OPINIÃO 16 OPAÍS Quinta-feira, 07 de Setembro de 2023

REFLEXÃO

ESTEVÃO CHILALA CASSOMA

EVENTO
Festa Cinema Francês 2023
Apologia do equívoco
A Festa do Cinema Francês, que celebra uma das mais ricas e vivas ra decisão significasse tanto pa-
cinematografias do mundo, regressa ao grande ecrã entre 5 e 31 de ra um homem. Não concordando,
Outubro para a sua 24ª edição. Este ano, o festival irá receber vários a solução veio da visita que assis-
convidados, a anunciar brevemente, e percorrer dez cidades do pa- tia impávida a discussão do casal.
ís: Lisboa, Almada, Oeiras, Coimbra, Porto, Évora, Beja, Viseu, Fa- Vai chamar-se Diogo, tal como me
ro e Lagos. chamo. Uma solução neutra para
Ao todo vão ser programados mais de 70 filmes de diferentes géne- uma guerra de parentes e aparen-
ros e estilos cinematográficos, programados em diferentes secções. tes opostos. E assim aconteceu.
Jeanne du Barry - A Favorita do Rei, filme que inaugurou a última Ora, não era bem assim que as bo-
edição do Festival de Cannes realizado por Maïwenn, vai ser apre- cas populares contavam a histó-
sentado em antestreia no dia de abertura da Festa, no dia 5 de Ou- ria. Não foram os seus pais, foi o
tubro, no Cinema São Jorge. Diogo, seu xará, quem atribuiu o
Como habitualmente, do programa de 2023 constam as antestreias nome ao menino. E tornou-se um
de obras recém-produzidas em França, e também uma grande se- grande Diogo.
lecção de filmes inéditos nas salas de cinema portuguesas. Após o Diogo era sábio, quão sábio. Admi-
sucesso da secção Cinema à Mesa, dedicada à gastronomia, na Fes- ravam-se dele pela estatura e pela
ta do ano passado, na presente edição vamos apresentar outra no- excelência das palavras que da sua
vidade: a secção Pronto-a-Filmar composta por dois filmes dedica- boca saíam. Para não falar da sua
dos ao tema da moda. mansidão. Esbanjava simpatia por

I
ncontáveis são as pági-
nas de histórias e estórias.
As mundividências dão-
nos sempre um baluar-
te de ricos contos, roman-
ces, novelas, dramas, tea-
tros e poesias para cantar
as lágrimas mal choradas, de ale-
grias ou tristezas. Entre persona-
gens reais e imaginárias, cada um
busca a resposta do destino, o seu
destino. Afinal, por mais perfeita
que seja a encenação ou a tragédia,
a incógnita permanece. Para on-
de vamos? E porque a velha ques-
MEMÓRIA tão “de onde viemos” já foi bastan-
Começa leilão excepcional de milhares de te esgotada, a preocupação agora
é o futuro. Para onde vamos? Uns
itens pessoais de Freddie Mercury fingem saber a resposta. Alguns
Milhares de itens que pertenceram ao carismático vocalista do The acreditam que de facto sabem o
Queen, Freddie Mercury, de manuscritos dos maiores sucessos da destino. Outros preferem ignorar
banda até pinturas e móveis, começaram ontem a ser leiloados em a possibilidade de um fim. A gran-
Londres. O piano de Mercury se destaca na venda da Sotheby’s, que de maioria não sabe coisa alguma
será acompanhada por mais dois leilões presenciais e três vendas on- sobre o destino da humanidade.
line. O piano Yamaha foi comprado em 1975 por Mercury, que mor- Para onde vamos?
reu de Aids em 1991, aos 45 anos, e foi usado para compor quase to- Diogo, o manso. O adjectivo jus-
das as suas melhores canções. O instrumento pode atingir um valor tificava o seu carácter, e o nome?
de dois a três milhões de libras (US$ 2,5 milhões a US$ 3,75 milhões, A história em volta do seu nome é
R$ 12,4 milhões a R$ 18,6 milhões na cotação actual). enorme. Quem o nomeou Diogo?
Também será colocado à venda o manuscrito original do sucesso “Bo- Os seus pais, foram os seus pais,
hemian Rhapsody”, cujas 15 páginas escritas a caneta e lápis eviden- sonava das largas bocas populares.
ciam as diferentes direcções que Mercury queria tomar na faixa, ori- Foram os seus pais que o torna-
ginalmente chamada de “Mongolian Rhapsody”. Pinturas de Cha- ram xará do Diogo “descobridor”
gall, Dali e Picasso que adornavam a sua casa também serão leioladas, de Angola, afirmavam as testemu-
assim como o último quadro que comprou um mês antes de sua mor- nhas inconsistentes. Conta-se que
te, uma pintura a óleo de James Jacques Joseph Tissot. os seus pais acolheram a comitiva
das caravelas, os futuros donos das
terras inóspitas. E, como a sua ca-
sa ficava à beira da foz do rio Zaire,
quis o destino que tal acontecesse.
E assim foi. Naquela época nascia
Diogo. Profundamente mergu-
lhados na cultura local, não havia
alternativas. O nome do bebé te-
ria de fazer referência ao acto inu-
sitado que marcou as circunstân-
cias do seu nascimento. Ukombe
(visita), este seria o seu nome. Mas
a mãe não concordou, já que su-
pervalorizava a cultura do pai do
bebé em detrimento da sua. Dizia
ela, carreguei-o por nove meses,
então tem de carregar também o
selo das minhas origens. A dis-
puta do casal era algo novo e sur-
real, porque contrariava a tradi-
ção. A submissão dita que a mu-
lher deve sujeitar-se às decisões
do homem. O casal estava a viver
a contramão da tradição. Talvez
fosse o princípio da emancipação
feminina. A disputa acalorou-se
ainda mais quando a mãe do be-
bé sugeriu o nome Kizua (a quem
Deus enviou). Obviamente, o pai
opôs-se à decisão. Primeiro, por-
que acreditava em Suku e não em
Deus. A diferença entre os dois se-
res? Só ele sabia explicar. Segun-
do, não concordava porque, na sua
opinião, caso aceitasse, estariam a
inverter-se os papéis, ou seja, seria
como se ele fosse a mulher da re-
lação. Quem diria, que uma me-
onde passasse. Há quem afirma-
va sentir o Diogo a pulsar dentro
de si. Estes eram geralmente co-
mentários vindos de garotas apai-
xonadas e enamoradas por Diogo.
Era belo de facto. Mas ao ponto de
senti-lo mesmo sem tocar, eram
somente percepções de corações
apaixonados. Por exigência do seu
xará, Diogo tornou-se um homem
de hábitos nobres, culto, sabedor
da etiqueta na postura, vestimenta
e nos convívios sociais. Não che-
gou a conhecer nada da sua cultu-
ra a qual chamava cultura dos seus
pais. Talvez tivesse razão, afinal,
desde a sua nascença, o nome que
carrega a sua identidade nada ti-
nha a ver com a terra em que nas-
cera. Culpa da discussão dos pais
ou das visitas enviadas por Deus?
O destino da sua gente estava so-
bre si. Diogo tornou-se Presiden-
te. Claro que ele não decidia sobre
o destino transcendental de cada
um. Mas tinha influência directa
sobre o destino terreno de cada um
dos seus concidadãos. A cultura
local não tinha peso, para chamá-
lo a decidir pelos seus. Além dis-
so, ele mesmo não se identificava
com a tal. A esperança residia na
sua sabedoria, cultura e inteligên-
cia. Porém, que sabedoria, cultura
e inteligência imperam diante ne-
gação de si mesmo e do seu des-
tino comum? Os dilemas da vida
levam à assunção de apologias do
equívoco. Conte uma delas!