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Infância em
Sacramento até a
mudança para São
Paulo.
Acesso ao
Tradição
código Autodidatismo
oral
escrito
“O vovô abriu os olhos e nos disse: Todo mal que se faz, paga-se. O mal e o bem
são dívidas sagradas para com Deus e recebemos tudo com juros: o bem e o mal.
É preferível perdoar do que vingar-se [...]” (JESUS, 2007b, p. 145).
TRÊS PONTOS DE FORMAÇÃO:
O avô
Tradição
África
oral/Griot/
Ética e moral ancestral /
oralidade/ Letramento
cristã/ cultura
performance/ racial
provérbios Bantu/
experiência
provérbios
narrativa
O ébrio O ébrio é um insciente
O homem que bebe: E aborrece diariamente.
O homem que bebe: Quando está bebado, prevalece Não tem valor o seu depoimento
Não tem valor na sociedade Porque o álcool embrutece No poder judiciário.
Não tem nenhuma utilidade E transforma-o em animal. Sua existencia é abjeta
Amar um homem assim O ébrio não tem valor E o seu vicio lhe acarreta
É ir para os braços da infelicidade No núcleo social. A cruz do seu calvário.
O homem que bebe: Homem que bebe: Ele não tem força mental
Não pensa na prosperidade. Seus filhos não vivem em paz Para afastar-se do mal
Não tem noção de responsabilidade E você não sabe o que faz É apenas forma de homem,
Amar um homem assim E pratica más ações. Que enfraquece lentamente.
Só nos proporciona contrariedade. Quantos crimes tem cometido Fica tuberculoso ou demente
Homem que por ter bebido Apenas bebe. E não come.
O homem que bebe Finda a vida nas prisões.
Diz apenas futilidades O ébrio é péssimo vizinho
Nunca diz a verdade O homem que bebe: Pois não trata com carinho
Não tem dignidade Pela esposa é reprovado Os que estão ao seu redor
É digno de piedade E o seu lar desmoronado O ébrio é irracional
Fica jogado na rua. E degrada. É um animal.
Promete se regenerar Se queres ser ditoso no viver, É um homem inferior
Mas não tem força de vontade O homem não deve beber (FBN, rolo 5 - MS-565 (5), FTG [n.p.].)
É um escravo da bebida Se és infeliz, a culpa é sua.
E não prospera na vida.
Ingenuidade
“Na cidade, o homem bondoso que estava no centro era o senhor Manoel
Nogueira. Era mulato. E o mulato é o meio-termo da sociedade. Convive com os
brancos e com os pretos. E com o nome de Nogueira, deveria ser filho de algum
doutor de Coimbra. O senhor Manoel Nogueira passava o dia com os brancos
porque era oficial de justiça. E ao entardecer, ele se sentava à porta de sua casa,
e lia o jornal “O Estado de São Paulo” para nós ouvirmos trechos que foram
ditos pelo Rui Barbosa; por exemplo, que cada estado deveria ceder terras para
os negros cultivarem. Mas este projeto não foi aprovado na Câmara.” (JESUS,
2007b, p.46)
TRÊS PONTOS DE FORMAÇÃO:
Senhor Nogueira
Contato com Contato com
Letramento
o código outros
racial
escrito discursos
“Um dia, eu andava pelas ruas, ia contente. Ganhei uma lima, ia
oferecê-la a minha mãe quando apareceu o Humbertinho e me
tomou a lima. Chorei. Ele era branco. Tinha servido no exército. Às
vezes ele vestia farda. [...] Quando eu o encontrava, xingava:
- Me dá minha lima! Me dá minha lima.
Todos o temiam; ele era filho do juiz. E o juiz mandava prender. Ele
dava vazão ao seu instinto satânico. Uma tarde, quando passava na
frente de sua casa, ele me abordou e me jogou várias limas no rosto
e nas pernas. Que dor! Então eu xinguei:
- Cachorro ordinário, ninguém gosta de você! Vá embora, você é
sujo!
Foram contar ao doutor Brand que foi ver nossa discussão. Ele não
compreendia por que aquelas limas estavam no chão espalhadas.
Eu xingava:
- Este ordinário vive pegando nos seios das meninas pobres, aperta e
deixa elas chorando, mas em mim você não vai encostar suas mãos.
O doutor Brand interferiu:
- Você não tem educação?
- Eu tenho. Teu filho é que não tem.
- Cala a boca. Eu posso te internar.
- Para teu filho fazer porcaria em mim, como faz com as meninas que o
senhor recolhe? É melhor ir para o inferno do que ir para sua casa.
Doutor Brand. Aqui todos falam do senhor, mas ninguém tem coragem
de falar para o senhor. Os grandes não têm coragem de chegar e falar!
Seu filho entra nos quintais dos pobres e rouba as frutas.
Foram avisar a minha mãe que eu estava brigando com o doutor Brand.
Foram avisar os soldados. O povo corria para ver a briga. Quando o
doutor Brand caminhou na minha direção, não corri e ele não me bateu.
Minha mãe puxou-me:
- Cala a boca, cadela!
Gritei:
- Deixa, isto aqui é uma briga de homem com homem.
Falei:
- Olha doutor Brand, seu filho me roubou uma lima. Todos têm medo, eu
não tenho! Ele não recebe convites para ir nas festas dos ricos porque os
ricos não querem misturar-se com ele.
- Cala a boca, negrinha atrevida!
- Atrevido é o seu filho porque é filho de juiz, não respeita ninguém.
Quando ele ia me bater, eu lhe disse:
- O Rui Barbosa falou que os brancos não devem roubar, não devem
matar. Não devem prevalecer porque é o branco que predomina. A chave
do mundo está nas mãos dos brancos, o branco tem que ser superior
para dar o exemplo.
O branco tem que ser semelhante ao maestro na orquestra. O branco
tem que andar na linha.
O doutor Brand disse:
- Vamos parar, eu vou deixar a cidade. [...]
Quando me viam nas ruas, as pessoas sorriam para mim dizendo:
- Que menina inteligente, nos defendeu! Limpou a cidade. [...]
As filhas do farmacêutico José Neto me deram dois vestidos de lese e
perguntaram:- Você já sabe ler?
- Não senhora.
- Puxa, quando souber então! Você promete, menina.
Diziam que foram as palavras de Rui Barbosa, que mencionei, que
fizeram o juiz retroceder. Que eu falava por intermédio de um espírito. A
verdade, é que eu ouvia o senhor Nogueira ler ‘O Estado de São Paulo’.”
(JESUS, 2007b, p. 31-34)
TRÊS PONTOS DE FORMAÇÃO:
A PROFESSORA, DONA LANITA SALVINA
“27 de abril de 1960:// Eu tive uma professora bôa// Ela podia se chamar
bondade, Inteligência e santa./ Que mulher! Eu achava ela tão bonita. Ela era
preta. Dona Lanita. Eu achava/ a lêtra dela bonita e procurava imita-la.// [...]
(JESUS apud FERNANDEZ, 2018, n.p.)
“Não faltava as aulas. Ela dava livros para eu ler. A moreninha,/ Inocência, Escrava
Isaura. Dêpois tinha que explicar a historia do livro. E/ foi por intermédio da minha
ilustre e saudosa professora que eu aprendi/ escrever versos e contos e a gostar
de lêr.// Ela dizia: envez de você ficar na esquina você lucra muito mais lendo um/
livro.” (JESUS apud FERNANDEZ, 2018, n.p.)
“Seria uma deslealdade de minha parte não revelar que o meu amor pela literatura
foi-me incutido por minha professora Dona Lanita Salvina, que aconselhava-me
para ler e escrever tudo que surgisse na minha mente. E consultasse o dicionário
quando ignorasse a origem de uma palavra.” (JESUS apud PERES, 2016, p. 93)
TRÊS PONTOS DE FORMAÇÃO:
A professora
Acesso ao
Acesso a Letramento
código
livros racial
escrito
O MOVIMENTO AUTODIDATA
“Nas horas vagas, eu lia Henrique Dias, Luiz Gama, o mártir da independência, o
nosso Tiradentes. [...] Lendo, eu ia adquirindo conhecimentos sólidos” (JESUS,
2007b, p. 160).
Fisicamente, ao todo
encontramos 16 deslocamentos,
entre idas e vindas.
23.fev.1963. foto de Sidney. Arquivo público do Estado de São Paulo/ Última hora
DESLOCAMENTOS, ANDANÇAS,
ERRÂNCIAS
“Para ser sincera, comecei a sentir falta das diversões; então, decidi sair.
Poderia ganhar menos em outra casa, mas poderia sair aos domingos, ir ao
cinema e passear.” (JESUS, 2007b, p. 247)
“segundo suas próprias palavras, ela era muito independente para ficar
limpando as bagunças alheias” (LEVINE; MEIHY, 1994, p. 21).
DESLOCAMENTOS, ANDANÇAS,
ERRÂNCIAS
“Poderia ser dona do seu tempo, sem patrão nem marido para lhe ditar o
emprego de suas horas. Apesar da carga ser grande demais para ela
carregar, pois ver os filhos com fome sem o mínimo necessário para
sobreviver era terrível, ainda assim, não poderia se sujeitar à ordem e aos
desmandos de um patrão ou um homem. Num país como o nosso, onde
regime de trabalho para as classes subalternas sempre foi a semiescravidão,
Carolina parte para a única alternativa que lhe restou: uma forma de trabalho
arcaica de trocar papel por comida ou gêneros de primeira necessidade.”
Dêsde êsse dia, eu comecei a fazer versos. É que as pessoas que residem em São Paulo, pensam com
mais intensidade. Por isso é que o meu cérebro, desenvolveu-se. (IMS, CMJ_Pi_Um Brasil para os
brasileiros_p 49-50.)
Fonte: Jornal Folha da Manhã, 25 fev. 1940.
O colono e o fazendeiro Trabalha todo dia.
Chega à roça. O sol nascer. O pobre não tem seguro
Diz o brasileiro Cada um na sua linha E nem aposentadoria.
Que acabou a escravidão Suando e para comer
Mas o colono sua o ano Só feijão e farinha. Êle perde a mocidade
inteiro A vida inteira no mato
E nunca tem um tustão. Nunca pode melhorar E não tem sociedade
Esta negra situação Onde está o sindicato?
Se o colono está doente Carne não pode comprar
É preciso trabalhar Pra não dever ao patrão. Êle passa o ano inteiro
Luta o pobre no sol quente Trabalhando, que grandeza!
E nada tem para guardar. Fazendeiro ao fim do mes Enriquece o fazendeiro
Dá um vale de cem mil réis e termina na pobreza.
Cinco da madrugada Artigo que custa seis
Toca o fiscal a corneta Vende ao colono por dez.
Despertando o camarada
Para ir à colheita. Colono não tem futuro
Se o fazendeiro falar: A vida do colono brasileiro
Não fique na fazenda É pungente e deploravel
Colono tem que mudar Trabalha de janeiro a janeiro
Pois há quem o defenda. E vive sempre miseravel.
Diálogo com a
Inspiração e
Escrevivência criação
tradição e com
o moderno
Movente e
Reescrita Tradição oral
multifacetada
O Marginal Era ela que me movia Se o seu pai consentir
Minha voz lhe despertava. Para mim, que alegria!
Vou citar-lhe o meu passado Era profunda emoção
Quando jovem fui notado Parece que o meu coração Ela, pousou o olhar no chão
Era alegre, de janeiro a janeiro Dentro do peito oscilava. Não sei se foi emoção
Eu cantava uma canção E começou a chorar:
E tocava violão Meu Deus! Que ansiedade Meu pai aprecia um nobre
Com os meus companheiros Vê-la era minha vontade E disse-me que tu és pobre
Para dizer-lhe, querida! E não nos deixa casar.
Nós faziamos serenata Quero levá-la ao altar
E a lua cor de prata E se Deus nos auxiliar Suas palavras me feriu
Brilhava no firmamento Vai ser bela a nossa vida. E o meu coração dividiu
Para a minha amada, eu cantava E eu perdi todo o ideal
A canção que ela adorava Nos versos que eu cantava Ela, vive ao lado de um nobre
Não me sai do pensamento. Meu afeto eu revelava. Não revolto por eu ser pobre
E ela compreendia E não lhe desejo mal.
Uma luz lá dentro acendia Haveremos de nos unir.
Outro dia nos encontramos Envelheciamos contente
Por uns minutos nos fitamos E quem sabe se atualmente
Com ardor e emoção. Já tinhamos um netinho.
No sorriso que ela deu,
Percebi que ainda é meu Ela, vive no meu pensamento
O seu terno coração. Não lhe olvido um só momento
Esteja eu onde estiver.
É um pecado desligar Enquanto o mundo existir
Dois entes que se amam O homem há de amar e sentir
Por mera futilidade. Afeto por uma mulher.
É egoísmo, é um crime
Pois, não há nada mais sublime Eu ando andrajoso assim
Do que o amor e amizade. Por não te-la perto de mim.
É ela o meu ideal!
Se eu estivesse ao seu lado Vivo, ao relento, sem abrigo
Não viveria assim, magoado Sem afeto, e sem amigo
E não estaria sozinho. - Sou, um marginal.
Principais referências
Documentos originais de Carolina Maria de Jesus
Fundação Biblioteca Nacional. Coleção Carolina Maria de Jesus. Cadernos microfilmados: 11 Rolos
(1958-1963): MS565 (1-10). Rio de Janeiro, 1996, P/b, 35mm.
Fundação Biblioteca Nacional. Cadernos autógrafos: 14 diários (1947-1963): 47, GAVI, 01-14. Rio de
Janeiro, 2011.
Instituto Moreira Salles. 2 Cadernos autógrafos: BR IMS CLIT CMJ P1 0001 e 0002. Rio de Janeiro,
2006.
JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Sacramento: Editora Bertolucci, 2007b.
JESUS, Carolina Maria de. Meu sonho é escrever... contos inéditos e outros contos escritos. Raffaella
Fernandez (Org.) São Paulo: Ciclo contínuo editorial, 2018.
JESUS, Carolina Maria de. Clíris: poemas recolhidos. Raffaella Fernandez e Ary Pimenta (Orgs.) Rio de
Janeiro: Desalinho, Ganesha Cartonera, 2019.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário uma favelada. São Paulo: Ática, 2020. (Edição
comemorativa)
JESUS, Carolina Maria de. Casa de Alvenaria. Vol. 1: Osasco. São Paulo: Companhia das Letras, 2021a.
JESUS, Carolina Maria de. Casa de Alvenaria. Vol. 2: Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2021b.
Principais referências
LEVINE, Robert M; MEIHY, José Carlos Sebe Bom (Orgs.). Cinderela Negra: a saga de Carolina
Maria de Jesus. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.
NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou
atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza Imprensa Oficial,
2006. p. 117-125.
NASCIMENTO, Gizêlda Melo do. Poéticas Afro-femininas. In: CORREA, Regina Helena Machado Aquino (Org.).
Nem fruta nem flor. Londrina: Edições Humanidades, 2006a. p. 73-90.
PERES, Elena Pajaro. Carolina Maria de Jesus, insubordinação e ética numa literatura feminina de diáspora. In:
ASSIS, Maria Elisabete Arruda de; SANTOS, Taís Valente dos (Orgs.). Memória feminina: mulheres na história,
história de mulheres. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2016. p. 88-97.
KLEIMAN, Ângela B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da
escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia. (Orgs.).
Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Departamento de Letras
românicas, Faculdade de Letras/ UFMG: Poslit, 2002a. p. 69-92.
STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na
etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2014.
THEODORO, Helena. Mito e espiritualidade; mulheres negras. Rio de janeiro: Pallas, 1996.