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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional

JORDANA ALMEIDA DE OLIVEIRA E SOUZA

A MILITARIZAÇÃO COMO DISPOSITIVO DE PRODUÇÃO DO


ESPAÇO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Rio de Janeiro
2021
JORDANA ALMEIDA DE OLIVEIRA E SOUZA

A MILITARIZAÇÃO COMO DISPOSITIVO DE PRODUÇÃO


DO ESPAÇO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do


Programa de Pós-Graduação em Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre em
Planejamento Urbano e Regional.

Orientador: Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Junior

Rio de Janeiro
2021
JORDANA ALMEIDA DE OLIVEIRA E SOUZA

A MILITARIZAÇÃO COMO DISPOSITIVO DE PRODUÇÃO


DO ESPAÇO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do


Programa de Pós-Graduação em Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre em
Planejamento Urbano e Regional.

Aprovado em: 20 de Maio de 2020.


AGRADECIMENTOS

Sempre me interessa ler os agradecimentos dos trabalhos que eu consulto, sinto


que há, nesse pequeno espaço, maior liberdade de forma ao autor para que se
expresse. Gostaria de começar meus agradecimentos de trás para frente e, dessa
forma, agradecer à Veraci, à Julia B. e ao Caíque, pois foram aqueles que
cooperaram para que eu tivesse segurança na entrega do trabalho final.
Por chegar até a última frase desse trabalho, agradeço, em especial, ao meu
orientador, por quem desenvolvi muita admiração ao longo dessa longa –
longuíssima! – jornada. Agradeço também ao meu companheiro de vida Felipe
Machado, sem o qual não aguentaria da mesma forma esses dois anos de tantas
incertezas e tragédias no mundo; e aos meus amigos, que acreditaram em mim,
obviamente, mais do que eu mesma. Obrigada Antônio, Gabriel, Vanessa, Paiva,
Julia(s), Cibele, Maria, Luna, Malu.
Por desenvolver esse tema de estudo, eu agradeço à luta dos movimentos sociais
organizados em especial ao Movimento RUA e aos mandatos que construí nesses
últimos anos – mandato do deputado federal Marcelo Freixo e mandato do vereador
Tarcísio Mota.
Agradeço por fim, ao início de tudo isso, agradeço a quem me possibilitou estudar, a
quem criou as condições, mesmo diante de muita dificuldade: obrigada à minha
família, mãe, pai e ao meu irmão.
Dedico meu trabalho à minha vó Elza e a todas aquelas e aqueles que lutam por um
mundo melhor. À companheira Marielle Franco, brutalmente assassinada, deixo
minha contribuição em forma de reflexões. Marielle e Anderson vivem!

Nunca foi sorte, sempre foi Exu!


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo refletir acerca da intensificação da


militarização da vida citadina, a partir dos dispositivos urbanos de produção da
cidade. Tomando como ponto de partida a leitura regressiva do nosso presente –
movimento esse que nos permite aproximar o debate da Segurança Pública ao
debate da militarização –, a pesquisa em tela enfatiza as experiências militarizantes
ocorridas no Rio de Janeiro, sob a perspectiva do novo urbanismo militar,
procurando compreender como a tese orientada pela ótica dos países do Norte
global se esboça em uma cidade do Sul global. Por fim, visando aproximar a
reflexão acadêmica à realidade atual, propõe-se expor as influências da teoria militar
no debate concreto sobre o armamento das Guardas Civis Municipais.

Palavras-chave: urbanização; militarização; milicialização; segurança pública;


urbanismo militar.
ABSTRACT

This work presents the reflexion about the intensification of militarization at city life
based on urban devices of city production. Taking by start point the regressive
reading of our present – movement that allow us to associate the public security
debate to the militarization debate – the present research emphasizes the
militarization experiences in Rio de Janeiro, by the perspective of a new military
urbanism, trying to understand how the thesis guided by the global north optics
express itself in a city located at the global South. At last, we try to articulate the
academic reflexion about the current reality, exposing the influences of military theory
on the concrete debate about the armament of the city guard.

Keywords: urbanization; militarization; militialization; public security; military


urbanism.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................9
2 AS METAMORFOSES DA VIOLÊNCIA URBANA: DA MILITARIZAÇÃO À
PACIFICAÇÃO................................................................................................16
2.1 A metáfora da guerra: para quem vive na guerra, a paz nunca existiu....17
2.2 A estigmatização dos territórios de favela: cada lugar, um lugar; cada
lugar, uma lei..................................................................................................26
2.3 O processo de pacificação e sua derrocada...............................................32
3 TERRITÓRIOS SITIADOS: AS BASES DO URBANISMO MILITAR NO RIO
DE JANEIRO...................................................................................................40
3.1 Favela como palco da guerra urbana: militarização em territórios
populares........................................................................................................44
3.2 Guerra para muitos, autossegregação para poucos: o ‘bumerangue de
Foucault’ nos Trópicos................................................................................. 53
3.3 A segurança e a economia de mãos dadas.................................................60
3.4 A infraestrutura urbana criando mundos de morte....................................64
3.5 Cidadãos armados: a emergência da intolerância.....................................69
4 A MILICIALIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS......................................................75
4.1 A urbanização miliciana................................................................................75
4.2 A militarização da política e o crescimento da extrema-direita.................83
4.3 Parem de nos matar! O urbicídio e a necropolítica são as opções do
urbanismo militarizado..................................................................................88
4.4 O armamento da Guarda Municipal do Rio de Janeiro...............................96
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................103
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 106
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1 INTRODUÇÃO

É notório o avanço da bibliografia que relaciona os estudos urbanos a temas


que antes caminhavam alheios à discussão sobre a formação das cidades, como o
avanço da militarização e do uso dos dispositivos de controle militar no espaço
urbano, com destaque para pesquisas e produções no campo da sociologia, da
geografia e da criminologia que se debruçam na temática da vida nas cidades,
compreendendo que as relações sociais na construção urbana são atravessadas por
mecanismos de controle e militarização. Em meio a tais produções, podemos
destacar Wacquant (2007), Soares (2018), Rocha (2018), Malaguti (2014) e Graham
(2016).

Apesar da aproximação entre as reflexões acerca da expansão urbana e, em


paralelo, a evolução do processo de militarização da vida urbana, é preciso se
reconhecer que os campos do urbanismo e do planejamento urbano se
desenvolveram com um frágil diálogo com a produção acadêmica assentada na
militarização e na política pública de segurança. É necessário, portanto, ampliar o
campo de visão para compreender a intrínseca relação entre os estudos urbanos e a
militarização cotidiana da vida nas cidades, ressaltando a pluralidade dessas
produções, que são lidas sob muitos aspectos: a interseção das escalas
geográficas, os planos e projetos arquitetônicos, a legislação urbanística, a produção
social da cidade, a participação social e cultural urbana, os conflitos urbanos, além
de recortes de gênero, raça, orientação sexual e muito mais.

O processo de reflexão se debruça no fato de que os dispositivos de


militarização, à medida que se fortalecem, produzem um complexo atravessamento
em muitos aspectos da vida citadina, nos levando a concluir que tais dispositivos
progridem a partir do desenvolvimento urbano, se mostrando parte constituinte da
formação das cidades e sendo, assim, igualmente dinamizados pelos aspectos
históricos, econômicos e políticos que incidem sobre os espaços.

Isso quer dizer que, na medida em que os processos espaciais urbanos são
também reflexos das relações globais, a experimentação do atravessamento
militarizante é igualmente imposta por determinantes históricos, como, por exemplo,
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o controle imperialista, o escravagismo, a exploração agrícola, a dominação secular


de uma nação sobre a outra, entre tantos outros aspectos passíveis de menção para
a elucidação dessa afirmação. Seria um grande equívoco desconsiderar o abismo
entre a formação do território europeu – continente que experimentou precocemente
o processo de desenvolvimento industrial capitalista calcado no lucro escravagista e
na intensa urbanização – e a formação do território latino-americano, marcado por
suas raízes coloniais de exploração, dizimação e saqueamento. Sendo assim, os
aspectos da securitização da vida os atendem de maneiras distintas.

Todavia, o aspecto global da formação urbana é também o responsável por


aproximar experiências de cidades com construções sociais, culturais e geográficas
absolutamente diversas; como, por exemplo, a aplicação dos planos arquitetônicos
nas cidades, atravessados pela problemática militar e suas expressões de guerra e
segurança. Aproximações podem ser feitas entre o plano arquitetônico de
Haussmann na reforma de Paris (LEFEBVRE, 2011) e as implementações das
UPPs nas favelas da Cidade Olímpica, uma vez que ambas previam o alargamento
de vias públicas como forma de facilitar as manobras militares.

O planejamento urbano, como dimensão dos estudos urbanos, é atravessado


por instrumentos militares e, por isso, foi capaz de aproximar Paris e Rio de Janeiro.
Outra dimensão dos estudos urbanos é o aspecto legalista, que também será
abordado como um elemento da militarização urbana: as remoções, as legislações
referentes à manutenção da ordem – a própria ideia de ordem –, a proibição de
ocupação de espaços determinados, as modificações do desenho das cidades e a
garantia de dispositivos de controle militarizados sobre elas são, em sua maioria,
“legais”.

Os aspectos urbanos apontados serão transversalizados pelo urbanismo


militar, e este novo urbanismo militar será lido por meio da experiência do Rio de
Janeiro. Entretanto, não é possível omitir a relação que guarda com outras cidades,
em especial as do Norte global; abordaremos, portanto, suas similitudes e
disparidades.

Nesse contexto, a presente dissertação tem como objetivo geral refletir a


respeito da acelerada militarização dentro do espaço urbano e sua incidência na
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produção da cidade do Rio de Janeiro, por meio dos dispositivos políticos, legais,
regulatórios, coercitivos e econômicos.

Este trabalho apresenta, ainda, como objetivos específicos: I) refletir sobre a


construção do cenário de violência urbana na cidade do Rio de Janeiro,
compreendendo o momento histórico em que a Segurança Pública ganha contornos
prioritários no debate político e passa a englobar em si os mecanismos de controle,
marginalização e estigmatização, incidindo diretamente sobre os contornos urbanos;
II) relacionar os elementos do novo urbanismo militar – trazidos na contribuição de
Graham (2016) – com a realidade fluminense, a partir da correlação explícita entre
os elementos de militarização da vida urbana e a situação política e econômica do
Rio de Janeiro, expondo a inflexão que se propõe relacionar em um único projeto a
questão urbana, a questão militar e o debate econômico; e III) refletir sobre a
milicialização da cidade como produto da relação trabalhada nos itens anteriores,
abordando os aspectos políticos de aprofundamento dessa relação pela ascensão e
dos discursos autoritários e profundamente militarizados, além das políticas de
morte promovidas pelo Estado, dentro do contexto em que este perde o controle do
uso da força, abordando possíveis consequências no debate do armamento da
Guarda Civil Municipal.

Para alcançar estes objetivos, a dissertação está organizada em cinco


capítulos, incluindo esta introdução e as considerações finais. Inicialmente, no
capítulo dois, são apresentadas as bases estruturais capazes de criar um cenário de
intensa violência urbana, que serviria como justificativa para a adoção massiva de
dispositivos militarizados no cotidiano urbano fluminense. A partir da adequação
discursiva da guerra e da resposta ativa na área da Segurança Pública, o território
do Rio de Janeiro assume um protagonismo internacional no tema de violência
urbana e, por isso, o trabalho busca apresentar a confluência de fatores que alçaram
a cidade a esse lugar.

Como será elaborado mais adiante, a militarização do cotidiano urbano é


mais do que o uso de armamento ostensivo (GRAHAM, 2016), ela parte também de
elementos subjetivos como o discurso, a propaganda e o medo. No Rio de Janeiro,
as bases para o crescimento da reação militarizada do Estado se desenharam a
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partir do fim da década de 1980, gerando frutos no apogeu do projeto neoliberal para
a cidade.

A exposição da realidade social e política da cidade, trazida por Luiz Antônio


Machado da Silva (2008) e Marcia Pereira Leite (2014; 2008), e as contribuições em
torno da Política de Segurança, trazidas por Luiz Eduardo Soares (2019), serão
articuladas às contribuições de Vainer (2000; 2011) sobre planejamento urbano.

Após a exposição inicial, os capítulos posteriores buscam dialogar com as


cinco teses apresentadas pelo geógrafo urbano Stephen Graham (2016), sendo
elas: a) Urbanização da Segurança; b) O ‘bumerangue de Foucault’; c) Economia
Vigilante; d) Infraestrutura urbana, guerra urbana; e) Soldados-cidadão. As teses
apresentadas dialogam com o que o autor compreende como militarização, conceito
esse que irá perpassar por todo o trabalho.

Nesta dissertação o conceito de militarização está ancorado em Graham


(2016), se referindo a transformação dos espaços em verdadeiros campos de
batalha e tal ação se desenvolve inclusive nos países que historicamente realizaram
suas guerras “extramuros”. Ela representa a adoção em larga escala da guerra
como metáfora como a realidade das sociedades urbanas. De forma que esse
fenômeno segundo o autor (Graham 2016 p. 28), é responsável por gerar uma
proposital confusão entre policiamento, inteligência e militarismo, tal entrelaçamento
será naturalmente desenvolvido no diálogo com suas teses.

A primeira tese apresentada pelo autor traz elementos que se referem a vida
e paisagem urbana. Para desenvolve-la, recorro ao conceito de guerra e “guerra
urbana” ou guerra assimétrica, conflito de baixa intensidade, guerra de longa
duração; buscando assimilar como a guerra às drogas se revela como a intensa
guerra aos moradores de favelas. Com o avanço tecnológico, os mecanismos de
contenção e repressão são aperfeiçoados, fazendo com que o binarismo de bem
versus mal justifique que dispositivos militares permeiem a vida urbana no seu mais
simplório aspecto, produzindo a sensação de segurança para uma pequena parcela
da população, em detrimento do terror oferecido nas áreas de periferia. A
urbanização da segurança é o aspecto do novo militarismo urbano, que antecipa o
inimigo e potencializa a sua repressão.
15

A dimensão da legalidade na produção urbana é constantemente desafiada


dentro do novo urbanismo militar, em grande medida, pela legitimação conferida
pela urbanização da segurança e pela adoção desses dispositivos de ordenamento
legal. Dentro da realidade dos territórios de periferia, esses dispositivos pouco
conferem segurança aos cidadãos que ali residem – pelo contrário, disseminam a
falsa lógica de território inimigo a ser combatido.

A segunda tese, cunhada por Graham (2016) como “bumerangue de


Foucault”, dialoga com o aspecto global da produção das cidades; compreendendo
as relações políticas e econômicas que determinam, na geopolítica global, quem são
os explorados e quem são os exploradores. A tese propõe um diálogo com o
pensamento contemporâneo de Michael Foucault, transpondo este para as relações
entre Estados-nação, manifestas no solo urbano. Em outras palavras, o
‘bumerangue de Foucault’ é a prática de países do Norte global em aplicarem as
técnicas de repressão em países do Sul global e depois reproduzirem essas
técnicas nas periferias domésticas.

Nesse sentido, objetiva-se apresentar como essa tese se esboça dentro das
especificidades brasileiras, trazendo elementos que nos caracterizam como um país
explorado nessa relação decidida pelo Norte global, porém abordando, também, as
singularidades dentro da classificação Norte imperialista x Sul explorado.

A terceira tese associa guerra urbana e economia, traduzindo como a sanha


lucrativa das grandes empresas e governos de Estados-nação orientam as práticas
do novo urbanismo militar, cooperando com a formação de verdadeiras indústrias de
guerra. Assim, procuro explorar como os dispositivos militares atendem ao mercado
do medo construído nas grandes cidades, seja como política pública na área da
segurança, seja pela iniciativa privada de segurança, ou até mesmo pelas milícias
enquanto grupos armados paramilitares.

A metáfora da guerra corrobora a solução militarizante dada aos problemas


sociais – e as grandes corporações que atuam no mercado de segurança não se
orientam pela ética da preservação de vidas. Em igual sentido, governos guiados por
planejamentos estratégicos empresariais compreendem que a venda de segurança
movimenta a economia e fortalece – além dos mercados de armas, câmeras de
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vigilância e drones – o valor de uso do próprio terreno urbano. Ao determinar quais


territórios usufruem da proteção de direitos e quais enfrentam a fase repressora,
interfere-se no mercado imobiliário e na oferta de serviços.

Por fim, a quinta tese do autor diz respeito à relação entre as tecnologias de
guerra e cidadãos urbanos “comuns”. Graham (2016) aponta aspectos bastante
intrínsecos ao processo de urbanização dos EUA, mas que nos possibilitam
estabelecer correlações com a realidade brasileira, em especial a realidade
fluminense, principalmente na constatação do fato de que a adoção de teorias
militares como caminho na resolução de conflitos urbanos resulta na emergência de
discursos revanchistas de intolerância.

No quarto capítulo, a milicialização será apresentada como um dos


fenômenos atuais mais significativos do novo urbanismo militar, na medida em que
incorpora em si as teses abordadas por Graham (2016), já devidamente expostas e
discutidas nos capítulos anteriores. Busco, assim, relacionar o tema da militarização
com a ascensão de discursos totalitários, relacionando o contexto político atual com
o aprofundamento das teorias militares na vida urbana. Desenvolvendo as
características da extrema-direita brasileira com os elementos da militarização
urbana, é possível considerar que o crescimento das milícias não é um fator isolado;
mas, sim, consequência de um projeto de poder, que adota a prática de extermínio
institucionalizado.

Visando explorar as consequências práticas da adoção de um modelo


altamente militarizado para a vida citadina, toma-se como ponto de partida o
conceito de urbicídio (GRAHAM, 2016), bem como o conceito de necropolítica,
apresentado pelo camaronês Achille Mbembe (2018).

Por fim, a partir das relações estabelecidas ao longo do trabalho, tenciono


questionar o debate sobre o armamento das Guardas Municipais, trazendo essa
breve ilustração a fim de apontar a dificuldade de se pensar novas formas de
policiamento que não partam da lógica do conflito e da guerra.

Assim, o trabalho busca apresentar a realidade da militarização urbana sob a


ótica da periferia do capital, com contribuições sobre a realidade política brasileira,
sobre a formação do território urbano e sobre a eclosão do militarismo como solução
17

para a vida nas cidades. Apontando como os mecanismos de controle militarizados


servem ao modelo de cidade mercadoria, a partir da lógica neoliberalizante de
gestão das cidades, são utilizadas, para a realização de tais articulações, as
importantes contribuições de Harvey (2012), Lefebvre (2011) e Santos (2006) sobre
a formação do espaço urbano. São também essenciais para este trabalho as
reflexões de Graham (2016) sobre militarismo urbano e as de Mike Davis (2006)
sobre favelização.

A escolha do território do Rio de Janeiro como objeto de estudo é fruto da


compreensão de que este figura como um expoente em debates sobre violência
urbana, abuso policial, Segurança Pública, militarização, milicialização, favelização,
desigualdade territorial, ocupação irregular e remoções.

É importante enfatizar que o controle social por meio de medidas militarizadas


não é uma característica recente de dominação; pelo contrário, as formas mais
primárias de dominação de uma nação por outra, de escravização, de exploração e
dizimação de culturas se deram a partir de controles militarizados. Isto posto, pode-
se afirmar que o debate sobre relação entre o urbanismo e a militarização no Rio de
Janeiro também não é recente. Entretanto, este trabalho busca a todo momento
explicitar a mudança de paradigma na relação entre o urbano e o militar dentro do
contexto atual do desenvolvimento capitalista, partindo do reconhecimento de que os
dispositivos militarizados não são invenções da modernidade; mas, sim,
mecanismos que se atualizam e aperfeiçoam suas formas de intervenção urbana.

Com este estudo, pretendo contribuir com reflexões significativas para o


campo do planejamento urbano e regional, colaborando com o avanço da
investigação de elementos de militarização cada vez mais presentes na vida nas
cidades.
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2 AS METAMORFOSES DA VIOLÊNCIA URBANA: DA MILITARIZAÇÃO À


PACIFICAÇÃO

O fim da década de 1980 e o transcorrer da década de 1990 representaram


um importante marco histórico na discussão sobre violência urbana, que passou a
ganhar a atenção da mídia, dos estudos sociais e da gestão pública de maneira
geral. A narrativa fomentada pelos meios de comunicação era de que o Rio de
Janeiro necessitava de uma resposta imponente para os desafios que se
desenhavam há décadas sem solução. O apelo midiático ressaltava que o problema
da cidade passava pela consolidação de um cenário de violência urbana; pela
existência de uma cidade dividida, que precisava abandonar a informalidade; e pela
crescente crise política e econômica.

O capítulo visa explorar fatores que se interligam em um determinado período


histórico: a abertura democrática, que permite o redesenho das instituições; o
crescente processo de criminalização da pobreza; e o concomitante crescimento da
estigmatização dos territórios de favela. Neste contexto, o trabalho buscará
relacionar a todo momento a imposição ordenadora e a saída pacificadora como
opções ora precipitadas, ora incompletas de política de Estado.

Começando pela adoção da metáfora da guerra como solução aos conflitos


urbanos – a partir, principalmente, da subordinação do debate da violência urbana à
abordagem hegemônica do campo da Segurança Pública –, são exploradas as suas
raízes e explicitados alguns dos dispositivos utilizados na manutenção dessa guerra.
Dando sequência, buscamos refletir sobre o lugar que os territórios de favela
ocupam, de maneira subjetiva, no imaginário social, valendo-se do discurso da
ordem e da promoção do medo e, de maneira objetiva, na perda de vidas, para, ao
final, compreender como chegamos à experiência pacificadora, sua construção, seu
desenvolvimento e seu fim.

Tais abordagens não implicam, contudo, afirmar, de maneira precipitada, que


foram apenas as escolhas políticas e econômicas deste período que aceleraram o
cenário de militarização urbana observado atualmente no cotidiano fluminense; mas,
sim, que os elementos apresentados, lidos conjuntamente, foram determinantes na
construção do projeto urbano militar posterior.
19

2.1 A metáfora da guerra: para quem vive na guerra, a paz nunca existiu

Seguindo uma tendência internacional, foi a partir dos anos 1980 que a
discussão sobre criminalidade e violência urbana ganhou maior destaque no Rio de
Janeiro. É apenas a partir do fim da década de 1980 que se inicia a construção com
maior nitidez dos contornos da violência urbana no Rio de Janeiro e, apesar da
contenção militarizada não ser uma novidade, houve uma mudança significativa na
organização desta e nos atores nela envolvidos.

Na compreensão do trabalho, a metáfora da guerra urbana ultrapassa a mera


dominação militarizada, sendo, na verdade, uma das principais bases para o
crescente urbanismo militar nas grandes metrópoles internacionais. Tal metáfora foi
capaz de incutir a ideia de que a cidade é o espaço de batalhas constantes e
eternas, sendo capaz de atribuir diferentes sentidos para as relações que se
constituem a partir da vida citadina. Dentro da realidade urbana refletida, a insígnia
da guerra se justificou como o combate necessário, adotando a ambígua
compreensão de cidade como espaço de batalhas e também como espaço de
inegável caráter mercantil enquanto solo urbano. Essa compreensão começa a
evoluir e se desenvolver ao final do século XX e tem como chave de articulação o
debate da Segurança Pública.

Nem sempre foi assim. Na formação do Rio de Janeiro, muitos foram os


problemas sociais e/ou apostas de modernização urbana que justificaram respostas
militarizadas. Sob a égide do discurso em defesa da saúde e do desenvolvimento
(ALMEIDA, 2016), se propôs uma verdadeira limpeza social que atingia os mais
pobres e as formas mais populares de habitação. Isso mostra que, durante muito
tempo, o discurso de contenção partiu do debate sanitarista. Por outro lado, a
afirmação de que a guerra no interior das cidades tenha surgido na
contemporaneidade representaria um enorme reducionismo – a modernidade
conviveu com inúmeras guerras e incursões militares. A inflexão aqui apontada é
que a adoção da metáfora da guerra ultrapassa a compreensão da cidade como alvo
da guerra e passa a compreendê-la como o próprio agente de produção e
reprodução dos conflitos em solo urbano.
20

Sendo assim, pode-se afirmar que o processo de militarização urbana, que se


consolida com força no século XXI, começa a ganhar contornos já no fim do século
XX, a partir da confluência de fatores que favoreceram a produção do desenho
social da violência urbana e da resposta da guerra dentro das fronteiras da cidade.

Dentre os elementos da metáfora da guerra, é importante compreender os


atores que constituem esse enredo, a começar pelo Estado e suas instituições,
inalteradas mesmo diante da mudança radical de organização ao fim da década de
1980. A socióloga Gizlene Neder (2009, p. 21) diz que:
O Brasil conheceu uma experiência histórica de formulação e
institucionalização de uma Constituição-Cidadã (1988), sem alterar
substancialmente o perfil autoritário e excludente das instituições
relacionadas à justiça criminal, com consequências para o processo de
democratização subsequente.

Ou seja, a transição moderada de período não respondeu a uma ruptura profunda e


necessária com códigos e posturas do Regime anterior.

Foi no período ditatorial brasileiro, após o golpe militar-empresarial de 1964,


que as estruturas militares se aperfeiçoaram e passaram a ser centralizadas pela
União. O Regime Militar impôs o modelo de Segurança Pública pautado na lógica do
inimigo, do autoritarismo, do desprezo a valores do Estado Democrático de Direito;
de tal modo que a reabertura democrática, iniciada em 1985, não foi capaz de
romper com características importantes do período ditatorial. Soares (2019) desperta
para a problematização de que, imersos em uma conjuntura de muitas urgências, o
debate da Segurança Pública e seus necessários redesenhos institucionais foram
secundarizados.

Houve algumas tentativas de intervir na pauta da Segurança Pública,


principalmente nos governos de Brizola (1983 – 1987; 1991 – 1994), que fez apostas
audaciosas. Uma delas foi a nomeação do profissional da Polícia Militar, Coronel
Carlos Magno Nazareth Cerqueira, como secretário da Polícia Militar, em seu
primeiro governo. No ato de nomeação do profissional, que se destacava por suas
defesas às práticas preventivas de Segurança Pública, ficou implícito que, para
Brizola, os gestores da Segurança Pública não seriam mais os representantes
políticos e técnicos, mas, sim, os membros das corporações.
21

O secretário era um estudioso da criminologia crítica e considerava arcaico


não só os métodos utilizados pela Polícia Militar, mas a própria concepção do papel
da instituição. Sua crítica à aplicação do uso da força para dirimir conflitos urbanos e
sua defesa pela integração e prevenção o deram bastante destaque nesse período.
Seu perfil era de mediador e, para ele, as forças policiais deveriam desenvolver a
ideia do policiamento comunitário, da "construção da ordem" em detrimento da
"manutenção da ordem".

A política de Segurança Pública do governo Brizola teve como um pilar de


extrema importância o Coronel Cerqueira e sua tentativa de impor um novo
significado ao "policiamento", mais ligado à prevenção e investigação de crimes e
menos à militarização. A conquista da confiança da comunidade e a sua participação
eram elementos-chave para o sucesso desse programa.

Porém, sua louvável disposição em rever a política de segurança esbarrou


em elementos que fugiam à decisão ou formação individual do agente policial. As
estruturas militares impediam – e seguem impedindo – que os agentes de segurança
agissem em benefício da proteção da população e da aproximação do indivíduo.
Não se trata de uma valorização moral, mas, sim, das limitações impostas por
estruturas autoritárias, racistas e elitistas, como expõem Leal, Silva Pereira e
Munteal Filho (2010), em obra sobre a sua trajetória, apesar da crítica à formação da
corporação da Polícia Militar, a ideia do secretário se centrava prioritariamente no
sujeito "policial" e não na estrutura da corporação, o que fica nítido quando subsidia
treinamento aos policiais em cursos sobre policiamento comunitário, estruturando
um programa de intercâmbio em outros países.

Intocadas as estruturas de coerção formadas na Ditadura Militar, se restou


prejudicado o acesso a direitos e a promoção de cidadania, assim sendo, nas
palavras de Soares (2019, p. 186): “a aplicação das leis é submetida à refração
imposta por crivos seletivos bastante específicos, nada aleatórios”.

Soares (2019, p. 189) complementa com a constatação:


No dia seguinte ao sepultamento formal da ditadura, tendo sido promulgada
a Constituição, os poderes do Estado emitiam um sinal democrático, cuja
mensagem definia os indivíduos como cidadãos e os convidava a participar
do novo momento da vida nacional, compartilhando direitos. Por outro lado,
a experiência na rua, na esquina, emitia sinas opostos e afirmava a arcaica
desigualdade de tratamento: o policial uniformizado, manifestação mais
22

visível e tangível do Estado, agia com a violência de sempre nos territórios


populares, abordando de forma seletiva pobres e negros.

Mesmo com a audaciosa experiência do governo Brizola, de maneira geral,


as estruturas de repressão continuaram atendendo ao arranjo militar ostensivo,
enraizado desde a Ditadura. Não houve uma propositura radical de reorganização
da Segurança Pública e, assim, os ventos da novidade democrática tiveram que
coexistir com as unidades putrificadas dos porões da Ditadura Militar.

Uma das mais exemplificativas estruturas que permaneceram após o período


militar foi o “auto de resistência”, nomenclatura dada aos homicídios cometidos por
policiais militares em exercício do seu trabalho. Nunca houve legitimação do termo
dentro das normas gerais brasileiras, tão somente foi incorporado a partir de normas
infralegais que datam da Ditadura Militar1.

O auto de resistência nada mais é do que um registro administrativo utilizado


no registro de morte, que legitima a não investigação do agente policial que comete
um homicídio, em casos de resistência à prisão. Em outras palavras, sob a
roupagem de legítima defesa, os agentes policiais possuem a livre permissão para
matar. Na Ditadura Militar, o ato administrativo justificou a morte de opositores,
inimigos do Regime e, posteriormente, já no Regime democrático, o auto de
resistência foi a justificativa para o assassinato de milhares de jovens “inimigos”, no
contexto da violência urbana.

O artifício infralegal do auto de resistência, permitiu uma verdadeira política


de extermínio que se seguiu nos anos posteriores, como bem abordou o grupo de
pesquisa coordenado por Michel Misse (2011):

Os dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP/SSP-RJ) revelam


que, entre 2001 e 2011, mais de 10 mil pessoas foram mortas em
confrontos com a polícia no estado do Rio de Janeiro, em casos registrados
como “autos de resistência”. (MISSE, 2011, p. 4)

A utilização massiva da justificativa administrativa do auto de resistência, nos anos


de 1990, revelou que a brecha legal era utilizada como artifício para encobrir desvios

1
O procedimento administrativo surge de dois dispositivos infralegais: a Ordem de Serviço nº 803, de
2 de outubro de 1969, pela Superintendência da Polícia do então Estado da Guanabara; e a Portaria
do Secretário de Segurança, de 6 de dezembro de 1974. Disponível em: <https://bit.ly/2S1M79b>.
Acesso em: fev. 2021.
23

de conduta de agentes da corporação, em situações que não configurariam legítima


defesa do agente Estatal, mas, sim, evidentes execuções.

Não há dúvidas de que a manutenção da estrutura de policiamento militar,


altamente hierárquico, com práticas autoritárias que se valem dos autos de
resistência, do crime de desacato do Código Penal Militar2incidiu centralmente no
cenário de violência urbana construído no Rio de Janeiro, fortemente ao fim do
século XX. Isso é, os conflitos gerados no período de intensa urbanização foram
mediados por saídas autoritárias.

A violência ganhou seus contornos citadinos e, com amparo legal e com


imensa aclamação social, as estruturas de repressão do Estado foram imbuídas do
direito de transgredir direitos. Alimentando o binarismo capaz de legitimar quaisquer
ações contra o “inimigo”, as instituições democráticas conviveram e, de certa forma,
cooperaram com a manutenção do arcabouço arcaico e autoritário repressivo
brasileiro. De um lado, as forças policiais continuavam militares; do outro, a
produção legislativa e os critérios nada equânimes do judiciário legitimavam as
ações militares dentro das cidades, como política de Estado.

Além dos aspectos institucionais que estruturaram e cooperaram com a


formação da metáfora da guerra dentro dos limites urbanos, ocorreram também
mudanças de paradigmas internacionais, que incidiram de forma a justificar tal
metáfora no Rio de Janeiro. A expansão do tráfico de drogas internacional, o
aumento da circulação de armas e o aperfeiçoamento das organizações criminosas
são os elementos que compõem o cenário social destacado.

É importante que essa tríade de fatores históricos internacionais seja lida sob
a perspectiva fluminense, a fim de ampliar a reflexão sobre as bases da construção
da metáfora da guerra no Rio de Janeiro. De forma didática, uma matéria jornalística
da Folha de São Paulo explana o contexto dessa relação de fatores na cidade do
Rio de Janeiro.
O consumo de droga não se inicia na década de 80, mas no que tange a
facilitação da venda de drogas, em especial a cocaína, é um importante
marco temporal internacional sobre a mudança de paradigma na venda e

2
Aprovado em 1970, o Código Penal Militar dá margem para que civis sejam investigados por cortes
militares e punidos. É o caso do economista Roberto de Oliveira Monte, que, ao criticar as
humilhações sofridas por militares e defender a sindicalização dos “praças”, se tornou réu da Justiça
Militar.
24

consumo de drogas. A cocaína extrapolou camadas sociais mais ricas,


fazendo com que o seu comércio experimentasse um crescimento
vertiginoso, despertando interesse de grupos armados no monopólio das
vendas. Na virada dos anos 70 para os 80, um novo produto chegou às
favelas: a cocaína vinda da Bolívia. O Brasil entrou definitivamente na rota
da droga, como ponto de distribuição para a Europa e como mercado
consumidor da cocaína de baixa qualidade. Em 1979, surgiu no presídio de
Ilha Grande – onde bandidos comuns conviviam com presos políticos – a
facção criminosa chamada Comando Vermelho, uma modificação da antiga
Falange Vermelha. Com o lema "Paz, Justiça e Liberdade", o CV
institucionalizou o mito de organizações criminosas no tráfico do Rio. Depois
dele, surgiu o rival Terceiro Comando. Com os anos 80, a cocaína se
massificou. Na segunda metade da década, o Rio conheceu outra novidade,
tão ou mais fatal que a droga: o armamento pesado, como fuzis e pistolas.
[...] O antropólogo Rubem César Fernandes, do movimento Viva Rio, diz
que a entrada de drogas e armas mudou o padrão da criminalidade no Rio.
[...] No início dos anos 80, a taxa de homicídios era de 25 por 100 mil
habitantes. Em 1994, já era de 78 por 100 mil. A polícia foi engolida pela
lógica do tiroteio. Em 99, o quadro havia melhorado um pouco, com taxa de
49 homicídios por 100 mil habitantes.3

A expressão “guerra às drogas” surge nos EUA na década de 1970 4, ocupando de


forma relevante o cotidiano fluminense apenas na década de 1990, quando passa a
figurar nos noticiários brasileiros. Com ela, se fortalece também a circulação
armamentista e a dominação das facções criminosas. Até então, a pistola de
calibre .38 era o tipo de armamento que estava à disposição, sendo o modelo de
maior circulação. Foi com a diversificação do mercado armamentista que as disputas
territoriais no Rio de Janeiro se tornaram mais organizadas e onerosas.

Como exposto anteriormente, o cenário de violência urbana também foi


atravessado pelo surgimento das facções criminosas, grupos armados que, no Rio
de Janeiro, se apresentavam como responsáveis pelos pontos de comércio de
drogas. A década de 1980 foi um importantíssimo marco para se compreender a
expansão, as subdivisões e os conflitos entre esses grupos.

Hermano Freitas, em artigo publicado pela UOL sobre o surgimento das


facções criminosas, afirma que:

3
Cocaína fortaleceu o crime organizado. Folha de São Paulo, 13 ago. 2000. Disponível em:
<https://bit.ly/2PGx1EZ>. Acesso em: 21 dez. 2020.
4
“[...] A política de proibição às arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, globalmente
iniciada no início do século XX, intensificou a repressão a seus produtores, comerciantes e
consumidores, com a introdução da ‘guerra às drogas’, que, formalmente declarada pelo ex-
presidente americano Richard Nixon, em 1971, logo se espalhou pelo mundo.” Cf: KARAM, M. L.
Violência, militarização e ‘guerra às drogas’. In: KUCINSKI, B. et al. Bala perdida: a violência policial
no Brasil e os desafios para sua superação, p. 33-38, 2015.
25

A primeira metralhadora apreendida no Rio foi no morro da Mineira, em


1984. Até o final dos anos 1980, o crescimento do negócio do tráfico
originou conflitos de interesses, que acabaram causando o primeiro racha
no Comando Vermelho.5

No Rio de Janeiro, a metáfora da guerra se consolida na opinião pública como


consequência da crescente disputa, fortemente armada, entre grupos criminosos
pelo domínio dos pontos de comércio drogas, exigindo duras respostas militarizadas
para derrotar o inimigo do Estado: o traficante.

Necessário se faz manter um paralelo com a geopolítica internacional, já que,


até então, o comunismo era, para o mundo ocidental moderno, o grande inimigo a
ser derrotado. Foi a política proibicionista, incentivada pelos EUA na década de
1970, que fez com que o mundo voltasse sua atenção ao comércio ilegal de drogas
ilícitas; dessa maneira, a figura do traficante passou a ser o grande inimigo
internacional.

Nesse sentido, Queiroz (2008) aborda uma característica bastante importante


sobre a criminalização da venda, do cultivo e do uso recreativo de entorpecentes,
revelando que o combate às drogas, na verdade, mascara a realidade do
aperfeiçoamento de extermínio dos indesejáveis e da criminalização da pobreza, e
não só no Brasil. Como aponta o autor,
a atuação do poder punitivo nas questões das drogas ilícitas revela,
historicamente, o controle social sobre as ‘classes perigosas’, através da
associação entre determinadas drogas e grupos sociais. Chineses e ópio;
irlandeses e álcool; mexicanos e maconha; colombianos e cocaína.
Chegamos, com o fenômeno da globalização, à associação das drogas aos
miseráveis, sejam eles pequenos produtores rurais de Pernambuco ou
atacadistas das áreas pobres das grandes capitais do país. Falar em drogas
ilícitas é associá-las às favelas. (QUEIROZ, 2008, p. 7)

Sobre a formação do cenário de violência urbana, que legitimou a utilização da


metáfora da guerra, os fatores estruturais apontaram o papel do Estado no contexto
abordado – manutenção de estruturas antidemocráticas, construídas no contexto do
regime militar ditatorial. Em paralelo, houve a incidência de fatores internacionais
que ganharam espaço na realidade fluminense.

Por fim, o terceiro elemento da realidade fluminense, no fim do século XX,


capaz de criar bases para o debate do urbanismo militar, são as intervenções
militares na cidade do Rio de Janeiro. Esse componente aponta o Estado como
5
Facções criminosas do Rio de Janeiro tiveram origem em presídios. Terra, 01 dez. 2010. Disponível
em: <https://bit.ly/39zlQFf >. Acesso em: 30 set. 2019.
26

agente desestabilizador no cenário de violência urbana. Ou seja, o Estado figura


como agente que incute mais elementos militarizados no cotidiano da vida nas
cidades, na tentativa de combater o avanço do tráfico de drogas e do poder das
facções criminosas.

A anuência com a estrutura militarizada na organização das forças policiais


militares estaduais, fruto do não rompimento institucional com fundamentos
ditatoriais, além da organização de facções armadas na disputa pelos pontos de
venda de drogas, justificaram as intervenções federais no Rio de Janeiro, a partir da
década de 1990.

As intervenções militarizadas no desenho urbano deixaram de ser exceções


no cotidiano fluminense. Em 1992, o avanço da criminalidade foi a justificativa
utilizada para que Fernando Collor, então Presidente da República, assinasse a
Garantia de Lei e Ordem (GLO), e enviasse tropas federais para auxiliar na
segurança da Conferência da Organização das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento (Eco-92).

Em 1994, o governador Nilo Batista firmou acordo com o Presidente da


República, Itamar Franco, que previa a criação de um comando único das Forças
Armadas. Uma espécie de ação de cooperação entre a União e o estado, que
contou com a presença de 30 mil homens do Exército, 11,5 mil da Polícia Civil, 28,5
mil da Polícia Militar, 800 da Polícia Federal e 850 da Polícia Rodoviária Federal,
fazendo um total de 71.650 homens6.

O convênio, mais tarde chamado de Operação RIO, previa reprimir o


contrabando de armas e drogas e, conforme mencionado, teria sob seu controle as
Polícias Militar, Civil e Federal. Foi a segunda intervenção militar no Rio de Janeiro e
seu modus operandi repressivo passou a certeza de que aquela era uma missão
oficial de combate ao inimigo interno.

As intervenções incorreram em desvios e afrontas aos direitos humanos,


ressaltando o desrespeito aos princípios do regime democrático. Em artigo publicado
pela Folha de São Paulo, em 22 de novembro de 1994, lê-se:

6
Militar 'tranquilo-durão' comandará ação. Folha de São Paulo, 02 nov. 1994. Disponível em:
<https://bit.ly/3dqFlkj>. Acesso em: 25 dez. 2020.
27

O Centro de Coordenação de Operações de Combate ao Crime Organizado


(CCOCCO), passando por cima do claro texto constitucional, ignorou essas
duas condições e revirou casas sem exibir ordem judicial e deteve pessoas
apenas por estar sem documentos. Também foi negado à OAB o acesso às
pessoas que foram presas. Esses procedimentos não são compatíveis com
o regime democrático.7

Com balanço negativo, que apontava ineficiência da operação, abuso de poder e


ações absolutamente midiáticas, em abril de 1995 o Governo Federal assina a
Operação RIO 2, com efetivo menor de militares, porém com o mesmo intuito e
estratégia. Em 1997, a justificativa da intervenção militar foi a visita do Papa João
Paulo II; em 2002, as eleições; e, em 2003, a realização do carnaval.

A prática continuou e, após a virada do século, já em 2008, a intervenção


militar no morro da Providência teve como justificativa a necessidade de obras de
habitação e moradia, segundo Marcelo Crivella, que ocupava o cargo de Senador. A
União, dessa forma, dispôs da presença de 290 militares para garantir a segurança
no local. Também participaram da ação tropas veteranas do Haiti, que voltariam a
ser utilizadas em outras intervenções.

As sucessivas intervenções federais na Segurança Pública do Rio de Janeiro


contaram com a inserção de elementos de guerra na vida urbana carioca: a
presença de tanques de guerra nas ruas da cidade era a garantia do aumento da
sensação de segurança; ao mesmo tempo que, a cada tentativa frustrada, se
consolidava o balanço de que as intervenções seriam como remédios pontuais, sem,
de fato, satisfazer a necessidade da solução estrutural para a violência urbana.

No tocante ao desenho urbano, parte da cidade foi notadamente


responsabilizada pela crescente violência urbana. Não por acaso, a intervenção
realizada em 1992, que contou com a presença de 17 mil homens, teve como alvo
principal as favelas da Rocinha e do Vidigal 8. Todas as outras intervenções que a
sucederam contaram com forças militares ocupando territórios de favela.

A metáfora da guerra traz questionamentos sobre as medidas de garantia de


segurança para os cidadãos; e é nesse sentido que as políticas de Segurança
Pública passam a se relacionar diretamente com o território, partindo da convicção
7
Operação Rio. Folha de São Paulo, 22 nov. 1994. Disponível em: <https://bit.ly/2PPUrHU>. Acesso
em: 25 dez. 2020.
8
A história das operações e planos de segurança no Rio: três décadas de fracassos. El País, 21 fev.
2018. Disponível em: <https://bit.ly/2PPUrHU>. Acesso em: 21 dez. 2020.
28

de que o controle deve ser feito sobre territórios violentos. Sob a égide do discurso
de combate à criminalidade, diante de um crescente cenário de violência urbana, os
territórios de favela, historicamente estigmatizados, foram alvos perfeitos de
responsabilização pela produção do violento. Desde sempre perseguidos, é no fim
do século XX que as forças militares do Estado – e, por vezes, também da União –,
voltam toda a sua atenção para esse território, em busca do grande inimigo
internacional: o traficante de drogas.

Nas favelas, cariocas se evidencia a problemática da atuação de agentes de


segurança que atendem a uma Instituição de aspectos ditatoriais e autoritários. É
nas favelas também que mais se sofre as consequências da irrefletida guerra às
drogas. Portanto, faz-se necessário aprofundar a reflexão sobre esses territórios
para o estudo dos aspectos militares na urbanização fluminense.

2.2 A estigmatização dos territórios de favela: cada lugar, um lugar; cada


lugar, uma lei

Para desenvolver a relação da estigmatização dos territórios de favela com a


metáfora da guerra, vale relembrar a conceituação feita por Leite (2014), p. 628),
que entende que
[...] a representação da cidade como dilacerada pelos conflitos e
contradições entre os territórios da violência e das ilegalidades a ela
relacionadas e o restante da cidade, espaço da ordem estatal e da
cidadania.

É preciso afirmar que a ideia de criminalização do espaço urbano das favelas


não surge a partir da construção narrativa da violência urbana, ou da “guerra às
drogas”. Se, nas décadas de 1980 e 1990, o Estado intensifica o discurso de
promoção da guerra às favelas cariocas, a estigmatização dos territórios de favela
data de bem antes.

Valladares (2000, p. 08) elucida que: “[...] já em 1900, o Jornal do Brasil


denunciava estar o morro ‘infestado de vagabundos e criminosos que são o
sobressalto das famílias’”, e complementa dizendo que a literatura que versou sobre
o surgimento e o crescimento das favelas, no início do século passado, classifica o
lugar como exótico, miserável, uma ameaça da desordem, um problema no meio da
cidade a ser resolvido.
29

Mike Davis (2006, p. 33) também faz apontamentos importantes sobre como
se pensavam os territórios de favelas, pelo mundo, antes da possibilidade de criação
da narrativa da violência urbana. Nas palavras do autor:
É claro que, para os liberais do século XIX, a dimensão moral era decisiva e
a favela era vista, acima de tudo, como um lugar onde um resíduo social
incorrigível e feroz apodrecia em um esplendor imoral e quase sempre
turbulento; na verdade, uma vasta literatura excitava a classe média
vitoriana com histórias chocantes do lado negro da cidade [...].

O estigma favelado – referindo-se ao território e ao sujeito –, não é uma novidade


conjuntural do final do século XX. Porém, o aperfeiçoamento da criminalização da
pobreza, a partir, principalmente, da guerra às drogas, foi capaz de atualizar essa
estigmatização, mantendo intactas as suas raízes.

No caso do Rio de Janeiro, a violência urbana justificou a construção do perfil


violento, capaz de articular o território e o tráfico de drogas, interligando-os como
partes de um mesmo fato, como atenta Leite (2014, p. 625):
A experiência carioca articula uma problemática cujo foco central é o crime
violento, cujos atores típicos são os traficantes de drogas ilícitas, cujo
principal ambiente são os chamados territórios de pobreza (no caso, as
favelas cariocas) e cujos atores secundários são seus jovens moradores.

Pode-se dizer, então, que uma das origens da estigmatização, que acompanha
historicamente os territórios de favela dentro da formação do território brasileiro, é a
ideia de manutenção da ordem. Assim, sem grandes invenções, a ideia de “ordem”
apenas se atualiza no final do século XX. Para Estado, sociedade civil, mídia e
forças de segurança, dentre as medidas necessárias para conter a violência urbana,
a mais importante era impor a "ordem" aos territórios de favela, quase como uma
ideia civilizatória – método bastante conhecido da nossa história colonial.

A prática da ação do Estado contra as favelas cariocas foi denominada por


Wacquant (2007) como “contenção punitiva”. Segundo o autor, tal prática se refere a
ações das elites políticas, que optam por desonerar o Estado das obrigações
socioeconômicas com a população, enquanto reforçam a presença de um Estado
policialesco e vigilante.
As táticas de saturação, a vigilância de todos os lados e a coerção exercida
pelo Estado sobre os remanescentes do gueto e das favelas, de forma a
“restaurar a ordem”,, para – segundo as autoridades – o posterior benefício
de seus moradores seriam consideradas intoleráveis, se não evidentemente
ditatoriais, se aplicadas em bairros de classe média ou alta. (WACQUANT,
2007 p. 212)
30

A contenção punitiva foi justificada pela desordem favelada, estigma que, em


vários momentos da história brasileira, se referiu ao desenho urbano e justificou
inúmeras políticas de remoções; bem como influenciou e geriu a política de
segurança adotada dentro das favelas. Sob o simbolismo ordenado, pouco se
questionou a realidade social concreta vivida nas favelas. Nesse sentido, Machado
(2008) aborda a existência de dois ordenamentos sociais distintos e incompatíveis
entre si, e, portanto, duas leituras radicalmente opostas do que é a representação da
violência urbana na vida cotidiana do indivíduo.
os moradores de favela articulam suas práticas segundo uma dupla
inserção, como participantes da ordem institucional legal, e, paralelamente,
da sociabilidade violenta. (MACHADO, 2008)

Assim, a imposição de um ordenamento estranho à vida social construída nas


favelas nada mais é do que a justificativa para a transgressão de direitos da
população favelada, ou seja, a imposição da ordem impetrada pela utilização, em
larga escala, da força em detrimento do respeito à Ordem Institucional Legal.

A sociabilidade convencional se constrói ao passo que suas características se


afastam das características imputadas às favelas, de forma que ela se apresenta
pelo afastamento de signos que remetam à favela, construindo, assim, a sua
oposição, que seria a sociabilidade violenta. Portanto, as constantes incursões de
caráter civilizatório se justificam pela necessidade de estabelecer a ordem própria da
vida social, de acordo com os preceitos de convencionalidade estabelecidos.

A Ordem, como valor branco, ocidental e cristão, foi o que sempre norteou a
estigmatização das “classes perigosas” e, consequentemente, o que orientou como
as políticas de Segurança Pública deveriam se relacionar com o território e seus
indivíduos. Como maneira de impor o ordenamento às favelas do Rio de Janeiro, o
Poder Público ora propõe soluções abertamente militarizadas, ora pacificadoras,
sem que, todavia, haja o rompimento com a caracterização da metáfora da guerra,
capaz de criar o inimigo a ser combatido.

Retomando à experiência do governo de Leonel Brizola, em 1983, sob a


tentativa de romper com a compreensão de favela como “desordenamento urbano”,
lugar a ser controlado, o governador propunha uma política de segurança que
responsabilizasse por toda população fluminense. A temática dos “direitos humanos”
foi bastante presente em seu discurso. Para o representante político eleito no
31

período em que o país começava a experimentar sua abertura democrática, era


importante que o debate sobre favelas não girasse somente em torno das remoções
forçadas – muito comuns durante o período da ditadura militar –, e que a questão da
segurança não fosse apartada das inúmeras mazelas sociais.

Nesse período, foi concedida autonomia pelo governo militar aos governos
estaduais para a nomeação de Secretários de Segurança, comandantes das
Polícias Militares e chefes das Polícias Civis. Essa nova estrutura possibilitou que
um governo progressista fomentasse o debate necessário sobre a relação das
forças de segurança com os territórios de favela; relação essa que, até então, se
desenhava como uma necessária guerra com a finalidade de abater os inimigos.

Brizola tentou pôr fim às violentas incursões policiais. Com o intuito de


salvaguardar favelados de ações truculentas do Estado, o governador também
extinguiu a Secretaria de Segurança Pública e criou o Conselho de Justiça,
Segurança Pública e Direitos Humanos, elevou a Polícia Militar ao status de
Secretaria e, por meio de decreto, determinou que o Secretário deveria ser um
membro da Polícia Militar, na tentativa de diminuir a ingerência das forças do
Exército na Segurança Pública do Rio de Janeiro, como relata o fragmento do texto
a seguir:
A mudança de conduta do Governo em relação à comunidade deve
começar pelo respeito aos direitos humanos em todos os níveis,
particularmente no que diz respeito à segurança do cidadão comum. É
necessário criar junto à população a consciência do fim da arbitrariedade e
da impunidade, no que diz respeito às autoridades estaduais. O cidadão não
deve temer a polícia, que será acionada para protegê-lo, e não para reprimi-
lo. Não haverá prisões sem flagrante delito e não se entra nas favelas
arrombando portas de barracos, mas, ao contrário, a nova administração
vem tentando atuar em colaboração com a comunidade. A manutenção da
ordem pública se fará através do policiamento preventivo, do diálogo e da
ação política, e o governo garante ao cidadão o direito de se manifestar
livremente.9

Quando proibiu que policiais militares fizessem incursões violentas e desrespeitosas


aos morros e favelas fluminenses, Leonel Brizola combateu o tratamento desigual na
ocupação do território pelas forças policiais. Porém, a não diminuição nos índices de
criminalidade cooperou, à época, para a manutenção da perspectiva de
responsabilização da favela pela produção do violento.

9
Plano Diretor da PMERJ (1984-87). Publicado pela Imprensa da PMERJ, edição de abril de 1986.
Arquivo do Instituto Carioca de Criminologia (ICC).
32

A ideia de que a criminalidade surge nas favelas e daí se expande para a


área nobre, além de estigmatizar o indivíduo favelado, presenteia o Estado com a
prerrogativa de transgredir direitos, que, na prática, significa tratar de forma
diferenciada os espaços de pobreza e seus moradores. Do favelado desordeiro,
antes capoeira vagabundo, hoje traficante maconheiro, se desenha o indivíduo
perigoso, alguém a ser temido e, portanto, combatido.

Dessa forma, a ideia de “ordem” orienta a construção do “medo”. Tais


conceitos são muito importantes para o presente trabalho, pois aqui aparecem como
fios condutores responsáveis por articular os temas da militarização, da urbanização
e da disputa pelo projeto político e econômico para a cidade do Rio de Janeiro. Para
aprofundar o papel do medo dentro do contexto da urbanização militarizada, a fim de
que não se cometa um reducionismo histórico, é preciso que se resgate, em
contornos gerais, as raízes da construção brasileira. Faz-se necessário
compreender a experiência de um país da periferia do capital, com profundas
marcas colonialistas e intensamente racista e patriarcal.

A heterogeneidade como um valor de formação da cidade, de encontro e


intercâmbio de culturas e saberes, não foi a realidade brasileira. Diversos povos e
diferentes etnias foram dominados em nome da ordem – branca e cristã. A
superação do colonialismo não foi capaz de superar o ordenamento imposto, este
apenas foi aperfeiçoado pela República, com a flexibilidade exigida pelas novas
configurações capitalistas (MALAGUTI, 2014).

Vera Malaguti elabora, em sua literatura, como o medo se relaciona com o


território, a partir das nossas origens colonialistas.
A ocupação dos espaços públicos pelas classes subalternas produz
fantasias de pânico do “caos social”, que se ancoram nas matrizes
constitutivas da nossa formação ideológica. (MALAGUTI, 2014, p. 34).

Rompe-se com a organização política econômica escravista sem que se rompa com
a ideologia que a fundamenta. Assim, os mecanismos de controle e repressão, em
nome da manutenção da ordem, são atualizados para a nova fase capitalista, e o
poder de acesso ao consumo determina quais serão as novas classes perigosas a
serem temidas.
33

O crescimento do tráfico de drogas ajudou a conformar no imaginário carioca


a existência de um território desordenado, perigoso e violento, e se valeu da
construção do medo para apontar os responsáveis pela violência urbana. Contra
esses supostos responsáveis – sujeitos e territórios – valem medidas de exceção.
Dessa forma, a construção do medo é capaz de inibir justas contestações e
possibilitar que crueldades sejam normalizadas.

Na década de 1980, o medo se constrói contra elementos rapidamente


associados às favelas e aos favelados, como se nesses territórios surgissem a
violência, que deve ser contida antes que ela alcançasse o asfalto (MACHADO,
2008). A garantia de segurança do cidadão só poderia ser alcançada em detrimento
dos subcidadãos, oriundos das novas classes perigosas.

Não é incomum que moradores de favelas, em momentos em que seus


direitos são desrespeitados – seja através de ação de busca por policiais militares
sem mandado, seja no assassinato de seus filhos e parentes –, reafirmem perante
os veículos de imprensa, a representantes do judiciário, a agentes do Estado, a sua
condição de “trabalhador”. A autoimposta limpeza moral (MACHADO, 2008), que os
favelados necessitam para sobreviver, é consequência de uma forma de
sociabilidade que produz efeitos para fora e para dentro do seu território. Para fora,
a estigmatização do violento, do selvagem, daqueles que possuem uma cultura
inferior.

O tráfico de drogas, a circulação de armas e o crescimento das facções


criminosas fazem parte da história das favelas cariocas e, ao mesmo tempo, da
maior estigmatização do favelado. Sobre a estigmatização, Fridman (2008) alerta:
[...] outra máxima logo se adiciona: “se nem todos são bandidos, são quase
bandidos”. E, paradoxalmente, aqueles que pedem “menos Estado” insistem
no dispêndio cada vez maior para a segurança e o sistema penal. As
políticas sociais com relação a grandes massas desalojadas da divisão
social do trabalho não mais se destinam à criação de redes de proteção
social para os mais vulneráveis; trata-se agora de fortalecer o “Estado
guardião”, aquele que garantirá eficácia na criminalização da pobreza.
(FRIDMAN, 2008, p. 81)

A construção do medo, na década de 1990, no Rio de Janeiro, foi intensamente


articulada entre as ferramentas políticas, econômicas e midiáticas. De tal modo que,
no processo eleitoral à época, o discurso vencedor foi o que previa o
estabelecimento da ordem em razão do combate à criminalidade. A estratégia foi tão
34

vitoriosa que, em 1995, o recém-empossado governador Marcelo Alencar aprovou


um dos maiores absurdos no campo das políticas de Segurança Pública: a chamada
condecoração por bravura ou, como ficou conhecida popularmente, gratificação
faroeste.

A gratificação consistia na premiação dos policiais por seus homicídios e, por


meio do Decreto 21.753/1995, o absurdo respaldado legalmente incentivou
acontecimentos como o descrito pela reportagem da Folha de São Paulo:
Três dos seis policiais militares flagrados em filmagem espancando
favelados da Cidade de Deus (Zona Oeste do Rio de Janeiro) receberam do
governo estadual, em 1996, o aumento salarial conhecido como gratificação
"faroeste". Oficialmente, a gratificação é dada a PMs que tenham praticado
atos considerados de bravura. Na maioria das vezes, o policial premiado
participou de ações que resultaram na morte de supostos criminosos. Os
seis PMs estão presos desde anteontem, entre eles o major Álvaro
Rodrigues Garcia, chefe da ação na favela, e os cabos Geraldo Antônio
Pereira e Sérgio Ricardo Paiva, que foram premiados com a gratificação
"faroeste", que aumenta os salários em até 150%. Segundo o comandante
do 18º BPM, tenente-coronel Maurício Ghedini, a premiação se deveu "ao
conjunto de bons serviços prestados à sociedade e à corporação".10

O medo de toda a sociedade, pela violência urbana experimentada em todo o


território, foi capaz de justificar o assassinato perpetrado quase que majoritariamente
nas favelas cariocas. Malaguti (2014, p. 52) afirma de forma brilhante que:
As sociedades rigidamente hierarquizadas precisam do cerimonial da morte
como espetáculo de Lei e Ordem. O medo é a porta de entrada para as
políticas genocidas de controle social.

A estigmatização e a criminalização dos territórios de favela são mecanismos de


complexos engendramentos, posto que coordenam fatores como: a construção do
medo, a imposição da ordem, o conceito propagado de violência urbana, os atores
que promovem essa violência, o empoderamento dos agentes estatais para
promoverem ofensiva contra essa violência. A sociabilidade violenta, trabalhada por
Machado (2008), a qual se submete o favelado, é a conformação da criminalização
do território de favela e da estigmatização deste enquanto lugar de produção do
indesejável.

10
Policiais ganharam gratificação 'faroeste'. Folha de São Paulo, 09 abr. 1997. Disponível em:
<https://bit.ly/3cJPSIl>. Acesso em: 20. dez. 2020.
35

2.3 O processo de pacificação e sua derrocada

O início dos anos 2000 representou um importante momento de inflexão na


política de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Pode-se dizer que a virada de
século trouxe a orientação na implementação da política de pacificação dentro do
contexto social da realização dos megaeventos e da neoliberalização latente na
gestão da cidade.

No esforço de trazer elementos que facilitem o processo de reflexão sobre as


metamorfoses da violência urbana, há de se ter especial consideração pelo
processo de pacificação, uma vez que este é considerado de maneira unânime por
urbanistas, pesquisadores da área de Segurança Pública, sociólogos, economistas e
juristas, como um episódio de extrema importância na história recente do Rio de
Janeiro.

Mesmo que a criação de outros programas tenha sido determinante para a


consolidação a ideia de pacificação11, como atenta Rocha (2018), é preciso
compreender que, dentro do contexto do urbanismo militarizado, a criação das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), foi a maior expressão da inflexão da
política de Segurança Pública.

O projeto apresentado em 2008 não foi capaz, no entanto, de romper com a


metáfora da guerra, construída nas décadas anteriores. Segundo a socióloga Lia de
Mattos Rocha (2018), o programa representou a ampliação da presença e da
atuação das forças militares nas áreas de favelas, aprofundando a relação de
controle militarizado exercida pelo Poder Público sobre os territórios de favela.

O processo de pacificação se anunciou como a solução discursiva óbvia que


faria frente às problemáticas econômica e urbana e, sobretudo, ao duradouro
problema relacionado à Segurança Pública. Sendo assim, é preciso que se
contextualize a aposta política da implementação da UPPs como consequência de
formulações feitas ainda no fim do século XX.

11
Morar carioca: programa de urbanização de favelas, criado por Eduardo Paes, em 2010, visava
integrar todas as favelas à cidade formal até 2020, com obras de infraestrutura e saneamento básico,
a partir da escuta dos moradores locais. Programa de aceleração do crescimento para as favelas:
criado em 2007, o programa PAC do Governo Federal financiou recursos para o PAC-favelas, já em
2008. Houve a priorização de obras pouco necessárias, em detrimento de infraestrutura básica como
pediam os moradores; entre outros.
36

No contexto internacional, é elaborado o Consenso de Washington formulado


por instituições financeiras, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco
Mundial, que passou a ser a cartilha econômica prescrita aos países
subdesenvolvidos, principalmente aos países latino-americanos (VAINER, 2011). De
caráter radicalmente neoliberal, o pacote de recomendações foi um dos
responsáveis pela intensificação da desigualdade social nos países
subdesenvolvidos.

O crescimento da influência das políticas de cunho neoliberal trouxe


consequências profundas aos países subdesenvolvidos, de modo que tal modelo
passou a se traduzir nas cidades por meio de gestões cada vez mais submissas aos
interesses do mercado. Foi nesse contexto que, na década de 1990, no Rio de
Janeiro, ganha corpo a discussão acerca da necessidade de que os novos debates
urbanos incorporassem elementos de ordenamento e eficiência e, não por
coincidência, ganhou espaço no campo do planejamento urbano o modelo que
prioriza a intervenção direta do mercado – em detrimento do controle, intervenção e
direcionamento do Estado – no planejamento estratégico (VAINER, 2000).

O planejamento estratégico possui técnicas subjetivas, que combinam: a


saída apolítica para os problemas das cidades, a propagação da falsa ideia de um
problema de gestão, o sentimento de crise e a tentativa de resgate da identificação
do cidadão com seu espaço, a partir do sentimento de paixão pela cidade com
intuito do convencimento geral de que as cidades precisam ser competitivas, fortes e
diferenciadas.

Cesar Maia (1993-1996 / 2001- 2004 / 2005-2008), ainda no Partido do


Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), inaugurou a era de fortalecimento da
concepção empresarial de gestão de cidades e tornou possível a implementação do
planejamento estratégico. A força da coalizão política, expressa inicialmente por ele,
priorizou os interesses privados na intervenção direta no contorno das cidades, em
detrimento da funcionalidade desta para o conjunto da população.

Baseado no diagnóstico realizado, o Plano Estratégico proposto definiu o seu


objetivo central: tornar o Rio de Janeiro uma metrópole com crescente qualidade de
vida, socialmente integrada, respeitosa da coisa pública e que confirmasse sua
37

vocação para a cultura e para a alegria de viver. Uma metrópole empreendedora e


competitiva, com capacidade para ser um centro de pensamento e de geração de
negócios para o país, a partir de sua conexão privilegiada com o exterior.

Cesar Maia e seu Secretário de Urbanismo, Luiz Paulo Conde, inauguraram o


projeto estratégico como um importante ponto de inflexão na economia e na
compreensão urbana: se antes os interesses privados e públicos se misturavam,
agora os interesses privados passaram a ditar os objetivos da gestão pública. Assim,

poder-se-ia, sem grande dificuldade, qualificar o Plano Estratégico da


Cidade do Rio de Janeiro de bem orquestrada farsa, cujo objetivo tem sido o
de legitimar orientações e projetos caros aos grupos dominantes da cidade.
Sem dúvida, esta avaliação contempla uma das dimensões da iniciativa.
Mas ela é insuficiente, pois escapa-lhe aquilo que o PECRJ tem de
inovador. Sua insistência na participação, seu forte investimento nos rituais
da participação e da unificação da cidade em torno a objetivos comuns, uma
expressiva retórica associando desenvolvimento econômico ao
desenvolvimento e integração sociais são novidades no discurso das
entidades empresariais cariocas, cuja tradição é fortemente corporativa. Há
inovações, e elas não são meramente discursivas. (ARANTES; VAINER;
MARICATO, 2000, p. 116)

O segundo Plano Estratégico, apresentado em 2004 por César Maia, marca seu
rompimento com Luiz Paulo Conde e difere do primeiro em alguns pontos. Talvez, o
mais importante para o trabalho seja a definição dada à região da Barra da Tijuca,
que passa a figurar como área de extrema importância para o investimento do setor
privado e de grande relevância para a compreensão posterior do “marketing urbano”.

Para parte da população carioca, esse projeto foi tão vitorioso que Eduardo
Paes sucedeu a Cesar Maia e, em seu primeiro Plano Estratégico, ressaltou as
várias marcas dentro da marca Rio de Janeiro – Maracanã, Copacabana, Corcovado
– (PECRJ, 2009), se utilizando amplamente do marketing do discurso para promover
a Cidade Olímpica. Assim, Eduardo Paes inaugurou a estratégia discursiva do “Rio
capital” – da indústria, do meio ambiente, do turismo, do audiovisual –, com
possibilidades concretas de receber a final da Copa de 2014 e os jogos olímpicos de
2016, imerso na concretização do projeto de neoliberalização da cidade do Rio de
Janeiro.

Há uma interseção das inclinações transnacionais e da burguesia nacional e,


assim, o projeto de poder que já vinha sendo construído no Rio de Janeiro se
associa a esses novos interesses e se moderniza, necessitando da contenção
38

militarizada para a garantia do novo ciclo econômico. Wacquant 12 diz que a


segurança criminal é um espetáculo para ocultar uma insegurança social. Com a
conquista de sediar os Jogos Pan-Americanos e, posteriormente, as Olimpíadasa
cidade do Rio de Janeiro passa ocupar o posto de cidade global, se colocando em
disputa, legitimada como uma capital competitiva. É nesse contexto que surgem
UPPs, inicialmente servindo como uma blindagem ao corredor turístico do Rio de
Janeiro.

A ampla experiência na adoção de valores do Plano Estratégico foi um


importante pilar para a posterior “era dos megaeventos”, que teve como âncora o
programa de segurança que a sustentou, revelando a associação do projeto de
cidade mercadoria com a proposta excludente de segurança. A intenção não é
desenvolver de que forma o plano econômico se impôs como um modelo capaz de
mobilizar o conjunto da população e formar um bloco de coesão e disputa
ideológica; mas, sim, expressar o contexto de implementação de uma importante
política de Segurança Pública.

A primeira Unidade de Polícia Pacificadora foi implementada na favela Santa


Marta, em 2008. Porém, é apenas por meio do Decreto n o 41.650, de 21 de janeiro
de 2009, que as Unidades de Polícia Pacificadora são formalizadas. Em paralelo, o
contexto político apontava para a “grande união” entre os governos municipal,
estadual e federal, em uma aliança política que foi do Partido Progressista (PP) ao
Partido Comunista do Brasil (PCdoB). A aliança eleitoral consolidou a hegemonia do
PMDB no Rio de Janeiro, com importante participação dos partidos do bloco de
esquerda, a exemplo dos petistas Jorge Bittar, na Secretaria de Habitação da
Cidade, e Carlos Minc, na Secretaria de Meio Ambiente13.

Nesse sentido, vale ressaltar que a realização dos megaeventos 14 foi um


projeto que serviu para reorganizar as relações sociais no território, resultando em
mudanças nas estruturas de funcionamento da cidade, no sistema de transportes e
na política de Segurança Pública. Toda a infraestrutura da cidade foi readaptada
12
Cf. BOCCO, F.; NASCIMENTO, M. L.; COIMBRA, C. A segurança criminal como espetáculo para
ocultar a insegurança social: entrevista com Loïc Wacquant. Fractal, Rev. Psicol., Rio de Janeiro, v.
20, n. 1, p. 319-329, 2008.
13
Responsável por liberar a licença ambiental para a Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA).
14
Muito se fala da Copa do Mundo (2014) e das Olimpíadas (2016). Entretanto, foram realizados
também, entre 2010 e 2016, outros megaeventos, como: Fórum Mundial Urbano (2010), Jogos
Mundiais Militares (2011), Rio+20 (2012), Copa das Confederações (2013) e Copa América (2015).
39

para que fosse possível realizar as Olimpíadas, aumentando o hiato de segregação


entre os beneficiados e excluídos. A exemplo disso, as quatro grandes regiões
apresentadas pelo Comitê Olímpico como locais de realização dos jogos (Maracanã,
Copacabana, Jacarepaguá e Deodoro) quase que se sobrepõem às regiões que
receberam as primeiras UPPs. Apesar da primeira fase das UPPs contemplar,
principalmente, as favelas da Zona Sul, favelas que compuseram o corredor
olímpico, como Cidade de Deus15 e a favela do Batan, também foram contempladas.
Além dessas, em 2010, a favela da Providência também foi pacificada, no mesmo
ano em que ocorreu o Fórum Urbano Mundial, na Zona Portuária16.

Os moradores das favelas da Zona Sul nas quais foram implementadas as


UPPs viram os valores imobiliários explodirem e viveram processos – incipientes ou
mais acelerados – de gentrificação17, que resultaram na expulsão dos habitantes da
região, ora sutilmente com aumento do preço dos aluguéis e da oferta de serviços,
ora abertamente com o processo de remoção para áreas afastadas da cidade.

O projeto inicial das UPPs previa também a implantação de UPPs sociais,


que seriam coordenadas pelo Instituto Pereira Passos e pela ONU Habitat. Logo
depois, a fim de se autonomizar, o programa passou a se chamar “Rio mais social”.
O objetivo era promover de ações de cidadania 18 nos territórios ocupados pela
Polícia Militar. Além da integração entre o poder público estadual e municipal, o
programa contava com a participação da iniciativa privada e das organizações do
terceiro setor. Reconhecido internacionalmente, no momento de sua propositura,
como uma tentativa revolucionária de integração social dos territórios de favela, o
projeto fracassou devido às dificuldades em sua articulação e às enormes limitações
de participação popular.

A implementação das UPPs foi acompanhada por outras iniciativas, como a já


mencionada UPP social. Houve, ainda, um grande aporte econômico da iniciativa
privada, e estima-se que as doações de empresas como EBX, Bradesco Seguros.

15
Localização estratégica, próxima à Barra da Tijuca, onde foi construído o complexo olímpico.
16
Área de bastante interesse do capital imobiliário, a região portuária foi um dos símbolos urbanos de
expulsão e gentrificação promovidos pela gestão de Eduardo Paes.
17
Processo de expulsão dos moradores da região, devido ao aumento dos preços de aluguéis e
serviços.
18
Saneamento, coleta de lixo, educação e saúde, entre outros serviços públicos.
40

Coca-Cola e Souza Cruz giraram em torno de, aproximadamente, R$ 23 milhões. 19,


caracterizando-a como uma estratégia a médio prazo, diferente das eventuais
intervenções federais que tiveram início na década de 1990.

Essa característica fez com que a política dividisse opiniões, como bem relata
Machado (2015):
Desde a implantação da primeira unidade, na favela Santa Marta, em
dezembro de 2008, as UPPs foram alçadas ao centro das atenções no
debate sobre a manutenção da ordem pública no Rio de Janeiro. De um
lado, militantes (favelados ou não), e uma parte dos pesquisadores têm
defendido que as UPPS são apenas um novo nome fantasia para as
mesmas práticas policiais de sempre: arbitrárias, corruptas e violentas.De
outro, uma minoria de oficiais superiores da Polícia Militar (PM), à qual as
UPPs estão subordinadas, os demais pesquisadores, grande parte da
opinião pública, incluídos segmentos da população favelada, e quase toda a
grande mídia, consideraram as UPPs um sucesso tão grande que elas se
tornaram uma verdadeira panaceia. (MACHADO, 2015, p. 12)

O programa de pacificação nas favelas foi responsável por fomentar o importante


debate sobre a necessidade do policiamento menos hostil e do resgate de valores
do policiamento comunitário e menos hostil, conseguiu apresentar queda nos índices
de homicídios no início de sua implementação, além de afastar a presença do tráfico
armado nesses territórios. Foi responsável também por favorecer investimentos
nessas regiões, principalmente do turismo, além de propiciar o intenso crescimento
da oferta de serviços nesses locais. O programa, porém, não foi capaz de romper
com a agenda da Segurança Pública, comprometida em combater a violência
urbana pautada pela metáfora da guerra, pela estigmatização dos territórios de
favela e pela busca da ordem.

Os megaeventos impuseram a necessidade de uma cidade competitiva forte,


ativa e, ao mesmo tempo, segura. A estratégia de ocupação a longo prazo exigia
que as forças policiais fossem parte do mecanismo de contenção que, de maneira
subjetiva, cooperava para a estigmatização de territórios e seus indivíduos. Como
argumenta Machado (2008):
A função da polícia passa a ser vista pelas camadas mais abastadas como
um muro de contenção ao intercambio de indivíduos e maneiras de viver,
em vez de ser um meio orgânico de sua regulação. Com os encontros cada
vez mais escassos e envoltos por uma hostilidade [...] cresce a
desconfiança recíproca e se aprofundam as distâncias sociais. (MACHADO,
2008, p. 14)

19
Cf. MESENTIER, A. A estratégia do capital no Rio de Janeiro. Disponível em:
<https://bit.ly/3xqoZBn>. Acesso em: fev. 2021.
41

Com balanços que podem parecer controversos em um primeiro momento, a


implementação das UPPs foi um marco importante para o estudo geral do avanço
dos dispositivos militarizados nas cidades.

A inflexão pacificadora não inaugurou um novo período na Segurança Pública


do Rio de Janeiro. Entretanto, foi responsável por trazer elementos que auxiliam na
compreensão do cenário do processo de urbanização militarizada na cidade, a partir
da estratégia de Segurança Pública ditada pelo projeto econômico dos
megaeventos. Conforma-se, assim, a tríade a ser trabalhada: urbanização,
militarização e neoliberalização.
42

3 TERRITÓRIOS SITIADOS: AS BASES DO URBANISMO MILITAR NO RIO


DE JANEIRO

O investimento nas Unidades de Polícia Pacificadora não foi capaz de romper


com a lógica da guerra imposta na cidade do Rio de Janeiro; pelo contrário, a aposta
na Segurança Pública a partir da insígnia pacificadora foi responsável por organizar
a permanência e a contenção militar nos territórios de favela, como forma de regular
as relações sociais, o acesso a direitos e a experimentação da cidadania. Porém,
conforme mencionado, sua breve existência cooperou com a reflexão no campo dos
estudos sociais e urbanos acerca os dispositivos militares colonizando a paisagem
no cotidiano das cidades.

Ao longo dos últimos anos, fica nítido que, progressivamente, os elementos


militares vêm ganhando espaço no cotidiano dos moradores dos grandes centros
urbanos no mundo todo, dos e-borders na Inglaterra (GRAHAM, 2016, p. 23) aos
mais simples dispositivos de monitoramento e vigilância nos grandes condomínios
da Barra da Tijuca.

O geógrafo Stephen Graham (2016) aborda como o novo urbanismo militar


atravessa a vida dos grandes centros urbanos – tanto das cidades do Norte global,
que exerceram e exercem um domínio imperialista, quanto nas cidades do Sul
global, submetidas como colônias exploradas ao longo dos séculos e que ainda
sofrem as consequências de tais arranjos.

Nesta pesquisa, a classificação utilizada por Graham (2016) figura como


arcabouço de referência, de tal forma que são considerados países do Norte global
aqueles que viveram um processo anterior de industrialização e subjugaram outros
povos a regimes coloniais, sendo hoje chamados de países centrais ou
desenvolvidos. Como correspondência, os países do Sul global são aqueles que
viveram o colonialismo e são hoje chamados de periféricos ou subdesenvolvidos.

No estudo das cidades, deve-se levar em consideração que a nova realidade


dos grandes centros urbanos produz uma vida citadina intensa e permeada de
elementos de controle, vigilância e monitoramento que, por vezes, são
imperceptíveis ou facilmente normalizados. Sob a justificativa de combate e
43

prevenção à guerra, se amplia a contenção social para garantir a livre circulação do


capital e aumentar o consumo. Nesse sentido, a busca pela ordem inalcançável é
bastante lucrativa para os grandes capitalistas e abdica de necessidades e garantias
básicas que atendam aos cidadãos.

A concretização dessa opção é feita a partir de elementos securitários que


cooperam para o aumento do abismo social nas grandes cidades Mesmo assim, a
militarização da vida urbana é tendência mundial: “guerra nas favelas do Rio de
Janeiro”, “guerra nas cidades de Bogotá”, “guerra às drogas”, são exemplos de
como a guerra é parte constitutiva do dia a dia citadino e, deste modo, a
militarização do cenário social coloniza a paisagem urbana com elementos
belicistas.

O conceito de “guerra urbana” se assemelha ao conceito de guerra


assimétrica, ou conflito de baixa intensidade, que é explorado por Graham (2016),
caracterizando-a como uma espécie de guerra eterna ou sem previsão de desfecho,
uma guerra permanente e sem limites. Como afirma o autor:
A mudança paradigmática que torna os espaços comuns e privados das
cidades, bem como sua infraestrutura – suas populações civis –, fonte de
alvos e ameaças é fundamental para o novo urbanismo militar. Isso se
manifesta no uso da guerra como metáfora dominante para descrever a
condição constante e irrestrita das sociedades urbanas – em guerra contra
as drogas, o crime, o terror, contra própria insegurança. Esse advento
incorpora a militarização sub-reptícia de uma ampla de gama de debates de
política interna, paisagens urbanas e circuitos de infraestrutura urbana, além
de universos inteiros de cultura popular e urbana. Leva à difusão furtiva e
insidiosa de debates militarizados sobre ‘segurança’ em todos os aspectos
da vida. (GRAHAM, 2016)

A guerra às drogas é uma representação do que Graham chama de guerra de 4ª


geração: ela não necessariamente prioriza o extermínio de um povo ou etnia, nem
mesmo se propõe a anexar outros territórios nacionais, mas ela se desenrola no
cotidiano urbano, como parte integrante desse, passa a ser a regra e deixa de ser
uma exceção. No aspecto da sociabilidade e na conformação de laços urbanos, a
guerra às drogas é a justificativa encontrada para a inserção de elementos da
urbanização da segurança nos vários sentidos da vida cotidiana.

O objetivo de contenção é responsável por milhares de mortes, prova disso é


que, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2015 20, 58 mil pessoas
20
Cf. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2015. Disponível em: <https://bit.ly/3nwbrA0>. Acesso
em jan. 2021.
44

foram assassinadas no país. Em comparativo realizado, constatou-se que, enquanto


na Síria21, em dez anos, morreram 387.11822 mil pessoas, no Brasil, no período de
onze anos, 553 mil pessoas foram mortas23. Esse cálculo não se refere apenas às
mortes cometidas pelos agentes do Estado; mas, sim, ao total de mortes violentas,
que atendem, em sua maioria, a episódios relacionados à guerra às drogas.

Simultaneamente, cifras de lucros exorbitantes são garantidos, uma vez que a


crise econômica mundial, em 2009, não impediu que o mercado das drogas – mais
especificamente, a venda de cocaína – injetasse 352 bilhões de dólares no mercado
financeiro. Em 2012, a produção de cocaína estava entre 788 e 1060 toneladas,
sendo o Brasil o segundo maior consumidor, perdendo apenas para os Estados
Unidos (SOARES, 2019). O autor destaca que
entre 2005 e 2007, a Marinha colombiana apreendeu dezoito submarinos,
identificou trinta e estimou que outros cem estivessem em operação,
transportando a droga pela costa do pacifico até a Califórnia. O narcotráfico
transnacional já acumulou capacidade técnica, acesso a componentes para
fabricação e capital suficientes para produzir seus próprios submarinos,
muitos dos quais em fibra de vidro. O arsenal inclui helicópteros M18, do
exército soviético, aeronaves mais novas e aviões de todas as dimensões, e
embarcações dos mais variados tipos (SOARES, 2019, p. 172)

Assim, a militarização como um artifício do Estado no controle e apaziguamento do


que pode ser compreendido como perturbador da ordem, não é, em si, uma
novidade. Todavia, a utilização em larga escala é capaz de imprimir uma política
urbana cada vez menos útil para a população. A guerra assimétrica, conceituada por
Graham (2016), justifica o uso cotidiano de técnicas e dispositivos militarizados na
vida urbana e ajuda a construir o que o autor denomina como novo urbanismo
militar. Dessa forma, a guerra às drogas nas favelas do Rio de Janeiro pode ser
compreendida como uma exemplificação do que Graham (2016) denominou de
guerra permanente, já que garante a contenção e o lucro.

Sob o ponto de vista formal, a legalidade é extremamente fluida quando se


trata de combater “o mal e o terror”. Na guerra, portanto, não há celebração dos
direitos humanos, porque não se trata de um outro “ser humano”, se trata, a priori,
de um inimigo desumanizado que deve ser abatido. Não existem noções de
21
Guerra que dura mais de 10 anos. O conflito no país árabe se iniciou após levantes pela
democracia e se estende como uma sangrenta guerra civil, de intervenção direta de países do Norte
global.
22
Por que a guerra da Síria continua após 10 anos? BBC News, 15 mar. 2021. Disponível em:
<https://bbc.in/3dUVlNe>. Acesso em: mar. 2021.
23
Cf. Atlas da Violência, 2018. Disponível em: <https://bit.ly/3xmA4DP>. Acesso em: mar. 2021.
45

cidadania aplicáveis a uma guerra. A inflexão do novo urbanismo militar apresenta,


no entanto, um inimigo que nem sempre é um “forasteiro”, porque limites geográficos
são referendados pela divisão daqueles que podem circular e, portanto, precisam ter
sua segurança garantida. Entre aqueles outros que representam um perigo para a
garantia da Ordem, entre aqueles “de risco” e os considerados “livre de risco”, a
garantia da segurança nos limites internos da fronteira e o fortalecimento da “não lei”
para os de fora, segundo Graham (2016), “naturalizou o binário entre os domésticos
e os estrangeiros”, pautados mais pela divisão social e econômica apontada
anteriormente do que pela compreensão de nação.

Não há universalismo no mundo neoliberal capaz de derrubar fronteiras de


desigualdades, o que gera a proposital distorção da ideia de pertencimento, já que a
proteção baseada em reconhecimento de nacionalidade ou de mútua identificação
não é interessante para governos ditados por regras de capitalistas supranacionais.
Portanto, a queda das fronteiras não significou a construção de sistemas
transnacionais de solidariedade; pelo contrário, incentivou que as guerras se
reproduzissem no interior das cidades. Sendo assim, quando os conflitos internos
são transformados em guerras eternas, há de se concluir que se perpetua a
normalização da condição subumana de vida para os designados inimigos.

O constante uso dos dispositivos militares na vida urbana é responsável por


reduzir e, muitas vezes, derrubar por completo as fronteiras entre elementos da vida
civil e componentes antes exclusivamente militares, permitindo que a militarização
se organize na disputa ideológica e estruture os elementos da vida política das
cidades. Esses elementos estão presentes na organização da vida citadina e
coexistem com o processo intenso de urbanização, se articulando fortemente a partir
dos interesses do capital, do avanço tecnológico e do aperfeiçoamento da
criminalização da pobreza.

Graham (2016, p. 27) afirma que são cinco as principais teses do novo
urbanismo militar, sendo elas: a) A urbanização da segurança; b) O ‘bumerangue de
Foucault’; c) A economia vigilante; d) A infraestrutura urbana, guerra urbana; e) Os
soldados cidadãos.
46

Assim, objetiva-se desenvolver no presente capítulo uma reflexão sobre as


teses mencionadas, aplicadas à realidade contemporânea do Rio de Janeiro,
sabendo que os paralelos apresentados são traçados a partir da nossa realidade
social, ou seja, na percepção da pesquisa em tela, o novo militarismo urbano não é
realidade totalizante na cidade do Rio de Janeiro; porém, elementos de aproximação
nos permitem afirmar que a teoria desenvolvida por Graham (2016) se esboça na
realidade brasileira e, mais precisamente, na cidade estudada.

3.1 Favela como palco da guerra urbana: militarização em territórios


populares

Nas primeiras décadas do século XX, foi feito um breve ensaio de avanço na
democracia da vida política da América Latina. Todavia, sem o efetivo rompimento
com valores oligárquicos constitutivos das Repúblicas latinas, a mudança superficial
alcançou apenas o debate institucional mais raso, não sendo capaz de alicerçar
esses países durante a crise de 1930.

A crise, de repercussão mundial, trouxe grande abalo econômico aos países


latino-americanos – que, nesse momento, vivenciavam o aumento das exportações,
resultante do avanço de suas experiências de trocas comerciais internacionais –,
elevando as contradições internas de frágeis democracias dependentes e fazendo
com que governos de tendências autoritárias se apresentassem como a saída de
estabilidade.

Por outro lado, a instabilidade econômica, a profunda desigualdade social e


anos de processos exploratórios e imperialistas produziram inúmeros movimentos
de resistência no território latino, o que propiciou importantes insurreições
anticapitalistas, em meados do século XX, dentro do contexto de grande tensão
geopolítica internacional, a Guerra Fria. A disputa mundial entre Capitalismo norte-
americano e Comunismo soviético se reverberou na América Latina com o forte
intervencionismo militar norte-americano, contra o grande inimigo nacional a ser
derrotado.
47

Osvaldo Coggiola, em artigo publicado em 2014, em colaboração à coletânea


da Editora Boitempo, O que resta do Golpe de 6424 , afirma que essas novas
ditaduras militares que partiram do processo contrarrevolucionário foram a garantia
da base de recolonização da América Latina. Com estratégia e apoio norte-
americano para os golpes militares em todo o continente, visando apaziguar os
ânimos revolucionários, a potência internacional poderia exercer o domínio
imperialista sem os gastos e os desgastes de uma ocupação militar, ou seja, manter
o controle da política externa dos países latino-americanos, a partir de governos
submissos aos seus interesses.

Para o governo norte-americano, a contenção da parte de baixo do continente


foi chamada doutrina da segurança nacional, conforme Coggiola25 explica:

A doutrina da segurança nacional teve um papel importante de álibi


ideológico na condução de grande parte das ditaduras militares da América
Latina e na política de intervenção dos Estados Unidos [...]. Desenvolveu-se
a concepção de que a política internacional seria uma questão de “política
interna” dos EUA e a região mais próxima – a América Latina – deveria ser
objeto de preocupação e atenção maior. Como parte central destas
orientações, o militar latino-americano ganhou destaque na estratégia de
defesa continental.

A doutrina da segurança nacional guiou as sucessivas intervenções das Forças


Armadas na política dos países sul-americanos. No Brasil, por exemplo, o golpe
civil-militar se justificou pela eminência do golpe comunista, temido pelas elites
dominantes. A debilidade das nossas experiências democráticas e o nosso
capitalismo tardio e dependente26 fortaleceram a centralidade das forças militares
nos países latino-americanos e na militarização da vida política do continente,
realidade que influenciou a crescente e acelerada urbanização. A postura
militarizada das forças do Estado permeia as instituições que compõem o bojo da
Segurança Pública, e representa, sobretudo, uma escolha política antiurbana, que
busca eternamente o combate ao inimigo interno, seja ele o comunista ou o
traficante.

A obsessão pela segurança nacional, enquanto um subterfugio ideológico,


movida outrora pelo controle político-militar, avançou a passos largos e, hoje, a
24
Cf. COGGIOLA, O. O ciclo militar da américa do sul. O que resta do Golpe de 64: artigos e
reflexões. Blog da Boitempo, 2014. Disponível em: <https://bit.ly/3cN0LJz>.
25
Cf. COGGIOLA, O. O ciclo militar da américa do sul. O que resta do Golpe de 64: artigos e
reflexões. Blog da Boitempo, 2014. Disponível em: <https://bit.ly/3cN0LJz>.
26
Ibidem.
48

eterna busca pela segurança justificou a presença massiva de dispositivos militares


coexistindo em “harmonia” com a paisagem urbana. O conflito, antes externo, é cada
vez mais lido como um problema doméstico, enquanto o problema doméstico
também é parte de um problema externo, borrando as separações de nacional x
estrangeiro (GRAHAM, 2016).

O aperfeiçoamento da busca pela segurança dentro do espaço urbano é uma


das características do novo urbanismo militar, apresentada por Graham (2016) como
uma das teses que sustentam a sua teoria. Chamada de urbanização da segurança,
a tese diz respeito à forma que elementos militares passam a figurar as paisagens
urbanas, como precaução à guerra. Para o autor, a tese se define como:
Técnicas militarizadas de rastreamento e triagem precisam colonizar
permanentemente a paisagem urbana e os espaços da vida cotidiana, tanto
na pátria quanto nas cidades do ocidente, bem como nas fronteiras
neocoloniais do mundo. [...] única maneira de lidar com as novas realidades
daquilo que chamam de guerra assimétrica ou irregular [...]. (GRAHAM,
2016 p. 27)

O conceito de guerra permanente abordado por Graham (2016) figura


simultaneamente como causa e consequência de cidades cada vez mais
militarizadas, já que a adoção de insígnias militarizantes e militarizadas segue um
padrão de divisão territorial nítido: como essas técnicas se aplicam no morro e como
elas se concretizam no asfalto, a criação do medo, a efetivação da ordem e a
manutenção do Estado racista, orientam a execução da securitização do cotidiano
urbano e do uso de dispositivos militares na contenção social.

Por outro lado, a confusão entre fronteiras nacionais e transnacionais, entre


doméstico e estrangeiro, entre público e privado (GRAHAM, 2016), incentiva que a
estigmatização das classes perigosas seja feita a partir de um acordo tácito incerto
de preservação da ordem, se utilizando da urbanização da segurança como
instrumento de controle e disciplina sobre aqueles compreendidos como inimigos.
Antes comunistas, hoje genericamente terroristas.

Nos EUA, o discurso de “guerra ao terror”, ampliou largamente a participação


dos militares nos assuntos civis, visto que, desde o atentado de 11 de setembro, há
uma permissividade dos EUA com a presença das forças militares. Nathan
Canestaro, em artigo para o Jornal da Universidade de Washington, afirma que:
Embora o Pentágono tenha mostrado anteriormente pouco interesse em
proteger o "campo de batalha doméstico" da nação, entre 11 de setembro
49

de 2001 e 23 de janeiro de 2002, os militares gastaram $ 2,6 bilhões de


dólares e mobilizaram 71.386 soldados para o serviço ativo. O Secretário do
Exército, Thomas White, principal oficial do Pentágono, afirmou que a
Segurança interna é o trabalho número um para os Estados Unidos e terá
toda a atenção. (CANESTARO, 2003, p. 136)

No Brasil, Wilson Witzel declarou, em campanha eleitoral para o governo do estado


do Rio de Janeiro, que os traficantes de drogas, segundo ele, encontrados nas
favelas do Rio, deveriam ser tratados como terroristas. Em suas palavras:
— Eu espero que o Congresso Nacional aprove uma lei antiterrorismo que
enquadre os traficantes como terroristas, para que eles possam ser abatidos
de fuzil e a gente possa, de vez, encerrar essa polêmica. Já falei (com
Bolsonaro) e estamos trabalhando nisso. Ele deve encaminhar para o
Congresso, e nós vamos apoiar. [...] São narcoterroristas e como terroristas
serão tratados.27

A utilização do termo “terrorista” para denominar traficantes de drogas aproxima o


inimigo nacional do inimigo externo, remetendo ao imaginário social brasileiro,
construído com bases racistas, de um inimigo racializado, e os carimbam enquanto
inimigos das nações ocidentais, seja ele mulçumano – perfil exportado pelo governo
norte-americano – ou oriundo das favelas cariocas. Assim, a urbanização da
segurança aproxima a guerra ao terror da guerra às drogas, demonstrando que,
mesmo com suas peculiaridades, o novo urbanismo militar padroniza a reação ao
inimigo.

Para além da manutenção da guerra, um aspecto importante para


compreensão da urbanização da segurança é assimilar a introjeção da ordem militar
na organização do espaço urbano e na busca da urbanidade controlada (GRAHAM,
2016). Toda tentativa de expressão pode ser lida enquanto transgressão, a
policialização é feita pautada em parâmetros e modelos de vida inatingível para a
maioria da população. Nas favelas e periferias, os elementos militares visam realizar
a “contenção punitiva” sobre quem ocupa esses territórios.

Por um lado, a guerra produz a venda da seguridade. Por outro, cria a


necessidade de contenção daqueles que perturbam a ordem e, por consequência,
ameaçam a segurança – a exemplo da contenção militarizada obtida pelas
recorrentes ocupações militares, sejam elas esporádicas ou planos permanentes de
combate à violência, como foram as UPPs. A contradição da busca pela paz a partir
da cultura da guerra se utiliza de forças armadas nacionais no policiamento urbano,
27
Witzel diz que traficantes serão tratados como terroristas e 'abatidos'. O Globo, 02 jan. 2019.
Disponível em: <https://glo.bo/3eAwmOg>. Acesso em: mar. 2021.
50

normaliza a locomoção com armamento ostensivo e a utilização de mecanismos de


controle e vigilância, criando diferentes ordens jurídicas e normalizando
excepcionalidades militares.

Em 2002, a governadora Benedita da Silva apostou no aluguel de dirigíveis


equipados com câmeras para combater o crime organizado. Polêmico à época, a
aposta na Segurança Pública previa o monitoramento aéreo das áreas de risco. No
mesmo ano, o monitoramento nas áreas de favelas evoluiu para uma proposta de
intervenção e controle ainda mais militarizado, que foram os chamados “caveirões”.
Quando elementos militares aderem à realidade urbana, se justificam as práticas
que desumanizam aqueles compreendidos como possíveis alvos, a exemplo da
atuação dos caveirões, temidos pelos moradores de favela.
“Pra quem mora na favela, a imagem do Caveirão é de terror, de medo.
Quando o Caveirão entra, as pessoas correm, geralmente fecham suas
portas, porque ficam aterrorizadas. O veículo é bem grande e, geralmente,
quando ele entra na favela, ele já entra destruindo tudo o que estiver pela
frente. Então dá muito medo mesmo. A imagem do Caveirão, pra gente,
simboliza a morte”, diz Ana Paula de Oliveira, moradora da favela de
Manguinhos, na Zona Norte da capital fluminense. Seu filho Johnatha foi
morto em 2004, aos 19 anos, com um tiro nas costas, disparado por um
policial da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da comunidade.28

O caveirão é um transporte com porte de veículos utilizados em guerras, como


salienta Souza (2008) em seu artigo intitulado “O caso do blindado caveirão” e,
dentre suas características, chama a atenção o fato de que, mesmo pesando 8
toneladas, atinge 120 km/h e o revestimento dos seus pneus não podem ser
furados. Além disso, conta com um tipo específico de blindagem, que protege o
veículo inclusive de explosões (SOUZA, 2008, p. 9). Os caveirões foram inspirados
nos carros utilizados pelo governo sul-africano, durante o regime político do
apartheid29, a partir da década de 70, com intuito de reprimir os bairros negros
(SOUZA, 2008, p. 11); e, ainda hoje, continuam reprimindo moradores de favelas e
periferias, em sua grande maioria pretos e pretas.
O interrogatório é muito fácil de fazer / pega o favelado e dá porrada até
doer. / O interrogatório é muito fácil de acabar / pega o bandido e dá
porrada até matar. [...] Esse sangue é muito bom / já provei não tem perigo
é melhor do que café / é o sangue do inimigo. [...] Bandido favelado / não se
varre com vassoura /Se varre com granada / com fuzil metralhadora. (“Grito
de guerra” de treinamento do BOPE).30
28
Caveirão: o carro da morte. Outras Palavras: Jornalismo de Profundidade e Pós-Capitalismo,
15 dez. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/31FaJGv>. Acesso em: nov. 2020.
29
Regime de segregação racial implantado na África do Sul, em 1948.
30
Cf. REZENDE, J. V. C. As músicas militares e a institucionalização da tortura pelos órgãos de
Segurança Pública. Disponível em: <https://bit.ly/2PqhF7T>. Acesso em: dez. 2020.
51

Se não bastassem as incursões de blindados de guerra, a intervenção bélica


através de dispositivos militarizados na promoção da guerra às favelas possibilitou a
criação de bases aéreas de tiro, conhecidas popularmente como “caveirões aéreos”,
que são, hoje, o maior exemplo de tortura e racismo institucional promovidos pelo
Estado. Recepcionado pela a normativa legal, a instrução Normativa SESEG, de 03
de 2018, regulamenta em seu artigo 7º a utilização de helicópteros em operações
policiais, e prevê que o armamento de fogo apenas seja utilizado pelo agente policial
em casos de extrema necessidade e legitima defesa, previsão essa que parece
ignorar o número de 1.330 autos de resistência apresentados no ano de 2007. A
normativa vaga permite, sem prejuízo legal, que o “caveirão aéreo” seja responsável
pelo extermínio de muitas vidas.
Jaci tinha acabado de receber a filha de 8 anos, que chegava da escola,
quando ouviu o helicóptero e, em seguida, tiros. Não sabia nem onde se
esconder. “Na verdade, você não tem segurança, os tiros vinham de cima. A
minha irmã me ligou chorando, perguntando onde ela poderia se esconder
dentro de casa. O morro inteiro estava assustado e sem saber o que fazer.
A minha filha me disse: ‘Mãe, eu vi isso no filme'”, conta.31

Os territórios de favela, pela sua secular estigmatização territorial e racial são os


mais atingidos cotidianamente pela política urbana militarizada. Porém, a
urbanização da segurança se expressa de maneira totalizante na cidade, lendo-a
como um verdadeiro campo de batalha (GRAHAM, 2016, p. 73), de modo que a
cidade é, em si, uma possível ameaça.

Movimentos insurgentes, que de alguma forma também se proponham a


questionar à ordem estabelecida, experimentam as consequências de uma
segurança cívica que busca a urbanidade controlada. A exemplo do Rio de Janeiro
dos megaeventos, que lidou de forma bastante enérgica contra quem se opôs ao
modelo urbano que se impunha, a partir de um enorme investimento de controle
militarizado nas cidades, com destaque para a Copa do Mundo e as Olimpíadas,
quando foram adquiridos inúmeros dispositivos de segurança, vigilância e
monitoramento, como aponta o Relatório da Coding Rights:
o total executado apenas com o Plano de Segurança para a Copa 2014 foi
de R$ 1338 bilhões para “garantir a integração e articulação entre os órgãos
de policiamento e defesa nas três esferas de governo”. No caso das
Olimpíadas, em resposta à crise financeira do estado do Rio de Janeiro —
que chegou a decretar estado de calamidade pública — o Governo Federal

31
“Caveirão voador” é usado como plataforma de tiro, dizem moradores. Agência Pública,
18 abr. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2PTmOVW>. Acesso em: dez. 2020.
52

assinou Medida Provisória repassando uma verba a fundo perdido no valor


de 2,9 bilhões para “auxiliar nas despesas com Segurança Pública” do
estado, em razão dos Jogos.32

Além dos gastos militares, as reformas jurídicas serviram de ferramentas para


combater e criminalizar movimentos sociais e manifestantes em atos de rua, em
especial a Lei 12.850/2013 (Lei das organizações criminosas), responsável pela
prisão e perseguição de militantes do Movimento Sem Terra; a Lei 133.260 (Lei
antiterrorismo) e, por fim, a já conhecida GLO. Como destaca o referido relatório da
Coding Rights:
Foram realizadas operações de Garantia da Lei e da Ordem durante a Rio +
20, em junho de 2012; na Copa das Confederações, em junho de 2013; na
Jornada Mundial da Juventude e visita do Papa Francisco, em julho de
2013; no sorteio dos jogos da Copa do Mundo, em fevereiro de 2014;
durante a Copa do Mundo, em maio de 2014; e nos Jogos Olímpicos e
Paralímpicos, em 2016; [...] em 2013, para impedir que manifestantes se
aproximassem do local. Outro exemplo é a Operação Tucuruí, de maio de
2007, quando uma GLO foi montada após a ocupação da Usina Hidrelétrica
de Tucuruí, no Pará, pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB),
MST e Via Campesina. (RELATÓRIO 2017 – Coding Rights)

Dentro do contexto dos megaeventos, a partir de junho de 2013, muitos foram às


ruas em várias cidades do país, questionando os altos custos de vida nos centros
urbanos. Esses manifestantes foram duramente reprimidos com a utilização de
bombas de efeito moral, gás lacrimogênio, balas de borracha, e tratados como
verdadeiros inimigos do Estado. O levantamento feito pela ONG Artigo 19, chamado
de “Protestos no Brasil 2013”33, expôs o absurdo número de quase 900 feridos
durante a realização dos atos naquele ano, além 8 mortos.

Analisando o Rio de Janeiro, a construção do cenário de guerra expandiu


suas fronteiras de legalidade e discricionariedade durante a realização de eventos
internacionais. Não à toa, em 2007, ano de realização dos jogos Pan-Americanos,
estima-se que 902 pessoas foram mortas pela Polícia Militar, 19 delas durante a
operação realizada no Complexo do Alemão, que ficou conhecida como Chacina do
Pan34. O episódio chama atenção ao fato de que, apesar do caráter ofensivo militar
urbano permeando a vida pública nas cidades, há de se ressaltar, mais uma vez,
que nas favelas a face repressiva sempre foi muito maior.
32
Megaeventos: Legado de Vigilância. Coding Rights, 30 jun. 2017. Disponível em:
<https://bit.ly/3fDKZT8>. Acesso em nov. 2020.
33
Cf. ARTIGO 19. Protestos no Brasil 2013. Disponível em: <https://bit.ly/3me9K9u>.
34
A violência não faz parte desse jogo! Risco de violações de Direitos Humanos nas Olímpiadas Rio
2016. Relatório da Anistia Internacional. Disponível em: <https://bit.ly/3dxUz74>. Acesso em nov.
2020.
53

A urbanização da segurança, enquanto um aspecto das cidades cada vez


mais permeadas pela doutrina militar, é experimentada de diferentes formas no
espaço urbano, seja através do uso irrestrito de dispositivos militares no genocídio
nas favelas, seja pela repressão organizada a movimentos sociais, manifestantes e
ativistas políticos.

As tecnologias de repressão se replicam de diferentes formas, a exemplo dos


drones, utilizados para a segurança de grandes enclaves, ao mesmo tempo que se
apresenta como ferramenta de vigilância de atividades perturbadoras à ordem –
como as grandes manifestações realizadas durante os megaeventos – e como
objeto de abate nas favelas cariocas. À procura desses serviços, o ex-governador do
Rio de Janeiro, Wilson Witzel35, assim que assumiu o cargo viajou a Israel para
conhecer os drones de alta tecnologia com reconhecimento facial. Famoso pela sua
promessa de campanha de “atirar na cabecinha”, foi um dos maiores entusiastas da
utilização da tecnologia no auxílio do combate à criminalidade dentro da Segurança
Pública.

Os veículos aéreos não tripulados (VANTs), popularmente conhecidos como


drones, foram aprovados pelo Projeto de Lei 167/201, sem muita regulação de
limites de atuação, o que gerou grandes polêmicas sobre quais fronteiras podem ser
avançadas sem que haja invasão de privacidade, afronta a direitos fundamentais ou,
até mesmo, à preservação da segurança dos civis. Eles se apresentam como
dispositivos de alta tecnologia, menos invasivos e mais eficientes no monitoramento
e na precisão, com um pretenso caráter preventivo, sendo parte da aposta da
doutrina militar que anseia pelo controle total e irrestrito do espaço urbano, visando
sempre estar um passo à frente da possibilidade de um ataque ou uma insurgência
(GRAHAM, 2016).

Além disso, se vende como um dispositivo seguro para o agente que o pilota
à distância. Chamayou (2015) afirma que o drone possui uma capacidade de
projetar poder sem projetar a vulnerabilidade, impedindo a reciprocidade e a própria
ideia de combate. Isso quer dizer que, ao afastar o combatente, seja ele um policial
militar do Rio de Janeiro ou um militar do Exército de Israel, pragmaticamente,

35
Afastado por suspeita de participação em esquemas de corrupção.
54

afasta-se o contato entre o alvo e o atirador, de forma que o assassinato à distância


começa a ser interpretado como algo mais humanizado.

Para além da problemática moral da utilização tecnológica a fim de “abater


inimigos”, há de se refletir, novamente, sobre quem são esses inimigos. Na guerra
ao terror norte-americana, mais de 30 agricultores afegãos foram mortos no seu
horário de almoço, em um episódio que é apenas uma parte da constatação de que
entre 492 e 1.077 civis tenham sido assassinados por drones durante o governo
Obama. Como denúncia o The Intercept:
Em 2013, por exemplo, uma pesquisa de Larry Lewis, um ex-pesquisador
científico no Centro de Análise Naval dos EUA, concluiu que os ataques por
drone no Afeganistão tinham dez vezes mais chances de matar civis do que
ataques aéreos com pilotos.36

No Brasil, a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) permitiu que os drones só


fossem tripulados a uma distância de 30 metros, à exceção dos órgãos de
Segurança Pública, o que alimentou a ânsia de assassinatos precisos por parte do
governo do Rio de Janeiro, conforme dito anteriormente, com a certeza de que o
avanço tecnológico supriria a deficiência de formação e as bases racistas e elitistas
das forças de segurança, como se a letalidade resolvesse o problema da
insegurança urbana.

Outra tecnologia utilizada, por vezes em conjunto com os drones, é o


reconhecimento facial, também defendido pelo ex-governador Wilson Witzel. Tal
defesa ignora recentes pesquisas feitas sobre o uso desse dispositivo na promoção
da segurança. Estudo feito pela Rede de Observatórios de Segurança, mostra que
mais de 90% das pessoas presas por reconhecimento facial, em 2019, no Brasil, são
negras. O pesquisador Pablo Nunes elucida:
Algoritmos são como receitas de bolo, instruções a serem seguidas para
atingir o resultado final. O que acontece é que muitos desses códigos são
criados com base em grandes bancos de dados por meio do aprendizado de
máquina. No caso do reconhecimento facial, um grande banco de imagens
de rostos é usado para ensinar o algoritmo a identificar o que é um rosto. O
que acontece nesses softwares de reconhecimento facial [...] é que boa
parte dos bancos de imagens utilizados para treinar esses algoritmos são
compostos por pessoas brancas. Assim, quando a câmera capta a imagem
de uma pessoa negra ou asiática ela não as identifica como sendo rostos
humanos, mas já reconheceu dois homens negros como gorilas. Apesar de
esse ser um grande problema, a criação de bancos de dados mais diversos
não resolve a questão completamente. Algoritmos são dados, e dados são

36
Barack Obama teme que futuro presidente entre em guerra de drones perpétua e secreta. The
Intercept Brasil, 4 out. 2016. Disponível em: <https://bit.ly/3uo9xUl>. Acesso em: 23 jan. 2021.
55

produtos da nossa história. Por mais que se tente cercar de todos os lados,
sempre teremos defasagens e vieses nesse tipo de tecnologia.37

Nesse sentido, a IBM, uma das maiores empresas de inteligência artificial escreveu
uma carta aberta repudiando a criação de perfis raciais. A carta, dirigida aos
senadores democratas e disponível do site da empresa, diz que:
A IBM se opõe firmemente e não tolerará o uso de qualquer tecnologia,
incluindo tecnologia de reconhecimento facial oferecida por outros
fornecedores, para vigilância em massa, perfil racial, violações de direitos
humanos e liberdades básicas.38

Já as empresas Amazon e Microsoft exigiram que houvesse regulamentação


governamental mais rígida no uso da tecnologia de reconhecimento facial, como
uma condição de venda dessa tecnologia para o uso das forças policiais.

Por fim, é importante reconhecer que os atores estatais não são os únicos
responsáveis por incutir elementos militares na vida urbana. Tanto o fenômeno do
tráfico de drogas, fortalecido nos anos 1980 e 1990, quanto o crescimento das
milícias no Rio de Janeiro, a partir dos anos 2000, repercutem diretamente na
produção da cidade. No próximo capítulo, será abordado como as milícias, pelo seu
grau alcance e intervenção, impõem domínio militar na urbanidade, instituindo
territórios de controle nos quais aspectos da sociabilidade são questionados. Em
suma, é bastante evidente a introdução desses dispositivos militares nas práticas de
segurança urbana, operados pelo Estado e também por forças paralelas,
incorporando no seu funcionamento o estigma aos territórios populares e aos seus
moradores.

3.2 Guerra para muitos, autossegregação para poucos: o ‘bumerangue de


Foucault’ nos Trópicos

A segunda tese levantada por Graham (2016), para conceituar o novo


urbanismo militar, associa a dominação militar e econômica exercida pelos países
do Norte global com a desumanização sobre os cidadãos do Sul global, isso quer
dizer, como a relação imperialista transforma países subdesenvolvidos em
laboratório de testes de dispositivos militares e, posteriormente, utiliza-se dessas

37
O algoritmo e racismo nosso de cada dia. Revista Piauí, 02 jan. 2021. Disponível em:
<https://bit.ly/3fCFCna>. Acesso em: jan. 2021.
38
IBM CEO’s Letter to Congress on Racial Justice Reform. Carta publicada originalmente em inglês,
em 8 jun. 2020. Tradução livre. Disponível em: <https://ibm.co/3cNuhPo>. Acesso em: jan. 2021.
56

mesmas tecnologias para conter internamente as periferias e possíveis insurgências


dentro de suas próprias fronteiras.

Para o autor, o chamado ‘bumerangue de Foucault’ seria a relação de:


doutrinas, conceitos e técnicas que tratam da guerra urbana e foram
desenvolvidos para controlar as massas do “Sul global” são também
imitados nas cidades e metrópoles imperiais, buscando controlar grupos e
movimentos sociais tidos como perigosos ou ameaçadores. (GRAHAM,
2016 p. 76)

A tese se baseia no conceito de Foucault sobre a relação metrópole e colônia, na


qual afirma que, apesar da imposição da cultura europeia nas colônias, havia um
intercâmbio que permitia que experiências dos modelos coloniais retornassem às
metrópoles.

O bumerangue de Foucault (1999, apud GRAHAM, 2016) diz respeito à


relação das práticas, mecanismos de controle, gestão de conflitos, práticas de
tortura e ausência de compromisso com os direitos civis, que países do Norte global
costumam ter com os países do Sul global e como passam a adotar a mesma
postura na contenção violenta sobre os pretensos inimigos da ordem, os terroristas,
os traficantes, os insurgentes, os opositores da democracia internos. Ou seja, como
a experiência de militarização empenhada pelos países centrais em países do Sul
global permite reutilização desses dispositivos nos seus próprios territórios.

Internamente, a criação do inimigo e a estigmatização de indivíduos, de


minorias étnicas e/ou imigrantes é a justificativa necessária para que governos de
Estados Nacionais pautem a necessidade da crescente militarização no quotidiano
urbano. Um inimigo com especificações fenotípicas, raciais e sociais, cuja existência
seja, em si, uma afronta ao “estado normal das coisas” (GRAHAM, 2016).

Portanto, as técnicas de dominação militar utilizadas pelos EUA na guerra do


Iraque são reproduzidas nos territórios negros e latinos no interior das cidades
(Graham, 2016, p. 32) e esses passam a ser lidos como territórios estrangeiros
pelas forças militares e policiais, já que se afastam do ideal de ordem cristã e branca
e, portanto, são, necessariamente, espaços problemáticos.

No Rio de Janeiro, a desigualdade social bem demarcada na segregação


espacial nos permite explorar essa tese sob um outro ângulo, observando que as
57

técnicas de guerra estão enraizadas no nosso policiamento urbano e os espaços de


experimentação não são exógenos às nossas próprias fronteiras, já que as ações da
Polícia Militar do Rio de Janeiro dentro das favelas e periferias se utilizam de
técnicas semelhantes às praticadas pelos países do Norte global em seus espaços
de dominação. Também não seria incorreto afirmar que o movimento de contenção
coercitiva dentro das favelas produz conhecimento a ser aplicado no afastamento
dos indesejáveis dos grandes enclaves urbanos fortificados.

Em outras palavras, o Rio de Janeiro é o próprio laboratório de práticas de


medidas de segurança descompromissadas com qualquer “protocolo cidadão”.
Nossas favelas e periferias apresentam índices de letalidade que superam países
em declarada guerra e a estigmatização de seus moradores os coloca em posição
de forasteiros em sua própria cidade; não apenas no aspecto subjetivo de fronteiras
espaciais, mas também objetivamente, no acesso à cidadania em todas as suas
esferas, na militarização dos seus territórios e no respeito aos direitos fundamentais.

Ainda em 1996, a antropóloga brasileira Teresa Pires do Rio Caldeira,


radicada nos EUA, abordou elementos que comparam a realidade paulistana e a
realidade de Los Angeles no que tange à construção de espaços fechados, privados
e cada vez mais monitorados, chamados pela autora de enclaves fortificados
(CALDEIRA, 1996). A construção de grandes condomínios fechados foi parte da
estratégia de urbanização que preza pela venda da segurança obtida a partir do
isolamento de um grupo social com semelhanças entre si, uma estratégia de
iniciativa privada que incide sobre o conjunto de relações estabelecidas no espaço
urbano como um todo.

A estratégia, segundo Caldeira (1996), coopera para uma segregação que vai
além das habitações, interferindo igualmente nos espaços de lazer, trabalho e
consumo. Para a autora, a construção desses enclaves responde pela fragmentação
da cidade e pelo abandono da vida púbica nas cidades. Sobre os enclaves
fortificados, Caldeira (1996, p. 159) diz:

Uma nova estética de segurança modela todos os tipos de construção,


impõe sua lógica de vigilância e distância como forma de status e muda o
caráter da vida e das interações públicas.
58

A construção de espaços de autossegregação se justifica pelo medo da cidade e da


urbanidade, em especial da violência urbana. Não à toa, a aposta nessas habitações
cresceu exponencialmente nas cidades brasileiras na década de 1990, em meio ao
contexto de reorganização do discurso de criminalização da pobreza e da guerra às
drogas e às favelas. Assim, esses espaços oferecem como maior atrativo o
afastamento do perigo que seria a convivência nas grandes cidades.

Condomínios fechados com amplos espaços recreativos, oferta de serviços


variados e uma sociabilidade limitada a um grupo social especifico são exemplos do
que são os enclaves fortificados e como eles criam uma espécie de status para os
indivíduos capazes de usufruir esse serviço, ou seja, transformam a segregação
social em um valor perseguido (CALDEIRA, 1996, p. 159). O “novo estilo de vida”,
defendido pela difusão dos grandes condomínios fechados, prevê controle absoluto
nos espaços internos e, com isso, a ampla utilização de dispositivos de controle e
monitoramento. De uma “simples revista” nos empregados domésticos à câmera de
vigilância 24h, a venda da segurança incentiva o desejo pela cidade inatingível,
completamente submissa aos valores ordenadores.

Graham (2016, p. 28) expõe que esses dispositivos de controle militar na vida
urbana baseiam-se na criação de perfis associados à violência e desconsideram,
dessa maneira, os direitos legais e as normas jurídicas. É nesse sentido que
Caldeira (1996, p. 163), ao falar sobre os comerciais dos grandes condomínios de
luxo, relata:
O programa mostrou ainda uma cena filmada de um helicóptero:
seguranças privados de um condomínio interceptam um "carro suspeito"
(uma kombi) fora dos muros do condomínio e revistam os ocupantes, que
são forçados a ficar de costas e com as mãos para cima, apoiados no carro.
Embora esta ação seja ilegal, pois efetuada por um serviço de segurança
privado numa rua pública, cumpre uma função clara: juntamente com as
cenas de visitantes submetendo seus documentos de identidade nos
portões de entrada, reafirma aos moradores ricos (e espectadores) que
pessoas "suspeitas" (pobres) permanecerão do lado de fora.

Graham (2016, p. 175) afirma que a construção dessas comunidades fechadas


encarna a guerra securocrática tanto quanto a militarização das fronteiras
internacionais; isso quer dizer que, ao construir espaços domésticos afastados da
cidade cosmopolita, a urbanização da segurança é experimentada de forma a
59

proteger alguns e vigiar “os outros”, com fronteiras menos nítidas entre nacionais e
estrangeiros.

Seguindo a tendência internacional, no Rio de Janeiro, a criação de


condomínios fechados foi a saída para a classe média amedrontada com a
possibilidade dos encontros propiciados pela cidade. O bairro da Barra da Tijuca, por
exemplo, foi o grande exemplo de projeto urbanístico que priorizou a construção de
vários enclaves fortificados, ora apresentados como grandes condomínios fechados,
ora como complexos comerciais e shopping centers.

A área da Barra da Tijuca conviveu, assim como outras áreas da cidade, só


que de maneira mais evidente, com os enclaves fortificados enquanto uma
experiência de diálogo com aspectos da urbanização da segurança, na medida em
que elementos de controle e vigilância foram vendidos como garantia de proteção e
afastamento dos indesejáveis. Se, por um lado, o avanço tecnológico dos
dispositivos de segurança garante uma sensação de proteção para a elite
econômica, por outro, eles colonizam a paisagem urbana de maneira muito mais
ostensiva em outras partes da cidade, onde estão os indesejáveis, ou as classes
perigosas.

O desenho arquitetônico dos enclaves fortificados possui o objetivo de impor


desconforto aos que não pertencem a esse espaço, utilizando-se de técnicas
militares que matam em favelas para a proteção de parcela da população da elite
econômica. Há, ainda, um segundo aspecto que não pode ser ignorado: Marini
(2012) nos faz refletir sobre a teoria do subimperialismo brasileiro. O autor traz a
reflexão sobre como o nosso país, com mais força e expressão a partir do Golpe
Militar e do governo de Castello Branco, desenvolveu uma relação subimperialista
com outros países emergentes. Para Marini (2012), a partir de fatores políticos e
econômicos – como a necessidade de exportação de produtos manufaturados e por
conta da nova divisão do trabalho na América Latina –, o Brasil se posiciona como
uma potência muito mais industrializada do que outros países latino-americanos
(MARINI, 2012, p. 65). Posteriormente, autor chegou a fazer uma releitura de sua
teoria, incluindo outros elementos da economia que caracterizariam o
subimperialismo. A tese fomentou um importante debate, como, por exemplo, a
60

possibilidade de dependência desses países subimperialistas em relação às


potências imperialistas.

Para a nossa reflexão, vale suscitar os fatores políticos que construíram o


Brasil, a partir do golpe cívico-militar de 1964, como país periférico que exerceu uma
relação subimperialista com outros países, principalmente na América Latina,
cumprindo o papel de apoiar diversos golpes aplicados no restante do continente,
orientados pela política externa norte-americana. Porém, não há a intenção de
questionar que a relação de dominação econômica e militar na América Latina, a
partir do século XX, incluindo o Brasil, sempre foi exercida pelos EUA e que, no
diálogo com a teoria desenvolvida por Graham (2016) sobre o “bumerangue de
Foucault”, não há como criar paralelos capazes de apontar países do Sul global
como sendo responsáveis por perpetrarem a exploração que impulsionaria o
crescimento do seu capitalismo interno, a ponto de conseguir se emancipar das
potências globais.

Marini (2012, p. 156) traz importantes contribuições sobre as características


brasileiras na década de 1960, que apontavam a necessidade de expansão do
mercado consumidor a partir do impulsionamento em direção ao exterior, mesmo
que essa espoliação externa não seja revertida em melhora de condições internas,
diferentemente dos países do Norte global. Ou seja, as condições sociais e
econômicas do Brasil, seu processo de industrialização mais acelerado em
comparação a outros países latino-americanos, sua relação de proximidade e
confiança construído há décadas com os EUA, justificam a sua posição
subimperialista em relação a outras economias emergentes, sem que isso o
classifique enquanto um país com capacidade de se impor sobre outros Estados
Nacionais, já que, antes de mais nada, seu lugar também é na periferia do capital.

Entretanto, essa ambígua relação é marcada por exceções autoritárias de


imposição das Forças Armadas brasileiras sobre outros países do Sul global, sendo
a mais recente a experiência de ocupação militar do Haiti. Essa experiência nos
permite colocar o Brasil, por um breve momento da sua história, no lugar do país
que se utilizou de um outro território nacional como laboratório para projetos de
ocupação, contenção e vigilância.
61

O Brasil, durante o início do governo petista (2002-2010), viveu o seu auge


econômico, condição essa que nos legitimou postulante de uma cadeira no
Conselho de Segurança da ONU, além do comando da missão de paz no Haiti no
momento em que as potências globais estavam voltadas para a ocupação do Iraque.
A Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) foi criada, em
abril de 2004, por uma resolução da ONU que também determinou a liderança
brasileira da ocupação militar, e terminou apenas em 2017, contando com a partição
de mais de 37,5 mil homens durante esses anos e com custo de mais de R$ 1,5
bilhão ao Brasil.

O objetivo da comunidade internacional era reestabelecer a segurança e


reestruturar o país. Assim, a ocupação de tropas militares brasileiras se utilizou da
narrativa de guerra como o único caminho capaz de conseguir a paz, o que nada
difere da ocupação imposta pelas grandes potências em países do Oriente Médio e
da África subsaariana. Uma das justificativas do comando da missão ser realizado
pelas forças militares brasileiras era a possibilidade de treinamento destas em um
espaço urbano desenhado por morros e ocupados por moradias precárias, ou seja,
havia grandes semelhanças entre o Rio de Janeiro e Porto Príncipe. A estratégia
adotada foi de permanência contínua das forças de paz em territórios de favelas.

O Brasil se utilizou do discurso pacificador, a fim de tutelar um território,


revisitando a ideia de civilizar outra população, dessa forma não seria exagero
afirmar que o Haiti, vulnerabilizado pelas sucessivas ocupações militares durante
toda a sua história, serviu de laboratório “pacificador” para a projeto político militar
das Unidades Pacificadoras no Rio de janeiro.

As semelhanças entre as favelas cariocas e os pontos fortes de Porto


Príncipe garantiram uma relação de cooperação mútua na troca de experiências de
contenção militar nos dois territórios, como é possível ler em matéria publicada pela
Carta Capital:
Em maio de 2013, o então governador do estado do Rio, Sérgio Cabral
(PMDB), e o primeiro-ministro haitiano, Laurent Lamothe, assinaram um
acordo de cooperação entre a PM do Rio e a Polícia Nacional Haitiana
(PNH) para a troca de informações sobre a evolução da política das UPPs
no Rio, em comparação com os “pontos fortes” nas favelas haitianas. Dois
meses mais tarde, uma comissão da PNH viajou ao Rio de Janeiro para
62

conhecer as novas UPPs, assim como treinamento do batalhão de


operações especiais (BOPE) e do batalhado de choque.39

Quando as ocupações da favela do Alemão, em 2010, e da Maré, em 2014, se


utilizam da mesma estratégia de ocupação da favela de Cité Soleil, em Porto
Príncipe, a busca pela segurança nacional no Haiti se funde com a procura por
solução para o problema da violência urbana no Rio de Janeiro. A ocupação da
Maré durou 15 meses e custou R$ 559,6 milhões ao Governo Federal, passando por
ela mais de 23 mil militares, cerca de 85% do efetivo utilizado no Haiti.

Em entrevista disponibilizada pelo G1, Gunther Rudzit, professor de Relações


Internacionais da ESPM, afirma que:
Se as Forças Armadas conseguiram subir o Morro do Alemão e entrar em
várias localidades do Rio de Janeiro, foi porque desenvolveram essa
doutrina de atuação em ambiente urbano, que não existia nas Forças
Armadas brasileiras. Por isso, estamos vendo hoje uma maior atuação em
missões de Garantia da Lei e da Ordem aqui no Brasil. Sem esse
aprendizado lá, muito provavelmente teria sido muito mais arriscado e
comprometedor para as Forças Armadas atuarem nessas comunidades
próximas40

Muitos dos militares que participaram da Missão de Paz no Haiti, participaram


também das ocupações militares nas favelas do Rio de Janeiro, reproduzindo o
conhecimento militar alcançado em outro país.

Se, por um lado, a reestruturação do Haiti buscava a garantia da segurança,


por outro, mirou também na reconstrução da infraestrutura de um país arrasado por
anos de dominação bélica. É importante relembrar que a segunda comitiva de visita
do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2008, contou com a participação de
representantes da Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa 41 (QUINTELA,
2008). Ou seja, além da experimentação de técnicas de contenção militar, havia a
aposta de crescimento econômico para o empresariado nacional, em especial para
grandes empreiteiras, responsáveis, posteriormente, pelo PAC favela.

No caso brasileiro, a tese de Graham (2016) se manifesta com reservas e


peculiaridades da realidade de um país do Sul global, o experimento de novas

39
Haiti serviu como laboratório para a política de UPPs. Carta Capital, 7 ago. 2014. Disponível em:
<https://bit.ly/2PWVdDm>. Acesso em: jan. 2021.
40
Experiência militar e destaque internacional estão entre legados que missão de paz no Haiti deixa
ao Brasil. G1, 01 set. 2017. Disponível em: <https://glo.bo/3rMnhGL>. Acesso em: jan. 2021.
41
Lula no Haiti. Secretaria da Educação, 05 jun. 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3tUEcsr>. Acesso
em: mar. 2021.
63

tecnologias que pudessem ajudar na contenção interna não foi o tom da ocupação
do Haiti, mas, sim, a criação de um laboratório geográfico que possibilitou que as
Forças Armadas, cujas ações não são de natureza urbana, pudessem intervir na
garantia da segurança interna e na atuação junto à Polícia Militar na guerra às
drogas dentro das favelas cariocas.

3.3 A segurança e a economia de mãos dadas

Ao final do século XX, as grandes economias globais ditaram o ritmo do


avanço neoliberal aos países do Sul global. O Consenso de Washington e as
normas impostas pelo FMI foram responsáveis pela crescente liberalização do setor
financeiro, pela imposição da disciplina fiscal, pelo movimento de retração de
economias subdesenvolvidas e, por consequência, pela relação de subserviência ao
imperialismo transnacional.

O avanço neoliberal produziu uma imensa concentração de renda. Dados da


OXFAM Brasil42 mostram que, se o 1% mais rico do mundo pagasse uma taxa extra
de 0,5% sobre sua riqueza nos próximos 10 anos, seria possível criar 117 milhões
de empregos em educação, saúde e assistência para idosos, além da constatação
atordoante de que os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6
bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população mundial.

As desigualdades são alarmantes em escala mundial, e chamam também a


atenção nos grandes centros urbanos, em especial dos países do Sul global, que já
partem da periferia do capital. No Brasil, as iniciativas neoliberais do fim do século
passado foram responsáveis por diminuir a oferta de postos de trabalho formais,
além de reduzir o poder de compra, aumentar a insegurança patrimonial e cooperar
com os abismos territoriais e, por outro lado, cooperaram com a concentração de
riqueza e poder das elites econômicas.

Sob a perspectiva europeia, já no pós-guerra, colocou-se em xeque o modelo


político e econômico da social-democracia das cidades europeias e, como ressalta
Bauman (2009), ao fim do século XX, um novo momento se inaugurou para essas
cidades. Segundo o autor, as grandes cidades, por um lado, se reafirmam como
42
Bilionários do mundo têm mais riqueza do que 60% da população mundial. OXFAM Brasil,
19 jan. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3wqtOKv>. Acesso em: jan. 2021.
64

maiores geradoras de riqueza para economia do Estado-nação, e, por outro, se


estabelecem como arenas para grandes fluxos migratórios e explosão de
crescimento urbano em um momento de desmantelamento da proteção social.

O desmonte de políticas públicas de garantia social, iniciado mais


precocemente nos países do Norte global, mas com rebatimentos duros nas
economias subdesenvolvidas, trouxe enorme insegurança para as sociedades
urbanas. Grande parte da população já pauperizada teve que lidar com a
apropriação privada de bens, serviços e até de espaços púbicos. Para além dos
sucessivos processos privatistas, o avanço neoliberal no espaço urbano impôs a
busca pelos ganhos individuais e o desmonte de formas coletivas de organização,
uma vez que as estratégias de mercado nem sempre condizem com a necessidade
coletiva (GRAHAM, 2016, p. 53) e o processo neoliberalizante prioriza a busca por
lucros – e não os interesses coletivos.

A produção da insegurança nas cidades é consequência da aposta em


políticas de concentração de renda e de reiterados desmantelos dos direitos
trabalhistas, produzidos pelo avanço das políticas neoliberais, que também foram
responsáveis pela mercantilização da vida em todas as suas esferas. Os dois
resultados se entrelaçam na comercialização da securitização, quando a busca pela
segurança se tornou um produto mercantilizado. Sendo assim, a segurança, como
qualquer outro serviço, é um bem de consumo a ser adquirido de acordo com a
possibilidade econômica do comprador.

Para Graham (2016, p. 37), a economia vigilante é a terceira tese que


coopera na conceituação do novo urbanismo militar, de modo que a dimensão da
economia política deste novo urbanismo se relaciona com os múltiplos interesses na
adoção de práticas militarizadas na vida urbana. Isso quer dizer que:
Ainda que vagas e abrangentes, ideias sobre segurança infectam
praticamente todos os aspectos das políticas públicas e da vida social.
Assim, esses emergentes complexos industriais e de segurança atuam
juntos nos desafios altamente lucrativos de ter como foco constante
atividades, espaços e comportamentos cotidianos nas cidades, bem como
os condutos que conectam as conturbações. Em meio ao colapso
econômico global, os mercados para serviços e tecnologias de segurança
estão em ascensão como nunca antes. (GRAHAM, 2016, p. 37)

A securitização e a militarização caminham lado a lado com o avanço tecnológico e


se imbricam em uma relação de sobreposição dos interesses públicos e privados,
65

acontecimento característico do novo urbanismo militar. As empresas que se


beneficiam da instalação de câmeras e de monitoramento facial, também crescem
com a venda de armas, oferta de segurança privada e vendas de equipamentos
altamente tecnológicos.

A venda da paz é a outra faceta da promoção da guerra, a criação do inimigo


da nação, além de um traço de estigmatização, é altamente lucrativo para as
grandes transnacionais e também para os Estados Nacionais. No início dos anos
2000, Israel viveu sua pior recessão econômica e não é coincidência que, poucos
anos depois, tenha se revelado uma grande potencialidade bélica para o mundo
(GRAHAM, 2016, p. 330). O domínio sobre os conflitos militares na região do
Oriente Médio e o apoio dos EUA e das potências europeias à Israel cooperaram
para o protagonismo do país na venda de equipamentos de segurança, inclusive
para o Brasil. Segundo a Divisão de Exportação e Cooperação de Defesa do
Ministério da Defesa de Israel (SIBAT)43, em 201944, 120 empresas israelenses
exportavam produtos de defesa.

Ao mesmo tempo, Israel escolheu adotar internamente a marca de país


altamente tecnológico na garantia da segurança urbana (GRAHAM, 2016, p. 333),
promovendo a securitização hipermilitarizada de todas as esferas da vida urbana,
com a utilização de infraestruturas de guerra permeando o cotidiano nas cidades. O
desafio da economia israelense passa pelo seu compromisso com a busca de novas
tecnologias voltadas para sistemas de segurança na guerra contra o terror,
internamente e para fora de suas fronteiras.

O Rio de Janeiro é o estado que mais investe em Segurança Pública. Em


2020, foram 12,7 milhões45, verba que não o livrou de figurar como o 2º estado com
mais homicídios. A enorme fatia da verba pública direcionada para a Segurança
Púbica se acopla à tendência nacional de investimentos em Segurança Privada,
sobretudo no início do século XXI, na garantia de lucros exorbitantes para essas
empresas privadas. Conforme destaca Gaffney (2015),

43
http://www.sibat.mod.gov.il/Sibat/Pages/Overview.aspx - Acesso em: jan. 2021.
44
https://revistaoeste.com/mundo/israel-fechou-2019-como-um-dos-10-maiores-exportadores-
militares - Acesso em: jan. 2021.
45
A Política de Segurança Pública do Rio de Janeiro é ineficiente e financeiramente insustentável.
Rede de Observatórios da Segurança. Disponível em: <https://bit.ly/2PQy6KD>. Acesso em: jan.
2021.
66

na década de 2000, com a estabilização e crescimento da economia


brasileira, o mercado de segurança privada se deu muito bem – as despesas
em segurança privada chegaram a R$ 35,85 bilhões, um aumento de 70% na
década. O Ipea estimou que, em 2000, eram 308.038 pessoas empregadas
no setor, e que o ano 2012 tenha terminado com 721.603 trabalhadores.
(GAFFNEY, 2015 p. 165)

O discurso do Estado de “mais segurança” caminhou lado a lado com a venda da


segurança privada, situação que agravou com a chegada dos megaeventos, quando
houve uma expansão desse mercado, a exemplo da G4S, maior empresa de
segurança privada do mundo, que chegou ao Brasil atraída pelas Olimpíadas, pela
Copa do Mundo e também pela possibilidade de exploração do petróleo.46

Outra empresa privada que se beneficiou da relação público-privada foi a


empresa paramilitar Academi, ex-Blackwater, que treinou policiais militares e
agentes da Polícia Federal para a Copa do Mundo. A empresa de mercenários
norte-americanos foi paga pelo governo dos EUA para oferecer treinamento aos
agentes brasileiros47.

Assim, a sensação de paz é vendida como uma mercadoria cara no mercado


imobiliário, incidindo sobre a valorização ou desvalorização dos imóveis. É o que
acontece em muitos dos territórios dominados pelas milícias, conforme aponta o
relatório produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos e pelo
Observatório das Metrópoles, que afirma que “as atividades imobiliárias legais e
ilegais têm sido apontadas por reportagens do jornalismo investigativo como uma
das principais – senão a principal – fonte de renda das milícias”48.

A militarização urbana é cada vez mais lucrativa para os grupos que agem em
desamparo com a lei, milícias urbanas são responsáveis por grilagens de terras e
até mesmo pelo controle de unidades habitacionais entregues pelo programa social
Minha casa, minha vida. O relatório49 aponta, ainda, que a expansão da fronteira
urbano-imobiliária da Zona Oeste do Rio de Janeiro em muito provém do poder da

46
Maior empresa de segurança do mundo avança no Brasil. Estadão, 26 ago. 2010. Disponível em:
<https://bit.ly/3ua6Nd0>. Acesso em: jan. 2021.
47
Paramilitares americanos treinam policiais brasileiros para a Copa. Folha de São Paulo, 21 abr.
2014. Disponível em: <https://bit.ly/3nmMhDC>. Acesso em: mar. 2021.
48
Cf. A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos
armados. Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e Observatório das Metrópoles
(IPPUR/UFRJ). Disponível em: <https://bit.ly/3dtHtb7>.
49
Ibidem.
67

milícia nessa região da cidade, o que poderia ser denominado de urbanismo


miliciano.

3.4 A infraestrutura urbana criando mundos de morte

As cidades modernas são complexas redes de serviços interdependentes


entre si, o desenvolvimento contemporâneo é dependente da exploração de
matrizes energéticas, da utilização de vastas redes de abastecimento e utilização
em larga escala da energia elétrica. A modernização das cidades esta
intrinsecamente ligada à disponibilidade de infraestrutura urbana que ela dispõe.

A quarta tese levantada por Graham (2016), coloca em evidência a


importância da manutenção das redes de serviços para as cidades modernas e
como a destruição dessas redes é um dos principais alvos de países do Norte
global. O autor expõe experiências ocorridas no Oriente Médio, onde principalmente
os EUA entendem que, ao mirarem os sistemas de água e energia, acabam com a
possibilidade de desenvolvimento de territórios e nações inteiras, consideradas
ameaças à democracia ocidental, como forma de minimizar o perigo insurgente a
partir da “desmodernização” (GRAHAM, 2016, p. 355).

Graham (2016, p. 39), ao explicar a tese, fala da violência por meio da cidade,
que significa que, nas guerras de 4ª geração, as redes que constituem as cidades
modernas são destruídas como forma de atacar os cidadãos considerados de
segunda classe, ou bárbaros, por grupos estatais ou não estatais, já que, no
contexto do novo urbanismo militar, é mais conveniente e menos oneroso para os
Estados Nacionais destruírem milhares de vidas civis através de negativas a direitos
básicos do que promoverem uma destruição nuclear.

O ataque a infraestruturas urbanas se vale da proposital confusão entre


grupos terroristas, grupos insurgentes e cidadãos comuns. A estigmatização e
desumanização dos subcidadãos é o que justifica formalmente a destruição de
imensas cidades e, na guerra contra o terror, assim como na guerra urbana contra
às drogas, o inimigo é apontado pelas suas características fenotípicas e pelo
território que ocupa, mais do que por qualquer ilegalidade cometida.
68

O desdobrar dessa destruição infraestrutural na cidade do Rio de Janeiro não


é recente e se orienta pelo projeto (ou falta de) de assistência aos pobres, migrantes
e ex-escravizados na cidade do Rio de Janeiro, em especial a partir do século XX,
com a intensificação do processo de urbanização. As moradias precárias, sejam elas
os antigos cortiços ou as favelas do século XXI, vivem sob desresponsabilização do
Estado, nas condições estruturais mínimas, como o abastecimento de água e
saneamento básico.

O processo que se manifesta no território do Rio de Janeiro, diferentemente


de países do Sul global que estão sob ataque militar de potências globais, é um
processo endógeno, de esboços do novo urbanismo militar. Portanto, a guerra
estrutural aqui é lida como a escolha institucionalizada de desatendimento das
camadas populares, que, por si, é uma escolha de morte. A aproximação do
conceito à realidade brasileira será feita a partir da ideia de descartabilidade da vida,
a partir da ação intencional de exclusão de serviços que poderiam garantir a
manutenção da vida

Nesse sentido, essa aproximação não aborda a precariedade infraestrutural


das favelas, utilizada como justificativa social para estigmatização desses territórios;
mas, sim, o aspecto da precariedade como ação direta da Administração Pública. A
criação de espaços de exclusão possibilita espaços de ausência de cidadania, como
relata, em suas memórias, Carolina Maria de Jesus (1963):
As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos
excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade,
tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais,
seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho
a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de
despejo (DE JESUS, 1963, p. 33).

A modernidade citadina, que vende modelos de vida tecnológicos, anda em


dissonância com a realidade das favelas, que dispõem de habitações precárias, falta
de atendimento de rede de esgoto, de regularidade no abastecimento de água e de
recolhimento de lixo. A situação de apatia do poder público é responsável pelo
aumento da mortalidade infantil, como alerta a ONG Save the Children, que, em
pesquisa de 2015, aponta que tal índice é 50% maior nas favelas do que no
asfalto50, número bastante significante, considerando que o censo do IBGE de 2010
50
Cf. The Urban Disadvantage. State of the world’s mothers, 2015. Disponível em:
<https://bit.ly/31JxlFS>.
69

aponta o Rio de Janeiro como a cidade com o maior número de pessoas vivendo em
assentamentos informais.

Momentos excepcionais existiram, como demonstra Gonçalves (2013) em seu


brilhante estudo sobre a história das favelas do Rio de Janeiro, abordando os
inúmeros planos de intervenção urbanística nas favelas. Entre os mais recentes está
o projeto Favela-bairro, de 1990 (GONÇALVES, p. 326), que buscou, a partir de
ações de melhorias infraestruturais, aumentar o acesso a serviços públicos e
melhorar a vida do cidadão favelado. Porém, as intervenções pontuais não
significaram a mudança de postura do poder público com os territórios de favelas.

Mais recentemente, o Comitê Organizador das Olimpíadas de 2016 retirou as


favelas cariocas do vídeo promocional feito em 2009, realizando o desejo de
extermínio dos lugares historicamente tidos como desordenados. As favelas
cariocas – que, segundo os dados do IBGE de 2010, abrigam cerca de 22% da
população carioca – foram retiradas do produto audiovisual que deveria transmitir “o
que é o Rio de Janeiro”. Na impossibilidade de ser removido em sua completude, o
espaço de moradia de mais de um 1 milhão de pessoas foi ocultado dos registros
formais. A triste decisão do Comitê demonstra, mais uma vez, que as favelas são
vistas como territórios estrangeiros dentro da cidade “formal”,

Do ponto de vista da geopolítica internacional, a destruição ativa de


infraestrutura urbana, perpetrada por Estados-nação desenvolvidos sobre territórios
ditos inimigos, também apresenta o potencial de disputa subjetiva na caracterização
dos cidadãos que ocupam esse espaço. Graham (2016, p. 359), alerta para o
processo de desmodernização que, através da destruição de territórios extensos,
reforça a ideia de que a população alvo é bárbara e selvagem, como se os cidadãos
tivessem optado por essa desmodernização.

No Rio de Janeiro, essa opinião já foi nitidamente expressa por Sandra


Cavalcanti, primeira Secretária de Serviços Sociais do governo de Carlos Lacerda
(1960-1965), que afirmou:
Eu achava, e acho ainda, que não é a favela que tem que ser urbanizada.
Quem tem que ser urbanizado é o favelado. Uma das condições para um
favelado se urbanizar, para se desfavelizar, é sair daquela paisagem e
daquele entorno. Exatamente como uma pessoa que, saindo do interior,
vem para a cidade grande. Chega ali e encontra uma outra realidade. Se ele
sai daquele fim de mundo, sem água, sem luz, sem nada, ele vai querer
70

mudar. Vai querer se incorporar ao progresso. (FREIRE e OLIVEIRA, 2002


APUD AMOROSO 2008 P. 167)

A declaração expõe as raízes das sínteses urbanas feitas pelas elites cariocas, que
concluem que o espaço favelado é o território a ser sufocado, caso contrário,
significaria o incentivo do desenvolvimento de uma população bárbara, que escolhe
não aderir ao progresso. Quando analisados os investimentos feitos nas favelas, fica
nítido que a ausência de infraestrutura é parte do projeto político. Para exemplificar
tal afirmação, vale relembrar que na ocupação militar da favela da Maré foram
gastos 461 milhões de reais e que o projeto de tratamento de esgoto, que começaria
em 2013, com orçamento de 35 milhões51, sequer foi concluído.

A não política que atinge as favelas, no que tange à efetivação de direitos


básicos através da garantia da infraestrutura, é apenas parte de um projeto
urbanístico orientado pela possibilidade de lucro e não pela garantia de vida. Essa
opção ficou bastante nítida no atual contexto da pandemia que atingiu mais de 3
milhões de pessoas em todo o mundo, na qual os moradores de favelas, pela
deficiência estrutural, são os maiores prejudicados, o que faz com que o índice de
mortalidade pela doença seja mais elevado.

Para além do projeto de sufocar os territórios de favela com políticas que não
priorizem a criação ou a manutenção da rede se serviços públicos, há uma sanha
destrutiva que não parte apenas do Estado de forma organizada. Outra popular
tática de destruição da infraestrutura das favelas são os incêndios criminosos que
destroem as habitações populares, como forma de pressionar a retirada dessa
população do local. Prática bastante comum nas favelas de São Paulo, os incêndios
criminosos muitas vezes atendem a interesses do mercado especulativo 52. A tática já
foi utilizada em larga escala também no Rio de Janeiro, a exemplo da favela da
Catacumba, na Lagoa, em 1967, ou da Favela do Pinto, em 1969.

No processo de reflexão sobre os aspectos do novo urbanismo militar, é


interessante trazer um terceiro elemento que diz respeito ao ataque à infraestrutura
das favelas que, aliado à ausência de investimentos, a atos criminosos motivados
51
Moradores esperam por melhoria de saneamento da Maré. Maré de Notícias Online, 09 fev. 2021.
Disponível em: <https://bit.ly/31IXYuw>.
52
Cf: Limpam com fogo (2016), documentário realizado por César Vieira, Conrado Ferrato e Rafael
Crespo, e apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo; PUC-SP.
71

pelo interesse privado e às constantes operações policiais, destroem a possibilidade


de usufruto de espaços e serviços.

Em 2010, a ocupação do Alemão deixou os moradores sem energia elétrica;


em 2018, uma operação da Polícia Militar deixou a favela do Jacarezinho sem luz
durante 10 dias, após explodirem os transformadores com tiros; fato que também
aconteceu na Rocinha, no mesmo ano. A guerra urbana nas favelas do Rio de
Janeiro causa destruição e perdas que são geracionais, já que as incursões policiais
desestabilizam a vida dos moradores de favelas.

Do ponto de vista da guerra transnacional, a força aérea norte-americana,


expõe em documento oficial que, tão importante quanto atingir a infraestrutura das
cidades, é atingir também os sistemas não infraestruturais que aumentem a
possibilidade de atingir infraestruturas civis (GRAHAM, 2016, p. 359). Como sistema
não infraestrutura, pode-se citar o direito à educação: nas favelas cariocas, são
muitos os dias letivos perdidos em decorrência das operações militares. No ano de
2018, a favela da Maré fechou suas escolas por 35 dias 53 e, em 2017, foram 435
escolas na cidade do Rio de Janeiro afetadas pelas incursões policiais. Os efeitos da
violência ultrapassam à dificuldade no processo de aprendizagem; para crianças e
adolescentes que convivem com essa realidade, o simbolismo do fechamento de
escolas para a preservação de suas vidas impacta significativamente em suas
oportunidades.

Várias são as constatações de destruição, direta ou indireta, dos aparelhos


dentro das favelas do Rio de Janeiro. O descaso causa milhões aos cofres públicos
e não apresenta retornos concretos de vida para as áreas periféricas. Podemos
exemplificar com a situação do teleférico do Morro do Alemão, que custou R$ 328
milhões para o Governo do Estado e chegou a transportar cerca de 20 mil
passageiros por dia. Desativado desde 2016, hoje encontra-se abandonado, sem
previsão de retorno54.

53
Boletim Direito à Segurança Pública na Maré. Redes da Maré. Disponível em:
<https://bit.ly/2QRJ96z>.
54
Violência e falta de verba travam o teleférico do Alemão, parado há três anos. O Globo, 30 set.
2019. Disponível em: <https://glo.bo/31K9ohI>.
72

3.5 Cidadãos armados: a emergência da intolerância

Na disputa de narrativas entre “cidadão de bem x bandido”, o espetáculo


midiático é responsável pelo acirramento do binarismo guiado por uma bussola
moral pouco confiável. As narrativas hollywoodianas vendem diariamente a imagem
da imaculada democracia norte-americana, alvo de ataques terroristas; já o Jornal
Nacional expõe a guerra urbana causada pelos terríveis traficantes dentro das
favelas do Rio de Janeiro.

Na produção de imagens ficcionais ou na descontextualização de


acontecimentos verídicos, o espetáculo da violência, além de lucrativo, é capaz de
disputar ideologicamente, a partir de pressupostos éticos que servem a interesses
diversos, desde grandes capitalistas e sua sanha lucrativa, governos que buscam
justificar suas respostas pouco efetivas contra violência urbana, até cidadãos
comuns dotados de opiniões conservadoras.

Na busca por telespectadores, retratos das guerras preventivas no Oriente


Médio, ou nas favelas do Rio de Janeiro, cooperam para a formação do senso
comum capaz de demonizar perfis sociais, etnias e nações inteiras. Também na
construção do medo, o espetáculo midiático é central no cenário de “nós” versus
“eles” e, segundo Graham (2016, p. 135), para teóricos militares, a TV e a internet
são como armas virtuais na denominada “Guerra de informação”55.

Dos grandes bombardeios ao Iraque em 200356 à ocupação do Alemão, em


2010, a presença das câmeras disputou o convencimento de milhões de pessoas
para a narrativa de necessidade de combate ao terror e de preservação da ordem,
mesmo que, para isso, fosse preciso efetivar ações imbuídas de ilegalidades contra
o inimigo. As ações militares, dessa forma, se colocaram como a última fronteira
capaz de impedir a propagação do terror e da violência.

55
Para Graham, (2016, p. 84), a guerra da informação pode envolver tudo, desde espalhar folhetos e
bombardear redes de TV que mostram a morte de civis até reforços de coerção política e social que
façam parar, repentina e completamente, infraestruturas inteiras de nações urbanas.
56
Graham (2016, p. 133) afirma que a invasão do Iraque, em 2003, foi a primeira guerra a surgir no
espaço de informação eletrônico como um espetáculo de mídia totalmente coordenado, com
repórteres infiltrados, sites interativos, modelos em 3d e mapas, tudo ao alcance da mão.
73

No Brasil, a glamorização das ações militarizadas chegou às telas dos


cinemas brasileiros através do filme Tropa de Elite57, que retratou as ações do
Batalhão de Operações Especiais (BOPE), desde a seleção dos policiais militares
“aptos” a compor as turmas de formação, até as incursões nas favelas cariocas com
práticas de tortura, invasão a domicílios e assassinatos. O filme, à época, incentivou
a difusão da premissa “bandido bom é bandido morto”, além de elevar o prestigio do
agente estatal que, no exercício do seu trabalho, viesse a cometer atrocidades
contra o maldoso traficante (ou apenas um morador de favela).

Elementos estereotipados permeiam toda a narração cinematográfica: o


bandido cruel, o estudante maconheiro e o policial militar justiceiro; e, por fim,
impõem a responsabilidade do saldo de mortes da guerra às drogas àqueles que
consomem drogas ilícitas. O filme dialoga com acontecimentos reais ocorridos
dentro do contexto social e político do Rio de Janeiro, como a visita do Papa, o
assassinato do jornalista Tim Lopes, as caminhadas da elite carioca pela paz, e as
invasões aos bailes funks.

A representação midiática da guerra nas favelas cariocas criou um salvador,


na figura do capitão do batalhão de operações especiais, que não compactua com a
corrupção policial e muito menos com a “vagabundagem”. Suas ações repletas de
boa vontade no combate ao crime, são observadas pelo telespectador com atenção,
desde as formas de tortura com sacos e cabos de vassoura até as execuções
sumárias que, fora da ficção, seriam justificadas como autos de resistência.

A romantização nas telas dos cinemas dialogou com sentimentos da


população que tem ojeriza aos esquemas de corrupção, mas apresenta
complacência com situações de extrema violência e tortura. O resultado disso foi o
aumento expressivo de interessados em prestar o curso do BOPE: após o sucesso
do filme em todo o Brasil, esse número quase triplicou. O curso de preparação para
o ingresso no Batalhão de Operações Especiais conta com práticas de tortura entre
os próprios participantes, em uma espécie de pedagogia da guerra. Em uma das
fases do curso, chamada de “campo de concentração”, essas práticas levaram à

57
Maior sucesso do cinema nacional de 2007, foi dirigido por José Padilha e teve cerca de 14 milhões
de espectadores.
74

morte de um cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, por desidratação e


hipotermia58.

As práticas de guerra são treinadas para realização em operações


exclusivamente urbanas, a exemplo da atuação do BOPE na pacificação de favelas
do Rio de Janeiro, que consistiu em um processo de ocupação territorial e
permanência por cerca de 60 dias, até a chegada do batalhão da Polícia Militar.

Desde 2012, o BOPE, prometendo deixar corpos no chão59, alimenta um site


e uma página no Facebook, que conta com vários admiradores. Dentre as
mensagens de enviadas por e-mail, cartas e comentários nas redes sociais, o jornal
O Globo, em matéria publicada em 2013, destacou alguns bastante significativos:
[...] um homem parabeniza o grupo pelos “35 anos de luta por uma
sociedade melhor”, e pergunta como faz para adquirir uma camisa com a
insígnia da caveira. Em outro, um adolescente de 17 anos, morador de
Maceió, diz: “Eu quero ser do Bope”. E pergunta o que é necessário para
ingressar na equipe. Em uma terceira carta, um senhor pede permissão
para levar sua família ao batalhão no fim de semana. [...] Na última terça-
feira, um homem escreveu, no Facebook, em espanhol: “Saludos desde
Peru, somos sus seguidores”. Logo abaixo vinha a mensagem de um rapaz,
mais apaixonado, com um toque metafísico: “Eu não tenho certeza de nada,
mas se existir uma vida após a morte, pessoas como vocês serão exaltadas
e glorificadas, e receberão todo o reconhecimento que não foi recebido em
vida.60

Como dito anteriormente, a mídia hegemônica tem total responsabilidade pela


criação de algozes justiceiros que se tornam referências para crianças e
adolescentes. No contexto, as reivindicações por lei e ordem são maiores do que as
reivindicações por segurança no trabalho ou pela manutenção das leis trabalhistas
(MALAGUTI, 2014, p. 98), e têm total influência na construção do quinto e último
elemento chave do novo urbanismo militar para Graham (2016), os “soldados-
cidadãos”.

A cultura urbana está permeada de elementos militares, desde os jogos


interativos até as produções cinematográficas, como já abordado. O entretenimento
virtual permite o assassinato dos inimigos que merecem ser exterminados, expondo

58
Policial militar morre durante curso de formação do Bope, no RJ. G1, 28 nov. 2018. Disponível em:
<https://glo.bo/31IfZJo>.
59
Referência ao grito de guerra do batalhão: “Homens de preto qual é sua missão? / Entrar na favela
e deixar corpo no chão / Homens de preto o que é que você faz? / Eu faço coisas que assustam até a
satanás”.
60
Bope chega aos 35 anos reforçando atuação na internet. O Globo, 27 jan. 2013. Disponível em:
<https://glo.bo/3rV3sgx>.
75

que a doutrina militar permeia toda a vida cotidiana. A admiração pelo uso ostensivo
de dispositivos militares e o aplauso às forças militares que causam destruição,
tornam cidadãos verdadeiros soldados chamados a atuarem ativamente na guerra
urbana fluminense.

Uma variação desse quinto elemento apresentado pelo autor (2016, p. 41)
são os “cidadãos-soldados virtuais” (GRAHAM, 2016, p. 299):
[...] presos em uma cultura em rede e sem limites, de guerra permanente,
em que tudo se transforma de maneira grotesca nos campos de batalha. A
experiência da infância de brincadeiras militarizadas se transforma, cada
vez mais, em atos adultos de guerra, conforme brinquedos e armas se
fundem. O processo de militarização se aprofunda, marcado pela
recodificação do campo social com valores e ideais militares. [...] Se os
soldados-cidadãos se habituam à participação pessoal em uma cultura de
guerra permanente contra um outro orientalizado e virtualizado, questões
sobre a necessidade dessa violência vão se afastar cada vez mais da
paisagem cultural. (GRAHAM, 2016, p. 300)

O novo urbanismo militar diz respeito a todas as esferas da vida humana, a


socialização, o senso de justiça, os elementos arquitetônicos, os interesses
econômicos e também as expectativas de representações políticas institucionais. Os
cidadãos-soldados se identificam e reivindicam a cultura militar como forma de
superação dos problemas sociais latentes nas grandes cidades globais.

A teoria desenvolvida por Graham (2016) sobre o novo urbanismo militar


acompanha uma tendência mundial, que acomete em especial os países do Norte
global e que se manifesta com particularidades nos países do Sul global, seja pela
posição geopolítica ocupada, seja por elementos constitutivos de sua formação
histórica. Nesse sentido, o fenômeno da reemergência61 da direita brasileira também
se relaciona com os elementos de militarização, em especial os que dialogam com
as subjetividades de uma população abalada pelo medo da violência urbana.

No Brasil, após o golpe aplicado, em 2016, contra a Presidente Dilma


Rousseff, se inicia um período reacionário, que começou a ser experimentado na
América Latina após a ascensão de governos progressistas e/ou de esquerda. No
país, essa orientação política foi acompanhada de um forte apelo popular à
intervenção das Forças Armadas; e parte da população foi às ruas dotada de um
discurso nacionalista, conservador e militarizado. Lowy (2015) diz que:

61
Termo utilizado pelo autor Luiz Felipe Miguel em O ÓDIO COMO POLITICA- “A reemergência da
direita brasileira” Pgs 17-26, 2018, Boitempo, Org. Esther Solano Galego.
76

O elemento mais preocupante da extrema-direita conservadora no Brasil,


que não tem um equivalente direto na Europa, é o apelo aos militares. O
chamado a uma intervenção militar, o saudosismo da Ditadura Militar, é,
sem dúvida, o aspecto mais sinistro e perigoso da recente agitação de rua
conservadora no Brasil, ativamente promovido pelo PIG, o Partido da
Imprensa Golpista. (LOWY, 2015, p. 12)

Nesse sentido, não há como descolar a aclamação militarizada que transforma


cidadãos em soldados e a consequente influência dessa tendência no debate
político do país. O avanço do conservadorismo que elegeu Jair Bolsonaro como
Presidente da República e Wilson Witzel como governador do estado do Rio de
Janeiro, mescla em si elementos neoliberais, ufanistas, xenofóbicos e uma extrema
adoração por armas e equipamentos militares.

Em matéria do jornal O Globo, revela-se que, em 2020, foram 179.771 novas


armas agrupadas, 84% a mais do que no ano anterior 62. Sobre os dados, Bolsonaro
responde:
— Nós batemos recorde ano passado, em relação a 2019, mais 90% em
venda de armas. Tá pouco ainda, tem que aumentar mais. Porque o
cidadão muito tempo foi desarmado – afirmou.

Assim, o bolsonarismo, enquanto tendência política, se relaciona diretamente com o


apelo social pela militarização da vida e a sua vitória nas urnas revela que é uma
tendência popular, capaz de colocar o clamor por mais violência institucionalizada,
como centro das reinvindicações daqueles que são diretamente atingidos por sua
política de morte.

62
Bolsonaro diz que aumento de 90% em venda de armas em 2020 foi 'pouco ainda'. O Globo, 11
jan. 2021. Disponível em: <https://glo.bo/3rHAEYJ>.
77

4 A MILICIALIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS

Aspectos econômicos, políticos, urbanísticos e militares cada vez mais se


entrelaçam na realidade brasileira. Não é sem propósito que a milícia, enquanto
fenômeno contemporâneo da conjuntura fluminense, desponta como a expressão da
aposta nas teorias militarizantes: o processo de expansão da urbanização
militarizada, no Rio de Janeiro, é fruto imediato de ações decorrentes das milícias.

Enquanto manifestação de tamanha envergadura, a milicialização é um


fenômeno a ser explorado em suas diferentes esferas: o seu processo histórico, o
período no qual se encontra, o que articula em torno de si, os atores sociais que a
cercam e quais consequências pode trazer para a cidade e para a Segurança
Pública.

A milicialização não intervém apenas nas paisagens urbanas construídas. Ela


é capaz de determinar também as que ainda estão porvir, intervindo diretamente na
produção da cidade, por meio dos aspectos físicos e políticos. A expansão desse
modelo de urbanização significa a imposição do poder paralelo – e não apenas no
que tange à dominação belicista e violenta. De maneira mais profunda, esse modelo
chancela aos grupos criminosos a oportunidade de imposição do planejamento
urbano daquela região, atendendo aos seus interesses.

Os grupos milicianos atuam na expansão urbana do Rio de Janeiro,


independentemente do adensamento populacional do território que visam controlar,
de tal forma que representam imenso perigo para a manutenção da democracia,
com desdobramentos nacionais e implicações que ultrapassam a unidade federativa.
Para que haja a possibilidade de rever o papel das cidades, a partir de uma
perspectiva mais igualitária, é essencial a implementação de medidas que
combatam essa forma de organização, de forma direta, ou suas condições de existir,
de forma indireta.
78

4.1 A urbanização miliciana

Como exposto anteriormente, o aumento da violência urbana no Rio de


Janeiro, ao final do século XX, significou um momento de importante inflexão no
debate da Segurança Pública. Com a adoção da metáfora da guerra, do
aperfeiçoamento da criminalização da pobreza a partir de técnicas cada vez mais
militarizadas e com o avanço da estigmatização das favelas, respaldada pela
justificativa de eliminação do inimigo criminoso que as ocupa, é nesse período que
se organizam também o tráfico de drogas e as facções criminosas.

Por um lado, o crescimento das facções deixou em evidência que o controle


territorial por elas exercido era de imposição de um modelo de socialização
diferenciado em favelas e periferias, extrapolando o poder de gestão sobre as
“bocas de fumo”, sendo, sobretudo, poder sobre o território. Por outro, a
reestruturação dos mecanismos coercitivos encontrou sua justificativa no problema
da violência urbana, incentivando o aumento de elementos da securitização da vida
citadina e da militarização das áreas periféricas.

Resta claro que a urbanização militarizada da cidade do Rio de Janeiro


produziu consequências desiguais, desde a morte de milhares de jovens negros nas
favelas até a especulação imobiliária nos bairros gentrificados com maior oferta de
segurança. Dessa forma, cabe, como último ponto de reflexão, nos debruçarmos
sobre a manifestação concreta do esboço do novo urbanismo militar no Rio de
Janeiro, partindo das consequências da adoção dessa teoria para a produção das
relações sociais na cidade.

Um dos maiores produtos da aposta no modelo de sociabilidade violenta foi o


fortalecimento das milícias, grupos criminosos que se diferenciam substancialmente
das facções criminosas consolidadas no fim do século passado. A nomenclatura
"milícia", para se referir a atividades ilegais por agentes estatais, foi utilizada pela
primeira vez pela jornalista e advogada Vera Araújo, do jornal O Globo, em março de
2005 (MANSO, 2020). Destrinchando um pouco mais, as milícias são organizações
militares formadas por agentes e ex-agentes estatais, que passaram a disputar o
controle de territórios populares através do conflito bélico e da ameaça coercitiva,
propondo-se mediadoras das relações sociais ali existentes e dispondo de forte
79

influência política e econômica. As milícias, bastante citadas ao longo da pesquisa,


são o resultado da interseção entre legalidade e ilegalidade.

Inicialmente, Alba Zaluar (2007) apresentou a seguinte definição:


Atualmente, no Brasil, o termo milícia refere-se a policiais e ex-policiais
(principalmente militares), uns poucos bombeiros e uns poucos agentes
penitenciários, todos com treinamento militar e pertencentes a instituições
do Estado, que tomam para si a função de proteger e dar “segurança”
em vizinhanças supostamente ameaçadas por traficantes predadores.
(ZALUAR, 2007, p. 2, grifo nosso.)

O estudo das milícias como produto melhor acabado do urbanismo militar requer
atenção para dois elementos, para além dos expostos ao longo deste trabalho: a
motivação para o exercício do controle territorial e a sua inovadora estruturação.

Apesar da expansão significativa no início dos anos 2000, dentro do contexto


preexistente de violentos conflitos entre facções criminosas, a estruturação das
milícias se deu de modo bastante distinto das organizações de traficantes de drogas,
apesar de ambas realizarem a disputa pelo controle territorial. Diferentemente das
facções, as milícias se apresentam como um elemento exógeno às favelas, um ator
social supostamente pacificador das relações de “desordem favelada”, mesmo
quando alguns membros residem nos territórios ocupados.

Já as facções criminosas – sejam elas o Comando Vermelho, o Terceiro


Comando Puro ou os Amigos dos Amigos – são grupos que, apesar de exercem
relação de domínio militarizado sobre os moradores de favela, são lidos com
identificação quase metonímica com o território que ocupam. A diferenciação é
extremamente fundamental para compreensão das respostas que o poder público
oferece às organizações milicianas.

Cabe dizer que o terceiro ator nessa relação conflitiva – os agentes do Estado
– também exerce controle militarizado sobre os cidadãos favelados, por vezes
esporadicamente em incursões, por vezes respaldados por um planejamento a longo
prazo, como foram as experiências de implementação das UPPs. São recorrentes os
episódios de coerção, tortura e assassinato nas operações policiais dentro das
favelas cariocas; a principal diferença é que ações que resultam do seu domínio
territorial ganham legitimidade sob a justificativa da permanente guerra às drogas e
do reestabelecimento da paz.
80

As milícias possuem suas raízes ainda nas décadas de 1980 e 1990, quando
grupos de extermínio formados por policiais militares se expandiram por todo o
estado do Rio de Janeiro, em especial na Baixada Fluminense. Alves (2003)
apresenta que a convergência de interesses desses grupos com alguns pequenos
empresários locais deu origem às polícias mineiras63, embriões do que,
posteriormente, se convencionou denominar como milícias.

O controle da favela do Rio das Pedras é um exemplo bastante emblemático


da evolução das polícias mineiras para grupos milicianos, como relata Bruno Manso
(2020):
[...] policiais que moravam na região criaram a milícia de Rio das Pedras e
estabeleceram as regras da economia informal dessas áreas. Ampliaram a
fonte de receitas ilegais, a compra de armamentos e estabeleceram
conexões políticas. Essa nova forma de dominação territorial transformou a
geografia do crime no Rio, disputando o controle de comunidades com
facções do tráfico. (MANSO, 2020, p. 58)

A milícia do Rio das Pedras, devido ao seu caráter “comunitário”, conseguiu exportar
seu modelo organizativo para várias favelas da região.

Na Zona Oeste, mais precisamente na região de Campo Grande e de Santa


Cruz, cresce em paralelo outro grupo miliciano, chamado de “Liga da Justiça”, que
surge da lucrativa exploração das receitas dos transportes; porém, repetindo o
mesmo discurso populista e assistencialista de valorização da região da qual se
denomina representante. Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, apontado como
ex-chefe da organização criminosa, relembra o espaço em que oferecia serviços
populares, como tratamento médico e jurídico, além de cursos profissionalizantes:

Vamos reerguer o centro social que tem o nome do meu irmão e do nosso
pai, que era Jerônimo. Vamos lutar até o fim pela população da Zona Oeste,
Santa Cruz, Campo Grande e Bangu.64

Os grupos de extermínio dos anos 1980 e as polícias mineiras do fim do


século passado em muito se assemelham às organizações milicianas. A participação
ativa dos agentes estatais da Segurança e o fato de, invariavelmente, corroborarem
sucessivos discursos de “ufanismo de bairro”, são exemplos nítidos dessa
aproximação. Porém, segundo Zaluar (2007, p. 3) o que diferencia as milícias é
63
Grupos de policiais que extorquiam criminosos em troca de liberdade e ofereciam aos moradores
proteção contra pequenos furtos.
64
Os fundadores da milícia Liga da Justiça querem reerguer seu império político (e cuidar dos netos).
El País, 08 mai. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3xC1eGS>.
81

o controle exercido sobre o território e o envolvimento com atividades


comerciais que extrapolam a venda do serviço de segurança, tais como a
cobrança de taxa indevida das cooperativas de transporte alternativo, a
venda inflacionada de botijão de gás, a venda do “gatonet” (sinal pirata de
TV a cabo), a cobrança de pedágios e de tarifa para proteção. [...] Além
disso, o que é ainda mais grave, os milicianos vêm tentando ocupar
espaços cada vez maiores nos poderes Legislativo e Executivo municipais e
estaduais, construindo redes no interior do poder público, e até no
Judiciário.

Em relação às antigas polícias mineiras e as formas usuais de extorsão e


enriquecimento ilícito, as milícias significaram a exponenciação de lucros e a
diminuição de riscos (MANSO, 2020), já que dispensaram o intermediário e
assumiram para si o controle territorial e as atividades ali desenvolvidas.

O crescimento de grupos que disputavam o controle de vastas regiões e a


observação de que estes se diferenciavam estruturalmente dos grupos ilegais de
agentes policiais (polícias mineiras) atraiu atenção do poder público a partir de duas
óticas opostas: uma que questionava essa expansão e pedia investigação e outra
que minimizava a atuação criminosa desses grupos e incentivava a sua atuação
como forma de desidratar o crime organizado.

De um lado, em 2007, o deputado estadual Flávio Bolsonaro defendeu a


legalização das milícias, sob a justificativa de que eram a garantia de segurança
para a população mais pobre. Em discurso oficial na Assembleia Legislativa do Rio
de Janeiro, o parlamentar afirmou:
[...] venho falar sobre as milícias [...], não se pode, simplesmente,
estigmatizar as milícias, em especial os policiais envolvidos nesse novo tipo
de policiamento, entre aspas [...]. A milícia nada mais é do que um conjunto
de policiais, militares ou não, regidos por uma certa hierarquia e disciplina,
buscando, sem dúvida, expurgar do seio da comunidade o que há de pior:
os criminosos.65

De outro, criticando a expansão e o controle desses grupos, o deputado estadual


Marcelo Freixo (PSOL), propôs, em 2008, a criação de uma Comissão Parlamentar
de Inquérito para investigar as operações ilegais das milícias e sua articulação com
os poderes públicos. O resultado foi:
No relatório final, em 2008, a comissão pediu o indiciamento de 266
pessoas – entre elas sete políticos – suspeitas de ligação com grupos
paramilitares no RJ. Segundo a Secretaria de Segurança, em 2009, ano
seguinte ao da CPI das Milícias, 246 milicianos foram presos no estado.
Esse número é três vezes maior do que o observado no ano anterior: 78. A

65
Cf. Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Discursos e Votações - Legislaturas Ant. Discurso de
Flávio Bolsonaro, 07 fev. 2007. Disponível em: <https://bit.ly/3nodVQM>. Acesso em: abr. 2021.
82

partir de 2010, no entanto, o total de prisões caiu, atingindo o ponto mais


baixo em 2013: 55 prisões. Em 2017, último ano com dados disponíveis,
133 milicianos foram presos no RJ.66

O relatório aprovado da CPI67 traz em seu corpo o conceito histórico do tema,


que expõe divergências pela adoção do termo “milícia”. Para alguns importantes
pesquisadores, como a professora Jaqueline Muniz68, esses grupos criminosos eram
gangues formadas por policiais e ex-policiais, que vendem segurança contra eles
próprios. Para a pesquisadora, milícia teria um significado mais amplo. A definição
mais elaborada foi apresentada pelo delegado Cláudio Ferraz, da Delegacia
Regional de Ações Criminosas Organizadas (Draco), para ele:

As milícias se enquadram no conceito internacional de crime organizado.


Primeiro, autopadrão (sic) organizativo; segundo, a racionalidade do tipo de
empresário da corporação criminosa [...]; terceiro, a utilização de métodos
violentos, com a finalidade de ocupar posições proeminentes ou ter o
monopólio de mercado [...]; quarto, valer-se da corrupção da força policial e
do Poder Judiciário; quinto, estabelecer relações com o poder político;
sexto, utilizar a intimidação e o homicídio, seja para neutralizar a aplicação
da lei, seja para obter decisões políticas favoráveis ou para atingir seus
objetivos.69

Desde o fim da CPI que investigou as milícias, há quinze anos, surgiram diferentes
grupos milicianos dominando militarmente inúmeros territórios no estado do Rio de
Janeiro, a partir de um profundo processo de aperfeiçoamento das práticas de crime
e contravenção. Uma das mudanças mais significativas do perfil de atuação dessas
organizações é o fato de que, atualmente, a venda de entorpecentes é uma de suas
principais atividades, que se desdobra em práticas de acordos com facções
criminosas, terceirização dos pontos de venda de drogas e cobrança de taxas em
cima dos lucros obtidos.

Para além disso, o controle territorial e a relação promíscua com os


instrumentos legais de coerção possibilitam que esses grupos vendam o sentimento
de segurança em áreas de periferias, obtido pela ausência de confronto bélico com
as forças do Estado, elevando a valorização do solo urbano e maximizando seus
lucros. Para o delegado aposentado Cláudio Ferraz, que esteve à frente da

66
CPI das Milícias: o que ocorreu com os políticos citados no relatório? Revista Piauí, 12 mai. 2018.
Disponível em: <https://bit.ly/3uifToa>.
67
Relatório Final da CPI das Milícias. Disponível em: <https://bit.ly/3mhdbMD>.
68
Ibidem.
69
Ibidem.
83

repressão às milícias, entre 2007 e 2011, as atuações criminosas desses grupos


possuem muitas ramificações, se relacionando com
o roubo de carga, a receptação, a falsificação de bebidas, o contrabando de
cigarros, a venda de armas, o roubo de caixas eletrônicos, o tráfico de
drogas, a extorsão, a cobrança de estacionamento clandestino, as
construções irregulares, a grilagem de terras.
A garantia de segurança é proveniente da alteração na configuração de
conflitos armados no estado do Rio de Janeiro. A íntima relação com os agentes do
Estado beneficia a expansão dessa organização criminosa sobre as facções
criminosas tradicionais. O relatório parcial de pesquisa do Grupo de Estudos dos
Novos Ilegalismos (GENI) e do Observatório das Metrópoles 70 notou que, em áreas
controladas por milícias, o número de incursões da Polícia Militar é bem reduzido
quando comparado com a quantidade de operações realizadas em áreas
controladas pelas facções Comando Vermelho, Terceiro Comando ou Amigo dos
Amigos.

Na Gardênia Azul, [...] dominada há décadas por paramilitares, também


houve apenas um tiroteio. Uma rua – a Estrada do Gabinal – separa a
comunidade da Cidade de Deus. As duas comunidades são patrulhadas
pela mesma unidade da Polícia Militar: o 18º BPM (Jacarepaguá). [...] Se na
vizinha Gardênia reina a paz, a favela celebrizada pelo filme de Fernando
Meirelles mantém o cotidiano violento exibido nos cinemas: foram 173
confrontos com as polícias, desde 2016, o que lhe confere o 2º lugar no
ranking de tiroteios, ficando atrás apenas do Complexo do Alemão, na Zona
Norte. A favela, hoje, é o principal território do Comando Vermelho na Zona
Oeste carioca.

A pesquisa também mostra que, atualmente, o controle territorial exercido pela


milícia é maior do que o controle das outras facções criminosas: cerca de 57,5% da
cidade do Rio de Janeiro, o que significa uma população de 2.178.620 de pessoas.

Com poder de influência que ultrapassa as favelas, atualmente a milícia


controla grandes territórios, intervém em questões imobiliárias e participa do jogo
eleitoral. Se, por um lado, a conduta criminosa das milícias propicia enorme
enriquecimento dos agentes do Estado, por outro, o favorecimento político garantiu
que a organização criminosa transitasse entre a legalidade e a ilegalidade e se
perpetuasse no interior das instituições estatais. A dupla vantagem das milícias –

70
A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos
armados. Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e Observatório das Metrópoles
(IPPUR/UFRJ). Disponível em: <https://bit.ly/3dtHtb7>.
84

política e econômica71 –, em relação às facções criminosas, é o que as torna um ator


importante na produção e reprodução da cidade.

Na economia, dita as regras sobre a utilização do solo urbano, o que


repercute diretamente no mercado imobiliário de grande parte da Zona Oeste e parte
considerável da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, como visto no capítulo
anterior. É o exemplo do que acontece hoje com unidades do programa Minha casa,
minha vida: segundo o já mencionado relatório 72 apresentado pelo GENI, em
conjunto com o Observatório das Metrópoles, existem 3 formas de dominação
desses condomínios.

A primeira delas é consequência da coação estatal miliciana, quando a milícia


local tem relação direta com ocupantes de cargos eletivos, o que se observou mais
na Baixada Fluminense, onde denúncias levam a crer que há participação direta de
um secretário do município (não informado), além de um vereador do município (não
informado). Nesses casos, o poder dos gestores públicos lhes garante voz ativa
sobre a prestação de serviços nos conjuntos habitacionais, como abastecimento de
água e oferta de Segurança Pública.

A segunda se relaciona com a dominação territorial, quando há alguma


disputa de áreas de poder com o tráfico de drogas e a lógica de dominação exercida
nas favelas é reproduzida nesses condomínios – após um conflito armado se
reestabelece um controle sobre esses moradores. Já a terceira categoria se refere à
cooptação interna, que é quando um sindico ou um morador, por coerção ou
almejando altos lucros, faz um acordo de administração com a milícia local, que
passa a ter o poder de determinar as taxas que serão cobradas, além de expulsar
moradores dos conjuntos habitacionais.

A milícia, além de cobrar taxas dos moradores, passa a cobrar também


daqueles que pretendem oferecer algum serviço, geralmente se estabelecendo
como uma empresa gestora, ocupando o lugar da prefeitura no gerenciamento do
espaço e das atividades ocorridas dentro dos condomínios. Além do mercado
lucrativo de controle dos condomínios do programa Minha casa, minha vida, outra
71
Ibidem.
72
A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos
armados. Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e Observatório das Metrópoles
(IPPUR/UFRJ). Disponível em: <https://bit.ly/3dtHtb7>.
85

fonte de renda para os milicianos é o mercado de construções irregulares. O referido


relatório aponta que:
Em linhas gerais, o urbanismo miliciano se vale da conivência das
prefeituras, de suborno, cooptação ou ameaças de uso de violência de
fiscais, da inserção de milicianos nas casas legislativas e em cargos de
confiança do Poder Executivo, além do suporte, em diferentes níveis, das
polícias civil e militar.73
Por fim outro artificio de expansão do lucro da urbanização miliciana é a grilagem de
terras, prática que requer auxilio de funcionários públicos e até de parlamentares
eleitos. A grilagem de terras avança sobre áreas de proteção ambiental e sobre
terras que pertencem à União.

A urbanização miliciana, garantida pela corrupção de agentes públicos


estatais, da segurança ou não, propiciou uma enorme anexação de territórios aos
grupos milicianos, além da exponenciação dos seus lucros. O que nos leva a
considerar que o fenômeno sem precedentes deve ser, mais uma vez,
energicamente combatido, pois possui facilidade de penetrar em diferentes
mercados e diferentes esferas da vida urbana.

4.2 A militarização da política e o crescimento da extrema-direita

A direita conservadora nunca se ausentou do espaço e do debate público no


Brasil, sendo parte constituinte de um país com profundas raízes coloniais,
escravocratas e militarizadas. Nem mesmo durante os anos de governo petista, que
trouxeram significativas mudanças, o conservadorismo tupiniquim deixou de ser um
expressivo polo de disputa ideológica em nosso país. Não se fala em invenção de
um fenômeno, mas de ganho de expressividade e adesão. É inegável que, após o
golpe de 2016, se acelerou a agenda de retirada de direitos trabalhistas, da
desregulamentação das relações de trabalho e da militarização.

As eleições de 2018 marcaram a vitória da extrema-direita, nacionalmente


com Jair Bolsonaro e, no estado do Rio de Janeiro, com o juiz aspirante a político
Wilson Witzel, confirmando a vitória eleitoral de um projeto político e econômico
neoconservador, ultraliberal, fundamentalista e com pouco apego democrático. Com
campanhas de apelo "antipolítico", o fenômeno bolsonarista soube lidar com as
insatisfações materializadas no “Estado”, mesmo que as soluções apresentadas
73
Ibidem.
86

pelas suas propostas atacassem a face garantidora deste. Em ensaio sobre a


reinvenção da direita no Brasil, Carapanã (2018) diz que:
O Estado que deve ser atacado não é aquele das máquinas de guerra, da
repressão policial ou do desrespeito aos cidadãos. O Estado a ser
desmontado é aquele que, segundo essa visão, concederia direitos demais
– ou mesmo quaisquer direitos – às pessoas ou grupos “errados”. Se o
neoliberalismo desmontou o Estado do bem-estar social, a nova direita quer
atacar o Estado como ente que garante direitos civis, direitos humanos.
(CARAPANÃ, 2018, p. 36.)

A extrema-direita conta ainda com as múltiplas investidas ameaçadoras das forças


militares de segurança e com a reiterada utilização de tons ameaçadores ao
fechamento de regime em diversas ocasiões. O avanço do apelo extremista de
direita, evidenciado a partir de 2016, traz consigo a retórica militar como solução; e,
na realidade brasileira, explora as contradições da República que não conseguiu
romper por completo com os pactos estabelecidos na Ditadura Militar.

Sobre o tema, vale retornarmos à contribuição trazida por Safatle (2017), que
afirma que o rompimento com o regime autoritário, que perdurou até 1985, foi uma
tentativa de conciliação, sem que houvesse qualquer punição a crimes como tortura,
assassinatos e ocultação de cadáveres, diferentemente de todos os outros países
latino-americanos, opção que expõe suas consequências no modus operandi das
polícias militares. Safatle (2017, p. 64) diz que a Nova República, constituída após o
fim da Ditadura Militar, se baseou na tese do esquecimento dos excessos. Sobre
isso, o autor afirma:
O resultado é inapelável. Nenhum outro país protegeu tanto seus
torturadores, permitiu tanto que as Forças Armadas conservassem seu
discurso de salvação através do porrete, integrou tanto o núcleo civil da
ditadura aos novos tempos de redemocratização quanto o Brasil. [...]
Nenhum outro país latino-americano precisa conviver com um setor
protofascista da classe média a chamar às ruas por “intervenção militar”.
(SAFATLE, 2017, p. 64)

A formação autoritária brasileira foi citada diversas vezes ao longo do trabalho.


Porém, o que Safatle (2017) explora em seu ensaio é que a tentativa de superação
do período ditatorial com a criação da Nova República não foi capaz de reorganizar
o Estado e suas instituições. Na verdade, aprimorou o pacto social que não
sobrevive no atual contexto político. Nesse sentido, a opção pelo pacto de não
agressão com as forças militares brasileiras, permitiu que o discurso extremista
ganhasse espaço e que torturadores fossem exaltados em casas legislativas.
87

Miguel (2018, p. 19) classifica a extrema-direita brasileira em 3 grupos


prioritários: o libertarianismo, o fundamentalismo religioso e a reciclagem do
anticomunismo. As pautas expressas por estes dialogam centralmente com as teses
levantadas por Graham (2016) na elucidação sobre o novo urbanismo militar. Não
coincidentemente, o crescimento global da extrema-direita, assim como o avanço do
novo urbanismo militar, trata o diferente a partir da metáfora da guerra. Dessa forma,
justifica o extermínio contra favelados, pessoas de religiões de matrizes africanas,
imigrantes, socialistas, lutadores sociais, oposicionistas, artistas, professores e
muitos outros, todos tratados como inimigos do Estado.

Para Miguel (2018), o libertarianismo significaria a oposição entre as noções


de igualdade e liberdade, com um apelo à autonomia individual e à condenação do
Estado enquanto interventor nas relações econômicas. A crença na adoção de
medidas de austeridade e políticas privatistas como saída para interesses
específicos, de acordo com Rossi e Dueck (2018), é um veículo que corrói a
democracia. Segundo Miguel (2018, p. 19): “para os liberais de feição mais
canônica, não seria uma teoria liberal e sim neofeudal”. Isso quer dizer uma teoria
liberal extremista.

Mesmo condenando o que seria o extremismo político de governos petistas,


membros de grupos marcadamente neoliberais, como o Instituto Millenium ou o
Instituto Mises Brasil, Estudantes pela Liberdade e o Movimento Brasil Livre,
declararam seu apoio no segundo turno (e, por vezes, ainda no primeiro turno) ao
projeto de governo de Bolsonaro. A extrema-direita brasileira apresentou o nome do
banqueiro Paulo Guedes para estar à frente da economia do país, prometendo
avanços de reformas, contenção e enxugamento dos cargos públicos, garantindo
que, mesmo com eventuais divergências, a direita tradicional pactuaria com o
projeto econômico extremista. Pode-se dizer que as sensíveis diferenças entre as
teorias econômicas de cunho liberal não impediram a composição desses setores no
que se refere à pauta econômica.

A teoria econômica caracterizada como liberal extremista por grupos liberais


de direita é mais facilmente digerida por eles do que qualquer outra teoria
econômica que concilie algum nível de interesse social, mesmo que mínimo. Na
88

ânsia de aumento de lucros com a venda da “paz”, não há diferenças entre os


liberais: na história política brasileira, todos apoiaram o mercado da guerra.

O primeiro grupo se relaciona muito bem com o conservadorismo cristão e,


portanto, com o fundamentalismo religioso, que opõe o Estado à conservação da
família tradicional (MIGUEL, 2018, p. 20). Com isso, avançamos para o segundo
grupo, que confere base popular à doutrina da extrema-direita brasileira. O segundo
grupo é expresso pelo fundamentalismo religioso e cresceu à medida que as igrejas,
em especial as igrejas evangélicas neopentecostais, compreenderam a sua
potencialidade eleitoral (MIGUEL, 2018, p. 21). De maioria de base conservadora, as
igrejas evangélicas fundamentalistas são um forte pilar que confere popularidade
para o projeto político da extrema-direita.

Para Henrique Vieira (2018), o fundamentalismo religioso se constitui como


um perigo a democracia, já que, em suas palavras,
o fundamentalismo religioso cristão trabalha com o conceito de verdade
absoluta, inquestionável, eterna, imutável e para além da história. [...] A
partir da formulação "está escrito”, constrói-se uma visão de mundo, um
modelo comportamental e uma forma de lidar com a sociedade. Parece
simples, mas não é. Em tal modelo, desconsidera-se totalmente que toda
leitura é uma interpretação e que toda interpretação está mediada por um
contexto histórico e cultural. (VIEIRA, 2018, p. 92)

Assim, o pacto de governabilidade, que garantiu visibilidade midiática e


representação política institucional, possibilitou que setores fundamentalistas – em
especial evangélicos – disputassem a política a partir da concepção puramente
religiosa. Em outras palavras, líderes religiosos fundamentalistas reproduzem, em
suas milhares de filiais espalhadas pelas periferias brasileiras, a disputa ideológica
da extrema-direita. Tal disputa ganhou muita tônica no debate de liberdades
individuais, direitos igualitários de gênero, raça e sexualidade.

O fundamentalismo, como um dos pilares de sustentação da extrema-direita,


é a reprodução do discurso de ódio às minorias de representações étnicas,
exaltação a valores patriarcais e condenação da homossexualidade. Para além
disso, sua capacidade de diálogo e alcance popular ajuda na formação dos
“soldados-cidadãos”. Esse segundo grupo cristaliza a intolerância enquanto valor
desse novo período político, trazendo para a arena do debate político a condenação
moral por valores puramente individuais e legitimando teorias militarizantes.
89

O terceiro grupo parte da reinvenção do medo comunista e dialoga com os


mesmos subterfúgios utilizados em 1964, entre eles: a proximidade política do
governo petista aos governos populares da América Latina, a manutenção da
segurança nacional e a demonização de tudo que contrapõe à ordem estabelecida.
Isso quer dizer que o antipetismo se traduziu em um sentimento de anticomunismo e
rechaço a tudo que poderia popularmente ser denominado “de esquerda”.

Dos elementos apresentados, um merece especial destaque, pois se


comporta como um elo entre as teorias militares e a extrema-direita brasileira: a
Segurança Nacional. A mobilização da teoria da Segurança Nacional, em tempos de
novo urbanismo militar, relaciona as escalas nacionais e urbanas – e, para nosso
trabalho, é central para compreender a relação interescalar da militarização da
urbanização.

Graham (2016, p. 72) afirma que operações da esfera urbana doméstica são,
cada vez mais, tratadas como problemas de Segurança Nacional. Notadamente no
Rio de Janeiro, a exemplificação mais concreta é a guerra às drogas, que dialoga
com a escala urbana e internacional; entretanto, poderíamos citar outros atores que
são considerados inimigos nacionais, em especial, para a parcela extremista de
direita, os lutadores do campo, os ocupantes de imóveis vazios e todos aqueles que
levantam vozes que destoam da ordem.

A presença onipresente do inimigo, seja ele qual for, é o que garante especial
posição para setores políticos da extrema-direita e traduz na disputa urbana as
ideologias de disputas nacionais. Exemplo mais nítido são as reiteradas justificativas
do atual Presidente da República para flexibilizar a posse e o porte de armas para a
população; em nome da defesa individual, a agência federal pode intervir e acelerar
o processo de urbanização miliciana ocorrida na cidade do Rio de Janeiro.

Visando desburocratizar o acesso às armas, Jair Bolsonaro alterou decretos


federais no dia 12 de fevereiro de 2021. Um deles 74 prevê a possibilidade de que um
agente Estatal com porte de armas de fogo possua até 6 armas para a sua proteção
pessoal, outro75 prevê o número de 60 armas para atiradores e 30 para caçadores.

74
Decreto 9.845/2019
75
Decreto 9.846/2019
90

E, por fim, o presidente garantiu via decreto 76 a desclassificação de alguns


armamentos como controlados pelo exército, dispensando a necessidade de registro
junto ao Exército brasileiro.

Ideologias armamentistas, que reivindicam a todo instante a necessidade de


preservação da Segurança Nacional, são incentivadas por governos extremistas – o
que, dentro do contexto atual de avanço da urbanização miliciana do Rio de Janeiro,
significa um enorme perigo para a manutenção da democracia e do funcionamento
das instituições.

A violência se mostra como parte constitutiva da nossa história, a ascensão


dos grupos de extrema-direita reacende desejos de guerra e reativa constantemente
o sentimento do “outro” como inimigo, trazendo para o cerne do debate nos grandes
centros urbanos a constante necessidade de mais securitização, mais dispositivos
de controle e exclusão, e mais armamentos em nome de uma pretensa autodefesa.
Assim, a extrema-direita alimenta a doutrina da guerra urbana e a classificação
fenotípica/espacial do inimigo, contra o qual se praticam ilegalidades.

4.3 Parem de nos matar! O urbicídio e a necropolítica são as opções do


urbanismo militarizado

O termo urbicídio foi usado em dois momentos para refletir sobre diferentes
processos de destruição das cidades: a primeira foi nos anos 1990, por Marshall
Berman, na reflexão sobre o processo de destruição dos bairros do Bronx,
associando esse processo a políticas antiurbana; e o segundo foi em 1993, para se
referir às destruições das cidades no processo de desintegração da República
Iugoslava (MORENO; BÁEZ GIL, 2021).

A prática do urbicídio se refere à morte das cidades em sua essência, é a


desumanização dos cidadãos de territórios alvos, no momento em que se exerce o
poder de destruição desses espaços, que perdem o seu sentido de reprodução da
vida. O urbicídio é o que Graham (2016) chama de guerra às cidades e à urbanidade
em todos os seus variados aspectos.

76
Decreto 10.030/2019
91

Partindo mais uma vez do binarismo expresso entre agentes da ordem versus
agentes da desordem e do caos, Graham (2016, p. 308) revela o sadismo israelense
e norte-americano na guerra contra o terror, que resultou na invasão ao Iraque em
busca de armas de destruição em massa. O autor descreve como a campanha de
desinformação realizou uma proposital confusão entre Estado Nacional, população e
grupos terroristas, além de rotulação de elementos religiosos, em uma espécie de
cruzadas contra o islamismo radical do século XXI. Graham (2016) afirma que:

Esse ciclo de militarismo mútuo não é de todo surpreendente: a ideia inicial


da guerra global contra o terror veio de Israel [...]. O cenário imaginado era
usar uma intervenção militar agressiva para reorganizar de maneira forçosa
a geopolítica do Oriente Médio [...]. Tudo sob o princípio da prevenção.
(GRAHAM, 2016, p. 311)

Desumanizar palestinos foi a forma encontrada por Israel e Estados Unidos para
amortecer qualquer sentimento de compaixão aos ataques sofridos na invasão
preventiva contra o terror, foi a tentativa de mitigar a revolta causada pela subtração
da vida de milhares de civis atingidos diretamente por essa guerra, em busca de
exponenciação de lucros, exportação de tecnologias de guerra em massa, controle
geopolítico da região e exploração neocolonial.

Na guerra urbicida não há o objetivo de vencer, mas de promover a


segurança dentro dos países do Norte global, mesmo que isso, para a doutrina
militar, signifique financiar conflitos em outros territórios nacionais (KLEIN, 2007
apud GRAHAM, 2016 p. 341). O capitalismo do desastre muda o paradigma dos
cercamentos, produz restrições gravíssimas à possibilidade de vida urbana e
propicia a exportação do modelo de urbanismo militar israelense para todo o mundo
(GRAHAM, 2016, p. 342).

O urbicídio se relaciona com o novo urbanismo militar à medida que a


doutrina justifica a criação de espaços de ausência de observância de direitos
humanos, de ataques com utilização da violência e geram os estados de emergência
ou territórios de exceção. Sendo assim, diz Graham (2016):
[...] definido como a violência política criada intencionalmente para eliminar
ou matar cidades, o urbicídio pode envolver transformação de espaços de
mistura cosmopolita em alvos etnocionalistas […] ou a aniquilação direta de
povos e lugares demonizados, declarados não modernos, bárbaros,
impuros, patológicos ou sub-humanos. (GRAHAM, 2016, p. 151)
92

O militarismo urbano, ao contar com práticas urbicidas na sua expansão, visando


transformar a cidade em um espaço ordenado e livre de divergências, compõe muito
bem com as doutrinas de intolerância propagadas pela extrema-direita e também
com o acúmulo capitalista desenfreado, uma vez que a criação dos conflitos nas
cidades é, por vezes, a necessidade de acentuar a exploração que atenderá a
grupos econômicos. Mendonça (2020) diz que o urbicídio não se limita apenas ao
espaço físico, mas também a toda interface cultural das cidades e, portanto, negar a
heterogeneidade das cidades seria uma forma de destruição da vida urbana.

Nesse sentido, urbicídio ultrapassa a concepção infraestrutural das cidades,


pela compreensão de que mesmo quando o alvo é um aspecto físico, como por
exemplo uma construção ou edificação, ao atingi-lo também são afetados os
elementos da sociabilidade urbana. A destruição urbicida, nesse sentido, destrói
possibilidades de recomposição desses espaços urbanos. São destruídos os
elementos constitutivos da vida urbana para que se torne insuportável a própria
sobrevivência do inimigo (COWARD, 2009 apud MENDONÇA, 2020); e, assim, é
negado o usufruto da cidade para grande parcela dos seus habitantes.

Sharp (2016) levanta uma segunda vertente de destruição simbólica, quando


aponta o urbicídio também como uma prática de reconstrução, não se confundindo
com o conceito de gentrificação, já que o sentido que autor propõe diz respeito à
dominação territorial pelas forças legais do Estado ou ilegais paraestatais, capazes
de controlar militarmente determinado espaço, construindo e reconstruindo
geografias que exterminam a possibilidade do encontro e da manutenção da vida
urbana.

Assim, pode-se concluir que é possível que se destrua a essência da


urbanidade e se impeça a convivência da heterogeneidade e da expressão da
pluralidade no ambiente urbano, através da utilização da violência – por vezes
simbólica. Tal processo caminha lado a lado com o modo de reprodução do capital e
o desmonte das políticas de proteção social. Na impossibilidade de um Estado
garantidor de direitos, se convenciona que aqueles afetados pelo recuo do Estado
social são os inimigos – e seus espaços são, portanto, territórios de exceção.
93

Nesse sentido, trazendo para o campo do estudo a militarização e seu papel


na destruição da cidade como espaço plural, Mendonça diz (2020, p. 168):
[...] a militarização da cidade tem fragmentado o espaço urbano e
estilhaçado a existência em espaço comum, modificando o sentido de vida
na cidade, cada vez mais associado à violência e ao individualismo, criando
formas destrutivas de vida urbana. Diante da capacidade destrutiva que o
fenômeno urbicida assume, é elementar saber quais são os meios usados e
as consequências do desdobramento de práticas urbicidas na cidade.

Dentro da realidade brasileira, é possível observar que o genocídio da juventude


negra é o aporte de justificativa para a prática urbicida que mata as possibilidades
de vida daqueles que conseguem sobreviver à política eugenista do Estado,
impedindo a chance de sobrevida daqueles que, porventura, consigam incidir na
construção do espaço, apagando espaços de memória e impedindo a construção de
pluralidades.

Todavia, a destruição dos símbolos de urbanidade nem sempre é imposta


pelo Estado; é comum, por exemplo, que grupos milicianos ocupem territórios
inteiros, eliminando aqueles que possam representar perigo ou afrontem a sua
autoridade e, posteriormente, pratiquem coerção sobre as formas de sociabilidade
no espaço ocupado, impedindo reuniões políticas, organizações de eventos
culturais, realizações de baile funk, apropriando-se, por vezes, como citado
anteriormente, do espaço através do uso da força e tornando-se gestores do
território.

Dentro do contexto de crescimento das práticas militarizadas ditando o


espaço urbano, as favelas e periferias fluminenses, territórios que abrigam as
supostas classes perigosas, são alvos de violência urbicida como medida de
contenção, apagamento e extermínio, estatais ou não.
O urbicídio [...] se transfigurou, no Brasil, em uma ação de violência política
e militarização do espaço urbano, conduzida pelo Estado e por grupos
criminosos armados com domínio de território, que agem por medidas de
exceção, extorsão e ação predatória do espaço urbano. (MENDONÇA,
2020, p. 177)

A política de guerra contra as favelas, promovida pelo Estado ou por forças


militares que permeiam as atividades lícitas institucionais, como as milícias, podem
não representar integralmente o urbicídio ocorrido na Bósnia; porém, igualmente não
deve ser caracterizada como um simples conflito urbano esporádico. A política de
Estado é atirar na cabeça de moradores de favelas suspeitos, de cima para baixo,
94

dentro de um helicóptero, como abordado no capítulo anterior. Ou seja, há uma


evidente intenção na destruição desses espaços. A exemplo disso, em 2017, o jornal
O Globo noticiou o experimento do jornal Vozes da Comunidade77, que consistiu nos
participantes usarem um fone de ouvido e identificarem o “som de guerra” que vinha
dali. Ao escutarem, os moradores acharam se tratar de guerras na Síria ou no
Afeganistão, e se surpreenderam ao saber que se tratava de sons habituais nas
favelas cariocas. Nesse sentido, André Constantine78, membro do coletivo Favela
Não Se Cala, traz a sua perspectiva, comparando a favela a um campo de
extermínio do povo preto.
Aqui na Babilônia, tem três cemitérios clandestinos, com mais de 400
corpos enterrados, como eu vou romantizar morar em um território em que
minha filha não tenha a oportunidade de se desenvolver intelectualmente
por causa dos confrontos? Ela perde, praticamente, o ano letivo por causa
dessa política de guerra às drogas baseada nesses confrontos. [...] Isso
aqui é um campo de extermínio do povo negro, e aqui o Estado exerce dois
tipo de violência: a violência através da ponta do fuzil do capitão do mato,
que antes vinha a cavalo e hoje vem de camburão, e a violência simbólica
que é a falta de saneamento básico, de moradia digna, creche, escola.79

O intenso processo de militarização da cidade esvazia a possibilidade de vivência


desta por grande parcela dos seus habitantes, negando-lhes direitos em nome de
uma política de Segurança Pública fadada ao fracasso. Dados do Instituto de
Segurança Pública80 afirmam que, nos primeiros meses de 2020, foram 741 mortes
causadas por policiais militares, o maior número em 22 anos. Mendonça (2020,
p.179) afirma que

Tal política de militarização [...] esboça certo “urbicídio ao estilo brasileiro”


[...]. Na interface da militarização da questão urbana, verificada em cidades
como o Rio de Janeiro, processos de reestruturação urbana excludentes,
apoiados por violência policial ou ação predatória do espaço urbano, têm
produzido novos arranjos espaciais para satisfazer interesses variados;
entre eles, interesses imobiliários em que o emprego da violência política,
de natureza urbicida, para remover contingentes populacionais, são
notórios.

No Rio de Janeiro, o conflito não se dá pela guerra formal entre exércitos distintos, já
que a distinção entre legalidade e ilegalidade das operações militarizadas é muito
mais complexa do que o binarismo maniqueísta vendido pelas forças do Estado.
77
Voz das Comunidades faz monitoramento independente do coronavírus em favelas do Rio. G1, 22
abr. 2020. Disponível em: <https://glo.bo/3nqGyNq>. Acesso em: abr. 2021.
78
A favela é um campo de extermínio do povo negro. Portal Geledés, 26 mai. 2019. Disponível em:
<https://bit.ly/3dTSXpV>.
79
A favela é um campo de extermínio do povo negro. Portal Geledés, 26 mai. 2019. Disponível em:
<https://bit.ly/3dTSXpV>.
80
Instituto de Segurança Pública divulga dados de maio. Governo do Estado do Rio de Janeiro, 22
jun. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3nmRxHm>.
95

Dessa forma, Shaw (2004, p. 141) aponta que o urbicídio deve ser lido em conjunto
com outras estratégias de aniquilação.

Quando nos referimos ao Sul global, o urbicídio como forma de “fazer morrer”
as cidades tem relação intrínseca com o “fazer morrer” enquanto uma decisão de
poder, ao que Mbembe (2018) denomina como necropolítica, como o poder de
determinar quem deve morrer e quem pode viver. Os conceitos se relacionam
porque ambos servem como condições de desenvolvimento do capitalismo e, na
periferia global, produzem zonas de morte e exclusão. A necropolítica é a
manifestação do poder daqueles que decidem quem é aliado e, portanto, merece
permanecer vivo e quem é inimigo e pode ter sua vida retirada. Esses inimigos
ocupam um determinado espaço e são, em sua grande maioria, pretos e pardos.

Não é acessório ressaltar a territorialidade, assim como não é correto, ao


refletir sobre o extermínio ocorrido em favelas e periferias, ignorar a dimensão racial
proveniente da nossa raiz escravocrata. Sobre o tema, Mbembe (2018, p. 27) afirma
que a escravidão é o berço do terror e, portanto, “qualquer relato histórico do
surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão", já que ao escravizado
foi compulsório o lugar do não existir humano, sua vida representava apenas a
existência de uma propriedade subtraída de desejos, emoções e direitos.
[...] o fato de que as colônias podem ser governadas na ausência absoluta
de lei provém da negação racial de qualquer vínculo comum entre o
conquistador e o nativo. Aos olhos do conquistador, vida selvagem é apenas
outra forma de vida animal [...]. (MBEMBE, 2018, p. 35.)

A fim de desenvolver o conceito de necropolítica, Mbembe (2018) relaciona a noção


de biopoder (Foucault 1997 Apud Mbembe 2018) com outros dois conceitos: Estado
de Exceção e o Estado de Sitio e, para o autor, ao determinar quem vive e quem
morre, a necropolítica se orienta pela distinção entre aqueles que existem e aqueles
que não existem, a garantia da realização da necropolítica é o seu pressuposto
racista enraizado na sociedade capitalista e com substratos de singularidade na
realidade brasileira escravagista.

Ao refletir sobre o cenário de violência urbana no Rio de Janeiro,


compreende-se que o território que convive com políticas de exclusão da
sociabilidade e a morte da cidade no seu sentido de encontro, é o mesmo onde são
empreendidas as guerras urbanas: o avanço da urbanização militarizada caminha
96

em conjunto com a política de Estado, que determina quais são os corpos matáveis.
Como citado ao longo do trabalho, a urbanização militarizada expõe a necessidade
da criação de binarismos, seja entre a ordem versus a desordem ou entre os
cidadãos de bem identificados a partir do pacto da branquitude versus bandidos
racializados.

Sendo assim, a capacidade de destruição de grandes áreas periféricas é a


reafirmação racista da existência de espaços garantidores de cidadania e de outros
espaços que, pelo seu adensamento negro, são passíveis de morrer. Soma-se a
essa realidade a crescente saída militarizada e a conclusão é o Estado operando a
morte dos seus cidadãos, impedindo acesso a condições mínimas de sobrevivência.

Ao mesmo tempo, é importante salientar que as práticas da necropolítica nem


sempre se relacionam com a destruição resultante de ações tenebrosas na área da
Segurança Pública, a administração da morte foi verbalizada em muitos debates
públicos. Como relembra Sueli Carneiro, em artigo publicado em 200781, o GAP
(Grupo de Assessoria e Participação do Governo do Estado) elaborou um
documento sobre o censo demográfico de 1980, e apresentou a proposta de
esterilização de mulheres pretas e pardas, por concluir que
A se manter essa tendência, no ano 2000 a população parda e negra será
da ordem de 60%, por conseguinte muito superior à branca; e,
eleitoralmente, poderá mandar na política brasileira e dominar todos os
postos-chave – a não ser que façamos como em Washington, capital dos
Estados Unidos, onde, devido ao fato de a população negra ser da ordem
de 63%, não há eleições.82

No Rio de Janeiro, o ex-governador Sérgio Cabral chegou a defender abertamente o


aborto para mulheres faveladas. Como forma de diminuir a violência urbana, ele
afirmou em entrevista que:
Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de
filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é
padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é
uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. 83

A relação intrínseca com a fase do capitalismo se dá pela percepção de que


esses corpos matáveis são inúteis para a reprodução do capital, já que se faz

81
Cf. CARNEIRO, S. Biopoder. Correio Braziliense, 30 out. 2007. Disponível em:
<https://bit.ly/3nn0RLs>.
82
Ibidem.
83
Cabral defende aborto contra violência no Rio de Janeiro. G1, 24 out. 2007. Disponível em:
<https://glo.bo/2S5ftDM>.
97

desnecessário o gasto com recursos para a manutenção – mesmo que em


condições subumanas – de um exército de reserva industrial, posto que a nova
divisão internacional do trabalho não permite que massas de trabalhadores e
trabalhadoras sejam absorvidos pelas novas técnicas. Mbembe (2018, p. 59) aponta
que:
as tecnologias de destruição estão menos preocupadas com a inscrição de
corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los no momento
oportuno na ordem da economia máxima, agora representada pelo
massacre.

Para continuar existindo e se reproduzindo, o capitalismo necessita criar as zonas


de exclusão e de morte (MBEMBE, 2018). Não à toa, o capitalismo europeu cresceu
à medida que anexou para si colônias, áreas onde se legitimou a exceção ao
ordenamento jurídico e ao conjunto de valores da civilização branca e europeia. É a
partir da desumanização de povos africanos e indígenas que o capitalismo europeu
se desenvolve e, assim, a necropolítica se relaciona com a sede capitalista de várias
formas.

Com a capacidade de ser altamente adaptável, o capitalismo consegue


permanecer inconteste mesmo diante dos momentos de profunda instabilidade
social e sanitária que vivemos desde o fim de 2019. Por isso, hoje, as zonas de
exclusão, as grandes periferias, alimentam o crescimento dos grandes capitalistas,
prova dessa afirmação é que, durante a pandemia do novo coronavírus, a riqueza de
milionários no mundo aumentou em 25%84. É representativo que, em agosto de
2020, o patrimônio líquido de Jeff Bezos tenha ultrapassado o valor de US$ 200
bilhões, ao mesmo tempo em que o relatório da ONU aponta que 8.9% da
população mundial, ou seja, 690 milhões de pessoas são afetadas pela fome 85,
número que tende a aumentar com a pandemia do novo coronavírus.

Outro aspecto importante a ser salientado é que o exercício de vontade da


morte é relacionado por Mbembe (2018, p. 5) com o próprio exercício da soberania.
O autor desmistifica o soberano como o sujeito em busca de autonomia e o
relaciona com o algoz de corpos humanos e populações inteiras. Mbembe (2018)
explica:
84
Riqueza de bilionários quebra recorde na pandemia e bate US$ 10 trilhões. Forbes, 07 out. 2020.
Disponível em: <https://bit.ly/3xt6igE>.
85
À medida que mais pessoas não têm o suficiente para comer e a desnutrição persiste, acabar com
a fome até 2030 é uma incerteza, alerta relatório da ONU. Unicef, 13 jul. 2020. Disponível em:
<https://uni.cf/32QxCHr>.
98

A expressão máxima de soberania reside no poder e na capacidade para


ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver
constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Ser
soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a
implantação e manifestação do poder.

Em paralelo, a perda do monopólio do uso da força, atrelada ao avanço dos


dispositivos militares permeando o cenário urbano, expandiu o direito de matar,
como observado com o crescimento das milícias dentro dos territórios populares.
Mbembe (2018, p. 53) diz que:
[...] a afirmação de uma autoridade suprema em um determinado espaço
político não se dá facilmente. Em vez disso, emerge um mosaico de direitos
de governar incompletos e sobrepostos, disfarçados e emaranhados, nos
quais sobejam diferentes instâncias jurídicas, de fato geograficamente
entrelaçadas, e nas quais abundam fidelidades plurais, suseranias
assimétricas e enclaves.

Assim, o esvaziamento do conceito de segurança social aumenta o clamor


pela segurança militarizada, seja ela estatal ou não, e o sentimento generalizado de
insegurança incentiva a busca individual de preservação, que se torna a chancela de
dominação, no mesmo momento em que, como salientou Graham (2016), acontece,
dentro dos territórios urbanos, a guerra permanente ou guerra de quarta geração.
Nesse sentido, a busca crescente pelo armamento cria, segundo Mbembe (2018),
uma distinção social entre aqueles que possuem e os que não possuem armas.

4.4 O armamento da Guarda Municipal do Rio de Janeiro

Alguns meandros da discussão sobre o armamento da Guarda Civil Municipal


não serão debatidos no presente trabalho, pois se referem a temas como orçamento
público, preparação do agente público e treinamento das forças policiais. O intuito é
refletir sobre a medida como uma aposta que caminha no sentido de reforçar
dispositivos militares na vida urbana, interferindo diretamente na produção da cidade
miliciana.

As Guardas Civis foram extintas em 1969, dando lugar às Polícias Militares,


corporações mais centralizadas. As forças militares estaduais, por sua vez,
passaram a fazer o uso exclusivo da força de policiamento ostensivo e também a
responderem, na ordem hierárquica militar, a um general da ativa do Exército
brasileiro. Essa opção, ainda no regime da Ditadura Militar, acentuou os laços de
99

proximidade e dependência entre as unidades estaduais de policiamento e as forças


militares nacionais.

A função do policiamento de proximidade nunca foi tarefa das Polícias


Militares, apesar de algumas tentativas de reorientação ao policiamento comunitário,
como as experiências no Governo Brizola e, em parte, as UPPs, porém nunca foram
capazes de superar a “súplica militarista” como política de Estado. Em sentido
contrário, a militarização da vida urbana, que parte de reiterados incentivos
presentes nos discursos políticos, na pressão midiática, na anuência do poder
legislativo, na conivência do poder judiciário e também no lucrativo mercado do
medo, cooperaram com o recrudescimento da ação das polícias.

Isto é, o apelo popular e institucional pela militarização do espaço urbano


pondera eventuais ilicitudes de agentes do Poder público, em especial das Polícias
Militares, justificando ilegalidades por eles cometidas. Um exemplo foi o
encorajamento dado aos milicianos por representantes públicos e por parcela da
população, ignorando a participação de agentes em desvio de função, sob o pretexto
de combate ao crime organizado.

Interessante relacionar o narrado com o fato de que a Nova República


brasileira não foi capaz de romper com a estrutura militarizada das forças de
segurança interna, e a consequência dessa opção se reflete cotidianamente no
autoritarismo dentro das nossas forças de policiamento – ou quando atingimos, só
no ano de 2019, o número de 1.810 pessoas mortas em confrontos com a polícia, no
Rio de Janeiro.

Dentro do contexto político e social de avanço do militarismo urbano e da


extrema-direita militarizada no Brasil, a militarização das forças de policiamento
interno está consolidada, ao mesmo tempo em que surgem outras iniciativas na
tentativa de mitigar as fronteiras entre o militar e o civil – o armamento das Guardas
Civis Municipais (GCM) é uma delas. Projetos exigindo o armamento das GCMs
crescem e ganham força pelo país inteiro e, na cidade do Rio de janeiro, o debate
ressurge na cidade miliciana.

A Constituição Federal de 1988 facultou aos municípios a possibilidade de


que constituíssem suas próprias GCM, com funções relativas a proteção de bens,
100

serviços e instalações, ou seja, a Carta Magna não previa em sua formulação que
esses agentes compusessem o corpo da Segurança Pública, assim, o debate em
torno do armamento só vai ganhar fôlego a partir das possibilidades abertas com
aprovação do estatuto do desarmamento, em 200386.

A fim de superar os impasses na discussão sobre a constitucionalidade das


decisões municipais, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 26 de fevereiro de
2021, decidiu por flexibilizar ainda mais a possibilidade dos governos da esfera
municipal optarem por transformarem suas Guardas Municipais em guardas
armadas, e o ministro Alexandre de Moraes compreendeu que as medidas de
controle de armamento significavam um desrespeito a princípios de igualdade e
eficiência.

No julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 5948 e


5538, o Superior Tribunal Federal confrontou o estatuto do desarmamento e, assim,
suprimiu a limitação ao porte de armamento de fogo contida no inciso III e IV do art.
6º da Lei Federal nº 10.826/2003, ou seja, a legislação anterior procurou medidas de
controle na utilização do armamento de fogo, porém, tal preservação foi derrubada a
partir de decisão recente do STF, que permite o porte de armas à todos os
integrantes de Guardas Municipais no país, não atrelando mais a permissão ao
tamanho da população do município.

Em várias cidades do estado de São Paulo, o armamento foi apenas o


primeiro passo; hoje, a discussão já se refere aos efeitos da criação das tropas de
elite das GCM (Guardas Civis Municipais), as chamadas ROMU (Rondas Ostensivas
Municipais). A força de segurança especializada, presente em vários municípios,
atua como parte da estratégia de Segurança Pública, no combate ao tráfico de
drogas e roubos, além de auxiliar no policiamento ostensivo, executando as mesmas
funções exercidas pelas tropas de elite das Polícias Militares. Treinados pela ROTA
(Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa de elite da Polícia Militar do estado
de São Paulo, tornou-se corriqueira a incursão da ROMU em áreas periféricas das
cidades, com a utilização de armamentos, além da atuação em processos de
desocupação e de repressão a manifestações culturais, como as rodas de rima.

86
Lei 10.826/2003.
101

A aposta por ampliar a militarização das GCM faz com que seja possível que
suas atuações se assemelhem, em vários momentos, às atuações da Polícia Militar
e, com isso, perde-se a chance de formação de um policiamento civil de
aproximação. Em São Paulo, a ação de remoção da Cracolândia, duramente
repreendida por parte da opinião pública pela sua truculência, foi realizada pelas
Guardas Municipais.

A tentativa de permitir o uso de armamentos pela Guarda Municipal do Rio de


Janeiro se demonstra também bastante irrefletida, uma vez que essa opção não
retrocede no abismo social relatado ao longo do trabalho, podendo prejudicar ainda
mais àqueles já estigmatizados e beneficiar os que fazem uso da força letal para a
exponenciação dos seus lucros. Armar a Guarda Municipal significa possibilitar que
mais 7.532 agentes de segurança estejam, portanto, armados na cidade miliciana.

Para caracterizar a GCM/Rio, importante se faz relembrar os momentos em


que foram utilizadas para imposição do “ordenamento urbano”. Em um exemplo
relativamente recente, temos a Operação Choque de Ordem, com início em 2009,
durante a prefeitura de Eduardo Paes. O canal de comunicação da prefeitura da
cidade caracteriza a operação como “um fim à desordem urbana”, e prossegue com:
A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de insegurança
pública e a geradora das condições propiciadoras à prática de crimes, de
forma geral. Como uma coisa leva a outra, essas situações banem as
pessoas e os bons princípios das ruas [...].87

A Operação Choque de Ordem foi mais um dos mecanismos de produção da


“cidade dos megaeventos” e, como tal, também buscou atrelar a noção de desordem
ao crime e muitas foram as denúncias sobre ela, principalmente pelas ações
autoritárias de uso indevido de armamentos não letais, armas de choque, spray de
pimenta e cassetetes contra pessoas que exercem o trabalho informal (camelôs, em
especial) e moradores de rua. A repressão feita principalmente pela GCM atingiu a
única forma de sobrevivência de milhares de trabalhadores. Nesse sentido, Camila
Muniz da Costa Pereira (2011) conclui que:
Diante das considerações, entende-se que a Guarda Municipal do Rio de
Janeiro funciona como aparelho repressivo do Estado, através da coerção,
exercida mediante controle, perseguição e apreensão de mercadorias,
ilícitas ou não, de camelôs, sob o signo de manutenção da Ordem Urbana.
A GM tem por objetivo proteger os interesses do capital comercial, na
medida em que as mercadorias vendidas pelo comércio ambulante,
87
Choque de Ordem, um fim à desordem urbana. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 16 set.
2009. Disponível em: <https://bit.ly/3eCcaeC>.
102

invariavelmente, possuem preços inferiores aos das lojas. (PEREIRA, 2011,


p. 60)

No contexto social que vivemos, com a queda dos postos de empregos


formais, a tendência é que mais pessoas recorram aos empregos informais e
passem a ocupar as ruas. No Rio de Janeiro, segundo levantamento feito pelo
Instituto Fecomércio de Pesquisas e Análises (IFEC), enquanto a informalidade
avançou 8,33% em todo o Brasil, no RJ a alta foi de 24,13% 88 – três vezes mais do
que a média nacional. Sendo assim, caso a política municipal do prefeito Eduardo
Paes seja semelhante à adotada em sua primeira gestão, os conflitos entre as
Guardas Municipais e trabalhadores informais tendem a aumentar e o armamento da
Guarda pode significar um grande risco para milhares de camelôs. O Dossiê dos
Camelôs do Rio de Janeiro89 – realizado, em 2014, pelo Comitê Popular da Copa e
Olimpíadas do Rio de Janeiro, em parceria com a Plataforma Dhesca Brasil – traz
alguns relatos de abuso de poder cometidos por guardas municipais contra camelôs.
Chegaram uns 10, 12 guardas. Eles chegaram pra fiscalizar. Eles estavam
muito nervosos, e eu, como sempre, sou o mais rebelde... mas até então eu
tava só observando, né? O Donato apresentou um documento, e eles
disseram que aquilo era merda, que aquilo não valia nada. Aí eu entrei na
conversa e disse: “É dessa forma que vocês trabalham, destratando um
idoso?” Um deles, um homem alto, bem forte, já veio pra cima de mim pra
me intimidar com um cassetete na mão. [...] Eles me jogaram lá dentro do
ônibus. E dentro do ônibus, eles me deram soco, eles me empurraram
contra a porta... Eles me humilharam. Fizeram o máximo pra me humilhar.
Deram um murro aqui [mostrando a nuca]. Mas eu continuei firme90.

As experiências de outros municípios apontam o aumento da militarização da “força


de segurança municipal”; o que, dentro do contexto de fragilidade de garantia do
direito à integridade física, pode significar o aumento da truculência da resposta do
Estado para com os trabalhadores informais.

O segundo aspecto que requer reflexão é a falsa acepção de que armar a


Guarda Municipal aumentaria a sensação de segurança na cidade do Rio de
Janeiro. Essa equivocada concepção atende à premissa do urbanismo militar, de
que quanto mais armas maior é a garantia de segurança, ignorando a obviedade de
que armas de fogo são letais. Em artigo denominado Armar a Guarda Municipal é

88
Crescimento das vagas informais no RJ foi três vezes maior do que a média nacional, indica
Fecomércio. G1, 10 fev. 2020. Disponível em: <https://glo.bo/3xpaD4l>.
89
Cf. Dossiê dos Camelôs do Rio de Janeiro. Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de
Janeiro. Disponível em: <https://bit.ly/2QsjbHc>.
90
Ibidem.
103

proteger o cidadão91, disponibilizado no site da prefeitura do Rio de Janeiro, o ex-


secretário de Ordem Pública, Gutemberg Fonseca, afirma:
A arma não foi fabricada para matar, pelo contrário: ela existe para evitar
que alguém morra [...]. Armar a Guarda Municipal do Rio (GM-Rio) – tema
em votação na Câmara de Vereadores – é um debate ligado ao benefício
social, no sentido de salvaguardar vidas, de proteger o cidadão. Sobretudo
em nossa capital, que registrou 2.717 assassinatos (ou 339/mês) nos
primeiros oito meses do ano, segundo o Instituto de Segurança Pública.

No caminho contrário, o economista e pesquisador Thomas Victor Conti 92, reuniu


algumas pesquisas internacionais sobre o tema e concluiu que 90% dos estudos
desmentem a afirmação de que “quanto mais armas, mais segurança”.

Rebatendo os argumentos de quem defende o armamento civil, o autor


contribui com elementos importantes, mesmo que o presente trabalho verse sob a
perspectiva de armamento de uma autarquia pública. A pesquisa, que se baseia em
reunir estudos acadêmicos e empíricos, expõe as contradições do preceito
armamentista, no qual se sustenta o armamento da Guarda, de que mais armas
aumentam a possibilidade de defesa. Sobre isso, o autor diz que:
90% das revisões de literatura são contrárias à tese “Mais Armas, Menos
Crimes”. Das 10 revisões de literatura ou meta-análises publicadas em
periódicos com revisão por pares, entre 2012 e 2017, nove concluíram que
a literatura empírica disponível é amplamente favorável à conclusão de que
a quantidade de armas tem efeito positivo sobre os homicídios, sobre a
violência letal e sobre alguns outros tipos de crime.93

O discutível aumento da segurança, alegado pelo ex-secretário Gutemberg


Fonseca, é atravessado pela escalada miliciana em que vive o estado do Rio de
Janeiro, pois ignora a produção dos levantamentos feitos pela própria Assembleia
Legislativa, por meio das duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI)
responsáveis por investigar o tráfico de armas, munições e explosivos e a
consequente utilização desse arsenal por traficantes de drogas, milicianos e outros
bandos, quadrilhas ou organizações criminosas. A conclusão da primeira
investigação presidida pelo deputado Marcelo Freixo apontou o que segue:
É patente, pública e notória, a participação de agentes da Segurança
Pública e de militares não só nesses desvios, mas também no tráfico de
armas como um todo, seja no âmbito local, no interestadual ou no
internacional. Também é evidente o envolvimento de agentes estatais com
91
Armar a Guarda Municipal é proteger o cidadão. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 14 nov.
2019. Disponível em: <https://bit.ly/3xqZ906>.
92
Cf. CONTI, T. V. Dossiê Armas, Crimes e Violência: o que nos dizem 61 pesquisas recentes. 2017.
Disponível em: <https://bit.ly/3tX3x4S>.
93
Ibidem.
104

traficantes de drogas, milicianos, bicheiros e outros grupos criminosos. Em


suma, o Estado não se controla, muito menos controla e fiscaliza,
devidamente, o mercado de armas, munições e explosivos.94 (CPI das
armas, 2011, grifo nosso.)

A segunda CPI das armas95, como ficou popularmente conhecida, fez um


levantamento no período de 2005 a 2015, e verificou o descontrole das forças de
segurança sobre a circulação de armas no Rio de Janeiro. O Relatório aponta que
houve furto ou roubo em 36 dos 56 batalhões da Polícia Militar do Rio de Janeiro,
mostrando que existe uma intrínseca relação entre desvios de armas e munições e o
abastecimento das organizações criminosas – dentre elas, a milícia.

O trabalho realizado pela casa legislativa em dois momentos traz grande


contribuição a respeito da necessidade de se aumentar o controle sobre a
disposição de armas para os agentes públicos de segurança, tendo em vista que a
existência e a expansão das milícias são uma realidade no Rio de Janeiro. A
primeira CPI chegou a expor que, em termos proporcionais, a metade dos crimes
envolvendo armas, munições e explosivos contou com a participação de integrantes
das Instituições de Segurança Pública e militares das Forças Armadas96.

Logo, aumentar o número de armas à disposição de agentes municipais


também aumenta o descontrole Estatal sobre a circulação e o tráfico de armas, visto
que, em termos institucionais, a organização das Guardas Municipais é de ainda
mais fragilidade e de menos capacidade de supervisão, devido à ausência de
integração com outros órgãos da Segurança Pública.

O Rio de Janeiro vive um momento de confluência do urbanismo militarizado


e das consequências do avanço da milicialização, que ecoa nas opções políticas.
Aumentar o número de circulação de armas, nesse momento, para as Guardas
Municipais é avançar ainda mais no autoritarismo militar que aponta, de maneira
arbitraria, quais são inimigos a serem abatidos, além de fazer parte da estratégia de
governo que prevê o armamento como forma de manutenção de poder.

94
Cf. FREIXO, M. CPI das Armas, 2011. Disponível em: <https://bit.ly/3sSrCbF>. Acesso em: mar.
2021.
95
Cf. Relatório Final: CPI das armas, 2011. Disponível em: <https://bit.ly/3aFkngY>. Acesso em: mar.
2021.
96
Ibidem.
105
106

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciei o trabalho expondo os aspectos históricos da violência urbana no Rio
de Janeiro e as implicações sociais desse contexto, desenvolvendo elemento como
a produção do medo, a estigmatização da favela e a aposta no discurso pacificador
como solução. Avançando um pouco mais, procurei refletir sobre os
desdobramentos da adoção da metáfora da guerra sob a ótica território do Rio de
Janeiro, trazendo importantes exemplos da nossa experimentação do Novo
urbanismo militar (Graham 2016), por fim, a urbanização miliciana foi apresentada
como consequência do fenômeno da militarização do espaço. Busquei abordar na
minha reflexão três aspectos: Segurança Púbica, economia e Política.

Milton Santos (2017 p. 244) ao falar sobre a natureza do espaço desenvolveu


em sua produção como os Territórios Nacionais se tornam Espaços nacionais da
Economia internacional, de forma que o “capitalismo sem fronteiras” significa na
prática: a liberdade dos grandes conglomerados econômicos, que se sobrepõem aos
Estados Nacionais. A relação de submissão das esferas públicas poderia então ser
expressa na máxima “os negócios governam mais que os governos”.

O autor desenvolve o tema (2017 p. 269) chamando atenção para o caráter


cada vez mais global das relações dos “espaços nacionais”, expondo que mesmo os
territórios periféricos fazem parte da rede econômica global.
“(...) as decisões nacionais interferem nos níveis inferiores da sociedade
territorial por intermédio da configuração geográfica, vista como um
conjunto. Mas somente em cada lugar ganham real significado”. (SANTOS
2017 p. 272)

Cidades distantes, colocadas em posições superiores no sistema urbano


(sobretudo as cidades globais) tem o comando político, mediante ordens
disposição da mais valia, controle do movimento, tudo isso que guia a
circulação distribuição e regulação (SANTOS 2017 p. 273)”
Dessa forma ao longo do Trabalho o binarismo: “estudo dos espaços de conflito
versus Relações de controle e submissão internacionais”, foi secundarizado. Isso
quer dizer que as experiências do Rio de Janeiro figuram dentro de um fenômeno
Internacional e devem ser pensadas de forma multiescalar.
107

Inspirada nas reflexões acerca de Espaço e do Território busquei


retratar a militarização das cidades enquanto um tema cada vez mais
contemporâneo e encontrei da obra de Graham (2016) uma elaboração teórica que
possibilitasse a articular as considerações acerca do Território mediadas pelo
avanço da militarização. Pode-se afirmar que o trabalho aborda a temática da
militarização com centralidade na cidade, compreendo-a como o maior palco dos
conflitos no nosso século, sem, todavia, limitar a reflexão às suas fronteiras, nem
sob a perspectiva fisica, nem tampouco ao desenho das relações sociais que se
constituem apenas nesse espaço.

Nesse sentido, a favela é apresentada no trabalho como o espaço mais


impactado pelas Políticas Públicas desastrosas na área da Segurança Pública e
consequentemente mais afetado pela militarização da questão urbana. No Rio de
Janeiro vivemos o genocídio da população negra e favelada e essa afirmação
comprovada por relatos estatísticos ao longo do trabalho deve ser um aspecto
também do estudo urbano.

Os ciclos econômicos do Rio de Janeiro serviram como o pano de fundo


dentro do contexto da intensa militarização da cidade. As políticas neoliberais foram
as opções adotadas pelos governos (que mais atuaram como gestores da iniciativa
privada) para a solução de problemas da população mais pobre, por isso gostaria de
ter aprofundado melhor algumas reflexões acerca da urbanização militar na
perspectiva da nova etapa do capitalismo, utilizado mais a contribuição do geógrafo
David Harvey (1996) relacionando-a com a tese da “economia vigilante” de Graham
(2016).

Mesmo com uma tentativa de imposição global de uma racionalidade única


existe também a resposta dos lugares com a sua própria racionalidade (SANTOS
2017), essa relação dialética conduziu o trabalho, confrontando a pressão
internacional do Consenso de Washington ao desmantelo das garantias sociais,
expondo a tese do “bumerangue de Foucault” em contraposição com posição
geopolítica brasileira, e, apontando o crescimento do fenômeno da extrema direita
no mundo e o desdobramento da necropolítica nas favelas do Rio de Janeiro.
108

Ainda que a contenção social militarizada seja um dispositivo bastante


acionado na construção oligárquica e escravocrata brasileira, o trabalho buscou
trazer a perspectiva do aperfeiçoamento desse instrumento dentro do contexto
recente, portanto, avaliei ser importante destacar a discussão palpitante no
município do Rio de Janeiro que é o armamento da GCM, relacionando essa
possibilidade ao atual contexto de avanço da milicialização da cidade, partindo do
acumulo nos capítulos anteriores de que a aprovação de mecanismos legais que
aumentem o número de circulação de armas e munições, mesmo quando na mão de
agentes do Estado, são entraves para a satisfação da democracia.

Creio ser de suma importância avançarmos na produção de pesquisas e


reflexões acerca da etapa de militarização da nossa cidade e da milícia enquanto um
produto inacabado desse processo. Quais serão as novas formas de organização
dos grupos milicianos? Como o desenvolvimento desses grupos se adaptou ao
processo de urbanização militarizada? Dentro do contexto do sul global o que nos
aproxima e o que nos distancia de outros países no contexto do novo urbanismo
militar? Há muito o que se avançar, em especial em tempos de rechaço a ciência e a
produção de conhecimento.
109

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