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17/05/2020 Walter Salles: Saulo Pereira de Mello, o homem que salvou 'Limite' - Jornal O Globo

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Walter Salles: Saulo Pereira de Mello, o homem que salvou


'Limite'
Cineasta escreve sobre o restaurador do filme de Mário Peixoto, que morreu dia 26/4, vítima
do coronavírus

Walter Salles, especial para O GLOBO


03/05/2020 - 04:30

Saulo Pereira de Mello, restaurador e pesquisador de filmes Foto: Arquivo Pessoal

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A notícia incendiou os corredores da Faculdade Nacional de Filosofia. “Limite”,


de Mário Peixoto, seria projetado no auditório da faculdade. O filme havia

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sumido de circulação desde sua exibição inaugural no Chaplin Club, em 1931.


Entre os jovens estudantes que o descobriram naquele dia em 1953, estava Saulo
Pereira de Mello. Tinha 21 anos, a mesma idade de Mário ao dirigir o filme. Um
mar cintilando à contraluz tomou a tela, fundindo-se à imagem de uma mulher
olhando o espectador, algemas nos punhos. Ao longo da projeção, Saulo sentiu
um arrebatamento que até então desconhecia. Haveria um antes e depois
daquela experiência em sua vida, e na história do filme.

Obituário:Diretor do Arquivo Mário Peixoto e responsável pela restauração do


filme 'Limite', Saulo Pereira de Mello morre por coronavírus

Tudo em “Limite” o encantou. Em suas palavras: “o desejo utópico do homem


finito em apreender o mundo infinito”; “a organização da história de três
náufragos, com voltas periódicas ao barco em que buscam sobreviver”; “o fluxo
de imagens luminosas, determinado por uma rítmica ousada e complexa”;
“‘Limite’ não reproduz o visível, torna visível”.

Plínio Sussekind Rocha, o professor de física que havia organizado a sessão,


percebeu o estupor de Saulo frente a “Limite”, e lhe perguntou à queima-roupa:
“O filme está se perdendo. Você não vai fazer nada? Vai deixar que um filme
como esse desapareça?” A resposta a essas perguntas preencheria toda a vida de
Saulo Pereira de Mello.

“Limite” foi filmado em nitrato, um negativo inflamável que pode entrar em


autocombustão. As poucas cópias que restavam estavam em frangalhos. O jovem
resolveu restaurar o filme, reproduzindo-o fotograma por fotograma, prendendo
sua Pentax numa traquitana montada em casa. Chegava do trabalho e
atravessava a madrugada na restauração minuciosa da película. Certa vez,
quando voltava de São Paulo com parte do negativo, o avião enfrentou uma
tempestade tenebrosa. No auge da turbulência, só conseguia pensar numa coisa:
“Se esse avião cair, é o fim de ‘Limite’”.

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Imagem do filme "Limite", de Mario Peixoto Foto: Reprodução

O primeiro restauro, que Saulo completou no início dos anos 70 e cuja autoria
fez questão de dividir com Plínio Sussekind, é um dos feitos mais prodigiosos da
história do cinema brasileiro. O filme de Mário Peixoto pôde finalmente ser visto
por gerações que até então só tinham ouvido falar dele. Muitos de nós por meio
de Vinicius de Moraes, admirador de primeira hora do filme. Na árvore
genealógica do cinema, escreveu Vinicius, “Limite” era como um passarinho que
pousava em um dos seus galhos e voltava a alçar voo. Um filme inclassificável,
essencialmente livre.

A experiência do restauro permitiu a Saulo criar uma ferramenta única: o “Mapa


de ‘Limite’”, um livro que revisitava a obra fotograma por fotograma. Editado
pela Funarte em 1976 e hoje esgotado, o “Mapa” é uma preciosidade. “Para
Saulo, era essencial viver o filme dentro de si em todas suas formas. Ver, ver,

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rever até encontrar algo raro e sublime”, diz Filiippi Fernandes Silva, seu
assistente no Arquivo Mário Peixoto por mais de 12 anos.

Os anos de reconstituição de “Limite” também marcaram a imersão de Saulo na


fase que ele considerava a mais criativa da história do cinema, a do final do
cinema mudo. Venerava “A paixão de Joana d’Arc” de Dreyer, “A mãe” de
Pudovkin, “O homem de Aran” de Flaherty, “Luzes da cidade” de Chaplin,
“Outubro” de Eisenstein. Os irmãos de “Limite”, segundo Saulo. Ele escreveu
inúmeros ensaios sobre esses filmes.

O cinema era uma matéria viva, que merecia ser compartilhada. Ao longo dos 22
anos em que Saulo esteve à frente do Arquivo Mário Peixoto, sempre ao lado de
Ayla, companheira de vida, cerca de cem teses de mestrado ou doutorado foram
escritas a partir da fortuna crítica que ele amealhou. Editou toda a obra poética
de Mário Peixoto e o seu romance “O inútil de cada um”, com a ajuda preciosa de

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Roberta Gnatalli. Fazia questão de tornar disponíveis todos os livros que


falassem de “Limite” — bem ou mal, não lhe importava. Roberta lembra como
Saulo “gostava de distribuir seus achados, suas ideias e teorias, e fazia isso
largamente”.

Promovia sessões dos filmes que amava para quem se interessasse, de


estudantes a roteiristas. As discussões entravam noite adentro. Lembro de dois
momentos particulares. Em “A paixão de Joana d’Arc”, na cena em que a
protagonista ouve sua condenação à morte, Saulo prendia o fôlego. A câmera em
close-up se atarda no rosto da protagonista, e uma mosca pousa nela. A atriz não
esboça reação. A incorporação do acidente (o inseto) e o estado de ausência da
personagem revelam a magnitude do drama interior, transcendendo a esfera do
real, nos apontava Saulo.

A projeção de “A linha geral” de Eisenstein lhe permitiu mostrar que mesmo em


um filme imperfeito era possível apontar algumas sequências extraordinárias. A
revolta dos camponeses contra as autoridades religiosas que haviam acenado
com uma falsa promessa de chuva era uma delas. A escalada da violência na
insurreição contra os embusteiros é uma aula de direção e de montagem, que
deixava os olhos de Saulo brilhando. Foi nessa noite que ele confessou: “Não
gosto de cinema. Gosto de certos filmes.”

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Mario Peixoto, diretor de "Limite", em imagem do documentário "Onde a Terra Acaba" Foto: Divulgação

No início dos anos 2000, o primeiro restauro de “Limite” começou a se


deteriorar. Alguns rolos já estavam avinagrados. Tinha início a segunda luta
para salvar “Limite”. Por sorte, Saulo contou com a cumplicidade e a rara
competência de Patricia de Filippi, então diretora técnica de restauro da
Cinemateca Brasileira. “Começamos juntos a montar o quebra-cabeça do filme:
diferentes materiais e montagens, uso de películas com bases diversas, verdades
e mentiras, uma escavação sem tamanho.”

Foram mais dez anos de trabalho, com o apoio da Film Foundation de Martin
Scorsese e da Cinemateca de Bolonha, até reencontrar o mesmo contraste em
nitrato, que só Saulo conhecia. Ele era, àquela altura, a memória viva do filme.
Quando Saulo aprovou o restauro digital, no último dia de trabalho, Patricia
lembra que “ele antecipava cada plano, dizendo o que seria importante notar no
próximo — e no próximo e no próximo.... foi uma provação de duas horas. Não

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era em nitrato, mas o grão estava ali, as altas e baixas luzes e os meios tons
também”.

E então houve a batalha dos créditos. “Saulo foi muito generoso em querer
nossos nomes junto ao dele na cartela de créditos. Insistimos que apenas ele
deveria ser creditado”, lembra Patricia. “Saulo respondeu com uma cartinha
inspirada na famosa frase da peça ‘Henrique V’, de Shakespeare: ‘We few, we
happy few, we band of brothers’... E assim foi. Nós poucos e contentes, bando
de irmãos, vencendo o combate.”

"Limite":em 2015, críticos elegeram longa de Mário Peixoto o melhor filme


brasileiro

Haveria muito mais a dizer de Saulo. Do seu papel polinizador, influenciando


jovens cineastas. Das suas conversas com Eduardo Coutinho, que dividia ideias
com ele, entre dois cafés. Dos pequenos mimos com que brindava as amigas de
trabalho. O mais popular era a goiabada caseira que ele fazia, “pecadillo” cuja
receita era tão singular que acabou publicada nas páginas da revista “Piauí”.

Aos 80 e poucos anos, tinha múltiplos projetos. Montou uma “Cinemateca


mínima”, com cenas de 14 filmes que julgava fundamentais. Terminou o mapa
de “Terra”, de Dovzhenko. Planejava melhorar o “Mapa de ‘Limite’”, e preparar
os mapas de “O homem de Aran” e “Luzes da cidade”. Seriam ainda mais
essenciais, sem a descrição dos fotogramas. O Alzheimer e a Covid-19 não
permitiram.

Neste momento em que somos todos um pouco náufragos como os personagens


do filme de Mário Peixoto, e temos a noção de nossa extrema fragilidade em um
país à deriva, a vida e obra de Saulo Pereira de Mello são um alento. Até o fim ele
se manteve fiel a si mesmo. Guardou o rigor, a intransigência e a generosidade

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do rapaz de 21 anos que um dia viu “Limite” na tela imensa do cinema, e se


apaixonou.

Walter Salles é cineasta.

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