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04/08/2021 Rebeca aterrissa nas tripas de Borba Gato | Opinião | EL PAÍS Brasil

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Rebeca aterrissa nas tripas de Borba Gato


A superação é a narrativa da Casa-Grande para encobrir a falta de políticas públicas para aqueles que
o Brasil mantêm na Senzala

A ginasta Rebeca Andrade depois de receber a medalha de ouro em Tóquio. LINDSEY WASSON / REUTERS

ELIANE BRUM

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04/08/2021 Rebeca aterrissa nas tripas de Borba Gato | Opinião | EL PAÍS Brasil
03 AGO 2021 - 18:18 BRT

Rebeca é linda e, além de linda, Rebeca voa. Evocou o melhor do Brasil num momento em que o Brasil
OUTROS TEXTOS DE
exibe todas as suas tripas em praça pública, a começar por Jair Bolsonaro, nascido e criado nos intestinos ELIANE BRUM

do país que mais longe levou a escravidão e o genocídio continuado dos pretos e dos indígenas. Me alegro
com Rebeca e tudo o que ela representa: a menina negra criada na favela por uma mãe solo que alcançou a
medalha olímpica ao som de funk, apesar de ter toda a estrutura de um país contra ela. E fez tudo isso no
momento em que o Brasil que tem vergonha —tem vergonha de si mesmo. É maravilhoso e precisamos
Vai ter golpe?
muito de beleza. Mas sinto incômodo com a narrativa da “superação” e sobre como a “glória” de Rebeca
pode estar sendo usada, em muitos casos com boa intenção, para encobrir as tripas. Ou para encobrir que
o Brasil ainda é muito mais de Borba Gato do que de Rebeca. Enquanto Rebeca voava como exceção, a
violência corria solta na senzala que o Brasil nunca deixou de ser e, com Jair Messias Bolsonaro, ampliou o
sangue no chão.
Eduardo,
preciso te
De modo algum quero reduzir a realização de Rebeca. Ela fez uma enormidade. E ter uma menina preta da contar que teu
pai e a
favela fazendo enormidades é uma mensagem poderosa para outras meninas pretas e um recado certeiro
Amazônia estão
para o Brasil escravagista. Mas a narrativa de superação é prima-irmã da narrativa da meritocracia. Ela ameaçados de
enaltece o indivíduo que teria conseguido por seu próprio esforço pessoal um feito extraordinário, uma morte

espécie de milagre individual do herói, no caso a heroína, que vence todas as adversidades por uma
extraordinária força de vontade. Em mais de 30 anos como jornalista, nunca vi nenhum ser humano assim,
nem mesmo os considerados gênios. É claro que há méritos pessoais, mas eles só se realizam porque por
algum caminho houve oportunidades. Certamente um perfil à altura da vida de Rebeca, de sua família e de
seu país vai mostrar as oportunidades e encontros decisivos que Rebeca teve na vida e contextualizar sua Congresso
decide extinguir
realização no campo do coletivo e da partilha, da comunidade e dos (escassos) programas de Governos.
a Amazônia

O que quero dizer é que não acredito em superação, acredito em políticas públicas. Sempre que se louva o
indivíduo como produto de si mesmo, se enaltece o capitalismo que produz uma desigualdade tão abissal que nega à maioria
das meninas negras a chance até mesmo de se alimentar de forma saudável. A narrativa da superação comete ainda uma
violência adicional contra os já tão violentados, a de que poderiam ter sido Rebeca se tivessem se esforçado mais, a de que
mães sozinhas, às voltas com o sustento e os filhos, aviltadas de tantas formas, teriam “produzido” Rebecas se tivessem se
dedicado mais. Também por Rebeca e por tudo o que ela representa, porque representa, essa narrativa feita seguidamente
em nome do bem precisa ser colocada abaixo como as estátuas dos assassinos. Não devemos usar Rebeca contra todas as
Rebecas. Nem mesmo quando precisamos muito de boas notícias e de redenção.

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E, assim, obrigatoriamente, precisamos falar da estátua de Borba Gato. Apenas alguns dias antes do salto de Rebeca, Paulo
Lima, conhecido como Galo, e outros ativistas botaram fogo na estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo.
Realizaram o ato em nome da “Revolução Periférica”, duas palavras que colocadas juntas assustam bastante a minoria mais
rica do Brasil. Galo é a liderança mais interessante surgida no Brasil urbano do centro-sul nos últimos anos. Articulador do
movimento dos entregadores antifascistas, “preto e pobre”, Galo representa os mais aviltados entre os aviltados pelo
capitalismo contemporâneo, que assumiram particular protagonismo no momento em que fizeram a ponte entre aqueles
que podiam fazer home office, durante a pandemia, e os supermercados, as lojas, as farmácias, os restaurantes etc.,

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04/08/2021 Rebeca aterrissa nas tripas de Borba Gato | Opinião | EL PAÍS Brasil

cortando as cidades e arriscando-se nas ruas e avenidas infectadas pela covid-19 como um exército de escravos de um
mundo distópico. São também eles a fazer o corte entre a suposta redenção tecnológica dos apps e mostrar que ela nada
mais é do que uma nova fase da exploração do corpo dos trabalhadores. Além de todo o conteúdo político do movimento,
esse grupo de motoboys colocou-se frontalmente contra o fascismo no Brasil.

A repercussão ao incêndio da estátua de Borba Gato tirou a máscara mesmo de quem a usou corretamente durante a
pandemia e revelou todo o conservadorismo das elites brasileiras, mesmo as intelectuais. E de várias maneiras, das mais
explícitas às mais sutis. Anunciar-se como antirracista, sim, mas botar fogo numa estátua, mesmo que a estátua
homenageie, na figura de Borba Gato, os bandeirantes que destruíram, escravizaram e mataram negros e indígenas a partir
do século 16, isso não. Não porque é arte, não porque seria o mesmo que negar a história, não porque supostamente
colocaria pessoas em risco, todos esses argumentos foram enfileirados de forma elegante. Não porque tudo isso precisaria
ser discutido publicamente, como se vários grupos e parlamentares não estivessem tentando fazer isso há anos, sem
sucesso. Não pelas mais variadas razões. E, como de hábito, houve quem afirmasse que os ativistas não entendem nada de
história porque Borba Gato nem seria tão ruim assim. O último argumento a ser lançado como pedra é sempre o da
ignorância dos protagonistas que ousaram agir sem pedir autorização ou consultoria a quem realmente entende de História,
assim, com “H” maiúsculo.

O espanto não deveria ser provocado pelo ato de incendiar a estátua de Borba Gato, mas pelo fato de que ela continua lá,
depois de tudo. Antes de seguir, preciso dizer algo sobre o fogo. Na Amazônia, o fogo é instrumento dos destruidores. O fogo
criminoso queima a floresta, incinerou grande parte do Pantanal, incendiou as casas e as ilhas de ribeirinhos expulsos pela
hidrelétrica de Belo Monte e, neste momento, tem incendiado as casas de lideranças indígenas e camponesas, ateado pelas
milícias armadas dos grileiros, base de Bolsonaro na floresta. Não gostamos do fogo que queimou o Museu da Língua
Portuguesa (agora finalmente reinaugurado) nem do fogo que queimou o Museu Nacional nem do fogo que há pouco
queimou a Cinemateca, estes sim incêndios criminosos, patrimônio público deixado para queimar. Não gostamos de fogo,
mas não serei eu a dizer como aqueles que têm a história gravada a ferro —e fogo— no corpo devem lutar. O que quero dizer
é que, na Amazônia, sabemos muito bem que, no fogo contra fogo, é sempre o mesmo lado que acaba queimado porque, no
Brasil, a matéria morta das estátuas vale mais do que a carne viva dos negros e dos indígenas.

Este é outro ponto do nó. Borba Gato pegou fogo, mas quem queimou foi Galo. Ele assumiu a autoria do ato e foi preso. Sua
mulher, que estava em casa quando a manifestação política foi realizada, chegou a ser presa e só depois foi libertada. A
prisão é agora uma violência a mais em seu corpo preto. No momento em que este texto é publicado, Galo segue preso. O
clamor para que Galo seja solto é muito menor do que deveria porque a maioria dos que costumam se declarar antirracistas
querem que aqueles que lutem o façam com boas maneiras. Queimar estátuas seria de mau gosto porque, em alguma
camada subconsciente, quem tem privilégios tem medo de até onde pode chegar o fogo. Então, por favor, vamos discutir
tudo isso ao redor de uma mesa enquanto você segue arriscando o seu corpo e eu o compenso com uma boa gorjeta.

No lado oposto, também há um problema. Como posso dizer a Galo o quanto seu gesto foi extraordinário se não é o meu
corpo que está em risco, mas sim o dele. Penso que é necessário ter cuidado quando quem vai preso é o outro. Se vou dizer a
ele que, sim, que gesto histórico ele fez, preciso estar disposta a botar meu corpo ao lado do dele, a dividir a prisão com ele. E
a questão é que, sendo branca de classe média, isso jamais vai acontecer. Ou jamais vai acontecer como acontece com ele. O
meu risco é infinitamente menor do que o de Galo. Então, não basta bater palmas a ele. Se é para de fato se colocar ao lado
de Galo na luta contra os Borbas Gatos contemporâneos, num estado em que a sede do Governo se chama Palácio dos
Bandeirantes, é preciso que estejamos dispostos a pagar o preço de protegê-lo das arbitrariedades que virão. O que quero
dizer é que não dá para fazer rebelião com o corpo dos outros.

Um dia antes de Rebeca Andrade ganhar a primeira medalha de prata olímpica da ginástica artista brasileira nasceu Suzi,
uma menina também preta. Ela foi arrancada dos seios de sua mãe preta logo que saiu do útero, no Hospital Universitário,
em Florianópolis, porque o Conselho Tutelar decidiu que Andrielle Amanda dos Santos não tem condições de criá-la. Adrielle
tem apenas um ano a menos que Rebeca, chegou a viver na rua e usar drogas, perdeu uma filha ainda bebê e perdeu a tutela
de duas outras. Segundo reportagem do portal Catarinas, ela foi humilhada durante o parto e impedida de seguir
amamentando Suzi, que seguirá para uma instituição. Quando tentou vê-la, disseram que as visitas estavam proibidas.

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Também os avós paternos foram impedidos de registrar o bebê. “Na senzala, levavam as nossas crianças. Daí, os nossos
seios, cheios de leite, foram romantizados, e vejam só, nos chamaram de mães de leite, de mães pretas, apesar das nossas
crianças ancestrais terem sido vendidas, sequestradas”, escreveu em suas redes sociais a professora e intelectual Jeruse
Romão. A retirada da filha dos braços da mãe é considerada por movimentos sociais que apoiam Andrielle como um
sequestro pelo Estado baseado em racismo institucional.

Estátua em homenagem ao bandeirante Borba Gato, em São Paulo, danificada após incêndio. LELA BELTRÃO

No domingo em que Rebeca fez o salto que a colocou no ponto mais alto do pódio olímpico, Galo estava na prisão por
queimar uma estátua que celebra a escravidão e o extermínio dos corpos dos ancestrais de Rebeca, uma estátua que celebra
o avanço sobre a natureza em busca de riquezas como o ouro da medalha de Rebeca. Uma estátua que continua lá. Suzi e
Andrielle estavam apartadas, a filha preta amputada da mãe preta como nos tempos da senzala. Em vez de políticas públicas
para amparar a mãe em dificuldades, sequestro institucional. Sim, o salto de Rebeca é lindo e significa, mas não há nenhuma
superação. O Brasil segue esmagando os mesmos corpos, queimando os mesmos corpos, atravessando à bala os mesmos
corpos. Não aviltemos Rebeca e seu salto forjando uma mistificação redentora que é só isso mesmo, mistificação. Para cada
Rebeca que salta, há milhões de outras agarradas pelas pernas para que não possam saltar e violentadas de várias maneiras,
até mesmo quando dão à luz a suas filhas pretas.

Borba Gato não é estátua à toa. Ela segue lá porque representa. Quem está na cadeia não são seus sucessores
contemporâneos, mas aquele que, em legítima defesa, reagiu a tudo o que os bandeirantes e a exaltação a eles representam.
Quem está na cadeia são os que sempre estiveram na cadeia. Quem está morrendo é quem sempre foi assassinado. Borba
Gato está tão vivo quanto sempre e sua mais mal acabada versão é hoje presidente do Brasil. Se Rebeca conseguiu saltar é
por representar séculos de resistência contra todas as formas de morte promovidas e apoiadas pelo Estado brasileiro e suas
elites. Não há redenção. Não há superação. Não há meritocracia. Há luta. E há luto. E o luto tem a cor de Rebeca.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de sete livros, entre eles ‘Brasil, construtor de ruínas: um olhar
sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago).

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Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

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