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1.

Já vou logo avisando: esta história é minha. Por isso é que queria saber, que
tenho muita vontade de saber o que era aquele calor morno, aquele queimor tíbio entre suas
pernas enormes. Talvez essa seja minha primeira lembrança. A daquele fogo que esquentava
lentamente enquanto eu fingia dormir. Os barulhinhos. Havia mesmo barulhinhos? Os pequenos
movimentos, sem um ritmo constante e definido. Havia mesmo esses movimentos? Às vezes
eram bruscos, às vezes lentos, depois nervosos, depois acho que nem existiam mais. Talvez essa
seja minha primeira lembrança.

A casa, as paredes, as árvores no quintal, os muros, os armários em que se guardava


comida, os pratos, os talheres, o silêncio, ele, seu rosto, suas mãos, tudo era grande. Uma
grandeza sem sofisticação. Só uma não era assim rude: a da estante de livros. Não que fosse
delicada. Contudo, a limpeza tão comum em todo o lugar era algo que dava àquele móvel um
sentido diferente. Não sei se consigo explicar. Em toda a casa, o cheiro e o aspecto de limpeza
davam a objetos como a mesa, os armários, os copos e panelas, os poucos quadros pendurados
na parede; e a lugares como a cozinha, o banheiro, os quartos e corredores uma aparência e um
odor de honestidade. Na estante, não.
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Claro! Era isso mesmo. A casa austera continha uma higiene que parecia asséptica,
correta, honestíssima. Até a luz! A própria luminosidade, imaginem só. Nem mesmo a iluminação
trazia luxos ao lugar. Agora posso entender que a luz parcimoniosa que clareava cada um dos
cômodos da casa, enchendo os cantos de sombras tênues e tranqüilas, era também uma
linguagem que servia para antecipar tudo aquilo que iria um dia acontecer. Ou melhor: tudo aquilo
que já estava acontecendo, só que eu não percebia. A mornura de suas pernas que se enfiavam
no meio das minhas através das dobras dos joelhos. O silêncio enorme em todos os lados. A
grandeza dele, imensa, aquele seu polegar muito grosso que roçava minha testinha, arredando
para os lados meus cabelos lisos. O que seria aquilo? Carinho? Cuidados? Afagos? Um gesto
mecânico, inconsciente?

O que seria de fato tudo aquilo? As cores suaves da casa, a limpeza pormenorizada,
incapaz de despertar uma suspeita que fosse. A simetria das poucas árvores no quintal, o jardim
com flores absolutamente controláveis, o cimento rodeando cada porção de terra, nada que
pudesse sequer ameaçar uma transgressão. O que seria de fato tudo aquilo? Aquele lugar,
aquelas sombras, aquelas três pessoas que habitavam os mesmos cheiros e cores e silêncios. O
que seria de fato tudo aquilo? Os armários em que nada podia estar fora de seu lugar, as roupas
de cama sem a mínima ruga, as panelas areadas, os copos brilhando. O que seria tudo aquilo?
 

Não. Nada disso. Não é nada disso. A pergunta talvez não seja esta. Talvez o que
interesse de fato não seja compreender o que seria tudo aquilo, mas o porquê de tudo aquilo. Sim.
Por que toda essa ordem se, no meio da sala, bem de frente para a porta principal da casa
enorme, estava aquela estante cheia de livros? Por quê? Não. A estante também era limpa,
cheirosa, organizada. Mas, e isso eu não consigo entender, a impressão que se tinha era de que
tudo isso que era capaz de trazer para o lugar uma aparência correta e honrada, na estante se
tornava sensual e excessivo. Aquela estante enorme – com prateleiras que tocavam dois espelhos
laterais em cada parede – parecia se desdobrar ao infinito.

Naquele móvel fincado na casa, tudo se desorganizava. Nela, as sombras que davam a
mesas e cadeiras uma impressão de sisudez e opressão pareciam querer esconder o que devia
ser escondido. O cheiro de óleos que saía de outros móveis sem se misturar a nada, quando
combinado ao fedor dos incontáveis livros velhos, vinha até minhas narinas carregado de um
aroma depravado, quase igual àquele que sentimos em banheiros masculinos de bares. O brilho,
então, parecia significar o indizível. Não era intocado e moral como o que nos acostumamos a
encontrar em objetos polidos. Era escandaloso, obsceno, insultador, pejorativo, vergonhoso,
ardente.

Apenas por esses pequenos contrastes, e mesmo que esta história seja minha, não sei, 2
ainda agora não sei como pude sobreviver a tudo aquilo.

2.

Meu nome? O verdadeiro? Que bobagem é esta, neném. Call me Ishmael. É o que eu
gostaria de dizer, quase anunciando uma epopéia. Mas o nome que nos dão nem sempre é
aquele que merecemos ter, ou que conquistamos. Metonímia. Sim, um nome pode ser
conquistado. Não é então que dizemos: nome de guerra? A batalha está aí, neném, espalhada
pela cidade. Nos tetos e nas casas, nas velas e nas embarcações, nas rugas e na velhice, no
Cristo e no redentor, na idéia e no conteúdo, em tudo, neném. Em quase tudo. A gente tem que ir
levando, não tem?

Ninguém merece uma confusão de nomes dessas, mas é assim mesmo que as coisas
deveriam ser. Mudando sempre, pra poderem se explicar. Eu mesma já tive vários. Nomes,
sobrenomes, epônimos, apodos, alcunhas, epítetos, apelidos. Já fui de um lado a outro: doce e
selvagem, bela e fera, menina e mulher. Mas hoje estou assim mais simplesinha, arrefecida. Por
 

isso, passei só um batonzinho. Vermelho, muito igual mesmo ao que Anacê me pintou
certa vez.

Pervertida, aquela menina, me ensinando tanta idéia não porque soubesse, mas porque
tudo o que entendia era um eco daquilo que tinha dentro de si mesma, com depravações
indizíveis e perigosas. Dessa vez inesquecível, ela me chamou do jeito que eu mais gostava de
ser chamada. Sim, eu tinha onze anos e muita coisa que Anacê fazia não era novidade para mim.
Do mesmo modo que muita coisa que eu fazia não era novidade para ela. E olha que eu já
aprontava um monte. Então que, nesse dia, sendo umas cinco horas da tarde, a Anacê passou lá
em casa e pediu pra dona Isaura se eu não poderia dormir na casa dela pra fazer companhia. Era
um pedido da titia, já que titio ia viajar e a casa não podia ficar assim tão desprotegida.

Dona Isaura, ou Isaurita, olhou pra ela e disse que tinha que antes perguntar para o senhor
marido dela, mas achava que não ia haver problemas e, se a prima Ana Carolina esperasse, em
pouco mais de uma hora ele estaria em casa para dar sua aprovação. Ou desaprovação, não é
mesmo? Anacê topou e fomos para o meu quarto com a prima fazendo segredos impenetráveis
sobre o que tinha em mente para aquela noite. Eu achava que o que ia acontecer era mesmo a
falta de graça que já tinha acontecido várias vezes: eu só ia mesmo dormir com a titia e com a
Anacê. Ou melhor: ia dormir com a titia, na cama daquela mulher que cheirava alfazema, com a 3
missão de não deixá-la desconfiar que sua filhinha Anacê estava no quarto dela sendo fodida na
xota e no cu com o travesseiro entre os dentes, pra não fazer muito barulho.

Aquela sacana da Anacê! Uma piranhinha linda, cabelinho liso com franjinhas,
escorridinho, preto. O corpo era uma coisa que, naquele tempo, eu achava maravilhoso. Tudo o
que eu queria! A pervertida, torta. Nas tardes que passávamos juntas, ouvindo MPB e Gênesis,
havia sempre uma hora em que ela colocava o dedo na ponta do narizinho e susurrava Psiu!
Depois, dando pulinhos, corria pela casa pra ver se estava tudo calmo. Então, com uma graça que
só a Anacê sabia ter e que eu sabia imitar, voltava e fechava cheia de alegria a porta do quarto e
dizia Não faz barulho, viu.

Depois, ela me dava um selinho na minha boquinha de apenas dez anos, encostava a sua
cabeça dela em dois travesseiros macios, tirava a calcinha de algodão, abria as pernas e dizia
Vem! Anda, vem logo! Então, eu ia, com minha lingüinha que ainda aprendia a ser serpente. Ia
lamber a bocetinha cheirosa de uma Anacê que mexia de um lado pro outro, quase rasgando sua
sainha de pano. A chupação não demorava muito. No máximo, uns cinco minutos, com a priminha
linda e suadinha gozando horrores e trincando os dentes em um daqueles travesseiros enormes.

Corada, Anacê respirava forte, virando-se lentamente na cama de um lado para o outro,
enquanto eu não sabia o que fazer. Da primeira vez em que aconteceu, tudo me pareceu irreal.
 

Se eu gostei? Deixa eu pensar... Não vou mentir. Gostei. Gostei tanto que aprendi rapidinho e
ficava louca para repetir. Era um vício. Já ia pra casa da titia numa ansiedade maluca, esperando
a Anacê dar seus pulinhos de felicidade. Mas eu gostava não porque aquilo fosse a minha praia.
Meu negócio sempre foi pau, neném. Cacete, caralho, rola. Disso eu sempre soube. Eu só
gostava de chupar a xoxota da Anacê porque sabia também que tudo aquilo era impróprio,
pervertido, imoral, indecente.

Mas, naquele dia, eu não podia imaginar o que a Anacê ia aprontar.

3.

Uma palavra une todos os infernos que vivi. Uma palavra pequena e intransigente. Tudo
de decisivo e trepidante em minha vida sempre esteve ligado a ela. Para algumas pessoas, tenho
que reconhecer, trata-se de uma palavrinha necessária. Ou seja: já vou afirmando que a palavra
está imune, livre. Sem preconceitos, meu Deus! Aceito qualquer coisa. Digo isso porque, no ano
em que tentei freqüentar as aulas de jornalismo, depois de passar em primeiro lugar no vestibular
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sem estudar quase nada, assustei-me ao encontrar uma professora que simplesmente proibiu o
uso de uma forma verbal nos textos dos alunos.

Segundo a fulana, uma tal Elisa por quem desde o primeiro dia de aula senti uma ojeriza
tremenda, o uso de gerúndios era o bastante para mostrar se o sujeito escrevia bem ou mal.
Então, eu perguntei Por quê? Elisa, que era uma dessas jornalistas tiradas a intelectuais e usava
comigo uma forma de tratamento incrivelmente preconceituosa para alguém que gostava de ser
sempre politicamente correta, olhou pra mim por cima de uns óculos que para ela deveriam ser
tão imprescindíveis quanto as argolas pesadíssimas que trazia sempre penduradas nas duas
orelhas, e disse Olha, o gerúndio é um modo verbal que mostra que as coisas ainda permanecem
em curso. Entende?, a prof me perguntou, para depois continuar: As coisas estão acontecendo. E
demorando no sufixo: Aconteceeeeendo, compreendeu?

Ai, meu Deus! Meu pai eterno. Se eu compreendi? Olha, meu sonho sempre foi me livrar
das coisas, das implicâncias, das cismas. Mostrar que eu podia ser quem eu era em qualquer
lugar, fosse esse lugar um puteiro ou uma universidade. Então que comprei muita briga e deixei
de ganhar muita grana para poder sentar das 7 às 10 e meia da noite num banco de escola e
fazer jornalismo. E agora vinha uma baixinha daquelas me dizer que gerúndio era modo verbal.
Santa paciência! Pra tudo tem limite, né. E a Elisa, uma besta de uns 32 anos que tinha uns peitos
bem bonitos, só pra você perceber a completa inexistência de xenofobia de minha parte com
 

relação a essa beltrana, olhou pra mim e continuou Um jornalista competente, meu bem, deve
ater-se aos fatos. E os fatos, principalmente para o texto impresso, estão no passado, já
aconteceram. Usar o gerúndio, portanto, seria dizer que eles ainda estão (e lá vinha o sufixo de
novo!) aconteceeeeendo.

Dai-me forças, senhor dos renegados. Dai-me coragem, senhora dos esquecidos. Pela
coroa de Dadá! Será mesmo preciso agüentar uma coisa dessas só por haver passado num
vestibular? Como já disse, longe de mim ser alguém intransigente, incapaz de suportar uma
burrice ou ignoranciazinha de vez em quando. Mas, venhamos e convenhamos, aquela
mulherinha merecia uma resposta apropriada. Nunca pude suportar preconceitos, ainda mais
contra as palavras. Foi por isso que pensei só meia vez e já fui com uma ironia cansada, típica de
baile gay às 5 e meia da manhã: -Olha, professora linda, primeiro acho que a senhora está meio
um pouquinho só enganada. Gerúndio nunca foi modo verbal. Talvez fosse mais apropriado dizer
que o gerúndio é uma forma nominal de um verbo. Agora, no que se refere à proibição contra este
tipo de palavra, acho mesmo que ela só pode existir na cabeça da senhora. Sabe por quê?
Porque eu abro o jornal e vejo gerúndio pra cá e pra lá. É verdade que alguns poderiam até ser
substituídos, com ganho de qualidade para o autor. Mas até nisso a gente tem que ser menos
preconceituoso, fessora, e parar de sair por aí condenando palavras e crucificando jornalistas que
acabam de se formar. Afinal, sabe-se lá por quem esses jornalistas que escrevem tão mal foram 5
adestrados, não é mesmo?

Exagerei? Sei lá. O que sei é que a turma riu até e aquela palavrinha que eu disse que
sempre uniu todos os infernos, todos os demônios que vivi e todos aqueles que ainda vou viver,
aquela palavrinha passou a ser uma das mais usadas pela professora Elisa em relação à minha
pessoa, à minha pessoinha aqui. Uma palavrinha que fecha, fere, fode, forja, fuzila, fulmina. Uma
palavra que está presente desde sempre em minha vida. Agora, por exemplo, que já vou
passando uma maquiagenzinha básica – rímel e lápis; agora mesmo, que já vou
saindo para atropelar ruas e avenidas, calçadas e becos, árvores e postes, carros e carrões;
agora mesmo me lembro que só posso sair se estiver com ela. E só posso sair com essa
palavrinha porque será ela que, na minha boca, vai me guardar dela mesma em outras mais e
muitas bocas.

Léxico infernal, sem o qual o mundo ainda seria o paraíso primitivo e viveríamos todos e
cada um sem matar, gastar, sofrer, rezar, pedir, difamar, proibir, burlar, roubar, medir, odiar,
envergonhar, recear, temer, elaborar. Ou fazendo tudo isso sem nomear que fazemos. Olho para
a professora Elisa com sua ignorância disfarçada e lá está ela, a palavra. Olho para minha mãe
Isaura e seus medos e também lá está ela, como fonte e como fruto. Olho para cada passo que
dei, cada gesto que fiz, cada porrada que levei e também lá está ela, invariável e assustadora.
 

Olho, sobretudo, para ele, agora, deitado na cama desse hospital e o que vejo é ela. E a vejo
saindo da única parte de seu corpo que ainda pode dizer alguma coisa. Ela vem silenciosa, mas
com fúria semelhante à de outros tempos, com terror igual. Sim. A palavrinha vem, outra vez, para
me atirar num abismo e, pouco a pouco, posso sentir meu corpo se desfazendo na queda. Braços
que se soltam, batons que se descolorem, cabelos arrancados da cabeça com o vento implacável,
cabeça separada do corpo depois de receber uma paulada oca bem aqui no meio da testa. Tudo,
então, vai se desfazendo na descida. De modo indelével, infinito.

Só os olhos dele é que continuam gritando pra mim Não, não, não.

4.

Quando? Ah! Um dia aí. Fala a verdade: o que interessam datas e nomes e certificados se
o que carregamos dentro quase nunca informa nada disso? São coisas sem documentação, estão
só na cabeça de cada um e, na maioria das vezes, impossíveis de serem provadas. Ninguém
assina um documento dizendo que passou a odiar fulana de tal no dia 21 de junho de 1899.
Impossível uma coisa dessas. O amor, a desconfiança, a admiração, o ódio, tudo isto vai tomando
forma pouco a pouco, junto com a gente. E não existe uma proporção exata, matemática. Se 6
odiamos ou amamos, não quer dizer que essa fúria ou esse frescor irão crescendo junto com a
gente. Nada não é preciso. Existem ódios e amores que nos alimentam e fortalecem. E também
há aqueles que nos fazem definhar inúteis numa cama deserta. Sonhando céis e temendo féus.

Eu já quase morri. E também quase incendiei Paris. Tudo pelo motivo de sentimentos.
Tenho uma amiga que, enquanto borra o queixo com panqueique, diz
sempre o mesmo brocardo: Quem não se enfeita, assim se enjeita. Não é isso
mesmo? Já me deixei sim ficar igual uma morta, um trapo. Malassombro. Hoje, uma podreira
como essa não me tem mais. Acendo a luz, ponho roupa e vou bem betty faria fazer algo bem
feito em qualquer passarela. Mas isso acontece agora, quando meus quereres se concentraram
para então se acalmar. Antes eu era um rememoinho, fazendo e mexendo. Claro que não deixei
de odiar. Nem de amar. Só que, agora, amo e odeio sem pretensões, sem muita pressa.

Ou seja: vim aqui ver esse filho da puta morrer. Mas, se ele não morrer hoje, eu volto
amanhã. O único que não quero é que ele acabe longe de mim. Preciso estar aqui na hora, no
momento, apenas para profundo gozo meu e intenso desprazer dele. Esperei por isso sozinha e
sempre. Sem contar com a sorte de uma comitiva cruzar comigo na encruzilhada de três
caminhos e eu, criando caso, tirar o cacete pra fora, o nicaô, e rachar a cabeça do maldito. Partir
tirando sangue e gritando Eu não te perdôo, jaburu doente. Eu não te absolvo, pessoa nefasta.
Tudo isso enquanto dou com o pau no perigoso, amassando ossos, esfacelando idéias,
 

esguichando sangue por todos os lados, transpirando cada uma das minhas raivas, dos meus
ódios, dos meus desesperos, das minhas sanhas, das minhas cóleras, de todos os meus rancores
todos.

Mas não. Como já disse, estou aqui bem betty faria, esperando em silêncios que me
berram por dentro, respirando pausadamente e na certeza absoluta de que tudo acontecerá como
a enfermeirazinha preta me falou: -Uma hora, sem que ninguém espere, ele vai abrir os olhos
numa última dor e, em um instante de alívio, deixará de respirar, fechando então as pálpebras
lentamente, como quem encontra a paz. Foi assim que a enfermeira me falou, acrescentando que,
neste momento, nada seria mais reconfortante para ele do que encontrar alguém conhecido a seu
lado, para entregar, como um castroalves moribundo, sua derradeira golfada.

Ah!, enfermeirinha preta bonitinha do samurai. Você não sabe, sua amapoa. Você não
sabe, mas eu te fazia fácil-fácil. E com prazer. Achei linda essa sua boquinha boqueteira. E a
firmeza do corpo, então! Tão durinha assim você que dá até gosto uma noite de brincadeiras.
Você não me engana, enfermeirazinha. Na hora do rompe e arrasa, tenho certeza de que você é
mamífera. Como é que é seu nome mesmo? Ih! Esqueci. Mas daqui a pouco eu me lembro e vou
também me recordar de contar pra você, sua samaritana nagô, o que esse peste vai encontrar no
exato momento em que abrir os seus olhos dele para o último suspiro. Acho que você até já sabe. 7
Sei que você não é boba. Isso, negrinha linda, ele vai me encontrar aqui: linda e loira, sentada e
calma nesta poltrona, classuda, esperando os olhos dele se abrirem pela última vez. Só uma coisa
você errou, enfermeirinha iorubá. Os olhos dele não irão se fechar em paz. Estateladas, as retinas
do senhor meu pai não terão outra escolha senão guardar o perfil perfeito de sua filha que se
levanta para se colocar intacta, inteira e exuberante em sua mirada. Sim, esta sua filha aqui, com
uns seios durinhos e umas ancas, senão férteis, fartas. Uma filha como tantas outras que, à
espera do respiro decisivo de seu pai, encontrará apenas a certeza de um ódio incólume,
cultivado nos fatos da vida que nunca poderão ser escondidos.

Então, para que o pai não abandone seu filho e o filho nunca abandone seu pai, cumprirá
morrer de olhos bem abertos.

5.

Pretas, vermelhas, brancas, cor de rosa e alaranjadas, douradas e prateadas, em diversas


tonalidades de creme. Estes são apenas os matizes mais comuns. Contudo, as variedades
cromáticas não param por aí. É claro que não! Há as azuis, em tons tão diferentes como o
 

turquesa, o aquamarine, o marinho, o petróleo, o autêntico cyan, o deepsky, o dodger e o clássico


royal, dentre inúmeros outros. Nos amarelos, o ouro e as variações dos laranjas: dark orange,
orange e orange red. Abaixo e acima do magenta, a abundância é impressionante. Para abreviar,
poder-se-ia citar o pink, o salmon e o coral, por um lado; e, em uma escala de maior intensidade,
os violetas, o fuchsia e o crimson. Há ainda as verdes, com intensidades que podem ir do
chartreuse ao escuro mais simples, passando por delícias que viajam do abacate ao oliva. Neste
parágrafo das cores, seria criminoso não destacar alguns epítetos que a elas se associam para
tornar ainda mais rica e, por que não dizer?, inteligente e criativa, a diversificação cromática. É o
caso claro do substantivo de dois gêneros “bebê”, que torna azuis, verdes, amarelos e rosas
infantilmente licenciosos, quase pervertidos.

Se nas cores a diversidade é ingente, nas estampas ela é infinita. É o que se pode
comprovar em qualquer passeio por shoppings centers e magazines grandes e pequenos
localizados nos centros de cidades do mundo inteiro, exceto, talvez, as urbes islâmicas. Os
motivos mais freqüentemente encontrados abusam de florais, bolinhas e outras figuras
geométricas, listras verticais e horizontais em várias larguras, imitações de pele animal como a
vulgar oncinha, além de detalhes variados e buliçosos de patchwork. Hilariantes também pode ser
o uso que se faz das palavras. Já vi de todos os tipos, com idéias que vão do original ao mal gosto
mais completo. Alguns exemplos: just do it; ISO 9002; o importante é a beleza interior; cuidado: 8
piso escorregadio; aberto 24 horas (aff!); entre sem bater (aff!, aff!); I ♥ Ponta Grossa (pra não
dizerem que sou mal humorada, eu também); obrigada, volte sempre!; se não for pra dar 5, nem
tira; prepare-se para momentos de grande prazer; você me ama mesmo ou só quer me comer?
Para aqueles dias chamados especiais, em que as amapoas estão de bajé, vi recentemente uma
que dizia de modo grosseiro: desculpe o transtorno, entrada pelos fundos.

Quando o assunto são os formatos, o léxico também é admirável. Calcinhas, calçolas,


calças, fio dental, asa delta, short doll, stripper, pom pom, a rodriguiana engraçadinha, soutache,
lacinho, short lace e a tanga que, em minha opinião, deve vir sempre no diminutivo, o que faz com
que este pequeno vocábulo adquira uma consistência hiperbólica, quase epífana: tanguinha!
Como não poderia deixar de ser, a chamada lingerie, palavra francesa cuja etimologia é datada do
final do século XV, pode ser confeccionada de inúmeros tipos de tecido e até mesmo de materiais
sintéticos como o plástico. As mais confortáveis são, sem dúvida alguma, as de algodão, em
malha. Mas há também as de poliamida, tule em nylon, liganete, seda, tecidos ambientais e
recicláveis.

As chamadas calcinhas comestíveis são feitas de gelatina. Bem fininhas, elas imitam um
tecido. Em sex shops, são encontradas nos sabores ordinários: menta, chocolate, morango e
framboesa. O material com o qual são manufaturadas também serve, pretensamente, para
estimular a prática do sexo oral. Mas nem todo mundo topa utilizar esta aberração sexo-culinária,
 

uma vez que a calcinha comestível é vestida pela mulher como se fosse uma lingerie normal e,
simplesmente, vai derretendo aos poucos, conforme os humores secretados pelo corpo feminino.
Assim, na medida em que a mamífera é tocada e se excita, a calcinha se desfaz. No cunnilingus,
ela pode ser, literalmente, devorada. Em resumo e francamente, apenas os muito pobres de
espírito e imaginação soem recorrer a tais artifícios como estimulantes. Eu já provei algumas
vezes, por sugestão de parceiros pouco dotados de criatividade ou bêbados. Trata-se de algo
espetacularmente abominável!

Quanto às marcas, há as de sempre – como Valisère, Liz, Plié, Darling, Valfrance, Du


Loren, De Millus, Hope – e aquelas um pouquinho mais requintadas, como Federica, La Perla e
Eva Milano. Para meu estrito uso pessoal, prefiro as coleções de Victoria’s Secret, capazes de
reunir novidades e frivolidades do mundo fashion sem perder a qualidade e, sobretudo, sem
exagerar no preço. Creio que uma calcinha classuda é aquela capaz de excitar quem queremos
excitar sem provocar duas reações imperdoáveis quando o assunto é intimidade. Ou seja: uma
lingerie não deve fazer com que nos sintamos ridículas, mesmo que o consorte não se sinta
assim; e também não deve nos parecer desconfortável, como se usássemos um cilício. Além
disso, neném, há o fator custo-benefício que, nos dias de hoje, não deve ser nunca depreciado.

Lingeries são o meu fraco. Pra dizer a verdade, sempre foram. Sei disso desde 9
mesmo muito mal em minha mocidade. São poucas as lembranças que guardo de
minha infância mais tenra. A primeira delas, como já disse, são as das pernas daquele homem
encolhidas e enoveladas entre as minhas: quentes, trêmulas e, quem sabe, úmidas. Outra é de
Isaura me dando uma surra porque eu me negasse a recitar de cor, mesmo sabendo, a escalação
completa de determinado time de futebol. Finalmente, e sem hesitação a mais feliz, é de como eu
esperava todas as tardes a ida de Isaura à padaria para, durante o curto tempo em que ela lá se
demorava, correr até certa gaveta, retirar dela alguma calcinha sedosa e cheirá-la, esfregando-a
no rosto até a exaustão mais desesperada e completa. Apesar de ser uma idiota pusilânime,
minha mãe tinha sua dose de bom gosto. Uma das maneiras de seduzi-lo eram, estou bastante
segura, todas aquelas calcinhas e sutiãs cheirosos, macios e sedosos, quase indecentes.

Ah! Como eu me deliciava com cada uma daquelas texturas e odores durante o intervalo
em que ela ia comprar o leite e o pão. A idéia principal era vestir uma de suas prendas rendadas,
colocar-me à frente do espelho e admirar meu corpo imberbe, acrescentando com a imaginação
aquilo que a realidade e a ciência ainda traziam impossível. Mas isto era completamente
impraticável. Temia que Isaura chegasse e me flagrasse naquela luxúria inominável. Portanto, o
único que eu podia fazer era mesmo imaginar. Esfregar sedas e algodões em minha face e
sonhar, inventando nesta cabecinha de maravilhas uma menina levada, letrada e linda, vestida
apenas com uma calcinha Victoria’s Secret e com seus dois limõezinhos de fora.
 

Nada de costelas, pensava eu: uma mulher pode sim começar a ser planejada com umas
simples calcinhas e uns peitinhos diminutos.

6.

Pertencemos a lugares distintos. Todos nós. E, quando saímos do nosso lugar para ocupar
outro, as pessoas ficam feridas e respondem com fogo. O que é que você está fazendo aqui, sua
puta? Você não sabe que seu lugar não é este? Já não te avisei 888 mil vezes que sua esquina
não é esta? Ou você está aqui porque é boba e quer sacanear a gente? Pois saiba, então, sua
piranhuda do rabo fodido, que aqui é que você não pode ficar. E não podemos ficar sabe por quê?
Porque somos pretos, ou magros demais, ou gordos, ou feios, ou até bonitos, ou inteligentes, ou
bem ou mal-humorados, ou judeus, ou japas, ou bichas, ou veados, ou sapatões, ou homens, ou
mulheres, ou travestis e Aqui neste lugar você não pode ficar porque não sei quem inventou isso
de que você não pode ficar aqui e essa pessoa mijou no chão e marcou o território e se você
entrar na área proibida leva uma porrada, um tiro, uma giletada. É assim: brigam com a gente,
brincam com a gente, fodem a gente, zombam, humilham, pisam em cima, chamam dos nomes
todos que inventaram para o capeta, dizem assim Você é preto, sua bicha. Você é gay, seu judeu.
Você já se viu no espelho, sua mocinha? Tem que emagrecer senão não passa na roleta, sua 10
sapata. Entendeu agora por que você não pode fazer ponto nesta esquina aqui, sua amapoa?

E dessa maneira seguem as coisas. Comigo, por exemplo, a idéia é de que eu não
possa ser alguém inteligente, culta. Mas sou. Sempre fui e lutei para ser. E ser,
meu querido, não é fácil. Não existe manual. Ser é quando você pega todas as suas coisas e junta
cada uma delas no coração e na cabeça fazendo o que for preciso para que elas continuem ali e
aí diz Esta aqui sou eu. Vou repetir: -Esta aqui sou eu e não é fácil, não é mole, a coisa é dura.
Parece até aquela do Juá, uma bicha preta amiga minha que aparecia na abertura do Fantástico e
cuja ferramenta era de 23 pra cima e quando endurecia pulsava robusta cheia de veias e não
amolecia de jeito nenhum, arrasando bocas, bocetas e cus. Uma coisa a rola do Juá, meu Deus!
Arrepio até de lembrar. Mas disso depois eu falo que agora não é hora de falar disso, porque o
que eu estava dizendo é que a coisa não é mole não, mocinho. E foi porque eu disse que a coisa
não era mole não que eu me lembrei da pica preta do Juá, dura como um colosso, portentosa,
obreira, macunaímica, boa de brincar. Então que a coisa não é fácil. Nem pro Juá era. Tinha, o
coitada, que estar com a ferramenta sempre rija, à disposição. Pra amapoas e araras, para adés e
adés fontós, barbies e bibas, bofes e monocós. Não tinha direito, a pobre, de não estar com a rola
sempre em pé. Uma máquina de fazer sexo, o Juá. Morreu.

E morreu do que nem é tão óbvio assim.


 

7.

Ai, neném. Não é que as coisas são mesmo uma maravilha de babados. Babas que
escorrem, enfeites plissados, foles e pregas, maledicências, mexericos, fuxicos, intrigas,
considerações burlescas, conspirações devassas, imposições frívolas, pedidos fúteis, inúteis,
propostas sem seriedade, fofocas. Pois foi o que recebi ainda ontem mesmo e vou te dizer que,
no comecinho, não entendi o que era e nem me pareceu que eu pudesse alcançar qualquer coisa.
Mas, depois que vi, que senti que aquele sujeito ali do outro lado da linha podia estar dizendo
alguma verdade foi que comecei a prestar mais atenção no que ia sendo assim dito, entregue,
lançado, jorrado.

Não, neném. Ele não vinha como um cliente vem em sua primeira vez. Estava nervoso
sim. Mas era uma ansiedade diferente daquela que estou acostumada a perceber em vozes que
saem de bocas que daí a algum tempo – não importa se horas, dias ou meses – estarão
devorando da base à ponta o meu Delta T aqui. Lambendo, mordiscando, adorando e chupando
minha neca orgulhosa e reta. Não. O sujeito vinha por outros caminhos. E tais passagens, tenho
certeza, vão dar no mesmo lugar fácil e doido, difícil e refletido. Que lugar é esse, neném? Você
ainda me pergunta? Pois é esse próprio que eu estou te dizendo agora: sexo, muito sexo, mas 11
muito sexo mesmo, que é o único que interessa nessa vida.

Já contei antes e vou te revelar de novo: junto com este corpo maravilhoso e
liso e este rosto lindo imaculado veio também cabeça, raciocínio. Por isso, fiquei
esperando pra ver onde aquele sujeito ia chegar. Ele disse Olha, eu te conheci na internet. Quer
dizer: te vi, não te conheci. Mas quero conhecer, entendeu? Claro que eu achava que tinha
entendido e já fui logo perguntando Você quer um programa? Parece que ele se assustou do
outro lado e se enrolou todo Não, não. Não é isso que você está pensando. Como não é isso o
que eu pensando, menino? E você sabe o que estou pensando? Você acha que eu quero fazer
um programa com você. E você não quer fazer um programa comigo? Não, não. Eu não quero
fazer um programa com você. E, assim, num ritmo que misturava vergonha e verdade, calor e
pressa, ele continuou vacilando Na realidade... Na realidade, o que eu quero é te conhecer. É
isso. Eu quero te conhecer.

Quer me conhecer, neném? Quer me conhecer, alice? Quer conhecer o Delta T se


transformando em jeba total? Olha que ele já começou a ficar frapê, porque essa sua vozinha
encubada do outro lado da linha me deixou com um tesãozinho assim. Mas tu não me engana,
neném. Tu é bicha-bofe, que eu sei. Tu o que quer é cair de boca, é gravar, é felar babando.
Conheço o teu tipo. Sei sim, bonitinho, o que é isso. Chegam com um papo de que O que eu
 

quero mesmo é te conhecer e, depois, nem dois minutinhos depois, já estão enfiando mãos,
reconhecendo peles, futucando brotoejinhas e pedindo Deixa eu ver? Posso ver? Pode ver, sua
alice. Pode ver, sua mariposa. Pode pegar, sua enrustida. Pode até chupar, seu maricón de
mierda. Mas antes deixa eu encapar, deixa eu vestir o boneco, que o tempo em que eu era
mocinha e ia dando pau sem porta-jóia pra qualquer biba chupar e sendo recheada por chicos e
franciscos, por joões e guimarães, esse tempo já ficou para trás. Agora não, neném. Já dei sorte
demais nessa minha vida e é talvez por isso que estou limpa até hoje. Sim. Limpinha, ausente de
doenças e males menores e maiores. Mesmo depois de tudo que fiz e mexi, sem possuir prazos,
puxando difícil de difícel. Estou, como diz o outro, de range rede, especulando idéia. Limpa e
pensada, augusta, Bárbara. Top.

E tenho certeza de que o que aquele bofe quer é cair babando no nicaô aqui.

8.

Yes. Não preciso me exibir, mas destruiria esse sujeito. Passava um trator em cima.
Um caminhão indo e vindo, indo e vindo, devagarinho, rodando por cima da sua cabeça dele até a
coisa virar uma plasta, um pus. Merda! O que você quer, cacete? Vou engrossar a voz e falar bem 12
macho que é pra você escutar e eu não ficar devendo O que você quer, caralho? O que você
quer, seu merda? Quer porra? Vou acelerar aqui a coisa e você vai ver como daqui a pouco ela
esguicha farta e densa, exuberante, fértil até. Porra sem hormônios. Um dilúvio de porra, seu
sacana, que era o que você merecia engolir até sufocar. Um dilúvio de porra fazendo você se
engasgar e lembrar quando encostava a perna na minha, em conchinhas.

Você não se lembra, seu puto. Você não se lembra mas eu me lembro muito bem do seu
pau ficando duro, do seu pau ficando duro e encostando na minha bundinha e aí, agora, outro dia,
sabe, outro dia veio um cliente, um cliente baixinho e sabe o que ele quis? Sabe, você sabe o que
ele quis? Não. Você não sabe o que um sujeito que procura um travesti pode querer, sabe?
Sabe? Me responda: você sabe? Você sabe o que leva um sujeito a deixar a mulher e o filho em
casa pra vir aqui gozar no meu pau e nos meus peitos? Não. Você nem imagina, seu punheteiro.
Pois esse cliente veio e me pagou antes, pagou uma noite inteira, e aí o único que ele queria era
dormir. Mas queria dormir de conchinha. Não de qualquer jeito. Assim de conchinha, como você
fingia que dormia comigo. Aí, então, com o cliente de bundinha arrebitada, aconteceu do jeito que
devia acontecer com você. Ou não era assim que acontecia com a gente?

Ai, meu Deus! Eu estou ficando louco, louca, meu Deus! Tudo vem e volta e vem como
antes e agora aquele sujeito ali e eu e ele de conchinha e você e eu de conchinha e aí o meu pau
começa a subir e eu não respeito o desejo do meu cliente, eu não respeito o desejo dele e, então,
 

Toma, seu puto, não vem me enganar. Que história é essa de pagar a noite inteira e dizer que só
quer dormir de conchinha com um travesti? Quer porra nenhuma, seu veado. Você quer é essa
porra que eu vou te dar agora, seu sujeito, sem cuspe nem nada. Esse meu cacete duro que eu
vou enfiar aqui agora no seu rabo e você vai ter que agüentar até o fim, até as bolas. Isso. Tem
que agüentar. Tem sim. Não vou tirar não senhor. Vou continuar bombando e bombando até
esguichar muita porra densa e farta e fértil do meu cacete e não me venha com essa história de
que você veio pra dormir, que pagou pra dormir de conchinha com um travesti. Sabe por quê?
Porque isso simplesmente não existe. Não. Isso não existe. A única coisa que existe são estes
meus peitos encostando nas suas costas e este meu pau ficando duro igual o dele ficava e agora
que a jeba aqui já está estourada e doida eu vou te foder até o útero que você não tem e você vai
ter que agüentar. Não interessa se você pagou foi pra dormir e fazer carinho. Que carinho o quê,
seu veado. Isso mesmo: ve-a-do. Veado é o que você é e agora vai ter que sustentar o nicaô no
rabo até a hora que eu cansar. E eu acho que não vou cansar tão cedo porque eu fico só
lembrando dele e do pinto dele encostando na minha bundinha e você não sabe o que isso
significa.

Não. Você não sabe. E nada disso interessa. O único que importa é aquilo que está
acontecendo agora. Aquilo que aconteceu um dia e que vai se repetir e repetir e repetir. A
encruzilhada dos três caminhos. Não é essa a encruzilhada dos três caminhos? É um pouquinho 13
antes dela que eu paro e olho pra frente e vejo que você vem, seu puto, vem com seu cortejo e
quer que eu saia do meu lugar pra te dar passagem. Mas eu não saio. Eu não saio, entendeu? Eu
não vou sair. Agora que eu estou aqui neste hospital olhando pra você e que você está aí nessa
encruzilhada sabe o que eu faço? Sabe? Sabe sim. Agora você sabe sim o que eu faço. Claro que
sabe. Sabe sim porque o oráculo já te preveniu e você sabe. Ainda não acredita, mas sabe. Você
sabe muito bem que agora eu vou tirar o cacete pra fora e vou dar na sua cabeça até te fazer ficar
podre de tanta porrada, de tanta bombada, até sair muito sangue, uma quantidade enorme de
sangue que vai manchar todos esses caminhos todos. Um sangue cego e louco, marcado e
eterno. Um sangue cheio de perguntas e a primeira adivinha é esta: O que é o que é que de
manhã anda com quatro patas, de tarde com duas e à noite com três? Quer que eu responda, eu
respondo. Pode deixar que eu respondo porque essa você não sabe.

Sou eu, seu puto: esta mulher linda e loira aqui na sua frente.

9.

Se você me perguntar como tudo começou, eu não vou poder lhe dizer. Simplesmente não
sei. Nem gosto. Além disso, o que posso perceber sentada aqui nesta poltroninha e olhando
para a cara do senhor meu pai é que na minha vida as coisas acontecem como num flash-back.
 

Tudo sem muita ordem. Uma vez, no cursinho, pediram que fizéssemos uma redação. O tema era
algo como “O que você faria se tivesse uma máquina do tempo”. Lembro que escrevi que o único
que iria fazer era ser eterno. Isso mesmo. Pensei na hora que, se houvesse a possibilidade de
existir uma máquina desse tipo, como H. G. Wells imaginou em seu livro, tudo estaria mudado
definitivamente. Sim: acreditar que pode haver uma máquina do tempo é também acreditar que o
tempo não há. Se você acha que um dia vão inventar uma coisa dessas, é porque você crê
também que já inventaram, entende? Se ela vai existir no futuro, então ela já existe, porque o
futuro já existe, o passado ainda existe, e o presente é isso que queremos enxergar na medida em
que viajamos nela, nessa máquina do tempo que faz com que o próprio tempo não exista.

Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! É assim que me vejo agora, aqui, sentadinha
nesta minha máquina do tempo que é esta poltroninha de hospital e vendo meu pai morrer, vendo
esse homem respirando com dificuldades, vez ou outra tremendo as pernas de uma maneira
terrível. Será que agora, por exemplo, com os seus olhos dele fechados, ele está inconsciente?
Será que ele se lembra de que estou aqui, olhando para ele? Não. Deve estar dopado. Entupido
das morfinas que lhe dão.

E, enquanto ele dorme, eu viajo em minha máquina. Ajeito um pouco meu pau no meio das
pernas, pra que não faça volume na calcinha de algodão que estou usando, aproveito pra dar uma 14
coçadinha, e sigo minha viagem. Olho para ele, arquejando barulhento em agonias e, de repente,
não quero mais. Aperto então um botão da máquina e volto alguns anos. Sim. Lá estou eu, agora,
em frente ao espelho de Isaura. Hoje, ela veio a mim pela manhã e disse que os dois teriam que ir
ao casamento do filho de um colega dele.

Não. Não iriam me levar. Quando eu pergunto o porquê, ela se atrapalha e dá uma
desculpa engraçada. Vamos chegar muito tarde. É um casamento com muitos amigos do seu pai.
Cheio de adultos. Sem querer, minha mãe acaba dizendo a verdade. Não que o horário seja um
empecilho para que eu vá à festa. O problema são os amigos dele. O senhor meu pai não quer
que todos aqueles sujeitos, alguns que até estiveram com ele numa guerra de muitas mortes,
vejam que o filhinho que ele teve já mais velho, depois de se casar cinqüentão com aquela
Isaurinha do interior, cruza as pernas como uma mocinha na hora de se sentar. Ou fala fazendo
trejeitos. Muito educadinho, mas inventando movimentos involuntários com as mãos, com os
braços e com a cabeça. Quando lhe perguntam alguma coisa, a voz lhe sai com uma delicadeza
que faz com que não haja dúvidas: Esse menino é uma bichinha, meu Deus! Como é que pode?
Ainda não deve ter completado dez anos e parece uma menina, um veadinho que sequer dá conta
de disfarçar o olhar. O ditado está mesmo certo: é de pequenino que se torce o pepino. Reparem
só como ele mira os outros garotos. E como não dá conta de sair de perto das garotinhas. Na
certa, o que realmente deseja é ser uma delas.
 

É por isso, e não por causa do horário, que não levarão o guri ao casamento do filho do
amigo. Para que ele, o pai, não tenha que ficar constrangido quando lhe perguntarem É esse o
rapazinho que você teve depois de velho? Para que ele não fique embaraçado quando elogiarem
a beleza loira do seu guri, os olhos azuis com cílios enormes, os lábios encarnados contrastando
com a pela alvíssima. Para que ele não se enrubesça ao notar como os demais meninos, quase
todos eles incentivados pelos sussurros ao pé do ouvido dos adultos, isolam o pequeno
efeminado das brincadeiras consideradas essencialmente masculinas. Para que, afinal, esse
senhor desnorteado não tenha que mais uma vez se fazer a pergunta decisiva, ao ver o filho triste
num canto, o olhar perdido nas outras crianças que se divertem correndo atrás dos balões
coloridos. Uma indagação trepidante, alucinada, conclusiva, nervosa e tão verdadeira para ele, o
pai, que muitos até se envergonhariam de simplesmente cogitá-la.

Por que não nasceu morto?

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