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Gisele Girardi
Doutoranda em Geografia pela Universidade
de São Paulo e professora de Cartografia no Curso de Geografia
da Universidade Federal do Espírito Santo
ada. Na primeira grande obra desta corrente, vista como uma técnica para ser usada quan-
A geografia – isso serve, em primeiro lugar, do necessário, caso contrário é melhor deixar
para fazer a guerra, de Lacoste (1988), origi- nas mãos de cartógrafos profissionais e de um
nalmente publicado em 1976, muitas das críti- pequeno número de geógrafos/cartógrafos
cas ao método, procedimento e posições polí- acadêmicos com disposição a pesquisar num
ticas da Geografia até então constituídas, reca- campo essencialmente técnico, revela uma das
em sobre os mapas e as atividades cartográfi- mais contundentes realidades da atual rela-
cas no âmbito dos trabalhos geográficos, reve- ção Geografia/Cartografia.
lando as relações de poder institucionalizadas
na prática cartográfica (tanto na “geografia dos O momento da ruptura entre a Geografia e a
professores” quanto na “geografia dos estados Cartografia parece apontar um paradoxo: quan-
maiores”, para usar os termos do próprio do a Geografia se engaja no movimento de
Lacoste). transformação social – e aí falamos especifica-
Também há, neste momento, em nível inter- mente da Geografia Crítica – ,tem como im-
nacional, a estruturação da Cartografia como portante suporte teórico as idéias estruturalis-
campo específico do conhecimento3 requeren- tas; é no âmbito desta corrente filosófica que
do para si o domínio de todas as etapas do pro- também são construídas importantes teorias
cesso cartográfico, desde a confecção até o es- sobre comunicação, verbal (tal como a lingüís-
tudo dos usos do mapa. tica) ou não (artes visuais, design, etc.).
Nesse processo, a Geografia deixaria de ser Parecia haver, então, condições para a elabo-
construtora e passaria à condição de usuária dos ração de análise crítica das representações car-
3. Sobre este aspecto é mapas, o que poderia fornecer fundamentação tográficas pela Geografia a partir da tese do
importante situar as
principais discussões
para uma crítica das representações cartográfi- mapa como veículo de comunicação dos fenô-
acerca do estabelecimento cas. No entanto a Geografia relegou-se ao pa- menos geográficos, visto que havia entendi-
da Cartografia como
ciência. Nas décadas de pel de consumidora de mapas. mento de método comum na ciência geográfi-
70/80 apontavam-se três
concepções sobre a A distinção aqui feita entre consumo e uso ca e nas chamadas ciências da comunicação.
natureza científica da pauta-se na observação de como são tratados Porém, é justamente este o momento em que a
Cartografia: ciência formal,
defendida por Kretshmer, os mapas no trabalho geográfico. Temos como separação – no espírito apontado por Guelke,
entre outros, na qual se
enfatizava a forma da consumo o mapa-ilustração, muitas vezes pre- anteriormente citado – se efetiva.
representação – e não o
seu conteúdo – como
sente apenas para legitimar a natureza geográ- É importante apontarmos aqui o único gran-
campo científico da fica da obra (situação muito comum nos livros de projeto, nesse sentido, levado a cabo, que
Cartografia; ciência
reflexiva, defendida por didáticos, por exemplo); temos também o mapa- foi a Semiologie graphique, de Jacques Bertin
Salichtchev, entre outros,
para quem a Cartografia só cópia, infelizmente ainda muito comum e mui- (1967), na qual se encontram sistematizadas as
se realiza na interface com
as Ciências Sociais e
to marcante no ensino de Geografia nos níveis regras para a construção de imagens racionais,
Naturais; e Ciência da fundamental e médio. O uso tem o sentido de as únicas cabíveis, segundo o autor, na comu-
Comunicação, defendida
por Morrisson, entre outros, emprego consciente de algo, o que pressupõe nicação de informações de caráter científico.
na qual era considerado o
campo da comunicação conhecimento crítico do que se está utilizando Porém, segundo nos informa Dosse (1994, p.
como a base científica da e para quê. 359),
Cartografia. A Associação
Cartográfica Internacional, Guelke (1981, p. 5), ao afirmar que
no entanto, nunca
considerou a Cartografia dessa reflexão [la graphique como linguagem,
como “ciência”. A definição
de 1966 aponta-a como
muitos geógrafos pararam de ver mapas e o seguindo o modelo da lingüística estrutural]
“conjunto de operações uso destes como uma ferramenta vital ao en- emergiu uma prática, a de uma Cartografia
científicas, artísticas e
técnicas” e a de 1991 tendimento geográfico, apesar de completa- mais analítica que descritiva, que funciona na
como “disciplina”. Outros
elementos para essa mente preparados para ver a Cartografia como EHESS [École des Hautes Études en Sciences
discussão podem ser
encontrados em
uma técnica potencialmente valiosa, ligada Sociales] como produção de serviços presta-
Salichtchev (1970 e 1983), aos métodos quantitativos e ao sensoriamento dos às ciências sociais, mas que não é verda-
Kanakubo (1990) e Girardi
(1992). remoto... [e que] a cartografia muitas vezes é deiramente um lugar de produção de idéias,
Mapa como Mapa como modelo Mapa como Mapa como fonte
veículo de da realidade; conjunto variável de informa-
informações método científico de signos. ções, dependendo
espaciais. de investigação. das características
do usuário.
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anos 80/90
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nesse caso – assume a tarefa de traduzir os as- logia, sendo uma ciência histórica, é que incide
pectos morais e ideológicos de uma sociedade sobre os conteúdos. O estudo dos mitos – a
(Barthes, 1982). Mitologia – faz parte tanto da Semiologia (for-
Tal função aproxima-se bastante daquela mal), quanto da Ideologia (histórica), uma vez
apontada como metalinguagem cartográfica por que estuda “idéias em formas”.
Andrews (1990, p. 15): “a metalinguagem [car- O mito é um sistema semiológico segundo,
tográfica] pode ser abstrata, geral, condicional, que se constrói a partir de uma cadeia semioló-
performática ou emotiva e pode implantar to- gica preexistente. As matérias-primas da fala
das estas qualidades na linguagem-objeto.” (ou mensagem) mítica, por mais diferentes que
A retórica da imagem é para Barthes (1982) sejam inicialmente (pode ser um texto, uma
o conjunto dos conotadores, ou seja, dos ter- imagem, um gesto, uma obra, uma roupa...),
mos que, a partir do suporte dado pela imagem quando são captadas pelo mito reduzem-se a
denotada ou literal, definem a intenção da ima- uma simples função significante.
gem. Assim, a retórica aparece como a face Para Barthes (1993) o significante (expres-
significante da ideologia. são material) é ao mesmo tempo o termo final
Sendo o mapa um suporte de comunicação do sistema lingüístico, ou do sistema semioló-
que contém imprescindivelmente estes dois gico primeiro – chamado SENTIDO – e o ter-
aspectos – o lingüístico e o icônico – essa or- mo inicial do sistema mítico – denominado
ganização proposta por Barthes parece bastan- FORMA. O significado, tanto no sistema
te pertinente para sustentar a leitura de mapas. lingüístico (primeiro) quanto no mítico (segun-
Essa organização vai também aparecer no do) é chamado CONCEITO (Figura 3).
Mitologias, onde há a formulação dos O mito opera transformando um sentido ple-
conotadores como mitos. Para Barthes (1993), no numa forma vazia, o sentido está contido na
o “mito é uma fala” e, portanto, um ato indivi- forma, porém empobrecido, sem seu valor ori-
dual do uso da língua; é um sistema de comu- ginal, pois a função do conceito mítico não é
nicação, uma mensagem sob a qual incide um eliminar o sentido, mas sim deformá-lo, aliená-
uso social. Qualquer fala poderia ser um mito, lo. O vazio da forma permitirá a locação de um
porém considera-se mito uma mensagem que conceito, com novo contexto, com nova histó-
visa à naturalização da cultura. ria. O mito, assim, é uma fala (mensagem) rou-
O autor considera a Semiologia somente uma bada e restituída. Essa mensagem é definida
ciência das formas, e que, portanto, só comporta pela sua intenção muito mais do que pela sua
a análise destas, não o seu conteúdo: “seu cam- literalidade (Barthes, 1993).
po é limitado, tem por objetivo apenas uma lin- No caso dos mapas não será então a relação
guagem, só conhece uma operação: a leitura ou símbolo-legenda estritamente que deveremos
deciframento” (Barthes,1993, p. 136). A Ideo- focalizar, já que este é o aspecto literal da re-
SISTEMA
SEMIOLÓGICO
{ expressão
sentido
conceito
{
PRIMEIRO
pectos icônicos, lingüísticos, espaciais, tempo- ográfico e é nesse sentido que buscamos dar
rais e a maneira como são articulados no “dis- nossa contribuição.
curso” ou, em outras palavras, compreender o À guisa de conclusão deste artigo, citamos
seu sentido. Harley (1991, p. 11), que diz:
Posteriormente, poder perceber sua intenção,
suas conotações possíveis, enfim, sua retórica, dos esforços da Cartografia ‘científica’ para
que poderá dizer a quem, para que e em que converter cultura em natureza e para ‘natura-
contexto está a significação desta representa- lizar’ a realidade social sobrou um discurso
ção, ou perceber o mito que propaga. retórico inerente. [...] Retórica é parte do
Assim, um procedimento possível de leitura modo como trabalham todos os textos e to-
de mapas seria: dos os mapas são textos retóricos. Novamen-
(1) análise do primeiro sistema semiológico: te nós devemos desmantelar o dualismo arbi-
língua e código cartográfico, e nesse ponto ca- trário entre ‘propaganda’ e ‘verdade’ e entre
berá a análise formal, identificando como os modos de representação ‘artística’ e ‘cientí-
repertórios icônicos foram mobilizados para a fica’ como eles são encontrados nos mapas.
formação do signo “mapa”; este item também Todo mapa empenha-se em estruturar sua
comporta a análise do lugar do mapa – se é mensagem no contexto de uma audiência.
mensagem principal ou secundária no contex- Todo mapa estabelece um argumento sobre o
to gráfico no qual ocorre – bem como sua fun- mundo e são proposicionais por natureza.
ção declarada ou implícita; Todo mapa emprega o plano comum de retó-
(2) análise do segundo sistema semiológico: o rica tal como invocações de autoridade (es-
mito, identificando como se dá o processo de pecialmente nos mapas ‘científicos’) e ape-
esvaziamento do sentido e a locação de novo lam ao leitor potencial através do uso de co-
conceito, tentando nomear esse novo conceito4. res, decoração, tipografia, dedicatória ou es-
critos de justificação de seu método. [A pre-
PALAVRAS FINAIS ocupação não é] privilegiar a retórica sobre a
Investigar maneiras diferenciadas de abordar os ciência, mas dissolver a distinção ilusória en-
mapas pode contribuir para a desmistificação tre os dois na leitura tanto dos propósitos so-
desse objeto na produção do conhecimento ge- ciais quanto do conteúdo dos mapas.
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RESUMO RÉSUMÉ
Este artigo apresenta breves considerações sobre a Cet article présente de brèves considérations sur la
relação da Geografia com a Cartografia, identifican- relation de la géographie avec la cartographie; il
do o momento da ruptura entre esses dois campos cherche à établir le moment de la rupture entre ces
do saber e, na busca da superação dessa ruptura, deux champs du savoir. Dans la recherche du dépas-
apresenta-se a trajetória da elaboração de um con- sement de cette rupture y est présentée la trajectoire
junto de procedimentos de leitura crítica dos mapas, de l’élaboration d’un ensemble de procédés de lec-
que possibilite a leitura da sociedade por meio de ture critique des cartes, ce qui permet la lecture de la
suas representações cartográficas, pautada na société à travers ses représentations cartographiques,
Semiologia e linguagem cartográfica, e utiliza como utilisant les outils théoriques de la sémiologie et du
referencial metodológico as Mitologias de Roland langage cartographique. Le référentiel methodolo-
Barthes (1993). gique utilisé est celui du livre Les Mythologies de
Roland Barthes.
PALAVRAS-CHAVES MOTS-CLÉS
Cartografia – Leitura de mapas – Ensino superior Cartographie – Lectures des cartes – Enseignement
em Geografia supérieur de la Geographie