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EXPERIMENTO

COM
PARTÍCULAS
“PRIMAS” DOS
ELÉTRONS
PODE MUDAR
RUMOS DA
FÍSICA

A CIÊNCIA AJUDA VOCÊ A MUDAR O MUNDO ED. 380 NOVEMBRO DE 2023

GUERRA
FRACASSADA
TRATAR O USO DE DROGAS COMO CASO DE POLÍCIA É
COMPROVADAMENTE INEFICAZ, CARO E PERIGOSO PARA A
POPULAÇÃO — SOBRETUDO PESSOAS NEGRAS E PERIFÉRICAS.
ENTENDA O QUE PODE (E PRECISA) MUDAR NO BRASIL
COMPOSIÇÃO
NOVEMBRO DE 2023

03
CAPA

POR QUE O BRASIL AINDA


ESBARRA EM RETROCESSOS
NO COMBATE ÀS DROGAS?

“Evidenciar a tragédia seria melhor do


que o que ambientalistas vêm fazendo”
23 Entrevista com Timothy Morton

39
CIÊNCIA

INDÍCIO DE NOVA FORÇA


DA NATUREZA INTRIGA QUER QUE EU
49
CIENTISTAS MUNDO AFORA DESENHE?

ERRATA: Na reportagem Contagem regressiva para viver, publicada na edição 379, constava que o médico Ronaldo Honorato, do Núcleo de Transplantes
do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, é cirurgião vascular; na verdade, ele é cirurgião cardiovascular.
SOCIEDADE
TEXTO Marília Marasciulo EDIÇÃO Luiza Monteiro ILUSTRAÇÃO Raul Aguiar DESIGN Flavia Hashimoto

UMA GUERRA
FRACASSADA
LANÇADA HÁ MEIO SÉCULO, CAMPANHA GLOBAL CONTRA AS DROGAS
CARREGA INJUSTIÇAS HISTÓRICAS, ALÉM DE CONSEQUÊNCIAS
ECONÔMICAS E SOCIAIS. DIANTE DA POSSIBILIDADE DE DEBATER
MUDANÇAS, BRASIL AINDA ESBARRA EM RETROCESSOS
R
Rio de Janeiro, 18 de outubro de 2023. Enquanto
a atenção mundial se voltava para o bombardeio
do Hospital Batista Al-Ahli, na Faixa de Gaza, o
Complexo da Maré, na Zona Norte da capital flu-
minense, passava pelo sexto dia de operações
policiais. Até então, uma pessoa havia morrido,
17 mil estudantes estavam sem aulas e mais de
3 mil atendimentos médicos haviam sido sus-
pensos. As estimativas são da organização co-
munitária Redes da Maré, que busca efetivar os
direitos dos mais de 140 mil moradores das 16
favelas do complexo — e mostram um pequeno
recorte dos efeitos de um conflito que perdura
há quase meio século: a guerra às drogas.

“Essa semana eu fiquei muito indignado, por-


que vi o quanto as pessoas estão comovidas
com uma guerra que está acontecendo em ou-
tro país, e ignoram uma que está acontecendo
aqui no país delas”, desabafou o ator Raphael
Vicente, que cresceu na Maré, em seu perfil no
Instagram no dia 19. “Isso não é uma coisa que
começou semana passada, não. Todo mês você
vê notícias de crianças que foram mortas em
favelas por operações policiais”, continuou, em
um vídeo que tem 6,4 milhões de visualizações.
“‘Ah, Rapha, mas tem que ter operação policial
5

para limpar o tráfico [de drogas].’ Se operação policial limpasse o


tráfico mesmo, a Maré ia ser o lugar mais seguro do mundo para
se viver”, conclui Vicente.

Os custos de encarar o combate às drogas como caso de polícia


são altos — e oneram toda a população brasileira. Segundo cál-
culos do economista Daniel Ricardo de Castro Cerqueira, especia-
lista em segurança pública e coordenador do Atlas da Violência,
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os homicídios
relacionados ao proibicionismo das drogas levam a uma redução
de 4,2 meses na expectativa de vida ao nascer dos brasileiros. Isso
corresponde a 1,1 milhão de anos potenciais de vida perdidos. Em
um artigo publicado pelo Ipea recentemente, Cerqueira aponta
também que o custo de bem-estar econômico corresponde a cer-
ca de R$ 50,9 bilhões anuais, ou 0,77% do Produto Interno Bruto
(PIB). E isso sem considerar os gastos diretos com repressão, per-
secução e execução criminal relacionadas às drogas.

Na prática, é como se cada brasileiro pagasse anualmente um im-


posto de R$ 269,50 para sustentar essa política de repressão. “O
proibicionismo e, em particular, a guerra às drogas são a forma
mais eficiente de desperdiçar recursos públicos e sociais. De fato,
a estratégia de reduzir a oferta de drogas pelo caminho da repres-
são já nasce fadada ao fracasso”, escreve Cerqueira em Custo de
Bem-Estar Social dos Homicídios Relacionados ao Proibicionismo
das Drogas no Brasil. “Já passa do momento de a sociedade, policy
makers e academia deixarem de lado as visões preconcebidas e
6

tabus e passarem a debater seriamente alternativas ao problema


das drogas.” Ele dá como exemplo os Estados Unidos, onde a vio-
lência tem sido substituída por ações mais inteligentes de nature-
za educacional, além de políticas de redução de danos e regulação
e legalização dos mercados. Uma realidade bem distante da nossa.

UM PESO, DUAS MEDIDAS


No Brasil, tais discussões ainda enfrentam resistência. Em agosto,
o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do Recur-
so Extraordinário (RE) 635659, que tem como objetivo determi-
nar se o Artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que proíbe
o porte para uso pessoal, é constitucional. Na discussão, a corte
também busca estabelecer critérios objetivos para definir o que
configura uso pessoal. Atualmente, a lei não faz distinção entre
drogas proibidas, mas determina que não há pena de prisão para
quem semear, cultivar ou colher “plantas destinadas à preparação
de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar
dependência física ou psíquica.” Entretanto, a norma aponta que
para definir se a droga se destinava a consumo pessoal, devem
ser avaliados itens como a natureza e a quantidade da substância
apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a apre-
ensão ou o flagrante, além das “circunstâncias sociais e pessoais”,
a conduta e os antecedentes de quem portava a droga.

Só que, na realidade, não é bem assim. “É possível constatar que


os jovens, em especial os negros (pretos e pardos), analfabetos,
são considerados traficantes com quantidades bem menores de
7

drogas (maconha ou cocaína) do que os maiores de 30 anos, bran-


cos e portadores de curso superior”, disse o ministro Alexandre de
Moraes em seu voto a favor da descriminalização especificamente
do porte de maconha para uso pessoal. Ele sugeriu estabelecer o
limite de porte em uma faixa entre 25 e 60 gramas de maconha
ou seis plantas fêmeas para diferenciar usuários de traficantes.
Por enquanto, o placar na votação é de 5 a 1 para considerar que
o porte de maconha para uso pessoal não é crime; e de 6 a 0 para
definir um limite que diferencie usuário de traficante com base na
quantidade de droga encontrada. A votação foi interrompida a pe-
dido do ministro André Mendonça, que agora tem 90 dias para
devolver o tema à pauta.

O problema é que isso vem gerando rebuliço em diversos setores —


a ponto de, no dia 14 de setembro, o presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), apresentar uma proposta de emenda à Consti-
tuição (PEC) para criminalizar o porte e a posse de substância ilícita

“TUDO QUE ENVOLVIA A POPULAÇÃO NEGRA


ERA CONSIDERADO ATRASO. SE HOUVE
CRIMINALIZAÇÃO DA CULTURA, QUE DIRÁ DE
UMA SUBSTÂNCIA USADA POR ESSE POVO?”
Guilherme Borges da Silva, sociólogo e pesquisador da UFG
8

em qualquer quantidade. Tudo porque parte da sociedade parece


não ter entendido que o STF não está legislando sobre a legalização
de drogas, e sim avaliando se a lei de 2006 se adequa à Constitui-
ção de 1988. Estabelecer que o porte de maconha não é crime não
significa que a substância passará a ser comercializada livremente.

“A legislação de 2006 tentou adequar a lei antidrogas da época da


ditadura a conceitos mais próximos aos princípios constitucionais,
reconhecendo a dignidade humana e das pessoas que usam dro-
gas”, explica o advogado Gabriel Sampaio, coordenador de Litígio
Estratégico e do Programa de Enfrentamento à Violência Institu-
cional da ONG Conectas Direitos Humanos. “A questão é que ela
trouxe consigo problemas sérios, especialmente em relação à apli-
cação de penas.” Isso porque, se por um lado a lei reconhece que
usuários não estão sujeitos a uma pena privativa de liberdade, por
outro manteve as pessoas dentro do sistema penal. “Isso gerou
uma sobrecarga, que hoje é a principal causa da superlotação do
sistema penitenciário”, observa Sampaio.

ERROS TÁTICOS
A política de guerra às drogas carrega consigo injustiças históri-
cas. Encampada pelo Ocidente principalmente a partir dos anos
1970 — quando o então presidente dos Estados Unidos, Richard
Nixon, elegeu as drogas como “inimigo público número um” —, a
proibição de substâncias psicoativas tem pelo menos dois séculos.
“Durante milênios, drogas foram usadas e raramente vistas como
ameaça à sociedade”, pontua o sociólogo e antropólogo Edward
9
10

MacRae, que pesquisa sobre políticas de drogas MARCOS DO


desde os anos 1980 e atualmente é pesquisa- PROIBICIONISMO
Substâncias
dor associado do Centro de Estudos e Terapia psicoativas são
do Abuso de Drogas da Universidade Federal da usadas há milênios
pela humanidade —
Bahia (UFBA). A partir do século 19, porém, com até que, há cerca de
a formação de novos Estados, criou-se meca- 200 anos, começaram
a ser criminalizadas
nismos para controlar determinados comporta-
mentos ou culturas tidos como indesejados, fo-
LEI CONTRA A
cando nas substâncias mais utilizadas por esses MACONHA NO
grupos marginalizados. BRASIL (1830)
O Brasil foi o primeiro
país a ter uma lei
proibindo o uso de
O Brasil foi pioneiro. Em 1830, o Rio de Janei- maconha. O texto foi
ro estabeleceu a primeira lei mundial proibindo aprovado em 4 de
outubro de 1830 pela
o uso de maconha, apelidada de “pito de pan- Câmara Municipal do
Rio de Janeiro, que
go”. A planta chegou ao país por meio de afri- passou a penalizar o
canos escravizados, que as utilizavam em ritu- “pito de pango”, uma
designação para a
ais e celebrações culturais, e portugueses, que maconha utilizada, com
multas e prisão para os
viam potencial econômico na cannabis. Mas foi infratores.
proibida com a finalidade de suprimir especi-
ficamente a cultura africana. “Tudo que envol- GUERRAS DO
ÓPIO (1839-1860)
via a população negra era considerado atraso. As duas Guerras do
Ópio (1839-1842 e
Se pensar que houve criminalização da cultura, 1856-1860) entre
como o samba, a capoeira e as religiões, que China e Grã-Bretanha
desempenharam um
dirá de uma substância usada por esse povo?”, papel significativo
observa o sociólogo Guilherme Borges da Silva, na moldagem das
políticas globais de
pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Cri- controle de drogas.
Os conflitos levaram à
minalidade e Violência (NECRIVI) e do Núcleo atenção internacional
11

de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos os danos causados


pela livre circulação
(NEIP), ambos vinculados à Universidade Fede- de drogas. Uma das
consequências foi a
ral de Goiás (UFG). Convenção Internacional
sobre o Ópio, adotada
pela Liga das Nações
Algo similar ocorreu no exterior, sobretudo nos em 1912, que incentivou
EUA. O preconceito contra irlandeses e judeus, os Estados signatários
a considerarem a
imigrantes rotulados como grandes usuários de criminalização da posse
de ópio, morfina, cocaína
álcool, pode ser relacionado aos 13 anos de Lei e seus derivados.
Seca no país, entre 1920 e 1933; já a disputa en-
tre Inglaterra e Estados Unidos por influência no LEI HARRISON
NOS EUA (1914)
Oriente, no início do século 20, serviu como pano A Lei Harrison
sobre Narcóticos,
de fundo para a proibição do ópio; e a persegui- aprovada nos EUA,
ção nos anos 1960 contra o movimento hippie foi uma das primeiras
legislações federais
antiguerra e a população negra, associados a para regulamentar e
criminalizar o comércio
maconha e heroína, respectivamente, foi o mo- de drogas, focando em
tor para a guerra às drogas. opiáceos e cocaína. A lei
estabeleceu impostos
exorbitantes para a
Quem reconheceu isso foi o ex-conselheiro para distribuição de tais
substâncias, com foco na
Assuntos Internos de Nixon, John Daniel Ehr- evasão fiscal.
lichman. Em 2016, o jornalista Dan Baum afir-
CRIMINALIZAÇÃO
mou em uma reportagem da Harper’s Magazine DAS DROGAS NO
que, em 1994, Ehrlichman teria explicado para BRASIL (1932)
A criminalização
ele “um dos grandes mistérios da história mo- das drogas por
aqui teve início no
derna americana”: como os EUA se envolveram Governo Provisório
em uma política que trouxe tanta tragédia e tão de Getúlio Vargas,
com a Consolidação
poucos resultados positivos. “A campanha Nixon das Leis Penais de
1932, que substituiu
em 1968, e depois a administração Nixon na Casa “substâncias venenosas”
12

Branca, tinham dois inimigos: a esquerda anti- por “substâncias


entorpecentes” no
guerra e a população negra”, disse Ehrlichman Código Penal de 1890 e
introduziu penalidades,
na época. “Compreende? Sabíamos que não po- incluindo prisão, para
díamos ilegalizar os que eram contra a guerra ou quem fornecesse
substâncias ilícitas.
os negros, mas ao associarmos os hippies com a Depois, em 1938, já no
marijuana e os negros com a heroína, crimina- Estado Novo, houve
um endurecimento na
lizando-os duramente em seguida, poderíamos repressão, tornando
obrigatória a internação
desfazer essas comunidades. Podíamos prender de “toxicômanos”.
seus líderes, fazer buscas às suas casas, inter-
romper suas reuniões e difamá-los todas as noi- CONVENÇÃO
ÚNICA SOBRE
tes nos noticiários. Se sabíamos que estávamos ENTORPECENTES
(1961)
mentindo sobre as drogas? Claro que sabíamos.” Assinado por 186
países em Nova York,
esse foi um tratado
O principal argumento usado para convencer a internacional que impôs
a criminalização das
população de que as drogas deveriam ser com- drogas em escala global,
batidas foi o de que as substâncias psicoativas com uma lista de 18
condutas proibidas,
tornariam as pessoas mais propensas a cometer antecipando a tendência
crimes. “A ideia era a seguinte: drogas psicoati- de tipificação de crimes
que se espalharia pelo
vas são um mal para a sociedade, precisamos mundo nas décadas
seguintes.
combater esse mal afetando a oferta, tornando
ilícito quem consome e trafica, e usando recur- GUERRA ÀS
sos coercitivos para controle”, analisa Daniel Cer- DROGAS DE NIXON
(ANOS 1970)
queira, do Ipea, em entrevista a GALILEU. “Mas Em 17 de junho de 1971,
o então presidente
vamos imaginar que uma polícia muito bem dos EUA declarou à
equipada consiga de fato diminuir a oferta de imprensa que o uso
de drogas ilegais era o
drogas. Se isso acontecer, qual a consequência? “inimigo número um do
país”. Estava declarada
Como o lado da demanda é inelástico [mesmo formalmente a Guerra
13

que o preço aumente, pessoas ainda estarão às Drogas, que resultou


na criação de um órgão
dispostas a pagar pelo produto], isso geraria federal de repressão
(DEA), marcando um
uma pequena redução na quantidade, mas um aumento significativo
grande aumento no preço. E essa receita seria na aplicação das leis de
drogas.
usada em quê? Corrupção policial e compra de
armas, porque esse é um mercado em que de- POLÍTICA DE
TOLERÂNCIA
savenças não são resolvidas nos mecanismos NOS PAÍSES BAIXOS
legais, e sim na violência”, avalia o economista. (ANOS 1970):
Ao mesmo tempo,
os Países Baixos,
O efeito acabou sendo exatamente o oposto do na Europa, viviam a
experiência de ter
imaginado inicialmente: o proibicionismo levou adotado uma política
de tolerância —
ao aumento da violência sistêmica relacionada tornada oficial em
às drogas. Além disso, criou um mercado ainda 1976. Primeiramente,
passou-se a permitir
mais atrativo para “empreendedores da contra- a posse e a venda de
pequenas quantidades
venção”, derrubando também a tese de que bar- de maconha em locais
rar o acesso às drogas seria uma forma de mini- designados — os “coffee
shops” —, visando a
mizar prejuízos para a saúde ao reduzir o risco separação entre o
de mais pessoas viciarem. “Nos EUA, não apenas mercado de drogas
leves e pesadas.
não conseguiram ter sucesso, como podem ter A partir disso, as
diretrizes do governo
gerado incentivo para a criação de novos produ- foram se expandindo
tos alternativos [às drogas tradicionais]”, opina nas décadas seguintes
para regularizar
Cerqueira, que cita a atual epidemia de fentanil mais detalhadamente
como uma das possíveis consequências. quantidades de
consumo, locais
de venda e até
mesmo incluir
O opioide sintético é 100 vezes mais potente níveis de tolerância
que a morfina e 50 vezes mais que a heroína, a outras drogas.

ambas derivadas do ópio, substância extraída


14

da papoula, e que vem provocando a morte de CONVENÇÃO DAS


NAÇÕES UNIDAS
milhares de pessoas nos Estados Unidos. No (1988)
Brasil, a chegada de canabinoides sintéticos, as No final dos anos
1980, a ONU adotou a
chamadas drogas K, tem preocupado: com po- Convenção das Nações
Unidas contra o Tráfico
tência 100 vezes maior do que a maconha co- Ilícito de Entorpecentes
mum, até abril deste ano a Secretaria Municipal e Substâncias
Psicotrópicas,
de Saúde de São Paulo havia registrado 216 in- buscando estabelecer
toxicações pelo canabinoide feito em laborató- uma abordagem
global coordenada ao
rio — mais que o dobro que as 98 registradas controle de drogas.
Também chamado de
em todo o ano de 2022. Convenção de Viena,
o acordo representa
a formalização do
Outro argumento utilizado pelo governo esta- auge das tendências
dunidense para proibir substâncias psicoativas repressivas globais,
marcadas pela escalada
era de que essa seria uma forma de limitar o de operações policiais
e militares contra os
acesso às drogas e, com isso, reduzir riscos para cartéis internacionais.
a saúde. O que até faz algum sentido. “Um dos
LEI DE DROGAS
maiores e melhor documentados riscos para NO BRASIL (2006)
dependência é simplesmente o acesso. Isso sig- A lei 11.343/2006
manteve a
nifica que a intenção de criar barreiras através criminalização da
da guerra às drogas tinha base científica”, reco- posse de drogas
para uso pessoal,
nhece a psiquiatra Anna Lembke, professora da mas substituiu penas
de prisão por
Universidade Stanford, nos EUA, e especialista advertências, serviços
em adicção. “O problema é quando você com- à comunidade e multas.
É justamente o artigo
bina esse esforço com o racismo sistêmico. E aí 28 desse texto, que
criminaliza o porte
deixa de haver diferenciação entre quem está de substâncias,
traficando e pessoas que estão de fato bata- que está para ser
revisto pelo STF.
lhando contra uma dependência, e precisam de
15

ajuda”, pondera a autora dos livros Nação do- LEGALIZAÇÃO


DA MACONHA NO
pamina (2022) e Nação tarja preta (2023), am- URUGUAI (2014)
bos publicados no Brasil pela editora Vestígio. Em 2014, o Uruguai
se tornou o primeiro
país do mundo a
legalizar a produção,
O médico e doutor em Saúde Pública Francisco distribuição e o consumo
Inácio Pinkusfeld Monteiro Bastos, que pesqui- de maconha. Até
então, os países mais
sa epidemiologia e prevenção do abuso de dro- liberais em relação ao
gas e do HIV/AIDS na Fundação Oswaldo Cruz assunto, como os Países
Baixos, optavam por
(Fiocruz), discorda. “Essa ideia de que a saúde políticas de tolerância
e descriminalização. Já
pode determinar a agenda é ingênua. Não é que a legislação uruguaia
não existam subsídios científicos [para apontar permitiu a compra em
farmácias, associação
o risco das substâncias], mas eles não são leva- a clubes de cannabis
dos em conta”, avalia. Bastos cita a escala elabo- e cultivo pessoal,
estabelecendo restrições
rada pelo neuropsicofarmacologista inglês Da- quantitativas.
vid Nutt, publicada no periódico The Lancet em
RESOLUÇÃO
2007. Na época diretor do conselho responsá- DA ANVISA (2022)
Em maio do ano
vel por acompanhar e aconselhar o governo bri- passado, entrou em
tânico sobre questões relacionadas às drogas, vigor no Brasil a
Resolução da Diretoria
Nutt ranqueou 20 substâncias de acordo com Colegiada (RDC) 660/22,
16 parâmetros de prejuízos para os usuários e que define os critérios
e procedimentos para
a sociedade. Os critérios envolviam, por exem- pacientes que, mediante
prescrição médica,
plo, potencial de dependência, malefícios para a precisam de produtos
saúde física e mental, crime e custos para a eco- importados derivados
da cannabis. A norma
nomia. A substância considerada mais perigosa também estabelece
regras de segurança
foi o álcool — à frente da heroína, do crack, da e qualidade para
metanfetamina e da cocaína. Dois anos depois, empresas e laboratórios
que importam e vendem
Nutt foi afastado do cargo. itens à base de maconha.
16

“A GUERRA ÀS DROGAS É UMA ÓTIMA


JUSTIFICATIVA PARA IMPOR UMA PRESENÇA
REPRESSORA QUE NÃO FUNCIONA PARA
REPRIMIR A PRODUÇÃO DE DROGAS”
Edward MacRae, antropólogo e pesquisador da UFBA

Corta para 2023: em janeiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS)


publicou uma nota no The Lancet Public Health declarando que não
há quantidade segura para o consumo de álcool. A bebida, porém, é
amplamente comercializada nos países ocidentais, e tem um limite
de idade como principal — senão única — barreira para acesso. “A
lógica da criminalização é pautada por elementos que estão muito
distantes do que, cientificamente, poderíamos considerar como fa-
tores que comprovariam a legitimidade da manutenção desse tipo
de legislação”, pontua o advogado da ONG Conectas.

PLANO DE ATAQUE
Se hoje a ciência e até mesmo os formuladores da política de
guerra às drogas reconhecem que ela já nasceu fadada ao fracas-
so, por que seguimos investindo e apostando nisso? “Porque para
algumas pessoas, ela deu certo”, responde Guilherme Silva. Entre
elas, segundo o sociólogo da UFG, indivíduos envolvidos com o
17

narcotráfico e grupos políticos que se beneficiam do discurso mo-


ral e penalista. “A guerra às drogas é uma ótima justificativa para
impor uma presença repressora que não funciona para reprimir
a produção de drogas, mas funciona para manter cada classe em
seu lugar”, opina o antropólogo Edward MacRae, da UFBA.

Na visão da advogada e empresária Patrícia Villela Marino, presi-


dente do Instituto Humanitas360 e ativista da cannabis medicinal,
a sociedade brasileira ainda tem uma grande dificuldade moral e
ideológica de tratar da questão. Ela considera também que falta
vontade política para levar a pauta em frente — e sobram ações
deliberadas para gerar desentendimentos e descredibilizar as ins-
tituições democráticas necessárias para tratar da questão. “[O fim
da guerra às drogas seria possível] se nosso Congresso hoje tivesse
disposição de olhar dados científicos e tivesse uma certa humilda-
de de entender que aquilo que era sabido há dez anos, hoje já não é
mais; ou que existem novas tecnologias, novas possibilidades”, con-
clui. Em maio, Marino tomou posse como um dos 246 membros do
Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e Sustentável da
Presidência da República, conhecido como Conselhão, onde deve
participar de um grupo de trabalho especificamente voltado para a
política de drogas, a ser instalado até o final do ano.

Mas a verdade é que o debate deveria ir além de apenas descrimi-


nalizar ou legalizar as drogas — especialmente considerando que
a legalização tende a levar ao aumento do uso das substâncias. De
acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas de 2023 da ONU,
18

cerca de 296 milhões de pessoas usaram drogas em 2021, 23% a


mais do que dez anos antes. Na Califórnia, estado dos EUA que
regulamentou o mercado de maconha medicinal em 2015 e liberou
o uso recreativo em 2018, a fatia da população maior de 12 anos
que utiliza cannabis passou de 15,3% em 2014 para 20,1% em 2019,
segundo relatório da instituição filantrópica Fundação de Saúde
Pública da Califórnia (CHCF).

Daí porque a revisão da atual política de guerra às drogas deve-


ria envolver uma agenda multidisciplinar que passaria, necessaria-
mente, por educação e saúde, a fim de suprimir a demanda e re-
duzir possíveis danos. “É pensar em garantia de direitos. Garantia
de acesso a moradia, saúde, educação de qualidade, trabalho que
não seja precarizado e garantir informação às pessoas”, aponta a
escritora Juliana Borges, coordenadora de advocacy da Iniciativa
Negra, organização da sociedade civil que atua por direitos huma-
nos e reformas na política sobre drogas. “Proibicionismo mata não
só por dinâmica bélica, mas também porque as pessoas não sabem
o que estão usando. Ao saber o que estão consumindo, elas teriam
mais autonomia inclusive para pensar nos cuidados que precisam
ter”, conclui Borges, que em outubro tomou posse como conselheira
suplente no Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad).

Para Francisco Bastos, da Fiocruz, o país atualmente não age nem


na prevenção primária, que seria intervir na demanda natural pe-
las substâncias, nem na secundária, lidar com as consequências do
abuso e da dependência. “Quantas campanhas de mídia realmente
19

esclarecem a população [sobre os riscos das drogas] e dialogam


com crianças e adolescentes?”, indaga. Além disso, profissionais de
saúde em geral não sabem tratar pacientes que fizeram uso de
substâncias, e os pacientes, por sua vez, não querem ver o pro-
fissional porque acham que vão ser denunciados à polícia. “E, se
vencer todas as barreiras, quando chega ao atendimento, não tem
um protocolo”, afirma o médico.

COMBATER COM
INFORMAÇÃO
Um dos exemplos mais evidentes de modelo bem-sucedido de
prevenção não proibicionista é o controle do tabagismo — do qual
o Brasil é exemplo mundial. O país foi o segundo do mundo, de-
pois da Turquia, a atingir o nível mais alto na metodologia da OMS
de prevenção ao cigarro. Desde 1990, profissionais da saúde são
capacitados para oferecer tratamento pelo SUS já na atenção pri-
mária. Além disso, legislações passaram a exigir que as empresas
de cigarro exibam mensagens de conscientização nas embalagens;
proibiram o ato de fumar em locais fechados e restringiram a pu-
blicidade e o patrocínio a eventos.

Hoje, 9,3% dos brasileiros afirmam ter o hábito de fumar, segundo


levantamento de 2023 do Sistema de Vigilância de Fatores de Ris-
co e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vi-
gitel). Em 2006, ano da primeira edição da pesquisa, esse percen-
tual era de 15,7%. “Essa foi uma política antidrogas que deu muito
certo, mas foi por apostar na redução de demanda. Tem a ver com
20

o sucesso de, em vez de combater drogas com armas, combater


com educação e informação, e entender que, mesmo assim, algu-
mas pessoas vão querer se drogar”, reforça o economista do Ipea.

Globalmente, Portugal vem se destacando na política antidrogas


justamente por substituir a lógica da punição e repressão por
medidas educativas e redução de danos. Em 2001, o país descri-
minalizou a posse de drogas para uso pessoal. A estratégia pas-
sou por uma definição do judiciário a respeito de quantidades.
21

Segundo a lei portuguesa, o crime de tráfico de drogas ocorre


quando a pessoa extrapola o necessário para o consumo médio
individual durante 10 dias. O que o supremo tribunal do país fez
então foi definir essas medidas: 15 gramas de cocaína ou heroína
e 20 gramas de maconha. Em vez de ser preso, o usuário pego
com drogas pode entrar voluntariamente num programa de tra-
tamento de dependência. Caso não aceite, ganha uma multa defi-
nida por organizações sociais para dependentes químicos, como
o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas
Dependências (SICAD).

O resultado da política é considerado um sucesso e, desde 2001, ne-


nhum governo – de direita ou esquerda – tentou mudar a lei. Dados
da ONG Agência Piaget referentes a 2019 endossam a percepção: o

“PROIBICIONISMO MATA NÃO SÓ POR


DINÂMICA BÉLICA, MAS TAMBÉM PORQUE
AS PESSOAS NÃO SABEM O QUE ESTÃO
USANDO. AO SABER O QUE
ESTÃO CONSUMINDO, ELAS TERIAM
MAIS AUTONOMIA”
Juliana Borges, coordenadora de advocacy da Iniciativa Negra
22

consumo geral de drogas não caiu no país, mas o de heroína e coca-


ína baixou de 1% para 0,3% da população. A contaminação por HIV
entre usuários caiu pela metade, e a população carcerária por moti-
vos relacionados às drogas foi de 75% para 45%. “Portugal atacou a
questão com intervenções legais e de saúde em todos os estágios.
Então, se uma pessoa está constantemente cometendo crimes ou
não consegue funcionar direito, o sistema português não simples-
mente a abandona”, destaca a psiquiatra Lembke.

Na opinião da coordenadora de advocacy da Iniciativa Negra, é


possível construir agenda de acolhimento e promoção de direitos
no Brasil, mesmo sem necessariamente mudar a legislação. “A lei
carece de algumas regulamentações, o que abre a possibilidade
para uma interpretação que privilegie o cuidado. O que vimos é
que houve escolhas e opções políticas pela linha da repressão”,
afirma Borges. Para ela, aliás, a própria retomada do Conad, esva-
ziado durante o governo de Jair Bolsonaro, representa um avanço
positivo para o debate.

Ainda assim, não existe fórmula mágica — nem modelo que possa
ser replicado sem levar em consideração os aspectos sociais de
cada país. Por enquanto, o Brasil parece estar longe de chegar a
um consenso. Um fato, porém, é certo: “os países que não endere-
çaram esse problema sucumbiram”, resume Patrícia Marino. E ne-
nhum deles venceu essa guerra na base de tiro, porrada e bomba.
23

ENTREVISTA

“Evidenciar
a tragédia
seria melhor
do que o que
ambientalistas
vêm fazendo”

COM Timothy Morton POR Marília Marasciulo


Com livro recém-lançado no Brasil,
filósofe defende que discurso
ambientalista tradicional paralisa as
pessoas e prejudica a causa

T
Timothy Morton tem uma missão: falar sobre
ecologia para pessoas que não estão nem aí para
ecologia. Apesar de seu pai ter sido ativista do
Greenpeace, Morton critica o ambientalismo tradicional e
busca referências na filosofia e nas artes para elaborar uma
nova maneira de enfrentar a catástrofe ambiental. “Meu
pai costumava parar navios baleeiros com um barco quan-
do estava no Greenpeace. É algo que tinha uma dimensão
de liberdade simbólica. Ele tinha que fazer isso de novo na
semana seguinte, e de novo, e de novo, até que as pessoas
notassem”, lembra.

Natural de Londres, na Inglaterra, Morton se identifica


como pessoa não binária. Em setembro, lançou no Brasil
Ser Ecológico, pela Quina Editora, livro que pretende cha-
mar atenção para a crise climática sem despejar uma en-
xurrada de dados em quem está lendo. “Todos usamos pe-
tróleo, por isso todos somos cúmplices. Então precisamos
de um motivo para não nos sentirmos péssimos quando
25

acordamos de manhã”, reconhece Morton. “Um ambienta-


lista que nos faz sentir assim está basicamente permitin-
do às empresas petrolíferas continuarem fazendo o que
fazem. Porque estamos fazendo todos se sentirem parali-
sados, estúpidos e maus.”

No topo da lista de pessoas que precisam compreender que


estão profundamente conectadas com o mundo e são, na
realidade, ecológicas, estão os cidadãos estadunidenses. Na
visão de Morton, que leciona literatura inglesa na Univer-
sidade Rice, nos Estados Unidos, sem o apoio do país, as
outras potências globais — China, Índia e Rússia — perma-
necerão inertes diante da crise. “Sou aquela pessoa que se
voluntaria deliberadamente, ou por acidente, para dizer o
que outras não querem falar”, observa. “E o primeiro passo
para fazer as pessoas mudarem de ideia é concordar com
o estado de espírito delas, e não as excluir. Alguém precisa
adotar uma atitude diferente.”

A seguir, Morton fala de sua visão sobre o ambientalismo


atual, o papel da arte no enfrentamento da crise climática
e a urgência de mudar o discurso para de fato fazer as pes-
soas se preocuparem com o que, em sua visão, é o maior
problema em escala planetária.
26

O PRIMEIRO PONTO QUE VOCÊ TRAZ EM SER ECOLÓGICO É DE


QUE SE TRATA DE UM LIVRO PARA PESSOAS QUE NÃO ESTÃO IN-
TERESSADAS EM ECOLOGIA, AO MESMO TEMPO EM QUE CRITICA
OS LIVROS DE ECOLOGIA QUE PARECEM FEITOS PARA NOS FAZER
TIMOTHY
SENTIR MAL. O QUE HÁ DE ERRADO COM O MOVIMENTO AMBIEN-
MORTON
TALISTA TRADICIONAL NOS DIAS DE HOJE? Leciona na
Universidade
Rice, nos EUA.
Sinto que recebo para dizer coisas ruins que nin- Está entre os
guém mais quer dizer. Basicamente, muitas pesso- expoentes da
filosofia orientada
as não percebem que, mesmo quando não estão aos objetos,
falando sobre religião, ainda estão falando sobre movimento
religião. Cientistas aparecem na TV e ficam brigan- que defende
que todos os
do com as pessoas para substituir as crenças de- objetos, naturais
las por crenças científicas, mas eles não percebem ou artificiais,
são dotados de
que, para a maioria, é uma competição religiosa. agência. Atua
Elas não querem substituir suas crenças. E os cien- também com
tistas não só não entendem isso, como acham que teoria da ecologia,
e seu trabalho
a solução é gritar mais. Um dos problemas com explora a relação
essa atitude “religiosa” é que você acaba culpando entre a filosofia
orientada aos
o mundo, e não a si mesmo, pelas coisas ruins.
objetos e a crise
ecológica.
Muitos livros sobre ambientalismo apenas repetem
ciência, tecnologia e política social, dizendo que te-
mos de fazer algo porque algo está para acontecer.
E sabemos o que fazer: parar de queimar combus-
tíveis fósseis. Mas não estamos fazendo isso. Por
quê? Porque não sabemos direito por que fazê-lo.
27

Acreditamos que se pessoas como eu, ambienta-


listas, disserem o que fazer, assim será. Errado!
Você tem que dar às pessoas um motivo para se
importar, um sentimento. Martin Luther King [Jr.]
disse “eu tenho um sonho.” Ele nunca disse “você
é estúpido e mau.” O que ele disse foi que o futuro
pode ser diferente do passado. Ou seja, ele deu um
motivo para as pessoas serem antirracistas. Mes-
mo sabendo que elas se sentiam cúmplices, pode-
riam fazer algo para mudar.

É a mesma coisa com o problema ambiental. Todos


usamos petróleo, por isso todos somos cúmplices.
Então precisamos de um motivo para não nos sen-
tirmos péssimos quando acordamos de manhã.
Portanto, um ambientalista que nos faz sentir assim
está basicamente permitindo às empresas petro-
líferas continuarem fazendo o que fazem. Porque
estamos fazendo todos se sentirem paralisados,
estúpidos e maus. É como dizer às crianças vítimas
de abuso que elas são o problema. Só que nós é
que estamos sendo abusados. Estamos sendo abu-
sados fisicamente pelas empresas petrolíferas.
28

ENTÃO VOCÊ SE INCLUI NESSE TIPO DE DISCURSO AMBIENTALISTA?

Sim, porque alguém precisa assumir a responsabili-


dade de servir como modelo. E não estou sozinho —
espero. Mas como só posso culpar a mim pelo que
vejo no mundo, vou me culpar. Por exemplo, como
pai, se vejo que meu filho está com um problema,
o problema é meu. Eu estraguei tudo. E ninguém
está conseguindo fazer com que pessoas suficien-
tes acreditem em trabalhar contra o aquecimento
global. E esse problema é meu, porque falo sobre
ele todos os dias.

Por isso escrevi esse livro para pessoas que não


querem ler coisas de ambientalistas. Escrevi para
pessoas que acham que o futuro vai ser terrível. E
pensei: por que não concordar com elas que será
terrível? O primeiro passo para fazê-las mudarem
de ideia é concordar com o estado de espírito delas,
e não as excluir. “Sim, será horrível. Vou sentir muita
falta do motor de combustão interna. Eu uso meu
carro como um antidepressivo e vai ser uma droga
ter que dirigir um elétrico. Então você está certo.”

Alguém precisa dizer isso. Alguém precisa ser


adulto aqui e adotar uma atitude diferente. E o
que realmente estou tentando fazer é conversar
com os americanos. Porque se os Estados Unidos
29

não fizerem algo, então a China não fará, a Índia


não fará e a Rússia, definitivamente, não fará.

TENDO COMO PAI ALGUÉM QUE TRABALHOU NO GREENPEACE, UM


MOVIMENTO AMBIENTALISTA MUITO TRADICIONAL, COMO SEU
PENSAMENTO EVOLUIU E MUDOU AO LONGO DO TEMPO?

O que mudou é que o que tenho falado ficou maior,


e a forma como falo não ficou mais simples. Já es-
crevi uma dissertação sobre vegetarianismo. Não
comer animais é uma ótima ideia por vários moti-
vos. Mas o modo como os vegetarianos falam — e
com licença, vou ser o bode expiatório — é muito
violento. As imagens são cheias de sangue e hor-
ror. E o que eu quis dizer foi: “sim, vegetarianismo
é ótimo, mas vocês conseguem se ouvir?” Foi meu
primeiro livro, que deve ter sido lido por umas três
pessoas, porque era muito acadêmico.

E então, gradualmente, comecei a descobrir como


falar com mais pessoas — o que não é o mesmo
que emburrecer a conversa. Na verdade, é torná-
-la mais sofisticada. Como dizer as coisas mais pro-
fundas possíveis para o maior número de pessoas
possível? É nisso que tenho trabalhado durante
toda minha vida.
30

MAS VOCÊ NÃO ACHA QUE A TRAGÉDIA MOVE O SER HUMANO, E


QUE EVIDENCIAR AS COISAS RUINS, O HORROR, É UMA MANEIRA
DE CONSCIENTIZAR?

Mas evidenciar a tragédia seria melhor do que


aquilo que ambientalistas vêm fazendo. Nós ape-
nas despejamos informações: “20%”, “100 mil”, “por
década”, “a cada 100 graus”. Isso não é tragédia. É
uma enorme pilha de lixo de informações. Tragé-
dia seria algo ótimo. Se alguém quisesse subir ao
nível de Sófocles ou Shakespeare, seria fantástico.
Mas ninguém está fazendo isso. Estão todos ape-
nas repetindo: “pare com isso, pare com isso, pare
com isso. Mau, mau, mau.” E ninguém está ouvin-
do, não significa nada.

“Essa é a proposta do
livro: dar às pessoas uma
razão para comprar o
ambientalismo”
Timothy Morton aponta possíveis estratégias para o movimento
ambiental engajar contra a crise climática
31

O QUE VOCÊ FARIA PARA O MOVIMENTO AMBIENTAL REALMENTE


MOTIVAR AS PESSOAS A AGIREM E ASSUMIREM RESPONSABILI-
DADES DIANTE DA CRISE CLIMÁTICA?

Eu trabalhei para uma empresa de publicidade no


Colorado [EUA] quando não ganhava muito dinhei-
ro como professor de literatura inglesa. E lá aprendi
uma coisa muito interessante: você inventa o mo-
tivo para comprar uma coisa, depois inventa essa
coisa. Pense então em empresas de publicidade fa-
zendo isso para que você continue consumindo pe-
tróleo. Nós, como ambientalistas, precisamos fa-
zer a mesma coisa, mas cinco vezes melhor. E não
deveria ser difícil, porque temos boas ideias. Essa
é a proposta do livro: dar às pessoas uma razão
para comprar o ambientalismo. Para isso, é preci-
so dar a elas a sensação de que concordam com a
gente sem nem dizer qual é a ideia.

O “Eu tenho o sonho”, de Martin Luther King, foi o


motivo para comprar o antirracismo. Ele não per-
deu tempo dizendo que as pessoas precisavam ser
antirracistas, que se não passassem a ser, mais
gente morreria — o que era verdade. Ele teve a
presença de espírito de se apresentar diante de
milhares de pessoas e dizer: “estou sonhando com
32

alguma coisa”. E o movimento antirracista global é


um modelo brilhante de como criar um movimento
em escala planetária.

O AMBIENTALISMO É UM CONCEITO AMPLO, COM MUITOS FATO-


RES E CAUSAS: COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS, USO DE PLÁSTICO, EX-
TINÇÃO DE ESPÉCIES, CRISE CLIMÁTICA. COMO LIDAR COM ESSAS
VÁRIAS QUESTÕES AO MESMO TEMPO?

Avalie como as corporações querem que você pen-


se. Esse é o problema. Infelizmente, pensamos
nisso como um jogo de soma zero. Se me preocu-
po com o aquecimento global, não estou me pre-
ocupando com o plástico. E se me preocupo com
o plástico, não estou me importando com as es-
pécies ameaçadas de extinção. Mas tudo está co-
nectado. É um problema em escala planetária. E o
maior deles é o aquecimento global. Todo o resto é
consequência.

Então, como fazer as pessoas sentirem que per-


tencem não apenas ao Brasil ou à América, mas
ao planeta Terra? A maioria dos ambientalistas diz
que tudo o que você faz e acha é errado. “Você tem
que ser ambiental, tem que ser ecológico e não
está fazendo da maneira certa.” Quando, na verda-
de, você não precisa fazer isso. Você deve SER isso.
33

Nos meus primeiros cinco anos dando aula, era


realmente difícil. Cada aula era diferente. Teoria
literária é diferente de estudar Shakespeare, que
é diferente de estudar como escrever um poema.
São coisas diferentes da mesma maneira que to-
das essas questões ambientais são. Então, percebi:
não preciso ser pai, porque sou pai. Posso ser um
pai melhor, porque não estou me esforçando tanto
para sê-lo. Não preciso ser alguém ecológico, por-
que sou uma pessoa ecológica. Ou seja, não preci-
so ter pensamentos especiais. Não preciso ter al-
guma conversão religiosa. Posso trazer todo meu
cristianismo, meu ateísmo, meu budismo, meu hin-
duísmo. Posso trazer tudo o que já carrego porque
sou isso. Não importa o que penso, eu sou.

NO FINAL DAS CONTAS, PARECE QUE A MAIOR AMEAÇA É A INDÚS-


TRIA DO PETRÓLEO. O FOCO ENTÃO DEVE SER ACABAR COM ELA?

Absolutamente. O que aconteceu na última extin-


ção em massa — não a última, que foi o asteroi-
de dos dinossauros, mas a anterior —, chamada
de Extinção do Fim do Permiano, foi um evento
de aquecimento global. Todas as vidas, exceto 4%,
foram eliminadas. E isso demorou 20 mil anos. A
atual vai levar algumas centenas.
“Sofremos uma lavagem
cerebral, principalmente
pelas grandes petrolíferas,
sobre o quanto devemos
nos preocupar”
Morton critica empresas de petróleo pelos efeitos da emergência climática

E o que acontece quando esse processo leva ape-


nas algumas centenas de anos, em vez de 20 mil?
Fico tentando fazer as pessoas entenderem a im-
portância disso. Mas tenho que falar muito bem,
porque gritar claramente não funcionou.

NOS SEUS LIVROS, SEUS CONCEITOS ESTÃO MUITO ENTRELAÇA-


DOS COM LITERATURA E POESIA. QUE PAPEL A ARTE PODE DE-
SEMPENHAR PARA NOS AJUDAR A COMPREENDER E ENFRENTAR
A CRISE AMBIENTAL?

A arte é fundamental. As humanidades costuma-


vam ser um dos tripés do conhecimento na Idade
Média, o Trivium. A biologia trata de como criar fa-
tos que sejam biologicamente verdadeiros. A física
trata de como criar fatos que sejam verdadeiros
na física. E as humanidades, de como você cria um
fato. Mas arte, literatura e as humanidades foram
35

relegadas nesse tripé. Sabemos que um fato é uma


interpretação de dados. E esses dados não signifi-
cam apenas física, biologia; significam memórias,
pensamentos, impressões e tudo mais. E quando
você faz arte, quando interpreta arte, cria fatos
baseados em quaisquer dados. Por isso as huma-
nidades devem ser a base.

E os cientistas acabam inconscientemente tentan-


do apaziguar os negacionistas. Eles inventaram
essa ideia do negacionista e decidiram que iriam
interpretar os dados da maneira mais benigna e
suave possível para não incomodar as pessoas.
Mas a batalha já estava perdida. Qualquer um que
fizesse um curso de humanidades saberia. Esse
é um jogo de perdedores. Até os cientistas estão
chocados com o quão ruins as coisas estão ficando,
porque todos eles se iludiram tentando interpretá-
-las da maneira mais suave possível.

EXISTE, AFINAL, UMA MANEIRA DE VIVER DE FORMA SUSTENTÁ-


VEL NO ANTROPOCENO?

Não sou da área da política social, não sou cien-


tista. Mas todos sabemos vagamente o que fazer:
usar painéis solares, comer menos carne, blá, blá,
blá. O principal, porém, é fazer as empresas de
36

combustíveis fósseis pararem de destruir a Terra.


Não é muito difícil. Basta votar da maneira certa
que os políticos as obrigam a fazer isso. Assim pa-
ramos de fumar, assim impedimos o fascismo na
Segunda Guerra Mundial.

Agora, como podemos fazer as pessoas acredita-


rem no ambientalismo? Não posso dizer nada so-
bre o futuro. Não posso dizer o que é certo ou er-
rado. Na verdade, não quero. Passei uma carreira
inteira sem fazer isso, porque esse é o problema.
Estamos todos olhando para pequenas coisas que
podemos fazer. Eu te digo como estou me sentin-
do: estou em estado de pânico e tristeza.

VOCÊ ACHA QUE É POSSÍVEL SUPERAR A CRISE CLIMÁTICA?

Temos que acreditar. Ou podemos simplesmente fi-


car deitados em posição fetal chorando até tudo se
extinguir. Não há escolha. Minha filha sofre de um
problema cardíaco possivelmente fatal. Ela foi diag-
nosticada na segunda-feira. E tenho que acreditar,
principalmente na frente dela, que ela pode melho-
rar. Eu poderia dizer: “bem, as chances são muito
pequenas e você provavelmente poderá morrer na
próxima semana. Então sabe de uma coisa? Não va-
mos ao médico. Vamos morrer.”
37

Mas dizemos isso? Questionamos desse jeito qual-


quer outro problema? E a crise climática é a maior
coisa do mundo. Será que paramos por um minuto
e pensamos: “devo deixar meus filhos morrerem?”
Mas estamos deixando nossos filhos morrerem por
causa do petróleo! É uma pergunta estúpida.

E esse é o problema, é assim que fomos ensina-


dos a pensar. Sofremos uma lavagem cerebral,
principalmente pelas grandes petrolíferas, sobre
o quanto devemos nos preocupar. E deveríamos
nos preocupar como se nosso cabelo estivesse
pegando fogo. A resposta deveria ser óbvia. Você
quer viver, quer que seus filhos vivam e que os

“Você quer viver e que


seus filhos vivam; e viver
é muito mais fácil em
um planeta do que numa
rocha em chamas”
Timothy avalia como sensibilizar para a ação contra o aquecimento global
38

filhos de outras pessoas vivam. E viver é muito


mais fácil em um planeta do que num pedaço de
rocha em chamas.

SE VOCÊ TIVESSE QUE RESUMIR PARA ALGUÉM QUE NÃO CONHECE


SUA MANEIRA DE PENSAR, QUAIS SERIAM AS IDEIAS MAIS IMPOR-
TANTES QUE APRENDEU EM TODOS ESSES ANOS TRABALHANDO
COM FILOSOFIA AMBIENTAL?

O mundo em que vivemos é um lindo acidente. A


SER
melhor razão de todas para estar apaixonado por ECOLÓGICO
alguém é não ter razão alguma. Nunca há motivos Timothy Morton
(Quina Editora,
suficientes para amar. Se você procurar o moti- 216 páginas,
vo pelo qual está apaixonado por alguém, acabou. R$ 58)
Quero que as pessoas se apaixonem pelo mundo
em que nasceram. Nascemos da biosfera da mesma
forma que as maçãs crescem de uma árvore. Não
há razão para a evolução da vida. Não há razão para
que a reprodução sexual tenha evoluído, como uma
fêmea de pavão olhando para o rabo de um pavão
macho e dizendo: “uau, isso é sexy.” Não há moti-
vo para isso. E ela olha exatamente como eu olho
para uma pintura de Rembrandt dizendo: “uau, isso
é sexy.” A evolução é uma mutação genética aleató-
ria. Não foi um Steve Jobs que projetou tudo isso.
CIÊNCIA
TEXTO Nathan Fernandes EDIÇÃO Luiza Monteiro DESIGN Flavia Hashimoto

FORÇA ESTRANHA
OS MÚONS, PARTÍCULAS “PRIMAS” DOS ELÉTRONS, ESTÃO SE
COMPORTANDO DE MANEIRA INCOMUM EM EXPERIMENTOS DO FERMILAB,
O QUE PODE INDICAR A PRESENÇA DE UMA FORÇA DESCONHECIDA.
ESTARÍAMOS DIANTE DO FIM DA FÍSICA QUE CONHECEMOS?
(Fotos: Getty Images)
A
Antes de ganhar um Prêmio Nobel, em 1965, o
físico estadunidense Richard Feynman estava
se sentindo meio estagnado na profissão. Na se-
gunda metade da década de 1940, ele dava aulas
na Universidade Cornell e pensava em como po-
deria voltar a se “divertir” com a física, em vez de
se dedicar a pesquisas que não despertavam seu
interesse. Um dia, no café da universidade, sua
atenção se voltou para um rapaz que brincava
de jogar para o alto um prato com o brasão da
Cornell. À toa, o físico fez algumas contas e notou
que o logo girava exatamente duas vezes mais
rápido do que o movimento de oscilação (ou pre-
cessão) do prato no ar — fica mais fácil visualizar
a precessão se imaginarmos um pião que gira
sobre seu próprio eixo, inclinando-se de um lado
para o outro. Ou seja, Feynman observou que a
rotação do prato equivalia a duas vezes a pre-
cessão, na proporção de dois para um.

Isso fez o físico pensar nas órbitas dos elétrons,


e recordar também das pesquisas iniciais que
ele desenvolvia com entusiasmo. Foi assim que
um prato voador acabou inspirando o desen-
volvimento da teoria da eletrodinâmica quânti-
ca, conceito que ajuda a explicar a física na di-
mensão das partículas. “Os diagramas e todas
41

aquelas coisas pelas quais ganhei o Prêmio Nobel vieram dessa


perda de tempo com o prato em precessão”, conta o físico em sua
divertida autobiografia, Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman, pu-
blicada originalmente em 1985 e lançada no Brasil em 2019 pela
editora Intrínseca.

Mais de 70 anos depois, é justamente nesse movimento de preces-


são que cientistas do mundo todo estão de olho. Só que agora, em
vez de um prato barato, eles têm um acelerador de 3,2 quilômetros
quadrados e que, só no ano passado, recebeu US$ 260 milhões em
investimentos do governo dos Estados Unidos: o Fermi National
Accelerator Laboratory (Fermilab), que fica nos arredores de Chi-
cago, nos EUA. Foi graças a ele que um experimento envolvendo a
colaboração internacional de 181 pesquisadores, de 33 instituições
diferentes, conseguiu detectar um comportamento estranho em
uma partícula chamada múon.

O experimento, batizado de Múon g-2 (lê-se “múon g menos dois”),


ajudou os cientistas a notarem que os múons, considerados pri-
mos “pesados” dos elétrons, indicavam a existência de uma for-
ça que não aparece na teoria do “modelo-padrão das partículas
elementares”, um dos conceitos mais bem aceitos da física (o que
ajuda a justificar seu nome pouco humilde). Se esses dados — que
foram anunciados em 10 de agosto, ainda sem revisão por pares —
se mostrarem realmente corretos, podemos estar diante do surgi-
mento de uma nova física, isto é, uma nova explicação para como
interpretamos a realidade que conhecemos.
42

A PARTÍCULA
(NEM TANTO) DE DEUS
O Universo é rico em mistérios. Mas há três deles que tiram o sono
dos cientistas: (1) a existência da energia escura, (2) a existência da
matéria escura — coisas que ninguém tem a mínima ideia do que
são, mas juntas constituem cerca de 95% do cosmos — , e (3) o pa-
radeiro da antimatéria.

De acordo com as previsões teóricas do físico inglês Paul Dirac, toda


partícula fundamental da matéria que existe no Universo deveria vir
acompanhada por outra partícula igual, mas com a carga trocada,
uma “antimatéria”. Para todo elétron, por exemplo, deveria haver
um par exatamente igual, mas com a carga positiva. Esse “elétron
positivo” de fato existe, ele se chama pósitron, e a comprovação da
sua existência levou Dirac a ganhar o Nobel em 1933. O problema é
que conseguimos observar um número muito maior de matéria do
que de antimatéria no Universo — e, se as previsões de Dirac estão
mesmo corretas, onde estão as antimatérias?

Como apontou em um TEDx o físico britânico Alex Keshavarzi, da


Universidade de Manchester, que participa do experimento Múon
g-2, “cada um desses mistérios — o que é energia escura, o que é
matéria escura e por que há uma assimetria entre matéria e an-
timatéria — poderia ser resolvido se encontrássemos uma nova
partícula, ou uma nova força da natureza.” E é exatamente isso
que os pesquisadores estão tentando fazer.
43

O problema é que encontrar algo novo exige ir


contra o modelo-padrão. Essa teoria foi con-
cluída por volta de 1970, depois de uma inten-
sa dedicação de diversos físicos no decorrer do
século 20. Ela descreve bem como o Universo
funciona, com suas 17 partículas fundamentais,
como se fosse uma receita que mostra como to-
das as forças e partículas do cosmos interagem
e criam a matéria que está ao nosso redor. “No
início, o modelo-padrão não foi levado muito a
sério, por causa do seu aspecto um pouco mal
acabado, distante da aérea simplicidade da re-
latividade geral, das equações de Maxwell ou de
Dirac”, explica o físico italiano Carlo Rovelli no
livro A realidade não é o que parece (Objetiva).
“Mas, contra as expectativas, todas as suas pre-
visões se confirmaram. Há mais de trinta anos,
todos os experimentos da física das partículas
não fazem senão reconfirmá-lo.”

“Os múons atuam como uma janela


para o mundo subatômico e podem
estar interagindo com partículas ou
forças ainda não descobertas”
Marcelo Lapola, físico e professor do departamento de Física da Unesp em Rio Claro
44

A mais recente validação ocorreu em 2013, gerando comoção geral


ao revelar a existência do bóson de Higgs, uma partícula que, em-
bora teoricamente prevista, nunca tinha sido observada até aque-
le momento. Essa partícula representou a última adição ao álbum
de figurinhas do modelo-padrão. Não à toa, recebeu a alcunha de
“partícula de Deus”, um epíteto tão sem sentido quanto impreciso.

PRECISÃO DE MILHÕES
Agora, os pesquisadores apontam suas ferramentas para os
múons, partículas já bastante conhecidas, que chegam à Terra
através de raios cósmicos ou podem ser geradas em laboratório
— no caso, em aceleradores como o Fermilab. Eles se parecem
com os elétrons, mas têm massa 200 vezes maior e sobrevivem
apenas dois milionésimos de segundo. “Assim como os elétrons,
os múons agem como se tivessem um minúsculo ímã interno. Num
campo magnético forte, a direção do ímã do múon sofre preces-
são, ou oscila, tal como o eixo de um pião ou giroscópio”, explica
o físico Marcelo Lapola, professor do departamento de Física da
Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro e colunista
da GALILEU. A velocidade desse movimento depende de uma pro-
priedade do múon conhecida como “momento magnético”, que os
físicos abreviam como “g”.

A expectativa, de acordo com a teoria formulada por Richard


Feynman, é de que g seja sempre igual a 2. Mas, na realidade, esse
valor é perturbado por partículas que surgem e somem o tempo
45

todo. Por conhecerem as partículas do modelo-padrão, os cientis-


tas conseguem prever quanto o valor de g será desviado. A essa
diferença eles dão o nome de “g-2”. A questão é que os múons são
sensíveis a todas as partículas, inclusive àquelas que não conhece-
mos. “Os múons atuam como uma janela para o mundo subatômi-
co e podem estar interagindo com partículas ou forças ainda não
descobertas”, aponta Lapola.

Dados recentes do experimento Múon g-2 indicam que os múons


analisados interagiram com elementos desconhecidos, ou seja,
forças ou partículas que estão fora do modelo-padrão. Isso signi-
fica que não são contemplados pela teoria que melhor descreve
o Universo até hoje. Esses dados reforçam informações obtidas
por um experimento feito em 2021, no mesmo Fermilab — que,
46

por sua vez, confirmou o resultado de outro experimento, esse


feito em 2001, no Brookhaven National Laboratory (BNL), tam-
bém nos Estados Unidos.

A diferença é que, agora, o resultado é muito mais preciso. “O ex-


perimento Múon g-2 no Fermilab detectou cerca de 21 vezes o nú-
mero de decaimentos de múons que foram estudados na medição
anterior no BNL”, explica a GALILEU o físico italiano Alberto Lusia-
ni, que participa da análise de informações do estudo. “Esta amos-
tra de dados maior, analisada com técnicas melhoradas, reduzirá a
incerteza estatística por um fator de cerca de 4,5, quando todos os
decaimentos do múon forem analisados.”

Segundo Lusiani, a medição concluída neste ano analisou os dados


coletados em 2018, 2019 e 2020, cerca de 6,5 vezes o número de
múons usados para a medição do BNL, e resultou em uma precisão
cerca de 2,5 vezes melhor. Agora, os pesquisadores devem realizar
mais uma rodada de testes, e planejam divulgar resultados finais
ainda mais precisos em 2025.

XADREZ DOS DEUSES


As expectativas para a conclusão do experimento Múon g-2 são
altas. “Caso se confirme a necessidade de correção no modelo-pa-
drão, será uma das maiores descobertas das últimas décadas”, cra-
va o físico Marcelo Lapola, reforçando que é preciso aguardar os
novos resultados antes de celebrar qualquer coisa. Para Lusiani, a
possível descoberta pode significar um boom de novas pesquisas.
47

“Se a medição da anomalia magnética do múon


fornecer evidências de que a teoria atual, o mo-
delo-padrão, está incompleta, haverá um inte-
resse generalizado em medir outros desvios re-
lacionados e em propor modelos da ‘nova física’
que prevejam o desvio observado e possam ser
testados com medições experimentais adicio-
nais”, aponta o físico italiano.

Aos olhos de alguns pesquisadores, no entanto,


a empolgação em torno do experimento pode
ser precipitada. “Antes da gente reconhecer que
existe uma brecha no modelo-padrão, tem um
longo caminho a ser percorrido, principalmente
no que se refere aos cálculos teóricos, que são
muito complexos”, acredita o físico Sérgio Ferraz
Novaes, pesquisador do Instituto de Física Teóri-
ca da Unesp, e integrante da colaboração inter-
nacional que anunciou a descoberta do bóson de

“Não existe isso de uma teoria


ser invalidada. A relatividade de
Einstein, por exemplo, não invalidou
as transformações de Galileu, que
foram feitas 300 anos antes”
Sérgio Ferraz Novaes, pesquisador do Instituto de Física Teórica da Unesp
48

Higgs, em 2013. “O modelo-padrão tem uma consistência impressio-


nante, parece que a gente acertou a estrutura que a natureza esco-
lheu para gerir essas interações, não vejo nada muito promissor na
área de violação explícita das propostas dessa teoria.”

Ainda assim, de acordo com Ferraz, mesmo que os dados do expe-


rimento se mostrem corretos, o modelo-padrão não perderá seu
reinado tão facilmente. “Não existe isso de uma teoria ser invalida-
da, não é assim que a ciência funciona. A relatividade de Einstein,
por exemplo, não invalidou as transformações de Galileu, que fo-
ram feitas 300 anos antes”, explica. “Invalidar é uma palavra muito
forte, porque você não pode jogar no lixo a quantidade enorme de
sucessos e de acordos experimentais que o modelo-padrão teve
durante esses anos. Além disso, você não joga fora uma teoria se
não tem outra para substituí-la.”

Amparados na matemática, os físicos têm a liberdade de sempre


poderem propor novos modelos que ajudem a explicar a realidade
que nos cerca. Assim, à medida em que avança em suas descober-
tas, a ciência amplia a fronteira com o desconhecido. Citando Ri-
chard Feynman, o físico capaz de vislumbrar movimentos de partí-
culas em pratos giratórios, Marcelo Lapola lembra que: “A natureza
é um enorme jogo de xadrez disputado por deuses, e que temos o
privilégio de observar. As regras do jogo são o que chamamos de
física fundamental, e compreender essas regras é a nossa meta.”
QUER QUE EU DESENHE?
POR BERNARDO FRANÇA

BELL HOOKS REIVINDICAVA


ACESSO À EDUCAÇÃO COMO
UM DIREITO DE TODOS E
DEBATIA TANTO TEORIAS
ACADÊMICAS QUANTO
ASSUNTOS DA CULTURA
POPULAR
TEXTO
Beatriz Herminio
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Nascida em 25 de setembro de 1952,


em Kentucky (EUA), bell hooks foi uma
intelectual em raça, classe, gênero, amor
e educação. Reconhecida mundialmente,
sua obra reúne ensaios, memórias pessoais,
poesia e livros infantis.
51

Ao longo da carreira, foi julgada por não


ser “acadêmica o suficiente”, pois optava
pela escrita acessível para todos.
Além de escritora, atuou como professora
universitária, e não dispensou críticas
a personalidades que admirava,
como o brasileiro Paulo Freire.
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Apesar de não ver espaço para desenvolver


suas ideias dentro de casa na infância,
hooks estudou em escolas segregadas pelo
apartheid, onde foi valorizada.
Ao frequentar um ensino médio
não segregado, deparou -se com um
ambiente escolar racista.
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Seu trabalho relaciona dimensões subjetivas


a questões estruturais, como capitalismo
e patriarcado. Entre mais de 30 livros
publicados, estão E eu não sou uma mulher?
Mulheres Negras e Feminismo e
Ensinando a transgredir: a educação
como prática da liberdade.
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Batizada Gloria Watkins, a escritora


assinava seu pseudônimo em letras
minúsculas não apenas para diferenciá-la
de sua bisavó, a quem homenageia, mas
também para reforçar seu trabalho acima
de sua imagem. Ela morreu aos 69 anos,
em dezembro de 2021.

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