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Diretor Editorial
Marianne Paixão
Diretor Comercial
Pedro Henrique de Melo
ISBN: 978-85-9454-079-9
17-0574 CDD:869.93.
Índice para catálogo sistemático
1. Literatura Brasileira
[2017]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua do Russel, 450/501 – 22210-010
Glória – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
www.darksidebooks.com
ORGANIZADO POR
Felipe Amarante Martins
Jaqueline de Oliveira Vitor
Marianne Sayuri Taqueushi Paixão
Pedro Henrique de Melo Vasconcelos
Thaynna Peixoto Nunes
SUMÁRIO
Boitatá
{ O horror em chamas }
21
Cuca
{ Às margens do horror }
49
Curupira
{ 10 - S82 }
57
Iara
{ Iara }
69
Lobisomem
{ Lupino }
83
Saci
{ Tempat bagi orang yg terlantar }
107
Posfácio
123
Bibliografia
125
Biografia
127
Todas as histórias desse livro tem como objetivo
homenagear muitos autores que escrevem sobre o
folclore nacional brasileiro.
A mãe do medo é a incerteza e o pai do medo é o escuro.
Enquanto houver escuro no mundo, haverá medo, haverá
monstros como os que você vai ver.
- Lobato, Monteiro; O saci.
Introdução
“A cultura é de todos: este é o fato primordial. Toda sociedade
humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos, seus
próprios significados. Toda sociedade humana expressa tudo
isso nas instituições, nas artes e no conhecimento. A forma-
ção de uma sociedade é a descoberta de significados e direções
comuns, e seu desenvolvimento se dá no debate ativo e no seu
aperfeiçoamento, sob a pressão da experiência, do contato
e das invenções, inscrevendo-se na própria terra.” Raymond
Williams, um dos fundadores dos estudos culturais ingleses, dá
conta nesse trecho de algo importante: os saberes do povo (sig-
nificado de folclore) e suas expressões cotidianas são criações
que contribuem para dar forma a uma sociedade.
Alegar distância entre os saberes da elite e os do povo deu en-
sejo a que estes últimos se vissem colocados num escaninho
isolado, associados à produção comunitária, “autêntica” e pura,
onde se encontrariam as raízes da verdadeira identidade nacio-
nal, advindos sobretudo do mundo rural – visão que nasce do
Romantismo europeu, de meados do século XVIII. No Brasil,
os estudos folclóricos começaram no século XIX, sob influên-
cia do movimento romântico, e tiveram no século seguinte seu
desenvolvimento marcado por momentos heroicos e debates
ideológicos intensos. A evolução do conceito de política cultu-
ral levou a um redimensionamento das atenções, institucionais
ou não, à multiplicidade de fazeres e saberes.
Simbolicamente, a cultura trata da articulação que os seres
humanos fazem com os fatos do mundo, que lhes dão estabi-
lidade. Nesse sentido, não cabe a radical distinção entre o que
é popular, erudito ou de massas, registros cujas fronteiras es-
tão cada vez mais embaralhadas na sociedade contemporânea.
Williams chama a atenção para dois aspectos da cultura. O
primeiro é o que se reporta aos significados que vêm pela tra-
dição. O segundo, o referente à dimensão criativa, onde novos
sentidos são elaborados e incorporados.
Se termos como folclore e cultura popular fossem descartados,
as peculiaridades de uma miríade de mitos e crenças, artes, fol-
guedos, festas e práticas cotidianas acabariam sendo deixadas
de lado. O importante é alterar os modos de tratar e ver esse
rico patrimônio, que dialoga e evolui com o tempo, cujo po-
tencial criativo alimenta produções de todas as formas e níveis.
É o que se apreende da leitura deste Abecedário: suas perso-
nagens são frutos das mais diversas produções, de cantadores
populares a autores como Erico Verissimo, de pesquisadores
dedicados, como Câmara Cascudo, a contadores de histórias,
de artistas letrados e célebres a criadores anônimos e analfabe-
tos. Algumas vêm de tempos remotos, outras se popularizaram
num tempo recente.
Suas origens, também diversas: europeias, africanas, indígenas.
Trata-se de uma produção que permeia não apenas o imaginá-
rio e as práticas da população mais pobre, mas que atravessa
os vários estratos sociais por processos de interação variados.
Assim, o repertório cultural de uma sociedade é formado pelas
criações de todos os segmentos que a compõem, independen-
temente das categorias que historicamente vêm estabelecendo
fronteiras entre os diversos níveis de produção.
Para ter acesso a playlist utilizada nos contos deste livro,
escaneie o Spotify Code abaixo. Basta seguir os seguintes
passos:
Como se pode ver, de boi “a” ou “o” Boitatá não tem nada. A
confusão, quem sabe, tenha começado pelo nome: em tupi-
-guarani, mbae quer dizer “coisa”, e tatá, “fogo”. Como esse
fantasma luminoso se mexia de maneira ondulada, foi fácil as-
sociá-lo a uma cobra. Ou, talvez, por mboia significar “cobra”,
a personagem tenha virado a Mboi-Tatá, a cobra de fogo. Esse
famoso ser do folclore nacional nada mais é, então, do que uma
cobra transparente que irradia uma luz muito forte dentro da
noite. Há quem diga que ela é um touro, com um olho enorme
na testa, mas essa não é uma versão muito conhecida no Brasil
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e talvez tenha sido influenciada pela confusão com o nome da
entidade.
A Boitatá é o fantasma de uma imensa cobra luminosa.
Alimenta-se somente dos olhos de suas vítimas, por isso seu
corpo transparente é cheio de olhos que brilham para aterrori-
zar as pessoas. Alguns dizem que ela pode se transformar num
pedaço de pau flamejante e, assim, castigar quem destrói as
matas. Dizem que é a protetora dos campos e das reservas na-
turais e que mata quem queima a terra. Para se livrar do ataque
do bicho, a vítima deve fazer como disse João Simões Lopes
Neto: ficar imóvel ou então dar-lhe em qualquer parte do cor-
po com um pedaço de ferro.
Em muitas regiões, a Boitatá é conhecida como Cobra-
-Grande (que pode ser confundida com a Iara), João Galafoice,
João Galafuz ou Boiguaçu. A lenda do Boiguaçu é conhecida no
Brasil inteiro: sempre que há inundações, ela, que vive dormin-
do, acorda para comer todos os outros bichos.
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O horror em chamas
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O encanto do boto
Creatures - Shinedown
“Helena, acorda, acorda.”
“Tá cedo ainda, Lu. Me deixa dormir."
“Helena, deixa de preguiça. A gente tem que sair, ir no
mercado, fazer tudo que a mamãe pediu. A gente não pode dar
nenhum motivo pra ela mudar de ideia. A festa é hoje. Passa-
mos um mês inteiro tentando convencer ela a deixar a gente
ir.”
“Tá, Lu. Falando assim eu levanto. Vai que a tia Tereza
muda de ideia logo agora. Ainda nem acredito que ela nos li-
bertou da prisão.”
“Desce rápido pra tomar café e lava essa cara amarrada
pra sair. Já vou me adiantando”
“Tá bem, menina chata. Eu vou.”
Que merda, nem passou das oito ainda. Mas vale a
pena, depois de três meses é a primeira vez que a minha tia
Tereza me libera do cárcere privado. Nessas horas sinto ainda
mais falta dos meus pais e de São Paulo. Eu tinha uma vida
quase perfeita lá. Amigos, festas, movimento. Eu vivia da forma
como alguém de 16 anos deve viver. Tudo até o acidente. Até os
meus pais morrerem. Só sobrou a minha tia para ficar comigo.
Ninguém me ouviu quando eu disse que já podia me virar so-
zinha em São Paulo, morando na minha casa e seguindo a mi-
nha vida. Vim parar em Altamira, no interior do Pará. Não tem
nada aqui e o pouco que tem a minha tia super protetora não
deixa aproveitar, por mais que eu implore.
Hora de levantar.
A cara no espelho não é das melhores. Odeio acordar
cedo. Olheiras, rosto inchado, além do péssimo humor que
tenho ao dormir pouco. Hoje preciso passar por tudo isso. Eu
e minha prima, Luciana, passamos semanas pedindo para ir a
uma festa em um clube da cidade. Tomo uma ducha rápida, me
visto e desço correndo para tomar café. Minha tia já está ocu-
pada com seus afazeres diários, adiantando o almoço junto à
bancada da cozinha.
“Bom dia, tia.”
“Bom dia, querida. Bom te ver sorrindo a essa hora da
manhã.”
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“O dia hoje está lindo, deu até vontade de acordar
cedo.”
“Até parece que eu nunca fui adolescente. Sei bem que
vocês duas estão assim pela tal festa.”
“Nossa, mãe. Estou me sentindo a pessoa mais interes-
seira do mundo agora.”
“Mas é o que vocês duas são. Só não reclamo porque
estou me aproveitando muito bem da disposição de vocês. An-
dem logo pra ir ao mercado, as melhores frutas e legumes saem
logo cedo. Daqui a pouco não vai ter nada de bom pra vocês
trazerem pra mim.”
“Tá bem, estamos indo, senhora ditadora.”
Disse eu entre risadas compartilhadas entre nós três.
Apesar das nossas diferenças, era difícil não gostar da
minha tia. Ela era uma mulher incrível. Cuidou dos meus avós
até a morte dos dois, foi mãe solteira e criou minha prima com
um amor imenso. Ela mantinha os negócios da família no ramo
de exportação de produtos agrícolas locais com mão de ferro.
Ela era uma mulher forte. Só nos prendia muito.
Tínhamos uma vida muito confortável para os padrões
locais, tínhamos um motorista por nossa conta e alguns empre-
gados na casa relativamente grande que um dia foi dos meus
avós. Erámos prisioneiras de luxo.
“Luís, vamos rápido ao mercado e depois temos que dar
uma passadinha rápida em umas lojinhas pra comprar umas
coisinhas pra gente, tá?!”
“Dona Luciana, sua mãe não gosta que vocês fiquem
rodando pela cidade. Nosso motorista morria de medo da mi-
nha tia.”
“Ah, Luís! É uma passadinha rápida. Precisamos com-
prar umas coisinhas pra festa de hoje. Só umas roupinhas e ma-
quiagens. Vai ser um segredinho nosso, por favor.”
“Tá bem.”
Estava tudo indo como queríamos.
Minha prima, um ano mais jovem que eu, conseguia estar ain-
da mais empolgada que eu para sair.
“Ótimo, Lu. Tudo correndo como esperávamos.”
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“Meninas, comportem-se! Me liguem se algo acontecer
e não passem das duas ou eu vou lá buscar vocês.”
“Tá bem, tia. Prometo cuidar direitinho da Lu e voltar
cedinho.”
“Se cuidem, por favor.”
“Fica tranquila, tia. Eu sempre saia em São Paulo. Sei
me cuidar, tá? Até logo.”
Minha tia parecia estar perdendo nós duas. Ela se preo-
cupava muito. Isso passa. Empurrei esses pensamentos para
longe. Hoje era dia de festa.
“Vamos, Lu. Vamos curtir nossa noite de liberdade.”
A tal festa estava longe de ser uma balada paulista, mas
era o que tínhamos. Era uma festa com temática dos anos 90.
Tocavam músicas que cansei de ouvir em casa com os meus
pais. Me deu saudade deles.
Não haviam muitos caras interessantes para se olhar,
então me concentrei em dançar e curtir com minha prima. Ela
parecia nas nuvens. Acho que se sentia mais presa do que eu no
fim das contas.
Pontualmente aparecia um carinha tentando puxar
papo, eu até tentava dar atenção, mas todos eles pareciam meio
bobos para mim. Um desses acabou conseguindo a atenção da
minha prima. Eu estava sozinha naquela festa meio estranha.
Fui ao bar. Pedi uma cerveja e o barman nem ligou se eu era
menor ou não, como sempre. Sentei no balcão. Tocava Iris, do
Goo Goo Dols. A música tema do filme Cidade dos Anjos. O
filme dos meus pais. A saudade bateu muito forte.
“Tudo bem, moça?” Perguntou uma voz masculina às
minhas costas.
“Tá sim. Só me senti um pouco cansada. O cara se sen-
tou ao meu lado e pediu uma cerveja.”
“Senti um certo ar de tristeza em você.”
A voz dele era doce mesmo por sobre a música alta. Só então
eu olhei. Ele era lindo. Moreno, de altura mediana, olhos esver-
deados, ombros fortes. Me olhava nos olhos. Senti que estava
ficando vermelha.
“Não, tá tudo bem mesmo. Essa música me dá saudade
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de casa. Só isso.”
Como assim, de onde eu fui tirar a ideia de falar disso
com esse estranho?
“Ah! Notei que você não era mesmo daqui. Eu teria
lembrado de você. Se importa se eu ficar aqui?”
“Não, tudo bem. Minha prima sumiu mesmo. Vai ser
bom ter com quem conversar.”
“O povo daqui parece chato pra você também?”
“Tá tão na minha cara assim?”
“Um pouco, mas me sinto deslocado aqui também. Pa-
recem todos um pouco vazios e bobos pra mim. Não chamam a
minha atenção.”
“Obrigada. Bom saber que não chamo a sua atenção.”
“Eu disse que percebi logo que você não era daqui. Você
é diferente de tudo que eu vejo aqui. Você tem alguma coisa
que me atrai.”
Por algum motivo o jeito como aquele estranho me
olhava e falava comigo era confortável. Ele mexia comigo. Eu
sabia que ele estava se insinuando para mim, mas eu gostava do
jeito dele. Estava gostando da atenção, estava me sentindo afim
dele. Por que não?
“Sabe de uma coisa, me deu vontade de dançar. Quer
vir comigo?”
Peguei aquele cara pela mão e arrastei ele comigo para
a pista. Nem me lembro o que estava tocando. Não lembro o
quanto mais falamos no ouvido um do outro e em que momen-
to ele começou a me beijar. Eu fui me deixando levar. Ele tinha
um gosto bom. Me fazia sentir leve, sem peso nenhum. Não vi
o tempo passar, até minha prima bater no meu ombro e dizer
que tínhamos que ir embora.
Eu queria seguir minha noite com ele, estava com von-
tade, com muito desejo. Do beijo, da leveza que ele me dava.
Estava com desejo daqueles olhos verdes me olhando e das
mãos dele me tocando. Não queria que acabasse.
Minha prima me arrancou daqueles pensamentos.
“Helena, a gente tem que ir. Já são quatro da manhã. A
minha mãe vai matar a gente.”
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“Merda. Sério que a gente perdeu a hora assim? Como
foi que eu perdi a noção do tempo desse jeito?”
“Eu preciso ir e nem sei o seu nome.”
Ele me levou até o bar e pediu um pedaço de papel e uma cane-
ta pro barman. No guardanapo ele escreveu umas linhas com
uma letra bonita e me entregou.
“Eu só vou dizer o meu nome se você me encontrar no
lugar que eu anotei aí.”
“Não sei se vou conseguir te encontrar. Me fala o seu
nome, assim te encontro no instagram, me passa o seu telefone
e a gente se fala.”
“Nada disso, me encontra lá.”
Dito isso ele me deu um beijo que me deixou sem ar e foi em-
bora sem nem olhar para trás.
Minha tia estava com uma cara horrível quando chega-
mos, mas nos deixou ir dormir sem brigas. Era mais do que eu
esperava. Já no quarto, depois de uma ducha, eu ainda sentia o
corpo daquele cara contra o meu e o gosto do beijo dele. Abri o
guardanapo, ele anotou uma data e um lugar. Era na sexta-feira
seguinte. Em um barzinho na orla do cais da cidade. Eu não sei
como, mas eu iria àquele encontro...
Os dias correram mais ou menos tranquilos. Minha tia
realmente ficou brava pelo atraso, mas parecia feliz por vol-
tarmos inteiras e com sorrisos no rosto. No fim das contas ela
até parecia disposta a nos deixar sair novamente. Eu tinha uma
chance.
Junto com minha prima inventamos um programa com
os amigos dela de colégio bem na orla. Ela realmente convidou
um monte de gente. Não me importava, era só uma cortina de
fumaça para mim. Quanto mais realista melhores chances eu
teria de escapar.
A sexta-feira chegou com muita empolgação. Eu me
vesti para encontrar com o tal cara como nunca havia feito por
ninguém. Nem sabia o porquê, mas estava louca para rever ele.
Ele me esperava na porta do barzinho. Não sei como,
mas ele parecia ainda mais lindo. Entramos e nos sentamos em
uma mesa sob uma das janelas que dava para o cais. Eu sentia
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uma vontade incontrolável de beijar ele.
Ele pediu bebidas para dois e algum prato para o qual
eu mal olhei. Eu queria ele, desesperadamente.
“Me leva pra outro lugar.” Eu disse, impulsivamente.
“Tem certeza? Você nem comeu.”
“Sim, eu tenho. A gente nem tem muito tempo hoje,
minha tia me espera cedo em casa. Só me leva pra outro lugar
pra eu ficar só com você.”
O que estava acontecendo comigo? Eu queria aquele
cara de uma forma incontrolável. Mal conhecia ele e estava dei-
xando todas as noções de autopreservação de lado. Eu só sentia
uma vontade maluca de estar com ele a qualquer custo.
Ele saiu comigo pela orla e me levou para um ancora-
douro, direto para uma lancha muito bonita. Ele andava con-
fiante, sabia para onde estava indo. Passou por um vigia, pediu
as chaves da lancha e subimos. Eu não senti nenhuma vontade
de perguntar para onde ele estava me levando. Me deixei ser
conduzida.
Aportamos em uma ilha no meio do rio. Havia uma
trilha iluminada. Me sentia em transe, seguindo-o sem questio-
nar. Seguimos então para uma clareira no meio da mata, cerca-
da por tochas e com uma cama no meio.
Ele me agarrou e beijou sem gentileza alguma, tirando
minha roupa. Pela primeira vez eu desejei relutar, mas meu
corpo não respondia. Ele se despiu e me despiu em seguida. Me
beijando e me tocando sem nenhuma ternura. Só impulso. Mi-
nha mente só levemente lúcida sentia medo, meu corpo aceita-
va. Fui jogada na cama. Ele penetrou meu corpo sem nenhum
amor.
Foi então que eu o vi de verdade pela primeira vez.
Seus dentes pequenos, as narinas entre os olhos pretos, o nariz
longo e a pele lisa e úmida contra a minha. Aquele ser demo-
níaco tomava meu corpo sem nenhum carinho. Prendia meus
braços com as suas mãos enquanto me violava.
Haviam pessoas na clareira. Eles se aproximaram, me
forçaram a beber uma água barrenta em um copo de madeira.
Água do rio. Cantando em um transe. Eu apaguei.
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Acordei na minha cama no dia seguinte. Meu corpo
doía. Talvez tenha sido só um sonho ruim. Então vi as marcas
no pulso. Senti a dor entre as minhas pernas. Eu não havia so-
nhado.
Encontrei com minha tia na cozinha. Morrendo de
medo eu contei tudo para ela. Ela ouviu sem me interromper.
“Aconteceu novamente.” Disse minha tia, ao fim.
“Como assim, tia?”
“O demônio do boto também plantou uma semente
dele na sua mãe. Por isso ela foi embora pra São Paulo e nunca
voltou, pra ficar longe do rio e do poder dele. Seu pai aceitou
e a salvou. Ela pariu a cria do demônio lá. Seu pai o matou e
queimou. Foi um erro você ter vindo pra cá. Ele veio cobrar o
sangue com sangue. Agora tem uma semente dele em você.”
“Como assim, tia?” Eu disse entre lágrimas. “Eu não sei
o que fazer, me ajuda, por favor.”
“Vamos embora agora. Sua mãe conseguiu fugir. Vamos
fazer o mesmo.”
Ouvimos então um grito vindo da sala.
Minha prima estava caída, com o pescoço rasgado.
Luís, nosso motorista, segurava uma faca em uma das mãos e
um balde na outra. Atrás dele vinha o demônio na forma de ho-
mem. O boto.
“Não dessa vez. Dessa vez minha cria nascerá. Eu e
meus seguidores vamos garantir isso.”
Luís então avançou sobre a minha tia e o boto sobre
mim. Entrei naquele transe. Vi minha tia sendo afogada no bal-
de, se debatendo, morrendo aos poucos. O boto dizia no meu
ouvido:
“Seu sangue e sua vida são do rio agora. Você pertence
a mim.”
Algo dentro de mim se movia. Eu carregava um filho
daquele demônio e não podia fazer nada a respeito. Eu daria à
luz ao filho do boto. Eu seria a mãe de um demônio.
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CUCA
Cuidado com a Cuca
Que a Cuca te pega
E pega daqui
E pega de lá.
[...]
Quem foi criança nos anos 1970 deve se lembrar desse tema da
Cuca do Sítio do Picapau Amarelo, composto por Dori Caymmi
e Geraldo Casé, exibido pela TV Globo. Foi nessa época que a
literatura de Monteiro Lobato, transposta para a TV, encantou
as crianças com suas personagens brasileiríssimas e também
com os nossos mitos mais queridos, como a Cuca e o Saci-Pere-
rê. Quando ela aparecia, lá vinha a canção de fundo, e a crian-
çada já se preparava para acompanhar a aventura em que as
personagens do sítio iriam enfrentar as maldades da bruxa!...
Sim, a Cuca é a bruxa mais brasileira que existe. Pre-
sente nas cantigas de ninar...
Dorme nenê
Que a Cuca vem pegá
Papai foi pra roça
E mamãe foi trabalhá...
Silfur-Refur - Sólstafir
Havia um pequeno vilarejo de pescadores isolado às
margens do Rio Esmeralda. Cercado por uma densa floresta
tropical, o vilarejo se limitava a um número pequeno de casas
de sapê que margeavam o rio. Devido aos acontecimentos ma-
cabros que trouxeram à tona o medo sobre uma lenda milenar
que aterrorizava essas tribos, muitos fugiram na esperança de
se afastar das zonas próximas as cavernas, onde contavam exis-
tir uma poderosa feiticeira com cabeça de jacaré, que dormia
apenas uma vez a cada sete anos e raptava crianças durante a
escuridão da noite.
Com o desaparecimento de crianças nas aldeias, mui-
tos fugiram com seus filhos para longe das zonas onde haviam
as cavernas, pois segundo as histórias contadas pelos mais
antigos, era no interior dessas cavernas que a bruxa habitava,
preparando feitiços e poções em seu caldeirão de horrores ini-
magináveis.
Alguns indígenas que haviam fugido do interior da flo-
resta, encontraram o vilarejo dos homens brancos que haviam
fixado seu território naquele lugar. Ali compartilharam seus
dons, índios com sua sabedoria sobre a caça, a terra e as ervas,
e os homens brancos especialistas na pesca, acolheram aquele
povo e os fizeram parte do seu.
A tonalidade esverdeada que deu o nome ao Rio Esme-
ralda estava enegrecida naquela noite. Nas águas escuras a lua
crescente refletia seu brilho, formando um rastro prateado que
cintilava sobre a superfície ondulante que a brisa noturna agi-
tava.
Um grito estridente anunciava o tempo de um novo
horror que aprisionaria as pessoas daquele vilarejo em seus me-
dos mais terríveis. Na porta de uma das pequenas casas de sapê,
uma mancha vermelha borrava a terra. O rastro de sangue ru-
bro se espalhava fazendo uma trilha que descia o barranco até
o rio. A terra mexida, empapada em sangue, levava uma mãe
em desespero a procurar seu pequeno filho que fora arrancado
do local onde brincava. O caminho aberto, feito pelo corpo do
menino que fora supostamente arrastado, cintilava o sangue na
luz do luar, guiando os passos trôpegos da mãe que rumava às
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cegas para a encosta do Rio Esmeralda.
Ajoelhada no topo da ribanceira parcialmente desmo-
ronada, o profundo pranto de angústia daquela mulher des-
pencava em lágrimas que desciam feito cascata encontrando
as águas turvas do rio. Suas mãos trêmulas remexiam a terra
ensanguentada enquanto suas lágrimas continuavam a gotejar
amargura contínua, misturadas com terra, sangue e dor, a dor
interna que era expressada nos desenhos angustiantes risca-
dos pelos dedos que remexiam a mistura densa de sentimentos
destroçados. Amparada por outros moradores do vilarejo, a
mulher se ergue, apoiada em profunda tristeza. A noite ruidosa
por sons de animais noturnos trazia de volta o assombro das
antigas lendas sobre a velha feiticeira que raptava as crianças
desobedientes. Naquela noite, tudo se cobria com um manto
negro de assombro e horror que refletia nos olhos aflitos dos
moradores do vilarejo.
Na manhã seguinte o sol despontou sobre as copas
das árvores borrando o céu com uma coloração avermelhada.
Parecia que os resquícios da noite passada se retratavam ali,
naquele vermelho que tingia nuvens e fazia lembrar os terrores
noturnos.
A mãe que perdera o filho, debruçada na janela, man-
tinha os olhos parados no rio, buscando consolo em algo des-
conhecido, alguma coisa que pudesse trazer-lhe respostas ou
ao menos acalentar seu coração em desespero.
Os dias não eram mais os mesmos, pois o domínio
do medo rondava o lugar. Os homens desciam o rio com seus
pequenos barcos, as mulheres pensavam em algo que pudesse
livrar seus filhos deste mal que parecia reviver.
Sete luas se passaram e o medo teve que ceder espaço
para as festividades de Tapiburã, um evento anual em que os
aldeões festejavam em nome de uma criatura mítica pedindo-
-lhe fartura. As tochas cravadas na terra tremeluziam o fogo
vivo que queimava e inflamava a escuridão da noite. Havia
tambores e cantoria, bandejas em folhas de bananeira espalha-
das em toda parte. O vilarejo estava enfeitado pelas luzes das
tochas e as lindas flores de vários tons que se espalhavam pelo
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espaço aberto onde a festividade era celebrada.
Tudo era preparado de acordo como todos os anos, no
período de lua cheia, com música e oferendas. Em meio aos
cânticos e tambores um grito rasga a noite, vindo da encosta
do rio. Um dos moradores havia ido buscar água com o filho,
uma criança de cinco anos que insistiu em acompanhar o pai
para encher o jarro de barro. Quando o homem se deu conta,
a criatura já havia emergido do rio com sua gigantesca boca
escancarada e repleta de dentes pontiagudos. Abocanhou o om-
bro e parte do tórax no menino, puxando a criança para dentro
do rio. O pai, após soltar o grito de desespero, saltou na direção
da criatura em socorro do filho. Num movimento brusco com
a cabeça, a criatura joga a criança dentro d’água e abocanha o
braço do homem que tenta se defender como pode, mas tem o
membro amputado e se afasta sentindo extrema dor. A criatu-
ra ergue a cabeça engolindo o braço que acabara de arrancar, em
seguida torna a abocanhar o menino que se debatia nas águas rasas,
carregando seu corpo preso entre as mandíbulas de volta para o
fundo do rio.
O homem se arrasta barranco acima, desnorteado em seu
desespero. O pedaço que lhe restou do braço está terrivelmente di-
lacerado, com sua extremidade ornada por pedaços de pele e carne
regada a sangue. Finalmente deitado na terra, o pai do menino urra
como um animal ferido enquanto é consumido por sua excrucian-
te dor. Enquanto alguns habitantes do vilarejo se aproximam para
prestar socorro, após ouvirem por entre a cantoria os gritos cortan-
tes daquele homem, como pai que acaba de perder o filho, ele ape-
nas encara o céu negro sobre seus olhos. Aquele monstro de pele
rígida e dentes afiados não era apenas um jacaré enorme, ia além
disso. Os olhos da criatura queimavam feito fogo.
O animal estava visivelmente controlado por uma força de-
moníaca. Se sobreviver a hemorragia, aquele homem nunca es-
quecerá da noite em que olhou nos olhos do demônio encarnado
no corpo de um jacaré. Enquanto sua mente naufragava em dor e
escuridão, aquele homem via, por entre uma fumaça cinzenta, uma
feiticeira com corpo de mulher e cabeça de jacaré, remexendo em
seu caldeirão memórias sombrias em forma de pesadelo.
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CURUPIRA
A essência do Curupira é ser protetor das matas e da caça, o de-
mônio da floresta, responsável pelos barulhos misteriosos que
ali se ouvem. Esperto, ele engana todos os que caçam e faz com
que se percam na floresta. Faz acordos com eles e oferece-lhes
armas que nunca falham em troca de comidas, bebidas e outros
presentes.
Em Maio de 1560, na carta conhecida como Descrição
das coisas naturais da Capitania de São Vicente, o Padre José de
Anchieta assim escreveu sobre o Curupira:
O Curupira
66
IARA
Sem dúvida, a Iara é um dos mitos mais queridos do
Brasil. E, tal como ela, o mito da mulher que mora nas águas -
y-íara em nheengatu significa “Mãe-d’Água que vive no fundo
do rio” - é comum a muitos povos do mundo. As sereias, as mu-
lheres que são metade peixes e metade humanas, estão presen-
tes em toda a literatura mundial.
Há muitas lendas sobre a Iara e uma das mais conhecidas
é a que diz que ela era uma guerreira índia muito inteligente
e corajosa, e seu pai a elogiava muito. Por isso, seus irmãos ti-
nham muita inveja dela e planejaram matá-la. Ela ouviu a con-
versa deles e então resolveu matá-los antes. Assim o fez, e de-
pois fugiu para dentro das matas. Mas o pai, furioso com o que
ela havia feito, a perseguiu até encontrá-la e como castigo a
lançou no rio Solimões. Os peixes a salvaram da morte e, como
era noite de lua cheia, ela se transformou em uma bela sereia.
A personalidade da Iara é controversa. Ela é linda, se-
dutora, possui um canto maravilhoso e, assim, atrai homens e
mulheres para o fundo do mar. Ali eles visitam o palácio en-
cantado dela e nunca mais serão os mesmos… Ainda que vol-
tem para a terra, seu desejo será sempre retornar ao fundo das
águas e, por isso, acabam morrendo afogados. A lenda “O Uiara
do Jaraguá”, escrita por Armando Guerrazzi na seção “Lendas
e fábulas indígenas” de uma edição de 1938 da Revista Cultura,
descreve bem o encantamento que envolve a figura da Iara:
Mermaid - Skott
Há um tempo atrás fui num desses terreiros de Um-
banda, daqueles que os milagres ocorrem e as energias percor-
rem nossa alma. Esse templo era morada no Amazonas e além
de rico visualmente, era rico em energia.
Lembro da aflição em que me encontrava para poder
encontrar meu filho: um jovem pescador, o qual foi aos rios e
nunca mais voltou. O rio desfrutara de sua jovialidade e sumiu
com seu corpo. Há dias vinha procurando meios de encontrar
meu filho antes de retornarmos a nossa casa em São Paulo, até
que certa moça mencionou o templo o qual eu estava: disse
saber de magia, de reza e coisa brava. Falaram-me sobre certa
lenda de Iara, dessas dos livros infantis.
“Sabe fia, as coisa por essas banda num são fácil como
a sinhazinha pensa” Um homem incorporado numa entidade
com traços da escravidão (até então, denominava-se um preto
velho) disse-me, revezando as palavras com as baforadas do ca-
chimbo.
“Eu imagino que não sejam. Eu só quero encontrar meu
filho...” Não me preocupei em soar mal-educada com uma enti-
dade a qual procurava me ajudar.
O preto velho ria, mas teu riso calmo de vovô não me
acalentava, pior: demonstrava a tranquilidade daquele espírito
com meu caso “Sinhá, o nego véio vai falar pra tu onde seu fio
tá...”
Emaranhada na fumaça do cachimbo e nos olhos cerra-
dos do médium incorporado, fiz-me ansiosa “Ora, se sabe onde
ele está, diga-me: começarei uma busca o quanto antes. Você
quer dinheiro? Eu lhe pago, eu tenho. Meu marido quem man-
dou desbravar toda essa mata para exploração. Anda, diga onde
ele está.”
Eu estranhei o preto velho ter soado desinteressado
quando falei de dinheiro. Permaneceu na mesma posição. Tua
quietude me espantava.
“A sinhá guarda o pataco” Creio que ele quis dizer di-
nheiro em seu dialeto “Disso não preciso. O nego vai te conta
onde seu fiinho tá.”
“Então ande, fale!” Mal podia esconder a ânsia e as bor-
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boletas que fugiram do meu estômago e foram para a cabeça;
causando uma enxaqueca tremenda em curiosidade.
“Embaixo do rio fia, ele tá embaixo do rio...”
Eu juro que puxei o ar, respirei o mais fundo necessário
para não sair quebrando aquela tenda. Não acredito ter escuta-
do o óbvio de um, até então, ser de luz.
“Você só pode estar brincando. Fez eu perder meu tem-
po. Não sabe a dor que sinto no peito? Eu sei que meu filho
está embaixo do rio...” Só as mães sabem o falhar do segurar o
choro, quando o assunto é filho. Quando me vi, desabava em
pranto. Prestes a me levantar e retirar-me.
“Mas ele tá vivo, fia...” A voz do homem fez eu inter-
romper a ação de me erguer e sumir. Limpei as lágrimas e não
escondi meu olhar de confusão.
“É fia... Ele tá vivo, vivinho da silva. Mas não por muito
tempo. Seu fio tá no reino das águas doces, mergulhado nos
braços de paixão da Iara...” O modo com o qual o homem usou
das palavras fez-me arrepiar. Não, eu não iria acreditar numa
lenda antiga. Mas de algum jeito, meu coração de mãe fez-se
crédulo nas verdades de um preto velho.
“Não pode ser, você está brincando comigo...” Tentei
esconder a verdade que sentia “Não há lógica nenhuma nisso.
O senhor deve estar usando esse conto porque eu me chamo...”
“Iara?” O preto velho acrescentou e outro calafrio per-
correu meu corpo.
Engoli em seco. E só aí lembrei que não havia dito meu
nome a ele ou a mais ninguém dali.
“Sim...” Congelei minha palavra num silencio árduo.
“Poucos foram os que conheceram de perto a sereia das
águas amazônicas...” O preto velho puxou teu cachimbo e eu
pude ver da tua fumaça sair a silhueta de uma belíssima sereia.
A fumaça dançava aos meus olhos e devagarinho, como num
bailar de cascatas cristalinas entrei em transe. E cada palavra
daquele ser, ecoavam em minha mente numa outra cena.
“Todos sabem, fia minha, que essas banda é cheia de
histórias. Mas Iara, ah, Iara não é só uma história... história é
sobre o que já passo... Iara não passo, ela é presente nos rios e
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na vida de quem respeita suas águas e não cai nos seus encan-
tos...”
Conforme o preto velho falava, via numa cascata dou-
rada uma sereia a se pentear. Como se fitar teus olhos fosse vis-
lumbrar um paraíso cítrico de paixão, ela exalava a natureza na
visão.Teu ar de índia me remetia a caçar teus lábios carnudos.
Mal pude reparar na enorme cauda a qual misturava-se no cris-
tal das águas. Pois me peguei devota do teu cantar, deixando-o
possuir todo o meu ser.
Ela chamava por mim
Ela precisava de mim
Eu iria até ela...
Até que vi de relance, meu filho em teus braços. Em
beijos molhados. Perdendo-se nas correntezas do corpo de Iara.
Pasmei com a visão das águas cristalinas: enxerguei um
rio de sangue. Cascatas densas e gritos de pavor, urros masculi-
nos e reclamações de misericórdia.
“Fia...?” Retornei ao chamar do preto velho. Minhas
mãos estavam gélidas e eu não recordava nem mais onde estava
ao certo. A visão que tive pelo cachimbo da entidade me cobri-
ram em verdade “A sinhá tá me escutando?”
Segui de olhos arregalados. Pasma. Sem responder aos
seus chamados. O que eu havia visto, meu filho nos braços de
Iara, eu estava lá. Eu vi tudo.
O médium logo começou estalar os dedos ao meu re-
dor e a cada passar de dedos, pude ir voltando desse transe
amedrontador. Lidar com meu ceticismo agora não seria mais
problema, meu interior já acreditava cegamente em tudo.
“Eu vi...”
“A sinhá acredita agora?” O velho deu um risinho no
canto da boca. Agora estava com um galho de arruda na mão.
Apenas concordei com a cabeça, seria difícil demais as-
sumir crer numa visão em voz alta.
“O que eu devo... o que devo fazer...” Balbuciava ofe-
gante, ainda inerte com o que meus olhos viram. E com o de-
sejo aflorado. Eu jamais senti atração por mulher alguma, mas
Iara, estava na minha mente.
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O preto velho me entregou um rosário junto à sua ervi-
nha de arruda e deu um risinho baixo. Colocou seus itens sobre
minhas mãos e fechou meus dedos, dando-me teu aperto de
mão.
“Reza fia, só reza e vai ao encontro da sereia. Vai onde
seu minino sumiu e fala cum ela...”
“Não, mas isso não. Eu não vou voltar ao local do de-
saparecimento do Daniel...” E lá estavam as lágrimas caindo
do meu rosto. Pesarosas sobre o rosário de uma entidade. Meu
filho de quatorze anos me veio a mente, naquela visão contur-
bada, mergulhando no corpo daquela mulher. Desatei o pranto
e meus olhos sangravam a dor de uma mãe assustada.
A entidade levou agora a arruda e o rosário ao meu pei-
to. Perfurou minha alma com seus olhos misericordiosos e de
um médium incorporado vi uma lágrima cair.
“Quem escuta Iara cantar fia, tem que seguir ela... Não
tem jeito. Cê entende o nego? O único jeito de salva teu fio, é
seguir a sereia.”
“Mas se eu for até ela e padecer?”
“Suncê ama seu minino?” Questionou o preto velho.
“Mais do que tudo!”
“Então tu num há di padecê...”
E dali nos despedimos. Sai daquele terreiro com os
olhos marejados de pudor — o que vi não seria apagado jamais.
Mas meu coração estava acalentado. Ainda caminhando até
a saída pude sentir tudo em câmera lenta, como se o mundo
fosse parando aos pouquinhos e apenas minha tristeza fluísse
sobre meus olhos. As moças de saia dançando numa velocidade
pequenina, os atabaques sendo tocados na maior cautela do
tempo. Virei-me para fitar uma última vez aquele preto velho...
E ele não estava mais lá
Ele nunca esteve
E nunca mais o encontrei.
CANTO DA SEREIA
CASCATAS DE DESESPERO
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MULA SEM CABEÇA
Pisadas rápidas e furiosas, como se fosse um tropel de mil ca-
valos urrando, lá vem ela. É noite quando ela aparece soltando
fogo pelas ventas, é a Mula Sem Cabeça que vem chegando!
Não há quem não a conheça nesse imenso Brasil. As
historias da Mula Sem Cabeça passam de geração para geração.
Se para uns ela só dá o ar da graça na Quaresma - período de
quarenta dias que, para os católicos, antecede a Páscoa -, ou
ainda a cada sete anos. Como afirma o folclorista Alceu May-
nard Araújo, em seu Documentário folclórico paulista (1952),
aparência da Mula que não tem rosto, mas urra sem parar, varia
de região para região:
Além disso, há quem diga que ela tem uma faixa branca no pes-
coço. Para outros, na verdade, a Mula é invisível, lembrando a
personagem Cavalo Fantasma, e ninguém pode vê-la, só ouvi-
-la.
Fato é que a sina de virar Mula Sem Cabeça é dada
como castigo às mulheres que namoram padres, o que é proibi-
do pelo Catolicismo.
Então, quando é meia-noite em ponto, ele se levanta da
cama, pula pela janela e deixa o marido dormindo para cumprir
sua má sorte.Ninguém detém o seu galope, suas patadas são
mortais e vem acompanhadas de barulho de ferro arrastado,
seus cascos ferem como facas. Soltando fogo pelo pescoço e
pelo rabo, a Mula deixa atrás de si um rastro de medo e destrui-
ção, pois costuma matar a coices qualquer um que lhe apareça
pela frente, especialmente se ela enxergar suas unhas e seus
dentes (então, para chegar perto dela, recomenda-se esconder
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essas partes).
Isso porque, alguns afirmam, ela se alimenta desses
dois tipos de elementos do corpo humano. Transforma-se de
novo numa mulher, mas seu corpo guarda as marcas da selva-
geria: fica todo machucado, e a mulher, muito abatida.
De modo semelhante ao Lobisomem, a Mula Sem Cabeça
deve correr por sete cidades que sair, e para livra-la do encanto
só tirando seu sangue, mesmo que seja apenas um pouquinho.
Outra maneira é retirar o freio que ela carrega no pescoço (que
está sempre sujo do sangue de seus dentes invisíveis), mas,
como ela é muito rápida e feroz, essa possibilidade é bem re-
mota!
Quando encanto se quebra, dizem que ela volta a ser
humana e aparece completamente nua, pois só assim poderá
ser devidamente castigada por seu malfeito. Para que ela não se
transforme novamente (ou não se transforme nunca) em Mula,
o padre devera amaldiçoa-la sete vezes antes de começar a mis-
sa (outros dizem que é na hora de consagrar a hóstia santa, an-
tes de tocá-la).
A relação da figura da Mula com padre é antiga. Era
muito comum que os sacerdotes andassem montados em mulas
para se locomover, uma vez que os cavalos eram usados para
transportar soldados.
A Mula Sem Cabeça provavelmente tem origens ibéri-
cas. No Nordeste, é conhecida como Burrinha de Padre ou ape-
nas Burrinha e, no interior do Maranhão, como Cavala-Canga.
No México, dizem que ela se chama Malora, e, na Argentina,
Mulánima, Alma Mula, Mula Sin Cabeza, Mujer Mula, Mala
Mula, entre outros nomes.
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SACI-PERERÊ
Azedou o leite? As galinhas estão nervosas? O rabo do cavalo
está cheio de nós? A comida estragou? Sumiu alguma coisa de
dentro de casa e ninguém consegue achar? A louça quebrou
sem ninguém sequer pôr a mão nela? Viu um rodamoinho for-
te, daqueles que espantam todas as folhas do quintal?
É o Saci-Pererê, claro! Considerada uma das
personagens mais conhecidas - e queridas! - do folclore
brasileiro, esse negrinho de uma perna só tem tantas histórias
quantas se consegue contar.
São tantas as histórias que um dos nossos maiores
escritores, Monteiro Lobato, resolveu reuni-las no livro O Sa-
ci-Pererê: resultado de um inquérito (1918), fruto de uma grande
pesquisa de opinião sobre aquele que é tido como o mais bra-
sileiro de todos os mitos folclóricos. Naquela época, o mundo
vivia a Primeira Guerra Mundial, e Lobato “louvava” a figura do
Saci-Pererê como alguém que tinha vindo para “aliviar-nos do
pesadelo”: “Por várias semanas alvorotaste meio mundo, oh in-
fernal maroto, e desviaste a nossa atenção para quadrado mais
ameno que o trucidar dos povos, Bendito sejas!”.
E, a partir de então, o nosso escritor, autor das aventu-
ras que se passam no Sítio do Picapau Amarelo, popularizou o
Saci-Pererê de tal maneira que até hoje não há quem não o co-
nheça e não saiba contar pelo menos uma história de suas tra-
vessuras. Vejam só como Lobato descreve o esperto negrinho
por meio de Tio Barnabé, uma de suas personagens favoritas:
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Conhecemos três espécies de saci: Trique, Saçurá e Pe-
rerê. O saci mais encontrado por aqui é o Saci-Pererê.
É um negrinho de uma perna só, capuz vermelho na
cabeça e que, segundo alguns usa cachimbo, mas eu
nunca vi. É comum ouvir-se no mato um “trique”; isso
é sinal que por ali deve estar um Saci-Trique. Ele não é
maldoso; gosta só de fazer certas brincadeiras como, por
exemplo, amarrar o rabo de animais. O Saçurá é um ne-
grinho de olhos vermelhos; o Trique é moreninho e com
uma perna só; o Pererê é um pretinho que, quando quer
se esconder, vira um corrupio de vento e desaparece no
espaço.
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TEMPAT BAGI ORANG
YG TERLANTAR
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Pósfacio
Em primeiro lugar queremos agradecer pela leitura de nosso
livro. Esperamos ter surpreendido nossos leitores e estamos felizes
de alcançar nossos objetivos, que é valorizar nossa cultura, de uma
forma diferente, principalmente através do terror.
Para realizarmos esse livro edição especial não foi um trabalho fácil,
exigiu bastante trabalho, esforço e pesquisa para que pudéssemos
produzi-lo. Usamos de vários livros e projetos para montarmos este,
todos disponíveis na bibliografia. Não queríamos apenas entregar
contos de terror, mas também trazer informações novas sobre nos-
so folclore, acreditamos é importante sabermos suas origens, pois
está ligada diretamente com nossa origem, com a dos brasileiros.
Agradecemos a autora Januária Cristina por deixarmos utilizar
informações de seu livro “Abecedário de Personagens do Folclore
Brasileiro” e a Aline Goettems por emprestar seus contos assustado-
res do livro “O Lado Sombrio do Folclore”.
Reunimos esses dois livros e mais alguma informações neste
livro, para que essas incríveis histórias não sejam esquecidas, mas
para que sejam cada vez mais lembradas e levadas adiante, pois
nossa cultura, nossa origem, nossos antepassados não devem ser
esquecidos e essa é a forma que encontramos para passa-la adiante.
Esperamos do fundo do coração que tenham gostado. Obrigado.
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Bibliografia
ALVES, Januária Cristina. Abecedário de personagens do folclore
brasileiro: E Outras Criaturas do Folclore. 1. ed. Brasil: FTD Educa-
ção, 2017. p. 1-416.
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Biografia
Abecedário de personagens do folclore brasileiro:
E Outras Criaturas do Folclore.
Marcos Martiz, responsável pelo conto Iara, aos cinco anos des-
cobriu sua paixão pela arte circense e teatral, e, desde então, vem
seguindo o ramo artístico – já participou e ainda faz parte de di-
versos projetos culturais. Hoje dirige a companhia teatral “Bonecos
Teatrais” que estreou o espetáculo infantil “Os Três Porquinhos na
Cidade” de sua autoria. Também dá aulas de teatro e segue sua car-
reira de ator na peça “A Pequena Sereia” da Cia Imagin’Art, dentre
outras.
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Agradecimento
Este ano de 2020, está sendo um ano muito conturbado, devi-
do a todos os acontecimentos. Provamos que mesmo longe, pode-
mos estar perto de todos aqueles que amamos e que uma conexão
verdadeira entre pessoas, nem a distância desfaz. Aprendemos o
quanto a liberdade de ir e vir é preciosa, aprendemos a valorizar
pequenas coisas e pequenos esforços. Então esse também está sen-
do um ano de muitas descobertas, mudanças, novos sentimentos e
aprendizados.
Agradecemos a todos os professores que nos ensinaram e nos
apoiaram. Todos os professores que mesmo longe, com dificuldades
em entender esse novo sistema e em suas casas, não deixaram de
nos ensinar, educar e ajudar com problemas educacionais e pesso-
ais, ao serem compreensivos com nossos problemas.
Agradecemos as autoras Januária Cristina e Alice Goettems,
por entender e simpatizar com nosso projeto, emprestando conteú-
dos de seus livros, que foram essências na produção deste aqui. Sem
elas este livro não aconteceria.
Agradecemos a toda a equipe por seu esforço e empenho,
nós fomos incríveis e fizemos um ótimo trabalho de equipe! Agra-
decemos também aos nossos familiares, por nos entenderem, nos
apoiarem e nos incentivarem.
E por fim, mas não menos importante, agradecemos princi-
palmente aos nosso leitores e avaliadores, sem vocês não estaríamos
aqui, produzindo esse livro. Saibam que vocês são o motivos de
todo o nosso trabalho e esforço, para entregar um produto incrível,
assim como vocês são. Obrigado.
A criação desse projeto de design gráfico editorial para
livro teve como finalidade única e exclusivamente o estudo
acadêmico relacionado ao seu conteúdo e ao aprendizado de
criação em design gráfico editorial e todo o conteúdo nele
utilizado, seja fotografia, texto, logotipo, ilustração,
grafismo, entre outros, protegido por direitos
autorais permanecem de posse exclusiva de seus detentores
legais. Em nenhum momento, teve-se a intenção de infringir
as leis de direitos autorais, ou apropriar-se de seus
direitos e usos para finalidades comerciais e/ou
financeiras ou, ainda, que venham a trazer qualquer.
benefício, excluído o de estudo acadêmico, aos que
estiveram nele envolvidos totalmente ou em parte.
DARKSIDEBOOKS.COM
Demônio (De-mô-ni-o):
Espírito maligno. Entidade so-
brenatural de natureza maléfica;
Diabo; Lúcifer.
Folclore (Fol-clo-re):
As tradições e histórias de um
país ou uma comunidade.