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Sobre afeto e memória

por Gabriel Babolim

Noto que muitos artistas contemporâneos ao meu redor trabalham com os aspectos do
afeto e da memória. Compreendo a importância dessa análise, pois abarcam muito das
narrativas que circundam as estruturações das sociedades - em toda a dualidade, ambos
aspectos positivos e negativos que derivam do maniqueísmo instaurado - que vieram a
compor tudo que é visto/sentido e, consequentemente, interpretado. Como dizem as línguas
populares: Freud explica, e de fato explica, as experiências que compõem a construção
histórica individual das pessoas nas primeiras interações com o mundo mantém-se por toda
a caminhada do indivíduo nessa vida. As interações infantis ressoam de forma evidente ou
oculta, tal a importância de estimular o convívio social e relações saudáveis no meio em que
habitam, aí forma-se cultura.

Quando remonto minhas primeiras experiências com o mundo vejo um dualismo: não nego
que fui um ser social, tive minhas relações com as crianças: vizinhos e colegas de escola,
entretanto também fui um infante muito solitário: uma mãe que provia o sustento de casa,
disponível somente entre às 19 e às 23 horas - horário que impreterivelmente deveria estar
pronto para o sono - e um pai ausente, não fisicamente, pois sempre retornava ao sair para
comprar seus cigarros, mas nunca recebi afeto de meu progenitor. “Não vejo a hora de você
crescer pra sair na mão contigo” era o que o eu-infante mais ouvia. Tinha receio de crescer,
pois meu pai era grande e possuía tatuagens pelo corpo, me passava uma força e uma
imponência que sabia que eu não alcançaria. Cresci na companhia de babás e empregadas
domésticas que me preparavam macarrão com salsicha e miojo com arroz, que eu adorava.
Adorava-as também, lembro-me de um dia me esconder debaixo da cama de minha irmã
por horas pela simples razão de querer sumir, e quando Elicleide me descobriu, enfiou-se ali
comigo e passamos o restante da tarde sob o estrado, conversando sobre qualquer coisa
até que minha mãe chegasse de seu expediente. Coitada levou bronca nesse dia por não
terminar os afazeres da casa em razão da atenção que ofereceu à mim.

Minha irmã não era também muito presente, estudava no período da manhã, chegando em
casa em torno de meio-dia, horário que eu, quando já possuía idade suficiente, escovava os
dentes e era obrigado a enfiar a camiseta por dentro da bermuda para ir à escola, caminho
que percorria sozinho desde os meu sete anos. Retornava à noite, e não tínhamos muito
tempo de interação. Ela tinha um Super Nintendo e por muito tempo dividimos quarto, tv de
tubo e o console, algumas poucas fitas acumulavam poeira na estante pois só queria saber
de jogar Super Mario World o qual zerei inúmeras vezes e que ainda sou capaz de jogar de
olhos fechados. Minha irmã é quatro anos mais velha que eu, o que hoje não é tanto espaço
de tempo assim, mas quando eu tinha onze e era uma criança, ela tinha quinze e já quase
adulta, namorava um rapaz maior de idade e eu felizmente fui abraçado por esse homem,
que, talvez por uma necessidade de agradar minha família, também me agradava à todo
instante. Nessa época estávamos completamente imersos na velocidade-luz dos avanços
tecnológicos, internet ainda não existia em nossa casa e o computador servia somente para
organização de planilhas e eu me divertia no software de CD-ROM para serviço de caixa
operacional de mercado - que provavelmente havia vindo de brinde em alguma revista de
banca de jornal. Já estávamos em nosso terceiro console, o segundo operado por CDs, o
Playstation One que possuímos já estava obsoleto e em meu aniversário de doze anos bati
pé para que ganhasse o Playstation dois. Meus pais arrecadaram dinheiro suficiente e eu
integrei uma parte do valor com os cem reais que costumava ganhar de presente de natal
ou aniversário de meu avô materno. Gastamos oitocentos reais no aparelho e nunca fui tão
feliz em minha vida, a máquina rodava os jogos da última geração da época mas também
funcionavam os meus favoritos da geração anterior, que ainda não haviam sido destruídos
pelo mau uso ou pelas tentativas de limpeza com pasta de dente. Esse namorado de minha
irmã era extremamente gentil comigo, me presenteava com inúmeros games e sempre me
apresentava seus favoritos, adorávamos os jogos de corrida e ele me levava em seu carro
popular turbinado com os maiores hits da “black music” estourando os graves das caixas de
som, era radical. A partir daí fui imerso no mundo mágico dos gráficos “perfeitos” e dos
pixels multicoloridos: empunhava espadas em formas de chave, armas de fogo gigantescas
que disparavam granadas, kunais e shurikens, vivia perdido em cutscenes e despendia
horas à fio resolvendo side-quests sabendo que não agregariam nada na história do jogo,
mas na minha agregavam, e muito.

Aos poucos fui perdendo meus amigos - eles não morreram, apenas mudaram-se de
residência ou de escola - quando minha sexualidade começou a ficar mais evidente passei
a sofrer constantes discriminações, dentro e fora de casa e desenvolvi uma tendência ao
isolamento. Mas entre as quatro paredes que cercavam eu e meu videogame eu era tudo o
que eu quisesse ser, o maior duelista de baralhos de monstros, o mais rápido velocista das
ruas de Detroit, o lutador asiático atirador de fogo, o paladino que enfrentava as trevas em
busca de seu melhor amigo, a fotógrafa de espíritos, o pai que busca a filha perdida em
uma cidade imaginária, a policial que foge do apocalipse zumbi, o ninja, o assassino e o
salvador do mundo - fui todos eles simultaneamente por anos a fio. Nesses mundos abria e
fechava portas com minha espada, iluminava os caminhos com minha lanterna de bateria
limitada e investigava cavernas: essas são as memórias mais latentes de minha vida, que
não mais existia na matéria, somente na Ilha do Destino, nos Montes Verdes, em
Casinópolis, nas Ruínas da Babilônia, na Cidade de Racoon ou na Colina Silenciosa:
complexos de pixels maravilhosamente saturados que como diziam meus pais,
aprisionavam minha alma. E por ali fiquei por muitos anos.

Quando penso em afeto, penso no que aprendi com Sora, Riku e Kairi, em como sofri junto
à Cloud com a morte de Aerith, no desespero de James Sunderland procurando sua
esposa. Resiliência? Aprendi com Jill Valentine. Valentia? Lara Croft. Essas são as pessoas
que compuseram a personalidade que tenho hoje em dia, e honestamente, sinto muito
orgulho disso. Não tenho vergonha alguma em dizer que me moldei aos moldes de
personagens animados a partir de T-poses. Meu pai costumava dizer que a vida não é um
videogame, que se fizer na merda na vida real você não tem outra chance ou mais
dezessete vidas ou checkpoint para recomeçar, mas hoje reconheço que ele estava errado.
Eu sempre posso recomeçar.

Essa é uma homenagem a tudo que aprendi por meu próprio interesse em minha insofrível
solidão infantil. Não acho que Freud seria capaz de discorrer sobre isso.

redigido em 30/03/2024

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