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Juventude Kamikaze

Tinho Karpss

Prefácio................................................................................................................................

A carta.................................................................................................................................

Dias
úteis..............................................................................................................................

Ele é o meu
avô....................................................................................................................

Para onde a gente


vai............................................................................................................
A carta...

Eu era jovem, tinha nome feio e muita insegurança pra fazer meu corre. Além
disso, eu tinha raiva do mundo, achava que o futuro me devia alguma coisa, então
encarava o meu presente como se o Fim já tivesse justificado todos os meus erros. Nada
disso era real, mas o “depois” nunca voltou no tempo ou chegou antes da hora pra me
dizer que eu tava viajando. Tive uma juventude ingrata, privilegiada, ansiosa e cheia de
auto sabotagem, que eu justificava dizendo que no meu mapa astral só tinha ar, nada de
terra. Vivia no mundo da lua ou dentro do meu próprio umbigo, dependendo da minha
mamãe como se o cordão umbilical jamais tivesse arrebentado. Além disso, o centro do
meu universo era eu mesmo junto com meus obstáculos, que eram quase sempre o meu
foco. A minha mira era sempre o próprio pé e até as minhas quedas eu procrastinava.
Fazia terapia e não falava dos meus problemas, falava do mundo lá fora e das coisas
injustificáveis que acontecem na política, dentro dos sindicatos (que nunca foi o meu
lugar de fala), reclamava, reclamava.

Apesar de todos os meus defeitos, tinha plena consciência que havia certo prazer
na minha companhia, eu falava bonito e tinha boa escuta, sorria nos momentos certos e
sabia valorizar uma história bem contada, mesmo nas vezes em que já sabia, de
antemão, que era mentira ou um ponto de vista apassionado. A verdade pura é que o
tempo passa e a gente perde tudo: a juventude, a boa escuta e até a pena de si mesmo.
No bom e no mal sentido. No dia que eu me matei, morri uma vez para cada pessoa que
eu conhecia e se eu soubesse disso antes, talvez ainda estivesse vivo.

Amir Pereira Glitsch

31/10/2018
Dias úteis...

Já fazem alguns anos que acordo depois do meio dia e sigo religiosamente a
dieta do “avestruz”, apelido que dei com muito carinho, ironia e ódio. Em outras
palavras, eu como o que “brilha pela frente”, daí jogo mais ou menos uns seiscentos mls
de café por cima dessa papa alimentar e fumo um camel double na varanda do
apartamento, enquanto observo o mundo acontecendo lá embaixo na Fernandes Vieira,
rua que nasci e morei todos os miseráveis anos da minha vida, e que hoje sinto saudade.
É de dar pena o ser que morre no mesmíssimo parquet onde nasceu, e é paradoxal
querer matar a saudade de estar vivo porque se matou. Lá pelas tantas eu me pergunto
num silêncio meditativo qual a origem de tudo e porque será que eu não levanto quando
acordo. As respostas são tantas que prefiro me ater ao café e ao mistério de estar
deprimido sem saber as razões. Eu estudei suficientemente para entender que a
depressão se dá através dum fator biopsicossocial e que não necessariamente uma
pessoa deprimida é uma pessoa infeliz: é uma pessoa angustiada esperando algo sem
forma ou alguém sem rosto e nome. É, em extremos, uma vontade e uma não vontade
de fazer. É a “paz armada” dentro do nosso corpo.

Era quinze e trinta da tarde e a minha vontade era zero (pra tudo e todxs), e às
dezesseis horas chegaria meu aluno particular de português. Como eu havia cursado
letras até o sétimo semestre, dava aulas avulsas para pagar as minhas saídas e rolês e
não ter que pedir dinheiro a minha mãe, que trabalhava numa agência bancária a
algumas quadras de casa. Ela dizia, com toda a razão, diga-se de passagem, que eu fazia
o tipo que nasceu aposentado e que não botava na mesa sequer um pão velho e não dava
jeito de assinar a carteira de trabalho. Lavei a cara e escovei os dentes pra receber o
Guto, vizinho do andar de baixo, filho da Ivete, amiga da minha mãe, que era também
síndica do edifício. Bateram na porta e fui ver quem era pelo olho mágico. Adivinha:
era o infeliz e calculista Guto, que decidiu chegar quinze minutos antes do horário, pois
sabia que eu tinha o costume de passar café e matar o tempo da aula, enquanto eu
perguntava coisas sobre o seu dia-a-dia e fingia ouvir a resposta ou sequer me importar.
Ele era aquele típico nerd das exatas que acha que sabe de tudo e que tem muita malícia,
quando na verdade não passa de um otário, que faz piadas ruins, fora de hora e contexto,
da boca dele só saem grunhidos misturados com risadas afônicas e coisas que ninguém
entende e simplesmente sorri um sorriso amarelo pra não ouvi-lo de novo. Era
definitivamente uma toupeira pra relações interpessoais e comunicação, mas se portava
como se todos estivessem abaixo dele, pois era um excelente jogador de LOL e tinha
“skins e armas” que ninguém conseguia. Nas redes sociais, ministrava e era
respeitadíssimo nos fóruns de armaduras e estratégias de joguinhos, RPGs e essas coisas
que não são de verdade e que só tardam o desabrochar do sex appeal e o cessar da
vergonha alheia. No mundo real, se eu fosse dar uma nota pro Guto seria: dó.

Respirei fundo ao abrir a porta e lá estava ele me olhando com sua cara oleosa,
sorriso trouxa e seus óculos de lentes transitions. Que agonia! Em algum espectro do
meu inconsciente tocava Florence Foster Jenkins no volume dez e eu só queria me atirar
pela sacada. Engoli o refluxo psicológico que essa cena me causou e o convidei para
entrar. Sentamos na mesa da sala, onde costumo fazer as aulas e simulados de redação
do Enem, a mesa era de vidro, portanto era possível ver aquela perna inquieta dele e
suas canelas brancas, finas e peludas balançando e fazendo barulho no andar de baixo,
no caso, seu próprio apartamento que estava vazio naquela hora. Fiquei pensando
enquanto Guto abria a pasta e pegava seu estojo: eu não posso nem fazer uma reunião
com meus amigos aqui em casa que a filha da puta da Ivete me notifica e me queima
com o prédio inteiro. Será que o vizinho abaixo deles suportava essa perna incansável e
irritante batendo em uníssono com os bumbos de System of a Down, enquanto tomava
redbull sem açúcar e discutia pelo Skype todas as noites com seus amigos samurais de
apartamento? Nesse momento eu só pensava em fazer haraquiri.

Terminamos a aula e, para minha plenitude, Guto ao sair pela porta me deixou
de adiantamento o valor do próximo encontro que seria na véspera do exame nacional.
Pra mim já tava certo que aquele dinheiro viraria cerveja, até porque era sexta-feira, o
dia tava quente e eu também tava com muita sede. Desci do apartamento com a Brigite
pra ela fazer as necessidades e ver se eu encontrava alguém de passada. Eu gostava de
ver a rua tanto de cima quanto de baixo, e esse mosaico de informações, que só o
distanciamento pode trazer, era montado e arranjado pelos meus fones de ouvido, como
se fosse uma mandala e eu fosse centro dela. A rua tava serena e igual ao que sempre
foi: a delicadeza das lojas e veterinárias que se mantinham acesas pelos altos preços. O
barulho dos automóveis lutando por espaço para chegar na Osvaldo Aranha estava
também sempre se fazendo presente, na minha cabeça, dentro do meu quarto, dentro das
minhas neuras. A rua corria em apenas um sentido e a fragilidade do homem comum
desaparecia quando algo tocava no seu medo ou no seu cu. Alguém gritou “pegah
ladrãoum!” e de imediato um bolo de pessoas começou a sovar um rapaz na esquina
como se ele fosse Judas. Escutei, entre outras coisas, alguém dizendo que ele havia
tentado roubar um guarda-chuva que estava pendurado num portão. - Ora, roubar uma
sombrinha presa numa grade, é equivalente a pegar um isqueiro que ficou na mesa. É
parecido com a ideia de juntar uma caneta azul (azul caneta) perdida no chão -. Me
pergunto por que a empresa Bic ainda não produz guarda-chuvas, palhetas e dignidade:
essas coisas que todo mundo perde e quem sofre as consequências é a Pachamama.
Ele é o meu avô...

Fazem 37 dias que eu não vejo ou falo com meu neto; fazem 38 dias que eu não
abro o meu comércio; fazem 39 dias que eu não durmo. Eu tenho 74 anos e 1000kg na
cabeça. Foi num churrasco, no dia de Yom Kippur, que eu estapeei seu rosto pelo
desaforo que proferiu à sua mãe. Foi no descontrole dos meus atos que detonei tudo que
a gente tinha. Eu tinha bebido e estava amargurado.

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