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Arquitetura e Cinema são áreas artísticas que caminham juntas, pois

ambas possuem características espaciais e temporais, que se mostram através


de trajetórias e ângulos de visão. O espaço arquitetônico se tornou uma peça
chave para uma representação legítima da realidade que o cinema busca
apresentar. A arquitetura serve como base para a delinear a natureza dos
filmes, a função das ações e a atmosfera das locações. Através dela, também,
deve se fazer possível, com ajuda dos outros elementos do filme, retomar
épocas conhecidas ou propor alternativas críveis ao mundo real. Ao adicionar a
dimensão do tempo em suas produções, o cinema aliado ao espaço garante
essa impressão de realidade.
O cinema é bastante difundido na sociedade, e provoca em seus
espectadores um processo de participação emocional e sensorial, que os
envolve e captura intensamente como nenhuma outra arte é capaz de fazer. Se
a arquitetura não tem conseguido alcançar o grande público para discutir sobre
seus temas e soluções, sem dúvidas o cinema é a ponte adequada para sua
visibilidade, pois talvez seja a forma de manifestação arquitetônica mais
presente no imaginário coletivo. Por não ser um lugar neutro, limitado apenas
ao entretenimento ou documentação, o cinema assume o papel de força
cultural e ideológica que tem o poder de construir críticas sobre lugares e sobre
a sociedade num geral. Por conta disto, serve também de veículo para
reflexões e discussões sobre a própria arquitetura, seja educando o público
leigo sobre suas questões ou propondo formas e conceitos diversificados, que
ainda estejam em estado experimental.

1. Arquitetura como agente fílmico

A arquitetura fílmica desempenha três papéis principais no cinema, que


são os de servir como espaço de ação, que é sua característica técnica;
comentar e refletir sobre o que existe, com o seu papel crítico; e colocar em
pauta novos conceitos e experimentações através de seu papel crítico-criativo.
Para desempenhar uma performance convincente como agente fílmico, a
arquitetura precisa transcender o estado de “plano de fundo” e adquirir função
ativa na legitimação dramática, estabelecendo a relação de tempo e espaço na
narrativa.
A representação da arquitetura nos filmes é diferente da realidade
percebida pois o sistema que a reproduz se refere a apenas um recorte, muitas
vezes manipulado, desta realidade. Este recorte é determinado pelas técnicas
de produção do cinema, como enquadramento, plano, montagem, etc., que
constroem o movimento, consequência da relação do tempo e espaço. O
enquadramento é responsável pelos recortes do espaço fílmico, e é a partir
dele que há a reprodução direta da composição espacial e arquitetônica em um
filme. O plano, juntamente com o corte, é o que caracteriza o filme como
espacial. É a partir destes elementos que há uma composição do todo,
chamada de montagem. E é a montagem que revela o significado das partes,
unificando espaço e tempo e fortalecendo a percepção do espaço fílmico
apresentado.
Sendo a arquitetura a principal fonte que alimenta o imaginário fílmico, o
espaço não se limita fisicamente ao seu espaço real. Apesar da arquitetura
fílmica ser apresentada através de recortes, fragmentando-a, e do espaço
percebido no filme não corresponder à totalidade da realidade, a experiência
real de um observador no espaço tem muito a ver com a percepção visual de
uma sequência fílmica. É a ilusão do movimento de um corpo pelo espaço
fílmico que nos leva à ideia de narração ou ficção arquitetônica. O livre
deslocamento pelo espaço representado diminui as distorções entre a
tridimensionalidade do plano real e o plano fictício, bidimensional.

2. Dando asas à realidade

Desde o seu surgimento, o cinema e a cidade mantém uma relação


muito próxima. Exatamente por ter se manifestado junto a um conceito de
modernidade, que estava em expansão naquele momento, principalmente nas
metrópoles, o cinema tomou força por conta da quantidade de espectadores
que haviam nestas cidades. Por se tratar de entretenimento para massas, o
cinema logo se apropriou dessa relação, inserindo-se industrialmente como
representante máximo do espírito da época.

“Fatores de ordem cultural, econômica, política e social também estão


intrinsecamente ligados à forma como as ideias e os espaços fílmicos
são representados. Moldam-se, desta maneira, símbolos banhados
por tais valores e que influenciam de modo real a configuração
espacial arquitetônica e urbana e o cotidiano de seus habitantes.
Quer seja uma localização espacial fictícia ou real, o lugar sempre
está presente como legitimador da transcorrência temporal. Nota-se,
portanto, que desde os seus primórdios as paisagens naturais e as
cidades representadas já se incorporavam ao movimento, à narrativa
e aos trabalhos visuais aprofundados pelo cinema em busca de um
‘realismo’” (p.55)

As imagens do cinema são análogas aos objetos da vida real, possuindo


um forte vínculo com a realidade em que foram obtidas. A capacidade que os
filmes têm de representar o real através da ilusão de movimento convence
mais facilmente os espectadores sobre a legitimidade do que os é apresentado.
Já os recortes do cinema são capazes de direcionar o discurso do todo,
enfatizando qualidades ou omitindo defeitos dos ambientes retratados,
manipulando o sentido do objeto fílmico. O produto final, após esta construção
de significado, afeta diretamente, e de forma eficiente, o comportamento
emocional do espectador, desempenhando um papel de elemento unificador,
onde controla a veracidade dos elementos exibidos e facilita, assim, a
identificação por parte da plateia.

3. Mãos de tesoura

Existem, também, casos interessantes de arquiteturas fílmicas,


principalmente nas situações que são criadas exclusivamente para o seu uso
em filmes, onde há um recorte exagerado da realidade, com o objetivo de
reflexão ou crítica da própria arquitetura ou da sociedade como um todo. Ao se
utilizar da arquitetura e do espaço urbano para a construção de comentários
sobre aspectos psicológicos e sociais, o espaço fílmico manifesta na forma de
pistas visuais que revelam muito mais de suas personagens do que suas falas
e interações, se tornando um veículo de intimidade visual para o espectador. A
arquitetura é retirada de seu contexto amplo e enfatizada, através dos recortes,
no primeiro plano, de modo que se critique um estilo de vida. Desta maneira, a
arquitetura muitas vezes assume até o papel de anti-arquitetura, de
maquiagem, pasteurizada, ameaçadora ou apenas de reflexão do
contemporâneo.
4. Cidades do amanhã

Para a reprodução do futuro parecer consistente e crível no cinema, a


arquitetura exerce um papel fundamental, se utilizando do imaginário para
lançar novos conceitos e formas que prevejam, ou não, o que seriam as
cidades do futuro. Metrópolis, filme de Fritz Lang (1927), é considerado o
grande pioneiro da ficção-científica no cinema, onde concretiza as visões
vanguardistas de Lang e se torna uma enorme influência para os seus
sucessores do gênero.

Certamente o tipo de cidade que encontramos em Metrópolis é o


que mais se repete em se tratando do futuro representado nos filmes,
onde temos a organização estruturada em torno de um tecido urbano
diferenciado e dividido em áreas bem identificáveis: zonas ricas e
pobres, setores de lazer, de trabalho, etc. A diferença entre classes
sociais costuma ser marcante, estando o poder nas mãos de poucos.
Esta centralização do poder é característica e tem seus reflexos nas
acirradas lutas de classes e na organização social como um todo. As
decisões emanam do alto e as ações que garantem o funcionamento
da engrenagem vêm de baixo. Isto se reflete também numa
verticalização do espaço, em que os mais importantes vivem na parte
alta da cidade e a grande massa operária ou escrava vive abaixo,
quando não nos subterrâneos.
Afora a verticalidade, estas cidades costumam ter também sua
horizontalidade povoada por uma série de edifícios-símbolo. As
formas arquitetônicas recorrentes são as das grandes torres, arranha-
céus, peles de vidro, pirâmides e estruturas imponentes de
transporte, como rodovias, pontes, túneis, viadutos e veículos aéreos,
todos incorporados ao espaço fílmico como símbolos dos mais
modernos avanços tecnológicos. Poder e opressão, submissão e
liberdade misturam-se ora como receio, ora como contemplação. A
fronteira entre crítica e admiração é tênue, mas sempre assertiva
acerca da inevitável força do progresso. (p. 136)

Entretanto, não são todas as cidades futuristas do cinema que seguem o


formato de espaço fílmico estabelecido por Metrópolis, com edifícios-símbolo
pontuando a paisagem e com um tecido urbano diferenciado. Cada peça
cinematográfica pode conter entendimento diversos sobre teorias urbanísticas
de suas épocas ou reflexões sobre suas expectativas sobre o futuro. Estas
visões, importantemente subjetivas, são capazes de capturar o espírito do
tempo e do lugar sobre o qual falam, servindo de importantes especulações
sobre a arquitetura e a sociedade.

5. Cão Bravo

Neste capítulo, os limites do próprio cinema são postos para


questionamento. Mesmo quando tempo e espaço são abstratos, deformados
ou fragmentados, os filmes acham um modo de formá-los ou construí-los,
mesmo que de forma imaginária. Nosso senso espacial é realçado pelo
recurso dramático da arquitetura fílmica que, em sua capacidade de referenciar
o espaço-tempo, sempre intensifica sensações e produz atmosferas, trazendo
algo à tona, desde um fundo histórico à uma nova apreensão do espaço.
Portanto, quando a arquitetura fílmica se vê livre de seu papel de referência,
exerce uma função mais ativa nas interações retratadas no filme.

O reducionismo adotado na caracterização do cenário nos permite ver


a sociedade como um todo, exterior e interior, ruas, casas e pessoas,
indo do coletivo ao privativo, à intimidade dos lares sem obstáculos,
numa onipresença perturbadoramente marcante (Figura 188). Este
desnudamento do cenário direciona a atenção para a atuação,
permitindo ao mesmo tempo que a história e o espaço fílmico
penetrem na mente do espectador diretamente, sem obstruções,
despindo-o de suas próprias referências espaciais. (p.164)

De qualquer forma, o que se utiliza como referência neste caso é a


própria experiência de mundo do espectador, que intensifica sensações e gera
uma percepção de algo que, anteriormente, não estaria em evidência.
Isto mostra que, o realismo absoluto para a representação fílmica não é
estritamente necessário para assimilação do produto final. É apenas uma
alternativa socialmente moldada e aceita ao longo do tempo. A não vinculação
da forma à uma percepção realista resulta em um trabalho criativo sem o
compromisso da reprodução dos fenômenos naturais.

Propostas como esta, que exploram visões alternativas desmontam


nossos pré-conceitos quanto à representação espacial e nos
aproximam cada vez mais de nossas próprias vivências do espaço ao
questionar padrões e estabelecer novas conexões e possibilidades
para a arquitetura fílmica. (p. 180)

O forte poder visual que domina cada plano permite à arquitetura desempenhar
um papel dramático em vários níveis e muitas reflexões podem ser feitas,
portanto, a partir dos espaços propostos pelo cinema. A arquitetura fílmica
abrange, deste modo, as características não apenas espaciais, mas de todas
as estruturas socioculturais em que está imersa, projetando-se na tela como
figura multidimensional da vida.

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