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Paulo Manuel Ferreira da Cunha

X Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

As origens do novo cinema português:


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o turismo cinéilo e o novo cinema português


As origens do novo cinema português: o turismo cinéfilo e o novo cinema português

Paulo Cunha (Universidade de Coimbra, doutorando)

Com base nos percursos de vida dos mais importantes nomes da renovada

cinematograia portuguesa dos anos 1960-1970, pretendemos conhecer e


analisar o processo de circulação e apropriação da cultura cinematográica

e cinéila internacionais no panorama português de então, sobretudo por meio

do que designamos “turismo cinéilo” – frequência de cinematecas e escolas de

cinema estrangeiras, visitas aos principais festivais de cinema europeus, leitura

de literatura cinematográica e de publicações cinéilas estrangeiras, entre outros.

Um dos principais objetivos do novo cinema português, quer no nível

político quer no estético, foi airmar-se positivamente como veículo de expressão

artística e, antagonicamente, distanciar-se da produção industrial majoritária que

dominava o cinema português de então.

Em 1969, polêmico como sempre, o cineasta João César Monteiro (1969)

airmava nas páginas de O Tempo e o Modo:

Faço parte da primeira geração de cineastas cultos existentes


em Portugal. Por cineastas cultos, entendo pessoas que
repetidamente izeram pelos anos 60 o trajecto que vai do extinto
cinema Gaio à Cinemateca da rua d’Ulm ou ao National Film
Theatre. Pessoas que conseguiram farejar praticamente todo o
cinema que se tem feito e, melhor ou pior, foram tirando do que
viram as conclusões que melhor se lhes impunham..

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Numa entrevista a Le Monde, por ocasião da Semaine du Jeune Cinema

Portugais, em Nice (1972), o cineasta Alberto Seixas Santos (apud: ROSA, 1972)

subscreve a ideia de Monteiro e airma peremptoriamente: “Viemos para o cinema

com uma bagagem intelectual diferente da dos nossos predecessores, com uma

verdadeira cultura cinematográica…”.


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Paulo Rocha, outro cineasta da década de 1960, considera também

a experiência europeia como estruturante da cultura cinéila dessa geração,

sobretudo a inluência das correntes de renovação das principais cinematograias

europeias, onde aprenderam a entender o cinema como uma experiência artística

e estética (MONTEIRO, 2001, p. 312).

Cronologicamente, a geração de cineastas que se airmou, na década de

1960, era a quinta geração de cineastas na história do cinema português:

a. 1900-1910: a geração dos “aventureiros”, como o crítico Manuel de Azevedo

os classiicou, era formada pelos precursores e pioneiros encabeçados

pelos documentaristas Aurélio da Paz dos Reis, Costa Veiga e João Correia;

b. 1920: a geração dos estrangeiros, em que se destacaram os realizadores

franceses George Pallu, Roger Lion e Maurice Mariaud e o italiano Rino

Lupo, todos ligados à produtora Invicta Film (1917-1924);

c. 1930-1940: a geração do “primeiro cinema novo”, segundo a terminologia

de João Bénard da Costa, composta por Leitão de Barros, Chianca de

Garcia, Jorge Brum do Canto, Arthur Duarte, Cottineli Telmo, António Lopes

Ribeiro e Manuel de Oliveira;

d. 1950: a “geração dos assistentes”, assim designada por estes realizadores

terem feito carreira enquanto assistentes da geração anterior, com

nomes como Augusto Fraga, Constantino Esteves, Perdigão Queiroga e

Armando de Miranda.

Na década de 1960, a airmação do designado “novo cinema português”

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pressupunha uma ruptura radical com todo o passado cinematográico português,

poupando apenas alguns nomes à mediocridade dominante. As duas principais

exceções eram Manoel de Oliveira e Manuel Guimarães, dois exemplos de uma

ética singular e de um percurso marginal. Esteticamente, as referências desta

geração eram quase exclusivamente estrangeiras.


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Assumindo uma ruptura com todo o passado, a nova geração pretende

apoiar a sua airmação na negação dos métodos e técnicas cinematográicas

característicos do cinema português de então, criticando ainda a forte dependência

do velho cinema de áreas do entretenimento com poucas ainidades com a

estética cinematográica, nomeadamente o teatro de revista ou o designado

“nacional-cançonetismo”.

Para o desenvolvimento dessa suposta “inédita cultura cinéila portuguesa”,

concorreram dois fatores decisivos:

1. Contato com os principais textos cinematográicos produzidos em toda a

Europa, pela leitura de revistas de referência, como as francesas Cahiers

du Cinema e Positif, ou as italianas Bianco & Nero e Cinema Nuovo Na

transição para a década de 1960, esse novo tipo de literatura vinda do

estrangeiro veio quebrar uma relativa uniformidade crítica no panorama

português, originando algumas querelas estéticas que iriam dominar as

décadas seguintes.

A crítica de cinema mais “independente” ou “marginal”, da década de 1950, era

designada pelos setores mais próximos do regime como “os profetas da desgraça”

(COSTA, 1991, p. 112), assim denominada pela sua proximidade às correntes

neorrealistas. Em plena crise da cinematograia portuguesa, diversas publicações

especializadas em cinema desempenharam um importante papel na denúncia da

crise e na tentativa de propor uma renovação crível. Entre as revistas mais críticas

da política cultural do governo, encontra-se Imagem (1950-1961) que, a partir de

1952, ultrapassado um discurso inicial de certa moderação, ataca e classiica o setor

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cinematográico nacional como uma “cidadela de analfabetos e comerciantes”.

Em 1954, face ao “insucesso que tem rodeado as últimas produções nacionais

apresentadas”, a revista sentenciava a morte do cinema velho com uma ideia de

esperança, exigindo uma “urgente e adequada solução” e apregoando que “este

im trágico pode gerar um princípio risonho” (ROSA, 1954).


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A leitura das revistas de cinema estrangeiras passou a ser o principal

foco de dinamização das principais tertúlias cinéilas lisboetas. Mais do que um

mero exercício individual de leitura, essas publicações europeias fomentaram a

formação de grupos constituídos por cinéilos com maiores ou menores ainidades

e cumplicidades estéticas e éticas. As tertúlias lisboetas mais célebres desses

anos 1960 eram conhecidas pelos nomes dos estabelecimentos onde tinham
lugar – Martinho da Arcada, Brasileira do Chiado, Nicola, Café Gelo, Monte Carlo

– e eram frequentadas por intelectuais, escritores, pintores, atores e encenadores

de diversas ainidades ideológicas.

Entre as tertúlias cinéilas mais reconhecidas, destacavam-se duas: a do

“Vá-Vá”, um café da Avenida dos Estados Unidos, que reunia sobretudo cinéilos e

universitários, e a do “Riba Douro”, um café da Avenida da Liberdade, frequentado

por pessoas da televisão e do Parque Mayer. A essas tertúlias icariam ligados

dois ilmes fundamentais no início da década de 1960: “Belarmino, escrito e

dirigido por dois homens do ‘Riba Douro’, Baptista-Bastos e Fernando Lopes, e

Os verdes anos, de Paulo Rocha, cuja derradeira e dramática cena se desenrola

precisamente no ‘Vá-Vá’” (Cinema Novo Português, 1985, p. 10).

As tertúlias do “Vá-Vá” e do “Riba Douro” representavam, grosso modo,

as duas principais tendências estéticas e éticas dominantes no seio dos jovens

cinéilos da década de 1960: os “formalistas” e os “realistas”.

A tertúlia do “Vá-Vá” era dominada pelo designado grupo “dos Cahiers du

Cinema”, composto por cinéilos que “proclamavam um cinema aim da nouvelle

vague francesa e que se reclamavam das teorias dos Cahiers du Cinema e da

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visão auteurista do cinema” (MONTEIRO, 2001, p. 330). Os elementos deste

grupo eram designados “formalistas” pela valorização da pesquisa formal e do

experimentalismo cinematográico tendo como objeto o próprio tratamento da

matéria cinematográica. Esses “formalistas” faziam a apologia de um cinema

visual, que desenvolvesse esteticamente uma linguagem cinematográica


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exigente e autônoma. Dentro desse grupo, havia um núcleo muito particular

formado por Alberto Seixas Santos, António-Pedro Vasconcelos e João César

Monteiro, que se autodenominavam “kimonistas”, em referência a uma obra do

japonês Kenji Mizoguchi.

Em oposição a esses “formalistas”, existia um grupo mais inluenciado

pela crítica e teoria cinematográica italiana, que defendia um cinema realista de


conteúdo social. Inluenciados pelo neorrealismo cinematográico italiano e pelo

neorrealismo literário português, esses cinéilos faziam da atividade cineclubista e

das publicações de cariz cultural e artístico os seus principais meios de airmação:

“defesa no neo-realismo italiano, do realismo mexicano, do realismo poético

francês, da sobriedade do cinema britânico, na impossibilidade de defender (e de

ver) o ‘cinema dos cinemas’: o soviético” (Cinema Novo Português, 1985, p. 20).

Ao longo dos tempos, diversos partidários dessas tendências alimentaram

acesas polêmicas estéticas e éticas. No fundo, esses cinéilos reproduziam,

em Portugal, os mais intensos debates sobre cinema que se desenrolavam em

diversas cinematograias europeias. Para o lado dos “formalistas”, o autor de

referência era André Bazin (1918-1958) e os seus jovens discípulos, enquanto

para o lado dos “realistas”, os autores de referência eram Guido Aristarco (1918-

1996), György Lukács (1885-1971) ou Antonio Gramsci (1891-1937).

2. Os cursos de formação e estágios no estrangeiro de vários aspirantes

promovidos pelo Fundo Nacional de Cinema e pela Fundação Calouste

Gulbenkian.

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Reconhecendo a inviabilidade da designada “geração dos assistentes”

em garantir a renovação do cinema português, o Estado – por meio do recém-

criado Fundo Nacional do Cinema – começou por promover medidas que visavam

fomentar a renovação na indústria nacional de cinema: abertura de concursos

públicos para a concessão de bolsas de estudo destinadas à investigação que


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visem o aperfeiçoamento técnico e artístico, à formação de jovens portugueses

em reputados estabelecimentos de ensino estrangeiros (realização, montagem,

operador de imagem, caracterização, técnico de laboratório, decoração); atribuição

de subsídios para iniciativas de fomento à formação de quadros técnicos (Curso

de Cinema do Estúdio Universitário da Mocidade Portuguesa) e a iniciativas de

produção independentes (Cineclube do Porto).

Entre 1958 e1968, o Fundo Nacional de Cinema concedeu 18 bolsas:

a. Paris (6 bolsas): João Moreira de Carvalho (1958, Imagem); Manuel Costa

e Silva (1959, IDHEC–Institute des Hautes Études Cinématographiques);

António da Cunha Telles (1959, IDHEC); Alfredo Tropa (1961, IDHEC);

Teresa Olga Monteiro Lopes (1963, IDHEC); Lídia Ferreira de Sá Gouveia

(1964, IDHEC, Decoração);

b. Londres (5 bolsas): Fernando Lopes (1959, LSFT–London School of Film

Technique); Marques Lopes (1959, LSFT); Faria de Almeida (1961, LSFT);

Eduardo Ferros (1961, LSFT); Fernando Matos Silva (1964, LSFT);

c. Madri (4 bolsas): José Joaquim Pereira (1958, Imagem); Martins dos

Santos (1959); Adriano Cardoso Nazareth (1963, Imagem); Fernanda

Pires dos Santos (1963, Montagem);

d. Outros (3 bolsas): Manuel António Fernandes (1958, Caracterização);

Maria da Glória Murteira Peres (1958, Laboratório); José Henrique da

Conceição (1958, Laboratório).

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Respondendo a diversos apelos de vozes críticas em favor de uma

intervenção da instituição no cinema, a Fundação Gulbenkian seguiu a mesma

estratégia que tinha seguido em relação a outras áreas culturais e artísticas. Além

de inanciar iniciativas pontuais (festivais de cinema, cineclubes, cinema amador),

a instituição apostou essencialmente na concessão de bolsas de formação a


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diversos jovens aspirantes a realizadores.

Entre 1961 e1974, a Fundação Gulbenkian concedeu 19 bolsas:

a. Londres (10 bolsas): Eduardo Guedes (1961-1963, LSFT); António Campos

(1961, LSFT); Abel Santos (1961, LSFT); António Escudeiro (1962-1963,

LSFT); Alberto Seixas Santos (1963, LSFT); João César Monteiro (1963,

LSFT); José de Sá Caetano (1963, LSFT); João Matos Silva (1968, LSFT);

Jorge Silva Melo (1969-1970, LSFT); António Jorge Marques (?, SFS);

b. Paris (4 bolsas): António-Pedro Vasconcelos (1961-1963, Filmologia na

Sorbonne, orientação de Georges Sadoul); António da Cunha Telles (1970);

Noémia Delgado (1973?, IDHEC); Solveig Nordlund (1973-1974, IDHEC);

c. Outros (5 bolsas): Manuel Guimarães (1963); Teixeira da Fonseca (1964,

RAI, Itália); Manuel Costa e Silva (1966, Estados Unidos); Elso Roque

(1967); António da Cunha Telles (1969, Estados Unidos).

Outras formações no estrangeiro, num total de 8 bolsas: Artur Ramos

(1951, IDHEC, bolsa paga pelo governo francês); Paulo Rocha (1959-1961,

IDHEC, expensas próprias); José Fonseca e Costa (1961, Itália, estágio com

Antonioni, expensas próprias); Luís Couto (1960?, Madri); Luís Galvão Teles

(1968-1970, Paris); Eduardo Elyseu (?, LSFT); Frederico Ferrão Katzeinstein (?,

LSFT); Manuel Orvalho Teixeira (?, LSFT).

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Os resultados dessas formações foram evidentes. Entre os bolsistas dessas

duas instituições está inscrita a maioria dos nomes dos que participaram do processo

de renovação do cinema português, que caracterizou as décadas de 1960-1970.

Para além dos cursos de formação e estágios no estrangeiro, diversos


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jovens cinéilos rumavam a Londres e Paris para se documentarem ou recrearem.


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Entre as paragens obrigatórias desses jovens cinéilos encontravam-se as

principais Cinematecas, salas de cinemas emblemáticas (National Film Theatre,

em Londres, ou Cinema Gaio, em Paris) e prestigiados espaços culturais. António-

Pedro Vasconcelos (2008) relembra:

quando comecei a perceber que o cinema ia ser a minha vida,


a primeira coisa que quis foi ver os ilmes do passado que
haviam inspirado os cineastas que eu admirava. Não havia
vídeo, em Portugal a televisão estava a começar, havia a
censura, e a Cinemateca raramente fazia retrospectivas.
Restava ir para Paris, onde, graças ao génio visionário de
Henri Langlois, que tinha ‘inventado’ a Cinemateca, era
possível ver todos os ilmes do mundo.

Fernando Lopes refere também que, em Londres, para além da escola


de cinema, era frequentador assíduo do “National Film Theatre onde, inalmente,
pude ver todos os clássicos que sonhava”. Alberto Seixas Santos lembra
que, durante a sua estada em Paris, ele e António-Pedro Vasconcelos eram
espectadores assíduos das “três sessões da Cinemateca Francesa” (Cinema
Novo Português, 1985, p. 73, 145).

Num inquérito promovido pela Cinemateca Portuguesa, em 1985,


a propósito da primeira retrospectiva do novo cinema português, uma das
principais questões dizia respeito às inluências de cinematograias estrangeiras:
“Considera que os seus ilmes (tanto ao nível da produção, como ao nível
estético) se iliam, ou foram inluenciados, em movimentos internacionais?”
(Cinema Novo Português, 1985, p. 71-81).

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Dos dez inquiridos, a resposta foi unânime: todos sentem que a sua

produção cinematográica da época sofreu inluências do que lerem ou viram.

Manuel Faria de Almeida: “À distância, sou capaz de pensar que o ilme terá sido

inluenciado por algum cinema e sobretudo por alguma televisão inglesa. É natural:

vivi muito tempo na Inglaterra” Fernando Lopes:


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Resposta rápida e telegráica: Considero. Obviamente pela


nouvelle vague, lateralmente pelas teorias dos saudosos
Cahiers de capa amarela. É. Isso mesmo: a, hoje, tão
denegrida política dos autores. Tenho uma pré-história: o neo-
realismo (Rosselini, Rosi), o free-cinema, a televisão. Como
dizia o Glauber: câmara na mão e pé no chão. Depois descobri
o Dreyer, o Renoir, o Mizoguchi: foi o susto metafísico, de que
ainda não saí… Como pelo meio havia os musicais americanos,
mais o Resnais da Muriel, o inquietante Godard que me remetia
a Welles, podem imaginar o que tem sido a minha vida: basta
ver o meu último ilme…

Paulo Rocha:

Os verdes anos têm muitas homenagens subliminares ao


cinema japonês, mas há nele um desespero suicida quase
expressionista que lhe dá um peso e um negrume que vêm
da minha experiência directa das pessoas e dos lugares, sem
mediações artísticas externas. […] [Em Mudar de vida] a imagem
é pesada e monumental, volta a estar perto dos japoneses e de
algum cinema russo.

Alberto Seixas Santos:

Todos os ilmes portugueses do período mantém, de forma


indireta ou explícita, relações com métodos de produção ou

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opções estéticas que se iam airmando com a obra de alguns


cineastas estrangeiros. Pode ler-se a passagem de gente tão
díspar como Godard e Truffaut, Bergman e Cassavetes, Leacock
e Mizoguchi pelos ilmes determinantes de Paulo Rocha,
Fernando Lopes e António Macedo. O cerco, por exemplo, é
esteticamente apenas um outro modo de praticar o aforismo
de Chabrol: a nova vaga não é mais que uma transformação
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química do neo-realismo. Os brandos costumes são já outra


coisa. Pensados entre 70/71, realizados parcialmente em 72,
ligam-se por parentesco à segunda ruptura que Godard introduz
no cinema francês por volta de 67/68. Pelo fundo didáctico, a
irmã mais nova dos Brandos inscreve-se na família de Chinoise,
atravessa-as o mesmo fantasma da revolução, une-as a mesma
impotência em praticarem-na.

Fernando Matos Silva: “Sim. Jean Rouch como método e ética de ilmar”.

Ernesto de Sousa:

Tem-se dito que o Dom Roberto foi inluenciado pelo neo-


realismo italiano. Não o penso. Do neo-realismo havia a
experiência literária portuguesa: a qual foi para nós, na fase de
preparação, como que um fantasma com o qual tivemos que
lutar. Em resumo, como muito bem escreveu Sadoul, o ilme
pretendia ser, e foi, uma óbvia homenagem a Charlie Chaplin. E
daí, o seu internacionalismo.

António da Cunha Telles: “Sem dúvida, os meus ilmes foram inluenciados

por tudo o que vi no cinema e me interessou, mas de forma alguma conscientemente

e premeditadamente retomei quaisquer ideias ou imagens”. Luís Galvão Teles:

Bestiaire foi feito em França, em condições de produção


diicilmente imagináveis entre nós porque pressupõem a
existência de uma indústria que é minada por dentro por forma a
permitir o aparecimento de um cinema marginal.

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De outros pontos de vista – que não apenas o estético – ambos


os meus ilmes desse período são inluenciados pelo movimento
de repensar o cinema, em particular a sua linguagem e a sua
função, que a Nouvelle Vague, na práctica, e os Cahiers du
Cinéma, na teoria, tinham provocado e desenvolvido.
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Alfredo Tropa:

Inluenciados, sim. Claro que por 150 ilmes que via àquela época
por ano. Hoje não ultrapasso 70/80 ilmes/ano e 600/700 horas
de televisão. E, já chega!!! É mais fácil dizer aquelas por quem
não julgo ter sido inluenciado: Godard, S. Lumet, Antonioni,
Bardem, Fellini e muitos mais; mas, fui profundamente amarrado
pelo documentarismo inglês e a escola de New York em termos
de produção.

António-Pedro Vasconcelos:

Está respondido: o neo-realismo (Rosselini sobretudo), a


Nouvelle Vague (Godard, sobretudo), mas também o cinema
americano (Preminguer, sobretudo, de que eu queria imitar
os planos-sequência mas com meios pobres). E outras duas
inluências decisivas: Rouch e sobretudo o genial sketch do Paris
vu par…, e um realizador que desapareceu não sei bem porquê
nem para onde: Peter-Emanuel Goldman, um jovem americano
exilado, fugido da guerra do Vietnam, que fez um ilme genial na
Europa, com Pierre Clementi, chamado Will of ashes e que me
deu o tom decisivo da fotograia e da voz off.

Para além da importação de referências e inluências, o novo cinema

português também manteve uma importante relação de exportação com os

diversos espaços cinematográicos europeus. Curiosamente, se as vivências

estrangeiras foram fundamentais na formação de uma estética cinéila, foram

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também os cânones estrangeiros seguidos pelos jovens cineastas os principais

responsáveis pelo alheamento progressivo do público:

Sucede que nós tínhamos tido uma aprendizagem em escolas


européias, em Paris e Londres, onde entrámos em contacto
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com o cinema europeu da nossa geração: Nouvelle Vague, Free


Cinema e Cinema Novo. Era inevitável que tentássemos fazer
em Portugal um cinema sintonizado com os códigos desses
movimentos, quer ao nível da narrativa, quer ao nível da imagem.
Sucede que, muitas vezes por razões censórias, esse cinema
não chegou a Portugal e o público português se achava por isso
exclusivamente habituado aos códigos do cinema americano, o
que entrava em conlito com as nossas propostas (Cinema Novo
Português, 1985, p. 142).

A diiculdade de distribuição de diversos ilmes estrangeiros em Portugal


é ditada essencialmente pela ação da censura ou pelo monopólio do cinema
americano, “que poderiam ter ajudado a transformar o gosto do público e a
encaminhá-lo para os nossos”. O “desfasamento total” entre o público e os
cinéilos do novo cinema, segundo Fernando Lopes, residia no fato de faltar ao
público o “estágio” no estrangeiro que permitira abrir novos horizontes aos jovens
realizadores em diversos países da Europa (Cinema Novo Português, 1985, p. 62).
Mas, se o mercado nacional não prestou atenção ao novo cinema, o mesmo não
se passou com o público internacional. A internacionalização do cinema português
era um dos objetivos fundamentais para essa geração de jovens cineastas.

Ala-Arriba (1942), realizado por Leitão de Barros, foi o primeiro ilme


português premiado num certame cinematográico internacional, no caso recebeu
a Taça Volpi da Bienal de Veneza. Em 1946, o ilme Três dias sem Deus, de Bárbara
Virginia, esteve presente na primeira edição do Festival de Cannes. Até 1949,
data da retirada de António Ferro da direção da política cultural do Estado Novo
desde a sua institucionalização, a estratégia de expansão para o cinema nacional
investia na formação de um mercado cinematográico lusófono que passava pela

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colônia portuguesa no Brasil e pelas possessões coloniais na África. Respeitando


a estratégia diplomática do regime, o cinema português esteve durante décadas
de costas voltadas para a Europa, criando assim uma clivagem que só muito
tardiamente iria ser superada.
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Na década de 1950, o cinema português apenas conta com a presença de


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Rapsódia portuguesa (1958), no I Festival de Cine Iberoamericano, e Filipino de


Bilbau, em 1959, e com a exceção chamada Manuel de Oliveira que, com o Pintor
e a cidade, recolhe elogios em Paris e Veneza, e conquista um importante prêmio
no festival irlandês de Cork. Em 1961, no II Encontro de Cinema para a Juventude,
em Cannes, Oliveira recebeu um diploma de honra pela apresentação de Aniki-
Bóbó, um ilme estreado há duas décadas.

Dos ilmes que integram o corpus do novo cinema português, foram


diversos os selecionados ou premiados em vários certames cinematográicos
internacionais:

• Dom Roberto (1962), de Ernesto de Sousa – Menção do Júri para Melhor


Filme para a Juventude, em Cannes/1963;

• O acto da Primavera (1963), de Manuel de Oliveira – Medalha de Ouro, em


Siena/ 1964;

• Os verdes anos (1963), de Paulo Rocha – Prêmio Vela de Prata, em


Locarno/1964; Cabeza de Palenque, em Acapulco/1965; Menção Honrosa,
em Valladolid/1965;

• Belarmino (1964), de Fernando Lopes – Prêmio no Festival Molins Del


Rey, Espanha/ 1964;

• As ilhas encantadas (1965), de Carlos Vilardebó – Prêmio da Crítica, em


Hyéres/ 1965;

• Domingo à tarde (1966), de António de Macedo – Diploma de Mérito no


Festival de Veneza/1965;

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• Nojo aos cães (1970), de António de Macedo – Prêmio FICC, em


Benaldena/1970; Prêmio Valores Humanos, em Valladolid/1970;

• Pedro só (1972), de Alfredo Tropa – Menção Especial do Júri, em


Valladolid/1972;
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• A promessa (1972), de António de Macedo – Primeiro ilme português na


seleção oicial de Cannes/1973; Mujol de Oiro, em Cartajena/1973; Prêmio
especial, em Teerã/ 1974;

• As horas de Maria (1976), de António de Macedo – Prêmio de Melhor Atriz,


em Biarritz/1979; Menção especial, em Lecce/1979;

• Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro – Prêmio


Especial do Júri e Prêmio da Crítica, em Toulon/1976; Grande Prêmio, em
Manheim/1977; Menção especial, em Lecce/1979;

• Antes do adeus (1977), de Rogério Ceitil – Menção Honrosa, em San


Remo/1978;

• A confederação (1977), de Luís Galvão Teles – Menção Honrosa, em San


Remo/ 1978; Menção, em Pesaro/1978;

• A lei da terra (1977), da Cooperativa Grupo Zero – Menção Honrosa, em


Leipzig/ 1977;

• Torre Bela, cooperativa popular (1977), de Thomas Harlan – Grande


Prêmio Documental, em Lille/1977;

• Música para si (1978), de Solveig Nordlund – Prêmio do Júri, em Sitges/1979.

Além dessas distinções avulsas, o novo cinema português conquistava

além-fronteiras o prestígio que o seu público lhe negava. Impressionado com a

presença importante de Fonseca e Costa e do seu Recado em San Remo, o

crítico francês Jean Gili dedicou a IX edição do Festival de Cinema de Nice ao

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Jeune Cinema Portugais, em março de 1972: uma seleção de ilmes, que incluía

as primeiras produções de Cunha Telles e do Centro Português de Cinema,

ilmes de João César Monteiro, António Campos, Cunha Telles e Rogério Ceitil,

e uma retrospectiva apreciável de Manuel de Oliveira (AURORA, 1972; VIEIRA,

1972). Mais do que uma mostra, esta iniciativa deu uma visibilidade midiática
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ao novo cinema no mercado internacional que o cinema português nunca havia

conquistado até então.

Considerações inais

A heterogeneidade de proveniências cultural e socioeconômica das diversas

iguras – acesso à cultura, os hábitos de leitura e outros aspectos conjunturais –

inluiu signiicativamente na forma de essa geração de cineastas, revelados nas

décadas de 1960-1970, entender e conceber o cinema. De uma forma natural,

os realizadores do novo cinema português apresentam inluências e referências

cinéilas diversas:

as discussões sobre autores eram, então, apaixonadas. O


António-Pedro sempre foi um rosselliniano e um premingueriano.
O Seixas batia-se pelo Fritz Lang. O João César era doido, com
cineastas muito especiais na cabeça, mas também era muito
rosselliniano e dreyeriano.” Por vezes, Lopes reconhece as
diferenças eram mesmo inconciliáveis e violentas: “Mas, as idéias
dele [António de Macedo], em cinema, eram insustentáveis,
sobretudo quando vinha airmar que o Godard era um atrasado
mental. Nessas alturas, o António-Pedro tinha vómitos, o João
César queria matá-lo, o Seixas Santos desprezava-o. A mim
fazia-me uma enorme confusão, mas por mais que discutisse
com ele nunca conseguíamos ainar ou obter a menor sintonia.”
Inequivocamente, “o ponto comum era, de fato, a defesa de um
cinema português com existência estética e social” (Cinema
NovoPortuguês, 1985, p. 61).

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Paulo Manuel Ferreira da Cunha
Cinema, crítica e festivais

Em 1964, o sociólogo português Adérito Sedas Nunes (2000, p. 50)

não tinha dúvidas em concluir que a “modernização” cultural e sociológica que

a sociedade portuguesa então vivia se devia, em grande medida, à crescente

abertura às inluências exteriores, sobretudo europeia: “acesso à visão, e mesmo

à vivência imaginária, de outras sociedades, outras condições de vida, outras


-
As origens do novo cinema português: o turismo cinéfilo e o novo cinema português

formas de pensar e agir”.

A passagem de vários indivíduos por sociedades europeias permitiu que os

“horizontes mentais” e o “campo social de referência dos seus comportamentos,

ideias, aspirações e decisões” se abrissem a “uma nova dimensão” e assumissem

“novos elementos e perspectivas” (NUNES, 2000, p. 51). O sociólogo remata com

a seguinte conclusão: “ocorre como que uma progressiva diluição ou evanescência


das fronteiras enquanto limites sociais e culturais” e, cada vez mais, os indivíduos

tendem a agir, pensar, sentir e desejar, não já em função


apenas de estímulos, imagens, oportunidades, solicitações
e concepções internos à sociedade onde nasceram e onde
estão, mas também em função de estímulos, imagens,
oportunidades, solicitações e concepções recebidos do
exterior da sociedade, ou nesse exterior apercebidos, através
do contínuo luxo de informação.

No caso particular dos jovens cinéilos, a importação de “estímulos, imagens,

oportunidades, solicitações e concepções” foi fundamental na materialização de

uma oposição fílmica que, em termos escritos, vinha já sendo divulgada desde

a década de 1950. O contato com cinematograias estrangeiras, desde as obras

clássicas aos movimentos de ruptura, forneceu, aos cinéilos mais inconformados

com o cinema português, uma base de comparação em que estes reviam as suas

objeções culturais e estéticas.

217
Paulo Manuel Ferreira da Cunha
X Estudos de Cinema e Audiovisual Socine

Referências bibliográficas
-

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As origens do novo cinema português: o turismo cinéfilo e o novo cinema português

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