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Saulo Pereira de Mello, homem que salvou Limite

Walter Salles

A notícia incendiou os corredores da Faculdade Nacional de Filosofia.


“Limite”, de Mário Peixoto, seria projetado no auditório da faculdade. O
filme havia sumido de circulação desde sua exibição inaugural no Chaplin
Club, em 1931. Entre os jovens estudantes que o descobriram naquele dia
em 1953, estava Saulo Pereira de Mello. Tinha 21 anos, a mesma idade de
Mário ao dirigir o filme. Um mar cintilando à contraluz tomou a tela,
fundindo-se à imagem de uma mulher olhando o espectador, algemas nos
punhos. Ao longo da projeção, Saulo sentiu um arrebatamento que até então
desconhecia. Haveria um antes e depois daquela experiência em sua vida, e
na história do filme.

Tudo em “Limite” o encantou. Em suas palavras: “o desejo utópico do


homem finito em apreender o mundo infinito”; “a organização da história de
três náufragos, com voltas periódicas ao barco em que buscam sobreviver”;
“o fluxo de imagens luminosas, determinado por uma rítmica ousada e
complexa”; “‘Limite’ não reproduz o visível, torna visível”.

Plínio Sussekind Rocha, o professor de física que havia organizado a sessão,


percebeu o estupor de Saulo frente a “Limite”, e lhe perguntou à queima-
roupa: “O filme está se perdendo. Você não vai fazer nada? Vai deixar que
um filme como esse desapareça?” A resposta a essas perguntas preencheria
toda a vida de Saulo Pereira de Mello.

“Limite” foi filmado em nitrato, um negativo inflamável que pode entrar em


autocombustão. As poucas cópias que restavam estavam em frangalhos. O
jovem resolveu restaurar o filme, reproduzindo-o fotograma por fotograma,
prendendo sua Pentax numa traquitana montada em casa. Chegava do
trabalho e atravessava a madrugada na restauração minuciosa da película.
Certa vez, quando voltava de São Paulo com parte do negativo, o avião
enfrentou uma tempestade tenebrosa. No auge da turbulência, só conseguia
pensar numa coisa: “Se esse avião cair, é o fim de ‘Limite’”.

O primeiro restauro, que Saulo completou no início dos anos 70 e cuja


autoria fez questão de dividir com Plínio Sussekind, é um dos feitos mais
prodigiosos da história do cinema brasileiro. O filme de Mário Peixoto pôde
finalmente ser visto por gerações que até então só tinham ouvido falar dele.
Muitos de nós por meio de Vinicius de Moraes, admirador de primeira hora
do filme. Na árvore genealógica do cinema, escreveu Vinicius, “Limite” era
como um passarinho que pousava em um dos seus galhos e voltava a alçar
voo. Um filme inclassificável, essencialmente livre.

A experiência do restauro permitiu a Saulo criar uma ferramenta única: o


“Mapa de ‘Limite’”, um livro que revisitava a obra fotograma por fotograma.
Editado pela Funarte em 1976 e hoje esgotado, o “Mapa” é uma
preciosidade. “Para Saulo, era essencial viver o filme dentro de si em todas
suas formas. Ver, ver, rever até encontrar algo raro e sublime”, diz Filiippi
Fernandes Silva, seu assistente no Arquivo Mário Peixoto por mais de 12
anos.

Os anos de reconstituição de “Limite” também marcaram a imersão de Saulo


na fase que ele considerava a mais criativa da história do cinema, a do final
do cinema mudo. Venerava “A paixão de Joana d’Arc” de Dreyer, “A mãe”
de Pudovkin, “O homem de Aran” de Flaherty, “Luzes da cidade” de
Chaplin, “Outubro” de Eisenstein. Os irmãos de “Limite”, segundo Saulo.
Ele escreveu inúmeros ensaios sobre esses filmes.

O cinema era uma matéria viva, que merecia ser compartilhada. Ao longo
dos 22 anos em que Saulo esteve à frente do Arquivo Mário Peixoto, sempre
ao lado de Ayla, companheira de vida, cerca de cem teses de mestrado ou
doutorado foram escritas a partir da fortuna crítica que ele amealhou. Editou
toda a obra poética de Mário Peixoto e o seu romance “O inútil de cada um”,
com a ajuda preciosa de Roberta Gnatalli. Fazia questão de tornar
disponíveis todos os livros que falassem de “Limite” — bem ou mal, não lhe
importava. Roberta lembra como Saulo “gostava de distribuir seus achados,
suas ideias e teorias, e fazia isso largamente”.

Promovia sessões dos filmes que amava para quem se interessasse, de


estudantes a roteiristas. As discussões entravam noite adentro. Lembro de
dois momentos particulares. Em “A paixão de Joana d’Arc”, na cena em que
a protagonista ouve sua condenação à morte, Saulo prendia o fôlego. A
câmera em close-up se atarda no rosto da protagonista, e uma mosca pousa
nela. A atriz não esboça reação. A incorporação do acidente (o inseto) e o
estado de ausência da personagem revelam a magnitude do drama interior,
transcendendo a esfera do real, nos apontava Saulo.

A projeção de “A linha geral” de Eisenstein lhe permitiu mostrar que mesmo


em um filme imperfeito era possível apontar algumas sequências
extraordinárias. A revolta dos camponeses contra as autoridades religiosas
que haviam acenado com uma falsa promessa de chuva era uma delas. A
escalada da violência na insurreição contra os embusteiros é uma aula de
direção e de montagem, que deixava os olhos de Saulo brilhando. Foi nessa
noite que ele confessou: “Não gosto de cinema. Gosto de certos filmes.”

No início dos anos 2000, o primeiro restauro de “Limite” começou a se


deteriorar. Alguns rolos já estavam avinagrados. Tinha início a segunda luta
para salvar “Limite”. Por sorte, Saulo contou com a cumplicidade e a rara
competência de Patricia de Filippi, então diretora técnica de restauro da
Cinemateca Brasileira. “Começamos juntos a montar o quebra-cabeça do
filme: diferentes materiais e montagens, uso de películas com bases diversas,
verdades e mentiras, uma escavação sem tamanho.”

Foram mais dez anos de trabalho, com o apoio da Film Foundation de Martin
Scorsese e da Cinemateca de Bolonha, até reencontrar o mesmo contraste em
nitrato, que só Saulo conhecia. Ele era, àquela altura, a memória viva do
filme. Quando Saulo aprovou o restauro digital, no último dia de trabalho,
Patricia lembra que “ele antecipava cada plano, dizendo o que seria
importante notar no próximo — e no próximo e no próximo.... foi uma
provação de duas horas. Não era em nitrato, mas o grão estava ali, as altas e
baixas luzes e os meios tons também”.

E então houve a batalha dos créditos. “Saulo foi muito generoso em querer
nossos nomes junto ao dele na cartela de créditos. Insistimos que apenas ele
deveria ser creditado”, lembra Patricia. “Saulo respondeu com uma cartinha
inspirada na famosa frase da peça ‘Henrique V’, de Shakespeare: ‘We few,
we happy few, we band of brothers’... E assim foi. Nós poucos e contentes,
bando de irmãos, vencendo o combate.”

"Limite": em 2015, críticos elegeram longa de Mário Peixoto o melhor filme


brasileiro

Haveria muito mais a dizer de Saulo. Do seu papel polinizador,


influenciando jovens cineastas. Das suas conversas com Eduardo Coutinho,
que dividia ideias com ele, entre dois cafés. Dos pequenos mimos com que
brindava as amigas de trabalho. O mais popular era a goiabada caseira que
ele fazia, “pecadillo” cuja receita era tão singular que acabou publicada nas
páginas da revista “Piauí”.

Aos 80 e poucos anos, tinha múltiplos projetos. Montou uma “Cinemateca


mínima”, com cenas de 14 filmes que julgava fundamentais. Terminou o
mapa de “Terra”, de Dovzhenko. Planejava melhorar o “Mapa de ‘Limite’”,
e preparar os mapas de “O homem de Aran” e “Luzes da cidade”. Seriam
ainda mais essenciais, sem a descrição dos fotogramas. O Alzheimer e a
Covid-19 não permitiram.
Neste momento em que somos todos um pouco náufragos como os
personagens do filme de Mário Peixoto, e temos a noção de nossa extrema
fragilidade em um país à deriva, a vida e obra de Saulo Pereira de Mello são
um alento. Até o fim ele se manteve fiel a si mesmo. Guardou o rigor, a
intransigência e a generosidade do rapaz de 21 anos que um dia viu “Limite”
na tela imensa do cinema, e se apaixonou.

Walter Salles é cineasta.

https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/

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