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ANEXO I - TEXTO

BLUESMAN
ou como se afogar num mar sem água

Diego da Costa Ferreira

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ROTA DE FUGA

(Silêncio constrangedor)

HOMEM - Eu sempre tive dificuldade em começar uma conversa, um diálogo. (Pausa) Como se
começa um diálogo? Eu sinceramente não sei. Mas quando se trata de algo pessoal, o início é
sempre complicado, pelo menos para mim. Soa como iniciar uma conversa com uma pessoa
desconhecida no meio da rua. O que se deve dizer primeiro? Oi? Estou aqui, já comecei…

(Silêncio)

Agora que comecei, já deveria ter ficado um pouco mais fácil, afinal de contas já teve a
introdução…, mas no fundo eu sei que não será fácil, falar o que eu tenho para dizer. Mas vamos
lá… (Respiro). Durante muitos anos eu fui si-lên-ci-a-do sem poder dizer aquilo que eu
precisava dizer para o mundo. | Vocês precisam me escutar. | Sim, escutar, e não ouvir. Talvez,
depois de escutar, vocês entenderão melhor porque meus olhos ficam marejados ao assistir
filmes que falam sobre a vida das pessoas que lutaram contra a discriminação racial, que dão a
dimensão de quanto isso pode nos ferir por dentro. Preste muita atenção, pois pelo fato de
estarmos aqui (aponta o palco) isso pode parecer ficção, mas não é. É vida real. Vida concreta.
Vida pulsante. A vida me ensinou a ser negro numa sociedade racista. Repito. A vida me ensinou
a ser NEGRO. Embora quase ninguém admita que seja racista, eu não tive outra escolha a não
ser aprender a lidar com essas pessoas. Desde muito cedo, eu fui jogado no mundo das pessoas
brancas, então sei muito bem sobre o que vou falar. Enquanto criança vivi dentro da verdade crua
do racismo. Quando alguma criança queria ser racista comigo, ela era da forma mais direta, não
havia meandros ou subterfúgios. Crianças são verdadeiras e não possuem esses artifícios.
Aprendem aos poucos enquanto crescem. E crescem. Crescem. E por mais que elas possam não
saber exatamente o que é racismo e como ele funciona, elas praticam. Elas te excluem do grupo.
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Te chamam de macaco. De cabelo ruim. Te dão todo tipo de apelido para tentar te atingir porque
simplesmente não foram com a sua cara e querem te ferir. Praticam! É esquecido que toda
criança preta sofre muito. Minha mãe me dizia para não brigar na escola, eu fui parar na diretoria
muitas vezes, e tantas outras mudei de escola, tantas outras mudei, tantas, tantas outras mudei de
escola, percebam, eu mudei, eu, apenas EU mudei, mas no fundo eu tinha certeza de que ela
sabia que eu estava me defendendo, que eu estava sobrevivendo. Eu estava. Mas a porrada não
era o jeito certo de lidar com esse problema. Não mesmo. Eu descobri minha voz quando eu
percebi que eu não me encaixava em lugar nenhum, que eu estava preso numa caixinha. Eu
comecei a me incomodar quando me diziam que pelo fato de eu ser preto eu tinha que fazer isso,
ou aquilo outro. Que pelo fato de eu ser preto eu tinha que ouvir somente aquele tipo de música.
Que eu tinha que me vestir e me comportar da forma como ou outros queriam que eu me
comportasse. Então eu tentei pegar uma rota de fuga, eu juro que eu tentei, mas daí eu comecei
a pensar o quanto isso não era saudável, onde a sociedade vê o preto como violento, daí eu caio
nesta armadilha. A única preocupação na minha cabeça era ser agressivo, já tinha tentado tanto,
de tantas formas ser visível, notado, respeitado, de forma “fofinha”, “simpática”, “educada”, mas
não adiantou. Eu precisei ser agressivo para ser notado, e agressivo é tudo que eles esperam que
eu seja, um perfeito estereótipo, eu estava focado em ser agressivo, e aí eu entrei no velho dilema
shakespeariano do “ser ou não ser”, e ESSA era a questão.

Ser ou não ser agressivo.

Ser.

Não ser.

Me questionava, mas ao mesmo tempo passava na minha cabeça que era a única forma que eu
tinha de ser notado, e perceber o quão perverso é tudo isso, pois você precisa entrar no
estereótipo para ser notado. Precisei dar um grito violento para existir. Minha maior preocupação
é quebrar essas caixinhas e resgatar de fato o que foi tirado da gente.
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|E o que foi tirado da gente? |

Eu não estou aqui para ser um modelo, bonito, plastificado, embalado numa caixinha elegante,
estou aqui para ser legitimo, legível, estou me expondo, falo de mim, falo de outros iguais a
mim. A melhor forma que eu achei de lutar contra tudo e contra todos foi por meio da palavra,
do estudo e da arte. (Respiro)

Certo dia minha avó, que era da igreja, me disse em relação às brigas da escola:
-Escuta meu filho, tem uma palavra que diz assim: Eu, porém vos digo que não resistais ao
homem mau, mas a qualquer que te bater na face direita, ofereça lhe também a outra…

E eu respondi:

- Mas vó eu não tenho mais faces... Já me bateram tanto, mas tanto, mas tanto que não tenho
mais face… E isso é muito triste... Mas eu não me abati e hoje estou aqui, com as minhas duas
faces prontas, mas não mais para apanhar, mas se necessário for bater, agredir com minhas
palavras e se necessário for, com minha força. Nestes tempos tumultuados em que vivemos não
há espaços para sutilezas.
Então meus amigos, quando vocês tiveram seus filhos, lembre-se que eles podem estar fazendo
alguém sofrer na escola. É bom ensiná-los, criando seus filhos para não serem racistas, porque
estamos criando os nossos para reagir. Estamos criando os nossos filhos para não silenciar mais.
Estou criando os meus para reagir.

Se posicionem.

Se posicionem.

E se posicionem.

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Estudem.
Entendam o que as estruturam provocam e estejam aptos a romper as estruturas. É preciso
destruir para construir… é preciso destruir para construir... É preciso DESTRUIR.
Eu não tenho descanso.
E a partir de agora vocês também não terão.
Vocês não terão.

ONDE ESTÃO OS NEGROS?

MESMO HOMEM ou OUTRO HOMEM - Se eu não posso fechar meus olhos para isso, vocês
também não fecharão, não mais, pois eu estarei aqui para lembrá-los, adverti-los, todos os dias se
for necessário, que vocês precisam tomar uma atitude proativa contra o racismo. Não é possível
que vocês olhem ao redor dos espaços privilegiados que vocês freqüentam e ainda achem normal
que não haja pelos menos metade das pessoas negras freqüentando esses mesmos espaços e que
estejam na mesma posição que vocês. Aqui mesmo, nesse teatro, (luz de serviço/platéia) olhem,
observem, é um lugar de privilegiado. A pergunta que carregarão até o túmulo de vocês toda vez
que entrarem nesses espaços é:

On-de es-tão os ne-gros?!

Onde estão os negros?!

Onde estão?!

Essa pergunta vai ressoar na cabeça de vocês a partir de agora, (sussurra baixinho: onde estão os
negros?) assim como tem ressoado na minha durante esses últimos anos. Eu estou cansado de
carregar esse peso sozinho e vocês terão que carregá-lo comigo. Daqui por diante não queiram
parecer descolados ao falar sobre cotas raciais sem entender o que são e a real extensão das
políticas afirmativas. Não façam sociologia/filosofia/antropologia de apartamento. Chega aqui na
minha quebrada para entender de perto o que passamos. Te quero aqui, dentro dos becos e vielas,
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pulando as pontes de madeira do valão, se esquivando das balas de canhão. Não queiram falar
sobre nós a distância, de modo remoto, de dentro do teu apê cheio de mármore branco e
ambientado com ar condicionado potência máxima. Não me façam passar vergonha ao ter que
desmenti-los para explicar que não existe democracia racial no Brasil. E nem por um segundo
pensem em banalizar a nossa luta, a nossa história individual e coletiva para utilizar isso como
argumento de autoridade ou para deslegitimar as nossas causas, as nossas batalhas diárias. Cada
uma das histórias que sofremos fica gravada na nossa mente com muito mais detalhes do que
gostaríamos de lembrar. Eu sou negro, sempre fui e morrerei sendo, tendo travado as minhas
batalhas mais difíceis internamente e pelas quais vocês não podem sequer sonhar como foram.
Então não diminuam nosso sofrimento. Em todos esses anos de luta por igualdade foi derramado
muito sangue, muito sangue, sangue de verdade. Gente que morreu por liberdade. Gente que
morreu vítima de genocídio, extermínio ou como queiram chamar. Gente que ainda morre nos
dias de hoje por conta do racismo.

(Texto informativo dito velocidade rápida) O jovem Pedro Gonzaga, de 19 anos, morreu em 14
de fevereiro de 2019 no Supermercado Extra, enforcado por um segurança, por conta do
racismo. O doutor Flávio Ferreira Sant´Ana foi morto em 03 de fevereiro de 2004 pela polícia
do Estado de São Paulo por conta do racismo. O trabalhador Robson Silveira da Luz foi preso,
torturado e morto em maio de 1978 pela polícia do Estado de São Paulo por conta do racismo.
A menina Ághata, racismo. Evaldo dos Santos virou peneira, seu corpo negro foi atingido com
80 tiros, adivinha: racismo. Marielle foi assassinada. Assassinada. Cláudia Ferreira foi
arrastada. Amarildo, Pedro, Matheus, Jorge, Maria… George Floyd foi morto com o joelho de
um policial pressionando seu pescoço até a morte mesmo ele gritando que não conseguia //

(Suspensão)

Mesmo ele gritando que não conseguia

(Suspensão)

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Mesmo ele gritando que não conseguia RESPIRAR

// AR //

ele não conseguia RESPIRAR e logo a seguir assistimos a mesma cena desta vez aqui no Brasil
onde a… aquela senhora vivenciou a mesma cena, e eu digo aquela senhora porque a maioria dos
jornais não citou o nome daquela senhora, negligenciaram e diziam apenas "mulher negra", e
uma das coisas mais tristes é quando viramos apenas estatística, pois não pessoalizam nossas
histórias, e por muito pouco aquela senhora não teve sua vida ceifada da mesma forma que o
Floyd e ela gritava a mesma frase que não conseguia

// RESPIRAR…

(Pausa)
(Silêncio)
(Respiração)

Não consigo respirar…

//AR//

(Longa pausa)
(Silêncio)

E logo em seguida assistimos novamente uma cena idêntica a do Floyd, desta vez em Austin. E
depois na Flórida, e depois em Cachoeirinha, e depois em Manaus, São Paulo, Salvador, Porto
Alegre como aconteceu com o Beto dentro do mercado francês racista... Perceba, eu disse a
MESMA cena, e não foi cena de teatro não. Eu gostaria de dizer que a brutalidade fosse apenas
uma cena teatral, que por si só já seria absurda que é a cena de um joelho de um policial branco
na cara de um negro dizendo que não consegue respirar e que em algum momento alguém
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gritaria CORTA e a cena se desfizesse, mas infelizmente a cena é real e acontece praticamente
todas as noites, todos os dias, todas as horas como uma peça de teatro e todos os dias negros têm
sido exterminados por quem deveria protegê-lo. (Ironia) Quem chama nosso discurso de
vitimista, está convidadissimo a experimentar o que é o vitimismo embaixo do joelho de um
policial. Vai ver quem vai? /Quem vai experimentar? /aposto que ninguém. Experimenta nascer
preto, pobre na periferia você vai ver como são diferentes as oportunidades. (Mais ironia) E
existem milhares de outros casos que poderiam ser citados aqui ao longo desses anos de
“abolição da escravatura”. As manchetes dos jornais deveriam estar estampadas com a frase:
“Extra, extra, extra: a abolição foi declarada há mais de 130 anos, mas a sociedade brasileira
ainda não superou as chagas do racismo e pensa que ainda vive no período colonial”.

HOMEM - (Informal) A cada 23 minutos temos um jovem negro assassinado no Brasil. Vocês
precisam lutar contra o racismo tanto ou mais do que nós porque ele também interfere na vida
de vocês, ainda que vocês não percebam. Vocês não terão mais desculpas para se omitir. Vocês
sabem o que acontece, como acontece e onde acontece. Vocês sabem que por vezes os
comentários e atos mais racistas são ditos e feitos fora da nossa presença porque hoje nós nos
fortalecemos cada vez mais e não deixaremos mais as coisas passarem impunes. E quando virem
isso acontecer: sejam firmes e se posicionem! Sejam tão chatos quanto vocês acham que eu
estou sendo. Só assim as coisas vão começar realmente a mudar. Vocês sabem que os seus
amigos brancos abertamente racistas no fundo têm medo? De nos encarar. E no fim, eles se
tornarão tão poucos que definharão sozinhos.

“Ao final, lembraremos não das palavras de nossos inimigos, mas do silêncio de nossos
amigos”.

Nós estamos em pé e atentos. Toda pessoa que usa vitimismo como argumento em discussão
racial é mau caráter para querer negar aquilo que está mais do que comprovado. Tudo o que disse
até aqui não é um ataque, não é uma ressalva, é um lembrete de que nossas vidas estão sendo
ceifadas.

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“Se você ficar neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. Se você não
silencia…

Você é um Bluesman.

(Eco sussurrado da palavra Bluesman toma conta da sala, vozes diferentes falando Bluesman)

DISPOSITIVO BLUESMAN
(Projeção em vídeo apenas com o rosto em grande proporção de uma mulher negra ou
reprodução de voz off)

MULHER - 1903. A primeira vez que um homem branco observou um homem negro. Não como
um animal agressivo ou força braçal desprovida de inteligência. Desta vez, percebe-se o talento,
a criatividade, a música. O mundo branco nunca havia sentido algo como o blues. Um negro, um
violão e um canivete. Nasce na luta pela vida, nasce forte, nasce pungente. Pela real necessidade
de existir. O que é ser Bluesman? (eco sussurrado) É ser o inverso do que os outros pensam. É
ser contracorrente. Ser a própria força, a sua própria raiz. É saber que nunca fomos uma
reprodução automática da imagem submissa que foi criada por eles. Foda-se a imagem que vocês
criaram. Foda-se. Não sou legível, não sou entendível. Sou meu próprio Deus, meu próprio
santo, meu próprio poeta. Me olhe como uma tela preta, de um único pintor. Me olhe como um
Basquiat. Só eu posso fazer minha arte. Só eu posso me descrever. Vocês não têm esse direito.
Não sou obrigado a ser o que vocês esperam. Não sou obrigado. (Fim do Dispositivo)

ESTRANGEIRO

HOMEM - Eu, cabelo crespo, pele negra, calça colorida, moletom e chinelos nos pés, abro a
porta da casa onde moro numa condição muito diferente daquela onde cresci. Toda a minha vida,
vivi em dois cômodos, era quarto, cozinha, banheiro. Quarto, cozinha, banheiro. Lembro das
frestas, frestas é modo de dizer, lembro dos buracos e frestas e a única coisa boa é que eu tinha
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acesso liberado às estrelas todas as noites, exceto quando chovia, porque quando chovia mano o
bicho pegava. Minha mãe dizia para eu ficar dentro do guarda-roupa disputando espaço com os
ratos, pois era o único lugar da casa que não chovia. Hoje, onde eu moro é bem distante das
frestas onde eu via as estrelas. Onde eu moro é um sonho mano. Não que eu more num casarão
chique e o escambau, não é isso. É que é diferente da realidade de onde eu vim. Nunca tive um
quarto só pra mim. Hoje, eu, um negro de favela, de periferia, há dois anos vivo num dos bairros
centrais da cidade. E é justamente aí que eu me sinto um estrangeiro caminhando na minha
própria rua. Na favela, querendo ou não, as pessoas são parecidas comigo, dá para ser mais
invisível… eu sempre pensei que a melhor maneira de viver tranqüilo seria sendo transparente,
passar através das paredes, não ter cor, nem cheiro, que os olhares das pessoas te atravessassem e
vissem as pessoas atrás de você, como se você não estivesse lá. É uma tarefa difícil ser
transparente, sempre foi um sonho antigo ser transparente, um sonho de ser invisível. Quando eu
era moleque, bem pequeno, eu colocava aqueles sacos de pão na cabeça, aqueles sacos de papel e
brincava com minha mãe de ser invisível. Funcionava como se fosse uma mágica. Colocava na
cabeça e pá, sumia, desaparecia. Era brincadeira. Eu estava ali. E minha mãe entrava no jogo e
perguntava: cadê meu filhote? Cadê? Cadê meu pretinho? E eu embaixo daquele pacote me
divertia e fingia em ser invisível. Agora eu não tenho mais esse desejo de ser invisível, pois as
coisas mudaram. Quando eu passo tem muito contraste, pois eu caminho como quem dança
passos largos, o tronco oscilante, a cabeça a acompanhar uma espécie de ritmo interior que
contamina o corpo todo, o blues… ah… o blues…

REDUÇÃO DE DANOS

HOMENS - Estamos em 2021 no sul do Brasil e muitas vezes, eu disse muitas vezes, várias
vezes, muitas, muitas, muitas vezes, eu já fui olhado como ameaça, quando eu caminho de volta

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para casa há senhoras que se assustam, gente que guarda o celular, que atravessa a rua, que não
senta do meu lado no ônibus, essas coisas. Vou sempre ali no mercado comprar as minhas coisas
e uma vez percebi que estava sendo seguido… pensei: hoje eu não vou deixar barato! Cheguei ao
caixa, paguei primeiro e pedi para chamar o gerente. Ele veio, branco, e eu falei: Venho aqui
quase toda a semana, e pela primeira vez percebi um funcionário da segurança me seguindo. Sei
que tu vai dizer que isso é comum, que trabalham pela redução de danos e que ele estava
cumprindo o seu trabalho, que também eu sei que não é todo mundo que é seguido E BLÁ, BLÁ,
BLÁ.... Se quiser me seguir não deixem que eu perceba porra, não deixem eu perceber mano,
porque da próxima vez vou chamar a polícia, porque isso é discriminação. Exijo um pedido de
desculpas. Ele pediu. E então eu falei. Eu não vou deixar de vir aqui, porque moro perto, tenho o
direito de estar aqui e não quero ser importunado fazendo as minhas compras. Se quiser me
perseguir não deixem eu perceber, porque da próxima vez vou chamar a polícia.

|Como se chamar a polícia servisse de alguma coisa. |

Às vezes fico pensando que foi exatamente isso que ocorreu naquele mercado com o Beto.
Sucessivas perseguições. A sombra do onipotente no mercado. Sou sempre acompanhado.
Vigiado. Metralhado com olhares suspeitos e que muitas vezes se transformam em violência. Por
que é que eles só seguem algumas pessoas? Isso é crime. E isso é a minha vida toda na periferia
também. Ou seja, eu sou sempre um potencial, ameaça por ser um negro da favela.

Mas como sabem que sou da favela?

Pelo meu jeito, o meu modo de ser. Aqui, não se vê criança na rua, tem muito carro, é muito
movimentado, tem muita grade. As crianças não interagem entre elas. Não vejo criança jogando
bola, jogando taco, brincando na calçada. Hoje a interação não acontece e se existe é do portão
pra fora. Isso aqui nunca vi. Estranho muito isso, é como se a vida estivesse presa, é como se eu
fosse um passarinho na gaiola, não tem interação com a diferença. As pessoas têm medo. Além
da falta de tempo. As pessoas têm medo. As pessoas só trabalham.

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É… quando chego de madrugada, fico apreensivo. Tenso. É fácil eu ser visto como um não
morador. Tem a ver com a cor, o modo de vestir e o jeito de andar. Tudo em mim parece uma
linguagem estrangeira neste lugar. Sou um estrangeiro e aqui posso me afogar num mar sem
água.

Posso me afogar?

Ou vão me afogar?

As pessoas estão projetadas para me afogar. Eu não sabia nadar, mas aprendi a nadar num mar
sem água.

A vida me ensinou a nadar para eu não me afogar.

// AR//

Não consigo respirar.

As pessoas estão projetadas para me afogar.

Eu virei uma ilhazinha no meio do mar e as últimas ondas estão me fazendo afogar.

PROJETADO PARA ME FERIR

HOMEM - Isso também tem a ver em ser um estrangeiro dentro da sua própria família, dentro do
que você entende enquanto lar. Minha família era metade branca e metade preta. Branca por
parte de minha mãe e preta por parte de meu pai. Logo meu pai veio a falecer e eu tive que ir
morar com a família de minha mãe, onde todo mundo era branco, foi um pulo muito doido e eu
completamente inserido num mundo onde só tinham brancos, num role onde eu comecei a
estudar em escolas brancas, eu passei por dez colégios, cinco públicos e cinco privados, graças a
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bolsas que a família conseguia e comecei a entender que dentro da própria família existia
racismo, saca... e isso é uma parada que eu fui entender só agora e entender que por mais que
uma pessoa não tivesse a intenção de me ferir, ela foi projetada para me ferir, ela foi projetada a
vida toda para me ferir, e ela conseguia, pois me feria muito, pois mesmo me amando do fundo
do coração aquelas pessoas foram projetadas para me ferir. Entende? E a escola também foi dura
e todo esse processo eu acabei que eu me neguei completamente a estar naquele espaço que não
me pertencia, por que eu não era bem visto, por que eu não era bem vindo, daí eu larguei na
sexta série tentando buscar o meu lugar, a minha casa não era o meu lugar, a rua era meu lugar,
com os moleques da rua. A rua me atraia muito mais que a escola. Tem uma música dos
racionais que diz que “toda criança sofre muito na escola”, e eu penso nisso até hoje, pois se
esquecem que toda a criança preta sofre muito mais. Eu acredito que todos nós temos tendências
depressivas. Sendo que é uma coisa que precisa ser combatida, talvez não combatida, mas
compreendida. É sobre a saúde que a gente não tem e precisa achar. Tudo pra mim perpassa o
homem negro. O preto é simbolizado como força, sempre muito forte. E eu não tinha com quem
falar sobre fragilidades. Eu? Logo eu? Frágil? Não... Isso não é pra mim. Se eu falasse de
depressão, poderia ser encarado como fraco. Além do mais isso é visto como problema de
branco. Depressão. Frescura. Eu demorei quase um ano desde o momento em que recebi o
diagnóstico. Eu não tinha coragem de falar sobre esse assunto. Eu simplesmente não tinha
coragem. Eu não tinha força. Eu achava que ia ser ridicularizado. Eu não posso mostrar que sou
fraco. Saca? E chegou um momento que eu percebi que tudo isso estava me destruindo por
dentro. E eu já quis me matar tantas vezes, imagina quantas pessoas não passam por isso.
Homem não chora, foda-se, mas eu to chorando. As expectativas em mim estão me matando.
Foda-se as expectativas. Tentei terapeuta, psicólogo, psiquiatra, um bagulho que eu sempre tentei
ir, mas eu sinto uma falha da psicologia quando se trata de pessoas negras é esquecido que a
gente sofre muito na infância. Independentemente da sua classe social, eu acredito que todos nós
temos tendências depressivas, até mesmo suicidas e isso não é dito, isso não é discutido e é um
problema real que precisa ser discutido, combativo, quer dizer, não combativo, mas entendido,
porque isso te dói, isso te destrói por dentro. Precisamos falar sobre a saúde que a gente não tem
e precisa achar. Precisamos falar para não se afogar e afundar num mar de lama, num mar de
angústias. E isso tem a ver com um estado espiritual, ancestral.
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JESUS NEGRO

HOMEM / MENINO - Percebe que o mundo está condicionado a te ferir mesmo na religião?
Sempre que eu entrava numa igreja eu via santos brancos, o “salvador” branco, barbudo, olhos
azuis, o negro não estava conectado com isso, sempre condicionado a algo ruim. A algo
demoníaco. E isso foi muito ruim para mim. É preciso encarar a ferida do processo de
embranquecimento do Cristo e o fortalecimento que este dá a comportamentos e ações de
intolerância racial e religiosa no Brasil de hoje. Usar a imagem e a mensagem de Jesus para
promover a intolerância e a perseguição religiosa já é um papel que não cabe mais àqueles que se
dizem seguidores de Cristo. Se Jesus voltasse hoje matavam ele de novo com uma bala
autografada, porque essa história de bala perdida não existe, mano, a bala perdida tem alvo e
endereço certo. Então matavam Jesus de novo e chamava de comunista, coxinha e esquerdopata
por pensar demais no povo. Não posso deixar de me perguntar como seria nossa igreja e nossa
sociedade se aceitássemos que Jesus era negro; igual o Jesus da Mangueira, o Jesus do nosso
tempo, o Jesus do funk, do asfalto, do samba, do grafite, do rap, o Jesus que toma dura da
polícia, que mora aqui, justo aqui, do nosso lado. O Jesus da favela. Que fosse idêntico ao Jesus
retratado no Auto da Compadecida. Que ele resista, renasça, que sua luta seja a nossa luta e parte
de nós. O que aconteceria se enfrentássemos a realidade, que não é outra, senão a de um corpo
negro pregado na cruz, abatido, torturado e executado com 1, 2, 3, 80, 111 tiros publicamente por
um regime opressor. Talvez nossa atitude mudasse se compreendêssemos que a injusta prisão,
abuso e execução às quais o Jesus histórico foi submetido têm mais a ver com as nossas histórias,
tem mais a ver com as experiências dos povos originários ou dos refugiados do que com aqueles
que detêm o poder da igreja e que se apropriaram da imagem de Cristo. Pode parecer radical,
mas não paro de pensar sobre o que poderia mudar se fôssemos conscientes de que a pessoa
chamada de Deus pelos cristãos NÃO era branca, mas que o salvador do mundo foi um judeu do
Oriente Médio. Por isso eu afirmo: Jesus é negro e lhe pintaram de branco e olhos azuis. Mas o
espírito santo não tem cor e é transparente como a água cristalina, que alimenta todas as raças.
Exatamente como a água...

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MAR MORTO ou COMO SE AFOGAR NUM MAR SEM ÁGUA

HOMEM JOVEM - Durante muito tempo fiquei me perguntando sobre tudo isso que a gente
vive, todo esse caos aí fora, todas as lacunas que ainda faltam ser preenchidas, e quando penso
em tudo isso a primeira coisa que me vem à cabeça // é água... Sim água... Estranho né, poderia
ter pensado em qualquer coisa, mas a água é uma substância encontrada em grande quantidade
do nosso planeta, entretanto, nem toda essa água disponível pode ser aproveitada pelo homem e
nem todos os homens tem acesso a ela. Ela é desperdiçada, mal aproveitada. E eu consigo criar
uma relação com isso, eu consigo criar uma conexão com isso, de que nós negros, estamos aqui,
tentando, conseguindo, cavando, avançando e retrocedendo, construindo e destruindo rochas,
vivendo e sobrevivendo, somos maioria neste país como a água no planeta, entretanto somos
desvalorizados, renegados, ridicularizados, mortos. A água, limpa, purifica, cura, salva, batiza,
irriga as plantas, mata a sede e mata por afogamento. E tem como se afogar num mar sem água?

// Existe afogamento sem água? //

EXISTE AFOGAMENTO NUM MAR SEM ÁGUA?

Existe? Existe racismo sem racista? Existe? Onde estão os racistas? Eu pergunto isso, pois
sempre quando essa questão surge me parece que ninguém é! A negativa vem de imediato. É
sempre o outro, nunca você, pois as tuas atitudes sempre terão uma justificativa que vai inverter
a lógica e ainda dizer que sou eu que estou errado, que sou eu que estou maximizando a questão
ou então me colocando enquanto vitima social, e... (Exaustão) Estou exausto, estou cansado,
(respiração) mas ainda tenho muito ar, ainda consigo respirar e isso por si só já me torna forte o
suficiente para seguir lutando com todas as minhas forças contra tudo e contra todos que tentam
me calar. Que tentam me sufocar, que tentam, tentam, tentam e não vão conseguir.

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Eu ainda tenho ar.

Inércia. Propriedade geral da matéria. Inércia. Considere um corpo não submetido à ação de
forças ou submetido a um conjunto de forças de resultante nula; nesta condição esse corpo não
sofre variação de velocidade. Inércia. Meu corpo não submetido a nenhuma, a qualquer ação de
forças, meu corpo não submetido a nenhum conjunto de forças, eu disse nenhum conjunto de
forças, sejam elas policiais, sejam elas políticas, eu disse policiais, sociais, religiosas, bélicas,
sejam elas policiais, eu disse policiais. Meu corpo não subalternizado.

(Respiração)

Estou cansado e às vezes esse meu cansaço me coloca pra baixo sabe, tira o meu eixo, e eu fico
um trapo, frágil, acabado, esgotado, parecendo que estou à deriva no mar morto, boiando...
Largado... Dizem que essa região do mar morto é a maior região de depressão do mundo e
infelizmente esse é o lugar que muitos pretos se encontram hoje, a deriva no mar morto, um mar
tão inabitável, que não possui movimento e não consegue se movimentar. Sem reação, sem força,
abatido. Dizem que neste mar a pessoa é capaz de flutuar, que seu corpo fica boiando, pois tem
uma concentração muito grande de sal e isso torna a força do mar inerte. Muitos de nós hoje,
estão inertes, sem forças para lutar, estão abatidos, calados ou até mesmo mortos. Foram
ceifados. E captar isso é dolorido. E fotografar isso é foda. Fotografar o silêncio é tão difícil.
Fotografar o medo é tão difícil. Fotografar a insegurança é tão difícil. Mas é preciso captar e
fotografar esses momentos da vida também. Porque mesmo no mar morto existe vida e onde
existe vida tem resistência pela sua própria existência. Estamos vivos, reagindo e nadando no
mar morto onde há muito tempo nossos corpos apenas boiavam. Estamos nadando. Nadando e
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nos cuidando para não nos afogar. Estamos nos cuidando para não nos afogarem. Estamos
cuidando. E a travessia pelo mar segue. Estamos sempre atravessando um mar. Seja no porão ou
no convés. Estamos sempre atravessando, mas não mais nos afogaremos, atravessando e
chegando nas margens. Sim, estamos chegando nas margens, nas bordas e por ali vamos
ficando... Nas margens dos rios, dos mares e das cidades... Estamos atravessando, chegando e
ficando nas margens... Margem... Marginal, marginalizando. Marginalizado. Sou marginal. Sou
periférico. E isso hoje faz muito sentido pra mim. Quando as pessoas se referem à outra
chamando de marginal, favelado ou periférico dão uma conotação de bandido, criminoso, mas
ser marginal é estar à margem, ser periférico é estar fora do centro, na periferia, e ser favelado é
morar na favela, na comunidade e na verdade é isso que somos. Sou marginal, favelado e
periférico, mas não sou bandido. Não sou ladrão.

ROSA DO MORRO

HOMEM / NETO - Hoje aqui eu falo de mim e de tantos outros. Mas o que quero dizer é que
quando se fala de um homem preto, favelado, há de se considerar muita coisa. Nascemos,
crescemos e quase sempre morremos em meio à violência, seja ela física ou simbólica, é parte do
nosso modo de existência. Nós com certeza já vimos, pegamos ou tivemos armas de fogo, já
matamos, sim, já matamos ou quisemos matar, já quase fomos mortos ou temos primos e amigos
que foram mortos em situações violentas. Nunca vou esquecer que nos tempos de escola
perdemos um colega para a violência por causa de uma bola. Sim, ele e seus amigos jogavam
bola na rua e ela caiu no pátio de um policial que sacou a arma e matou o menino. Simplesmente
ceifou sua vida durante um jogo de futebol entre meninos. E tudo isso fica gravado na nossa
cabeça. Desde a infância temos uma relação muito próxima com a morte. Somos abusados
psicologicamente pela sociedade branca que não entende o que é ser um homem negro e
periférico. Não temos o “privilégio” de refletir sobre nós mesmos, nossos sentimentos,
afetividades e emoções. A sobrevivência é sempre mais urgente! Somos ensinados desde
pequeno a sermos fortes e não choramingar pelos cantos, internalizando isso e vivendo assim
todos os dias de nossas vidas. Não sabemos muito sobre amor, apenas reconhecemos o amor
materno como à expressão mais verdadeira desse sentimento. Não só acreditamos como vemos
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isso em seu dia a dia nas periferias, em suas primeiras relações amorosas. Nós ouvimos,
assistimos e internalizamos sem refletir o que está acontecendo, pois, muitos de nós não temos
nem referências e nem ferramentas para isso. E uma das minhas referencias não é nenhuma
estrela da TV não, minha referencia é mulher forte, de fibra, guerreira, literalmente guerreira,
pois faz guerra todos os dias para criar dignamente seus filhos. A realidade é que a grande
maioria nasce e cresce sem ter a figura de um pai, carrega quando muito apenas o sobrenome.
Minha mãe é uma dessas mulheres, mas minha vó também… Dona Rosa… ah Dona Rosa era
uma mulher forte, evangélica que não admitia que eu baixasse a cabeça para nada. Hoje ela já
não está mais aqui nessa terra, hoje ela não está aqui para ver o que está acontecendo nesse país,
mas quando eu me lembro dela dói aqui dentro, mas ao mesmo tempo eu me alegro e lembro do
bolo de cenoura que ela fazia com aquela cobertura durinha de chocolate. Tantos momentos
juntos, tanta luta, tanto amargor que ela não deixava transparecer, nunca vi a minha vó chorar,
sempre atenta a tudo e a todos. Lembro que ela fazia todos sorrir e por dentro ela estava
chorando muitas vezes. Eu via todo o peso do mundo sobre as costas daquela mulher, mas ela
não se entregava na sua luta diária, fio da navalha, senzalas, cesáreas, cicatrizes, varizes. Prá nós
foda é quem enfrenta a guerra enquanto amamentava e os tanques são os de roupas sujas sem
amaciante. Duro não é... Qual é a tua guerra? Qual é? (Pausa) Até meu jeito é dela e eu sinto
falta até dos defeitos dela, esses dias achei uma carta com a caligrafia dela e o papel ficou todo
molhado com minhas lágrimas. Olha… Eu ouso dizer que vi Deus e ele era uma mulher preta…
(Ator canta a música "Rosa do Morro" de Inquérito)

Pela escura, pé rachado, filho nos braços lata na cabeça


Sobe a ladeira, Dona Rosa, a rosa do morro, a rosa que é preta
Saiba você, que nem tudo são flores, no jardim que ela vive
Tem miséria e tem crime... a polícia oprime!
Mas é de lá que ela veio, é lá que ela vive, é de lá que ela gosta!
Onde as casas são feitas de madeirite... Rosa!

Rosa, rosa, rosa do morro rosa


Rosa, rosa, rosa do morro rosa
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Nos caminhos por onde ela andou, viu rosas bem diferentes dela
Viu rosa branca, rosa vermelha e até rosa amarela
Então ela se perguntava meu Deus por que tanto minha cor incomoda?
Se nem todas as rosas... São cor de rosa!

Rosa, rosa, rosa do morro rosa


Rosa, rosa, rosa do morro rosa

MEMÓRIA LIQÜÍDA / IDENTIDADE

No Ocidente, o passado é como um animal morto. É uma carcaça que fascina as moscas.
Essas moscas eles chamam historiadores. Na minha cultura o passado é vivo. Meu povo se sente
assim em parte porque a morte não nos separa de nossos ancestrais. Isso me faz refletir sobre
meu próprio passado. Sobre minha memória. Sobre minha identidade. Quando hoje, paramos
para pensar e refletir sobre a memória, a primeira coisa que vem à cabeça é a memória do celular
e se ela tem espaço suficiente para guardar mais memórias. Fotos, vídeos, áudios, textos, tudo lá.
Celular é algo que praticamente todos têm. Memória todos de certa forma também tem. O que
muda é a forma como a memória é tratada, como é construída, como é processada, a forma como
ela é compartilhada.
Esses tempos me peguei vendo um álbum de fotografias e percebi que o acervo da minha
infância é praticamente nulo, fotos parcas que foram perdidas no tempo ou sequer existiram.
Minhas primeiras fotos são aquelas 3x4 que tem no documento de identidade, sabe. Aquelas
fotos sem expressão nenhuma, que tu sai com cara de que não tá gostando de nada. Cara de quem
tá incomodado. Geralmente estas fotos são formais, o preto aqui não pode dar aquele sorriso.
Foto para a carteira de identidade. Vocês acham que a foto que está no documento realmente
representa a identidade de vocês?

Pois é...
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E isso diz muita coisa.

Que tipo de pessoa consegue produzir memória, esse grande vácuo, que é desenvolvido
por essa falta de acesso a memória. As minhas lembranças estão guardadas aqui (aponto a
cabeça), e aqui (aponto o peito). As minhas memórias são líquidas como o sangue da cabeça de
um homem que estava esparramado na esquina da minha rua no meio fio do paralelepípedo. Essa
é uma das lembranças que tenho do meu tempo de menino. Essa é uma das minhas memórias.

Percebe?

Percebe como são construídas as memórias?

Lembro que morávamos mais para baixo da rua e como de costume estávamos brincando
no meio da rua, jogando bola com as travas da goleira feitas com tijolos de seis furos, e sempre
que um carro vinha, a partida era paralisada e os tijolos removidos, o carro passava e a partida
recomeçava. De repente escutamos um estampido, pá, e mais um, pá, pá. Largamos a bola e
corremos para nossas casas ou entramos no primeiro portão aberto que encontramos.
Baixada a poeira, retornamos para a rua e antes de todos chegamos à esquina, onde jazia
um corpo no chão. O sangue escorria da cabeça do morto que quando o corpo pendeu
provavelmente bateu na quina do paralelepípedo, mas também escorria das três marcas de bala
que tinha no peito. Essa é uma das memórias que tenho da minha infância.

Percebe?

A morte no asfalto.

A morte disputando espaço com a brincadeira.

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Uma das coisas que me lembro deste episódio é que em poucos segundos juntou uma
aglomeração em volta do corpo, comentando, sussurrando e querendo saber o que de fato tinha
acontecido. Naquela época ninguém tirou fotos, pois não existiam celulares. Percebe a diferença
do registro da memória? Se esse mesmo fato acontecesse hoje, teríamos vários registros sobre o
mesmo fato, a imagem do corpo crivado de balas estaria passeando por vários celulares, várias
timelines e rapidamente a notícia se espalharia no grupo de WhatsApp dos vizinhos. Os
assassinatos em via pública continuam acontecendo, cada vez mais frequentes, principalmente de
corpos negros. O que mudou é o registro.

Percebe a diferença?

Percebe?

Uma história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta como coisa
qualquer, gaveta apenas de cemitério para guardar o corpo do morto. E memória de celular é
limitada, esgota e se perde. Por isso precisamos resgatar nossa memória e afastar as moscas que
teimam em sobrevoar nossas carcaças.

EU FIZ NADA – PROTOCOLO DE MORTE

Mestre só usa roupas brancas. Quando não está jogando capoeira, o chapéu na cabeça – que
deixa à mostra longos dreadlocks – é praticamente sua marca registrada. Se for necessário
identificá-lo por outra característica marcante basta encarar seus olhos verde-acinzentados. Certo
dia ele estava com o filho de cinco anos no colo, na calçada da comunidade onde mora, quando
cinco policiais de uma viatura o abordaram. Ele não sabia, mas a diligência, que já havia visto
passar na rua, estava à procura de um suspeito por roubo. O suposto autor do crime estaria em
roupas escuras de motoqueiro, com cabelo curto e seria jovem. Eu disse que o suspeito estaria
usando roupas escuras com cabelo curto e jovem. Aos 45 anos, as mechas grisalhas na barba ou
cabelo denunciam a maturidade do Mestre. A única possível semelhança com o suspeito era o

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fato de ser negro. E foi o bastante para que a Polícia Militar valesse de seus protocolos de morte
contra o capoeirista. Revólver engatilhado, golpe mata-leão, a ida a um hospital para receber
sedação e à delegacia para ser fichado foram os procedimentos destinados ao Mestre pelos
agentes do Estado. Proteger o filho teria sido sua desobediência e desacato. “Fico imaginando o
meu povo quando não tinha ninguém para dar apoio. E quem não pode fazer isso? É essa
situação do nosso país, né? Nunca mudou nem vai mudar… E está piorando”, disse ao sair do
DP, exausto, eu disse exausto e com a voz falha, depois de sofrer por quatro horas diferentes
manifestações de racismo institucional. A chegada da polícia na porta da comunidade não foi
diferente de outras vezes; com a ordem típica, aos berros, do “mão na cabeça”. Mestre não se
espantou. “São 520 anos de perseguição ao povo negro. Ninguém seria alvo de um revólver
engatilhado em nenhum outro lugar da cidade. “Mas aqui é diferente; é o único local de negros
na região.” Dessa vez, porém, Mestre estava com seu filho. “Meu menino brincava na calçada e
veio correndo pro meu colo, com medo”, explica. “Como eu ia colocar mão para o alto com ele
no braço?”E ainda tinha arma apontada para os dois. “É muito fácil o poder se aproveitar de
circunstâncias para atacar lideranças negras. É muito fácil saber do meu papel naquela
comunidade. Enxergo uma perseguição a mim e ao que eu represento. A capoeira atinge a
todos, de maneira consciente e inconsciente. “Muda o sistema.” “Vi o revólver na minha
direção e, por conseqüência, diante do rostinho do meu menino! Foi por isso que eu avisei aos
policiais, de maneira muito tranqüila, que ia colocar a criança pra dentro da vila.” Não deu
tempo de poupar o filho do desrespeito. Ao virar as costas, o capoeirista foi pego pelo mata-leão
do policial. “Teve amigo capoeirista que depois me perguntou por que não me defendi. Sabe por
quê? Eles queriam que eu reagisse. A nossa luta não é de hoje e sei que a saída é pela voz, é
gritar, falar, chamar a comunidade, os jornalistas. E educar nossas crianças.” Todo líder negro
é morto, cê consegue entender?

ALVO = PRETO
ALVA = BRANCO
ALVO = PRETO
ALVA = BRANCO
ALVO = PRETO
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ALVA = BRANCO
ALVO = PRETO
ALVA = BRANCO

A cena foi vista por várias pessoas. “O Mestre caiu no chão, na escadinha da viela, e ainda
protegeu a criança com o próprio corpo”. “Queriam que eu reagisse”. Mestre conta que sentiu
tontura, o princípio de um desmaio e rapidamente as algemas foram apertadas em seu pulso.
“Puxaram forte, mesmo, prendendo a circulação, pra machucar. E aí me lembro de pedir por
socorro e só querer saber do meu menino.” A criança foi amparada por moradores e pela mãe.
Na confusão, o casaco do capoeirista foi rasgado e ele perdeu os sapatos. Fazia menos de 10
graus na cidade naquela noite. Sua calça – branca, vale lembrar – ficou sem o botão que a
prendia na cintura. Ao ser levado para o camburão, o capoeirista passou pelo constrangimento de
ficar de cuecas na rua. Foi também nessas condições que chegou ao hospital público. Frio, pés
descalços, calça branca imunda sem o botão que a prendia na cintura: enquanto estava algemado,
o professor, eu disse o professor, entendam: o professor passou pelo constrangimento de ficar de
cuecas no hospital e na delegacia. Ele achou que iriam cuidar de seus pulsos na emergência. Mas
Mestre não foi atendido por clínico geral nenhum. Os policiais o deixaram na viatura, ainda com
a algema apertada, e uma psiquiatra apareceu ali, pronta para medicá-lo. “Eu gritei que não
queria tomar nada, era a única coisa que eu poderia fazer.” E, de fato, só por causa de seus gritos
os alunos e amigos, que haviam seguido a viatura da polícia, conseguiram testemunhar o
momento em que o capoeirista manifestou sua recusa em receber sedativos. “Eles mentiram,
disseram que ele estava em atendimento quando nem tinham tirado o mestre do camburão. Todo
camburão teu um pouco de navio negreiro justamente por evocar imagens como esta”. Não é
uma mentira menor, é uma prática de rotina, de ocultação de vítimas. Sem curativos ou qualquer
intervenção médica, o professor foi obrigado a assinar um papel afirmando que se recusou a
receber socorro. E assim, com as mãos presas, agora inchadas pelas algemas, calças pendentes,
cuecas à mostra, foi levado para ser ouvido pelo Delegado.

“Eu fiz nada”


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Repetia. “Eu fiz nada” É preciso dar nome ao que ocorreu: racismo. Diferentes manifestações de
racismo institucional foram praticadas pela polícia e até mesmo pelo hospital público. O que ele
viveu são exemplos concretos de práticas escravistas que permanecem no âmago do Estado
brasileiro. Apenas o fato de ser negro o incriminou? Para começar, a escravidão nunca acabou e
nem temos democracia. É a partir disso que temos que analisar todo o ocorrido. A polícia chega
desse jeito, e de maneira natural, porque somos negros e isso precisa ser levado a sério de uma
vez. Ao evocar esse episódio saúdo Mestre Moa e Mestre Nenê que foram executados pela
polícia justamente por serem mestres. Justamente por serem pretos.
Por isso, nestes tempos tumultuados em que vivemos não há espaço para sutilezas. Nosso choro
verte lágrimas amargas que transbordam a imensidão do mar e às vezes eu me sinto uma
ilhazinha, pequenina no meio do oceano, mas não podemos nos deixar afogar mesmo estando
neste pequeno amontoado de terra. Professores, mestres, líderes comunitários são referencias
para nós, são griôs, estão à frente de muitos, a serviço de muitos, apenas com seu peito e raça
como escudo. Estão na linha de frente. São primeiro. Imagina sendo o primeiro em alguma coisa,
a primeira pessoa a alcançar o topo de uma grande montanha, o primeiro a cruzar um oceano
num barco a vela, o primeiro atleta a levantar centenas e centenas quilos numa disputa de
halterofilismo, agora imagina sendo o primeiro numa disputa na qual você não deveria estar e
uma competição na qual você não é nem cogitado num território no qual a sua disposição e
paixão em fazer parte é tratada com chacota, com risadas. O dedo, desde pequeno geral te aponta
o dedo, desde pequeno eles querem que a gente seja mais humilde, baixe a cabeça e não sonhe
alto. No olhar da madame eu consigo sentir o medo, cê cresce achando que cê é pior que eles,
irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo. Ladrão... Então peguemos de volta o que
nos foi tirado. Mano ou você faz isso ou seria em vão o que nossos ancestrais teriam sangrado.
De onde eu vim quase todos dependem de mim. Todos temendo o meu não, todos esperam o
meu sim. Do alto do morro rezam pela minha vida, do alto do prédio pelo meu fim. Mas mesmo
estando no meio do oceano, numa pequena ilha, não se deixe afogar, não se permita afogar.
Mergulhe. Respire. Nade. Lágrimas são só gotas, meu corpo é enchente. Eu sou uma ilhazinha
no meio do mar e as ondas não vão me afogar.

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ANEXO II – COMPROVANTE DE VÍNCULO DOCENTE

ATESTADO

Eu, Cândida Santi Bazanella, RG 1065569137, proprietária da Escola de Teatro


Espaço do Ator, Mei CNPJ 20.805.173-0001/94, declaro que Diego Ferreira, RG
5070026074, é professor de Teatro da escola desde 2021, no Curso de Formação de
Atores.

Porto Alegre, 15 de Outubro de 2023

_
Cândida Santi Bazanella

Diretora Espaço do Ator

CNPJ 20.805.173/0001-94

DRT 6044

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ANEXO III - Autodeclaração de pertencimento à Etnia Negra.
Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo

SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco

AUTODECLARAÇÃO DE COR/RAÇA

FOTO 3X4
Eu, Diego da Costa Ferreira, abaixo assinado, de nacionalidade Brasileira , nascido(a) em
(Atual e
Colorida)
15/11/1981, no munícipio de Porto Alegre, estado Rio Grande do Sul, filho(a) de Paulo Ricardo da

Silva Ferreira e de Lindaura Silva da Costa, estado civil Divorciado, residente e domiciliado (a Av.

dos Cubanos nº 270 apto 12 CEP 91530 - 040 , portador(a) da cédula de identidade 5070026074,

expedida em 09/06/2022, órgão expedidor SSP RS, CPF nº 985170660-49 declaro, sob as penas

da lei que sou (X ) preto ( ) pardo e socialmente reconhecido como tal.

Os seguintes motivos justificam minha autodeclaração:

Filho de pais negros.


Pele negra escura.

Estou ciente e concordo com as regras do Edital Prêmio Solano Trindade da SP Escola de Teatro –

Centro de Formação das Artes do Palco, declaro saber que em caso de falsidade ideológica, ficarei

sujeito (a) às sanções prescritas no Código Penal e às demais cominações legais aplicáveis, como

à desclassificação do processo seletivo.

Porto Alegre, 18 de Outubro de 2023

_______________________________________________

Assinatura do(a) declarante


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COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO

A Comissão de Heteroidentificação cumpre a determinação de prever e detalhar os métodos de


verificação da veracidade da autodeclaração de pretos, pardos. Dentre diversas reivindicações feitas
pelos movimentos sociais negros sempre foi recorrente o uso da autodeclaração como forma de
inscrição em políticas públicas beneficiárias, porém deixavam explicito que não havia contradição
alguma na combinação e/ou complementação da autodeclaração com outros procedimentos.
Diversos intelectuais que se debruçaram no assunto acompanharam o posicionamento dos
movimentos sociais, posicionamento esse que acabou consignado no voto do Ministro Lewandowsk
na ADPF nº. 186/2012, na qual assim se expressou: “entendo que é legítima a utilização, além da
autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação para fins de concorrência pelas
vagas reservadas, para combater condutas fraudulentas e garantir que os objetivos da política de
cotas sejam efetivamente alcançados”.

Cientes da constituição dessa banca, baseando-se no Estatuto da Igualdade Racial, Lei


12.288/2010, que foi o responsável por inaugurar no plano legislativo brasileiro a política de
igualdade racial, por meio da qual se buscou, através de diversas ações afirmativas, proporcionar
tratamento materialmente isonômico às diversas descendências étnicas, e na Portaria Normativa nº
4/2018 que Regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração
dos candidatos negros em concursos públicos, é que o presente edital resolveu constituir uma
banca especialmente designada para constatar a condição de candidato negro em nossa
premiação.

A Comissão ficará responsável por examinar aspectos como: motivos da declaração preenchido
pelo candidato; autodeclaração; fenótipo a partir da fotografia enviada; informações outras obtidas
mediante a necessidade de uma entrevista. A avaliação terá o fenótipo negro como base para
análise e validação, excluídas as considerações sobre a ascendência. Entende-se por fenótipo o
conjunto de características físicas do indivíduo, predominantemente a cor da pele, a textura do
cabelo e os aspectos faciais que, combinados ou não, permitirão validar ou invalidar a
autodeclaração. Somente a comissão terá competência deliberativa, para deferimento ou
indeferimento da autodeclaração de candidatos (as).

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Em caso de recursos cabe ao candidato comprovar que pertence ao grupo de pretos, pardos, de
acordo com os critérios estabelecidos em legislação e normativos nacionais. Ou seja, para que esse
registro formal de adesão, se transforme em direito de concorrer ao prêmio, é preciso que a
autodeclaração do candidato seja confirmada mediante procedimento de heteroidentificação, isto é,
seja validada por comissão criada especificamente para este fim.

Farão parte dessa comissão 02 (dois) profissionais negros convidados (as) e um funcionário da
Adaap, sendo que o principal elemento para a escolha desses profissionais está vinculado ao
motivo deles já terem uma formação prévia sobre a temática da promoção da igualdade racial e do
enfrentamento ao racismo. Será considerado na composição dessa banca as experiências diversas
que cada um pode trazer, já que é de suma importância considerar o caráter contextual no qual a
identidade de raça/cor se forma para o indivíduo e como é lida pelos demais. Portanto o que se
espera com essa comissão é reconhecer complexidade que constitui a sociedade brasileira, trata-se
de compreender que a formação da identidade racial é relacional; não depende apenas de uma
percepção individual sobre si, mas da confirmação pelo grupo ao qual se declara fazer parte e pelo
outro. Porém como se trata de um processo que visa classificação, a fenotipia, a despeito de ser
algo contextual, é a única métrica possível, pois opera no real. Os traços fenotípicos que induzem à
discriminação e apreensão dos valores raciais construídos na sociedade brasileira.

Parecer Motivado

A Comissão de aferição de autodeclaração, conforme explicitado neste edital, considerou para


fins de premiação, principalmente as características fenotípicas do/ candidato/a (conjunto de
características físicas do indivíduo, predominantemente a cor da pele, a textura do cabelo e os
aspectos faciais)

As características fenotípicas confirmam a auto As características fenotípicas não confirmam a


declaração ( ) auto declaração ( )

Data: ___/____/____

__________________________________________
Presidente da Comissão

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ANEXO IV: CÓPIA COLORIDA DO DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO

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