Você está na página 1de 26

Contos preto

branco

Anderson Jaime

1
Agradecimentos

Agradeço aos céus, aos pássaros que me ensinaram a


tirar os pés do chão.Aos meus demônios internos e
principalmente aos que os suportam.
Agradeço aos pequenos goles de vida que tenho todos
dias, aos momentos que me tiram o fardo da sobriedade.
Minha taça de vinho, meus livros e os mais importantes
de todos, meus amigos e família. Eu perco a sanidade
frequentemente e se não enlouqueci completamente é
por vossa causa.

Agradeço aos paradoxos, aos meus sintomas de


demência e aos que me ensinaram a escrever nas
entrelinhas do universo.
Eu não escrevo, as frases é que perseguem, meu
vocabulário está errado, meu dicionário também, mal sei
flexionar os verbos e não sou uma pessoa estudada, mal
entro em uma biblioteca e não tenho conhecimento de
gramática,mas essas frases me perseguem,sussurram
todas as noites nos meus ouvidos.

Será que sussurram ou são sintomas da minha


inquestionável insanidade? Nunca saberei, eu
simplesmente escrevo frases que transcendem dimensões
e vago nas profundezas do meu próprio abismo.

Anderson Jaime

2
Todos direitos das ilustrações reservados aos
proprietários.
Qualquer tentativa de past copy ou comportamento
que ofenda os direitos do autor deste documento será
considerado crime. A luz da lei número 4/2001 de 27
de Fevereiro.

Editora: independente

Email do autor:
andersonfrank1914@gmail.com

3
A Trágica Morte do Kafiri

Aquele que luta com monstros


deve acautelar-se para não tornar-se
também um monstro.
Friedrich Nietzsche

Por que é que o gato preto dá azar?


Por que é que os anjos são pintados todos brancos?
O preto é mau? Ou o mal que é preto?

Essas perguntas faziam parte dos pensamentos matinais


de Kafiri, um rapaz preto como a noite, com olhos
brilhantes como uma explosão de estrelas de nêutrons,
tão azuis que ofuscaram os cegos.

Enquanto crescia, essas perguntas deixaram de o


atormentar. E de quem é a culpa? A labuta de um
escravo, não deixava espaço para perguntas.
À medida que crescia, Kafiri percebia que não cabia ao
escravo fazer perguntas.
Pois o patrão dizia;
– Os cães perguntam alguma coisa aos donos?
E quando ouvia essas palavras, Kafiri se contorcia e
tremia de medo, quem não tremeria? Nenhum escravo
quer ir para a forca.
– Desculpe, patrão!

4
Dizia o Kafiri na língua do patrão, porque o patrão, o
proibia de falar a sua língua materna, de ir aos
curandeiros e de dançar as danças que o faziam lembrar
com melancolia do sabor da liberdade.

Kafiri costumava ler escondido livros de ciência, de


nacionalismo e liberdade, ele tinha aprendido a escrever
e a ler a língua do patrão.
Enquanto lia, tornava a imaginar a liberdade, imaginava
uma vida sem correntes no pescoço, sem xibalo é claro,
imaginava um mundo sem o PATRÃO.
Ele lia nas noites, lia onde o patrão não podia ver. Ele
guardava restos de petróleo por meses para ler só uma
noite, com o seu candeeiro,ele via as consoantes e vogais
balançarem, ele via verbos e os flexionava para formar
palavras .Uma mistura mágica que o fazia esquecer do
PATRÃO.

Folheava o livro trêmulo,temia que fosse


descoberto,temia as chibatadas do patrão.

Quem não temeria? homens que mataram e destruíram


civilizações em nome de deus?

Quem não temeria? homens que mataram os nossos,


depois trouxeram os padres para nos ensinarem a
perdoar?

5
Quem não temeria? homens que vieram salvar os
africanos e a salvação que eles tanto pregavam era a
escravidão?
Quem não temeria? Santos que estupraram nossas
mulheres, destruíram nossos impérios e venderam nossos
irmãos como se fosse frutas?
Eu ainda os temo!

Todas as noites que lia, ele costumava voltar com um


sorriso no rosto. Voltava acreditando na liberdade e
independência.
Costumava trabalhar com esperanças, as chibatadas
diárias já não eram tão dolorosas.
Ele havia se libertado das correntes mais violentas, tinha
se libertado da escravidão mental.
O homem pálido foi esperto, primeiro ele escravizou o
preto sem usar armas, com argumentos aparentemente
inteligentes, eles diziam;
– Vocês foram amaldiçoados por deus!
E Kafiri se perguntava, o'que seu povo tinha feito ao
deus do patrão?
Eles falavam orgulhosamente de deus, vestiam pingentes
com imagens de cruz. Tinham fotos de um homem
branco com cabelo longo pendurado em uma cruz nas
suas casas.
Se consideram adoradores de deus!
Os nossos colares eram do diabo, os deles não.

6
Chamaram a nossa medicina tradicional de
curandeirismo, a deles de medicina ocidental.

Fizeram tudo isso, mas ainda se consideravam o povo de


deus.
O deus do homem pálido era cruel?
Kafiri nunca teve a resposta.
Passado alguns anos, Kafiri foi vendido para outro
patrão, e no dia de recepção de escravos, o patrão
perguntou;
– Alguém entre vocês, têm alguma dúvida de como as
coisas funcionam por aqui?
E Kafiri, mesmo tremendo de medo e com o coração nas
palmas das suas mãos, disse;
– Desculpe patrão, Peço perdão pela intromissão mas
tenho algumas perguntas, não é sobre como as coisas
funcionarão, mas sobre como tem funcionado.
O patrão respondeu;
– Faça logo as perguntas, vocês têm muitas mudas de
café para plantar.
Kafiri prossegui perguntando ao patrão;

Primeiro, diga-me o que meu povo te fez?


Diga-me patrão, o'que as nossas mulheres fizeram para
serem estupradas e largadas como animais?
Diga-me patrão, o'que nossos deuses fizeram para os
destruíres?

7
Diga-me patrão, o'que nossas crianças fizeram para
serem vendidas como legumes?
Diga-me patrão, ser preto é um pecado capital? E se não
for, por que enviaste teus padres e cardeais para nos
caçarem como animais?
Diga-me patrão, de que cor é o meu sangue? O preto
não sangra? Não chora e não tem sentimentos? E se têm,
será que não ouviste os nossos gemidos?

Ouviste os nossos gemidos, ouviste as nossas crianças e


o grito de aflição das nossas mulheres.
Onde é que estiveste? diga-me patrão, ou será que não
ouviste?
És completamente surdo ao ranger dos dentes de um
preto?
Diga-me patrão,por que é que teus filhos carregam
armas em uma mão e na outra o livro sagrado?

O patrão ficou perplexo depois de ouvir as palavras do


Kafiri.
O rosto do patrão estava mais pálido que o normal. E ele
respondeu furioso;
– Maldito escravo, você ousa me desafiar? Você irá para
forca! Será queimado vivo.

8
Depois do patrão ter dito essas palavras, companheiros
de Kafiri permaneceram calados, engolindo as lágrimas
que saíam pelos olhos se recordando das vezes que
tinham dito para aquele rapaz não fazer perguntas.
Choravam no íntimo pensado em quantas vezes tinham
dito ao Kafiri para somente trabalhar.

Os trabalhadores do patrão chegaram, carregaram Kafiri


pelo pescoço, sem nem um pingo de misericórdia.
Enquanto o carregavam riam do Kafiri dizendo;
– Escravo não é para ser sabichão e os que são, vão para
a forca.

Nessa condição, o Kafiri não implorava pela vida, não


pedia misericórdia e nem clemência. Os seus olhos não
estavam cheios de lágrimas, estavam cheios de esperança
e um brilho nunca antes visto.
Kafiri foi jogado na casa dos escravos destinada à forca.

Lá,ele encontrou um velho, chamado Maganizo.


Um velho de pele preta, tinha um olhar penetrante e uma
pele grossa e sofrida.
Possuía miçangas no pescoço e nas pernas, o velho tinha
olhos muito cansados, parecia mais morto que vivo.
Quando ele respirava Kafiri conseguia sentir o coração
dele pedir por salvação, por clemência e misericórdia, o
coração do velho Maganizo pedia a forca. O coração
estava cansado de ser escravo.

9
O velho Maganizo e o Kafiri estavam destinados a forca.
Eles tinham somente uma noite.
O velho Maganizo olhou para o Kafiri com seus olhos
penetrantes e prosseguiu dizendo;
– Meu jovem, o que n'zungo te fez? Morrerás muito
jovem. Teus olhos ainda enxergam, teus pés ainda se
movem, teus braços são fortes e parecem saudáveis.

Kafiri respondeu sorrindo;


– Os que morrem verdadeiramente são os que se tornam
escravos, os que não fazem perguntas, os que não
questionam o inquestionável.
E prosseguiu;
– O que é a morte? É quando o coração para? Errado! A
escravidão é morte. Quando é que alguém está morto?
Eu sei a resposta;
Quando não fala, não pergunta, não responde e não
pensa.
Me recuso a morrer, me recuso a ser morto pela
escravidão.

O velho Maganizo derramou lágrimas, enquanto ouvia as


palavras de Kafiri e pensava nos 79 anos que não tinha
pensado, perguntado e nem se defendido. Pensava nos
anos que serviu ao sistema lealmente, nos anos que não
viveu.

10
Nos dias que viu sua mulher ser estuprada enquanto
olhava, nos dias que viu seus filhos serem marcados com
ferro quente, nos dias que foi torturado calado e nos dias
que lhe foi roubado a liberdade.

O velho Maganizo ficou calado por um instante, olhou


para o Kafiri e disse;
– Jovem! Qual é o seu nome?
– Kafiri.
– Obrigado meu jovem, eu vivi covardemente toda
minha vida, roubaram minha liberdade e não reclamei,
roubaram minha esposa e eu fiquei calado, venderam
meus filhos e continuei os servindo lealmente, como um
cão.
Durante 79 anos, eu estive morto mesmo estando vivo,
tive oportunidades para fugir do sistema, mas muitas
vezes tive falta de coragem.
Kafiri respondeu;
– Ainda temos uma noite. Pensaremos juntos, viveremos
anos em algumas horas, questionaremos o inquestionável
e duvidaremos dos dogmas, discutiremos com
divindades, falaremos com os mortos, faremos sondagem
do insondável e questionaremos a infinitude.

E prosseguiu dizendo;
– Falaremos com nós mesmos, falaremos dos nossos
sonhos e das nossas lendas, dançaremos nossas danças e
contaremos nossos contos preto branco.

11
Naquela noite Kafiri e o velho Maganizo conversavam
sobre tudo e mais um pouco, o velho Maganizo se sentia
vivo novamente. Estava livre da escravidão mental,
pensava e não se achava inferior ao homem branco.

Depois da conversa que tiveram, o velho Maganizo


perguntou ao Kafiri sussurrando;
– Não queres fugir?
Kafiri respondeu;
– Para onde eu irei? Meu pai foi morto, minha mãe
estuprada e vendida como escrava aos homens pálidos
que navegam em barcos, meu irmão morreu a chicotadas
e a mulher que amo já não é a mesma, o patrão a
transformou em sua prostituta. Até onde eu iria?
Os homens pálidos estão em todo lugar.
Eu prefiro morrer! Prefiro morrer a ser escravo do
sistema.
O velho Maganizo olhou para Kafiri com seus olhos
penetrantes, e com um semblante ligeiramente sério, e
prosseguiu dizendo;
– Mas você não precisa morrer para sempre, eu pertenço
a uma tribo de antigos curandeiros e no leito da sua
morte meu tetravô revelou para mim, uma forma de
reviver. Mas tem um preço!

Kafiri respondeu surpreso;

12
– Qual é o preço? Meu sangue? Tire se quiser, amanhã
não me servirá de nada, meus dedos ? Arranque, amanhã
esses dedos não me farão sair da sepultura. Seria a minha
alma? Tire de mim, talvez meu sofrimento acabe, mas
duvido que eu tenha uma alma. Eu sacrificaria tudo, por
liberdade e por mundo sem escravidão.

– O preço é a sua alma, o seu tempo.


Você queimará pela eternidade, lá onde os homens
pálidos chamam de inferno é uma praia em comparação
ao lugar que você irá.

– Sem problemas! Por favor, velho Maganizo faça-me


reviver depois de morto. Eu não temo o lago de fogo,
não temo os demônios , os demônios é que me temem.
Por que os demônios me temem? Porque sou livre. Até
mesmo os demônios são escravos. E eu, só quero
aproveitar minha liberdade, e a independência que meus
livros tanto falavam.

– Você retornará em outra era, talvez daqui a 10 anos, 20


anos ou talvez 50. Você ainda deseja?

O Kafiri respondeu como os olhos brilhando;


– Desejo! Com toda minha alma, desejo com todo meu
coração, desejo com todo meu ser, desejo experimentar
minha liberdade em uma outra era.

13
Depois do Kafiri ter dito essas palavras, o velho
Maganizo olhou fixamente para Kafiri e disse;
– Espero que encontre a independência que tanto procura
em outras eras e nos outros tempos.
E prosseguiu;
– Agora falarei com meus espíritos e pedirei para que
eles te dê outra vida, em troca da sua alma. Pedirei que
consumam teu corpo como sacrifício e rezarei para que
encontres a independência em outras eras.

Logo depois dessas palavras, terem saído da boca do


velho, ele começou a dançar as danças tradicionais,
começou a falar línguas estranhas, que nem o Kafiri
percebia, começou a ranger os dentes e a balançar as
miçangas.
Começaram a surgir raios do teto da cabana até toda
cabana ser envolvida. Ouvia vozes estranhas e o velho se
comportava diferente, os olhos dele brilhavam, as vestes
dele pareciam mais escuras e gritava;
– Kafiri, Kafiri, nós matámos o Kafiri, queimarei o
Kafiri, e em troca terá outra vida! Mas que humano
impertinente, você se queimará para sempre!

E continuou dizendo com os olhos brilhando como se


estivesse possuído e mexendo as miçangas do pescoço;
– Kafiri, Kafiri, sinto pena do Kafiri, que humano
impertinente estarei a sua espera, Kafiri.

14
Depois dessas palavras, o velho caiu ao chão, e quando
o Kafiri o perguntou sobre o que havia acontecido ele
disse que não recordava. Não recordava dos raios nem
das vozes estranhas, mas de uma coisa recordava, o
Kafiri voltaria a viver.
Os dois conversaram tanto que não perceberam que o
tempo tinha acabado e quando as suas consciências
voltaram para eles, já era de manhã.

Os trabalhadores do patrão vieram buscar os condenados


para a forca, o velho Maganizo e o Kafiri.
Antes de os enforcar era costume torturar os escravos.
Mas nesse dia o patrão não planejava enforcar os
escravos como de costume, ele desejava queimar o
Kafiri e o velho Maganizo.
Ele mandou chamar todos os escravos, pois queria que o
Kafiri se tornasse um exemplo.
Depois de todos escravos estarem reunidos o patrão
disse;
– Hoje punirei dois de vocês, eles serão queimados e
servirão como aviso. Nunca desobedeçam e nem
questionem as minhas ordens.
Se eu pedir para lamberem o chão, devem mastigar as
ervas, se eu pedir para as mulheres virem para meus
aposentos que venham completamente nuas e cruas.

15
Se eu pedir para calarem, cortem as vossas línguas.
Vocês existem para nos servir.

Enquanto os trabalhadores do patrão lançavam petróleo


no Kafiri e no velho.
O Kafiri decidiu distrair a sua mente com seus últimos
pensamentos daquela época.
E pensava enquanto colocavam fogo na sua cabeça.

O fogo se espalhou e os envolveu, o velho não tardou a


parar de gritar, ele estava fraco e seu coração falhava,
por isso morreu rapidamente.

Isso não aconteceu com o Kafiri, ele era osso duro de


roer.
Enquanto Kafiri gritava de dor, lhe passavam memórias
da vida que não viveu, das pessoas que não conheceu,
das mulheres que não conquistou e das vezes que
desejou morrer. Enquanto chorava de dor e sentia a pele
queimar e sentia o cheiro das próprias entranhas, ele
percebeu a verdadeira natureza do mundo.
Ele sentiu sangue a correr em suas veias, mas esse
sangue estava quente, queimava seus órgãos, ele sentiu o
coração bombear osangue, mas esse coração falhava.

Morreu chorando de dor e sorrindo ao mesmo tempo,


morreu fingindo demência mas não pediu clemência.

16
Morreu, derramando lágrimas de sangue e não de medo,
sim ele morreu, mas não morreu como um escravo.
Ele se entregou a agonia mas não amaldiçoou a sua cor.

Os companheiros de Kafiri, mesmo estando calados,


choravam por dentro, choravam por seu amigo,
choravam por seu irmão, mas não faziam nada porque
eram escravos mentais.

E enquanto a alma do Kafiri se desprendia do seu corpo


ele teve os seguintes pensamentos;

Os pretos são os ditos selvagens, mas tem medo do


patrão, quem é o selvagem afinal?
Como os homens brancos definem selvagem ? O homem
pálido devia mudar os seus dicionários.
Mataram nossos irmãos, estupraram nossas mulheres,
roubaram nossas riquezas. Me queimam vivo. E nós é
que somos os selvagens?

Ele sentiu tudo e nada. Sentiu sua pele cair e seu crânio
arder e se entregou às chamas. Por fim, ele morreu.

17
Ressurreição do Kafiri

Os homens são pássaros que amam o vôo, mas


têm medo dos abismos, por isso abandonam o
voo e se trancam em gaiolas.
Fiódor Dostoiévski

Kafiri morreu, e a sua lenda foi espalhada por todo o seu


povo, era a lenda do Kafiri o homem que ria enquanto o
queimavam vivo.

O Kafiri permaneceu morto por muito tempo, durante o


tempo que o Kafiri estava morto, os pretos diziam ter
conseguido a independência.
Já não eram colónias, usavam suas próprias bandeiras e
o homem pálido não os chicoteava, seria verdade que
não os chicoteava?

Diziam ter conquistado a liberdade e independência,


diziam ter guerreado contra o homem pálido e venceram.
Seria verdade?

Depois de 50 anos do Kafiri ter morrido, em uma noite


escura sem nenhuma estrela com uma escuridão tão
densa que se podia apalpar, começou a surgir relâmpagos
e raios que assustaram a maior parte das pessoas e elas
ficaram trancadas em suas casas.

18
Dos raios mortíferos e assustadores apareceu o Kafiri,
todo pálido e assustado, parecia ter perdido a razão, mas
lá estava ele com um olhar radiante.

Depois de ter caido em terra, os raios que o envolviam


desapareceram e a escuridão palpável se dissipou.

O Kafiri não percebia o que estava a acontecer, logo


depois de ter encostado a terra e as relvas, lágrimas
escorriam do seu rosto. Ele não já não sentia o calor das
chamas, já não sentia a agonia de morrer carbonizado.
Encostou sua cabeça nas relvas e quando deu conta já
estava de dia.
Ao acordar ele percebeu que estava vestido de um jeito
estranho, tinha uma calça preta, uma gravata preta, uma
camisa branca e uns calçados que ele desconhecia. Mas
para ele, aquela gravata o fazia parecer o patrão, por isso
tirou a gravata e a jogou bem longe. As calças eram
muito quentes e ele soava como nunca.

Estava totalmente surpreso, e se recordou das palavras


do velho Maganizo, ele percebeu que tinha revivido em
outra era, tinha revivido em outros tempos.

Ele estava debaixo de uma árvore, os olhos dele


irradiavam alegria e ele estava cheio de energia.

19
Também estava triste porque não voltaria a ver a sua
família, o velho Maganizo e seus companheiros, e ele
nem sabia que época era aquela.

Por muito tempo, ficou parado a observar o céu azul,


ficou horas olhando para o céu e se perguntando;
– Estou realmente livre?
Depois de ter feito essa pergunta decidiu procurar por
pessoas, por isso começou a caminhar mesmo sem
conhecer o caminho. E dizia para ele mesmo;
– Se eu não encontrar ninguém deste lado, voltarei e
procurarei do outro, e se eu não entrar ninguém no sul,
eu voltarei e irei para o norte.

Ele andou um pouquinho e não tardou a ver carros, mas


ele estava surpreso, ele viu pretos conduzindo carros. Ele
não estava habituado a ver pretos em carros.
Um dos carros parou, e o condutor perguntou ao Kafiri;
– Onde o senhor vai?

Kafiri ficou surpreso por um instante, ele percebeu que


os pretos já não falavam a sua língua, falavam a língua
do patrão e ele entrou em choque. Mas como o Kafiri
sabia falar a língua do Patrão ele disse;
– Me leve para onde o senhor vai.
E o condutor abriu a porta do carro e disse ao Kafiri;
– Entre.

20
O Kafiri entrou no carro, mas não sabia como e onde se
sentar. Depois de muitas tentativas o Kafiri conseguiu se
sentar.
O homem disse;
– Eu chamo-me João e o senhor?
Kafiri ficou perplexo – João? Como assim João?
Ele perguntou para si mesmo surpreso.
E pensou;
– Onde eu estou? Meus irmãos não falam a minha
língua, meus irmãos já não recebem o nome das nossas
terras. Recebem o nome do patrão! Meus irmãos já não
são Mazatoe e Maganizo. Meus irmãos são chamados de
João. Será que estou realmente livre?

O kafiri por um instante ignorou essas questões e decidiu


responder ao homem. Kafiri disse;
– Chamo-me Kafiri. Sou da tribo Tembo.
Antes mesmo do Kafiri terminar de falar o seu nome, o
senhor João desatou a rir, e disse;
– Kafiri, que nome estranho! Me parece um nome bantu.

Kafiri mais uma vez ficou perplexo, ele nunca tinha


imaginado que um dia diriam que seu nome era estranho.
Para o Kafiri o estranho era o João, ele estava vestido
como um homem branco, ele não usava colares dos
africanos feitos na Etiópia, usava pingentes
personalizados da Europa.

21
Não tem mal algum em vestir pingentes da Europa, o
mal está em considerar eles superior aos nossos.

Não tem mal algum, em vestir como o homem branco, o


mal está em pensar que é branco.

Não tem mal algum, em dançar as danças deles, o mal


está em deixarmos de danças as nossas.

O verdadeiro mal está em perder a identidade.

O Kafiri permaneceu calado, enquanto o João conduzia o


carro, da janela ele viu, pretos e brancos conversando,
ele viu árabes e asiáticos aos abraços e chegou a
conclusão que nem todos brancos eram maus. Percebeu
que o homem branco não era o demônio.

Quando retornou a si, o João estava descendo do carro e


pediu para que o Kafiri saísse.
O senhor João foi muito amável, por isso o Kafiri o
agradeceu pela ajuda e também pelas coisas que ele lhe
tinha contado.

Eles se despediram e nunca mais se encontraram.

O Kafiri viveu naquela era por 2 anos e se sentiu


angustiado.

22
As pessoas ainda eram escravas! E não sabiam. Esse era
o pior tipo de escravo.

Mesmo que tenham alcançado a independência, o Kafiri


via irmãos tratando irmãos como escravos.

Durante 2 anos Kafiri viu a escravidão na sua pior


manifestação e desejou nunca ter revivido. Viu a
escravidão dos independentes.

Viu patrões com pele escura, viu homens serem levados


para a forca. Viu seus irmãos pedirem esmolas aos
homens brancos e se matarem entre eles.

Viu homens venderem os seus filhos por dinheiro, e


líderes venderem seus povos por luxos.

E Kafiri se perguntava;
De que independência dizem eles?
De que liberdade? Se somos todos escravos?

As pessoas trabalham como animais para ganhar miséria.


Isso não é escravidão?
Oque seria escravidão? Ter coleiras e ser chicoteado
todos os dias?
Mesmo que assim o fosse, nossa vida não seria
escravidão?

23
Somos chicoteados todos os dias pelo patrão, temos
coleiras invisíveis, esse sistema capitalista.
Se não somos escravos de nós mesmos, somos escravos
do sistema.
De que liberdade vocês dizem?
De que independência vocês dizem?

Preto também escraviza, preto também leva para forca,


preto também vende escravos, preto também estupra
mulheres e crianças! De que independência vocês
dizem?

O Kafiri chorava todos os dias, chorava ao ver um povo


que se dizia livre e independente naquelas condições.

Kafiri sacrificou a alma pela liberdade, sacrificou tudo


por uma era sem escravidão. Será que adiantou alguma
coisa? Não adiantou, as pessoas ainda eram escravas.

E Kafiri viu muitos tipos de escravos. Entre eles, tinha os


escravos que não sabiam que eram escravos e os que
sabiam. Mas os que sabiam não faziam nada porque
tinham medo do Patrão.

Durante 2 anos Kafiri viveu entre escravos do sistema. E


teve saudades dos tempos que a escravidão era menos
severa.

24
Teve saudades das danças que os escravos faziam e dos
contos preto branco que os velhotes contavam nas
fogueiras.
Viveu por 2 anos no mundo dos africanos independentes
e não se sentia livre.
E no fim dos 2 anos ele foi para uma mata onde
pretendia tirar a própria vida, não suportava o sistema.
Não suportava a escravidão.
Quando finalmente colocou a corda sobre o pescoço lhe
vieram perguntas que fizeram parar o tempo enquanto
perdia respiração e o coração falhava, ele pensava;

– O que é liberdade? – seria a independência? Não a


liberdade são os nossos familiares, são nossos amores e
desamores, liberdade é sentir-se vivo mesmo estando em
uma gaiola.
E prosseguir pensando;
– Desde sempre fui livre, desde sempre fui independente.
Os independentes são os que pensam por conta própria,
os independentes são os que questionam as razões das
coisas, os verdadeiros independentes são os loucos que
amam sem medidas e morem por seus amores. E o
verdadeiro demônio não é o homem branco, o verdadeiro
demônio é o egoísmo dos homens.

Kafiri tentava morrer mas não conseguia. Era a maldição


do velho Maganizo. Ele Só podia morrer no dia que
fosse livre, por isso Kafiri viveu para sempre.

25

Você também pode gostar