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Português Livro 1 | Unidade 8 | Capítulos 16 e 17

Linguagens, linguagem verbal e língua | Uma língua, muitas línguas

O trecho a seguir foi reproduzido a partir de um artigo de Marcelo Coelho publicado no jornal Folha de
S. Paulo. Leia-o para responder às questões de 1 a 5.

Altas quinquilharias
Falar mal do consumismo é sempre fácil, e poucas coisas me parecem mais tolas do que fazer fila na sede pa-
risiense da Louis Vuitton para comprar não sei que novo modelo de bolsa “em” couro de crocodilo. Se essas tu-
ristas são tão ricas, por que não mandam o motorista ficar guardando o lugar delas na fila? Talvez porque tudo
seja uma questão de afirmar o próprio desejo. Se fosse apenas “necessidade”, [...] haveria [...] algum expediente
desesperado para abocanhar o precioso artigo. Mas não: ficar na fila funciona como o equivalente, digamos, do
“fazer questão”. Não se deseja apenas o objeto; deseja-se afirmar o próprio desejo.
O tempo na fila serve para atribuir maior valor à bugiganga. Não foi adquirida apenas com o cartão de crédito
e sim (metaforicamente) com o suor do próprio rosto.
[...] Leio na Folha de domingo uma reportagem bem interessante, que mostra o papel dessas altas quinqui-
lharias para a classe C.
Há pessoas com renda familiar entre R$ 1.500 e R$ 5.000 que andam gastando até 60% do salário com bens
de luxo, diz uma pesquisa feita com cem consumidores em nove bairros de São Paulo.
Pode não ser estatisticamente significativo, mas não deixa de fazer muito sentido.
O dramaturgo [irlandês] Bernard Shaw dizia que um dos problemas da língua inglesa (e da sociedade em
que é falada) é que basta alguém pronunciar uma palavra qualquer para que se identifique imediatamente a sua
classe de origem – sendo, portanto, odiado ou desprezado conforme o diagnóstico de quem ouve.
[...]
É verdade que, por aqui, não deixa de ser evidente o contraste entre o quatrocentês levemente gutural e ape-
ruado da classe bem alta e o sotaque popular paulistano, seja na versão mais antiga, italianada, e na mais nova,
onde predominam os erres caipiras.
Para piorar, existem ainda as coordenadas geográficas – o bairro onde alguém mora diz mais sobre sua situa-
ção social do que a sua conta bancária – e o persistente teste de tornassol da cor da pele: fatores que dificultam
o igualitarismo nestas bandas.
[...]
Eis que muita gente ascende à classe C, em termos de renda, e o acesso a produtos de luxo, paradoxalmente,
ganha até um aspecto democrático.
Posso morar num bairro sem prestígio e até comer alguns plurais quando estou falando, mas sei distinguir
um Rolex verdadeiro de um falsificado.
A resposta antiga a esse processo era estigmatizar o recém-chegado, chamando-o de “novo-rico”, e torcer o
nariz diante de seu consumo ostentatório.
Ocorre que esse exibicionismo se tornou amplamente aceito no topo mais alto da pirâmide. A cultura das
celebridades e do consumismo esmagou as pretensões quatrocentonas. A bolsa Louis Vuitton oferece um pas-
saporte para o “andar de cima”, como diz Elio Gaspari.
[...]
COELHO, Marcelo. “Altas quinquilharias”. Folha de S.Paulo, 21 jul. 2010
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Vocabulário de apoio
Aperuado: com características de perua (mulher que se julga elegante, mas se veste e se maquia
de maneira chamativa e extravagante)
Estigmatizar: condenar, tachar, marcar alguém de maneira negativa
Expediente: meio ou medida usada para se chegar a uma solução
Gutural: diz-se de som rouco produzido na garganta
Louis Vuitton: marca francesa de bolsas de luxo
Ostentatório: que tem caráter de ostentação; exibicionista
Paradoxalmente: contraditoriamente
Quatrocentês: palavra que o autor criou (à semelhança de francês, inglês, português) com base
em quatrocentão (que existe há quatrocentos anos; tradicional)
Quinquilharia: artefato sem grande valor
Rolex: marca suíça de relógios de luxo
Tornassol: espécie de corante

1. O artigo de Marcelo Coelho menciona duas classes sociais brasileiras e explora um comportamento
que elas teriam em comum.
a) Que classes sociais são essas? Que designações o autor emprega para se referir a elas?
b) Qual seria o comportamento partilhado por esses dois grupos?

2. Na estratégia que utiliza para expor sua argumentação, o autor explora o conceito de variação linguística.
Destaque, do texto lido, um exemplo de referência a cada uma das variações abaixo:
•• regional
•• social
•• histórica

3. Releia.

O dramaturgo Bernard Shaw dizia que um dos problemas da língua inglesa (e da sociedade em que é falada)
é que basta alguém pronunciar uma palavra qualquer para que se identifique imediatamente a sua classe de
origem – sendo, portanto, odiado ou desprezado conforme o diagnóstico de quem ouve.

a) Se uma determinada variedade linguística não pode ser considerada inferior do ponto de vista es-
tritamente linguístico, a que se deveria o seu desprestígio? Explique com base em seus estudos so-
bre a variação linguística.
b) O problema identificado por Bernard Shaw na língua inglesa é um fenômeno exclusivo dessa lín-
gua? Justifique sua resposta.

4. Releia.

Posso morar num bairro sem prestígio e até comer alguns plurais quando estou falando, mas sei distinguir
um Rolex verdadeiro de um falsificado.

Explique em que medida o parágrafo acima ilustra a seguinte afirmação do Capítulo 17 do livro
Ser Protagonista, Volume 1:
“Ao pensar na diversidade dos grupos humanos e em sua constante transformação, é fácil perceber
que a língua reflete e também ajuda a construir essa diversidade”. (p. 198)
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5. Acessórios como o relógio e a bolsa fazem parte de um sistema organizado de representações (ou
uma linguagem): a moda.
a) Por que, no contexto da moda, os dois acessórios mencionados podem ser considerados signos?
b) Nos estudos sobre a linguagem, esses dois acessórios corresponderiam a índices, ícones ou símbo-
los? Explique.
c) Mencione outro elemento citado no texto que poderia ser tomado como um signo do mesmo tipo
que a bolsa e o relógio. Justifique sua resposta.

O trecho a seguir faz parte de um capítulo do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), do
escritor brasileiro Machado de Assis (1839-1908). Nele, o narrador-personagem Brás Cubas conta sua
vida depois de ter morrido. No episódio que você vai ler, Brás Cubas, já adulto, reencontra Prudêncio,
que fora seu escravo na infância. No momento do encontro, Prudêncio já se tornara, ele próprio, pro-
prietário de um escravo. As questões 6 a 8 se referem a esse trecho.

Capítulo 68 – O vergalho
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo [...]. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que verga-
lhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: “— Não, perdão, meu se-
nhor; meu senhor, perdão!”. Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
— Meu senhor! gemia o outro.
— Cala a boca, besta!, replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio — o
que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se
aquele preto era escravo dele.
— É, sim, Nhonhô.
— Fez-te alguma coisa?
— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na
cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. [...] Exteriormente, era torvo o epi-
sódio do Valongo; mas só exteriormente. [...] Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas
recebidas, transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem
compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia
trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo,
e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias póstumas de Brás Cubas.

São Paulo: Globo, 2008, pp. 158-159


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Vocabulário de apoio
Ajuntamento: agrupamento de pessoas, aglomeração
Conjeturas: formulação de hipóteses, suposições
Desagrilhoado: que não está preso por correntes
Desancar: surrar, dar golpes nas ancas; fazer cansar
Desbancar-se: tornar-se superior
Deter-se: parar, interromper
Freio: artefato usado em animais de montaria para controlar o movimento
Replicar: responder
Súplica: pedido insistente e desesperado
Torvo: que sugere sentimento de revolta ou de indignação
Vergalhar: açoitar, chicotear
Vergalho: açoite, chicote; homem maroto, malandro, capaz de ações desprezíveis

6. A língua pode ser investigada por diversas perspectivas. Os objetivos dessa investigação podem ser,
entre outros: analisar o modo como as falas determinam a identidade dos falantes; analisar as rela-
ções que se estabelecem entre eles; analisar os fatores que determinam a produção de sentidos em
uma dada situação.
a) Faça um levantamento dos termos usados pelas três personagens – Brás Cubas, Prudêncio e seu
escravo – para se dirigirem umas às outras.
•• Escravo dirigindo-se a Prudêncio:                         
•• Prudêncio dirigindo-se ao escravo:                         
•• Prudêncio dirigindo-se a Brás Cubas:                         
•• Brás Cubas dirigindo-se a Prudêncio:                         
b) O que as formas de tratamento empregadas pelas personagens revelam a respeito das relações
que se estabelecem entre elas? Explique tomando por base as relações entre Prudêncio e seu es-
cravo e entre Prudêncio e Brás Cubas.
c) Essas relações manifestas pela linguagem também transparecem nas ações das personagens. Ex-
plique essa afirmação.
d) Explique de que maneira o diálogo entre Prudêncio e Brás Cubas sugere a falta de consideração do
primeiro para com o segundo.

7. Após afastar-se do local onde encontrara Prudêncio, o narrador-personagem faz um julgamento a res-
peito da atitude de seu ex-escravo.
a) Que julgamento é esse?
b) O que esse julgamento revela sobre a personalidade de Brás Cubas?

8. Releia esta passagem.

Nada menos que o meu moleque Prudêncio [...].

a) Qual é o sentido da expressão “meu moleque” no contexto da passagem lida?


b) Que outro sentido ela poderia apresentar tendo por referência os dias de hoje?

9. Responda às questões relativas ao emprego do hífen.


a)  cresce neste semestre.
Para substituir a , como se deve grafar a palavra formada pelos elementos agro + negócio? E pe-
los elementos agro + indústria?             /            
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b) Medidas  serão adiadas.


Para substituir a , como se deve grafar a palavra formada pelos elementos anti + inflacionárias?
           
c) Cresce consumo de creme .
Para substituir a , como se deve grafar a palavra formada pelos elementos anti + rugas?
           

10. Circule a grafia correta da palavra que deve substituir a .


a) Desde que as chuvas recomeçaram, a Defesa Civil ainda não  voltar ao local do desabamento.
(pode / pôde)
b) Um  de processos atravanca a justiça. (mundareu / mundaréu)
c) Não precisamos de um bode expiatório no qual se pode  a responsabilidade. (por / pôr)
d) O comerciante conta que há muito os tropeiros já não  mais àquela cidade. (vem / vêm)
e) Os investidores não  o retorno esperado. (veem / vêem)

11. Leia o trecho a seguir, extraído de um artigo publicado por Aldo Bizzocchi na revista Língua Portuguesa.

O recorte do real
A maioria das pessoas tem a impressão intuitiva de que a realidade é algo que existe objetivamente e que,
além disso, nós a vemos exatamente como ela é. Nada mais falso.
[...]
[...] muitos creem que as línguas são meros conjuntos de etiquetas que pomos nas coisas. Ao passarmos
de uma língua a outra, bastaria trocar as etiquetas. Em resumo, línguas diferentes dariam nomes diferentes a
coisas iguais.
[...]
BIZZOCCHI, Aldo. O recorte do real. Disponível em: <http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11402>. Acesso em: 26 dez. 2010

Relacione os dois parágrafos anteriores, considerando o que você estudou sobre língua e percepção
da realidade.
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Respostas
1. a) O artigo menciona uma classe média e uma classe alta. O autor emprega a designação “classe C”
para referir-se à primeira e, indiretamente, designa a segunda por meio do vocábulo “quatrocen-
tês” (trata-se, portanto, do grupo dos “quatrocentões”).
b) O autor aponta o fato de tanto a classe alta quanto a classe C recente gostarem de exibir produtos
caros e luxuosos.

2. A variação regional é mencionada quando o autor faz referência à variedade praticada na cidade de
São Paulo: “por aqui”; “sotaque paulistano” (implicitamente em oposição a variedades praticadas em
outros locais).
A variação social se manifesta na referência a classes sociais distintas: a elite paulistana (que usa o
quatrocentês gutural e aperuado) e a classe que apresenta o “sotaque popular paulistano”.
A variação histórica se reflete, na referência, a dois momentos do falar popular paulistano: um mais
antigo, italianado, e outro mais recente, no qual predominam os erres caipiras.

3. a) O desprestígio de uma dada variedade linguística relaciona-se à imagem que se tem do falante ou
do grupo social que a emprega. O feixe de traços fonéticos, morfológicos, sintáticos, lexicais que
define uma variedade acaba sendo associado a um status que pode ser valorizado ou não. Além dis-
so, como algumas variedades são necessárias em certas situações que envolvem promoção social,
acesso a bens culturais etc., a elas acaba sendo atribuído um papel de destaque, mas é importante
considerar que esse destaque está vinculado a uma situação específica de interação.
b) Dado que a variação linguística é um fenômeno comum a todas as línguas, e que todas as so-
ciedades apresentam desigualdades entre os falantes, conclui-se que em todas as comunidades
humanas as variedades linguísticas praticadas por falantes de menor prestígio social são, conse-
quentemente, desprestigiadas.

4. A variedade linguística que omite algumas marcas de plural indica (reflete) um grupo específico de fa-
lantes da língua portuguesa. Ao mesmo tempo, no contexto do artigo de Marcelo Coelho, é menciona-
da para estabelecer (construir) uma diferença social.

5. a) Porque, na linguagem da moda, o relógio e a bolsa são unidades de representação, ou seja, elemen-
tos que aparecem no lugar de outros, que têm um significado próprio naquele contexto.
b) São considerados símbolos, pois aquilo que eles representam não decorre de uma associação na-
tural, inerente à natureza desses objetos, nem de uma semelhança física, e sim de uma convenção
social. Um dos significados simbólicos da bolsa e do relógio, por exemplo, pode ser o status social.
c) O bairro também pode ser visto como um símbolo, representanto status social, assim como a bolsa
e o relógio.

6. a) Escravo ¬ Prudêncio: “meu senhor”


Prudêncio ¬ escravo: “diabo”, “bêbado”, “besta”
Prudêncio ¬ Brás Cubas: “Nhonhô” [variante de senhor]
Brás Cubas ¬ Prudêncio: Não há uma forma específica de tratamento. Professor: o aluno pode men-
cionar a segunda pessoa (tu - constatada nas formas te, perdoa) como forma de tratamento.
b) As formas de tratamento entre o escravo e Prudêncio revelam a situação de inferioridade/ superio-
ridade social entre eles. O mesmo se dá com a dupla formada por Prudêncio e Brás Cubas.
c) O escravo fica parado, sem tentar fugir, enquanto apanha e geme. Prudêncio, ao ver seu antigo
dono, interrompe a surra e lhe pede a bênção.
d) A desimportância de Prudêncio para Brás Cubas está sugerida na forma como este o aborda no iní-
cio do diálogo. Ele não o cumprimenta, não pergunta como ele estava ou como sua vida havia se-
guido até ali. Em resumo, a ausência de algumas falas revela a distância entre os dois.

7. a) O narrador afirma que apenas aparentemente o episódio era revoltante. Dessa forma, parece que
ele admite o fato de Prudêncio compensar os maus-tratos que recebera, tratando seu escravo do mes-
mo jeito que fora tratado.
b) Revela a indiferença do narrador em relação à condição de escravo. O que lhe chama a atenção é o
mecanismo revanchista praticado por Prudêncio.
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Respostas
8. a) No contexto do romance, indica a relação de posse que outrora existira entre Brás Cubas e Prudên-
cio, visto que o último havia sido escravo do primeiro.
b) Atualmente, “meu moleque” poderia indicar uma relação parental, ou seja, poderia ser a fala de um
pai ou uma mãe referindo-se a seu filho.

9. a) agronegócio / agroindústria; b) anti-inflacionárias; c) antirrugas

10. a) pôde
b) mundaréu
c) pôr
d) vêm
e) veem

11. Não existe a possibilidade de duas línguas nomearem “as mesmas coisas”, visto que seus falantes cap-
tam a realidade externa e interna de maneiras distintas, que são condicionadas por cada cultura. Ou
seja, não há “coisas iguais” de uma cultura para outra; há uma intersecção entre as “coisas diferentes”.

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