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ORGANIZADO POR

Felipe Amarante Martins


Jaqueline de Oliveira Vitor
Marianne Sayuri Taqueushi Paixão
Pedro Henrique de Melo Vasconcelos
Thaynna Peixoto Nunes
A História Real do Folclore Brasileiro ©
Copyright © 2020.
Todos os direitos reservados.
Ilustração
© Felipe Amarante

Diretor Editorial
Marianne Paixão
Diretor Comercial
Pedro Henrique de Melo

Gerente de novos Negócios


Thaynna Peixoto
Gerente de Marketing Digital
Jaqueline de Oliveira
Editores
Marianne Paixão
Thayna Peixoto

Capa e Projeto Gráfico


Felipe Amarante
Marianne Paixão
Designer Assistente
Marianne Paixão
Revisão
Pedro Henrique de Melo
Jaqueline de Oliveira

DADOS INTERNACIONAIS DE CATÁLOGO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


Andréia de Almeida CRB-8/7057

A História Real do Folclore Brasileiro, Januária Cristina Alves;


Rio de Janeiro – DarkSide Books, 2017
120p. : il.

ISBN: 978-85-9454-079-9

1.Literatura Brasileira. 2.Contos. 3. Horror.


I.Título

17-0574 CDD:869.93.
Índice para catálogo sistemático
1. Literatura Brasileira

[2017]
Todos os direitos desta edição reservados à
DarkSide® Entretenimento LTDA.
Rua do Russel, 450/501 – 22210-010
Glória – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
www.darksidebooks.com
ORGANIZADO POR
Felipe Amarante Martins
Jaqueline de Oliveira Vitor
Marianne Sayuri Taqueushi Paixão
Pedro Henrique de Melo Vasconcelos
Thaynna Peixoto Nunes
SUMÁRIO
Boitatá
{ O horror em chamas }
21

Boto cor de rosa


{ O encanto do boto }
37

Cuca
{ Às margens do horror }
49

Curupira
{ 10 - S82 }
57

Iara
{ Iara }
69
Lobisomem
{ Lupino }
83

Mula sem cabeça


{ A chama do pecado }
95

Saci
{ Tempat  bagi orang yg terlantar }
107

Posfácio
123

Bibliografia
125

Biografia
127
Todas as histórias desse livro tem como objetivo
homenagear muitos autores que escrevem sobre o
folclore nacional brasileiro.
A mãe do medo é a incerteza e o pai do medo é o escuro.
Enquanto houver escuro no mundo, haverá medo, haverá
monstros como os que você vai ver.
- Lobato, Monteiro; O saci.
Introdução
“A cultura é de todos: este é o fato primordial. Toda sociedade
humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos, seus
próprios significados. Toda sociedade humana expressa tudo
isso nas instituições, nas artes e no conhecimento. A forma-
ção de uma sociedade é a descoberta de significados e direções
comuns, e seu desenvolvimento se dá no debate ativo e no seu
aperfeiçoamento, sob a pressão da experiência, do contato
e das invenções, inscrevendo-se na própria terra.” Raymond
Williams, um dos fundadores dos estudos culturais ingleses, dá
conta nesse trecho de algo importante: os saberes do povo (sig-
nificado de folclore) e suas expressões cotidianas são criações
que contribuem para dar forma a uma sociedade.
Alegar distância entre os saberes da elite e os do povo deu en-
sejo a que estes últimos se vissem colocados num escaninho
isolado, associados à produção comunitária, “autêntica” e pura,
onde se encontrariam as raízes da verdadeira identidade nacio-
nal, advindos sobretudo do mundo rural – visão que nasce do
Romantismo europeu, de meados do século XVIII. No Brasil,
os estudos folclóricos começaram no século XIX, sob influên-
cia do movimento romântico, e tiveram no século seguinte seu
desenvolvimento marcado por momentos heroicos e debates
ideológicos intensos. A evolução do conceito de política cultu-
ral levou a um redimensionamento das atenções, institucionais
ou não, à multiplicidade de fazeres e saberes.
Simbolicamente, a cultura trata da articulação que os seres
humanos fazem com os fatos do mundo, que lhes dão estabi-
lidade. Nesse sentido, não cabe a radical distinção entre o que
é popular, erudito ou de massas, registros cujas fronteiras es-
tão cada vez mais embaralhadas na sociedade contemporânea.
Williams chama a atenção para dois aspectos da cultura. O
primeiro é o que se reporta aos significados que vêm pela tra-
dição. O segundo, o referente à dimensão criativa, onde novos
sentidos são elaborados e incorporados.
Se termos como folclore e cultura popular fossem descartados,
as peculiaridades de uma miríade de mitos e crenças, artes, fol-
guedos, festas e práticas cotidianas acabariam sendo deixadas
de lado. O importante é alterar os modos de tratar e ver esse
rico patrimônio, que dialoga e evolui com o tempo, cujo po-
tencial criativo alimenta produções de todas as formas e níveis.
É o que se apreende da leitura deste Abecedário: suas perso-
nagens são frutos das mais diversas produções, de cantadores
populares a autores como Erico Verissimo, de pesquisadores
dedicados, como Câmara Cascudo, a contadores de histórias,
de artistas letrados e célebres a criadores anônimos e analfabe-
tos. Algumas vêm de tempos remotos, outras se popularizaram
num tempo recente.
Suas origens, também diversas: europeias, africanas, indígenas.
Trata-se de uma produção que permeia não apenas o imaginá-
rio e as práticas da população mais pobre, mas que atravessa
os vários estratos sociais por processos de interação variados.
Assim, o repertório cultural de uma sociedade é formado pelas
criações de todos os segmentos que a compõem, independen-
temente das categorias que historicamente vêm estabelecendo
fronteiras entre os diversos níveis de produção.
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BOITATÁ
Em maio de 1560, padre José de Anchieta escreveu, na carta co-
nhecida como Descrição das coisas naturais da Capitania de São
Vicente, sobre o Boitatá:

[...] vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos


rios, e são chamados boetatá, que quer dizer “coisa de
fogo”, o que é o mesmo como se dissesse “o que é todo
fogo”. Não se vê outra coisa senão um facho cintilante
correndo daqui para ali; acomete rapidamente os ín-
dios e mata-os, como os curupíras: o que seja isto, ainda
não se sabe com certeza. 

O escritor João Simões Lopes Neto também descreve a Boitatá


em seu livro Contos gauchescos e lendas do Sul, publicado pela
primeira vez em dois volumes, em 1912 e 1913:

Quem encontra a Boitatá pode até ficar cego… Quando


alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou
ficar parado, muito quieto, de olhos fechados aperta-
dos e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a
cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande
e atirar-lhe em cima, e tocar a galope, trazendo o laço
arrasto, todo solto até a ilhapa!

Como se pode ver, de boi “a” ou “o” Boitatá não tem nada. A
confusão, quem sabe, tenha começado pelo nome: em tupi-
-guarani, mbae quer dizer “coisa”, e tatá, “fogo”. Como esse
fantasma luminoso se mexia de maneira ondulada, foi fácil as-
sociá-lo a uma cobra. Ou, talvez, por mboia significar “cobra”,
a personagem tenha virado a Mboi-Tatá, a cobra de fogo. Esse
famoso ser do folclore nacional nada mais é, então, do que uma
cobra transparente que irradia uma luz muito forte dentro da
noite. Há quem diga que ela é um touro, com um olho enorme
na testa, mas essa não é uma versão muito conhecida no Brasil
21
e talvez tenha sido influenciada pela confusão com o nome da
entidade. 
A Boitatá é o fantasma de uma imensa cobra luminosa.
Alimenta-se somente dos olhos de suas vítimas, por isso seu
corpo transparente é cheio de olhos que brilham para aterrori-
zar as pessoas. Alguns dizem que ela pode se transformar num
pedaço de pau flamejante e, assim, castigar quem destrói as
matas. Dizem que é a protetora dos campos e das reservas na-
turais e que mata quem queima a terra. Para se livrar do ataque
do bicho, a vítima deve fazer como disse João Simões Lopes
Neto: ficar imóvel ou então dar-lhe em qualquer parte do cor-
po com um pedaço de ferro.
Em muitas regiões, a Boitatá é conhecida como Cobra-
-Grande (que pode ser confundida com a Iara), João Galafoice,
João Galafuz ou Boiguaçu. A lenda do Boiguaçu é conhecida no
Brasil inteiro: sempre que há inundações, ela, que vive dormin-
do, acorda para comer todos os outros bichos. 

OUTROS NOMES: Mboi-Tatá


REGIÕES DO PAÍS: Todas
ORIGEM: Européia, indígena
PERSONAGENS RELACIONADAS: Biatatá, Fogo-Fátuo, Iara,
Jaci, João Galafoice, João Glafuz, Mãe do Ouro

22
O horror em chamas

My Songs Know What You Did In The


Dark (Light Em Up) - Fall Out Boy
A MORTE RASTEJANTE

O advogado acaba de sair. Garantiu-me que pode me


livrar das grades. Ou pelo menos diminuir minha pena. O chi-
caneiro de porta de cadeia tem um trunfo: vai argumentar no
tribunal que padeço de alguns problemas de ordem psicológica,
atenuando minha condenação. Um eufemismo tolo para evitar
dizer que não passo de um louco.
Não sou louco. Um louco não sabe das coisas que só eu
sei. Guardo tudo na memória, gravado com as tintas flamejan-
tes do medo − aquele quadro hediondo de abominações dantes-
cas que presenciei, em corpo e espírito!
Agora a morte é apenas um horror ígneo e sibilante, co-
leando nas sombras. Cada vez mais perto, o horror em chamas
se aproxima outra vez. Mboitatá – eis como chamam a morte
que sibila em chamas!
O horror tomou forma na escuridão da noite. Grotesca
e asquerosa é a fome por almas que a coisa possui. O horror
ígneo rastejante, a sombra sibilante de fogo do Inferno... Algo
medonho que se aproxima. Fede como mil cadáveres chamejan-
tes, e de sua língua bifurcada escorre algo como lavas de vulcão
– sua peçonha mortífera e infernal.
É o Mboitatá, dizem os índios e caboclos mais antigos, a
serpente de fogo de mágicos poderes, a morte sibilante e me-
tuenda. Das profundezas, subindo e subindo dos grotões das
margens dos rios do Inferno, através dos vórtices nas fímbrias
dos pesadelos mais negros.
Arrancar-me-á a cabeça, tenho certeza, como fez com
minha mãe e irmãs – seus corpos degolados encontrados fu-
megando entre cinzas de nossa casa corroboram o que afirmo,
embora os tolos homens da lei achem que seja eu o assassino e
o incendiário. O advogado me deixou lápis e papel, e aqui estou
a escrever tudo o que de fato houve.
Não, eu não temo a morte. Temo apenas o que vem de-
pois dela: a continuação do horror!... Não passamos de meros
fantoches nas mãos de entidades terríveis e poderosas, e o
Mboitatá é uma delas. É um jogo cruel e tenebroso, os homens
24
não passam de cobaias nas mãos de entidades sombrias. Há
somente trevas, dor e morte no carrossel infernal dos mundos
visíveis e invisíveis...

A MISSIVA DENTRO DA GARRAFA

Tudo começou numa bela manhã de abril, muito tem-


po depois de chegarmos ao Brasil, vindos de Providence, nos
Estados Unidos. Antes de horrores infernais, quase sempre
precedem belezas miríficas e alegrias paradisíacas, e toda treva
maldita da morte nidifica seus ovos negros de horror na luz
dourada, efêmera e opiácea da paz.
Meu pai nos trouxe para o Brasil quando veio para aqui
morar e trabalhar como tradutor, pesquisador e professor de
antropologia. Logo adoeceu e morreu por causa da malária.
Minha mãe logo enfermou também e então nos mudamos do
norte para o sul do Brasil, que tinha um clima mais ameno para
nós americanos.
Sempre fui um sujeito estranho e solitário, é verdade,
mas depois que meu pai faleceu, tornei-me o arrimo da família,
o que me ocasionou uma série de surtos súbitos de ansiedade,
nervosismo e paranoia, que eu ocultava sob o manto do estres-
se.
Lembro que uma de minhas irmãs reclamara da velha
casa em que morávamos, lembrava-me que eu devia fazer algo
para diminuir o cheiro de mofo e bolor que a umidade do lo-
cal propiciava, bem como das goteiras e picumãs nas paredes e
teto.
Como tivemos que morar em casa alugada, a coisa fi-
cou meio complicada. Tive que falar com o senhorio, um tipo
especialmente repulsivo, indolente, que costumava ler revistas
de histórias em quadrinhos de horror. Dele obtive um “amanhã
mando consertar”.
Resolvi eu mesmo dar um jeito. Consegui um martelo e
comecei a bater no reboco úmido do quarto, só para ver no que
ia dar. Da pequena rachadura escorria um filete tênue de certo
líquido viscoso que presumi tratar-se da água de algum cano
25
enferrujado. Num acesso de raiva, já que a parede era um tanto
sólida apesar de úmida, desferi um golpe com o martelo, com
força, e não foi preciso mais que duas ou três pancadas para
descobrir algo inacreditável.
O reboco caiu úmido e recoberto com uma camada fé-
tida de bolor. A parede era oca, e havia uma espécie de nicho
nela. Dentro do nicho, uma estranha e antiga garrafa, ali oculta
desde muito tempo. De imediato o filete tênue que escorria
cessou. Realmente não era bem um vazamento ou goteira, mas
uma estranha e pegajosa umidade.
Havia um velho e puído papel dentro de uma garrafa,
um manuscrito antigo. Retirei a rolha e puxei com o indicador.
Inúmeras histórias fantásticas de mensagens dentro de garrafas
foram contadas durante todos os tempos, de modo que isto me
exacerbou a curiosidade.
O que estava escrito naquele manuscrito suplantava
em horror a imaginação mórbida de um Edgar Allan Poe ou de
um Lovecraft, e deixava para trás a força imaginativa e macabra
de um conto de Paulo Soriano. Era qualquer coisa de fantástico
e inominável que nem os voos geniais da mente talentosamen-
te delirante de um Henry Evaristo poderiam tecer em nuanças
sombrias; eram, pois, quedas vertiginosas e terríveis criadas
pelas quimeras em pesadelos mais vorazes do que a Swirnea
evaristiana.
Tal manuscrito era uma carta de abominações, uma
missiva ou diário de medo e horror escrita nervosamente com a
letra de alguém que mergulhara na voragem de conhecimentos
e verdades proibidas ao senso comum.
Resumirei o conteúdo negro da carta, cortando certos
trechos, para que ninguém de mente sã saiba de certos segre-
dos que deveriam mofar nas tumbas do olvido.
A carta era de um jovem estudante chamado Manuel
Gudryan, que no ano de 1974 fora a Maremontes, no sul do
Brasil, em busca de uma vida melhor, alugando uma pequena
casa no subúrbio, exatamente a mesma casa em que eu, minha
mãe e minhas irmãs agora morávamos!
Gudryan cursava Antropologia na Universidade de Ma-
26
remontes, e, embora fosse ateu por convicção, era interessado
por casos e estudos insólitos e sombrios. Com efeito, era um
desses tipos que procurava provar que o sobrenatural era uma
farsa ou um delírio.
Maremontes, com suas antigas e anacrônicas casas de
telhados pontiagudos e góticos, seu cemitério e seu pântano
medonho, era o terreno propício para a mente investigativa
e cética de Gudryan. Cercada de inúmeras lendas indígenas e
mitos do folclore, povoada por assombrações grotescas e tene-
brosas, a cidade antiga era como que uma cidadela de mistérios
cravada no interior do sul do país.
Creio mesmo que em toda lenda ou mito folclórico
subjaz uma verdade oculta; no seu imo ou raiz, há uma verdade
que causa assombro a qualquer mente empedernida e presa nos
grilhões do ceticismo estéril. Há, nessas lendas medonhas, uma
verdade multifacetada em sua essência, transmutada de hor-
rores reais. A imaginação popular, quase sempre pueril, apenas
tornava tudo hiperbólico e distorcido, ocultando uma realidade
assustadora.
Uma dessas histórias ou lendas folclóricas oriunda de
antigas e estranhas tradições de tribos indígenas falava de uma
enorme serpente de fogo, vinda de um mundo paralelo ao nos-
so, mística dimensão invisível cujo portal se abriria em certos
dias e horários ou condições mentais e psíquicas especiais, ca-
talisadas por chás alucinógenos ou estados alterados de cons-
ciência. Era o Mboitatá, o horror em chamas, rastejando pelos
campos da terra do céu e do inferno!
Eu sabia, através de leituras anteriores, quase tudo so-
bre as plausíveis hipóteses da pluralidade dos mundos habita-
dos e das entidades do invisível, do universo multidimensional
e das fronteiras além dos sonhos e da morte. Já lera a respeito
da Teoria das Supercordas da Física Quântica, da existência da
Quarta Dimensão ou Quarta Vertical, tão apregoada por visio-
nários e místicos gnósticos. Tinha, pois, a noção assustadora
das tremendas possibilidades do hiperespaço e fenômenos da
antiga ciência jinas.
Os relatos da carta com ares de diário falavam de certas
27
passagens mágicas que levavam a locais tenebrosos e fantásti-
cos demais para as hodiernas mentes prosaicas dos céticos em-
pedernidos.
Tais portas espirituais ou etéreas às vezes também po-
diam ser abertas com fórmulas e chaves esotéricas.
Basicamente, todo o processo mágico era não apenas
espiritual,  metafísico e mental, mas, sobretudo, físico.
Uma das passagens para o outro mundo ou o túnel
astral que unia as coisas do mundo desconhecido com o nos-
so, dizia a carta de Gudryan, ficaria debaixo de determinada
cripta num cemitério abandonado de Maremontes, perto do
famigerado Pântano da Coruja Corcunda. Porém, havia outras
entradas, porque a região de Maremontes estaria situada numa
encruzilhada interdimensional desde prístinas eras, quando os
espíritos, deuses e demônios vagavam visíveis nos plano físico.
Entre a arraia-miúda ou populaça supersticiosa de
Maremontes, havia comentários, à boca pequena e entre per-
signações, de coisas estranhas que rastejavam sibilantes perto
da necrópole antiga e do pântano malcheiroso, relatos de uma
colossal cobra de fogo vagando também pelos campos. Era o
horror em chamas, Mboitatá, a cobra de mil venenos ígneos!
Não faltou quem se aventurasse a pesquisar esse su-
posto gênio ou elemental do fogo. Certo grupo de rosacruzes e
gnósticos foram vistos perto do Pântano da Coruja Corcunda,
passando pelo cemitério abandonado. Tais pesquisadores,
no entanto, nunca mais foram vistos, e o desaparecimento
misterioso fez surgir um burburinho entre o povo supersticioso
de Maremontes. Alguns levantavam a hipótese tétrica de que os
pesquisadores haviam sido engolidos pelas fauces flamejantes
do horror de fogo. Todavia, acabaram-se encerrando tais buscas
e investigações, já que parte do pântano era coberto por areias
movediças abissais e névoas densas e espectrais, o que dificul-
tava as procuras.
Em outros trechos da carta, Gudryan asseverava ter
visto e sentido coisas estranhas e inomináveis. Dizia ter sonhos
horrendos, em profundos lagos de matéria onírica perturba-
dora. Pesadelos macabros e demoníacos, governados por algo
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dantesco e rastejante, feito de fogo e veneno, uma coisa de fogo
chamada Mboitatá, o Horror em chamas. Nessas loucas e ater-
rorizantes aventuras de pesadelo, Gudryan quase sucumbira
à hipótese de que esses sonhos negros seriam reminiscências
assombrosas de jornadas fantásticas por golfos sombrios, em
orbes situados além da fronteira que separa o nosso mundo do
outro.

UM SIBILO NAS TREVAS

Uma noite, Manuel Gudryan acordou assustado,


suando em bicas. Passara o dia todo lendo e estudando certos
alfarrábios de ocultismo e magia satânica. Lera o terrível Ne-
cronomicon, do árabe louco Abdul Alhazred, com suas páginas
mofadas de um conhecimento negro; lera o Necrosophia, com
sua loucura e blasfêmia escritas com o sangue de inocentes;
devorou o obsceno, anacrônico e demoníaco Diário sombrio de
Kolga Salba; lera o mais abominável de todos, o Chaves Proibi-
das dos Ignotos, do satânico yogue Camaysar Audremalon, que
foi traduzido no século XX pelo poeta e aventureiro de terras
exóticas Júlio Leófitas, bardo errante que acabou desaparecen-
do nas selvas de Madagascar. Muitos outros tomos terríveis de
ciências ocultas e ancestrais Manuel Gudryan lera, saturando
sua mente com coisas insólitas e abomináveis.
Pela vidraça viu os campos varridos pela aragem no-
turna e a névoa densa rodopiando como o espectro de uma
bailarina pelos campos, ao luar exangue. Vez por outra lufadas
súbitas e inesperadas vinham forte lá de fora, e Gudryan pare-
cia ouvir um sibilo medonho ecoando nas trevas. 
Contavam as lendas indígenas que Mboitatá rastejava
das chamas dos infernos invisíveis para peregrinar em busca de
vítimas pelos campos do sul. O demônio de fogo rastejante exi-
gia ritos e sacrifícios das tribos e dos caboclos degenerados em
cultos negros, e os gritos de frenesi e transe das gargantas dos
adoradores da serpente de fogo soando como um hino lúgubre
em louvor à escuridão.
Na lareira, segundo a carta de Gudryan, o fogo crepi-
29
tava estranhamente. Uma estranha energia mística e diabólica
parecia pairar no ar, como uma maldição milenar. Arrepiou
os cabelos da nuca ao ver um estranho e inopinado vento. De
onde viria aquela lufada de um frio sepulcral, se todas as jane-
las do recinto haviam sido fechadas? 
A carta contava tudo isso, e ainda hoje tenho receio em
me lembrar das passagens e dos parágrafos de sombras. Resu-
mirei, cortando os horrores maiores descritos, queimando a
maldita carta e, assim como Manuel Gudryan, escreverei o meu
próprio relato o  qual deixarei ao advogado ou a quem interes-
sar possa como prova de que passei por horrores sobrenaturais
e não sou um louco.
A carta de Gudryan contava tudo. Houve então um si-
bilo dentro da noite, e o sibilo aumentou, e de repente um es-
trondo, seguido de uma algaravia confusa, talvez numa língua
indígena arcaica. Gudryan viu pela vidraça, ao longe, nos cam-
pos gélidos do sul em plena invernia, algo como um fogo veloz
e serpentino vindo em direção a casa. Sentiu uma vertigem.

ALÉM DOS PORTAIS NEGROS DO PESADELO

Manuel Gudryan parecia ter desmaiado. Algo dentro


das mofadas covas de sua mente sibilava em fúria e fogo, como
um jorro místico de um horror ambulante penetrando, se ar-
rastando em sua consciência, e então algo como uma porta ou
fenda se abriu, dividindo o mundo real do sobrenatural, ou
mais precisamente interpenetrando-os. Sentiu-se como um so-
nâmbulo entre labaredas de um labirinto físico e espiritual.
O medo por fim foi vencido pela curiosidade inata de Gu-
dryan, e o seu lado cético ia morrendo aos poucos, dando lugar
a uma nova mentalidade aberta aos fenômenos paranormais ou
sobrenaturais. Ele penetrara numa dimensão mágica e sinistra
que existia ao mesmo tempo e no mesmo lugar que a nossa.
Era uma viagem de pesadelo, uma jornada ultracósmica
por um misterioso golfo astral ou etéreo de infinita extensão
abismal. Ele era como uma formiga humana num vórtice psico-
délico transcendental de ultraterrenas realidades, rodopiando
30
em ventos gélidos.
A missiva prosseguia deste modo assombroso e inaudito.
Gudryan tinha penetrado os domínios tétricos de uma entida-
de flamejante, algo como o reino de um elemental de fogo.
Grossa e espectral neblina pairava e cobria toda a cida-
de de pesadelo: era a mesma Maremontes, mas vista de outro
modo, de um prisma mais sombrio. Era como a contraparte
sinistra e malévola do lugar, a contraparte astral ou diabólica
daquela região do sul.
Gudryan abriu a janela da ”outra” casa, e além, nos cam-
pos, vultos e o clarão do fogo serpentino. Não era mais um
largo e extenso muro de alvenaria que circundava a casa e sim
uma névoa. A cidade era outra e ao mesmo tempo a mesma no
espaço-tempo.
Estrelas rubras pintavam o céu em tons de aquarela san-
guinolenta. Ciprestes podres tinham o aspecto deformado,
retorcido, assemelhados as figura de uns velhos, esquálidos e
encarquilhados cadáveres redivivos numa procissão do Inferno.
Manuel Gudryan jurava que estranhos e invisíveis olhos
o observavam como uma cobra hipnotiza um pássaro antes de
atacá-lo. Sempre fui um sujeito estranho e solitário, é verdade,
mas depois que meu pai faleceu, tornei-me o arrimo da família,
o que me ocasionou uma série de surtos súbitos de ansiedade,
nervosismo e paranoia.
Lembro que uma de minhas irmãs reclamara da velha
casa em que morávamos, lembrava-me que eu devia fazer algo
para diminuir o cheiro de mofo e bolor que a umidade do lo-
cal propiciava, bem como das goteiras e picumãs nas paredes e
teto.
NAS CHAMAS DA LOUCURA

Manuel Gudryan começou a enxergar coisas que na


realidade física ele não enxergava. Era uma espécie de loucura
selvagem e transcendental, e, nas chamas dessa loucura esoté-
rica, ele tinha a consciência dos mundos. Sua visão tinha assu-
mido proporções extraordinárias, ele agora não via apenas com
os olhos físicos, mas com os olhos da mente também. Via os
31
muitos mundos embutidos uns nos outros. Via o próprio imo
de moléculas e átomos na dança cósmica coruscante da vida e
da morte, um balé místico nas matérias astrais mutáveis e que
turbilhonavam sempiternamente num fluxo de eternidades es-
tupeficantes.
Não estava num sonho ou pesadelo, porém mais
além deles, num estado de consciência plena muito além da
consciência da vigília comum. Era um estado transcendental
de visão jamais sonhado pelo mais louco dos poetas ou
visionários, uma morte em vida, uma apoteose de caos e
loucura, uma vertigem aterrorizante.
Tudo isso sei porque li a carta de Gudryan.
Havia um parágrafo que falava da estranha procissão
de índios, caboclos e negros, reunidos num festival muito mais
macabro do que um Kuarup. Gudryan falava também de como
ele saiu pela porta da casa como um sonâmbulo. 
O proprietário asqueroso da casa, aquele senhorio tor-
pe, abjeto e detestável, estava na procissão, sendo ele mesmo
um quase índio, um mameluco degenerado. Sorria com escár-
nio e deboche incomuns. 
Um pajé ensandecido saltitava e gritava sinistramente
do seu lado, dançando nu em louvor ao horror de fogo.
Gudryan entrara na procissão, misturando-se à horda
de fanáticos, e estremeceu ao ver que, durante a caminhada e
dança, não ficavam marcas dos pés, nem dele e nem dos adora-
dores da cobra de fogo.
Então, sempre nas sombras da noite fantástica, Gu-
dryan viu a turba sinistra encaminhando-se para algum lugar
nos recônditos dos campos do sul. Encontraram um buraco
escavado na terra, e todos desceram pelos degraus feitos de
crânios humanos, descendo em espiral, pelas profundezas, nos
subterrâneos daquela Maremontes prodigiosa.
Eles levavam archotes que emitiam uma luz bruxulean-
te naquela escuridão infernal.
A descida pareceu interminável, mas logo todos chega-
ram a uma espécie de templo subterrâneo ou catacumba sinis-
tra.
32
Então pareceu a Gudryan que eles estavam no antro de
Mboitatá. Entre duas colunas de granito esverdeado, numa es-
pécie de altar, dançavam grotescamente sacis e curupiras som-
brios.
Era um altar rubro aquele, recendia a sangue coagula-
do. Atrás, uma estranha luz de tonalidade ambarina cintilava
foscamente, malignamente, como um embrião luminoso de um
ser ígneo surgindo paulatinamente.
Ao som de pífaros, flautas e ocarinas, um coral de vozes
diabólicas entoava em uníssono um cântico macabro e profano,
verdadeiro hino de pestilência e insanidade. 
Manuel Gudryan pôde ver aquelas silhuetas, seus
vultos grotescos. Eram índios mais velhos e mal-encarados
provavelmente de uma tribo esquecida, confabulando com os
sacis e curupiras. Eram uns tipos altos e magros, segurando
tacapes feitos de ossos humanos, pareciam fiéis fervorosos do
culto da serpente de fogo. E trauteavam sons mântricos, como
que a convocar forças elementais ígneas de indescritíveis pode-
res.
Glacial lufada varreu o lugar, segundo as palavras de
Gudryan em sua longa missiva, apagando a luz ambarina. Então
aconteceu uma coisa apavorante, e Gudryan tentou se auto-
censurar na carta, riscando passagens que seriam pouco críveis
para uma mente sã. Censurara partes que seriam inacreditáveis
demais. E agora era visível que sua caligrafia se tornava nervo-
sa.
Então o horror atingiu seu grau máximo. A coisa veio.
Foi por entre as sendas da escuridão, escreveu Gudryan, que
ele viu algo que deslizava pesadamente como um rio de fogo.
E o murmúrio dos índios aumentou numa só voz: ”Mboitatá!
Mboitatá!”
Aquilo ou aquela coisa não era do nosso mundo. Era
como uma besta dantesca e rastejante nascida das cloacas pu-
rulentas e imundas, filha da cópula de elementais imundos da
lama e do fogo de todas as perversões e paixões humanas acu-
muladas durante eras e eras desde a aurora primeva do mundo.
Era ele, o deus-demônio ou gênio do fogo Mboitatá, o horror
33
em chamas, a cobra de fogo de mil venenos!
Não rezava desde a infância, mas Gudryan caiu de joelhos
e implorou a todos os deuses, inclusive Tupã, para que o livras-
se daquela serpente ígnea. Então, antes de perder totalmente
a consciência, Gudryan viu a fenda interdimensional se abrir,
e houve então um vácuo e um silêncio mortal. Só depois ele
acordaria e escreveria a carta. A missiva de Gudryan terminava
com estranhas reticências, como se algo houve interrompido
de súbito sua redação.
Depois de refletir sobre o conteúdo da carta, atirei-a no
fogo da lareira. O que teria acontecido com Gudryan após ter-
minar de escrever aquela carta?
Não sei. Hoje estou aqui, preso. Mas antes, naquela noite
em que terminara de ler a carta de Gudryan, algo ocorreu...
O silêncio da noite foi quebrado por um sibilo e o som de algo
se arrastando lá fora. Fui até a janela, algo iluminava a noite,
como um grande fogo-fátuo.
Fechei as cortinas. Algo se pôs a empurrar a porta, e eu
via pelas frestas a luz de um fogo infernal. Gritei. Pus-me a pôr
a tranca na porta, colocando uma mesa para atravancá-la ainda
mais. Alguma coisa continuava pressionando a porta.
Não me lembro do que aconteceu depois. Há um hiato
maldito em minha memória. Sei que acordei aos berros no leito
de um hospital, depois de ser encontrado pelos bombeiros a
alguns metros da casa. A casa onde eu e minha família moráva-
mos havia sido incendiada, e só restaram cinzas. Da casa e de
minha mãe e irmãs. Falaram de piromania, mas eu não entendi.
Disseram que eu teria sérios problemas com os homens da lei.
Então foi aqui que acabei, na cadeia. Acabarei aqui estes
meus escritos que deixarei sobre o catre da prisão a guisa de
carta, como fez Gudryan naquela outra noite.
Tenho tido pesadelos horrendos com a gigantesca cobra
de fogo. Mboitatá assombra meu sono.
Aqui, nesta cela, enquanto aguardo o julgamento, sei
que Mboitatá virá me buscar, eu sei. Está chegando, vai me le-
var esta noite... Mboitatá, o Horror em chamas, a serpente de
fogo!... Oh meu Deus, ajuda-me! Ajuda-me!...Socorr...
34
BOTO COR DE ROSA
Quem já não ouviu falar que alguém é “filho do Boto”? E quan-
tas dessas pessoas não tem pai conhecido? Sim, até hoje, em
muitas regiões do Brasil, o Boto é pai de muita gente que não
conhece o seu. Por isso a lenda é uma das mais famosas de Nor-
te a Sul do país.
O Boto é um homem muito bonito, atraente, sedutor,
exímio dançarino e bebedor, está sempre vestido de branco
com um elegante chapéu na cabeça - do qual não se separa,
pois ele, na verdade, esconde o orifício da respiração do Boto
- e sua função é seduzir as moças incautas para depois engra-
vidá-las (o que a gente não sabe é se todos os filhos do Boto
também se transformam em botos ou se permanecem homens).
Quando o dia amanhece, o belo rapaz vira um boto, que dizem
proteger os rios e as canoas durante os
Temporais, conduzir os cardumes para as margens dos rios
para que fiquem próximos dos remansos e praias, e acompa-
nhar as embarcações que levam mulheres grávidas.
Também conhecido como Golfinho do Amazonas,
Boto-Cor-de-Rosa, Boto-Vermelho, Boto-Branco e Piraiauara,
o Boto é muito popular na região amazônica e aparece espe-
cialmente nas festas juninas. É dessa região que vem a crença
de que ele carrega uma espada presa ao seu cinto; e, quando é
hora de voltar ao leito do rio, é possível observar que todos os
seus apetrechos são, na verdade, outros seres das águas meta-
morfoseados. A espada é um poraquê (peixe-elétrico), o chapéu
é uma arraia e o cinto e os sapatos são outros dois tipo de pei-
xe.
Também no Amazonas, acredita-se que o Boto pode
assumir a forma de uma mulher, que tem cabelos até os joelhos
e que faz com que os homens a sigam até o rio, quando estão os
pega pela cintura e os mergulha nas águas profundas.
No Amazonas e no Pará, garante-se que, além do Boto,
há a Bota, que se deixa possuir sexualmente pelos pescadores
e seringueiros, apaixonando-se por ele e perseguindo-os sem
37
deixá-los em paz. Aqueles que tornam-se seus amantes correm
o risco de contrair uma doença chamada “uiara” ou doença de
boto, que causa crises nervosas, sensação de sufocamento, con-
vulsões e angustia.
A figura do Boto, assim como a da Iara, originou-se das
tradições europeias. Com ela, guarda alguma semelhança pelo
fato de ser uma entidade aquática, também como o Uauiará
dos índios, que engravida as mulheres ao transformar-se num
mortal, e a Poronominare.
O animal boto-tucuxi, boto-cinza ou boto-vermelho,
possui uma propriedade diferente das dos demais: seus olhos
secos servem de amuleto para atrair as moças que são difíceis
de conquistar. É só olhar para a moça através do olho de um
boto e pronto! Ela cairá de amores pelo rapaz! Dizem também
que o tucuxi tem a característica de salvar os que estão naufra-
gando, empurrando-os para a terra.

OUTROS NOMES: Boto-Branco, Boto-Cor-de-Rosa, Boto-Ver-


melho, Golfinho do Amazonas, Piraiauara, Boto-Tucuxi
REGIÕES DO PAÍS: Norte (AM, PA)
ORIGEM: Europeia, indígena
PERSONAGENS RELACIONADAS: Cobra-Norato, Iara, Maria
Caninana, Poronominare

38
O encanto do boto

Creatures - Shinedown
“Helena, acorda, acorda.”
“Tá cedo ainda, Lu. Me deixa dormir."
“Helena, deixa de preguiça. A gente tem que sair, ir no
mercado, fazer tudo que a mamãe pediu. A gente não pode dar
nenhum motivo pra ela mudar de ideia. A festa é hoje. Passa-
mos um mês inteiro tentando convencer ela a deixar a gente
ir.”
“Tá, Lu. Falando assim eu levanto. Vai que a tia Tereza
muda de ideia logo agora. Ainda nem acredito que ela nos li-
bertou da prisão.”
“Desce rápido pra tomar café e lava essa cara amarrada
pra sair. Já vou me adiantando”
“Tá bem, menina chata. Eu vou.”
Que merda, nem passou das oito ainda. Mas vale a
pena, depois de três meses é a primeira vez que a minha tia
Tereza me libera do cárcere privado. Nessas horas sinto ainda
mais falta dos meus pais e de São Paulo. Eu tinha uma vida
quase perfeita lá. Amigos, festas, movimento. Eu vivia da forma
como alguém de 16 anos deve viver. Tudo até o acidente. Até os
meus pais morrerem. Só sobrou a minha tia para ficar comigo.
Ninguém me ouviu quando eu disse que já podia me virar so-
zinha em São Paulo, morando na minha casa e seguindo a mi-
nha vida. Vim parar em Altamira, no interior do Pará. Não tem
nada aqui e o pouco que tem a minha tia super protetora não
deixa aproveitar, por mais que eu implore.
Hora de levantar.
A cara no espelho não é das melhores. Odeio acordar
cedo. Olheiras, rosto inchado, além do péssimo humor que
tenho ao dormir pouco. Hoje preciso passar por tudo isso. Eu
e minha prima, Luciana, passamos semanas pedindo para ir a
uma festa em um clube da cidade. Tomo uma ducha rápida, me
visto e desço correndo para tomar café. Minha tia já está ocu-
pada com seus afazeres diários, adiantando o almoço junto à
bancada da cozinha.
“Bom dia, tia.”
“Bom dia, querida. Bom te ver sorrindo a essa hora da
manhã.”
40
“O dia hoje está lindo, deu até vontade de acordar
cedo.”
“Até parece que eu nunca fui adolescente. Sei bem que
vocês duas estão assim pela tal festa.”
“Nossa, mãe. Estou me sentindo a pessoa mais interes-
seira do mundo agora.”
“Mas é o que vocês duas são. Só não reclamo porque
estou me aproveitando muito bem da disposição de vocês. An-
dem logo pra ir ao mercado, as melhores frutas e legumes saem
logo cedo. Daqui a pouco não vai ter nada de bom pra vocês
trazerem pra mim.”
“Tá bem, estamos indo, senhora ditadora.”
Disse eu entre risadas compartilhadas entre nós três.
Apesar das nossas diferenças, era difícil não gostar da
minha tia. Ela era uma mulher incrível. Cuidou dos meus avós
até a morte dos dois, foi mãe solteira e criou minha prima com
um amor imenso. Ela mantinha os negócios da família no ramo
de exportação de produtos agrícolas locais com mão de ferro.
Ela era uma mulher forte. Só nos prendia muito.
Tínhamos uma vida muito confortável para os padrões
locais, tínhamos um motorista por nossa conta e alguns empre-
gados na casa relativamente grande que um dia foi dos meus
avós. Erámos prisioneiras de luxo.
“Luís, vamos rápido ao mercado e depois temos que dar
uma passadinha rápida em umas lojinhas pra comprar umas
coisinhas pra gente, tá?!”
“Dona Luciana, sua mãe não gosta que vocês fiquem
rodando pela cidade. Nosso motorista morria de medo da mi-
nha tia.”
“Ah, Luís! É uma passadinha rápida. Precisamos com-
prar umas coisinhas pra festa de hoje. Só umas roupinhas e ma-
quiagens. Vai ser um segredinho nosso, por favor.”
“Tá bem.”
Estava tudo indo como queríamos.
Minha prima, um ano mais jovem que eu, conseguia estar ain-
da mais empolgada que eu para sair.
“Ótimo, Lu. Tudo correndo como esperávamos.”
41
“Meninas, comportem-se! Me liguem se algo acontecer
e não passem das duas ou eu vou lá buscar vocês.”
“Tá bem, tia. Prometo cuidar direitinho da Lu e voltar
cedinho.”
“Se cuidem, por favor.”
“Fica tranquila, tia. Eu sempre saia em São Paulo. Sei
me cuidar, tá? Até logo.”
Minha tia parecia estar perdendo nós duas. Ela se preo-
cupava muito. Isso passa. Empurrei esses pensamentos para
longe. Hoje era dia de festa.
“Vamos, Lu. Vamos curtir nossa noite de liberdade.”
A tal festa estava longe de ser uma balada paulista, mas
era o que tínhamos. Era uma festa com temática dos anos 90.
Tocavam músicas que cansei de ouvir em casa com os meus
pais. Me deu saudade deles.
Não haviam muitos caras interessantes para se olhar,
então me concentrei em dançar e curtir com minha prima. Ela
parecia nas nuvens. Acho que se sentia mais presa do que eu no
fim das contas.
Pontualmente aparecia um carinha tentando puxar
papo, eu até tentava dar atenção, mas todos eles pareciam meio
bobos para mim. Um desses acabou conseguindo a atenção da
minha prima. Eu estava sozinha naquela festa meio estranha.
Fui ao bar. Pedi uma cerveja e o barman nem ligou se eu era
menor ou não, como sempre. Sentei no balcão. Tocava Iris, do
Goo Goo Dols. A música tema do filme Cidade dos Anjos. O
filme dos meus pais. A saudade bateu muito forte.
“Tudo bem, moça?” Perguntou uma voz masculina às
minhas costas.
“Tá sim. Só me senti um pouco cansada. O cara se sen-
tou ao meu lado e pediu uma cerveja.”
“Senti um certo ar de tristeza em você.”
A voz dele era doce mesmo por sobre a música alta. Só então
eu olhei. Ele era lindo. Moreno, de altura mediana, olhos esver-
deados, ombros fortes. Me olhava nos olhos. Senti que estava
ficando vermelha.
“Não, tá tudo bem mesmo. Essa música me dá saudade
42
de casa. Só isso.”
Como assim, de onde eu fui tirar a ideia de falar disso
com esse estranho?
“Ah! Notei que você não era mesmo daqui. Eu teria
lembrado de você. Se importa se eu ficar aqui?”
“Não, tudo bem. Minha prima sumiu mesmo. Vai ser
bom ter com quem conversar.”
“O povo daqui parece chato pra você também?”
“Tá tão na minha cara assim?”
“Um pouco, mas me sinto deslocado aqui também. Pa-
recem todos um pouco vazios e bobos pra mim. Não chamam a
minha atenção.”
“Obrigada. Bom saber que não chamo a sua atenção.”
“Eu disse que percebi logo que você não era daqui. Você
é diferente de tudo que eu vejo aqui. Você tem alguma coisa
que me atrai.”
Por algum motivo o jeito como aquele estranho me
olhava e falava comigo era confortável. Ele mexia comigo. Eu
sabia que ele estava se insinuando para mim, mas eu gostava do
jeito dele. Estava gostando da atenção, estava me sentindo afim
dele. Por que não?
“Sabe de uma coisa, me deu vontade de dançar. Quer
vir comigo?”
Peguei aquele cara pela mão e arrastei ele comigo para
a pista. Nem me lembro o que estava tocando. Não lembro o
quanto mais falamos no ouvido um do outro e em que momen-
to ele começou a me beijar. Eu fui me deixando levar. Ele tinha
um gosto bom. Me fazia sentir leve, sem peso nenhum. Não vi
o tempo passar, até minha prima bater no meu ombro e dizer
que tínhamos que ir embora.
Eu queria seguir minha noite com ele, estava com von-
tade, com muito desejo. Do beijo, da leveza que ele me dava.
Estava com desejo daqueles olhos verdes me olhando e das
mãos dele me tocando. Não queria que acabasse.
Minha prima me arrancou daqueles pensamentos.
“Helena, a gente tem que ir. Já são quatro da manhã. A
minha mãe vai matar a gente.”
43
“Merda. Sério que a gente perdeu a hora assim? Como
foi que eu perdi a noção do tempo desse jeito?”
“Eu preciso ir e nem sei o seu nome.”
Ele me levou até o bar e pediu um pedaço de papel e uma cane-
ta pro barman. No guardanapo ele escreveu umas linhas com
uma letra bonita e me entregou.
“Eu só vou dizer o meu nome se você me encontrar no
lugar que eu anotei aí.”
“Não sei se vou conseguir te encontrar. Me fala o seu
nome, assim te encontro no instagram, me passa o seu telefone
e a gente se fala.”
“Nada disso, me encontra lá.”
Dito isso ele me deu um beijo que me deixou sem ar e foi em-
bora sem nem olhar para trás.
Minha tia estava com uma cara horrível quando chega-
mos, mas nos deixou ir dormir sem brigas. Era mais do que eu
esperava. Já no quarto, depois de uma ducha, eu ainda sentia o
corpo daquele cara contra o meu e o gosto do beijo dele. Abri o
guardanapo, ele anotou uma data e um lugar. Era na sexta-feira
seguinte. Em um barzinho na orla do cais da cidade. Eu não sei
como, mas eu iria àquele encontro...
Os dias correram mais ou menos tranquilos. Minha tia
realmente ficou brava pelo atraso, mas parecia feliz por vol-
tarmos inteiras e com sorrisos no rosto. No fim das contas ela
até parecia disposta a nos deixar sair novamente. Eu tinha uma
chance.
Junto com minha prima inventamos um programa com
os amigos dela de colégio bem na orla. Ela realmente convidou
um monte de gente. Não me importava, era só uma cortina de
fumaça para mim. Quanto mais realista melhores chances eu
teria de escapar.
A sexta-feira chegou com muita empolgação. Eu me
vesti para encontrar com o tal cara como nunca havia feito por
ninguém. Nem sabia o porquê, mas estava louca para rever ele.
Ele me esperava na porta do barzinho. Não sei como,
mas ele parecia ainda mais lindo. Entramos e nos sentamos em
uma mesa sob uma das janelas que dava para o cais. Eu sentia
44
uma vontade incontrolável de beijar ele.
Ele pediu bebidas para dois e algum prato para o qual
eu mal olhei. Eu queria ele, desesperadamente.
“Me leva pra outro lugar.” Eu disse, impulsivamente.
“Tem certeza? Você nem comeu.”
“Sim, eu tenho. A gente nem tem muito tempo hoje,
minha tia me espera cedo em casa. Só me leva pra outro lugar
pra eu ficar só com você.”
O que estava acontecendo comigo? Eu queria aquele
cara de uma forma incontrolável. Mal conhecia ele e estava dei-
xando todas as noções de autopreservação de lado. Eu só sentia
uma vontade maluca de estar com ele a qualquer custo.
Ele saiu comigo pela orla e me levou para um ancora-
douro, direto para uma lancha muito bonita. Ele andava con-
fiante, sabia para onde estava indo. Passou por um vigia, pediu
as chaves da lancha e subimos. Eu não senti nenhuma vontade
de perguntar para onde ele estava me levando. Me deixei ser
conduzida.
Aportamos em uma ilha no meio do rio. Havia uma
trilha iluminada. Me sentia em transe, seguindo-o sem questio-
nar. Seguimos então para uma clareira no meio da mata, cerca-
da por tochas e com uma cama no meio.
Ele me agarrou e beijou sem gentileza alguma, tirando
minha roupa. Pela primeira vez eu desejei relutar, mas meu
corpo não respondia. Ele se despiu e me despiu em seguida. Me
beijando e me tocando sem nenhuma ternura. Só impulso. Mi-
nha mente só levemente lúcida sentia medo, meu corpo aceita-
va. Fui jogada na cama. Ele penetrou meu corpo sem nenhum
amor.
Foi então que eu o vi de verdade pela primeira vez.
Seus dentes pequenos, as narinas entre os olhos pretos, o nariz
longo e a pele lisa e úmida contra a minha. Aquele ser demo-
níaco tomava meu corpo sem nenhum carinho. Prendia meus
braços com as suas mãos enquanto me violava.
Haviam pessoas na clareira. Eles se aproximaram, me
forçaram a beber uma água barrenta em um copo de madeira.
Água do rio. Cantando em um transe. Eu apaguei.
45
Acordei na minha cama no dia seguinte. Meu corpo
doía. Talvez tenha sido só um sonho ruim. Então vi as marcas
no pulso. Senti a dor entre as minhas pernas. Eu não havia so-
nhado.
Encontrei com minha tia na cozinha. Morrendo de
medo eu contei tudo para ela. Ela ouviu sem me interromper.
“Aconteceu novamente.” Disse minha tia, ao fim.
“Como assim, tia?”
“O demônio do boto também plantou uma semente
dele na sua mãe. Por isso ela foi embora pra São Paulo e nunca
voltou, pra ficar longe do rio e do poder dele. Seu pai aceitou
e a salvou. Ela pariu a cria do demônio lá. Seu pai o matou e
queimou. Foi um erro você ter vindo pra cá. Ele veio cobrar o
sangue com sangue. Agora tem uma semente dele em você.”
“Como assim, tia?” Eu disse entre lágrimas. “Eu não sei
o que fazer, me ajuda, por favor.”
“Vamos embora agora. Sua mãe conseguiu fugir. Vamos
fazer o mesmo.”
Ouvimos então um grito vindo da sala.
Minha prima estava caída, com o pescoço rasgado.
Luís, nosso motorista, segurava uma faca em uma das mãos e
um balde na outra. Atrás dele vinha o demônio na forma de ho-
mem. O boto.
“Não dessa vez. Dessa vez minha cria nascerá. Eu e
meus seguidores vamos garantir isso.”
Luís então avançou sobre a minha tia e o boto sobre
mim. Entrei naquele transe. Vi minha tia sendo afogada no bal-
de, se debatendo, morrendo aos poucos. O boto dizia no meu
ouvido:
“Seu sangue e sua vida são do rio agora. Você pertence
a mim.”
Algo dentro de mim se movia. Eu carregava um filho
daquele demônio e não podia fazer nada a respeito. Eu daria à
luz ao filho do boto. Eu seria a mãe de um demônio.

46
CUCA
Cuidado com a Cuca
Que a Cuca te pega
E pega daqui
E pega de lá.
[...]

Quem foi criança nos anos 1970 deve se lembrar desse tema da
Cuca do Sítio do Picapau Amarelo, composto por Dori Caymmi
e Geraldo Casé, exibido pela TV Globo. Foi nessa época que a
literatura de Monteiro Lobato, transposta para a TV, encantou
as crianças com suas personagens brasileiríssimas e também
com os nossos mitos mais queridos, como a Cuca e o Saci-Pere-
rê. Quando ela aparecia, lá vinha a canção de fundo, e a crian-
çada já se preparava para acompanhar a aventura em que as
personagens do sítio iriam enfrentar as maldades da bruxa!...
Sim, a Cuca é a bruxa mais brasileira que existe. Pre-
sente nas cantigas de ninar...

Dorme nenê
Que a Cuca vem pegá
Papai foi pra roça
E mamãe foi trabalhá...

... E no imaginário de qualquer menino ou menina que não


quer dormir, ela é descrita como um ente velho, feio, todo des-
grenhado, que aparece de noite para levar consigo as crianças
inquietas e insones.
Outros a descrevem como uma velha com a cabeça de
jacaré , com uma voz estridente, que só aparece de noite, que
anda em cima dos telhados das casas e que entra pelos buracos
das fechaduras ou pelos vãos das portas, levando as crianças
num saco. Dizem que ela nunca dorme, isso ocorre apenas uma
vez a cada sete anos. E que a tortura maior para Cuca é ter um
pingo d’agua caindo intermitentemente sobre sua cabeça (em
49
Monteiro Lobato é bem comum se ouvir isso como a maior
ameaça á bruxa velha).
Como ela é bruxa, se apresenta fisicamente de acordo
com as versões das histórias clássicas de bruxas: às vezes como
uma coruja, ou uma borboleta negra, ou mesmo uma aranha.
No folclore brasileiro, as bruxas são sempre as sétimas filhas de
um casal que só teve filhas mulheres (o que também lembra o
mito da Cumacanga), e essa moça só escapará de seu destino se
sua irmã mais velha for sua madrinha. Por isso, crianças de até
sete anos que ainda não foram batizadas são os alvos prediletos
das bruxas, que adoram sugar o sangue delas, especialmente se
for na Sexta-Feira da Paixão.
Acredita-se que a nossa Cuca tenha sido influenciada
pela Coca de Portugal, onde ela é parente do Bicho-Papão, do
Homem do Saco e de outras entidades que assombram e car-
regam as crianças, como o Tibungue. Lá ela assume a forma
de um dragão e São Jorge a ataca com sua lança. Em algumas
regiões da Espanha, ela também é Coca, uma serpente de pape-
lão, com patas de grilo, cauda de serpente e um par de asas, que
sai todos os anos na procissão do dia de Corpus Christi (festa
religiosa católica).
A Coca e a Cuca tanto são parecidas que em Minas Ge-
rais a Cuca chama-se Coca, como ilustra uma cantiga muito
popular naquelas bandas:

Vai-te, Coca, sai daqui


Pra cima do telhado
Deixa dormir o menino
O seu sonho sossegado.

OUTROS NOMES: Coca, Quecuca, Rolo de Mato, Ticuca


REGIÕES DO PAÍS: Todas
ORIGEM: Universal
PERSONAGENS RELACIONADAS: Bicho-Papão, Cumacanga,
Homem do Saco, Quibungo, Saci-Pererê, Tibungue, Tutu
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Às margens do horror

Silfur-Refur - Sólstafir
Havia um pequeno vilarejo de pescadores isolado às
margens do Rio Esmeralda. Cercado por uma densa floresta
tropical, o vilarejo se limitava a um número pequeno de casas
de sapê que margeavam o rio. Devido aos acontecimentos ma-
cabros que trouxeram à tona o medo sobre uma lenda milenar
que aterrorizava essas tribos, muitos fugiram na esperança de
se afastar das zonas próximas as cavernas, onde contavam exis-
tir uma poderosa feiticeira com cabeça de jacaré, que dormia
apenas uma vez a cada sete anos e raptava crianças durante a
escuridão da noite.
Com o desaparecimento de crianças nas aldeias, mui-
tos fugiram com seus filhos para longe das zonas onde haviam
as cavernas, pois segundo as histórias contadas pelos mais
antigos, era no interior dessas cavernas que a bruxa habitava,
preparando feitiços e poções em seu caldeirão de horrores ini-
magináveis.
Alguns indígenas que haviam fugido do interior da flo-
resta, encontraram o vilarejo dos homens brancos que haviam
fixado seu território naquele lugar. Ali compartilharam seus
dons, índios com sua sabedoria sobre a caça, a terra e as ervas,
e os homens brancos especialistas na pesca, acolheram aquele
povo e os fizeram parte do seu.
A tonalidade esverdeada que deu o nome ao Rio Esme-
ralda estava enegrecida naquela noite. Nas águas escuras a lua
crescente refletia seu brilho, formando um rastro prateado que
cintilava sobre a superfície ondulante que a brisa noturna agi-
tava.
Um grito estridente anunciava o tempo de um novo
horror que aprisionaria as pessoas daquele vilarejo em seus me-
dos mais terríveis. Na porta de uma das pequenas casas de sapê,
uma mancha vermelha borrava a terra. O rastro de sangue ru-
bro se espalhava fazendo uma trilha que descia o barranco até
o rio. A terra mexida, empapada em sangue, levava uma mãe
em desespero a procurar seu pequeno filho que fora arrancado
do local onde brincava. O caminho aberto, feito pelo corpo do
menino que fora supostamente arrastado, cintilava o sangue na
luz do luar, guiando os passos trôpegos da mãe que rumava às
52
cegas para a encosta do Rio Esmeralda.
Ajoelhada no topo da ribanceira parcialmente desmo-
ronada, o profundo pranto de angústia daquela mulher des-
pencava em lágrimas que desciam feito cascata encontrando
as águas turvas do rio. Suas mãos trêmulas remexiam a terra
ensanguentada enquanto suas lágrimas continuavam a gotejar
amargura contínua, misturadas com terra, sangue e dor, a dor
interna que era expressada nos desenhos angustiantes risca-
dos pelos dedos que remexiam a mistura densa de sentimentos
destroçados. Amparada por outros moradores do vilarejo, a
mulher se ergue, apoiada em profunda tristeza. A noite ruidosa
por sons de animais noturnos trazia de volta o assombro das
antigas lendas sobre a velha feiticeira que raptava as crianças
desobedientes. Naquela noite, tudo se cobria com um manto
negro de assombro e horror que refletia nos olhos aflitos dos
moradores do vilarejo.
Na manhã seguinte o sol despontou sobre as copas
das árvores borrando o céu com uma coloração avermelhada.
Parecia que os resquícios da noite passada se retratavam ali,
naquele vermelho que tingia nuvens e fazia lembrar os terrores
noturnos.
A mãe que perdera o filho, debruçada na janela, man-
tinha os olhos parados no rio, buscando consolo em algo des-
conhecido, alguma coisa que pudesse trazer-lhe respostas ou
ao menos acalentar seu coração em desespero.
Os dias não eram mais os mesmos, pois o domínio
do medo rondava o lugar. Os homens desciam o rio com seus
pequenos barcos, as mulheres pensavam em algo que pudesse
livrar seus filhos deste mal que parecia reviver.
Sete luas se passaram e o medo teve que ceder espaço
para as festividades de Tapiburã, um evento anual em que os
aldeões festejavam em nome de uma criatura mítica pedindo-
-lhe fartura. As tochas cravadas na terra tremeluziam o fogo
vivo que queimava e inflamava a escuridão da noite. Havia
tambores e cantoria, bandejas em folhas de bananeira espalha-
das em toda parte. O vilarejo estava enfeitado pelas luzes das
tochas e as lindas flores de vários tons que se espalhavam pelo
53
espaço aberto onde a festividade era celebrada.
Tudo era preparado de acordo como todos os anos, no
período de lua cheia, com música e oferendas. Em meio aos
cânticos e tambores um grito rasga a noite, vindo da encosta
do rio. Um dos moradores havia ido buscar água com o filho,
uma criança de cinco anos que insistiu em acompanhar o pai
para encher o jarro de barro. Quando o homem se deu conta,
a criatura já havia emergido do rio com sua gigantesca boca
escancarada e repleta de dentes pontiagudos. Abocanhou o om-
bro e parte do tórax no menino, puxando a criança para dentro
do rio. O pai, após soltar o grito de desespero, saltou na direção
da criatura em socorro do filho. Num movimento brusco com
a cabeça, a criatura joga a criança dentro d’água e abocanha o
braço do homem que tenta se defender como pode, mas tem o
membro amputado e se afasta sentindo extrema dor. A criatu-
ra ergue a cabeça engolindo o braço que acabara de arrancar, em
seguida torna a abocanhar o menino que se debatia nas águas rasas,
carregando seu corpo preso entre as mandíbulas de volta para o
fundo do rio.
O homem se arrasta barranco acima, desnorteado em seu
desespero. O pedaço que lhe restou do braço está terrivelmente di-
lacerado, com sua extremidade ornada por pedaços de pele e carne
regada a sangue. Finalmente deitado na terra, o pai do menino urra
como um animal ferido enquanto é consumido por sua excrucian-
te dor. Enquanto alguns habitantes do vilarejo se aproximam para
prestar socorro, após ouvirem por entre a cantoria os gritos cortan-
tes daquele homem, como pai que acaba de perder o filho, ele ape-
nas encara o céu negro sobre seus olhos. Aquele monstro de pele
rígida e dentes afiados não era apenas um jacaré enorme, ia além
disso. Os olhos da criatura queimavam feito fogo.
O animal estava visivelmente controlado por uma força de-
moníaca. Se sobreviver a hemorragia, aquele homem nunca es-
quecerá da noite em que olhou nos olhos do demônio encarnado
no corpo de um jacaré. Enquanto sua mente naufragava em dor e
escuridão, aquele homem via, por entre uma fumaça cinzenta, uma
feiticeira com corpo de mulher e cabeça de jacaré, remexendo em
seu caldeirão memórias sombrias em forma de pesadelo.
54
CURUPIRA
A essência do Curupira é ser protetor das matas e da caça, o de-
mônio da floresta,  responsável pelos barulhos misteriosos que
ali se ouvem. Esperto, ele engana todos os que caçam e faz com
que se percam na floresta. Faz acordos com eles e oferece-lhes
armas que nunca falham em troca de comidas, bebidas e outros
presentes.
Em Maio de 1560, na carta conhecida como Descrição
das coisas naturais da Capitania de São Vicente, o Padre José de
Anchieta assim escreveu sobre o Curupira: 

É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos


demônios, a que os Brasis  chamam corupira,  que aco-
metem aos índios muitas vezes no mato,  dão-lhe açoi-
tes,  machucam-nos e matam-nos. São testemunhas dis-
to os nossos irmãos, que viram algumas vezes os mortos
por eles. Por isso, costumam os índios deixar em cer-
to caminho, que por ásperas montanha, quando por cá
passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coi-
sas semelhantes como uma espécie de oblação, rogando
fervorosamente aos curupiras que não lhes façam mal.

Mais conhecido como Curupira (em nheengatu, língua indí-


gena derivada da família tupi-guarani, curumi significa “meni-
no” e pira, “corpo”, ou seja, “corpo de menino”), ele também é
chamado de Currupira, Gurupira, Corubira, Matuiú, Caiçara e,
em alguns casos, é confundido com a Caipora e com o Zumbi.
Dizem que é casado com Caci, considerada a Mãe da Mara, e é
pai de Pitanga, de Acauã - que enlouquece as mulheres com seu
canto de mau agouro e faz os homens chocarem pedras como
se fossem galinhas pondo ovos -, de Matintapereira - aquele
que anda nas encruzilhadas pedindo fumo para pitar - e do Ui-
rapuru - o pássaro do canto maravilhoso. 
Tal como muitas das personagens do nosso folclore,
57
sua aparência desperta discussões acaloradas. Do que ninguém
tem dúvida é de seus pés virados para trás. Em boa parte do
Brasil, o Curupira aparece como um menino de corpo peludo,
com um olho só no meio da testa e um nariz bem pontudo. Em
outros lugares, ele é um ente que não possui nenhum orifício
no corpo e tem dentes verdes (há quem afirme que são azuis!).
Em algumas regiões, ele aparece careca, sem articulações nas
pernas e com orelhas enormes. Musculosos, dotado de muita
força, também é visto como alguém que suga sangue dos an-
dantes do mato. 
Contam que o Curupira anda sempre ao lado da compa-
nheira, em casal, e que aparece quase sempre de repente para
desorientar os caçadores, escondendo-se depois para ficar rin-
do do desespero deles. Como tem os pés virados para trás, dei-
xa qualquer um confuso se tentar segui-lo, fazendo as pessoas
procurá-lo exatamente na direção contrária à que tomou. Mora
nos buracos ou nas partes ocas dos troncos das árvores. 
O Curupira mostra e depois esconde a caça, e não permite a
captura de bichos recém-nascidos, muito novinhos ou prenhes.
Ai de quem matar “por gosto” e sem necessidade; O curupira
torna-se um inimigo implacável desse tipo de caçador!
O Curupira assobia alto e de forma estridente e anda
montado num porco-do-mato, guiando as manadas desses bi-
chos. Também é muito amigo dos cachorros selvagens. Antes
das grandes tempestades e trovoadas, ouve-se, nas matas, uma
batida nos troncos das árvores. É o Curupira que “testa” cada
uma delas, e também  as raízes das samaumeiras, para ver se
conseguirão resistir às intempéries. Ao ouvirem esses barulhos,
os caçadores devem ficar atentos e se proteger do que vem por
aí! Há quem diga que o Curupira faz isso só para confundir
mais ainda os andarilhos das matas… 
E o que fazer quando se está sendo perseguido pelo
espero Curupira? Largar pelo caminho muitos cipós trançados
pode ser uma solução. O menino dos pés virados vai parar para
tentar desmanchar os nós dos cipós, e, com isso, a pessoa ga-
nha tempo para fugir de sua vista. Se não tiver cipós, vale dei-
xar cruzes de madeira, que ele também vai tentar desmanchar. 
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Vejam só um trecho do poema intitulado “O Curupira”,
escrito em 1861 pelo maranhense Antônio Marques Rodrigues: 

O Curupira

De dia não busca a estrada


O guerreiro Curupira, 
Porque dorme a sono solto
À sombra da sucupira.

Mas de noite, quando a lua


Prateia as águas da fonte, 
E a fresca brisa sussurra,
Ei-lo que surge do monte.

Montados numa queixada, 


Rompe do bosque a espessura;
Da onça não teme as garras
Tendo três palmos de altura!

Da jandaia a verde pluma


Na fronte reluz, ondeia;
O arco, as pequenas flechas,
Garboso nas mãos maneia.

Assim anda, pula, e corre


De noite pelas estradas,
E após si em tropel marcha
Uma vara de queixadas.

O grunhido, o som dos passos


O trilhar dos rijas dentes,
Quebranta a mudez da selva,
Acorda os pobres viventes.

Pula aterrado o macaco,


Verga a folha das palmeiras;
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Sai a cotia da toca, 
Foge do maro às careiras.

Quando encontra o Curupira


No caminho um viandante, 
Para depressa, e atrevido
Opõe-se a que marche avantes.

Mas, se investe os inimigos,


E de nada se apavora,
De repente o Curupira
Pelo valor se enamora!

O povo Bakairi, do Mato Grosso, diz que há um duende tão


danado quanto o Curupira, a Caipora e o Saci-Pererê. É o Ki-
laino. Esse ser mora no mato ou no morro e assume a forma
que quiser. Come ratos e pássaros e grita muito para desviar do
caminho quem anda no mato. Se alguém grita no meio da flo-
resta, ele responde e deixa a pessoa com muito medo. Também
esconde a água que existe na região com muito medo. Também
esconde a água que existe na região, as caças mortas e as setas
que são atiradas pelos índios. O Kilaino faz ainda com que as
pessoas derrubem de suas mãos o que estão segurando e outras
traquinices que deixam qualquer um maluco! Outro aparen-
tado do Curupira é o Motucu, que também recebe o nome de
Demônio dos Pés Virados.

OUTROS NOMES: Caiçara, Corubira, Currupira, Gurupira, 


Korupira, Matuiú
REGIÕES DO PAÍS: Todas
ORIGEM: Indígena
PERSONAGENS RELACIONADAS: Caipora, Canhambora,
Guajara, Guariba, Jaci, Mãe da Mata, Mapinguari, Matintape-
reira, 
Motucu, Saci-Pererê, Tibarané, Uaiuara, Uirapuru, Zumbi
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10 - S82

Dark Side - Bishop Briggs


A estrada é longa e sinuosa, densa por conta do mata-
gal ao redor que arranha o vidro e faz meu pulso acelerar. O
verde das folhas parece preto devido a neblina dentro do carro.
O fumo queima há mais de meia hora e apenas a ponta alaran-
jada aparenta ter destaque. Me sinto um pouco desorientada
devido ao álcool, e o chacoalhar do carro na estrada de terra
me deixa ainda mais enjoada.
Giro a maçaneta e abaixo um pouco o vidro, o ar gelado me
atinge com força, assoprando meus cabelos para trás, permito-
-me tomar uma grande quantidade de ar antes de fitar Tobias.
Seus olhos permanecem na estrada enquanto o fumo continua
queimando. Meus olhos ardem e minha garganta parece seca
como lixas se tocando. Arrisco um diálogo, após o que parece
um ano.
“ Eu não gosto deste lugar” meu riso sai trêmulo, e minha fa-
chada de garota descolada não parece tão verdadeira agora.
“Tem... rumores sobre o que acontece por essas matas” prossi-
go, sentindo minha garganta se fechando.
Ele sorri, perfeitos dentes claros e caninos desenhados. Fiquei
encantada ao vê-lo me dar atenção no bar, o cabelo ruivo e
cheio de redemoinhos cacheados me encantaram logo de cara.
Sem que eu percebesse sua barba por fazer já estava arranhan-
do meu pescoço e logo estávamos no carro, prontos para fazer
sexo em qualquer lugar que encontrássemos. Isso foi há quase
meia hora atrás, muitos, muitos quilômetros atrás.
“Relaxa, são apenas rumores” ele me encara, olhos negros como
a noite atrás da janela dele. “Ou vai dizer que está com medo
do Curupira?” ele gargalha e me lança um olhar de esguelha.
“O quê? Não!” praticamente arfo, tentando fazê-lo acreditar o
contrário. Querer não demonstrar medo parece fazer eu de-
monstrar mais medo. “É que sabe, estamos longe e...”
“Shhh...” ele põe o dedo na minha boca e o carro para momen-
taneamente. “Aqui ninguém vai nos escutar.”
“Não é uma boa ideia” digo, mantendo minha mão no
lacre do cinto de segurança.
“Eu vou primeiro, para provar que não há nada aqui”
sussurra após roubar um beijo.
62
Tento protestar, mas ele já saiu. Acena para mim e o
farol amarelado o ilumina, logo o vejo retirar as calças e ficar
apenas de blusa e cueca. Saio do carro e paro em frente a ele,
quase que imediatamente suas mãos grudam na minha cintura
e puxam meu vestido pela cabeça. O vento gelado faz meus pe-
los se eriçarem. Apenas a calcinha e o sutiã preto me mantém
vestida.
Ele me deita em cima do capô do carro e sinto-o me
cobrir, beijando-me fervorosamente. Deixo que o êxtase me in-
vada novamente, que suas mãos percorram meu corpo e me di-
gam que alguém me deseja apesar de todas as minhas imperfei-
ções. De todos os caras, ele me desejou. Esqueço-me do mundo
ao redor e a chama do prazer me invade. Suas mãos alcançam
meus tornozelos e...
Meu grito é tão alto que me assusto. Meu pé está vira-
do em um ângulo estranho, mais pelas mãos dele do que por si
só. Chuto-o instintivamente, fazendo-o tropeçar em suas pró-
prias pernas. Salto do capô e bato com força no chão, minhas
mãos e rosto recebendo o impacto. Ergo-me, correndo para o
matagal, meu tornozelo lançando pontadas fortes a cada passo.
Faço tanto barulho que pássaros alçam voo e tornam a noite
menos silenciosa. Desvio de uma árvore no meio do caminho
e suas raízes acertam meu tornozelo torcido, meus braços se
agarram ao tronco, mas eu deslizo e bato com força na raiz
dura. Minhas costelas queimam e minha coluna estrala. Desa-
jeitada, me escondo, pondo a mão na boca para controlar mi-
nha respiração ofegante.
Sinto-me zonza, meu coração palpita e me sinto pres-
tes a desmaiar. O cheiro de álcool parece sair pelos poros junto
com meu suor, e folhas escorrem pelo meu cabelo, junto com o
que aparenta ser sangue.
“Eu sei que está aqui” Tobias grita. O mato se quebran-
do faz com que eu não tenha coragem de partir para lugar ne-
nhum, seu barulho me confunde e seu assovio na noite escura
me causa ainda mais arrepios. “Vou encontrar você!”
Rastejo para longe da árvore e vejo o momento que ele
encontra a raiz também, quase caindo. Permaneço de quatro,
63
andando no meio do mato longe do campo de visão dele. Não
tenho escolha senão ignorar a repulsa e o medo de animais pe-
çonhentos e seguir em frente.
O mato alto e as árvores próximas também o escondem
de mim, mas é o farfalhar das folhas que entregam a posição
dele, assim como a minha. Esqueço qualquer sinal de resguar-
do que minha mente lança, meu corpo quer correr e fugir dali.
Afundo na lama de um córrego que cruza um dos pontos a
minha frente. O cheiro faz minhas narinas dilatarem e o calor
com o suor atraem ainda mais mosquitos.
Meu tornozelo ferido me derruba, a dor é tão lancinan-
te ao mover a perna que não consigo me segurar. O barulho é
alto e a água lamacenta esguicha ao redor. Não consigo evitar o
agouro quando as mãos de Tobias me puxam novamente, meu
cabelo atado aos seus dedos.
“Sua vadia” ele grita, algo pontudo destacando-se pra-
teada em sua outra mão.
Ergo um braço para proteger meu rosto e a ponta afiada atra-
vessa meu pulso e sai do outro lado.
É apenas dor.
Dor.
Dor.
Dor.
Acotovelo-o entre suas pernas. Sua mão vacila e a faca
pende sozinha. Levanto, pronta para correr, apesar da dor, da
confusão e do cansaço. Fios rasgam-se ao serem prendidos com
força pela mão dele. Vejo tufos escorrerem entre seus dedos e
minha cabeça queimar devido aos arrancados.
Prossigo, tonta, tentando entender o que está acontecendo e
se realmente está acontecendo mesmo comigo. Lembro das
conversas na cidade, o bicho que mata pessoas, entorta seus
pés, confunde mulheres, engana homens. Cabelo vermelho, pés
para trás, tornozelos quebrados, gosta da mata, ama lugares
que tenha fumo e bebidas... tudo aquilo não era a respeito de
um monstro, era sobre ele...
Prendo a respiração quando saio em uma clareira. O cheiro
pútrido me atinge com tanta força que sinto como se tivesse
64
batido contra uma parede. Há corpos caídos, se decompondo,
despedaçados de tantas maneiras diferentes que não consigo
reconhecer nada.
“Peguei você.”
“Arr!” grito, ao senti-lo trombar comigo. Giramos pelo
matagal, sendo freados pelos corpos cheios de vermes. A faca se
afunda ainda mais em meu pulso, e lágrimas embaçam a minha
visão. Tusso, entorpecida pela dor e pelo cheiro.
“De longe você foi a mais difícil” ouço Tobias falar. A
dor na minha cabeça me deixa alerta, onde deveria existir fios
escorre sangue. Apoio-me sob um cotovelo e viro, encarando-o.
A cabeleira ruiva dele não me parece tão atraente agora, mas
parece emitir um brilho sedutor, um brilho mortal.
“Por quê?” É tudo o que pergunto.
“É a minha natureza. As pessoas respeitam aquilo
que temem. Ao menos, as crenças no que temem os tornam
cautelosos, evita com que prejudiquem ou julguem algo. Tem
vezes que é preciso que um mal aconteça para que percebam
o erro que sempre cometeram” finaliza, ajoelhando-se ao meu
lado.
“E o que eu fiz para você?” rujo, gemendo com a dor.
“Você se aventurou. Persuadir você foi a coisa mais fácil
que fiz. Sua falta de apreço pelo bom senso a pôs aqui.”
Noto pela primeira vez que ele está sem a camiseta, porém,
permanece de cueca, esverdeada, escura como as folhas ao re-
dor.
“Eles vão saber que foi você. Nem todo mundo vai acre-
ditar nesta história de Curupira, já estão atrás dos corpos, vão
pegar você” sorrio, será que a dor já tirou toda a minha sanida-
de?
“Acha que eu sou o único, sempre terá mais. Em todo
lugar... você já está morta!”
Suas mãos agarram meu pescoço e eu engasgo. O aperto firme
me faz arquejar. Tento acertar um soco nele, mas minha mão
tomba. Estou perdendo a consciência. Meu pulso acerta minha
perna e a faca me desperta. Seguro em seu cabo com a mão li-
vre, leva poucos segundo entre o momento que puxo com força
65
a faca, o grito sufocado faz o aperto dele parecer ainda mais
firme. A única coisa que tomo consciência antes de desabar é a
faca sendo fincada no olho dele.

Nota do jornal local:

O Guarda-florestal Celestino Montreal, responsável


por encontrar o corpo de vinte e seis pessoas na mata, foi libe-
rado da delegacia de homicídios. De acordo com a Polícia Civil,
Celestino ajudou a solucionar um dos casos de maior com-
plexidade da história da região, além de salvar a vida de uma
jovem que havia sido relatada como desaparecida por amigos e
parentes.
A mãe da jovem Laura Tibetano Rodrigues, que qua-
se morreu na sexta-feira (14) após levar uma “facada” e ter um
tornozelo lesionado, está muito abalada com o acontecimento,
após ter presenciado o resgate da filha e de outros corpos da
vala no meio da mata.
“Ela não parava de sussurrar Curupira e dizer que não
acreditava nele”, relatou a mãe da jovem. O caso repercutiu na
região devido à semelhança a crença em algo sobrenatural nas
redondezas. Outros parentes de pessoas desaparecidas vieram
ao necrotério para tentar reconhecer os corpos encontrados.
Já o outro jovem, morto com uma facada nos olhos, não sobre-
viveu durante a transferência para um hospital local. O caso
segue em mistério, já que segundo os médicos, a única sobrevi-
vente não tem apresentado um estado mental confiável.
O delegado responsável pelo caso explicou que devido
ao trauma, a jovem precisaria primeiro passar por um trata-
mento antes de conseguir depor. Disse também que há poucos
elementos que caracterize as mortes como um genocídio, afi-
nal, não havia nenhuma conexão entre as vítimas.
A população segue apavorada e um toque de recolher
foi orientado até que tudo tenha sido esclarecido.

66
IARA
Sem dúvida, a Iara é um dos mitos mais queridos do
Brasil. E, tal como ela, o mito da mulher que mora nas águas -
y-íara em nheengatu significa “Mãe-d’Água que vive no fundo
do rio” - é comum a muitos povos do mundo. As sereias, as mu-
lheres que são metade peixes e metade humanas, estão presen-
tes em toda a literatura mundial.
Há muitas lendas sobre a Iara e uma das mais conhecidas
é a que diz que ela era uma guerreira índia muito inteligente
e corajosa, e seu pai a elogiava muito. Por isso, seus irmãos ti-
nham muita inveja dela e planejaram matá-la. Ela ouviu a con-
versa deles e então resolveu matá-los antes. Assim o fez, e de-
pois fugiu para dentro das matas. Mas o pai, furioso com o que
ela havia feito, a perseguiu até encontrá-la e como castigo a
lançou no rio Solimões. Os peixes a salvaram da morte e, como
era noite de lua cheia, ela se transformou em uma bela sereia.
A personalidade da Iara é controversa. Ela é linda, se-
dutora, possui um canto maravilhoso e, assim, atrai homens e
mulheres para o fundo do mar. Ali eles visitam o palácio en-
cantado dela e nunca mais serão os mesmos… Ainda que vol-
tem para a terra, seu desejo será sempre retornar ao fundo das
águas e, por isso, acabam morrendo afogados. A lenda “O Uiara
do Jaraguá”, escrita por Armando Guerrazzi na seção “Lendas
e fábulas indígenas” de uma edição de 1938 da Revista Cultura,
descreve bem o encantamento que envolve a figura da Iara:

E ela assumiu veste cada vez mais brilhantes, enquan-


to a fisionomia da moça irradiava felicidades. Pérolas
lhe afogavam o pescoço, diamantes lhe reluziam os
dedos, e os braços ebúrneos da Uiara tinham o lácteo
das espumas do mar. Sentara-se depois a um trono e
recebia das jovens, reverências. Perfumes exalavam as
tapeçarias magníficas, ao modo dos palácios orientais.
As cores do ambiente mudavam de irisações, num espe-
táculo original, ao passo que harmonias em surdina se
69
elevavam, entre vozes misteriosas, como qualquer coisa
de exceder a fantasia humana.

A aparência da Iara também é controversa. Os registros


a descrevem de várias maneiras. Muitos a conhecem como a
clássica figura da sereia: uma mulher loura, de olhos profunda-
mente azuis, possuidora de uma voz encantadora. Essa é a raiz
europeia do mito. Para os índios a Iara pode ser descrita como
um demônio macho-fêmea dos rios. É um tapuio ou tapuia de
rara beleza, morador do fundo dos rios ou lagos e que fascina
aquele que cai em seu poder, induzindo a pessoa a lançar-se
n’água”. 
E na tradição africana a Iara pode ser comparada a Ie-
manjá (deusa do mar) ou Oxum (deusa dos rios), as sedutoras
mulheres que habitam as águas, que se vestem de branco e azul
ou amarelo. Mas essas, entretanto, não são metade humanas e
metade peixe.
O mito da Iara está associado, com o de outros seres
das águas, como o Boto, o Ipupiara, o Cobra-Norato ou Cobra-
-Grande, e também Sucuriju, mas se distanciou deles criando
uma identidade própria. Na Amazônia, por exemplo, assume a
forma de uma cabocla metade mulher, metade peixe, e é res-
ponsável por cavar a ribanceira dos rios, atrapalhando a nave-
gação dos pescadores e também as plantações de milho e man-
dioca, só por traquinagem. Dizem que às vezes se transforma
num cágado e fica na beira da água; quando a pessoa o pega,
transforma-se na Mãe-d’Água. 
Na região do rio São Francisco, em Pernambuco, a
Mãe-d’Água também é conhecida como Avó-d’Água.

OUTROS NOMES: Mãe-d’Água, Uiara


REGIÕES DO PAÍS: Todas
ORIGEM: Universal
PERSONAGENS RELACIONADAS: Barba-Ruiva, Boitatá, Boto,
Cobra-Norato, Ipupiara, Marido da Mãe-d’Água, Sucuriju
70
Iara

Mermaid - Skott
Há um tempo atrás fui num desses terreiros de Um-
banda, daqueles que os milagres ocorrem e as energias percor-
rem nossa alma. Esse templo era morada no Amazonas e além
de rico visualmente, era rico em energia.
Lembro da aflição em que me encontrava para poder
encontrar meu filho: um jovem pescador, o qual foi aos rios e
nunca mais voltou. O rio desfrutara de sua jovialidade e sumiu
com seu corpo. Há dias vinha procurando meios de encontrar
meu filho antes de retornarmos a nossa casa em São Paulo, até
que certa moça mencionou o templo o qual eu estava: disse
saber de magia, de reza e coisa brava. Falaram-me sobre certa
lenda de Iara, dessas dos livros infantis.
“Sabe fia, as coisa por essas banda num são fácil como
a sinhazinha pensa” Um homem incorporado numa entidade
com traços da escravidão (até então, denominava-se um preto
velho) disse-me, revezando as palavras com as baforadas do ca-
chimbo.
“Eu imagino que não sejam. Eu só quero encontrar meu
filho...” Não me preocupei em soar mal-educada com uma enti-
dade a qual procurava me ajudar.
O preto velho ria, mas teu riso calmo de vovô não me
acalentava, pior: demonstrava a tranquilidade daquele espírito
com meu caso “Sinhá, o nego véio vai falar pra tu onde seu fio
tá...”
Emaranhada na fumaça do cachimbo e nos olhos cerra-
dos do médium incorporado, fiz-me ansiosa “Ora, se sabe onde
ele está, diga-me: começarei uma busca o quanto antes. Você
quer dinheiro? Eu lhe pago, eu tenho. Meu marido quem man-
dou desbravar toda essa mata para exploração. Anda, diga onde
ele está.”
Eu estranhei o preto velho ter soado desinteressado
quando falei de dinheiro. Permaneceu na mesma posição. Tua
quietude me espantava.
“A sinhá guarda o pataco” Creio que ele quis dizer di-
nheiro em seu dialeto “Disso não preciso. O nego vai te conta
onde seu fiinho tá.”
“Então ande, fale!” Mal podia esconder a ânsia e as bor-
72
boletas que fugiram do meu estômago e foram para a cabeça;
causando uma enxaqueca tremenda em curiosidade.
“Embaixo do rio fia, ele tá embaixo do rio...”
Eu juro que puxei o ar, respirei o mais fundo necessário
para não sair quebrando aquela tenda. Não acredito ter escuta-
do o óbvio de um, até então, ser de luz.
“Você só pode estar brincando. Fez eu perder meu tem-
po. Não sabe a dor que sinto no peito? Eu sei que meu filho
está embaixo do rio...” Só as mães sabem o falhar do segurar o
choro, quando o assunto é filho. Quando me vi, desabava em
pranto. Prestes a me levantar e retirar-me.
“Mas ele tá vivo, fia...” A voz do homem fez eu inter-
romper a ação de me erguer e sumir. Limpei as lágrimas e não
escondi meu olhar de confusão.
“É fia... Ele tá vivo, vivinho da silva. Mas não por muito
tempo. Seu fio tá no reino das águas doces, mergulhado nos
braços de paixão da Iara...” O modo com o qual o homem usou
das palavras fez-me arrepiar. Não, eu não iria acreditar numa
lenda antiga. Mas de algum jeito, meu coração de mãe fez-se
crédulo nas verdades de um preto velho.
“Não pode ser, você está brincando comigo...” Tentei
esconder a verdade que sentia “Não há lógica nenhuma nisso.
O senhor deve estar usando esse conto porque eu me chamo...”
“Iara?” O preto velho acrescentou e outro calafrio per-
correu meu corpo.
Engoli em seco. E só aí lembrei que não havia dito meu
nome a ele ou a mais ninguém dali.
“Sim...” Congelei minha palavra num silencio árduo.
“Poucos foram os que conheceram de perto a sereia das
águas amazônicas...” O preto velho puxou teu cachimbo e eu
pude ver da tua fumaça sair a silhueta de uma belíssima sereia.
A fumaça dançava aos meus olhos e devagarinho, como num
bailar de cascatas cristalinas entrei em transe. E cada palavra
daquele ser, ecoavam em minha mente numa outra cena.
“Todos sabem, fia minha, que essas banda é cheia de
histórias. Mas Iara, ah, Iara não é só uma história... história é
sobre o que já passo... Iara não passo, ela é presente nos rios e
73
na vida de quem respeita suas águas e não cai nos seus encan-
tos...”
Conforme o preto velho falava, via numa cascata dou-
rada uma sereia a se pentear. Como se fitar teus olhos fosse vis-
lumbrar um paraíso cítrico de paixão, ela exalava a natureza na
visão.Teu ar de índia me remetia a caçar teus lábios carnudos.
Mal pude reparar na enorme cauda a qual misturava-se no cris-
tal das águas. Pois me peguei devota do teu cantar, deixando-o
possuir todo o meu ser.
Ela chamava por mim
Ela precisava de mim
Eu iria até ela...
Até que vi de relance, meu filho em teus braços. Em
beijos molhados. Perdendo-se nas correntezas do corpo de Iara.
Pasmei com a visão das águas cristalinas: enxerguei um
rio de sangue. Cascatas densas e gritos de pavor, urros masculi-
nos e reclamações de misericórdia.
“Fia...?” Retornei ao chamar do preto velho. Minhas
mãos estavam gélidas e eu não recordava nem mais onde estava
ao certo. A visão que tive pelo cachimbo da entidade me cobri-
ram em verdade “A sinhá tá me escutando?”
Segui de olhos arregalados. Pasma. Sem responder aos
seus chamados. O que eu havia visto, meu filho nos braços de
Iara, eu estava lá. Eu vi tudo.
O médium logo começou estalar os dedos ao meu re-
dor e a cada passar de dedos, pude ir voltando desse transe
amedrontador. Lidar com meu ceticismo agora não seria mais
problema, meu interior já acreditava cegamente em tudo.
“Eu vi...”
“A sinhá acredita agora?” O velho deu um risinho no
canto da boca. Agora estava com um galho de arruda na mão.
Apenas concordei com a cabeça, seria difícil demais as-
sumir crer numa visão em voz alta.
“O que eu devo... o que devo fazer...” Balbuciava ofe-
gante, ainda inerte com o que meus olhos viram. E com o de-
sejo aflorado. Eu jamais senti atração por mulher alguma, mas
Iara, estava na minha mente.
74
O preto velho me entregou um rosário junto à sua ervi-
nha de arruda e deu um risinho baixo. Colocou seus itens sobre
minhas mãos e fechou meus dedos, dando-me teu aperto de
mão. 
“Reza fia, só reza e vai ao encontro da sereia. Vai onde
seu minino sumiu e fala cum ela...”
“Não, mas isso não. Eu não vou voltar ao local do de-
saparecimento do Daniel...” E lá estavam as lágrimas caindo
do meu rosto. Pesarosas sobre o rosário de uma entidade. Meu
filho de quatorze anos me veio a mente, naquela visão contur-
bada, mergulhando no corpo daquela mulher. Desatei o pranto
e meus olhos sangravam a dor de uma mãe assustada.
A entidade levou agora a arruda e o rosário ao meu pei-
to. Perfurou minha alma com seus olhos misericordiosos e de
um médium incorporado vi uma lágrima cair.
“Quem escuta Iara cantar fia, tem que seguir ela... Não
tem jeito. Cê entende o nego? O único jeito de salva teu fio, é
seguir a sereia.”
“Mas se eu for até ela e padecer?”
“Suncê ama seu minino?” Questionou o preto velho.
“Mais do que tudo!”
“Então tu num há di padecê...”
E dali nos despedimos. Sai daquele terreiro com os
olhos marejados de pudor — o que vi não seria apagado jamais.
Mas meu coração estava acalentado. Ainda caminhando até
a saída pude sentir tudo em câmera lenta, como se o mundo
fosse parando aos pouquinhos e apenas minha tristeza fluísse
sobre meus olhos. As moças de saia dançando numa velocidade
pequenina, os atabaques sendo tocados na maior cautela do
tempo. Virei-me para fitar uma última vez aquele preto velho...
E ele não estava mais lá
Ele nunca esteve
E nunca mais o encontrei.

CANTO DA SEREIA

Era tolice tentar dormir ou até mesmo cochilar. Fechar


75
os olhos me levava a um breu de maldição. Quando sai daquele
terreiro questionei-me sobre todas as lendas as quais aprende-
mos. Saci, Mula-sem-cabeça, Lobisomem... Os folclores de nos-
sa terra. Se Iara era real, todos eles de certo modo eram.
Meu marido não atendia minhas ligações, como de cos-
tume. Ele mal se preocupou com o desaparecimento de Daniel
e realmente se importava apenas com a exploração de terras na
Amazônia. Maldita foi a hora em que trouxe meu filho para co-
nhecer este lugar sozinha.
Em meio ao turbilhão de pensamentos sombrios os
quais pesavam meu travesseiro.
Como ele me fez apenas com seu olhar enxergar minha
verdade absoluta: uma mulher infeliz, num casamento infeliz,
fazendo de tudo para manter as aparências por conta de di-
nheiro.Com meus olhos fechados nas tentativas de adormecer,
uma melodia suave ecoou.
Assustei-me e levantei de olhos arregalados, o coração
mal cabia no peito.
Fechei os olhos e ao invés da escuridão, enxerguei ela.
Eu a vi de novo. Iara.
Novamente arregalei a visão e levantei da cama. Cada
vez que eu piscava, enxergava teu semblante avassalador. Bus-
cando forças, consegui chegar a pia do banheiro, e fazia da
água da torneira tentativa de tirar-me daquela loucura. Diabos,
estaria eu insana?
Por mais que eu molhasse meu rosto, eu fechava os
olhos e a enxergava.
Até num certo momento não conseguir mais abrir os
olhos. O cantar da Iara ecoava com as batidas do meu coração
e o corpo da sereia juntava-se aos meu. Tua pele molhada. Os
cabelos negros da sereia prendiam-me como uma rede prende
um cardume.
E naquela noite eu me toquei como nunca havia me
tocado.
Naquela noite eu me entreguei a uma sereia. E me ren-
di aos braços do demônio das águas doces.
Acordei cercada de homens, todos nus e me servindo
76
café da manhã. Assustada os enxotei de meu quarto e liguei
para a recepção do hotel — eu havia saído na noite anterior.
Mas não me recordava disso. Céus, Iara estava me possuindo.
Eu não sabia mais quem era eu. Meu nome ser Iara deixava a
situação ainda mais confusa.
Fui ao calendário e já haviam passado três semanas
após o desaparecimento de meu filho Daniel. Titubeei para
trás. Ontem quando vi haviam se passado apenas uma sema-
na. Não pude hesitar levar as mãos à cabeça de preocupação e
emergir em confusão. Certamente eu teria sido possuída após
ter tido uma visão com à sereia.
Eu tinha de agir, eu não podia deixar isso ocorrer no-
vamente. Precisava encarar meu medo, salvar meu filho. Nessa
hora as palavras do preto velho vieram a minha mente.
Meu ser sabia exatamente o que fazer.
Sai do hotel — aliás, um dos únicos mais apropriados
para a região Amazônica a qual fiquei hospedada — e segui
caminhada para o rio. As águas que haviam sumido com meu
filho. 
Era dia e o sol judiava dos meus olhos. A caminhada era
longa, mas minha determinação fez de horas quase minutos —
ou minha percepção assim o fez.
Me assustei ao chegar, pois não havia visto esse paraíso
com os meus próprios olhos. Daniel havia me dito sobre vir na-
dar sozinho neste lugar, mas jamais me apresentou. Cascatas se
encontravam em harmonia, peixes saltitavam e pássaros exóti-
cos presenteavam os ares com um cantar perfeito.
Estava eu com o rosário do preto-velho na mão, arre-
pios por todo o corpo e sentindo uma presença. Iara estava ali,
eu sentia meu desejo aumentar.
“Apareça!” Bravejei e só ouvi o barulho da cachoeira em
resposta. Nada acontecia.
Optei então por ficar nua e adentrar as águas cristali-
nas. Eu não posso mentir que meu nome faz honra à Iara. Pois
a beleza a qual eu detinha, homem nenhum recusava. Fiz das
águas lar de minhas curvas.
“Daniel!” Quanto mais fundo ia ficando, sons de afo-
77
gamentos iam crescendo. Era meu filho, eu tinha certeza que
era Daniel. Quando me dei conta o rosário que segurava, havia
sumido nas águas e o desespero se fez mais gélido do que as
águas. A vontade de recuar era grande, mas eu já estava ali. As
frases do preto velho martelavam em minha mente. Eu ia enca-
rar de frente essa sereia e recuperar meu filho.
As águas se rebuliçaram e os gritos de socorro aumen-
tavam ao meu redor, mas não havia ninguém.
Estava mergulhada até os seios mas eu podia sentir mi-
nha alma afogar-se no medo.
Uma mão nas minhas costas.
Uma palpitada a mais no meu peito.
Virei-me.
Era Daniel, meu filho, com os olhos encharcados de
lágrimas.

CASCATAS DE DESESPERO

Saímos das águas e Daniel estava abraçado comigo. Fi-


camos um tempo chorando. Não podia crer que meu filho esta-
va realmente a salvo.
“Mãe, o que eu vi, foi horrível... “ Agarrado em meu
peito, Dani contava sua experiência traumática nos braços de
Iara “Ela deixou eu afogar num reino escuro. Eu me afoguei,
afoguei, mas não morria. Parecia estar condenado a sensação
de sufocação eterna. Mãe, eu não sei o que aconteceu, ouvi
uma música bonita e quando vi tudo estava perdido. Me per-
doe” Meu filho mal conseguia formar palavras de tanta contur-
bação. Seus olhos reluziam pesadelos assombrosos.
“Eu estou tão feliz em te ter aqui, não vamos falar nis-
so. Está bem?” Segurei sua cabeça e abracei o olhar dele ao meu
“Vamos embora deste maldito lugar amanhã mesmo, seu pai já
comprou nossas passagens de volta pra São Paulo. Tudo isso foi
um erro.”
“Não mãe, a gente não pode voltar...”
“Por quê?” Questionei, olhando para os olhos pesarosos
de meu menino.
78
“A sereia quer você” Seu tom de voz me causou arre-
pios. Soltei Daniel de meu abraço “Ela só me deixou sair, caso
você entrasse no rio. Mãe, eu não quero que a senhora vá, pre-
cisamos dar um jeito de sair daqui.”
Peguei Daniel pelo braço e o puxei, para enfim sairmos
da beira daquele inferno em cascata. Mas na minha tentativa:
meu filho começara a cuspir água e a afogar-se em terra firme.
“Daniel!” Eu tentava socorrê-lo, mas meu menino cus-
pia sem parar e sufocava. Teus olhos claros esbugalhados de
pavor. As veias saltando e tua alma de criança sendo encami-
nhada para o fim.
Não deixaria meu filho padecer.
“Iara!” Berrei ao horizonte. A neblina brincava sob à
cachoeira “Eu ficarei, mas deixe meu filho ir.” Como num passe
de mágica, meu menino estava melhor e em pé, respirando com
dificuldade, mas não apresentava mais sinais de afogamento.
“Daniel, vá ao hotel e busque por ajuda. Mas em hipó-
tese alguma retorne a este lugar, você me entendeu?” Segurei
ele nos ombros e encarei teu olhar como a última vez “Não me
questione, eu voltarei. Mas eu não estou pedindo, estou orde-
nando que saia daqui agora. Eu te amo muito.”
Não deixei com que ele terminasse e o instiguei a cor-
rer o mais rápido possível. Com meu filho livre eu conseguiria
lidar com a diaba das águas.
Virei-me à cachoeira e tudo estava lindamente tranqui-
lo. A tranquilidade perfeita para a minha perturbação.
“O que você quer de mim, Iara? Pra mim você não pas-
sa de uma lenda perturbadora. Aliás, não acho justo termos o
mesmo nome” Peguei da beira do rio uma pedra e arremessei
nas águas “Podem me confundir com essa assombração que tu
é.”
A pedra caiu no cristalino da correnteza.
Devagarzinho uma melodia começara a disputar a
atenção de minha audição junto com a suavidade das cascatas.
O som vinha de todos os lados e eu parecia numa redoma acús-
tica. O canto de Iara era uma desgraça gostosa de se viver, pois
ele me trazia algo que eu não tinha há muito tempo: tranqui-
79
lidade. Meu coração preenchia-se num bem-estar tremendo e
estar nas garras da sereia não me parecia péssima ideia. Quan-
do vi já estava nadando e com a água até o pescoço. Um sorriso
bobo impossível de segurar.
Até então mergulhar e sentir meus cabelos bailarem
nas correntezas, cada fio acariciava os peixes — de diversas co-
res e tipos — as pedras reluziam no fim do rio e estar embaixo
da água me dificultava a respiração, mas facilitava a alma a des-
cansar. A canção ia ficando mais prazerosa conforme mergu-
lhava. Quando já no fundo do rio encontrei a sereia de minha
assombração. O susto de a ver fizeram com que bolhas escapas-
sem e o ar faltasse.
A sereia armava ao meu redor um turbilhão de corren-
tezas, me senti no olho do mais perverso furacão, com cada
parte do meu corpo perdendo a vida e dando lugar ao adeus.
Mas algo inusitado ocorrera na magia de Iara. Confor-
me o redemoinho aumentava, seu som ecoava a melodia perfei-
ta para meu terror.
Minhas pernas deram lugar para uma cauda
E a cauda de Iara viraram pernas.
Quando dei por mim entendi exatamente o que estava
havendo: Iara estava passando sua maldição à frente. Não por
coincidência nossos nomes eram os mesmos.
A mulher nadou até a superfície no fim do caos e eu a
persegui com dificuldade.
A índia adentrou a mata antes de eu dizer qualquer coi-
sa e desapareceu.
Tentei sair da cachoeira ou qualquer outra coisa, mas
eu estou presa aqui. Eu sou Iara e preciso encontrar uma outra
mulher para passar a maldição que habita nessas águas cristali-
nas. Mas até lá a única maneira de me alimentar é pelo beijo de
desespero dos homens afogados.
Temo essas águas pois a cada dia minha sede de nau-
fragar corações aumentam e sinto-me perversa.  Se ouvir meu
canto essa noite, por favor, venha me visitar... Tenho o dom de
nos seus mais prazerosos sonhos adentrar.
Salve-me.
80
LOBISOMEN
- Menina, você onde vai?
Eu vou na fonte
- Que vai fazer?
Vou levar de comer
À minha mãezinha.
- O que leva nas costas?
É meu irmãozinho.
- O que leva na boca?
É cachimbo de cachimbar...
Ai! Meu Deus do céu.
O bicho que me comer,
O galo não quer cantar,
O dia não quer amanhecer,
Ai, meu Deus do céu!
 
(“O Lobisomem e a menina”, cantiga popular.)
 
É bom que se diga que ser lobisomem não é escolha, é uma
sina.Um destino ruim, um fardo. Tem de ser o oitavo filho (em
alguns registros dizem que é o sétimo) de uma família que já
tenha sete meninas. Quando esse menino completa treze anos,
numa terça ou numa sexta-feira, ele sai de noite em busca de
um lugar onde um jumento tenha se lambuzado, se sujado. En-
tão, tira sua roupa, faz sete nós em toda ela e se esfrega naque-
le chão. Assim, torna-se lobisomem.
O Folclorista Mário Rizério Leite descreve, em Lendas
de minha terra (1951), a transformação de um homem chamado
Porfírio em Lobisomem:
 
Por ocasião da Quaresma, pressentindo a aproxima-
ção do encanto, Porfírio desaparece. Abandona a casa
interna-se no mato, em busca de uma capoeira velha.
Na quinta-feira santa, por volta da meia-noite, deita-se
num espojador de animais, ai permanecendo a rolar de
83
um lado para o outro, envolto em poeira.
Quando no relógio da igreja soa a derradeira balada das
24 horas, a transformação começa. Em primeiro lugar
os pés, em seguida os braços e finalmente a cabeça e os
resto do corpo. Depois se levantam, sacode as orelhas
enormes e emite um uivado lúgubre e prolongado. Em
seguida, parte em louca disparada, atacando todo o vi-
vente que encontra.
 
E ai sua má sina começa: as orelhas crescem e caem sobre os
ombros, como se fossem asas pontudas, o rosto ganha feições
de lobo. Há quem diga que ele se transforma em metade ho-
mem, metade cachorro, ou ainda em um cachorrão, quase do
tamanho de um bezerro. E tem quem garanta que ele é um ca-
chorro com focinho e cara peluda da cintura pra cima e, da cin-
tura para baixo, um porco, com rabo enrolado e tudo mais.
Assim que se transforma, o Lobisomem sai em dispa-
rada, rosnando e uivando alto. Persegue os animais novos, as
crianças, os velhos e as mulheres grávidas para morder o pesco-
ço e chupar o sangue. Ás terças e sextas-feiras, da meia-noite às
duas da madrugada, antes de o dia raiar, ele tem de visitar sete
cemitérios, sete encruzilhadas, sete altares, sete vilas acastela-
das, ate voltar ao lugar de onde saiu e então se transformar em
homem de novo.
Dizem que é facil reconhecer um homem que vira lo-
bisomem: é magro, muito palido, abatido, tem nariz empina-
do, sobrancelhas grossas e orelhas pontudas. Costuma bocejar
muito, esta sempre enjoado (por causa do gosto de sangue na
boca) e adora comidas bastante temperadas, especialmente
com sal. Cocô de galinha é seu prato predileto e, por isso, tem
um bafo insuportável e os dentes muito sujos.
Contam que ele sempre sai cabisbaixo e sorrateiro, de
fininho, toda meia-noite, se segunda para terça e de quinta
para sexta-feira, para cumprir sua má sina. Dizem que já o vi-
ram atravessando aldeias e apagando as luzes dos sítios, antes
de os lavradores adormecerem. Os cães dessas fazendas se agi-
tam e correm como loucos.
84
Até o autor pernambucano Gilberto Freyre, em seu
livro Assombrações do Recife Velho (1995), faz registro do Lobiso-
mem, que muitos juravam ver nas ruas do Recife:

Do Lobisomem de diz que tem aparecido no Recife em


figuras fantásticas, um tanto de homens, um tanto de
lobos, de cães danados, de bodes infernais, de gatos
com olhos de fogo, de porcos doidos por lama e imun-
dice: monstros que a bala comum não mata, mas só a
de prata que tiver levado um banho de água benta.

Quem quiser se defender desse bicho horroroso pode fazer


uma “estrela de Salomão” - símbolo antigo, feito com dois
triângulos sobrepostos, um com a ponta para cima e o outro,
para baixo - com as palhas secas recebidas na igreja no Do-
mingo de Ramos (o domingo que antecede ao de Páscoa). É só
pregar essa estrela na porta de casa e o Lobisomem nunca vai
passar nem perto.
Para que a sina desse monstro seja eterna, é só trocar as
roupas que ele deixou no local onde se transformou em Lobiso-
mem por outras novinhas em folha.
Quando ele vestir as roupas novas, nunca mais voltara
a ser homem.
E para acabar com o encanto do Lobisomem? Basta
causar no bicho qualquer ferimento que sangre. Algumas gotas
já são suficientes para que a maldição de desfaça. Agora, para
destruir de vez essa criatura, é preciso enfiar uma faca de pra-
ta em seu coração ou acertar em seu peito um tiro de bala que
tenha sido lambuzada na cera de uma vela de esteve no altar de
uma igreja onde tenham sido celebradas três missas na noite de
Natal.
Dizem ainda que se a pessoa falar três vezes “Ave Ma-
ria!” depois que o Lobisomem passar por sua casa correndo fei-
to uma flecha, ele vai explodir e desaparecer de vez.
O folclorista I. G. Americano do Brasil, em seu livro
Lendas e encantamentos do sertão (1938), afirmou que a Bruxa é
irmã gêmea do Lobisomem, já que ela também é a sétima filha
85
de uma família só de mulheres e tem como habito chupar san-
gue das pessoas:
“Ao contrario do Lobisomem, se quem é a irmã gêmea, a Bruxa
tem aparência definida: apresenta a forma de uma enorme e
horrenda figura, uma coruja, sugadora do sangue das crianças
novas”.
O Lobisomem aproxima-se do mito da Cumacanga ou
Curacanga, como registra o folclorista Basilio de Magalhães em
sua obra O folclore no Brasil (1939):
No interior do Maranhão [...] existe um mito singular,
que se liga simultaneamente aos da Lobis-mulher e do
Mboitata: é a Curacanga.
Conforme dados fidedignos, ouvidos de quem nasceu
naquela zona e que me foram transmitidos pelo dr. J.
da Silva Campos, é a seguinte tradição ali corrente:
quando qualquer mulher tem sete filhas, a ultima vira
Curacanga, isto é, a cabeça lhe sai do corpo, à noite, e,
em forma de bola de fogo, gira à toa pelos campos, apa-
vorando a quem encontrar nessa estranha vagabundea-
ção. Há, porem, meio infalível de evitar-se esse horrido
fadario: é tomar a mãe a filha mais velha para madri-
nha da ultimogênita.
Por essas e outras historias, o Lobisomem é um bicho tão temi-
do até os dias de hoje. Tem Lobisomem em tudo quanto é can-
to do mundo, conforme explica Luis da Camara Cascudo em
seu livro Geografia dos mitos brasileiros (1947): “O Lobisomem
nos foi trazido pelo colono europeu. Esta em todos os países e
épocas, com historias espelhadas, sob nomes vários, registrado
nos livros eruditos.

REGIÕES DO PAÍS: Todas


ORIGEM: Universal
PERSONAGENS RELACIONADAS: Bruxa, Capelobo, Cor-
po-Seco, Cumacanga, Labatut, Mula sem Cabeça, Papa-Figo,
Uaiuara
86
Lupino

Eat me, Drink me - Marilyn Manson


Eu sempre gostei do Halloween. As pessoas acham
divertido usarem máscaras, fingindo serem monstros assusta-
dores. Eu lutei a vida toda fingindo não ser um. Mas não tive
escolha, nem se quer fui apresentado a ela; se tivesse que esco-
lher entre não ser um monstro e morrer, escolheria a morte...
eu não sou ruim, entende? A não ser esse pequeno e destrutível
segredo que mantenho guardado.
Meus olhos lacrimejam, eu tento controlar, mas está
completamente fora do meu alcance. É triste porque os vejo to-
dos os dias, converso com eles, rio as vezes. Mas quando acon-
tece, foge de mim, eu não os reconheço. Eu não me reconheço.
É assustador porque, ao mesmo tempo em que esqueço
completamente e saio do meu eu consciente, me percorre a
sensação obscura da transformação dolorosa. É uma estranha e
impertinente mudança de estado físico. Tudo se achata. Corpo
adere uma aparência anormal, lupina. Me sinto medonho e as-
sustador.
Não é como sentimentos que se controla ou pensa-
mentos que se entende com certo tempo. É uma sina. Uma
maldição. A noite é minha inimiga, é nela que tudo acontece.
Rezo todos os dias para que o sol permaneça no céu, que não vá
embora, eu já não aguento mais tanta dor. Não aguento mais
causar dor.
Neste momento, meu coração está dolorido. Minha
pele está estranha, há muitos pelos onde normalmente não
tem. Meu rosto; sinto que está esticado, como se estivesse
maior. Meus olhos não estão normais, enxergo tudo embaçado.
Minhas unhas estão enormes, firmes e pontiagudas, minhas
mãos estão machucadas, ásperas e ardem. Meu cheiro não é
bom. Estou nu, porém, os enormes pelos cobrem minha nudez.
Meus pés estão maiores, assim como minhas mãos. Há fios
enormes soltando de meu busto, como bigodes de um felino.
Minhas presas cresceram, adquiriram um formato pontiagudo.
Eu farejo, sinto cheiro de carne de longe; é carne hu-
mana. É um cheiro específico. Solto um uivo horripilante e en-
tão, ela corre. Ouço seus passos apressados, quebrando galhos
e folhas secas. Ela está com medo, sinto a vibração intensa de
88
seu corpo, percebo que ela está ofegante.
O terreno ao qual estamos é variado, ora instável, ora
com elevações e buracos. Provável que estejam voltando da
casa dos avós. Mas tão tarde, assim? Espera! Ela está com a
criança, eu sinto o cheiro dela também; ah não! A criança, não!
Crianças; elas são as mais fáceis de detectar. Além da
minha audição apurada e olfato preciso, consigo senti-las há
uma milha de distância. É difícil para mim acordar no outro
dia, ouvindo os gritos histéricos dos pais, ao descobrirem que a
única coisa que restou de seus filhos é o manto ao qual os pro-
tegem do frio e sangue. Muito sangue.
Não posso controlar meus sentidos, não conseguirei
ouvir meus pensamentos. É como se eu estivesse preso numa
ode, num pesadelo. Mas desta vez a coisa não será como toda
sexta-feira, ou nas noites de lua cheia. Desta vez será pior. Te-
rei de saciar minha fome com a mãe e a criança que ela carrega
no colo.
Corro. Sinto o cheiro da mata a noite. O vento frio cor-
ta meus pelos enormes. Estou com raiva, sangue nos olhos. Os
pássaros noturnos entoam suas canções melancólicas, cheias
de assombro. Paro para descansar, olho de um lado, para o ou-
tro. Vejo silhuetas entre as árvores, criadas pela lua cheia que
emite seu brilho intenso. Solto mais um uivo assombroso, ouço
um grito de susto e desespero. Ela está próximo, bem próximo
de mim, eu já sei onde ir! Que ela não deixe a criança cair, é
sempre o que peço.
Continuo correndo entre a mata, cortando o vento que
vem contra mim, passando por árvores enormes e aromáticas,
enquanto ouço sua respiração ofegante, muito ofegante. O
choro da criança também não ajuda. Ela está dando o máximo
de si. Guerreira! Ouço barulho de seus passos cheios de deses-
pero, contra a madeira podre da ponte sobre o rio que corta a
mata densa.
Meu peito está dilacerado. As vozes em minha cabe-
ça falam mais alto, meus olhos estão vidrados em encontra-la
logo. Posso ouvir as batidas do seu coração, o que indica que
estou muito perto. Me esquivo, tento voltar, tento não fazer
89
algo ao qual vou me arrepender amargamente no dia seguinte,
mas é difícil depois da transformação. Depois de sair comple-
mente de mim, depois que o monstro toma conta do corpo,
não há ser humano capaz de fazer com que ele reverta sua sina.
É cruel.
Eu não quero fazer isso. Eu não posso! Mas quando
vejo, é tarde demais. Minhas mãos já estão grudadas em seu
corpo, meus dentes cravados em seu pescoço. Ela grita, mas
não desgruda da pequenina. Minha mordida soltara um pedaço
em seu pescoço, o sangue escorre. Ela leva uma das mãos a feri-
da, enquanto insiste em correr de mim. Ela chora, chora muito
e a criança também chora. Sentida, pois a mamãe dela nunca
voltará para casa. Mastigo com gosto aquele pedaço, salivo, o
gosto é bom. Preciso de mais.
Ataco-a a novamente, desta vez, ainda mais feroz. Ela
ajoelha, vencida, cansada e sem muito o que fazer. Minha vi-
são avermelhada das coisas, percebe as lágrimas em seus olhos.
Mas é impossível para mim, tentem entender. Eu não poderia
ter feito nada. Então solto um uivo pela terceira vez e com mi-
nhas garras e força, defiro unhadas até degola-la. Sua cabeça
rola até meus pés, e o sangue espicha, enquanto o resto do cor-
po cai ao chão imóvel, finalmente.
A pequena bebezinha, fica estirada no chão chorando,
enquanto tento aproveitar o máximo que posso da refeição que
acabei de conseguir. A sorte da criança é que ela havia sido ba-
tizada, se não eu poderia fazer um banquete completo.
A lua está descendo do céu. O vento frio se intensifica
na mata. É hora de voltar. Apanho a criança e a deixo na por-
ta de sua casa, não há ninguém a vista. A suspeita de que uma
besta corria as ruas escuras tornou-se o medo da pacata cida-
dezinha. Preciso correr até a fazenda, não posso parar para ne-
nhuma eventualidade a mais. É a minha sina. Preciso me des-
pojar antes das cinco da manhã, antes do galo cantar preciso
estar em casa. Corro o máximo que consigo. Amanhã, preciso
me preparar para o que vier.
...
Bento acordou naquela manhã de sábado. Normalmen-
90
te acordava com o choro da bebezinha, Elise, ou com o cheiro
maravilhoso de um bolo de laranja e café, que sua amada espo-
sa Maíra fazia ao final de semana. Mas aquela manhã aconte-
ceu algo estranho; não havia cheiro de bolo e nem café. A rou-
pa de dormir de Maíra estava no mesmo lugar, sobre a pequena
poltrona que colocara próximo ao berço, para amamentar Elise
de madrugada.
Elise também não estava no berço. Geralmente quem
levava a bebê para a cozinha era Bento. Eles brincavam que a
pequena havia puxado a preguiça do pai. Bento tinha um senti-
mento estranho apertando o peito. Uma angustia acometia seu
coração, ele não sabia bem dizer o que era.
Saiu do quarto apreensivo, passando pela sala e indo à
cozinha. Tudo estava do mesmo jeito da noite passada, quando
Maíra saiu para visitar os pais. Bento quis ir junto, mas a dor
de cabeça pesava seus olhos. Ele não conseguia mantê-los aber-
tos por muito tempo. Então decidiu que iria para a cama mais
cedo. Antes de Maíra sair, ele a advertiu, pediu para que não
passasse pela mata, indo em direção a ponte. Era um atalho,
mas era perigoso. As histórias sobre a besta que corria as ruas
da cidade poderiam ser bem verdade. Como explicar as coisas
que andavam acontecendo naquele lugar?
Galinhas encontradas apenas com os ossos e as penas,
o gado de várias fazendas encontrados as mesmas circunstân-
cias, apenas ossos, nem mesmo o couro foi salvo. Sem contar as
criancinhas que ainda não foram batizadas, estavam desapare-
cendo da noite para o dia. Era uma tristeza tremenda.
Bento sentia o coração pulando no peito. Correu até o
quarto, vestiu a primeira roupa que encontrou no guarda-rou-
pas. Devido o calor que fazia naquela região no verão, sempre
dormia nu. Ficou trêmulo, arregalou os olhos quando ouviu o
choro de Elise. Parecia vir do lado de fora. Jogou a camisa que
ia vestir em qualquer lugar ali no quarto, abriu a porta da sala
apenas de bermuda e lá estava; a bebê enrolada no manto co-
berto de sangue.
Os olhos de Bento inundaram-se de lágrimas. Pegou a
filha no colo, sentindo a adrenalina percorrer seu corpo. Onde
91
estava Maíra, sua esposa? O que Elise fazia ali do lado de fora,
na porta da sala, sobre o tapete? Seria a besta?
Bento correu ao telefone de linha, ligou para os pais de
Maíra, que disseram que a filha de fato saiu com Elise no colo,
pouco antes da meia-noite. Ainda que advertida sobre passar
pela ponte, devia ter passado. Ele chorava, imaginando o que
havia acontecido, mal conseguia falar ao telefone. Elise chora-
va, devia estar com fome. Pobre criança, ia crescer sem o amor
da mãe.
A buscas começaram. Dois dias e não encontraram nin-
guém, assim como das outras vezes em que alguém desapare-
ceu misteriosamente da cidade. Fizeram um velório em home-
nagem a Maíra. O caixão no meio da sala, era simbólico. Sobre
ele a manta de Elisa e uma foto de Maíra, eram as únicas coisas
físicas que levariam para o túmulo daquela mulher.
Bento estava inconsolável, não quis deixar ninguém pe-
gar a filha para que pudesse descansar. Vivia dizendo ter medo
de que alguém a deixasse cair no chão, coisa de pai de primeira
viagem. Porém, estava frágil naquele momento. Estava de luto.
Sua mulher, sua esposa amada, estava morta.
Naquela noite, os pais de Maíra foram para a casa de
Bento. Ele precisava de ajuda naquele momento delicado. An-
tônia, sua sogra, pediu para dar banho em Elise. Bento estava
insistente, mas com muito custo deixou que a avó desse banho
na pequena. Enquanto Antônia pegava a criança dos braços de
Bento ele alertou novamente, passando a mão áspera e machu-
cada pelo rosto soado:
“Não deixe a criança cair, é só o que peço.”

92
MULA SEM CABEÇA
Pisadas rápidas e furiosas, como se fosse um tropel de mil ca-
valos urrando, lá vem ela. É noite quando ela aparece soltando
fogo pelas ventas, é a Mula Sem Cabeça que vem chegando!
Não há quem não a conheça nesse imenso Brasil. As
historias da Mula Sem Cabeça passam de geração para geração.
Se para uns ela só dá o ar da graça na Quaresma - período de
quarenta dias que, para os católicos, antecede a Páscoa -, ou
ainda a cada sete anos. Como afirma o folclorista Alceu May-
nard Araújo, em seu Documentário folclórico paulista (1952),
aparência da Mula que não tem rosto, mas urra sem parar, varia
de região para região:

É uma mula que não tem cabeça mas relincha. É um


animal quase negro, com uma cruz de cabelos bran-
cos. Tem um facho luminoso na ponta da cauda. Geme
como uma criatura humana. [Ou] Não geme, relincha,
e ao terminar, geme como se morresse de dor.

Além disso, há quem diga que ela tem uma faixa branca no pes-
coço. Para outros, na verdade, a Mula é invisível, lembrando a
personagem Cavalo Fantasma, e ninguém pode vê-la, só ouvi-
-la.
Fato é que a sina de virar Mula Sem Cabeça é dada
como castigo às mulheres que namoram padres, o que é proibi-
do pelo Catolicismo.
Então, quando é meia-noite em ponto, ele se levanta da
cama, pula pela janela e deixa o marido dormindo para cumprir
sua má sorte.Ninguém detém o seu galope, suas patadas são
mortais e vem acompanhadas de barulho de ferro arrastado,
seus cascos ferem como facas. Soltando fogo pelo pescoço e
pelo rabo, a Mula deixa atrás de si um rastro de medo e destrui-
ção, pois costuma matar a coices qualquer um que lhe apareça
pela frente, especialmente se ela enxergar suas unhas e seus
dentes (então, para chegar perto dela, recomenda-se esconder
95
essas partes).
Isso porque, alguns afirmam, ela se alimenta desses
dois tipos de elementos do corpo humano. Transforma-se de
novo numa mulher, mas seu corpo guarda as marcas da selva-
geria: fica todo machucado, e a mulher, muito abatida.
De modo semelhante ao Lobisomem, a Mula Sem Cabeça
deve correr por sete cidades que sair, e para livra-la do encanto
só tirando seu sangue, mesmo que seja apenas um pouquinho.
Outra maneira é retirar o freio que ela carrega no pescoço (que
está sempre sujo do sangue de seus dentes invisíveis), mas,
como ela é muito rápida e feroz, essa possibilidade é bem re-
mota!
Quando encanto se quebra, dizem que ela volta a ser
humana e aparece completamente nua, pois só assim poderá
ser devidamente castigada por seu malfeito. Para que ela não se
transforme novamente (ou não se transforme nunca) em Mula,
o padre devera amaldiçoa-la sete vezes antes de começar a mis-
sa (outros dizem que é na hora de consagrar a hóstia santa, an-
tes de tocá-la).
A relação da figura da Mula com padre é antiga. Era
muito comum que os sacerdotes andassem montados em mulas
para se locomover, uma vez que os cavalos eram usados para
transportar soldados.
A Mula Sem Cabeça provavelmente tem origens ibéri-
cas. No Nordeste, é conhecida como Burrinha de Padre ou ape-
nas Burrinha e, no interior do Maranhão, como Cavala-Canga.
No México, dizem que ela se chama Malora, e, na Argentina,
Mulánima, Alma Mula, Mula Sin Cabeza, Mujer Mula, Mala
Mula, entre outros nomes.

OUTROS NOMES: Burrinha, Burrinha de Padre, Cavala-Canga


REGIÕES DO PAÍS: Todas
ORIGEM: Europeia
PERSONAGENS RELACIONADAS: Cavalo Fantasma, Cuma-
canga, Lobisomem, Saci-Pererê
96
A chama do pecado

Starway to heaven - Led Zeppelin


A lanchonete estava impregnada com o cheiro engor-
durado de carne assada acumulado por anos de fumaça da cha-
pa. Curiosamente aquele cheiro não o incomodava mais como
nos tempos do Ensino Médio e da faculdade. Sentia-se tonto
cada vez que ia àquele mesmo local na hora do lanche e fazia
de tudo para que os encontros com a rapaziada não fossem
marcados para aquele local. Mas agora, o cheiro era o de me-
nos. Ele sentia, ainda considerava sufocante, mas não mais do
que o menor de seus atuais problemas.
Sentou-se na mesma cadeira de sempre, colada à pare-
de de onde podia ver tudo através da vidraça. A rua com seus
passantes, a banca de jornal a metros para o lado. Do outro
lado a fachada imponente do colégio e mais acima o campaná-
rio da igreja do seminário. O aglomerado de prédios, bosques
e praças se amalgamavam para formar a mesma instituição: o
Centro Diocesano de Ensino para Rapazes. Um colégio inter-
no exclusivamente para meninos secundaristas, anexo ao qual
havia também o seminário, de onde sairiam os futuros padres.
Ele havia passado doze anos de sua vida ali, saiu para a vida
clerical, passando por três paróquias até pedir para retornar ao
colégio onde desejava ser professor.
Prontamente atendido, pois sua inteligência ainda era
afamada na instituição, retornou sendo recebido com festa por
antigos professores e até colegas de turma que permaneceram
no colégio. Colocaram inclusive um quadro de bela moldura,
contendo sua foto e uma lista em letras douradas que narrava
sua micro biografia e conquistas estudantis. Na lanchonete de-
fronte o colégio, estava tomando o saudoso milkshake — que
ratificou logo no primeiro gole não ser mais como antigamente
— enquanto folheava um exemplar do quinto volume dos livros
de sermões do Padre Antônio Vieira, quando viu entrar uma
pessoa, que pela antiga tradição que ele conhecia, não deveria,
ou não costumaria estar ali.
Havia outra faculdade nas proximidades, inaugurada
anos antes de seu retorno e com isso, a lanchonete deixou de
ser o point exclusivo dos alunos e funcionário do Centro Dio-
cesano e agora haviam muito mais garotas presentes ali a todo
98
momento. Alguns seminaristas adiaram seus votos de castidade
após a nova faculdade abrir e dizem os boatos que flagras ocor-
reram envolvendo os que já haviam votado.
Sentou-se de frente a ele, umas duas mesas depois. Co-
locou uma bolsa e um livro sobre a mesa e escondeu-se atrás
da folha plastificada do menu. O que ele pôde ver foi a cascata
negra e volumosa dos cabelos e os braços nus apoiados sobre os
cotovelos. Fixou o olhar esperando ver o rosto. Sentiu o perfu-
me adocicado que emanava dela e prometeu duas Ave-Marias
caso fosse bonita. Quando o menu caiu na mesa ele aumentou
a promessa para vinte. Era linda, tal qual um anjo. Porém, cha-
mou-a para si mesmo de súcubo quando observou seu decote
e seu batom vermelho. Ela o viu e sorriu. Ele abaixou a cabeça
sentindo o rosto corar.
Lembrou a si mesmo os motivos de ter se afastado da
vida de pároco para voltar ao colégio e ser professor. Beliscou a
própria coxa por baixo da mesa para martirizar-se por tal peca-
do.
“Não! Não de novo” disse a si mesmo.
Tentou não olhar para ela e voltou sua atenção para
o livro, mas as palavras não faziam sentido. Dedicou-se ao
milkshake, mas não era o mesmo de antigamente. Olhou o sol
se escondendo atrás do alto campanário do seminário, mas sa-
bia que o sol na mesa ali perto era mais radiante e ardente. Foi
vencido e olhou. Ela o encarava sorrindo. Ele esquivou-se das
flechadas de olhares e voltou o rosto para a vidraça, olhando
para o nada. Após alguns instantes sentiu o perfume mais pró-
ximo e calor humano. Ela estava de pé ao seu lado, sorrindo,
com um copo de cappuccino na mão e o livro sob a axila nua.
Com um indicador coroado por uma longa unha rosa deslizou
um pedaço de papel amarelo até perto do copo dele e saiu sor-
ridente.
Ele chegou ao seu dormitório em menos de cinco mi-
nutos e colocou o bilhete ainda fechado sobre sua mesa. — Vou
queimar ou queimarei no inferno — Não queimou. Após um
bom tempo de resistência pontificou que não poderia ser nada
demais, que ao invés do que pensava, poderia ser apenas uma
99
brincadeira dela. Talvez ela houvesse escrito ‘a bênção, Padre’.
Mas quando abriu sentiu o coração palpitar e sua selvagem
lascívia despertando. No bilhete estava escrito: ‘me liga e des-
cubra meu nome’ e na parte de baixo o número de um telefone
celular.
Os pensamentos e vontades foram incontroláveis e
quando deu por si, estava discando o número em seu aparelho
— Não!
Jogou-o sobre a cama e recostou-se à parede. — Ama-
nhã começam as aulas e eu preciso estar bem. Preciso estar
consagrado — Voltou ao celular, desligou e o trancou numa ga-
veta da cômoda. Depois despiu-se por completo e se ajoelhou
no tapete ao lado do leito para fazer algo que sempre esteve
dentro da sua lista pessoal de fanatismos abomináveis. Puxou
uma cinta de sob o colchão. Deu duas voltas com ela na palma
da mão e passou a se auto flagelar, dando-se golpes com a pon-
ta da fivela. Rezava entre dentes as vinte Ave-Marias prometi-
das mais cedo e cada golpe deixava um pequeno hematoma ou
corte. Após isso dormiu exausto.
Após três dias de aula, autoflagelo e mais um encontro
casual com a estudante, ele caiu em tentação e ligou. O nome
dela era Pietra e cursava direito. Viram-se no quarto dia na
mesma lanchonete e ele tentou dissuadi-la de suas intenções,
só para descobrir que a moça não ligava para sua situação cleri-
cal, pois considerava uma bobagem todas as formas de religião
e de privações pessoais em nome de bens maiores. Ela queria e
percebeu que ele também.
“Mas eu sou Padre, não posso. Fiz um voto” Mas ela
respondia que votos poderiam ser quebrados.
Não ao preço que ele já havia pagado. Não queria repe-
tir aqueles erros que o levaram ao profundo desespero. Havia
feito um voto, o qual quebrou várias vezes com alguém que de-
veria ter orientado nos caminhos clericais, alguém vocacionada
que o havia procurado como padre, mas que o encontrou várias
vezes como amante. Ele, um padre, ela, pretendia ser noviça
e posteriormente freira. A atração entre eles tornou-se mais
forte que a fé e devoção. Contou tudo isso a Pietra para que ela
100
entendesse o porquê de ele negar-se a ela e acrescentou a parte
mirabolante de sua amargura.
“Por ter se envolvido com um sacerdote, uma maldição
caiu sobre ela e ela se tornou em um monstro horrendo...”
“A mula-sem-cabeça?” Pietra riu largamente “O senhor,
com essa idade e todo esse estudo acredita nessas lendas de in-
terior?”
“Não zombe disso, por favor. Pessoas começaram a
amanhecer mortas naquela cidade. Toda sexta-feira aparecia
um cadáver com olhos, dedos e dentes queimados...”
“Um serial killer...”
“Não! Ela veio a mim em forma humana e disse que as
mortes não cessariam enquanto eu não fosse dela de novo...
Céus! Eu tive que fugir, me recolhi a um monastério...”
“O senhor é louco...”
A moça saiu assustada deixando o Padre sentindo uma
confusão de alívio e perda. Desejava-a, mas seus tormentos da
quebra de votos já eram suficientes para incorrer no mesmo
erro. A carne era fraca para tão forte tentação, mas decidiu que
se fosse ceder, aliviaria sozinho as suas tensões para depois
açoitar-se em purgação de pecados. Foi para seu quarto cum-
prir a penitência do dia sem conseguir afastar Pietra dos pensa-
mentos.
Enquanto se flagelava com a fivela do cinto, viu o rosto
da jovem que amou e desencaminhou. Aqueles cabelos ruivos
sempre preso em um par de tranças. Os olhos cor de mel acima
das bochechas rosadas e sardentas. Essa visão sempre vinha lhe
torturar, pois o rosto angelical sempre se transmutava nas hor-
ríveis expressões demoníacas, com os olhos de um negro pro-
fundo e os cabelos cobertos de fumaça.
“Amanhã é sexta-feira” lembrou-se e decidiu viajar.
Procurar algum lugar isolado para meditar e preparar aulas.
Adormeceu após rezar para não ter pesadelos, mas sua prece
não foi atendida.
De sua cama via clarões de fogos pela janela. Sons de
relinches e batidas de cascos entravam pelas frestas da porta e
janela. Algo queria entrar e ele tinha certeza do quê. Enfiou-se
101
sob as cobertas com as mãos tapando os ouvidos e assim ficou
até que tudo se silenciou. Amanheceu e ele foi despertado com
batidas na porta. Levantou-se ainda lembrando do sonho e
enrolou-se no roupão. Outro padre estava à porta com uma ex-
pressão de desespero no rosto. Anunciou-lhe que uma tragédia
havia acontecido. Um dos seminaristas fora encontrado morto
no pátio da igreja.
Teria sido um infarto? Um AVC? Mal súbito?
Várias causas lhe chegavam ao pensamento enquanto
seu colega sacerdote lhe descrevia o morto. Sim, sabia de quem
se tratava, já o havia visto. Era um jovem magro, que sofria de
insônia e passava estas vigílias em meditação na igreja ou em
leituras na biblioteca. Outro padre juntou-se a eles avisando-os
de que os acessos ao pátio estavam trancados para evitar tu-
multos e que a polícia já estava a caminho. Ao aproximarem-se
de um grupo mesclado de professores, padres e noviços, pôde
divisar o corpo caído, coberto com um lençol branco, através
do qual erguia-se uma fina fumaça, na altura de onde estaria o
rosto. O falecido estava caído em decúbito dorsal, com os pés
sobre o terceiro degrau da escadaria que dava acesso à igreja. O
braço direito estava para fora do lençol. Um rosário entrelaça-
do nos dedos enegrecidos. Sentiu-se estremecer.
Um curioso puxou o lençol para ver as feições. As ór-
bitas estavam vazias e carbonizadas e a boca assemelhava-se
a uma pequena chaminé já no apagar das chamas. Precisava
fugir, se esconder. Não foi um sonho. Ela o havia encontrado.
Tentou correr, mas uma súbita vertigem o derrubou e o fez
convulsionar.
Teve alta do hospital apenas cinco dias depois, na
quarta-feira à tarde. Durante sua internação nada quis dizer a
respeito do seu passamento deixando todos acreditarem que
a morte do noviço o abalou a ponto de ter um surto agudo de
stress.
“Preciso fugir. Preciso fugir. Preciso fugir” repetia para
as paredes do quarto enquanto arrancava a batina de si para se
autoflagelar novamente.
No entardecer da quinta-feira esbarrou com Pietra e
102
trocaram sorrisos, mas não ousaram parar para conversar. De-
cidiu tomar um ou muitos milkshakes na velha lanchonete en-
gordurada de onde vislumbrou mais uma vez toda a magnitude
do Instituto Diocesano.
“Meu lar?”
Já eram quase dez da noite quando saiu para a rua e
resolveu tomar outro caminho de volta ao seminário. Daria a
volta pelos fundos. A viela das partes subalternas estavam do
mesmo jeito: decadente e mal iluminada. Apenas três postes
despejavam seus círculos de luz ao longo de todo o caminho.
Iniciou a travessia afirmando para si que algumas coisa
em certos lugares não mudam nunca. O mesmo breu, a mes-
ma atmosfera de urina acumulada por anos, lixo, poças d’água,
folhas. Distraidamente resvalou o pé em algo mole e conside-
ravelmente pesado mas imóvel. Uma pessoa? Acendeu a tela do
celular e conferiu. Havia uma pessoa caída ali.
“Será que está desacordada” ao aproximar-se do rosto
caiu sentado para logo sair em disparada até o refúgio de seu
quarto deixando o corpo sem vida de Pietra para trás, com a
boca e os olhos carbonizados. Chegou atônito ao quarto e co-
meçou a jogar todos os seus pertences dentro de uma mala.
Não ficaria mais ali nem por um instante sequer.
Mas o quarto ficou todo iluminado após um barulho
de madeira sendo rachada. A luminosidade estava às suas cos-
tas, mas mesmo sem olhar ele já sabia quem estava presente.
Ao voltar-se vislumbrou o ser hediondo que estava postado na
entrada do quarto. A criatura de quatro patas e silhueta muar
pisoteava as lascas de madeira que sobraram da porta enquanto
uma coluna de chamas elevava-se onde estaria a cabeça ema-
nando um rugido furioso. Ele a encarou sem medo.
“Você quer a mim? Venha! Vamos acabar logo com
isso!”
Na tarde do dia seguinte, deram falta do padre na missa
matutina e foram verificar seus aposentos, arrombaram a por-
ta por ao sentirem cheiro de queimado. Encontraram o padre
morto, nu em sua cama. Tinha os olhos e a boca queimados.
Sobre seu peito, jazia o cadáver de uma moça sardenta de tran-
103
ças. Olhos cor de mel semicerrados e com as mãos enegrecidas
do padre ao redor de seu pescoço.

104
SACI-PERERÊ
Azedou o leite? As galinhas estão nervosas? O rabo do cavalo
está cheio de nós? A comida estragou? Sumiu alguma coisa de
dentro de casa e ninguém consegue achar? A louça quebrou
sem ninguém sequer pôr a mão nela? Viu um rodamoinho for-
te, daqueles que espantam todas as folhas do quintal?
É o Saci-Pererê, claro! Considerada uma das
personagens mais conhecidas - e queridas! - do folclore
brasileiro, esse negrinho de uma perna só tem tantas histórias
quantas se consegue contar.
São tantas as histórias que um dos nossos maiores
escritores, Monteiro Lobato, resolveu reuni-las no livro O Sa-
ci-Pererê: resultado de um inquérito (1918), fruto de uma grande
pesquisa de opinião sobre aquele que é tido como o mais bra-
sileiro de todos os mitos folclóricos. Naquela época, o mundo
vivia a Primeira Guerra Mundial, e Lobato “louvava” a figura do
Saci-Pererê como alguém que tinha vindo para “aliviar-nos do
pesadelo”: “Por várias semanas alvorotaste meio mundo, oh in-
fernal maroto, e desviaste a nossa atenção para quadrado mais
ameno que o trucidar dos povos, Bendito sejas!”.
E, a partir de então, o nosso escritor, autor das aventu-
ras que se passam no Sítio do Picapau Amarelo, popularizou o
Saci-Pererê de tal maneira que até hoje não há quem não o co-
nheça e não saiba contar pelo menos uma história de suas tra-
vessuras. Vejam só como Lobato descreve o esperto negrinho
por meio de Tio Barnabé, uma de suas personagens favoritas:

O saci é um diabinho de uma perna só que anda solto


pelo mundo, armando reinações de toda sorte: azeda
o leite, quebra pontas das agulhas, esconde as tesou-
rinhas de unhas, embaraça os novelos de linha, faz o
dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas
na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos
das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de
ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que
107
passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre
arte do saci. Não contente com isso, também artomen-
ta os cachorros , atropeia as galinhas e persegue os ca-
valos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não faz
maldade grande, mas não há maldade pequenina que
não faça.

O folclorista Luís da Câmara Cascudo, em Geografia dos mitos


brasileiros (1947), também nota a importância de Lobato para a
enorme fama do saci: “Quando se fala no Saci-Pererê, sabe-se
do “inquérito” que Monteiro Lobato dirigiu e que resultados
extensos denunciou para a existência fantástica do duende
negrinho”. Porém, para alguns, esse duende é mais do que
fantástico, e sua existência é, de fato, indiscutível. É o caso da
Sociedade dos Observadores de Saci, que também admite a re-
levância do trabalho de Lobato:

Em suas histórias, Lobato conta que sacis nascem em


“sacizeiros”, taquaruçus que ficam na parte mais es-
pessa das florestas. Ficam sete anos dentro dos gomos
antes de poderem sair, e depois vivem no mundo por 77
anos. Depois, viram cogumelos venenosos ou orelhas-
-de-pau. Nos taquaruçus eles se escondem durante o
dia, já que o sol é seu maior inimigo. Segundo as pró-
prias palavras do saci para Pedrinho, no livro de Loba-
to, eles não precisam aprender nada, pois já nascem sa-
bendo tudo o que precisam. Às vezes são apresentados
como possuindo furos no centro da palma das mãos.

A figura do Saci-Pererê aparece no Brasil no final do século


XVIII e se populariza no XIX, época em que seu nome era escri-
to com a letra “y”: Sacy-Pererê. Dizem que vem do tupi-guara-
ni: çaa cy quer dizer “olho mau, olho doente”, e pérérég, “salti-
tante”. No Diccionario de vocabulos brazileiros, de 1889, o nome
da personagem é grafado como Sací, Sací-Pererê e Sací-Sêrêrê,
mas também há registros em outras obras de Saci-Taterê e Sa-
ci-Sacerê. Na verdade, a figura do Saci-Pererê tem ramificações
108
em muitos lugares, talvez por isso seu nome mude tanto.
Fora do Brasil encontramos o Iací-Íaterê, que é o Sa-
ci-Pererê do Paraguai, do Uruguai e da Argentina sendo que
sua figura pode ser relacionada também com o Kobold alemão
mesmo com os elfos. Em Portugal, é bem conhecido como Fra-
dinho da Mão Furada, características que o nosso Saci-Pererê
manteve por aqui. Ainda é aparentado com o mito português
Pesadelo (para nós, a Pisadeira), que também possui as mãos
furadas. 
Há registros que citam apenas dois tipos de Saci-Pe-
rerê: o Saci-Ave e o Saci-Negrinho, que foi o que se tornou
mais popular no Brasil. Por isso, não é nada simples falar dele,
tamanha a quantidade de informação sobre o danado! Dizem
que o Saci-Ave se parece com o anu-branco, um pássaro de bico
vermelho. Quando chamado de Sem-Fim, é identificado com
uma ave demoníaca, que faz maldades pelas estradas e engana
os viajantes mudando as notas de seu canto para que percam o
rumo. Tem também a Peitica ou a Maria-Já-É-Dia e o Mantin-
tapereira, que são tidos como tipos de Saci-Ave. Fato é que ele
é tão travesso quanto o negrinho de uma perna só. Em muitos
lugares contam que o Saci-Pererê, quando perseguido, vira um
passarinho, dá risada desse feito e deixa todo mundo admirado
com sua esperteza. 
O Saci-Pererê que nós conhecemos tem diversas ca-
racterísticas que se popularizaram, mas elas variam conforme
a região. Na maioria, trata-se de um negrinho que anda com
uma perna só (há alguns lugares contam que veste uma blusa
vermelha, mas isso também não é muito comum), sem pelos (já
outras dizem que é bem peludo) nem órgãos sexuais, usa uma
carapuça vermelha (ou barrete) mágica e fuma um cachimbo
(em alguns lugares ele aparece sem esse apetrecho), além de
soltar fumaça pelos olhos. Em cada uma das mãos possui só
três dedos, e no centro delas há um furo. Quando quer, solta
um assobio longo e fino e fica invisível.
O folclorista Alceu Maynard Araújo, no primeiro volu-
me de Folclore nacional (1964), apresenta três tipos de saci:

109
Conhecemos três espécies de saci: Trique, Saçurá e Pe-
rerê. O saci mais encontrado por aqui é o Saci-Pererê.
É um negrinho de uma perna só, capuz vermelho na
cabeça e que, segundo alguns usa cachimbo, mas eu
nunca vi. É comum ouvir-se no mato um “trique”; isso
é sinal que por ali deve estar um Saci-Trique. Ele não é
maldoso; gosta só de fazer certas brincadeiras como, por
exemplo, amarrar o rabo de animais. O Saçurá é um ne-
grinho de olhos vermelhos; o Trique é moreninho e com
uma perna só; o Pererê é um pretinho que, quando quer
se esconder, vira um corrupio de vento e desaparece no
espaço.

Além desses, o folclorista José Ribeiro, em Brasil no folclore


(1970), ainda apresenta outros, como Saci do Poá, que, como a
Mula Sem Cabeça, bota fogo pelas ventas; o Saci-Tererê, que é
sedutor de moças e anda passando uma brasa de um furo de uma
mão para o furo de outra; o Saci-Taterê, que usa camisa, tem cor
de formiga e não espora; o Saci-Sacerê, que usa calça de algodão
e entra na água sem se molhar, é treloso, irrita os garimpeiros e
apadrinha casamentos; e o Beira-Mar, que lança fogo pela boca
e para o sertanejo é um preto baixo e gordo, com dentes brancos
e perfeitos, que usa um bastão e não pula. Haja saci! 
O sonho de qualquer pessoa é pegar o Saci-Pererê. Di-
zem que quem conseguir roubar sua carapuça terá riquezas sem
fim. Ela ajuda a encontrar qualquer coisa perdida se estiver de
bom humor. E, se for amarrado, tanto acha o que estiver perdido
como também dá tesouros a quem o amarrar.
Mas como fazer para agarrar esse negrinho esperto? Es-
pera-se o rodamoinho em que o Saci-Pererê está e então joga-se
uma peneira em cima dele, mas essa peneira tem de ser invertida
e trançada em forma de cruz. Pronto, ele está preso e só poderá
ser solto se fizer o que a pessoa que o capturou mandar. Outra
possibilidade é jogar um garfo no rodamoinho; se o garfo pegar
no Saci-Pererê e tirar sangue, ele estará preso! Também se pode
pegar uma palha tirada de um rodamoinho e dar-lhe três nós,
prendendo-a no pé da mesa. Com esse mesmo tipo de artifício
110
pode-se tentar fazer com que ele encontre algum objeto perdi-
do, pois assim se está amarrando o órgão sexual do Saci-Pererê.
Enquanto ele não achar o objeto, não se desatam os nós, Ele logo
faz a pessoa encontrar o que perdeu porque fica com vontade de
fazer xixi. 
Se um rosário bento ou um terço de capim for atira-
do no rodamoinho, ele também ficará preso. Pode-se mantê-lo
numa garrafa. Se lhe arrancarem o capuz, ele ficará maluquinho
e fará qualquer coisa para tê-lo de volta! Se o Saci-Pererê estiver
na cozinha e a pessoa quiser prendê-lo, é só dar uma machadada
no chão e olhar para o sol, deixando o machado ali, fincado na
terra. Quem deu a machadada deve fazer o sinal da cruz e voltar
para a cozinha, sem nem olhar para trás.
Se a pessoa quiser manter o Saci-Pererê longe, deve cha-
mar três vezes pela Virgem Maria, pois a personagem tem horror
a essa entidade. Pode rezar o Credo e também fazer o sinal da
cruz e expor um santinho bento. Nunca mais o danado vai voltar
ali! 
As diabruras do Saci-Pererê são infinitas e criativas. Em
Minas Gerais, por exemplo, não se faz rosca doce ou biscoito de
sexta-feira para sábado, pois, como Saci-Pererê só anda de sex-
ta-feira à noite, ele costuma azedar essas iguarias. Lá também
acreditam que ele carrega para matas bem distantes as crianças
que são muito desobediente e manhosas, que arruína ninhadas,
queima balões e faz o milho da pipoca virar piruá. Há quem diga
que ele é especialista em causar dor de barriga em quem come
comidas muito gostosas e em judiar de quem não quiser dar
fumo de corda para seu cachimbo, há verdade é que temos de
concordar que ele é especialista mesmo em causar qualquer tipo
de confusão ou travessura, afinal ele é o Saci. 
Personagem inesquecível, ele está presente na nossa li-
teratura de diversas maneiras, inclusive numa das obras mais
respeitadas da nossa tradição literária, Os sertões (1902), de Eu-
clides da Cunha. Sobre ele, diz o autor: “Os sacis diabólicos, de
barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário,
nas noites aziagas das sextas-feiras”. 

111

OUTROS NOMES: Beira-Mar, Saci-Ave, Saci-Avisador, Saci-Ce-


rerê, Saci do Poá, Saci-Negrinho, Saci-Saçurá, Saci-Sacerê, Saci-
-Taterê, Saci-Tererê, Saci-Trique 
REGIÕES DO PAÍS: Todas
ORIGEM: Africana, europeia, indígena
PERSONAGENS RELACIONADAS: Angoera, Bicho-Homem,
Caipora, Canhambora, Chimbamba, Cuca, Curupira, Guajara,
Jaci, Matintapereira, Mula Sem Cabeça, Pisadeira, Romãozinho,
Tibarané, Tibungue, Zumbi 

112
TEMPAT  BAGI ORANG
YG TERLANTAR

Devil Devil - Milck


Leonardo Azevedo passou a vida procurando edições
raras de livros. Entre suas preciosidades estão publicações ba-
nidas do cânon bíblico como o Livro de Enoch e o Apocalipse
de Tiago.
Professor letrado, Leonardo reluta a se adaptar à era
dos downloads e obras em pdf. Odeia ler livro na tela do com-
putador. Não há mais espaço na sua casa para guardar livros,
eles se amontoam em pilhas pela sala e já chegam até a cozi-
nha. Mesmo assim, continua viajando por cidadezinhas e vila-
rejos buscando publicações.
Sua atual obsessão é um livro negro de pronúncia com-
plicada, Tempat Bagi Orang Yg Terlantar, considerado, como
muitos outros, apócrifo. Dizem que contém profecias e revela-
ções perturbadoras sobre a criação deste mundo, e é composto
apenas por imagens. As ilustrações surgem aleatoriamente para
cada leitor que ousa a se aventurar pelas suas páginas malditas.
Leonardo sabe que não deveria procurá-lo. Se foi exo-
nerado é para que continue na escuridão do desconhecimento.
Mas a vontade de folheá-lo é muito maior. 
Anos de e-mails e telefonemas levaram-no a um ende-
reço em Pinhais, a oito quilômetros de Curitiba, onde reside o
Sr. Adelar Assumpção. Ele cuida de uma biblioteca de bairro,
que muitas crianças costumam frequentar diariamente.
Já é noite quando Leonardo bate palmas no portão,
chamando por Adelar. Uma coruja observa tudo, lá de cima, no
conforto de um galho de pinheiro. Alguns minutos depois, apa-
rece alguém, protegendo-se do frio com cachecol, sobretudo e
um gorro do “Charlotte Hornets”:
“Pois não?”
“Sr. Adelar Assumpção?”
“Eu mesmo!”
“Sou Leonardo Azevedo, liguei para o senhor hoje
cedo.” 
“Ah, sim, pode entrar, professor! O portão está aberto.”
Leonardo caminha com Adelar até a cozinha enquanto
conversam sobre os livros. Uma chaleira ferve no fogão antigo
e esfalfado.
114
“Toma café, professor?”
“Opa! Muito bom!” 
“Esquenta o coração. Mas, me diga, quer dizer que pos-
sui uma versão do livro de Enoch na sua biblioteca?”
“Isso mesmo. Fabuloso! Encontrei-o num sebo obscuro
em Maringá. Acho que foi em 89. Algo assim. Estava conserva-
do até. Uma sorte!”
“E é verdade que Enoch relata um encontro com seres
extraterrestres neste livro?”
“Ele não escreve exatamente extraterrestre. Relata “...
recebi a visita de dois homens de grande cultura, como jamais
havia visto na vida. Seus rostos brilhavam como o Sol, seus olhos
pareciam lâmpadas ardentes. O fogo era expelido por seus lábios.
Suas roupas pareciam plumas. Seus pés eram purpúreos, seus olhos
brilhavam mais que a neve. Chamaram-me por meu nome...”
“Olhos brilhantes e fogo da boca? Isso até parece des-
crição do saci!” 
“O saci? Desconhecia esta descrição. Só conhecia a
clássica versão perneta com gorro vermelho.”
“Tenho uma edição de Monteiro Lobato intitulada O
Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito. Coletânea de relatos
de pessoas do Brasil todo. Enviaram cartas ao Estado de São
Paulo com seus contos e histórias relacionadas ao saci. Alguns
casos verídicos! Depois pego para o senhor ver. Neste livro, há
definições impressionantes, e entre elas muitos comentam so-
bre olhos brilhantes e labaredas nos lábios.”
Adelar despeja a água fervendo sobre o café no coador,
e o perfume se alastra pela casa. A fumaça vaga entre as pra-
teleiras e pilhas de livros sobre os armários, sumindo na escu-
ridão de um quarto escuro. Lá fora, o vento uiva ameaçadora-
mente.
“Enoch descreve neste livro sete mundos diferentes do
nosso. Viu neles criaturas aladas com cabeças de crocodilo e
pés e caudas de leão. Enoch afirma que, para ele, a viagem du-
rou poucos dias, mas quando voltou para Terra, séculos haviam
passado. É o que a relatividade anuncia para uma viagem feita
na velocidade da luz. E o livro de Enoch, mesmo que não date
115
do século X, mesmo que não seja contemporâneo da Bíblia, foi
publicado bem antes da descoberta da relatividade” conta o
professor, enquanto Adelar termina de despejar a água e fecha
a térmica.
“Muito interessante! Caneca?”
“Pode ser!”
Adelar serve o café em duas canecas brancas. 
“Hmm, delícia. Nem forte, nem fraco. No ponto.”
“Vamos até a sala, quero te mostrar algumas raridades.” 
O professor Leonardo senta-se à grande mesa de ma-
deira, encostada na janela. Sorve lentamente o café, tomando
cuidado para não queimar a língua. Adelar traz uma caixinha
de madeira à mesa, com suprimentos de fumo para cachimbo. 
“O senhor fuma?”
“Não, obrigado. Manda brasa!”
Adelar então começa a preparar o calango, socando o
fumo com as mãos protegidas do frio por uma luva sem dedos.
“Mas o senhor sabe o motivo por que vim até aqui” re-
lembra o professor.
“Tem certeza de que deseja aquele livro sinistro?”
“Há anos espero por isso, Adelar”
O taciturno não responde. Concentra-se em acender a
brasa de seu longo cachimbo, exalando numa primeira bafora-
da a fragrância forte de baunilha. A fumaça mistura-se às das
canecas de café, tomando conta do espaço.
Só então Adelar responde:
“Existem livros que deveriam ficar na escuridão e de lá
nunca sair.”
Leonardo olha em direção ao setor escuro da casa, um
corredor que provavelmente leva aos quartos.
“Vou lá pegá-lo. Aguarde aqui, por favor.” 
Adelar volta-se à escuridão. A fumaça do cachimbo
desaparece lentamente durante seu caminhar até o quarto.
Adelar volta, depois de meia hora, com o livro nas mãos. Des-
cansa-o suavemente sobre a mesa. Na capa, o título “Tempat
Bagi Orang Yg Terlantar” gravado em relevo. Leonardo folheia-
-o cuidadosamente, pulando algumas páginas. Volta, analisa a
116
brochura, cheira. Está claramente deslumbrado. Tanto que não
percebe na arma que Adelar tira de dentro do casaco escuro.
“Você sabe que não poderá viver depois disso, não é”
pergunta, apontando-lhe a pistola prateada.
“Sim, eu conheço o mito. Por isso não vim sozinho.”
Adelar olha em volta, apontando a arma para outras di-
reções da casa, quando então percebe a luz vermelha que marca
seu peito. Leonardo revela:
“Meu companheiro está com você na mira desde que
entrei. Ele arrebenta seus miolos antes que você pense em
apertar o gatilho. Agora me faça o favor de trazer o livro corre-
to. Não me interessa esta cópia banal!”
Leonardo saca uma pistola também e manda Adelar
depositar a sua arma sobre a mesa antes de irem até o quarto
pegar o livro certo. Lentamente caminham em direção a escu-
ridão. O livreiro sente o cano da pistola em sua nuca enquanto
anda. A luz vermelha acompanha-os até sumirem. Do lado de
fora, o atirador camuflado; Rodrigo Franco mantém a posição,
mirando a sala de Adelar no visor da espingarda.
Está muito frio, mas o rapaz aguenta firme na espreita.
Nem a fome o abate, pois sabe o valor da missão para a qual
fora designado. 
Horas se passam e os dois não voltam do setor escu-
ro da casa. Rodrigo tenta iluminar algo com a luz vermelha
da mira, mas não funciona. Conjectura a possibilidade de ter
acontecido algo de ruim. E para piorar, começa a ouvir sons
sinistros vindos da floresta. Alguma criatura parece rondar
a casa. Talvez seja imaginação, mas Rodrigo não espera para
comprovar. Corre em direção à casa chamando por Leonardo.
Ninguém responde. Nenhum som. Nada.
“Leonardo! Está bem? Leonardooo!”
Não acredita que algo pode ter acontecido, afinal não
ouvira som algum. Nem barulho de tiro nem batida estanque.
Nada. O silêncio imperou desde que Leonardo entrou.
Assim que Rodrigo adentra a casa, encosta sua espin-
garda e troca-a pela pistola de Adelar que estava sobre a mesa.
Embrenha-se então na parte escura. Tateia as paredes à procu-
117
ra de um interruptor, mas não encontra. Seus pés vão vascu-
lhando objetos e possíveis corpos. Mas não há nada. Dentro do
quarto, consegue descobrir uma janela fechada. Abre o trinco,
permitindo que a luz da lua ilumine um pouco. Não há corpos,
nem sangue. Nenhum sinal de Adelar ou Leonardo. Apenas um
livro velho sobre o piso de madeira carcomido. Na capa, Rodri-
go lê “Tempat Bagi Orang Yg Terlantar”. Com o livro nas mãos,
vai embora assustado.
Ainda dá uma volta lá fora chamando pelo amigo, mas
ninguém responde. Intrigado, corre até o carro. Joga as armas
no banco de trás e o livro na frente. Para matar a curiosidade,
antes de ligar o carro, dá uma folheada no volume. A imagem
que lhe aparece é uma criatura, semelhante ao Yamantaka, que
é citado no Bardo Thodol, livro dos mortos dos tibetanos. Ro-
drigo se assusta e fecha logo, desistindo de explorá-lo.
Dirige o carro em direção à cidade. Batimentos acelera-
dos. Teoriza na mente o que teria acontecido àqueles dois. Es-
trada vazia. Olha para o lado e vê uma criatura diabolicamente
sorridente saltando na mesma velocidade do carro. Possui
olhos brilhantes, fogo nos lábios e se move dando grandes pu-
los numa só perna de bode. Atrás dela vêm outras. Até que uma
escuridão apocalíptica se alastra por tudo, consumindo todos
os lugares por onde o carro passa, e enfim engole por completo
o carro de Rodrigo.  Muitas horas depois, o carro é encontrado
abandonado em um acostamento por policiais. Não há vestí-
gios de sangue nem luta. Sobre o banco da frente, o velho livro.

118
Pósfacio
Em primeiro lugar queremos agradecer pela leitura de nosso
livro. Esperamos ter surpreendido nossos leitores e estamos felizes
de alcançar nossos objetivos, que é valorizar nossa cultura, de uma
forma diferente, principalmente através do terror.
Para realizarmos esse livro edição especial não foi um trabalho fácil,
exigiu bastante trabalho, esforço e pesquisa para que pudéssemos
produzi-lo. Usamos de vários livros e projetos para montarmos este,
todos disponíveis na bibliografia. Não queríamos apenas entregar
contos de terror, mas também trazer informações novas sobre nos-
so folclore, acreditamos é importante sabermos suas origens, pois
está ligada diretamente com nossa origem, com a dos brasileiros.
Agradecemos a autora Januária Cristina por deixarmos utilizar
informações de seu livro “Abecedário de Personagens do Folclore
Brasileiro” e a Aline Goettems por emprestar seus contos assustado-
res do livro “O Lado Sombrio do Folclore”.
Reunimos esses dois livros e mais alguma informações neste
livro, para que essas incríveis histórias não sejam esquecidas, mas
para que sejam cada vez mais lembradas e levadas adiante, pois
nossa cultura, nossa origem, nossos antepassados não devem ser
esquecidos e essa é a forma que encontramos para passa-la adiante.
Esperamos do fundo do coração que tenham gostado. Obrigado.

123
Bibliografia
ALVES, Januária Cristina. Abecedário de personagens do folclore
brasileiro: E Outras Criaturas do Folclore. 1. ed. Brasil: FTD Educa-
ção, 2017. p. 1-416.

AMADO, T. S. E. M; Quando o Saci Encontra os Mestres do Terror:


E Outras Criaturas do Folclore. 2. ed. Brasil: Editora Estronho, 2013.
p. 1-231.

GOETTEMS, Aline; O Lado Sombrio do Folclore. 1. ed. Brasil, 2019.


p. 1-144.

INSTAGRAM. brooklynsnobs. Disponível em: https://www.insta-


gram.com/brooklynsnobs/. Acesso em: 1 mai. 2020.

DARKSIDE. Dark Side Book. Disponível em: https://www.darkside-


books.com.br/. Acesso em: 16 abr. 2020.

125
Biografia
Abecedário de personagens do folclore brasileiro:
E Outras Criaturas do Folclore.

Januária Cristina Alves, Jornalista, Mestre em Comunicação


Social pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo com uma tese sobre jornalismo infantil, especialista em Info-
educação pela mesma Universidade, escritora com mais de 60 obras
publicadas para crianças e jovens (e duas para adultos). Ex-roteirista
do programa infantil da TV Cultura “Bambalalão” e ex-colaborado-
ra da Maurício de Sousa Produções como roteirista de histórias da
Turma da Mônica. Colaboradora de diversos jornais e revistas como
Cláudia, Marie Claire, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, O Estado
de São Paulo e Diário do Grande ABC escrevendo sobre Educação,
Cultura e Comportamento.

Quando o Saci Encontra os Mestres do Terror:


E Outras Criaturas do Folclore.

Fabiano Vianna, responsável pelo conto TEMPAT  BAGI ORANG


YG TERLANTAR, brasileiro. Nasceu em Curitiba, no ano que nevou,
em Julho de 1975. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela PU-
CPR em 2001. Trabalha como diretor de arte, designer, ilustrador e
escritor. Como escritor expressa sua literatura na forma de fotono-
velas. Lançou em Outubro de 2009 uma revista de literatura pulp
chamada Lama. Em Junho de 2011, lançou a Lama nº 2. O blog da
revista é o www.revistalama.blogspot.com.

Rogério de Farias, responsável pelo conto O horror em chamas, é


natural da cidade de Tubarão, em Santa Catarina, sul do Brasil. For-
mado em História (licenciatura), é autor de cinco livros, a maioria
obras de cunho fantástico (contos e novelas). Também incursionou
pelos mundos da poesia como poeta bissexto, sendo autor do opús-
culo “Casulo transcendental”.
127
O Lado Sombrio do Folclore.

Eduardo Casamasso, responsável pelo conto O encanto do boto,


faz poesia desde menino para tentar se entender e escreve histórias
porque elas tem o hábito de nascer na sua cabeça. Hoje ele divide
sua escrita entre os textos e poesias publicados diariamente no
Instagram. Tem atualmente três contos publicados, sendo dois em
antologias (uma delas a do blog Lost Words) e um outro lançado de
maneira independente na Amazon.

Patrick Correa, responsável pelo conto Às margens do horror.


Autor de livros dos gêneros de suspense e terror psicológico, des-
de cedo demonstrou interesse pela arte sombria, primeiramente
esboçando seus pensamentos através de desenhos e desenvolvendo
seu gosto pela escrita, em seguida, criando seus primeiros poemas e
contos sombrios, inspirado pelos mestres do mesmo gênero.

Eudes Bispo, responsável pelo conto 10-s82, desde pequeno sem-


pre amou contar e criar histórias. Vindo de uma família grande,
cidades grandes das quais se mudava muito, carregava sempre livros
na bagagem e história na cabeça. O primeiro contato com a escrita
foi por meio de plataformas online de escritas. Já foi finalista de um
concurso online de microcontos, além de ter participado de outra
antologia LGBTQ+.

Marcos Martiz, responsável pelo conto Iara, aos cinco anos des-
cobriu sua paixão pela arte circense e teatral, e, desde então, vem
seguindo o ramo artístico – já participou e ainda faz parte de di-
versos projetos culturais. Hoje dirige a companhia teatral “Bonecos
Teatrais” que estreou o espetáculo infantil “Os Três Porquinhos na
Cidade” de sua autoria. Também dá aulas de teatro e segue sua car-
reira de ator na peça “A Pequena Sereia” da Cia Imagin’Art, dentre
outras.

Igor Paiva, responsável pelo conto Lupino, escritor de terror. Estu-


da Arquitetura e Urbanismo, mas é um grande amante de psicolo-
128
gia, que ainda pretendo se formar também e se especializar em
jurídica ou criminal. Começou a escrever com 14 para 15 anos e não
parou mais. Sempre escreve alguma coisa, seja um conto ou um
esboço de uma história.

Pablo Rios, responsável pelo conto A chama do Pecado. Autor de


livros dos gêneros de suspense e terror psicológico, desde cedo
demonstrou interesse pela arte sombria, primeiramente esboçando
seus pensamentos através de desenhos e desenvolvendo seu gosto
pela escrita, em seguida, criando seus primeiros poemas e contos
sombrios, inspirado pelos mestres do mesmo gênero.

129
Agradecimento
Este ano de 2020, está sendo um ano muito conturbado, devi-
do a todos os acontecimentos. Provamos que mesmo longe, pode-
mos estar perto de todos aqueles que amamos e que uma conexão
verdadeira entre pessoas, nem a distância desfaz. Aprendemos o
quanto a liberdade de ir e vir é preciosa, aprendemos a valorizar
pequenas coisas e pequenos esforços. Então esse também está sen-
do um ano de muitas descobertas, mudanças, novos sentimentos e
aprendizados.
Agradecemos a todos os professores que nos ensinaram e nos
apoiaram. Todos os professores que mesmo longe, com dificuldades
em entender esse novo sistema e em suas casas, não deixaram de
nos ensinar, educar e ajudar com problemas educacionais e pesso-
ais, ao serem compreensivos com nossos problemas.
Agradecemos as autoras Januária Cristina e Alice Goettems,
por entender e simpatizar com nosso projeto, emprestando conteú-
dos de seus livros, que foram essências na produção deste aqui. Sem
elas este livro não aconteceria.
Agradecemos a toda a equipe por seu esforço e empenho,
nós fomos incríveis e fizemos um ótimo trabalho de equipe! Agra-
decemos também aos nossos familiares, por nos entenderem, nos
apoiarem e nos incentivarem.
E por fim, mas não menos importante, agradecemos princi-
palmente aos nosso leitores e avaliadores, sem vocês não estaríamos
aqui, produzindo esse livro. Saibam que vocês são o motivos de
todo o nosso trabalho e esforço, para entregar um produto incrível,
assim como vocês são. Obrigado.
A criação desse projeto de design gráfico editorial para
livro teve como finalidade única e exclusivamente o estudo
acadêmico relacionado ao seu conteúdo e ao aprendizado de
criação em design gráfico editorial e todo o conteúdo nele
utilizado, seja fotografia, texto, logotipo, ilustração,
grafismo, entre outros, protegido por direitos
autorais permanecem de posse exclusiva de seus detentores
legais. Em nenhum momento, teve-se a intenção de infringir
as leis de direitos autorais, ou apropriar-se de seus
direitos e usos para finalidades comerciais e/ou
financeiras ou, ainda, que venham a trazer qualquer.
benefício, excluído o de estudo acadêmico, aos que
estiveram nele envolvidos totalmente ou em parte.

"Quem escreve um livro cria um castelo,


quem o lê mora nele."
- Monteiro Lobato -

DARKSIDEBOOKS.COM
Demônio (De-mô-ni-o):
Espírito maligno. Entidade so-
brenatural de natureza maléfica;
Diabo; Lúcifer.

Folclore (Fol-clo-re):
As tradições e histórias de um
país ou uma comunidade.

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