Você está na página 1de 11

“A Importância da Análise Pessoal para a Prática Analítica”

RESUMO: O presente artigo pretende discutir a dificuldade de transmissão do conhecimento


psicanalítico na formação do futuro psicanalista e aponta sua análise pessoal como o pilar mais
importante desta transmissão que é sustentada, segundo Freud, pela tríade: análise pessoal,
estudo da obra psicanalítica e da prática em consultório orientada, pelo menos inicialmente, por
outro psicanalista mais experiente: o supervisor.

PALAVRAS-CHAVE: Análise pessoal, supervisão, obras psicanalíticas, transmissão,


inconsciente, desejo.

INTRODUÇÃO:
No final do século XIX, o médico vienense Sigmund Freud formulou e desenvolveu uma das
mais importantes teorias sobre a personalidade humana e deu a ela o nome de psicanálise.
Poucas contribuições à cultura e ao conhecimento universal influenciaram tanto o pensamento
ocidental contemporâneo como a psicanálise e pode-se dizer que, depois de Freud, a
humanidade nunca mais foi a mesma.

Além de serem reconhecidos nos meios acadêmicos, Freud e sua teoria analítica foram capazes
de transpor os muros das instituições de transmissão do saber científico e ganhar as ruas. Há
muito tempo que Freud habita o inconsciente coletivo ocidental contemporâneo. A maioria das
pessoas, praticamente leigas no que diz respeito ao conhecimento analítico e seus termos
técnicos, diante do enigma que representa a complexidade psíquica humana, aventura-se a
repetir o refrão “Bem... Freud explica...” toda vez que se depara com um comportamento
incomum ou inexplicável por nossa consciência racional e objetiva. É como se tais pessoas
estivessem proferindo um veredicto. Como se quisessem assim afirmar que Freud foi capaz de
descobrir a chave para os mistérios da personalidade humana ao dar explicações convincentes
para comportamentos estranhos e para doenças que aparentemente escapam às explicações da
ciência formal. Esta simples frase é o reconhecimento verdadeiro de que já não mais vivemos
sem Freud e sua psicanálise. A teoria analítica faz parte de nossas vidas e permeia nossa
existência em um caminho sem volta. “Quando subi ao estrado em Worcester para pronunciar
as minhas Cinco Lições de Psicanálise, isto pareceu a concretização de um incrível devaneio: a
psicanálise não era mais um produto de delírio, tornara-se uma parte valiosa da
realidade.”(FREUD,1969 [1925], p 67)

O próprio Freud reconheceu a importância e a dimensão de sua descoberta ao afirmar que a


humanidade sofreu três grandes reveses ou, como ele dizia, três grandes feridas narcísicas ao
longo de sua existência. A primeira ferida foi quando Nicolau Copérnico mostrou que a Terra
não era o centro do universo, mas apenas um entre tanto milhões de outros corpos celestes que
existem no cosmos infinito. A segunda, quando Charles Darwin formulou sua teoria do
desenvolvimento das espécies, mostrando a origem do homem a partir do reino animal. A
terceira ferida narcísica foi infligida com a descoberta pelo próprio Freud de que a consciência
não é o centro da razão humana, mas o resultado de uma infinidade de processos inconscientes
dos quais ela mesma não se dá conta.

Pensar a formação do psicanalista é tarefa pertinente e obrigatória para qualquer estudante de


psicologia que, já no início de sua graduação, perceba-se inclinado a esta escolha profissional e
que pretenda encaminhar sua formação, ao longo do curso de psicologia, para o exercício desta 2
linha de atuação. Desta forma, é impossível refletir sobre a formação do psicanalista sem
pensar em sua espinha dorsal, a tríade clássica que há cerca de noventa anos vem formando
psicanalistas por todo o mundo: o estudo da teoria psicanalítica, a supervisão de casos clínicos
e, particularmente, a análise pessoal do psicanalista.

Desta tríade clássica entendemos que a análise pessoal do analista é o vértice mais importante.
Por mais que este aspirante a analista tenha um amplo conhecimento teórico desta disciplina e
contato, ao longo de sua formação, com a prática psicanalítica supervisionada, sua formação,
ainda assim, será incompleta sem o autoconhecimento que a psicanálise é capaz de
proporcionar ao sujeito que a ela se submete.

Na verdade, uma formação baseada apenas nos dois primeiros pilares acima citados, estudo
teórico e contato com casos clínicos, é uma formação estruturada no âmbito da consciência.
Somente na análise pessoal o futuro analista poderá escutar o inconsciente e o desejo de ser
analista. Logo, a análise pessoal do analista é fundamental.
Mas onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações ideais de que necessitará
em sua profissão? A resposta é: na análise de si mesmo, com a qual começa sua
preparação para a futura atividade. (FREUD, 1969[1937], p. 282)

O QUE É PSICANÁLISE?

Para compreender melhor a formação do psicanalista, é importante refletirmos primeiro,


mesmo que brevemente, sobre o que é a psicanálise, qual o seu objeto de estudo e o seu método
de investigação, para depois pensarmos como se transmite e o que autoriza alguém a exercer a
prática psicanalítica.

Como já sabemos, psicanálise é uma prática clínica fundada por Freud na qual o objeto de
estudo é a vida psíquica inconsciente do sujeito. O inconsciente é vasto e poderoso, mas de
difícil acesso. Ele se manifesta através de suas próprias formações: atos falhos, chistes, sonhos
e sintomas. Seu método de investigação consiste basicamente em evidenciar a significação 3
destas formações do inconsciente. Como técnica de tratamento, Freud sugere e pratica a escuta
psicanalítica que consiste em “convidar” o sujeito a relatar tudo que lhe vier à mente e impedir
objeções lógicas que o induzam a selecionar o que vai dizer. É a chamada técnica da associação
livre. Por sua vez, o psicanalista deve, ao ouvir seu paciente, identificar material inconsciente
oculto para o sujeito que se dispôs a falar. O psicanalista deve ser isento de autocensura na
seleção do que ouve, pois toda repressão não solucionada no psicanalista constitui um
obstáculo em sua percepção analítica.

... E aqui, antes de tudo, somos levados à obrigação do analista de tornar-se capaz, por
uma profunda análise dele próprio, da recepção sem preconceitos do material analítico.
(FREUD, 1969[1926], p. 250)

À medida que o psicanalista exerce a escuta analítica, ele deve fazer interferências através dos
atos analíticos, assim como trabalhar as resistências e a transferência do sujeito. Entretanto,
como se aprende tudo isto? A psicanálise é transmissível? Como alguém se torna analista? Em
que momento alguém pode sentir-se seguro o suficiente para atender pacientes?
A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA: A TRÍADE CLÁSSICA

O Estudo da Teoria Psicanalítica:


Voltando à formação do analista, através de sua tríade clássica, e ao próprio Freud, sabemos
que conhecer profundamente a teoria psicanalítica é extremamente importante, mas não basta a
leitura da obra de Freud. Como ele mesmo afirmou, intelectualmente podemos aprender algo
sobre psicanálise, mas a psicanálise mesma só se aprende no divã. Ler a obra freudiana é,
portanto, imprescindível para qualquer indivíduo que se pretenda formar psicanalista, mas
qualquer aprendizado neste sentido será mera aquisição de conhecimento, de informação
técnica. É um aprendizado de fora para dentro e não de dentro para fora.

Pelos mesmos motivos, freqüentar um curso de psicologia e mesmo um curso específico de


formação psicanalítica na mais conceituada instituição psicanalítica que se conheça, assim
como freqüentar oficinas, participar de seminários e conferências para aprendizado teórico e
estar em contato com outros psicanalistas por si só não capacita ninguém a se tornar analista.
Freud, na primeira de suas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise discorre sobre a 4
incapacidade de um indivíduo aprender psicanálise apenas através de seu estudo teórico: “Não
posso, certamente, predizer quanto entendimento de psicanálise obterão das informações que
lhes dou, contudo posso prometer-lhes isto: que ouvindo-as atentamente, não terão aprendido
como efetuar uma investigação psicanalítica ou como realizar um tratamento”. (FREUD,
1969[1915], p.28)

Já sabemos que apenas o estudo formal da obra de Sigmund Freud não é capaz de tornar
ninguém analista. Este estudo, entretanto, embora insuficiente é imprescindível. Escolher a
psicanálise significa renunciar a outros paradigmas. Na sua prática, a psicanálise não admite
sincretismos com outros conhecimentos sejam eles de ordem filosófica, religiosa ou mesmo
psicológica.

Naturalmente, no exercício de sua prática, o psicanalista pode lançar mão de toda a sua
experiência de vida, tanto do ponto de vista profissional e intelectual como espiritual, mas não
pode praticar a psicanálise com a intenção consciente ou inconsciente de submetê-la a qualquer
outro saber. Freud foi bastante claro ao dizer que a psicanálise pressupõe um saber crítico sobre
outros saberes, mas isto não significa que o psicanalista poderá exercer autoritarismo sobre o
paciente. Pelo contrário, exercer um saber crítico sobre outros saberes é fazer uma escolha. É
antes de tudo, estar livre de quaisquer dogmas ou doutrinas para exercer a escuta psicanalítica
de uma forma imparcial.

A Supervisão de Casos Clínicos:


Mesmo que um estudante de psicanálise seja capaz de absorver profundamente a teoria
psicanalítica e seja capaz, também, de ler e entender Lacan, reconhecido como o mais
importante pensador da teoria psicanalítica depois do próprio Freud, ainda assim esta formação
teórica não será o suficiente para capacitar este estudante a se tornar um profissional
competente. A formação psicanalítica exige a prática. É preciso que, ao longo de seu período de
aprendizagem, de preferência desde o início de sua formação, o estudante possa estar em
contato com a prática psicanalítica. É importante o contato com um sujeito que se dispõe a
falar, seja nos estágios obrigatórios ou em estágios adquiridos através da iniciativa pessoal.
Desta forma o estudante terá a oportunidade de aprender, na prática, o que é a escuta
psicanalítica e tudo que advém, durante o tratamento, a partir desta escuta. Entretanto, nesta
aprendizagem prática é imprescindível a figura do mestre, do professor ou do que mais
comumente estamos acostumados a ouvir na clínica psicanalítica, do supervisor. 5

O supervisor é peça fundamental neste processo. É ele que ajuda o estudante a iniciar-se nesta
escuta analítica, que ajuda a delinear um caminho, um norte. Que ajuda a formular uma
hipótese diagnóstica, que indica o que da teoria analítica o estudante deve estudar para melhor
compreender aquele analisando. O contato com casos reais embasados pela supervisão é de
fundamental importância, também, para o direcionamento dos estudos teóricos de um
estudante. Como sabemos, a teoria analítica é vasta. Difícil é saber por onde começar tais
estudos.

Além da obra freudiana, escrita durante uma via inteira, há ainda as obras de seus seguidores e
o ensino de Jacques Lacan com seus Seminários e Escritos que devem ser lidos no esforço de
obter algum saber sobre o funcionamento do inconsciente e sobre a transferência. Entretanto,
por onde começar? Como absorver tudo isto? E, principalmente, como assimilar toda esta
informação, somente na teoria, tendo apenas um contato intelectual com estas obras?
Certamente, não é possível. É por isto que o estudo da teoria deve andar de mãos dadas com o
aprendizado prático, amparado pela experiência do supervisor.
Durante seu período de aprendizado, o supervisor poderá indicar a obra teórica mais adequada
para a compreensão de um caso específico. Isto por si só já é um bom começo para a
assimilação da teoria. Há que se lembrar que o próprio Freud começou pela prática, pela
observação de pacientes histéricas e que a partir delas sua genialidade foi capaz de formular
uma hipótese diagnóstica e toda uma teoria.

Também o estudante será capaz, não exatamente de formular teorias genuínas e de criar um
novo saber, mas de no exercício da prática psicanalítica, se perceber necessitado de um suporte
teórico que já existe nos livros e nas descobertas de mestres mais experientes. É tarefa do
supervisor fornecer este embasamento teórico e dar um direcionamento a esta carência de
informação técnica. Desta maneira, o estudante estará sendo sujeito de seu próprio
conhecimento. Como foi dito anteriormente é claro que este estudante não estará criando nada
de novo, mas estará trilhando seu próprio caminho. Estará sendo, como afirma Demo (2001)
gestor da autonomia de seu próprio conhecimento.

O papel do supervisor é importante, também, porque vai conduzir a relação do sujeito como 6
estagiário, ainda bastante despreparado e inexperiente, no rigor ético necessário ao exercício
desta profissão.

A possibilidade de confrontar-se deste cedo com a prática psicanalista é uma excelente


oportunidade para o estudante experimentar o inconsciente além de sua dimensão de conceito
ensinado em sala de aula e além de sua produção pessoal no trabalho de análise. Na prática
supervisionada o estagiário tem a oportunidade de entrar em contato com o inconsciente de
outro sujeito e estabelecer com ele uma relação em que o desejo de ambos estará implicado.
Implicação esta que produzirá um saber particular e específico daquela relação. Aqui, mesmo o
supervisor não saberá de antemão a condução para o caso. A construção do tratamento se dará
ao longo do processo, pois cada caso é um caso. Neste momento, o estagiário poderá realmente
certificar-se de uma das mais importantes premissas que nos indicou Freud sobre a psicanálise,
a de que ela é reinventada em cada sujeito que se submete a ela.

Por fim, a possibilidade de confrontar-se desde cedo com a prática psicanalista é uma excelente
oportunidade de experimentar a diferença que certamente existe entre o desejo de ser analista e
o desejo do analista. Desejo do analista certamente não é o de curar, mas sim o de sustentar um
lugar no qual o sujeito poderá lidar com a dimensão da sua falta e do seu próprio desejo e a
partir daí ser capaz de alcançar uma posição mais confortável para si próprio diante deles.

A Análise Pessoal do Analista:


E a análise pessoal do analista? O que tem isto a ver com a formação deste profissional? E por
que esta análise poderia fazer tanta diferença na qualidade desta formação e na competência
profissional do futuro psicanalista? Antes de tudo é preciso reconhecer que um psicanalista
deve ser, no mínimo, imparcial e para exercer esta imparcialidade, o psicanalista precisa estar o
mais vazio e livre possível de suas próprias neuroses, de suas resistências e preconceitos. A
neutralidade implica em estar fora da cena. Em ser capaz de não se envolver pessoalmente com
as questões que o analisando traz para dentro do consultório e em ser capaz de evitar quaisquer
tentativas de converter o paciente ao que quer que seja. Para isto é preciso análise. A análise
pessoal do analista.

Em segundo lugar, a análise pessoal é extremamente importante, porque é impossível pensar a


formação de um analista sem que nela se inclua a experiência de ter suas neuroses sendo 7
interpretadas pelo outro.

A psicanálise só pode ser vivida na própria pele, via ato analítico, que permite um encontro com o saber
que escapa sempre na procura permanente do objeto causa do desejo”. Com isso reafirmamos que o objeto
da transmissão é o inconsciente e que se o ensino da psicanálise não pode ser regulado e massificado por
leis ordinárias é pelo fato de ser um ofício que usa o inconsciente como instrumento de trabalho e que por
suas peculiaridades é intransmissível. (PIMENTEL, 1993, p. 45)

É nesse sentido ainda que Freud, nos Artigos sobre a Técnica, ao discorrer para médicos sobre
algumas regras técnicas de como conduzir uma sessão analítica acaba afirmando que, no fundo,
todas elas “se destinam a criar, para o médico, uma contrapartida à ‘regra fundamental da
psicanálise’ estabelecida para o paciente”. Aqui Freud quer dizer que, da mesma forma que o
paciente deve deixar fluir material inconsciente sem autocensura, através da técnica de
associação livre; também deve o analista colocar seu inconsciente à disposição do trabalho
analítico seguindo estes mesmos critérios. Ou seja, também o analista deve:

voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do
paciente. Deve ajustar-se ao paciente como o receptor telefônico se ajusta ao microfone transmissor. Assim
como o receptor transforma de novo em ondas sonoras as oscilações elétricas na linha telefônica, que
foram criadas por ondas sonoras, da mesma maneira o inconsciente do médico é capaz, a partir dos
derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que determinou as
associações livres do paciente. (FREUD, 1969[1912], p.154)

Nesse sentido é possível entender que a análise se dá na relação do inconsciente do analisando


com o inconsciente do analista e é por isto mesmo que aqui cabe dizer que este tipo de relação
não pode ser aprendido e muito menos apreendido somente nos bancos de escola.

É difícil acreditar, também, que alguém possa aprender o significado de um ato analítico sem
nunca ter passado por esta experiência em uma sessão de análise ou curioso imaginar um
psicanalista que nunca tenha sentido como é difícil, muitas vezes, ser analisando, sustentar uma
análise e levá-la adiante; quantas resistências e barreiras o sujeito levanta para evitar o
confronto com a dor e a angústia e como é impressionante vermos o trabalho do psicanalista
que, pouco a pouco, consegue vencer estas resistências e colocá-las por terra.

Difícil também imaginar um psicanalista que nunca tenha tido, por exemplo, um sonho seu
8
interpretado por um profissional de psicanálise ou que não tenha tido um ato falho apontado
por seu próprio analista. Em Recomendações aos Médicos que exercem a Psicanálise, de 1912,
Freud responde à pergunta de como alguém pode tornar-se analista:

pela análise dos próprios sonhos. Esta preparação, fora de dúvida, é suficiente para muitas pessoas, mas não
para todos que desejam aprender psicanálise. Nem pode todo mundo conseguir interpretar seus próprios
sonhos sem auxílio externo. Enumero como um dos muitos méritos da escola de Zurique terem eles dado
ênfase aumentada a este requisito, e terem-no corporificado na exigência de todos que desejem efetuar
análises em outras pessoas terão primeiramente de ser analisados por alguém com conhecimento técnico.
(FREUD, 1969 [1912], p.155)

Por fim, como pensar um analista que não saiba reconhecer e admitir para si mesmo, através de
um trabalho analítico, os sintomas de sua própria estrutura? E como aprender tudo isto somente
no plano intelectual? Como entender as formações do inconsciente apenas lendo nos livros,
principalmente sabendo que a psicanálise é de natureza estritamente subjetiva? É o próprio
Freud quem nos diz: “Aprende-se psicanálise em si mesmo, estudando-se a própria
personalidade”. (FREUD, 1976 [1915], p.32)
Sabemos que a psicanálise é uma prática clínica difícil de ser plenamente ensinada dentro da
universidade, pois o pensamento científico transmitido nos meios acadêmicos parte do
pressuposto de que o saber, para ser realmente considerado como um conhecimento
formalmente aceito e irrefutável, deve ser passível de transmissão universal. A dificuldade de
se transmitir a psicanálise está exatamente aí. Sabemos que cada análise é única e que cada
caso é singular. Sabemos que a interpretação que um analista dá a um caso, não servirá
necessariamente a outro, pois a psicanálise é reinventada a cada sessão. Não é possível repeti-
la. A psicanálise, diferentemente do saber ensinado na universidade, não possui um modelo
científico que possa ser reconstruído exatamente da mesma maneira com todos os pacientes. A
psicanálise não é da ordem do universal, mas da ordem do particular. “Se para a ciência e para
a universidade, o saber se transmite pelas fórmulas e leis, através de sua exposição, a
psicanálise se apoia inteiramente na transferência sustentada pela suposição de saber, o que
requer a dimensão do amor, da presença e da palavra” (PENNA, 2003, p. 42)

No momento do ato analítico, o analista não pode se sustentar em nem um Outro, seja este
Outro, o livro, a teoria, a instituição psicanalítica que o formou, etc. Neste momento, ele conta 9
com o desejo de analisar. O ato analítico é eminentemente solitário. Logo, a formação de um
analista é um processo para tornar-se psicanalista. É uma construção. É um caminho que se
constrói ao longo do percurso de uma análise pessoal e, naturalmente, no estudo teórico da obra
psicanalítica.

CONCLUSÃO
A formação psicanalítica deve ser embasada no conhecimento teórico da obra de Freud e
Lacan, mas a análise pessoal deve agenciar a formação. É interessante observar a diferença na
assimilação dos conceitos psicanalíticos de um estudante que se submete à experiência analítica
quando comparado a outro que nunca passou por esta experiência. Não que esta assimilação
seja mais fácil ou que a compreensão de termos técnicos flua de uma maneira mais tranqüila.
Não é isto. A compreensão da psicanálise demanda esforço e muita dedicação. Da mesma
maneira que o acesso à teoria psicanalítica não torna o processo da análise pessoal menos
doloroso e nem o tratamento mais rápido. Pelo contrário, muitas vezes, a angústia é até maior,
por saber que a compreensão intelectual em nada facilita o acesso ao próprio inconsciente
durante uma sessão analítica. Entretanto, quando menos se espera, nos momentos entre uma
sessão e outra ou entra uma aula e outra, a produção se instaura. É neste espaço de tempo do
real, que a experiências teórica e prática da psicanálise se misturam e, de repente, um conteúdo
aprendido em sala de aula ou lido em um livro qualquer vai possibilitar a compreensão de uma
situação pendente na análise pessoal. Por outro lado, muitas vezes, a compreensão de um
conceito analítico só vai ser totalmente absorvida quando o estudante tiver a oportunidade,
felizmente, de vivenciá-lo na própria experiência de sua análise. Freud salienta que não existe
maneira de verificar o saber psicanalítico de maneira objetiva, porque é impossível demonstrá-
lo concretamente. Apenas o sujeito que vivencia o próprio inconsciente é capaz de adquirir o
“desejado sentimento de convicção da realidade dos processos descritos pela análise e da
correção dos pontos de vista da mesma.” (FREUD, 1976[1915],p.32) Além disso, Freud
ressalta que a psicanálise não irá despertar o interesse de todos os estudantes, mas apenas de
uns poucos, pois para exercer a psicanálise o sujeito investe, antes de tudo, o seu próprio
desejo. Este desejo que é ele mesmo um saber que não pode ser transmitido, plenamente,
através do método científico a que estamos acostumados a utilizar dentro das instituições
acadêmicas.

Portanto, a análise pessoal de qualquer sujeito que pretenda um dia ser psicanalista deveria ser
amplamente estimulada desde o início de sua formação, pois é muito provável que esta análise 10
venha a fazer uma grande diferença na competência deste profissional que pretenda
psicanalisar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DEMO, P. Saber Aprender. In: ______ Saber Pensar. São Paulo: Cortez Editora, 2001. (Guia
Escola Cidadã, v.6)p. 47-53.

FREUD, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: _____. Volume
XII (1911 – 1913). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud – O Caso de Schreber Artigos Sobre a Técnica e Outros Artigos – Rio de Janeiro: Imago
Editora Ltda, 1976. p. 149 - 159.

FREUD, Sigmund. Conferência I. In: _____. Volume XV (1915 – 1916). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – Conferências Introdutórias
sobre Psicanálise (Parte I e II) – Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1976. p. 27 a 37.
FREUD, Sigmund. Um Estudo Autobiográfico. In: _____. Volume XX (1925 – 1926). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – Um Estudo
Autobiográfico - Inibições, Sintomas e Ansiedade - A Questão da Análise Leiga e Outros
Trabalhos – Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1976. p. 17 - 87.

FREUD, Sigmund. A Questão da Análise Leiga – Conversações com uma Pessoa Imparcial. In:
_____. Volume XX (1925 – 1926). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud – Um Estudo Autobiográfico - Inibições, Sintomas e Ansiedade
- A Questão da Análise Leiga e Outros Trabalhos – Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda,
1976. p. 209 - 283.

FREUD, Sigmund. Análise Terminável e Interminável I. In: _____. Volume XXIII (1937 –
1939). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud –
Moisés e o Monoteísmo, Esboço de Psicanálise e Outros Trabalhos – Rio de Janeiro: Imago
Editora Ltda, 1975. p. 247 a 287
11
LOPES, Anchyses Jobim – Brasil: Terra de Resistências Mil – Reflexões sobre Impasses
Atuais na Transmissão da Psicanálise. Disponível em <htt://www.cbp-rj.org.Br/arquivo.htm>
acesso em 01 mai 2003.

PENNA, L. Psicanálise e Universidade. - há transmissão sem clínica? Belo Horizonte:


Autêntica; FUMEC, 2003.

PIMENTEL, Déborah. Psicanálise – Formação ou Ensino? Estudos de Psicanálise. Belo


Horizonte V. 16, p.43-45, out.1993.

Regulamentação da Psicanálise - Comissão de Trabalho de Administração e Serviço


Público – Projeto de Lei nº 3944 de 2000.
Disponívelem:<http://www.sbpsp.org/br/regulamentação/projeto 1.htm> acesso em 26 mar
2003.

Você também pode gostar