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TRABALHO FINAL - ANTROPOLOGIA

Alunos: Esdras Vinicius da Silva e Guilherme Sales Verdião Gomes

Fazer uma análise sobre minha vivência é bem desafiador... Pois todos os pontos da
minha vida foram, de certo modo, um desafio pessoal e ligado com minha negritute. Ao
assistir o documentário do Emicida (AmarElo), me senti mais conectado com meus
sentimentos e com minhas raízes pretas. A vida é sofrida, mas não vou chorar! Fazer o
que? Mas durante minhas aulas com o maravilhoso (por falta de palavra melhor) do
Professor Francisco eu tive a chance de ver além do que eu jamais tinha visto até então!
Foi maravilhoso ver tudo aquilo. Mas sem mais delongas, vamos ao que interessa... Vou
lhe contar uma história real: A MINHA HISTÓRIA!

Minhas raízes parentais começam com a mistura de duas pessoas de cidades diferentes,
mas de realidades parecidas. Minha mãe e meu pai vieram de famílias negras humildes
da periferia de suas respectivas cidades. Meu pai conseguiu minha casa, ao qual resido
hoje, no ano de 1978, invadindo um terreno enorme que era de propriedade da Marinha
do Brasil, próximo ao bairro do Ibura. O direito à moradia não é pra todos como fala a
linda constituição. Alguns precisam fazer o que meu pai fez, me levando de volta ao
documentário do Emicida quando em determinada parte ele aborda o problema da
“Favelização” e afastamento do homem negro dos centros financeiros e da sua
marginalização.

Minha mãe veio de uma pequena cidade na Zona da Mata de Pernambuco, que fica às
margens da PE-087. Zona Rural, com poucos acessos a serviços básicos, mesmo com
tudo isso ela conseguiu concluir a escola e veio tentar a sorte na capital pernambucana.
Enfim, após meu nascimento, eu não tinha noção do que era ser negro. Como assim? Eu
não conseguia identificar nada que me formasse como um homem pobre, negro e
vulnerável socialmente falando. É difícil! Desde pequeno eu sou bem emotivo e chorão!
Isso me rendeu muito preconceito, pois homens não podem demonstrar fraqueza de
modo algum! Não lhe faz homem... Um menino de rosa! Sempre tentei esconder isso de
todo mundo, mas nunca consegui, pois as emoções são como um rio fluente que
atravessa várias terras.

A escola era um desafio que eu consegui passar não sei como... Pois o bullying era meu
maior inimigo. Pior mesmo era não poder contar com a ajuda dos meus pais, não por
falta de interesse deles, mas de tempo! Ambos trabalhavam muito e mal tinham tempo
comigo. Pulava de casa em casa e conhecia mais as pessoas da rua do que meus
próprios pais. Chega a ser triste como eu ainda não os conheço bem...doido demais!

A dificuldade maior da pobreza, além da falta de recursos, é a falta de afeto que a


mesma pode lhe causar. Já vi e ainda vejo muito negão inteligente, capaz de ocupar um
cargo bom e tal, talvez em uma multinacional, se perdendo em peso na minha área
(Zona Oeste Do Recife). Em pensar que eu poderia ser mais um... Emicida deixa claro
no início do seu documentário: “Exu matou um pássaro hoje com uma pedra que ele
jogou ontem”, e comigo não foi diferente.
Tendo em vista que a maior parte da minha infância se deu nas ruas, becos e vielas,
correndo atrás de bola e pipa e as vezes lidando com a fome, eu tinha mais que motivos
para entrar no caminho onde meus irmãos de cor não conseguiram voltar, mas eu joguei
a minha pedra ontem, a do estudo, e hoje matei o pássaro ao atingir o sonho da
universidade. Mas esse caminho foi bem difícil!!

Antes da Universidade, nas escolas às quais fui aluno, passei por muita dificuldade!
Socializar nunca foi minha onda, levando ao fato de que eu sofro de complexo de
inferioridade. Eu costumo dizer que o homem negro em geral tem um certo medo de
socializar, com medo do fantasma do racismo que roda sua vida. Comigo não foi
diferente! Mas eu tinha amigos. Meu melhor amigo desde o fundamental I até o final do
Fundamental II se chamava Ramon. Citar ele é apenas importante, pois trará um bum de
ideias pra mim. Ramon morreu faz 3 anos, morto pelo próprio pai durante a festa de
natal de 2019.

Citar Ramon neste texto é também citar Gabriel, morto por ser Gay! Como o leitor pode
deduzir, Ramon também era gay... Quando eu o conheci, já sabia de sua orientação
sexual e o aceitava, pois era um grande pensador que sempre me deu conselhos
admiráveis! Ramon também me defendia. Quando criança, eu não sabia me defender
dos valentões que me batiam sempre que podiam, sem dó nem piedade, até que Ramon
bateu em dois deles ao mesmo tempo e me estendeu a mão!

Nossas aventuras juntos são memoráveis! Era sinuca, jogo de bola, vídeo-games e muito
mais! Como dois irmãos de mães diferentes. Ramon tinha um sonho de ser perfomistas
drag Queen e eu o apoiava pois é isso que amigos fazem! Ele se montava todas as vezes
que podia. Seus pais, não sabiam e nem desconfiavam. Ramon era negro, forte e alto,
passava uma visão de homem que poucos garotos da nossa idade tinham na época. Para
se montar para nossas aventuras fora do bairro, ele e eu íamos na casa da Irmã dele que
é lesbica e sabia da “vida secreta” dele e apoiava. Riamos com ela o tempo inteiro... Ela
também morreu!... Do nada isso começou a ficar triste,né? Mas quem disse que a vida é
fácil?

Ramon me ajudava também em questões acadêmicas! Na escola, tinha dificuldade na


matemática, mas ele a dominava como um doutor e me transmitiu conhecimento. Como
era bom ter ele como amigo... Mas a violência o levou de uma forma tão... CRUEL! Em
25 de Dezembro de 2019, Ramon me convida para uma festa de natal que iria ocorrer na
casa de seus pais. Tudo ia bem, até o pai dele, de uma forma que até hoje eu não sei,
descobriu que seu filho era gay e drag Queen... Ele foi questionado e embora tenha
negado, confessou pois queria ser livre. A essa altura, pareceu que tudo tinha acabado
bem, até o pai dele voltar com um revólver carregado e disparar 3xs contra o corpo de
Ramon... Eu vi meu amigo sangrar até morrer! E eu não pude fazer nada para evitar
aquela morte tão horrível para um ser humano tão bom.

Lembra como Galo e Porco mataram o Gabriel com um pretexto de que os 3 tiveram
relações sexuais? Isso não gerou revolta? Pois com Ramon não! Teve um colega da
escola onde nós estudávamos que disse que ele merecia morrer pois “Ser gay é pecado”.
Ceguei de raiva! Bati naquele infeliz com toda minha força e isso me gerou uma
suspensão. Ao chegar em casa, minha mãe me contou uma coisa que até hoje não
consigo esquecer
“Sei que você sente a falta do seu amigo e que ficou com raiva após aquela fala nojenta,
mas você como homem negro, deve ser melhor que esses preconceituosos!”

Isso me marcou e me molda até hoje! Com os ensinamentos do meu velho amigo, pude
adquirir força e atitude para adentrar na universidade! Ramon me disse uma coisa que
guardo no meu coração com bastante carinho e alegria: “Bicha boa é bicha inteligente!
E lugar de Bicha é na Universidade, ouviu?”

Obrigado, velho amigo...

Assim como Hurston em Como eu me sinto em uma pessoa de cor, a dificuldade de


convivência em sociedade para o negro é extremamente complexa, pois há uma
sociedade extremamente racista e opressora. Para Vinícius isso não é diferente pois, as
vivências que ele presenciou em sua vida refletem em como as pessoas não lidam com
pessoas negras. No caso do Ramon, nem mesmo o seu pai soube como suportar com o
seu próprio filho. São histórias como essas que nos fazem refletir em como estamos
lidando com o público negro. Hurston ainda afirma que ser negro não é simplesmente
uma questão de cor de pele, mas também é uma questão de cultura, história e
experiência compartilhada. As histórias de Vinícius e Ramon, por exemplo, retratam
exatamente o pensamento da autora das vivências compartilhadas, de como Ramon
compartilhou com seu amigo acerca do seu sonho de ser Drag Queen com o apoio de
Vinícius, das memórias da época de escola, das brincadeiras etc. Tudo isso traz, de certa
forma, a formação cultural e identitária dos dois baseado nas vivências deles. No caso
de Vinícius, essa formação ficou ainda mais complexa, porque, depois de perder seu
amigo, os conselhos e memórias que ele carrega fomentam ainda mais o seu modo de
ser e que ele leva consigo para alcançar os seus objetivos e alcançar a Universidade.

Trazendo um pouco para Lélia Gonzalez em Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, a


cultura brasileira é marcada pela presença de elementos racistas que se expressam de
diversas formas na sociedade, desde a exclusão dos negros do acesso aos direitos e
oportunidades, até a construção de uma ideologia de branqueamento e de valorização do
padrão de beleza eurocêntrico. O tópico de exclusão, no qual a autora cita, infelizmente
talvez esteja presente na formação de Vinícius em sua vida acadêmica. Por mais que o
ambiente que ele frequente traga uma carga acolhedora e simpática, o racismo está em
todo o lugar, até nos lugares que ele possa menos esperar. A autora também destaca a
importância da luta contra o racismo como forma de opressão, que se reforça
mutuamente na sociedade brasileira. Nesse sentido, ela enfatiza a necessidade de se
construir uma perspectiva crítica e antirracista, que leve em consideração as
experiências e as vozes dos grupos historicamente marginalizados. Por outro lado, é
preciso que, no âmbito acadêmico, as pessoas ao redor reforcem a luta contra o racismo
e a exclusão das pessoas negras de ocuparem esses espaços. É preciso que pessoas como
Vinícius, sejam ouvidas e usadas de exemplo para a manutenção de um ambiente
inclusivo, ameno e que saiba lidar com eventos que retratam o racismo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HURSTON, Zora N. Como eu me sinto uma pessoa de cor. Ayé Revista de


Antropologia, 2019, pp.45-53.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais


Hoje, Anpocs, 1984, pp. 223-244.

EFREM, Roberto. Os Meninos de Rosa: sobre vítimas e algozes, crime e violência.


Cadernos Pagu [online]. 2017, n. 51

AMARELO - É tudo pra ontem. Direção: Fred Ouro Preto. Produção: Netflix, com
parceria do Laboratório Fantasma. São Paulo: Teatro Municipal. 2019

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