sob ideias epistolares que reflete a sociedade a quem serve: pervertida
as graças de uma delicadeza de um aticismo de encomenda.?????Para e superficial. E provavelmente a razão pela qual os grandes episto-
todo um conjunto de leitores crít4cos, a carta sempre 2ermane- lógrafos do século xvííi e, mais ainda, os do século xíx escreverão
cerá?mais ou menos marcada por esse selo não de infâmia, mas todos "contra": contra as normas e os modelos enunciativos, con-
ae frivolidade, que?a predestina a ser apenas a crpni«?al de rg3;?- tra a disciplina social e aideológica que esses modelos epistolares
nidades obsoletas. Assim, Beckett só lerá nas cartas de Proust "as impõem insidiosamente. Em suas cartas, a única língíaa que pre-
Tofocfü da velha aristocrata da correspondência"7'. tendem falar é a deles, com sua gramática própria, seu vocabulário
Sem entrar diretamente no debate que vai se instaurar, no decor-
rer dos dois séculos seguintes, em torno dessa "epistolaridade 71 Empresto a expressão de F(a'EFaele Morabito, "Pratiques épistoliêres et
épistolarité restreinte", Orbís litterarum, 1989, 44, 3, pp. 191-203. 0 autor
d-efine nesse texto a necessidade de levar em conta, para a análise das prá-
6g. "Háalgumtemposomente,eutinhaalgumaideiavagadequeela[aRevo- ticas epistolares, as variáveis históricas e culturais que modificam consi-
lução francesa] havia exilado a allegria da Europa talvez por um século" deravelmente a realidade da carta.
(z de setembro de í8ií, Journal, ox, t. I, P. 728). 73. Ver, sobre essa questão, as atas do colóquio: La lettre à la croísée de l'índi-
7o. Vigny, Journal d'un poàte. CEuvres complêtes, Paris, Gallimard, 1965, P. sx4z viduel et du social, dir. Mireille BosSis, Paris, Éditions Kimé, 1994.
(Bibliotfüeque de la Pléiade, t. II). 74. Encyclopériie, art. "Lettres des modernes", ed. fac-similar. Stuttgart, 1966,
71. S. Beckett, Proust, Paris, Minuit, 1990, P. 19. t. IV, P. 413.

34 0 GÊNERO EPISTOLAR OU O PENSAMENTO NÔMADE POR'UMABREVEHISTÓRIADACARTA 35


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singular, seu monograrna secreto. E alguns, como Stendhal, leva- Uma vez passado esse período de ouro da sociabilidade a
rão tão longe quanto possfvel essa reação criptográfica"s. distáncia, a carta vai se retrair no campo protegido do íntimo.
Por isso, há uma nova divisão paradigmática entre o social e Ela era o eco de um socioleto e o selo da matíí'cííla social de uma
o individual, o coletivo e o íntimo: clivagem que deixa seu ras- personagem; vai querer ser apenas o idioleto quase indecifrável
tro nas correspondências privadas, ao longo do século XVIII, e da de uma pessoa. Íntima, forçosamente íntima, é assirn que o século
qual se poderia seguir um traço exemplar nas cartas de Diderot xíx imaginará a carta: "As cartas são o verdadeiro suprassumo do
a Sophie Volland. pensamento íntimo !", escreve Barbey dAurevilly em uma carta
Em sua correspondência, Diderot introduz o ser social, inde- exaltada a Trébutien76. Definição subscrita, no fim do século, por
pendentemente de sua vontade, opondo-o ao ser singular que se Gustave Lanson, que exclama de maneira também lírica: "O que
expressa na carta. Ao mesmo tempo em que repudia as imposi- é uma carta, senão alguns movimentos de uma alma, alguns ins-
ções de uma ordem social em que o homem "não tem uma rela- tantes de uma vida, capturados pelo próprio sujeito e fixados
ção consigo mesmo" porque se relaciona demais com o outro, no papel?"77. E sabe-se qual amplidão o século xíx dará a essa
ele exalta o fecundo recolhimento do eu que se opera no diálogo visão da carta como "grito da alma". Reformulando a célebre
protegido da carta. Para Diderot, a correspondência privada, expressão de Victor Hugo, poderíamos dizer que as cartas são
ainda mais quando é amorosa, escreve-se manifestadamente para as almas românticas "tudo o que há de fntimo em tudo". ..
contra uma socialidade dissonante da qual ele quer se preservar A prática da escrita epistolar privada, que se desenvofüeu ampla-
no lugar fechado e protegido da carta. Esta demarca a fronteira mente desde o século XVIII, certamente contribuiu para o nasci-
reconfortante, quase estanque, entre dois espaços de comunica- mento do íntimo. Essa intímülade, ligada à relação epistolar e à
ção: por um lado, a sociedade que impõe a circulação de discur- emergência de formas diversas de escrita de si, é preciso concebê-
sos desvalorizados porque convencionais; por outro, a relação -la segundo os dois maiores sentidos do termo que permanecerão
epistolar que circunscreve o território protegido do íntimo onde mesclados no decorrer de sua evolução semântica. Se primeira-
uma palavra verdadeira pode enfim advir. A carta é uma tela que mente a palavra "íntimo" serviu no século xvss para caracterizar a
isola os bastidores privados do proscênio público; mas é tam- relação de afeição que une dois seres, sua acepção muda sensivel-
bém um cofre que protege a palavra das vilezas de uma socia- mente no decorrer do século seguinte. Em i835, a academia define
lidade alienante. Com as cartas endereçadas a Sophie Volland, o íntimo como aquilo que é "interior e profündo", isto é, "aquilo
estamos muito longe da exuberante obsessão de comunicação que faz a essência de uma coisa""". Desde então, a noção de intimi-
sociável que caracteriza a época-Sévígné da carta. dade não está mais forçosamente ligada a uma relação dual - se5a
ela de amizade e de amor -, mas antes à densidade da relação que

75. Conhece-se a criptografia de Stendhal, que se exacerba no protocolo epis- 76. ].Barbeyd'A.urevilly,Correspomlancegénéralelx854-í8553,textoestabe}ecidopor
tolar, como lembra Mérimée: "Nunca escrevia uma carta sem assiná-la Pfülippe Berthier e Andrée Hirschi, Paris, Les Belles Lettres / Centre de Recher-
com um pseudônimo: César, Bombet, Cotonet etc. Datava suas cartas de ches Jacques Petit/Annales de l'Université de Besançon, vol. 4o, t. iv, p. i37.
Abeille, em vez de Civitavecchia [.. . ]. Todos os seus amigos tinham nomes 77. Gustave Lanson, op. cit., p. 279.
de guerra, e nunca os chamava de outra maneira': H. El., La Gloire de Sten- 78. JeanBeauverd,emseuartigo"Problématiquedel'intime"esboçouahistó-
dhal, textos reunidos e apresentados por Roger Stéphane. Quai Voltaire, ria do conceito em Intime, íntimité, ííitímísme, Université de Lille III, Société
1994, P. 151 (La Petite Collection Bleue). des études romantiques/Edições Universitaires, 1976.

36 0 GÊNERO EPISTOLAR OU O PENSAMENTO NÔMÁDE POR 'UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 37


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podemos manter conosco e à "profundidade confüsa de um eu Stendhal, porque têm o charme das coisas desaparecidas. Contudo,
que não se pode definir"79. É fácil medir quanto a relação episto- o gênero epistolar rejeitado pelos contemporâneos de Luís XIV
lar pôde se servir dessa dupla intimidade, ao solicitar, ao mesmo ignora ainda füdo sobre as variantes autobiográficas das quais será
tempo, a intimidade que se divide com o alter ego ao qual se dirige, o vetor no século seguinte. Como Barbey d'Aurevilly gosta de se
e mais ainda a que se mantém consigo mesmo graças a esse desvio lembrar, o século xvn "tinha outras coisas a fazer além de contem-
pelo outro. Para pensar o íntimo, confüdo, são necessários mar- plar sua própria alrna" e de se "contar na pri?meira peSSOa"s". (uais-
cas e modelos que permitem capfürar as reações variáveis de uma quer que tenharn sido suas tentações de se destacarem em suas
subjetividade que desconhece a si mesma. É o século xvm - o das cartas, os epistológrafos do Grande Século lembraram-se constan-
confissí5es e das ligações perigosas, epistolares ou não - que for- temente do anátema que excomunga qualquer forma de narcisismo
neceu ao seu irmão caçula o essencial da matéria ficcional ou real escrifüral. Não há nenhum incentivo, portanto, a qualquer escrita
para pensar e, poderíamos dizer, "formatar" essa nova epistolari- do íntimo nessas cartas que alguns, como Stendhal, apreciam, ao
dade do íntimo. Aparecem conj untamente representações inéatas contrário, pela franqueza declarada e, até mesmo, por certa rudeza
da carta e práticas originais de escrita epistolar, já que ambas estão enérgica de expressãoss. O talento epistolar do século seguinte é
solidamente atadas uma à outra por ligações de influência e de inte- visto de forma muito diferente pelos contemporâneos de Sainte-
ração. No início do século, uma primeira onda editorial difunde no -Beuve. Feliz época, quando, segundo a mitologia bucólica forjada
mercado "inúmeras cartas do século XVII e do começo do século por Barbey d:Aurevilly, homens e mulheres se "precipitaram em cor-
XVIII, de Mademoiselle de Montpensier, de Ninon, de Madame respondências" e se entregaram a "essas formas de cartas em que o
de Coulanges, de Mademoiselle de Launay etc."8º. Sainte-Beuve eu rola como a mula na grama"8". O rico corpus de correspondên-
não é o único a se congratular por essa "livraria inteligente"8' que, cias privadas do século XVIII que inunda os vinte primeiros anos
sob o Império, reimprime muitas memórias e correspondên- do século seguinte87 - conjuntaínente à abundante publicação de
cias, tais quais as de Madame de Montmorency, de Madarne de Memórias privadas88 - provavelmente contribui para modificar as
Scudéry ou ainda de Madame de Coulanges. Stendhal e, com ele,
muitos de seus contemporâneos se deleitararn com a leifüra des- 84. Barbey d'Aurevilly. "Correspondance inédite de la comtessa de Sabran et
du chevalier de Boufflers", em op. cit., P. 260.
sas obras "depois do jantar"', escritas no correr da pena, "com 85. Stendhalopõeessalínguaenérgica,quesepodeaindadegustarnascartase
abandono e com essas negligências que são propriarnente as que memórias 'do século XVII, à linguagem "castrada" do século xix, século de
fazem a facilidade e o encanto da conversação"83. Essas qualida- afetação. Assim, q ueixa-se disso em uma nota de De lAmour: "Eu, homem,
sou obrigado a suprimir aqui, em um livro dé ideologia, o que, frequente-
des são ainda mais preciosas nesse "século do exagero", como diz mente, está na escrita de Mme de Sévigné" (op. cit., p. í54).
86. Barbey d:Aurevilly, "Correspondance inédite de la comtesse de Sabran et
79. Raphaêl Molho, "Regard intime et construction de soi", em Intime, intí- du chevalier de Boufflers", op. cit., P. 259.
mité, intímisme, p. ii3. 87. Lettres de Mademoiselle de Lespinasse ( í8o 9) ; Lettres et pensées do príncipe
8o. Madame Guizot Sainte-Beuve, em Portraits de femmes, Paris, Garnier- de Ligne (i8o g ); Lettres de Mad;,une de Deffand ( i8iz) ; Lettres de Madame
-Fréres, nova edição s.d., p. z3z. Roland (i835)...
8i. Sainte-Beuve, "Madame de Rémusat': idem, p. 473. 88. É preciso distinguir as memórias históricas, que supostamente encenam
8:l. "Madame de Caylus, et de ce quªon appelle Urbanité", em Sainte-Beuve, uma camada de história vista por um de seus atores, e as memórias priva-
op. cit., i88i, Paris, (Júrnier-Freres, t. III, PP. 56 e 63. das, essas mais próximas do modelo autobiográfico. Em suas Mémoíres,
83. Id e m. Madame Roland distingue uma parte intitulada "Notices historiques';

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práticas dos epistológrafos. Pois eles são também - e, muitas vezes, 7 mais se comunicar senão por meio de seu filtro purificador. Entre
antes de tudo - os leitores dessas cartas em que se expõe, nua e crua- outros epistológrafos stendhalianos, é o caso de Octave de Mali-
mente, uma intimidade sentirnental e espiritual que até então só vert, o herói infeliz de Armarice. Incapaz de encarar face a face sua
aparecia maquiada com o pó de arroz do romance. amada, é por meio de uma carta, escrita com seu próprio sangue,
A nova egéria dessa epistolaridade da sensibilidade, na qual a que ele "se dá a felicidade de dizer tudo a sua Armance"9'. Sin-
alma fala para a alma sua linguagem secreta, não é mais a amável toma, caso exista, desse imaginário de uma substancialidade do
marquesa, é a doce Julie de Lespinasse. Em suas estrofes elegía- verbo epistolar que se impõe em resposta às aporias do diálogo
cas, Sainte-Beuve quer ler o "drama puro ao natural"89, livre de social e às do discurso amoroso.
qualquer artifício retórico; enquanto Henri Beyle, infinitamente As correspondências do século XVII revelavam aos leitores do
sensfvel à tessitura depurada de sua voz, em que se dissipa a incí'- século xsx a cenografia regulamentada de uma sociabilidade har-
moda materialidade da linguagem, impõe sua leitura à irmã Pau- moniosa. As do século seguinte lhes desvelam a drarnaturgia febril
Iine, porque nela vê "a pintura mais verdadeira do amor do século de uma palavra que busca a si própria. E é assim que, tornando-se
XVIII em Paris"9º, muito diferente das dos romances insípidos que por sua vez epistológrafos, alguns desses leitores vão usá-la, tra-
modulam, o mais possível, seus clichês sentimentais. O gênero çando em suas confissões epistolares os contornos de sua identi-
epistolar usufruirá ao longo do século desse bônus de espiritua- dade. Menos impositiva do que o jornaly menOS solene do que a
lidade, inversamente proporcional ao descrédito que atinge, em autobiografia, a escrita da carta apresenta-se então aos narcisistas
contrapartida, quase todas as formas da palavra socializada, seja epistológrafos como o instrumento acessível de uma captura de si.
ela política, mundana ou literária. Basta ver a esse respeito a repre- Ao fixar a carta no território do íntimo, o século XIX parece respon-
sentação sintomática da carta, e mais geralmente da comunica- der a uma exigência muito antiga que se ouve esp oradicamente em
ção epistolar, no romance da primeira parte do século XIX. Oni- inúmeras correspondências e que o pensamento humanista da carta
i
presente na rnáquina romanesca a título de objeto ou de discurso, já havia formulado. Rompendo com a impessoalidade da epístola
a carta p:?rece se impor como a alternativa - menos radical do douta, os adeptos da nova epistolaridade, como Justo Lípsio, pro-
que o silêncio - para as mentiras comüns da comunicação direta. curaram também na carta o esp:?ço de outros ensaios de si e o ter-
Por elas, dissipam-se as ambiguidades e os equívocos que arruí- reno de expressão de uma palavra mais centrada sobre si mesma do
nam a circulação da palavra nas esferas sociais. A tal ponto que que dirigida ao outro". Prova de que na história da carta as muta-
certos heróis românticos, campeões de uma verdade que não se ções não são tão inovadoras como se poderia pensar.
sentem capazes de encontrar na arena pública, acabam por não No momento em que surge a carta familiar, outra prescrição
que constitui uma crônica dos dois ministérios de seu marido, J.-M.
circunscreve o campo de uma liberdade de expressão estrita-
Roland, e uma parte intitulada "Mémoires particuliersª', que é um relato mente vigiada. Sutilmente dissimulada na socialidade policiada da
de vida, e especialmente um relato de infmncia na linhagem direta da carta clássica, uma injunção proíbe na correspondência qualquer
autobiografia de Rousseau.
89. Sainte-Beuve. Mademoiselle de Lespinasse [).ô de maio de i85o], op. cít., 91. Stendhal,Armance,Paris,Garnier-Flammarion,íg67,p.ígz.
i88i, t. u, p. i4í.
90. Stendhal a Pauline Beyle, junho de i8io, Correspondance générale, Paris,
92. EisarazãopelaqualMarcPumarolipôdelernacartalipsiana"ametáfora
Honoré Champion, 1998, t. ü, p. 4o. (Doravante abreviada CG).
escrita de uªma irriprovisação toda interior em presença, toda espiritual, de
um amigo ausente" (op. cít., p. 896).

4o 0 GÊNERO EPISTOLAR OU O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CÁRTA 41


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Teme-se então, acima de tudo, o pedantismo afetado e detestam- considerada o espaço mais propício para as especulações intelec-
-se consequentemente os discursos doutos dos profissionais do tuais, mais apropriado, segundo o que se diz, às tagarelices munda-
pensamento. A conversaçáo e a carta são as obras-primas luxuo- nas ou aos bate-papos sentimentais do que às dissertações doutas.
sas, mas tão efêmeras e quase inconsistentes, cultivadas por uma Por isso a quantidade de desculpas, de preterições e de denegações
sociedade aristocrática que transformou o lazer em um exercício oratórias, de que se vale a epistológrafa, sentindo-se obrigada a
estético93. A carta se lembrará durante muito tempo desse impera- defender, apesar de tudo, a frivolidade do gênero tal qual é conce-
tivo categórico de leviandade que terá feito füdo para impedi-la de bido então. Se porventura ela inicia uma reflexão filosófica mini-
pensar. Muitos epistológrafos, contudo, saberão contornar habil- mamente ordenada, sente-se imediatamente compelida a conde-
mente essa proibição inventando maneiras indiretas de perísar por nar essa infração à norma: "Admiro como estou agora levada por
carta94. Mas, novamente, dever-se-á esperar antes que novas prá- um estilo de sermão, isso não se enquadra bem ao estilo episto-
ticas se instaurem, sem que nunca seja totalmente obliterado esse lar"96. A cada passo falso, a epistológrafa sabe que corre o risco de
antigo anátema. É certo que essa proibição foi sentida de modo receber a etiqueta difamatória de bel esprít. Eis por que evita assu-
mais acirrado quando os assinantes da carta eram mulheres. Tal- mir, tanto em suas cartas como nos salões, o papel perigoso de
vez mais sensíveis às imposições insidiosas dos manuais epistola- "espirifüal ou douta"97, sabendo bem que uma "mulher que escreve"
res, as mulheres conciliam em sua correspondência a preocupa- - sejam cartas ou livros - "é sempre ridícula, a não ser que tenha
ção com as conveniências e um desejo legítimo de explorar esse muito talento"98. Ridícula, uma mulher que escreve e, pior ainda,
novo instrumento de expressão de si. que "pensa por carta"? Será, em todo caso, a sentença irrecorrí-
Manon Phlipon, nos primeiros tempos da correspondência vel de muitos austeros censores do século XIX. Conhecem-se as
com sua amiga Sophie Cannety manifesta certo desconforto para invectivas de um Barbey d'Aurevilly contra a suposta pretensão de
gerir essas postulações contraditórias da carta. Ela tem tanto pra- "Mrne Sand", cujas cartas ele teria desej ado simplesmente íntimas
zer, como diz, em "moralizar" e em "pensar", que dedicaria de bom - entenda-se anódinas e fúteis -, que encadeia "páginas ambicio-
grado toda a sua correspondência a essa atividade ilícitags. Ilícitay sas de política e de moral dirigida, tafüez por causa do público, a
personagens solenes"99. A partir daí, os dados são lançados e, para o
93. Ver, sobre essa questão, o artigo de Marc Fumaroli, "De la vie dévote à la vie crítico, Madaíne Sand não será mais do que "uma mulher com pre-
de loisirs", em Sur la plume des vents: Mélanges de littérature épistolaire offerts
à Bernard Bray, Paris, Klincksieck, sgg6. 0 autor mostra como se estabelece tensões literárias nos volumes seguintes de sua Correspondarice"'ºº.
progressivamente =à margem da Corte e da vida pública, uma civilização do A epistológrafa demasiadamente prolixa é rapidamente rebaixada
lazer, encantada pela palavra, por seus gracejos, desde os mais füteis até os
mais arnbiciosos, e pelos jogos uterários, desde os pequenos gêneros galan-
tes até o teatro e nahiralmente até a écloga, gênero tão apropriado para esse 96. sg de setembro de 1774, ídem, t. I, n. s., p. zz5.
universo desaínarrado da realidade prática e burguesa" < p. i46 ). 97. "O bel esprít, a fama, o prazer de ser impresso nao são meu objetivo ; estudo
g4. Para retomar o título da obra: Pei'iser por lettre, Actes du Colloque d'Azay- porque preciso estudar como preciso comer. Eshido o máximo possível
-le-Ferron, publicadas sob a direção de B. Melançon, Montreal, Fides, 199 8. porque o estudo me agrada" (z7 de março de 1776, Lettres de Mme Rolaíaul,
g5. "Tenho prazer em escrever e raciocinar; isso me é necessário, é ineu pão t. I, n. s., p. 396)?
de cada dia, necessito disso de verdade [ ... ]. Ninguém sente mais viva- g8. 3 de junho de i775, ülem, t. I, n. s., p. 3o3.
mente o prazer de pensar, e degusta melhor o da reflexão" ( ;14 de julho de gg. J. Barbey d:Aurevilly, "La Correspondance de Mme Sand", op. cit., p. 374.
1774, Lettres de Mme Roland, t. I, n.s., p. zii). ioo. hlem.

42 0 GÊNERO EPlSTOLkFI OU O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 43


I
ao estado indigno de "escrevedota", segundo o drtrrmmantr que l século a seus ajíer ego i l l ! -. Iaure e Paífüne. Contudo, sabe-se
eg«:Iepií
epl!TDíare»,
Sainte-Beuve reserva para Mademoiselle de Scudéry, Madaíne de íí
bem que tanto um-como outro saberão fazer de sua correspondên-
Gerfüs e outras grafômanas que, diz ele, teriam inventado a escri- cia algo muito diferente de urna alcova para conversas sentirnentais.
vaninha se a invenção não tivesse ocorrido antes. É assim que qual- Ao lado da "tagarelice do coração", a cabeça tarnbém tem algo a dizer
quer escrito de mulher, desde uma simples carta, se verá no século l
na carta. Aliás - será preciso lembrar-se disso ? - Barbey dAurevilly,
XIX atribuído à "ninfomania literária", segundo a graciosa expres- 4 queirnando o que havia adorado, fustigará com cólera alguns an O S
são de Proudhon'º'. i
m' ai;tArde-as c'orrespondências insípidas que invadem de maneira
Contudo, os homens não escapam, por sua vez, ao imperativo endêrnica a cena editorial francesa. Transformada na "literatura de
da leviandade epistolar. Banidos daquilo que gratifica, entretanto, todo mundo", a "literafüra epistolar" lhe parecerá então ter expul-
com o tftulo de "literatura epistolar", Barbey dAurevilly coloca rai- sado a dos grandes: "Cartas! Cartas! Cartas! [... ] a ]iterafüra está
vosarnente esses falsos epistológrafos q ue conservarn em suas cartas indo por cartas agora"'º". Tal é, no firn do século, o novo lamento
a "marca dos livros" e não sabem brincar em sua correspondência daquele que, con';do, havia amado tanto "essas deliciosas coletâ-
"como reis com seu cetro ou sua espaàa"'º'. Estes últimos esquecem as neas que se chamam de Correspondêricías"'º7.
qualidades fündamentais que fazem da carta "algo de tão vivo, de tão Mas antes que assim se critique o "vazio universal" do gênero
íntirno, de tão aberto sobre si : a espontaneidade, a amável negligência, epistolar e sua desoladora inconsistência, é justamente o exercício
a graça, a ingenuidade, a impetuosidade de movimento"'º-'. Em sua do pensamento que ?he foi confiscado. Com esse interdito decre-
grande maioria, os epistológrafos do século romântico observararn - tad; pelos mundanos do Grande Século e retomado em eco por
ou melhor, fingiram observar - esse contrato tácito de negligên- toda uma tradição veiculada, entre outros, pelos Secretários, tra-
cia, repudiando de suas correspondências, a priori, o esforço tanto çou-se uma nova linha de divisão entre práticas de escrita con-
iiítelecfüal quanto caligrá?fico, para deixar escapar, currerxte calamo, correntes. Por um lado, continua-se a considerar a carta como o
inocentes "tagarelices do coração", como diz Balzac'º". Henri Beyle, meio escrito da tagarelice mundana ou sentimental, mais graciosa
que jura nunca fazer rascunho para as suas, pede a sua irmã cartas sobretudo quando é redigida por uma mulher cuja pena fina e leve
sem afetação nem sutilezas intelectuais. Quer o espontâneo, se pos- "corre, voa e não insiste"'8, como diz Sainte-Beuve, grande mes-
sível com erros de ortografia, prova de que não deu trabalho. Pois, tre em escrita feminina. Por outro, vê-se a carta se libertar suave-
em todo gênero e, sobretudo, no gênero epistolar, "infeliz aquele mente do universo estreito da sensibilidade para se impor pro-
que se esforça!"'os. Tal é o pacto epistolar que esses jovens poetas gressivamente como o instrumento de um pensamento dialógico
verdes, como são então Honoré e Henri, propôem nesse infcio de :;m contato com o mundo. Nos fatos, a fronteira permanecerá por
muito tempo móvel, frequentemente intrincada e sujeita a todas
ioi. Pierre-loseph Proudhon, De la justíce dans la Révolutíon et dans L%líse,
Paris, Garnier-Fréres, i858, t. í, p. 3gg.
as transgress«5es. O interdito que pesa sobre a carta, mais do que
ioz. J. Barbey d:Aurevilly, ':A]éxis de Tocqueville", op. cit., p. i76.
io3. hlem. io6. J. Barbey dAurevilly, Les crítiques et les juges jugés, Paris, Frinzine, 1885, P. 71.
io4. 'Uma carta bem escrita é preparada, toda carta preparada não é a tagare- io7. J. Barbe'y dAurevilly, "De Stendhal", op. cit., p. 3g.
lice do coração." Honoré de Balzac a Laure Balzac, 6 de setembro de i8ií). ío8. E assim que Sainte-Beuve caracteriza a pena de Mademoiselle ãssé em
Corí-espondance, org. Roger Pierrot, Paris, Garnier, 1960, t. I, P. 34. "Mademoiselle Aissé" [i846], em Portraits líttéraires: CEuvres, texto estabe-
io5. Stendhal a Pauline Beyle, íg de março de i8o3, cc, t. I, P. 89. lecrdo-por-Mfüime Le'roy, Paris, Gallimard, 1951, P. 654 (Bibliothílque de
la Pléiade, t. II).

44 0 GÊNERO EPISTOLAR OU O PENSAMENTO NÔMADE


PORUMABREVEfüSTÓRÍADACARTA 4S
í
1
esdemsá4a, amvida os epistokSgrafos mais audacio sos a inventa- "raciociriar por carta', rnas Eora de qualquer sssJkma ??nào-se
rem novos protocolos de reflexão, sem a rigidez da teoria, sem a ari- mais hurnildemente "à pesquisa e à análise", mais ou menos "como
dez do dogmatismo, mas com todas as graças da expressão episto- se estudam as coisas da nafüreza sem pretender fazer ciência""". Se
lar: mobilidade, desenvoltura. Rapsódico e plural, o que se elabora o laboratório intelectual da correspondência"-' Ihe convém melhor
nos quiproquós dessa palavra n6made é um pensamento forçosa- do que qualquer outra tribuna mais oficial, é porque este proíbe a
mente impuro, mas que é fecundado por essa própria impureza. príori as crispações teóricas. Essa disponibilidade, esse apetite de
Aproveitando-se dessa feliz disposição da carta para "borboletear", troca com o outro caracterizam a postí?ira intelectual e enunciativa
o epistológrafo permite-se todas as digressões, todos os registros, da maioria dos epistológrafos citados aqui, e, essencialmente, de
todas as posturas enunciativas. Sem temer a confusão dos gêne- Stendhal. Todos procurararn nos múltiplos diálogos epistolares
ros, mas, ao contrário, provocando-a. Dessa plasticidade inespe- as modalidades de um pensamento que se diria facilmente expe-
rada, ganha um bônus de inspiração e de prazer: "Após raciocínios rimental, aberto a todas as influências. Tética, porém sabendo
acerca da existência de Deus, que escrevo tranquilamente em meu também duvidar de si mesma, conquistadora, porém suspensiva.
gabinete, vem-me a ideia de fazer uma canção. Algumas estrofes Na história do gênero epistolar, portanto, tudo acontece como
estão escritas? Volto à filosofia e pouco tempo depois retorno às se as deficiências e as censuras que pesam sobre a expressão plena
Musas, que, provavelmente, pouco satisfeitas com minha irregu- e total do epistológrafo se transformassem vantajosamente para
laridade para cortejá-las, não me favorecem muito"'o": é assim que ele em ganho de acuidade. Se as normas e os modelos que regem
Manon Phlipon evoca o que chama de suas "escapadelas de racio- o género oprimiram os epistológrafos sem talento, transformando
cínio", "montagem de peças bem diferentes" que faz da carta uma a carta no texto talvez mais facilmente submetido às imposições
surpreendente marchetaria enunciativa"º. Ao ignorar, com pre- do lugar-comum, também incitaram em segredo certos escrito-
tensão, os imperativos retóricos da disposição e da argumenta- res mais audaciosos a ultrapassarem seus limites e a inventarem
ção, a carta se debruça sobre todos os assuntos. Desde a reflexão para si na carta novas liberdades de pensar, a começar pela de reíle-
moral"' até a crítica literária, passando pe?la introspecção autobio- tir sobre si mesmos. É o que sugere Barbey dAurevilly, ao cons-
gráfica, não existem campos que a sonda epistolar não se dê ao tra- tatar que, no século xvm, o gênero epistolar, ao impor sua forma
balho de explorar. O estatuto genérico vago da carta a abre para a quase todas as modalidades de expressão literária - panfleto,
todos os horizontes epistemológicos. Porque zomba dos discur- romance, tratado filosófico etc. -, foi "tal qual um jugo lançado
sos constituídos, torna-se o instrumento ideal de um saber vivo.
Um século mais tarde, George Sand praticará, por sua vez, essa
epistolaridade clandestina que, entretanto, sabe dar importân- iiz. George Sand, Impressions et souvenirs (i863), Genebra, Slatkine Reprints,
cia a cada um dos territórios do pensamento. Pretende também ig8o, P. 332.
113. Sobre o tema da correspondência como laboratório intelectual, ver Ber-
nard Bray,"Le laboratoire épistolaire", em Thàmes et genres littéraires aux
109. 30 de janeiro de í774, Lettres de Mme Roland, t. I, n. s., p. 7g. xvrz' et xvm' siécles. Mélanges erí rhonneur de Jacques Truchet, Paris, Pres-
íío. "Para concluir essa marchetaria, vou te escrever o trecho de uma história ses 'Universitaires de France, 1991. Françoise van Rossum-Guyon pensou
que li" (3i de março de z778, ülem, t. íi, n. s., p- z45). também nessa fünção da correspondência em seu artigo: "La correspon-
111. Ver a obra coletiva Lettre et réfiexion morale, estudos reunidos por Gene- dance de George Sand comme laboratoire de l'écriture", Revue des Scien-
viêve Haroche-Bouzinac, Paris, Klincksieck, ií)gg. ces Humaines, pp. 97-104, 1991.

46 o cÊubp.o EPISTOLAR ou o pbüs.?mpn'ro NÔMÀDE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 47


I
ri

sobte a penmmento""4, mas um jugo paradoxalmente libertadory «


s
salão estético, debate crítico"6 -, tanto nas práticas reais quanto
.6

g
já que suscitou a profusão excepcional de uma nova "epistolatura", no campo da ficção, em que proliferaram esses grandes romances
entendida dessa vez no sentido de literatura epistolar. epistolares, cuja polifonia faz ouvir a pluralidade efervescente das
O século XVIII - século das correspondências - soube, com J
consciências. Os epistológrafos - frequentemente polígrafos, à
efeito, especular magnificamente a respeito desse leque aberto 4 maneira de Grimm ou de Diderot - derrubaram, pela sua eferves-
Â
entre leveza e profundidade, entre convenção einvenção. Os epis- cência escrifüral, um paradigma essencial: o da identidade gené-
tológrafos, e não apenas os pensadores profissionais das Luzes, rica. Ao multiplicar os dornfnios de expressão investidos pela carta,
mas também eSsas diletantes esclarecidas que fizeram a felicidade destrancaram o gênero epistolar tal qual ele havia se fechado no
de Stendhal ou de Sainte-Beuve - Madame du Deffand, Julie de discurso crítico e no ficcional, inventando em todas as possibili-
Lespinasse, Maaame Roland ou, ainda, Madame d'Épinay - con- dades da carta uma nova liberdade de expressão.
tornaram e transcenderam, com uma facilidade notável, os inter- "O gênero epistolar, escreve M?me Roland em suas Memórias,
ditos que o século precedente havia imposto à escrita epistolar sempre [me] pareceu singularmente fácil e agradável porque se
para torná-la terreno de exercício favorito de um pensamento em presta igualmente a todos os assuntos, a todos os tons, porque
progresso. Se, muito antes deles, os pensadores da Antiguidade oferece à discussão formas suaves e à razão todo o desenvofüi-
haviam também posto a carta a serviço do exercício do pensa- mento que se lhe quer dar.""7 Suas cartas, em sua incomparável
mento e instalado por meio do diálogo epistolar as premissas do variedade, são a ilustração exemplar dessa plurifuncionalidade
debate filosófico, os espíritos mais originais do século XVIII, de que concede ao gênero"8. À sua declaração faz eco, entre mui-
fato, reinventaram "um novo modo de usar desse antiqufssirno tas outras, a de Diderot, que, em seu preâmbulo à Lettre sur les
meio de expressão, a carta""5, como escreve Georges May. As sourds et les muets, declara: "Quanto à multiplicidade dos obje-
correspondências - reais, mas também ficcionais -, cujas redes, tos os quais gosto de sobrevoar, saibam, e ensinem àqueles que
naquele momento, se complicam e se alargam conforme as dimen- vos aconselham, que isso não é um defeito em uma carta em
sões da Europa das Luzes, assumiram plenamente seu ofício de que supostamente se conversa livremente e em que a última
fórum virtual onde pensar a sociedade nova e onde inventar urna palavra de uma frase é uma transição suficiente .""9 Ao ampliar
outra literatura. A carta, então, afirma-se como o meio essencial quase ao infinito o campo da carta, os epistológrafos do Século
de todos os grandes debates que marcaram o século, e impõe-se das Luzes radicalizaram de alguma forma as }ições longíncluas
como o indispensável instrumento formal de uma vasta reflexão de Erasmo. Em seu De cotxscríbendis epistolís, o humanista só
epistemológica. Excedendo os limites do gênero literário e mun-
dano no qual quiseram confiná-la, a carta se diversifica - romance 116. Ver a obra coletiva La lettre au xvne siécle et ses avatars, Toronto, Edições
du Gref, 1996.
epistolar, diálogo filosófico, carta aberta, panfleto, autobiografia, ii7. Mémoires de Mme Rolaml, texto estabelecido por Paul de Roux, Paris, Mer-
cure de France, 1966, P. 147.
ii8. Evoqueiesseaspectopolimorfodacartaem"L'épistolaireetlaconnivence
114. ]. Barbey dAurevilly, "Correspondance inédite de la comtesse de Sabran féminine: lettres de Manon Phlipon aux sa?urs Cannet (í767-í78o)", em
et du chevalier de Boufflers", op. cit., P. 161. La lettre au xvm'- síêcle et ses avatars, Toronto, Éditions du Greí, 1996.
115. Georges May, "La littérature épistolaire date-t-elle du XVIII" siêcle?", Stu- 119. Diderot,"Lettre à Monsieuí"'ª', preâmbulo de Lettí-e sur les sourds et les
dies on Voltaire, VOI LVI, P. 839, 1967. muets, edição de Paul H. Meyer, Diderot Stuàies, n. 7, 1965.

48 0 GÊNERO EPISTOLAR füJ O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 4g
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7

infinito. À infinidade dos assuntos dos quais a carta pode tratar, !l


são pré-calibrados. Portanto, não é totalmente um acaso a carta -
"não menos numerosos do que os mundos de Demócrito", res- pública, aberta ou fictícia - tornar-se, no século XVIII, 0 modo
pondem, segundo ele, as formas que ela empresta, "não menos de expressão preferido do pensamento engajado, e todos os
numerosas do que os grãos de areia do deserto da Ijbia"'º. Ao maiores escritores do século serem tão grandes epistológrafos.
levarem ao extremo a lógica da abertura, os epistológrafos do Enfim, também não é um acaso se "o século que ínverttou a liber-
século XVIII transformaram a carta, como escreve Georges May, dade inventou também a carta"" ...
em "um meio de expressão privilegiado, prometido para um Os epistológrafos do século seguinte souberam continuar
futuro ilimitado, porque, não tendo nenhuma forma preestabe- nesse caminho ao mesmo tempo em que foram abertas novas
lecida, nenhum modelo absoluto, é capaz de se sujeitar a todos vias. Menos confiantes que seus predecessores na eficiência
os usos, adaptar-se a todas as necessidades, de expressar tudo; da discussão filosófica e do debate por correspondência, espe-
porque ela é um modo livre"". Melhor ainda, souberam recon- rando mais da carta um efeito sobre si do que uma ação sobre
ciliar os dois termos de uma antinomia que o século precedente o outro, praticaram mais facilmente uma epistolaridade de
havia cavado no cerne mesmo da prática epistolar entre criação uso interno. É a serviço de sua própria liberdade que tentaram
literária, por um lado, e sociabilidade, por outro". Ao repu- explorar o fermento da carta. O uso do exercício epistolar pre-
diarem a clivagem entre criação e comunicação, os escritores para as novas formas de escrita de si, que paralelamente come-
do Século das Luzes impuseram, graças à mediação do gênero çam a desenvofüer-se, e concorre com elas: memórias, narrati-
epistolar, uma nova concepção da literatura como discurso diri- vas de infância, lembranças, autobiografias. Enquanto isso, os
gido à sociedade. É claro que não se pode mais então falar ver- epistológrúos do século romântico seguiram a seu modo a libe-
dadeiramente de gênero epistolar, por parecer clue esse gênero ração genérica empreendida por seüs antecessores. No século
devorou todos os outros. A esse respeito, a palavra epistolatura, x.íx, tornou-se cada vez mais difícil falar de um gênero episto-
inventada por Barbey d'íAurevilly, parece convir para sugerir a lar, tanto a express;ão recobre práticas heterogêneas. Daí, no fim
identidade mesclada dessa literatura paralela que se torna, no do século, a perplexidade de um Lanson diante do vago gené-
século XVIII, 0 gênero epistolar: às vezes avesso, às vezes reflexo, rico de uma literatura epistolar que se esquiva a qualquer cap-
às vezes até mesmo negação da outra, a "verdadeira". Assim, de tura:"Não há arte epistolar. Não há gênero epistolar". Cada carta
gênero fortemente normatizado como era outrora, o episto- vale em primeiro lugar e exclusivamente pela presença que a
lar torna-se a forma livre por excelência: o antigênero, rebelde a habita: "Em uma carta, decreta Lanson, não somos obrigados a
ter talento: só devemos ser nós mesmos ..."". Eis a carta reme-

tida para a singularidade do eu que se desnuda nela; eis a carta


120. Erasmo, De conscribendís epistolis, citado pOr M. Fumarolií op. cit., p. ssg.
izi. Georges May, op. cit., p. 83g. novamente deixando o território da literatura para reencontrar,
112. Como escreve Anne Chamayou: "Graças à sua capacidade de atravessar dessa vez, o do testemunho.
os gêneros, a carta pode ser considerada o grande modelo experimental
dessa escrita dial%ica que associa o gesto da criaíão literária ao protocolo
da comunicaçao social". "'Une forme contre les genres : penser la littérature 1:13. Georges May, op. cít., p. 84o.
à travers les lettres au xviii'- siécle", em Penser por lettre, op. cit., p. 149. i.ç4. Gustave Lanson, op. cit., p. z64.

50 0 GENERO EPISTOLAR OU O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 51


I
Há a mesma flutuação no que concerne às representações «
*
entretanto, é que, apesar de seus desvios e de seus extravios, ela
da carta: impõem-se nela modelos que não têm mais nada a ver permanece investida de um secreto poder heurístico.
com as práticas reais. Nos Secretários e manuais consuma-se a - Anfíbia, híbrida, a carta no século XIX O é também porque ela
instrumentalização da carta destinada a prop:.?gar as regras da embaraça as fronteiras do literário. O gênero epistolar oferece-
civilidade comum e a oferecer uma pedagogia do lugar-comum. -se aos escritores - amadores ou profissionais da escrita - como
No plano das práticas individuais, em contrapartida, opera-se J
um espaço de invenção por onde escapar das prescrições poéti-
a autonomização de um gênero que faz explodirem aos poucos l
i cas que regem os gêneros constituídos. Tendo coriseg,uido uma
todas as paredes retóricas. Está-se longe da conformidade esti- certa polifonia, a carta não procura mais então construir, além
lística que, ainda no século xvrí, parecia reinar entre carta real e da marchetaria dos discursos evocados, uma unidade impossível,
carta ficcionaPº. Os filhos do século romântico, Henri Beyle ou mas interrogar suas dissofüncias. Torna-se, por isso, um teste
Aurore Dupin, sabem admiravelmente, em sua correspondência da literatura. Do modo como inúmeros epistológrafos-escrito-
de juventude, desviar dos rituais epistolares estabelecidos para res do século o praticaram, o gênero epistolar, de fato, se colo-
produzir textos-arlequins, coleção de fragmentos de obediências cou como a alternativa crítica para a escrita literária - de alguma
diversas sem outra ligação a não ser a identidade do signatário - maneira, o outro da literatura. O fosso, então, cavou-se entre a
ainda que esta seja instável e variável em função dos correspon- literatura oficial, legítima, mas suspeita de todos os artifícios, e
dentes. Quanto às representaçí5es romanescas da carta, revelam essa literatura menor, presumida mais auténtica. Stendhal, assim
imaginários plurais, frequentemente contraditórios. Os grandes como Barbey dAurevilly, a+ribui sem reserva uma primazia de
romancistas do início do século XIX - essencialmente Balzac e verdade às correspondências e às memórias, porque seus auto-
Stendhal - mostraram facilinente a carta como um palimpsesto res, desprendidos das imposições da publicação, as redigem, diz
de signos vagos, portadores de intenções equfüocas e de signi- ele, "para sfogare", em outras palavras, para "extravasar sua vai-
ficações ambíguas, cuja figura emblemática se encontraria nas dade", e, porque, em consequência, supostamente escrevem a
cartas de Louis Lambert, de caligrafia hieroglífica. Para esses veír«3ade". Na prática, a posição do epistológrafo assegura ao
romancistas, que são também epistológrafos, há algo de ilegível escritor um recuo crítico em relação aos artifícios da literatura.
na carta. Porque ela exacerba os mal-entendidos e acentua os Pode-se, aliás, observar que os grandes epistológrafos do século -
simulacros e outras ilusões nos quais se pervertem as relações Stendhal, Sand, Flaubert - SãO todos escritores que, em certo
humanas - e, sobretudo, as relaçí5es amorosas -, a carta é sem- momento de seu percurso e por razões diversas, quiseram habi-
pre para eles provação e, até mesmo, crise da comunicação. Infi- tar as margens do espaço literário, afastados, até mesmo dissi-
nitamente fr%il, sujeita a todos os desregramentos, ela acentua dentes, de suas normas, seus cânones, seus hábitos. E é na cor-
a opacidade problemática de toda comunicação. O paradoxo, respondência, espaço limítrofe - ao mesmo tempo dentro e fora
do literário -, que essa palavra das margens pôde produzir-se.
íz5. Fenômeno esclarecido pelo estudo comparado das cartas de Mademoiselle
de Scudéry e das que destina às páginas «3e seus rornances. Ver, a esse res-
peito, o estudo de M. Maitre, "Lettres de Sapho, lettres de Madeleine. Les
lettres dans La Clélie et la correspondance de Mlle de Scudéry", em Fritz
Nies, op. cit., pp. 5i-66. iz6. Stendhal a Pauline, 9 a i3 de setembro de i8o5, cc, t. I, P. 322.

51 O GÊNERO EPISTOLAR (]J O PENSAMENTO NÔMADE POR UMA BREVE HISTÓRIA DA CARTA 53

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