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Vítor Rodrigues Ferreira DRE 114.084.

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Nanook, O Esquimó: A verdade do outro que tentamos apreender com a câmera ou


com o caderno de campo.

A partir dos primeiros filmes projetados pelos Irmãos Lumiere – como L’Arrivée D’un
Train à La Ciotad, de 1895 – e do ensaio inaugural de ficção produzido por Georges Méliès – Le
Voyage Dans La Lune, de 1902 – o cinema começou a dar seus primeiros passos. Na segunda
década do século XX, o cinema de ficção ainda definia suas bases, enquanto, por outro lado, boa
parte das filmagens se dedicava ao registro de expedições imperialistas e de expansão territorial
interna dos Estados Nações. No Brasil, Thomaz Reis é um dos principais nomes responsável pela
produção desses registros, incumbido pelo exército de produzir imagens da Comissão Rondon, que
tinha como missão explorar o Centro-oeste e o Norte do país. Em linhas gerais, esses filmes traziam
um conjunto de cenas que não necessariamente possuíam relação entre si, mas apresentavam o
mundo “recém-desbravado” ao expectador a partir da perspectiva do viajante-explorador (Tacca,
2001).
Nesse período, entre 1913 e 1916, o explorador Robert Flaherty participou de um total de
quatro expedições em busca de minério de ferro na costa leste da Baía de Hudson, no Canadá, onde
teve contato com o povo Inuik. Durante esses anos, registrou uma série de cenas dos esquimós com
o equipamento de filmagem da expedição. O material filmado, que depois foi considerado amador
pelo autor, pegou fogo em um acidente. Restou somente uma copia de trabalho, o suficiente para
garantir a Flaherty financiamento para retornar aos Inuik com o único objetivo de realizar novas
filmagens, dessa vez com algumas ideias em mente e influenciado pelas tendências mais recentes
dos filmes de ficção.
O resultado foi “Nanook of the North”, um filme de 1922 reconhecido como o primeiro de
seu gênero por dar uma narrativa ao que antes eram imagens desconexas, meramente descritivas do
exótico. Isso foi possível porque Flaherty não se propôs a simplesmente filmar as cenas curiosas
que encontrava pela frente, rituais aleatórios, belas paisagens e espécies inusitadas e de fauna e
flora. Nanook foi resultado de anos de convívio com os Inuik (de 1913 a 1919) e de maturação de
ideias, após o incêndio, o que permitiu a Flaherty refletir sobre aquilo que estava filmando e
desenvolver uma narrativa com um tema definido, a luta do homem contra a natureza: a fome, o frio
e a vida selvagem. Flaherty inverteu o protagonismo do filme, tipicamente atribuído ao viajante
ocidental, e o projetou no outro, no nativo, em Nanook. Ao fazer isso, trouxe um elemento
característico da ficção que até então não esteve presente nos filmes documentais (de cenas
cotidianas ou de explorações): a presença de um personagem. É a partir desse diálogo do real com o
imaginado, tendo como referencia a narrativa ficcional, que Nanook do Norte deu origem a um
novo gênero do cinema, o filme documentário.
Flaherty construiu a narrativa do filme através da encenação e de técnicas recentes de
montagem. Com os equipamentos de filmagem da época difíceis de transportar – Câmera Akeley e
os rolos de filmes que, eram diariamente revelados –, seria impossível registrar um longa de forma
completamente espontânea, os movimentos precisavam ser premeditados. Os planos eram,
portanto, dirigidos, recortados e reorganizados na montagem para se criar uma noção de conexão
entre as cenas e passagem de tempo. Na prática, Flaherty não estava preocupado com reproduzir
exatamente o que viu entre os esquimós; pelo contrário. Ele os dirigiu como atores, chegando a
substituir a esposa de Nanook por outra mulher da aldeia. Mesmo a caça à morsa, questão central no
filme, além de não ser uma prática corriqueira entre os esquimós, já não era feita há décadas com o
arpão, tradição esta que havia sido substituída pelo uso de rifles. Hoje, tendemos a ficar
incomodados com a encenação em um o filme documentário, mas em 1922 essas fronteiras não
estavam definidas. O documentário, enquanto gênero, só se estabeleceu posteriormente. O próprio
termo documentary surgiu somente em 1926, em uma crítica de John Grierson a “Moana”, filme
também produzido por Flaherty. De todo modo, Nanook também se diferenciava dos filmes
ficcionais de sua época, dado a sua relação de submissão com a contingência do ambiente. Não
havia como se traçar um roteiro fechado, as cenas deveriam ser capturadas, o que era
completamente diferente de executar um take em um estúdio ou em uma locação controlada. No
curto texto “Como filmei Nanook”, Flaherty (2015) evidência esse elemento, descrevendo uma
tentativa fracassada de filmar a caça aos ursos polares que resultou em dias difíceis para toda a
equipe.
O filme estabelecia uma relação com o nativo semelhante com o que era feito na
Antropologia da época, disciplina que, por mais que estivesse começando a rejeitar as teses
evolucionistas, ainda era produzida em função do imperialismo. Em geral, o antropólogo – assim
como Flaherty – estava mais interessado em ouvir relatos sobre tempos longínquos, histórias ou
ritos que antecediam o contato com o homem ocidental – como se só nisso houvesse alguma riqueza
– do que descrever como de fato aquela sociedade se organizava e se definia no momento presente.
Os antropólogos do início do século desenvolveram um apreço especial pela tradição perdida,
detentora de uma temporalidade própria, o “tempo etnográfico”. A “cultura original dos povos” era
valorizada por ser intocada por qualquer simbologia que nos fosse familiar, que retirava o outro do
lugar de exótico – como se, nos povos primitivos, o exotismo fosse o único valor a ser reconhecido.
A Antropologia e o Documentário, dessa maneira, se constituem enquanto campos irmãos, mas
ainda assim distintos. Se por um lado o Cinema abria espaço para a criatividade, uma vez que não
se via preso o compromisso com o método que a Antropologia tinha ao se reivindicar enquanto
ciência, por outro, ele foi encontrando seus limites éticos entre a reação do público e a imagem do
sujeito retratado na tela. No fim, o antropólogo e o documentarista vão a campo e escrevem
pensando, em alguma medida, como agradar o público, a questão é que esses públicos são
ligeiramente diferentes – de um lado os pares acadêmicos, de outro o público em geral e os críticos
da sétima arte (Altmann, 2009).
À medida que os equipamentos de filmagem se tornaram mais portáteis, em especial o
equipamento de som, o Cinema Documentário, acompanhando de uma mudança epistemológica,
começa a se constituir enquanto uma tradição de filmes cujo o objetivo era o de perseguir a
documentação do real sem nele interferir – é o Cinema Direto, que tem como grande expoente
Crisis, de 1963. Daí surge a metáfora que dizia que o documentarista deveria ser como uma mosca
na parede, que observa sem ser percebida. Nanook se distingue do Cinema Direto porque se permite
produzir essa verdade através da encenação. Flaherty não tentava não ser percebido enquanto
filmava – pelo contrario, sua filmagem foi uma expedição que mobilizou grandes esforços não só de
Nanook, mas de toda sua tribo, impactando a completamente rotina da comunidade durante o
regime de filmagens.
Mesmo assim, a verdade ainda era um ponto perseguido por Flaherty, de modo que a
encenação era utilizada coo um mecanismo para alcança-la. Quem assiste ao filme sem se informar
sobre os bastidores acredita que aquela é de fato a esposa de Nanook, que os esquimós realmente
caçavam a morsa daquela forma e que o diretor passava despercebido entre os personagens. Nesse
sentido, o filme, apesar de não possuir o rigor com a “verdade” do Cinema Direto, também se
diferencia de uma tendência contemporânea que, por compreender que a presença da câmera e da
equipe de filmagem em um determinado contexto é tão importante quando a participação dos
personagens na construção de uma situação, busca explorar os limites e as falhas dessa
documentação imperceptível e de um registro de um nativo que precede o contato não só com a
equipe, mas com o mundo ocidental. Jean Rouch explora essas duas dimensões: Em Eu, Um Negro
(1958), retrata uma África colonizada, onde se fala francês e se faz referências ao cinema norte
americano e também utiliza a encenação como recurso, mas não se preocupa em disfarça-la; e em
Crônica de Um Verão (1961), filme no qual abre espaço para discutir a verdade produzida pela
câmera - constatação de que a câmera interfere no cotidiano e provoca uma reação nos personagens,
autêntica e não menos verdadeira, a partir do momento que se assume a relação que foi estabelecida
(isto é, a presença da câmera). Aqui, não se busca mais compreender a verdade contida no outro,
mas sim a verdade da relação entre aquele que filma e aquele que é filmado.
Na antropologia, esse apreço inicial de apreender o tempo etnográfico também é criticado
com o passar dos anos e o amadurecimento da disciplina. Diante de uma crise que se origina com a
iminencia do fim das sociedades tribais por volta da década de 1960, Marshall Sahlins (1997)
defende que a cultura se transforma eternamente, mas nunca estará fadada a morrer. O problema
está no fato de não reconhecermos nossos próprios hábitos e símbolos como também culturais. A
diversidade cultural permanece à medida que os símbolos ocidentais são reincorporados, traduzidos
e combinados com a tradição de um povo. Também se tematizou a incapacidade do antropólogo de
passar despercebido enquanto realiza o trabalho de campo. Constata-se que só a presença de um
estrangeiro já afeta a vida cotidiana e não há muito o se que fazer nesse sentido, senão reconhecer
os limites da etnografia e se contentar em captar essa vida social que é produzida a partir da
presença do antropólogo.

Por mais que tenham se originado a partir de uma pretensão datada de representar em
imagens ou em livros uma suposta verdade sobre o outro que antecede a relação com aquele que
filma ou escreve, o Cinema Documentário e a Antropologia se reinventaram nesses últimos cem
anos. Agora, trata-se olhar para si mesmo e a partir disso olhar para sua relação com o outro. A
Antropologia há muito já traça diálogos com a literatura, repensando o seu lugar na academia ao
lado de outras disciplinas e seu caráter de ciência – tema discutido por Clifford (1986 e 1988).
Enquanto isso, muitos festivais já deixam de lado a divisão entre documentário e ficção, tendo em
vista a diversidade de filmes passaram a explorar justamente esse jogo com o senso do expectador
sobre o que é ou não real. São exemplos de filmes que tematizam a relação entre documentário e
ficção, com diferentes abordagens, Close-Up (Kiarostami, 1990), Jogo de Cena (Coutinho, 2007),
Recife Frio (Kléber Mendonça Filho, 2009) e o recente Era O Hotel Cambridge (Eliane Caffé,
2016).

Referências Bibliográficas

ALTMANN, E. Verdade, tempo e autoria: três categorias para pensar o filme etnográfico. Revista
ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol.20 (1+2): 57-79, 2009.
DA-RIN, Silvio. 2004. Espelho Partido. Tradição e Transformação do documentário. Editora
azouge. Introdução. Cap. 2. O prototipo de um novo genero.45-53.
FLAHERTY, R. Como filmei Nanook, os Eskimos. In Labaki, A. Org. A Verdade de cada um.
2015. CosacNaif.
SAHLINS, Marshal. “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: porque a cultura não
é um ‘objeto’ em via de extinção”. In: Mana - Estudos de Antropologia Social do Museu Nacional.
Rio de Janeiro, v. 3, n. 1 e 2, UFRJ, 1997.
TACCA, Fernando de. A imagética da Comissão Rondon. Porto Alegre: Papirus, 2001.
Clifford, James e Marcus, George (orgs.). Writing culture - The poetics and politics of ethnography.
Berkeley: University of California Press, 1986; [ Links ]
e também Clifford, J. The predicament of culture - Twentieth-century ethnography, literature, and
art. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1988.

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