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O menino de seu avô perfil

Aviador
de formação, cineas-
Itinerário afetivo revela a trajetória ímpar de um homem das artes
ta, fotógrafo, inventor, dese-
nhista e arquiteto, mas, sobretudo,
um apaixonado por cinema, Batista
fundou no Recife, em 1967, a Nacional
Filmes do Brasil, estúdio que produziu,
naquele mesmo ano, seu primeiro longa-
metragem, A Virgem dos Lábios de Mel. Anos
antes, em 1955, Batista já havia projetado e
fundado, no bairro do Arruda, o Cine Olym- No fim dos anos 1970, Batista criou mais
pia, que exibiu na capital pernambucana uma produtora, a Filmerama. Não chegou a
clássicos como Os Pássaros (1963), de Alfred produzir nenhum filme com o novo empre-
Hitchcock, Os Três Mosqueteiros (1948), com endimento, mas deixou roteiros adaptados
Gene Kelly e Lana Turner no elenco, entre de A Ilha Perdida, romance de Maria José Du-
Por Micheliny Verunschk outros filmes. pré, autora também de Éramos Seis, e outro
intitulado Fausto, o Amor e o Diabo, baseado
Josias Saraiva Monteiro Neto foi batizado com o nome de um avô e tem fascinação pela vida Em 1969, o cineasta dirigiu mais um longa, na obra de Goethe. Seu fascínio por ficção
e obra do outro, que ele praticamente não conheceu, mas que mobiliza sua atividade criativa sobre a história do Brasil, intitulado O Gi- científica extrapola a grande tela, tanto que
atual. Pedro Teófilo Batista, pai de sua mãe, morreu quando o menino tinha apenas 2 anos, mas gante que Desperta. Para esse filme chegou planejou invenções que, na época, seriam
as histórias em torno dele foram suficientes para que estivesse sempre presente na vida de Josias. a construir uma caravela em tamanho real dignas de Os Jetsons, famosa série de ani-
“Todos na família falavam desse homem inventivo, criativo, quase fabuloso. E também me falaram num estúdio no Bairro do Recife. Nenhum mação futurista da década de 1960. Uma
que éramos muito apegados. Que quando eu chorava só ele conseguia me acalmar”, conta. de seus filmes chegou a ser exibido, no en- delas foi uma lanchonete inteiramente au-
tanto Batista deixou um arquivo impressio- tomatizada, desde a produção até o aten-
Quem vê Josias, aos 21 anos de idade, ainda com seus longos cabelos de adolescente, nem nante. São roteiros, storyboards, panfletos, dimento. Localizada na Avenida Conde da
imagina a empreitada que ele abraçou. Com amor, obstinação e, sobretudo, disciplina, esse centenas de croquis de cenários, diagramas Boa Vista, uma das mais movimentadas
estudante de jornalismo vem resgatando a trajetória de Batista, uma espécie de Leonardo de composição cênica, recortes de jornais, da capital pernambucana, tornou-se
da Vinci pernambucano, ao mesmo tempo que revela uma página esquecida, e pitoresca, do fotografias. A única coisa que seu neto ain- um ponto agitado durante al-
cinema nacional.“Meu avô foi uma das pessoas, talvez a única, que trabalharam em praticamente da não encontrou foram os negativos das guns meses de 1974.
todos os níveis da cadeia do audiovisual em Pernambuco desde o fim da década de 1950. Ele obras, embora saiba, por meio da documen-
fundou e administrou um cinema, foi diretor, cenógrafo e repórter cinematográfico, trabalhou tação existente, que elas foram realizadas.
com animação e também em comerciais, entre outras coisas. Foi um dos responsáveis pela Os dois filmes foram fotografados por Firmo
montagem da TV Gazeta, em Maceió, Alagoas, em 1975. Quando se fala, porém, em registros Neto, referência do cinema nacional da fase
históricos, não existe uma linha sequer sobre sua importância.” conhecida como Ciclo do Recife [ver box].

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Em família: Batista (o primeiro à esquerda) posa para foto do aniversário do neto | imagem: arquivo pessoal Josias, hoje: desejo de reencontro com o avô | imagem: Beto Figueiroa
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Listas de inventos de Pedro Teófilo Batista, avô de Josias | imagem: Ricardo Bolognini
Croquis desenhados por Batista | imagem: Ricardo Bolognini

Sociedade do cinema silencioso

Audiovisual pernambucano do início do sécu-


lo XX: história a descobrir

Imagine a seguinte cena: homens de cha- Aitaré foi uma obra pioneira em levar os te-
péu, mulheres elegantes, fila na porta de um mas nacionais para o cinema, pois, até então,
Paixões em comum cinema. Dia de estréia e todos ansiosos pelo o Brasil tentava copiar o star-system america-
filme que daí a pouco vai começar. A fachada no. A narrativa do filme gira em torno de um
Há cerca de três anos, Josias realiza um tra- enfeitada de bandeirolas e, pelo chão, folhas pescador, sua amada e os conflitos entre va-
balho minucioso de pesquisa e catalogação Cuba, o Mamute Siberiano (Vicente Ferraz, de canela espalhando um perfume adocica- lores tradicionais e modernidade, embates
do material deixado por Batista. Ele conta 2005). Medir até onde iriam nossos interes- do no ar. Uma bandinha entretendo o públi- ainda presentes no imaginário do atual cine-
que, no início, a visão que tinha do avô era ses comuns.” co antes do início da película. O que parece ma pernambucano. Outro êxito de bilheteria
mitificadora, chegando mesmo a colocá- ter sido retirado de um filme como Um Dia e de crítica, A Filha do Advogado (1926), de
lo na categoria de “gênios injustiçados” da As paixões compartilhadas por avô e neto para Relembrar (James Foley, 1995) aconte- Jota Soares, chegou a ser exibido em mais
humanidade. No entanto, à medida que foi já sinalizam que irão render frutos. Mesmo cia, de fato, no Cine Royal, em Pernambuco de 20 cinemas do Rio de Janeiro, então ca-
aprofundando sua investigação, pôde ter sem Batista ter sido conhecido ou finalizado do início do século XX, e é apenas um indi- pital federal.
uma postura mais crítica e realista. Para Jo- seus projetos, Josias conseguiu como pou- cativo de como é antiga a relação de amor
sias, a personalidade excêntrica de Batista, cos chamar a atenção da imprensa do seu entre o pernambucano e a sétima arte. Durante esse período dourado, as produtoras
que também propagou uma filosofia espi- estado. Organizou, em junho, uma coletiva se multiplicaram. Aurora-Film, Vera Cruz-Film,
ritualista denominada Cosmocracia, o desa- com os principais veículos de mídia impres- Produzir filmes no Brasil nunca foi uma tare- Planeta-Film são alguns dos nomes que fize-
creditava. E isso talvez explique seu esqueci- sa e apresentou Batista a Pernambuco. Os fa fácil. Menos ainda nos tempos do cinema ram essa história, além de diretores e produ-
mento até aqui. passos seguintes não são menos ousados. mudo. Portanto, não é difícil imaginar as di- tores como o próprio Gentil Roiz, Firmo Neto,
Josias escreve um livro a seu respeito e pre- ficuldades de fazer cinema em Pernambuco Jota Soares, Edison Chagas. Eclético, esse ci-
“Todo esse empreendimento tem como tende, em 2009, quando se comemoram os naquela época. Mas era feito e com qualida- clo produziu desde Filho sem Mãe (1925), fil-
ponto de partida o desejo de reencontro 80 anos do cineasta, montar uma exposição de. O chamado Ciclo do Recife, iniciado em me perdido de Tancredo Seabra sobre a saga
com meu avô e o reconhecimento de mim com o vasto material que tem em mãos. A 1923, produziu, ao longo de oito anos, nada de um cangaceiro, até História de uma Alma
nele. Tudo o que faço são formas de manter produção de um documentário também menos do que 13 longas-metragens de en- (1925), de Eustórgio Wanderley, baseado na
contato, de dialogar com essa pessoa refe- está em pauta. Muito embora ainda não redo e mais sete filmes de flagrantes da rea- biografia de Santa Teresa de Lisieux. Encerra-
rencial. Reconheço-me nele. Somos muito disponha dos recursos e parceiros necessá- lidade. Desses longas, um dos mais conheci- do em 1931, com filmes inacabados de Alfre-
parecidos. Uma das grandes surpresas foi rios para dar vida aos projetos, Josias pare- dos foi Aitaré da Praia (1925), com direção de do Carneiro, o Ciclo do Recife é só a ponta de
descobrir que muitos dos livros que li ele ce ter herdado a energia de Batista. “Sua Gentil Roiz. um roteiro que se iniciava e que iria mostrar
leu também. Gostaria de assistir com ele história tem uma enorme capacidade sua cara novamente no Ciclo do Super-8, de
aos filmes de Tarkovski, como Solaris (1972), de mobilização. Acredito nisso e 1973. Mas aí já é outra história.
por exemplo. Saber o que ele acharia de Soy farei tudo como ele faria.”

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