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CARTOGRAFIAS INFANTIS: reinventando a cidade site sobre a cidade de Porto Alegre, no qual a mesma é

com o olhar das crianças de uma comunidade quilombola cartografada por uma multiplicidade de narrativas, olhares
urbana. fotográficos, escritas e desenhos de crianças que a habitam.
“As cidades são imensas máquinas” – escreve Guattari A cidade como plano estriado – a tal cidade “dura” e
(1992, p.172). Maquinarias de produção de subjetividade, segmentarizada, pensada a partir de uma lógica
enveredadas por linhas de vida das mais diversas, que ora adultocêntrica – é rachada através da potência nômade
congelam e cristalizam, ora fazem passar pelas brechas e ora infantil, traçando linhas de invenção para lugares
irrompem signos novidadeiros. É possível vivermos a cidade majoritariamente cristalizados. A concepção de cartografia
por aquilo que nela foge? É possível olharmos para além da que utilizamos é pensada a partir da filosofia da diferença,
miopia de seu racionalismo lógico urbanístico? É possível investindo na ideia de que as crianças são produtoras de
cartografarmos uma cidade com crianças e, sobretudo, com cultura, considerando-as como dispositivos efetivos de
infâncias? Estas são perguntas norteadoras do projeto criação, movimentação cultural e disparadores de novas
CARTOGRAFIAS INFANTIS: a cidade pela criança / a maneiras de ver e pensar a própria cidade.
fotografia pela infância, realizado na cidade de Porto Alegre A cartografia como conceito.
(Brasil), com financiamento da Fundação Nacional das Artes A cartografia – da forma como estamos utilizando neste
– FUNARTE. Este artigo pretende apresentar alguns projeto – é um conceito cunhado pelos filósofos franceses
movimentos acerca do projeto, tomando como referencial a Gilles Deleuze e Felix Guattari em seu livro Mil Platôs:
experiência micropolítica de uma oficina de fotografia capitalismo e esquizofrenia (1980), numa tentativa de mapear
realizada com crianças que residem numa comunidade e acompanhar os múltiplos territórios que compõem a vida e
quilombola da cidade. O projeto envolve a construção de um que se entrelaçam aos modos de viver. O conceito, oriundo
do campo geográfico, é transposto para o campo da filosofia e circulamos por entre ruas e espaços privados, gozamos de
subjetividade, mostrando-se como dispositivo de análise e prazeres cotidianos, cuidamos e brincamos.
fabricação de realidade. Com a cartografia, o que chamamos
de realidade é algo a ser construído, e não simplesmente
constatado. Rompe-se, então, com a lógica positivista de
pesquisa, pois o pesquisador (também chamado de
cartógrafo) não é mais o observador neutro e passivo. O
cartógrafo sabe que está interferindo no meio onde
cartografa, e sua interferência é vivida e significada como algo
importante.
Sabemos, através de Deleuze & Guattari (2004, p.83),
que a vida é feita de segmentações, que somos segmentados
por todos os lados e direções, em linhas que pertencem a
(Parque Moinhos – Olhar fotográfico das crianças do Areal)
todos os estratos que compõem o viver. Quando falamos de
linhas estamos falando de forças, estas vindas dos mais
Diante disto, podemos pensar a cartografia como uma
diferentes espaços e situações: linhas sociais, econômicas,
estratégia de análise deste mundo que nunca está parado,
afetivas, institucionais, fabulatórias, memoriais, etc.
que se encontra sempre em vias de se fazer e de se
Entrecortados e jogados neste oceano de linhas, habitamos
desmanchar, em linhas que tramam paisagens e que por
uma cidade, trabalhamos, vivemos nossa vida doméstica,
vezes desacomodam estas mesmas paisagens. Boaventura
dos Santos (2002, p.48) escreve: “Cada método é uma
linguagem, e a realidade responde na língua em que foi
perguntada”. A cartografia – mesmo que não seja um método
por excelência – coloca diante da realidade a ser
cartografada-pesquisada uma outra categoria de pergunta. A
pergunta primeira, de acordo com Deleuze & Guattari (1995;
2004), recai sobre as linhas de invenção, também chamadas
de “linhas de fuga”. É nestas linhas de criação que o (Parque Moinhos de Vento/Parcão- olhar fotográfico das crianças do Areal)

cartógrafo inicialmente investe, é a elas que a cartografia fará


suas primeiras interpelações. Qualquer território (afetivo, Hódos-metá: revertendo o método
geográfico, social, sentimental, urbano, desejante, etc), por Se formos levar em conta a etimologia da palavra
mais sobrecodificado e cristalizado que pareça ser, é metodologia – metá-hódos, veremos que se trata de um
maquinado por linhas de invenção. Restaria, portanto, ao caminho (hódos) determinado pelas metas (metá) que são
cartógrafo, acionar seu olhar e corpo vibrátil (ROLNIK, 2008) estabelecidas para que o próprio caminhar seja feito. De
a estas forças que forçam o território a sair de seu próprio acordo com Passos, Kastrup, Escóssia (2009, p.11), “a
ensimesmamento, em movimentos que são, em sua grande cartografia propõe uma reversão metodológica: transformar o
maioria, de ordem minúscula e microscópica. O corpo vibrátil méta-hódos em hódos-metá. Essa reversão consiste numa
do cartógrafo é o corpo em vibração, corpo que se contagia aposta de experimentação do pensamento – um método não
com os outros corpos que estão ao seu redor, corpo sensível para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido
que captura e filtra sensibilidades, para além e aquém daquilo como atitude. Não não se abre mão do rigor (…) O rigor do
que está dado ou que parece óbvio. caminho, sua precisão, está mais próximo dos movimentos da
vida (...) “. Diante desta citação percebemos que numa isto faz parte de sua cartografia. A cartografia se ocupa dos
cartografia o pesquisador-cartógrafo projeta seus passos na caminhos errantes, estando suscetível a contaminações e
medida em que percorre o seu campo – ele não sabe de variações produzidas durante o próprio processo de pesquisa.
antemão o que irá lhe atravessar, quais serão os encontros A postura daquele que pesquisa passa a ser diferente: pode-
que irá ter e no que estes mesmos encontros poderão se dizer que, como cartógrafos não coletamos dados, nós os
acarretar. O cartógrafo é um amante dos acasos e das coisas produzimos (e sempre coletivamente). Ora, a cartografia é
inusitadas. Ele está disponível aos acasos que o seu campo sempre fruto de uma produção coletiva: mesmo que seja
lhe oferece, sendo ele, inclusive, uma força dentre as pensada por um ou dois sujeitos específicos (como no caso
múltiplas forças que configuram o(s) território(s) a ser(em) do projeto CARTOGRAFIAS INFANTIS), são inúmeros os
cartografado(s) – assim como o território-cidade muda, ele agentes que colocarão esta cartografia em movimento. Ao
também muda. invés de quantificar e contabilizar estes agentes, a cartografia
O cartógrafo suja suas mãos investe naquilo que os coloca em relação através de
O pesquisador-cartógrafo, sendo também parte da encontros. Cartografa-se encontros sendo-se, igualmente, um
geografia que ocupa, é alvo e agente de interferências. A agente produtor destes mesmos encontros.
cartografia, neste sentido, é uma prática de pesquisa ''suja'',
distante da assepsia e da limpeza que os métodos mais
positivistas propõem. O cartógrafo, ao estar implicado no seu
próprio procedimento de pesquisa, não consegue (e não
deseja) manter-se neutro e distante – eis o sentido de sujeira
(encontro na comunidade para ver as fotografias - olhar fotográfico das crianças do Areal)
aplicado à sua prática. Ele se mistura com o que pesquisa e
A cartografia é feita de encontros efeito, um ziguezague, algo que passa ou que se passa entre
Se pudéssemos apresentar um elemento fundamental dois'' (DELEUZE & PARNET, 1988). Um encontro, como
para uma prática cartográfica, este seria o encontro. vimos, é sempre ziguezagueante, como uma linha que ora se
Entretanto é necessário pensarmos para além da noção encontra num lado, outra se encontra num outro. No
comum de encontro, relacionada a um encontrar algo ou Abecedário de Gilles Deleuze (1988), o filósofo fala acerca do
achar alguém-alguma coisa. O encontro, da forma como que entende por um verdadeiro encontro: “Não acredito na
compreendemos, é da ordem do inusitado e nunca se faz sem cultura; acredito, de certo modo, em encontros. E não se têm
um grau de violência (mas não se trata, aqui, de uma encontros com pessoas. As pessoas acham que é com
violência física, mas de um movimento que é violento porque pessoas que se têm encontros (…) mas não se tem encontros
desacomoda e faz com que o mesmo saia de sua mesmice). com pessoas, e sim com coisas, com obras: encontro um
Deleuze & Parnet (1998) falam do encontro como uma quadro, encontro uma ária de música, uma música, assim
espécie de ''solidão extremamente povoada'' – é algo solitário entendo o que quer dizer um encontro''. Portanto, podemos
(porque um encontro nos atravessa sempre de maneira única dizer que tudo é passível de gerar um encontro cartográfico,
e singular) e ao mesmo tempo povoado (porque sempre se dá as coisas aparentemente mais insignificantes podem ser (e
entre nós e alguma coisa). ''É do fundo dessa solidão que se são) extremamente potentes.
pode fazer qualquer encontro. Encontram-se pessoas (e às
vezes sem as conhecer nem jamais tê-las visto), mas também
movimentos, idéias, acontecimentos, entidades. Todas essas
coisas têm nomes próprios, mas o nome próprio não designa
de modo algum uma pessoa ou um sujeito. Ele designa um
Com olhos da suspeita: a cidade cartográfica Nós só nos indagamos acerca de uma cidade na
medida em que algo desta cidade entra em contato com a
gente e nos faz questioná-la. É preciso, pois, o contágio com
o mundo para que o mundo nos faça pensar e sair do lugar.
Entretanto, sair deste lugar não é simplesmente se deslocar
mecanicamente: trata-se de um outro tipo de deslocamento.
Estamos falando de um deslocamento das ideias prontas,
daquilo que está naturalizado, que parece ser sempre “assim
mesmo”, untado por obviedades, sem surpresas ou
(Parque Moinhos de Vento/Parcão- olhar fotográfico das crianças do Areal) encantamentos. O exercício cartográfico necessita ter aquilo
que Nietzsche (1988, p.50) chama de “maior benefício da
Uma cidade é feita de linguagens e de imagens. É
vida”, o prazer pelo valor do matiz e da nuance, daquilo que
composta por sensações fugidias que escapam aos nossos
escapa às categorias fechadas e absolutas (aliás, o gosto
olhares, que não encontram na boca da ciência e da
pelo absoluto seria, de acordo com o filósofo, o pior dos
gramática palavras que possam descrevê-las. Ora, diante
gostos).
disto, restaria a pergunta:quais são as perguntas que fazemos
Diante das coisas mais endurecidas e cristalizadas de
aos nossos territórios? Diríamos, fazendo uso do referencial
uma cidade – de suas normas, padronizações, sentidos
cartográfico, que as nossas questões não vêm simplesmente
dados, daquilo que é conhecido e naturalizado – é preciso
das “nossas cabeças”, mas que nós nos questionamos na
desenvolvermos uma outra sensibilidade, próxima àquilo que
medida em que estabelecemos relações com os outros e com
Nietzsche (1988, p.28) chama de “olhos de Copérnico”,
o mundo.
impulsionado pela suspeita e condenado a, sobretudo, No local, são aproximadamente 80 famílias que vivem em
inventar novos olhares. uma das últimas "avenidas" da região, a Luís Guaranha,
O Areal da Baronesa historicamente ocupada por famílias negras.
Depois deste resgate conceitual, falaremos agora de Nessa comunidade as crianças vivenciam relações de
uma experiência cartográfica que marcou muito nosso projeto. auxílio mútuo e de um cuidar coletivo da infância que
caracterizam o morar nas casas da avenida, para Olavo
Ramalho Marques:
O Quilombo do Areal, situado na Avenida Luís Guaranha -
fronteira entre os bairros Menino Deus e Cidade Baixa
(próximos ao centro da cidade), desafia a idéia de que as
relações sociais na cidade deveriam ser cada vez mais
impessoais, homogêneas e individualizadas. Estamos diante
de um grupo que demonstra, em sua prática social, que as
formações étnicas e identidades territorializadas podem
permanecer e ser fortalecidas no meio urbano. Na Luís
Guaranha, persiste uma formação identitária territorializada,
alicerçada no território histórico, imaginário e mítico do Areal
da Baronesa. A comunidade se identifica como uma
reminiscência viva do que foi um antigo local de moradia de
camadas pobres, ex-escravos e escravos libertos,
paulatinamente descaracterizado durante o século XX.
MARQUES. 2005

(as crianças do Areal - olhar fotográfico de observadora externa do projeto)


A partir da Constituição Federal de 1988 quando foi
As crianças que participaram da oficina do Parcão
reconhecido o direito à propriedade da terra que ocupavam,
(Parque Moinhos de Vento) residem no Quilombo do Areal da
os quilombos urbanos são efetivos territórios de resistência e
Baronesa localizado no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre.
espaço étnico de luta pela manutenção dessas comunidades
(As crianças do Areal no
no tecido urbano. Entre as atividades promovidas pela
carnaval de rua – olhar
Associação Comunitária do Quilombo do Areal um projeto fotográfico da fotógrafa que
acompanha o projeto)
musical de ritmistas chamado de Bateria Mirim Areal do
Futuro que é composto por 70 crianças e jovens de 5 a 16
anos que ensaiam regularmente as músicas e os ritmos
carnavalescos. O encontro com essas crianças se deu em
fevereiro de 2011 através de um convite veiculado na mídia-
web para o carnaval de rua que acontece no bairro Cidade
Baixa. Após contatos telefônicos com os representantes
adultos da comunidade fomos convidados a participar do
“aquecimento” e assistir ao desfile na Sofia Veloso (rua onde
acontece o Carnaval).

Zonas de intercâmbio-contaminação-mistura-intervenção
A superfície do rosto é tão estranha O primeiro movimento foi de aproximação com o grupo.
quanto a membrana que reveste o coração.
(COSTA, 2010, p.42) Movimento de intensa observação e contaminação. Os
nossos olhares e os olhares das crianças. Nós,
desacomodados naquele território até então desconhecido,
territorialidade crivada por lutas da Comunidade Negra,
encharcado por uma história viva e vívida por reconhecimento
social e cultural, zona de convivência entre gerações preparativos para o carnaval, e, que são esses, os mesmos
diversas. Estar ali dizia-nos desta cartografia de nós mesmos. os espaços onde diariamente brincam e circulam cuidados
Estávamos quase no coração da Cidade Baixa – bairro de pela comunidade e pelo olhar do coletivo propiciado pela
imensa circulação e cotidianamente habitado por nossos organização do traçado aparentemente caótico de suas linhas
hábitos culturais – e ao mesmo tempo jogados para uma de acesso. Esse primeiro movimento resultou na combinação
outra cidade dentro da cidade nossa-habitual. Neste estranho de uma oficina que aconteceria no Parque Moinhos de Vento
jogo de estranhamento, fomos imediatamente tragados e (Parcão), localidade extremamente (re)conhecida aos olhos
conquistados por este diminuto lugar cuja racionalidade da macrocultura da cidade, mas que, para nossa surpresa,
urbana se vê impossibilitada de desalojar seus moradores. As desconhecido para grande maioria das crianças habitantes do
crianças a nos observar, percebendo nosso estranhamento e quilombo.E assim partimos – nós e as crianças - para nossa
entranhamento com as ruas, as nuances e o ritmo do Areal. cartografia.
E nos cruzamentos desses olhares, a constituição (a nós) O segundo movimento foi de deslocamento, não
microscópica de zonas de intercâmbio-contaminação-mistura- apenas geográfico (seis quilômetros separam o Areal do
intervenção da cidade em suas fissuras e diferenças. Parque Moinhos de Vento), mas, sobretudo, deslocamento de
Misturamo-nos com as crianças nas atividades que olhares e expressões. No micro-ônibus locado pelo projeto,
antecediam o deslocamento até o local de apresentação, estávamos a percorrer a cidade com olhares deslocados:
assistimos e fotografamos a maquiagem, os últimos ajustes olhares das crianças para este lugar do ainda não visto,
das fantasias e a afinação dos instrumentos. Caminhamos olhares nossos para estes olhares inéditos – isto sem falar do
nas ruelas e becos que atravessam o Areal e que são deslocamento dos olhares daqueles que habitualmente
atravessados pelas suas crianças nas idas e vindas dos utilizam o local para suas práticas de lazer e desporto. O
Parque Moinhos de Vento (Parcão) tem os seus espaços pela primeira vez os utilizavam. Tímido, com a máquina na
estruturados pedagogicamente a fim de garantir lazer e mão, um menino chega para o grupo e pergunta: “Será que
atividades esportivas para os moradores de um dos bairros de posso tirar a foto deste cachorro?”. Um colega, não deixando
maior valor imobiliário de Porto Alegre. Por ser a sua passar a situação, responde de forma marota: “É melhor você
localização em espaço urbano privilegiado, o convite para perguntar para o bicho para ver se ele se importa”. E então
transitar em seus espaços acaba restringindo-se aos sorrimos coletivamente naquele lugar comum por nós
moradores de seu entorno. conquistado.
As crianças, quando chegaram organizaram-se em Em um terceiro movimento com as crianças do Areal,
dois grupos, e, cada grupo escolheu percursos distintos para que aconteceu na própria comunidade, as fotografias da
o reconhecimento do território novo que se inaugurava oficina foram disponibilizadas. Esse terceiro movimento foi de
naquele dia. As poucas máquinas fotográficas disponíveis acolhida, acolhida a nós como parceiros que compartilhamos
eram usadas coletivamente. Nas errâncias dos trajetos, as a visita ao território desconhecido. A sensação era de que
coisas, as pessoas e os animais que ali estavam eram o alvo firmávamos, de fato, uma espécie de pacto cartográfico.
do olhar, do disparo, do clique. Além do fotografar, o parque, Nossa intenção era provocar narrativas a partir dos registros
era para elas o lugar de explorar e brincar. Após a exploração fotográficos, adentrar as linhas narrativas como outra
e o registro fotográfico, o novo e interessante era o que possibilidade cartográfica. As fotografias espalhadas na mesa
aquele outro lugar da cidade para o encontro. Os lugares de foram organizadas pelas crianças em diferentes
brincar, os equipamentos de lazer, os balanços, a tirolesa possibilidades de narração. Inicialmente deu-se uma narrativa
eram os elementos que potencializavam a passagem das mais linear, que contava dos tempos, dos movimentos e
crianças pelo parque e o re-atualizava diante daqueles que atravessamentos desde o primeiro encontro. Outras crianças
se juntaram ao grupo. Era sábado, final de verão. Circulação que havia produzido. Mas a organização coletiva, afetiva e as
intensa das crianças do Areal em sua principal avenida. A práticas sociais do Quilombo do Areal contribuíram, quiçá,
porta aberta da Associação era também um convite a novos para outra possibilidade. As crianças – herdeiras e produtoras
olhares diante daquelas fotografias que se mostravam como da história daquele território – optaram em deixar as
traços daqueles trajetos e brincares outrora vividos naquele fotografias aos cuidados da moradora mais antiga do Areal –
lugar tão perto e tão longínquo. Suspeitávamos que, além Dona Sônia –, que conheceu os pais e os avôs de todos eles.
daquelas imagens e narrativas, estávamos diante de uma As fotografias encontram-se sob domínio daquela que
cartografia afetiva, de pequenos mapas afetivos que por seguramente é memória viva mais potente da Comunidade.
vezes se encontravam e por vezes se lançavam ao disparate. Além disso, quando estávamos discutindo as fotografias,
Indagações sobre o lugar visitado, sobre a tarde de carnaval. surpreendemo-nos com a postura coletiva das crianças. O
Fotografias atestando um real já encharcado de fantasias. olhar do grupo voltou-se, não para a autoria individual de
Demo-nos conta de que estávamos todos diante de um cada fotografia, mas para aquilo que coletivamente
especial rastreamento: não apenas o rastreamento dos conseguiu-se produzir. O local, capturado por diferentes
percursos e acontecimentos do passeio, mas dos caminhos sujeitos de forma repetida, ou fotografado de forma inusitada,
da própria pesquisa e dos contornos singulares que o Areal e é assumido como Leitmotiv, motivo de ligação entre o público
o Parcão ganharam com os olhares daquelas infâncias. e o privado, entre o singular e o coletivo, entre o único e
Um último movimento interessante daquela experiência múltiplo. Estávamos todos ali na tentativa de produzir algum
diz respeito à própria noção de autoria. Antes de partirmos outro registro com todos aqueles registros que pululavam.
era necessário decidir com quem ficariam as fotografias. A Não mais uma cartografia do Parque Moinhos de Vento, mas
nossa hipótese era que cada um ficaria com as fotografias
dos ventos que nos levaram ao grupo e dos efeitos daquele imprecisões em seus acostumados contornos. E então somos
intenso encontro. tentados a afirmar que a gente cartografa mesmo com estes
O que fica de uma experiência cartográfica? restos de quase nada e que, ao final das contas, aquele que
Ora, a narrativa de uma oficina realizada pelo projeto cartografa está, na realidade, cartografando a si-mesmo.
CARTOGRAFIAS INFANTIS permitiu-nos olhar para esta
experiência através de sutis lentes micropolíticas. Ao nos
enveredarmos pela cidade através das linhas de infância, esta Referências:
mesma cidade foi se abrindo e se mostrando de forma Cartografias Infantis: A cidade pela criança, a fotografia pela
singular e inusitada aos nossos olhares até então infância.

''acostumados''. Aos olhos do urbanismo ou de uma geografia http://cartografiasinfantis.com.br


COSTA, Luciano Bedin da. O biografema como estratégia
macropolítica, tudo se mantém exatamente como está. Um
biográfica: escrever uma vida com Nietzsche, Deleuze, Barthes e
passante qualquer dirá que nada mudou após nossa
Henry Miller. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio
experiência cartográfica: é a ''mesma'' cidade, o ''mesmo''
Grande do Sul – UFRGS, Faculdade de Educação, 2010.
parque, as ''mesmas'' árvores, o ''mesmo'' tráfego de carros,
DELEUZE, Gilles. Abecedário de Gilles Deleuze. Registro de
as ''mesmas'' crianças, a ''mesma'' comunidade quilombola, Vídeo. Paris: Éditions Montparnasse (1988).
os ''mesmos'' pesquisadores. Todavia, ao nos perguntarmos DELEUZE, G. PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
acerca do que se passou, lançamos à suposta mesmice um DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e
campo de possibilidades até então não vivenciado. A cidade – esquizofrenia. Vol 1. Rio de Janeiro: Ed.34, 1995.
ou pelo menos uma das cidades possíveis nesta grande _______. F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol 3. Rio de

maquinaria que atende pelo nome cidade – ganha novas Janeiro: Ed.34, 2004.
GUATTARI, Felix. Caosmose. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992. Luciano Bedin da Costa - Psicólogo, Doutor em Educação pela UFRGS e
PASSOS,Eduardo. KASTRUP Virgínia. ESCÓSSIA Liliana da. professor de psicologia pela Sociedade Educacional Três de Maio -
Pistas do Método da Cartografia-Pesquisa-intervenção e produção SETREM e Faculdade Novo Hamburgo - IENH. Ministra oficinas e
de subjetividade.Porto Alegre: Editora Sulina, 2009. disciplinas envolvendo o uso da cartografia enquanto dispositivo de
MARQUES, Olavo Ramalho. Quilombo do Areal: identidade,
pesquisa-intervenção. É um dos coordenadores do projeto Cartografias
territorialidade e memória. Disponível em:
Infantis/ Funarte
http://www.cohre.org/store/attachments/Boletim-Dezembro-05-
Larisa da Veiga Vieira Bandeira – Acadêmica do curso de pedagogia da
Portugues.pdf
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É uma das coordenadoras do
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Hemus
Projeto Cartografias Infantis/ Funarte
Editora, 1988.
PROC. Nº 2212/08 / PLL Nº 070/08. Disponível em:
http://200.169.19.94/processo_eletronico/022122008PLL/02212200
8PLL_PROJETO_37813160_863.pdf
ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: transformações
contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.
ROMAGNOLI, R.C. A cartografia e a relação pesquisa e vida.
Revista Psicologia & Sociedade; 21 (2): 166-173, 2009.
SANTOS, B. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento,
2002.

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