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Universidade Estadual de Campinas – 23 a 29 de outubro de 2006

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Foto: Antonio Scarpinetti

O cinema da Boca em livro


LUIZ SUGIMOTO “O cinema da Boca emerge no fer- O professor
sugimoto@reitoria.unicamp.br mento desta obrigatoriedade. É niti- e cineasta
damente um caso em que a legislação Nuno Cesar
igam o que quiserem, mas o gera a produção. Se havia dias deter- Abreu, autor

D cinema da Boca do Lixo so-


nhou tornar-se uma Holly-
wood. Instalada na rua do Triunfo,
minados para exibição de filmes naci-
onais, então os próprios exibidores e
distribuidores decidiram ajudar a pro-
do livro:
indústria da
rua do
Triunfo aliou
área deteriorada do centro de São duzi-los. E, como se fazia filmes com 20
Paulo, esta indústria respondeu por ou 30 mil dólares, muitos comercian- produção,
40% da produção de filmes nacionais tes, fãs dos gêneros, também compra- distribuição
nos anos 1970, quando o mercado vam suas cotas, com retorno garantido. e exibição
absorveu a média de 90 títulos por ‘Pequenas empresas, grandes negóci-
ano. Um retrato detalhado e sem som- os’, seria o slogan”, compara Abreu.
bra de preconceito desta comunidade Apesar de sua identificação com a
peculiar de direto- pornochanchada, a Boca do Lixo pro- citas com “dublês”, mas estrelas co-
Obra retrata res, atores, atrizes, duziu gêneros variados: faroestes mo Helena Ramos, Matilde Mastran-
comunidade técnicos, produto-
res e distribuidores,
inspirados no spaghetti italiano, poli-
ciais, melodramas e aventuras de se-
gi e Aldine Muller recusaram-se a
participar de tais produções. Foram
que pretendeu está no livro Boca do gunda linha, cangaço e mesmo kung os filmes pornográficos, aliás, que
formar nossa Lixo – Cinema e clas-
ses populares, do
fu. A rejeição das elites, contudo, era
patente. O professor observa que, no
decretaram o fim do cinema da Boca
do Lixo, embora o modelo já se mos-
Hollywood professor e cineasta ambiente dos 70, ainda ecoava a efer- trasse desgastado.
Nuno Cesar Abreu, vescente contracultura dos anos 60 – Cartaz de “Os mandados de segurança liberan-
lançado pela Editora da Unicamp. o cinema novo, o tropicalismo e, na filme do Império dos sentidos – considerado um
“É uma comunidade que criou i- esfera dos costumes, a revolução se- produzido filme de arte – e Calígula abriram a por-
dentidade própria, por meio de rela- xual e a liberação da mulher. por Aníbal teira para a invasão de pornôs”, recorda
ções econômicas, artísticas e pessoais Enquanto durou, a comunidade da Massaini: Abreu. Como a implantação das salas
que permitiram aliar produção, dis- rua do Triunfo não despertou qual- ingenuidade especiais para este gênero nunca se
tribuição e exibição. Qualidade da quer interesse acadêmico, além de ser de voyeur efetivou no Brasil, os explícitos foram
produção à parte, podemos dizer que transformada em saco de pancadas adolescente desalojando a pornochanchada das
foi um período de ouro para o cine- da crítica. Nuno Abreu questiona, grandes salas do centro da cidade. Es-
ma brasileiro – e de um cinema popu- porém, se a rejeição não era devida, tas, por sua vez, acabaram estigma-
lar, se entendermos que ele era reali- em parte, à apropriação da temática tizadas e transformadas em templos,
zado e visto por pessoas dos mesmos da sexualidade pelas classes popula- ra atuar no país. “Acho a explicação ator David Cardoso incluía tarjas pre- estacionamentos e supermercados.
estratos sociais. Minha impressão é de res. “O sexo estava na cabeça de todo simplista. Os militares certamente tas nos cartazes, sugerindo o encobri- Organizado na forma de documen-
que a Boca aspirava por reconheci- mundo. Se a classe média recorreu prefeririam produções de caráter pa- mento de cenas mais fortes. “A por- tário, o livro de Nuno Cesar Abreu en-
mento”, afirma o autor. aos divãs, as outras eram igualmen- triótico ou de outra natureza. Obvi- nochanchada vendia o que não tinha tremeia dados de pesquisa, depoimen-
Segundo Nuno Abreu, o surgimen- te reprimidas e não escaparam da amente faltaram filmes tratando do para entregar, recorrendo a títulos in- tos e artigos, além de comentários do
to e o florescimento do cinema da febre. Os filmes da Boca faziam suces- papel histórico das classes populares, sinuantes para isso. Um fato é que fi- autor. Traz 16 entrevistas com remanes-
Boca do Lixo não podem ser desvin- so junto às classes inferiores e talvez mas estas também precisavam de um nalmente tirou-se a roupa com certa na- centes do star system da Boca do Lixo:
culados do contexto dos anos 70, de o erotismo como cultura de massa é canal para aliviar a repressão da se- turalidade nas telas. Mas os ângulos por Alfredo Sternheim, Aníbal Massaini,
pleno regime militar. Havia uma po- que incomodasse”. xualidade”. baixo da saia, por dentro do decote, são Carlos Reichenbach, Cláudio Cunha,
lítica de substituição das exportações, A censura, ao contrário, mutilava os próprios para um voyeur adolescente, Claudio Portioli, David Cardoso, Gui-
através de leis protecionistas de in- Censura – Outra pecha atribuída filmes eróticos mediante critérios in- com toda a carga de ingenuidade que lherme de Almeida Prado, Helena Ra-
centivo à ocupação do mercado pelo ao cinema da Boca é de ter progredi- compreensíveis – permitia a mostra isso traz”, diz o professor. mos, Inácio Araújo, Jean-Claude Berna-
“similar nacional”, que começava na do graças à repressão no regime mi- de um seio, mas não de ambos; se um det, Luiz Castillini, Mario Vaz Filho,
indústria e se estendia às atividades litar. A ex-musa Matilde Mastrangi, mesmo palavrão aparecia três vezes, Explícitos – A pornochanchada, Matilde Mastrangi, Ozualdo Candeias,
artísticas. No cinema, uma lei de 1968 por exemplo, declara no livro que a exigia o corte de duas falas. É verda- portanto, sempre esteve bem distante Patrícia Scalvi e Sylvio Renoldi. Breve-
obrigava que 50% dos filmes exibidos pornochanchada não predominaria de, de acordo com Abreu, que os mé- dos filmes de sexo explícito. Houve mente, a Editora da Unicamp vai dis-
fossem brasileiros, sob pena de fecha- se os representantes do chamado ci- todos da censura também serviam um período de transição, já nos anos ponibilizar a íntegra das entrevistas
mento das salas. nema culto encontrassem espaço pa- para promover o filme. O diretor e 80, em que se inseriram cenas explí- em www.editora.unicamp.br

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