Você está na página 1de 82

1 de 1 26/10/23 PROVA FINAL

piauí
CLUBE DE REVISTAS

novembro
_ 206

INSTANTÂNEOS DO CONFLITO
■ O negociador
Ana Clara Costa descreve a trajetória de Celso Amorim,
o diplomata que insiste em dar uma voz global ao Brasil

■ O judeu imaginário

piauí_206_R$ 35,00_ano 18_novembro_2023


00206
Michel Gherman reflete sobre como a extrema
direita opera para criar inimigos internos

■ A Operação Resgate
Alessandro Candeas relata a saga
para salvar brasileiros na Faixa de Gaza

A balbúrdia do trainee
Como Renato Feder atropela a educação
em São Paulo, por Raquel Cozer

Condomínio à beira-mar
Bernardo Esteves discute como
explorar (bem) o litoral brasileiro

E mais:
O transe da Argentina, por Fernando de Barros e Silva
Sobre o ressentimento, por Vladimir Safatle
Meu fêmur, meu sono, por Roberto Muggiati
Em busca de Knausgård, por Natalia Timerman
As memórias de Jean-Claude Bernardet
Um conto de Liudmila Ulítskaia
Os poemas de Jorge Augusto
A EXECUÇÃO CLUBE DE REVISTAS
É TUDO.
CLUBE DE REVISTAS

MICHAEL
FAS S B E N D E R

VERIFIQUE A CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA


1 de 1 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS

piauí 206
_
capa Contraposição, de Paolo Lombardi
colaboradores_6 Quem fez o quê na edição de novembro
imagens Caio Borges

CORINGA NAS RUAS


questões vultosas_8 A Argentina e a construção de um novo “antiprogressismo”
Fernando de Barros e Silva + imagem Caio Borges

Em Florianópolis, indígenas vivem em terminal de ônibus; o MBL expõe no Rio de Janeiro sua crise de
esquina_10 identidade; um advogado paranaense contra a República de Curitiba; os 84 anos de uma fotógrafa
da música popular brasileira; crônica de uma celebração católica em Belém; a carreira ímpar de
Luiz 83, das pichações ao museu; a história do Kaol, o prato que fez a fama de um café mineiro
imagens Andrés Sandoval

“EU SOU UM PRÍNCIPE”


anais da guerra e da diplomacia I_18 O reino e o poder de Celso Amorim
Ana Clara Costa + imagem Diego Bresani

ANGÚSTIA NA FRONTEIRA
anais da guerra e da diplomacia II_30 O esforço para salvar os brasileiros na Faixa de Gaza
Alessandro Candeas

O JUDEU IMAGINÁRIO
anais da guerra e da diplomacia III_36 A extrema direita estimula a comunidade judaica a criar inimigos internos
Michel Gherman + imagem Jack Guez

OS LIMITES DO RESSENTIMENTO
questões políticas_40 Recorrer à psicologia para explicar por que a extrema direita
atrai seguidores só mascara a impotência da esquerda
Vladimir Safatle + imagem Alexandre Cabanel

MEU NOME É GERALDO


diário do geraldo_43 Como um esquerdista aberto a metafísicas não hegemônicas, encomendei meu mapa astral
Renato Terra + imagem Caco Galhardo

O TRAINEE
questões didáticas_44 As atribulações de Renato Feder no comando da Educação paulista
Raquel Cozer + imagem Reinaldo Figueiredo

O EMPREENDIMENTO
questões turísticas_54 O caso de um condomínio de luxo numa ilha da Bahia e o desafio
de explorar – e conservar – os pedaços de paraíso do litoral brasileiro
Bernardo Esteves + imagem André Gonçalves

EM BUSCA DE KARL OVE


diário_62 Uma viagem à Noruega e ao passado do autor da série Minha luta
Natalia Timerman + imagem Camilo Gomide

VINTE NOITES SEM DORMIR


questões ósseas_70 Jornalista de 85 anos transforma sua fratura de fêmur numa experiência de vida enriquecedora
Roberto Muggiati + imagem Roberto Mendonça Muggiati

“SOU UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL”


história pessoal_74 Memórias de um pensador do cinema brasileiro
Jean-Claude Bernardet, com Sabina Anzuategui + imagem Karime Xavier

ALISSA COMPRA A MORTE


ficção_78 Em algum lugar, ao longe, não desaparecia a ideia de que aquela felicidade duraria pouco
Liudmila Ulítskaia + imagem Ari Hisae

poesia_83 O poema é tudo que resta da nossa tragédia


Jorge Augusto + imagens Alexandre Alves

cartas_84 Um cancelamento misterioso e intrigante


INFINITO PARTICULAR
despedida_86 A aventura de traduzir a poeta Louise Glück
Bruna Beber + imagem Daniel Ebersole

4
1 de 1 26/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
colaboradores_ novembro

CAIO BORGES
Bernardo Esteves Liudmila Ulítskaia Jorge Augusto Natalia Timerman Vladimir Safatle Ana Clara Costa

Paolo Lombardi [Capa] é um cartunista Antissemitismo da Universidade Bernardo Esteves [O empreendimento, O texto é um trecho do livro Wet mácula:
italiano. Hebraica de Jerusalém, é também p. 54], repórter da piauí, é apresentador memória/rapsódia, que a Companhia
professor do PPGHIS da UFRJ. Publicou, do podcast A Terra é redonda (mesmo) e das Letras lança neste mês.
Fernando de Barros e Silva [Coringa entre outros livros, O não judeu judeu: autor de Admirável Novo Mundo: uma
nas ruas, p. 8] é repórter da piauí e a tentativa de colonização do judaísmo história da ocupação humana nas Liudmila Ulítskaia [Alissa compra a
apresentador do podcast Foro de Teresina. pelo bolsonarismo (Fósforo). Américas (Companhia das Letras). morte, p. 78], escritora russa, publicou a
Ilustração de Caio Borges. Fotografia de André Gonçalves. coletânea de contos Meninas (Editora 34).
Vladimir Safatle [Os limites do Tradução de Irineu Franco Perpetuo.
Ana Clara Costa [“Eu sou um príncipe”, ressentimento, p. 40] é professor Natalia Timerman [Em busca de Karl Ove,
p. 18] é repórter da piauí. Foi editora de titular do Departamento de Filosofia p. 62] é escritora, psiquiatra pela Unifesp, Jorge Augusto [Poesia, p. 83] é poeta e
política na Veja, editora do Globo em Brasília e Instituto de Psicologia da USP, mestre em psicologia e doutoranda em professor, doutor em literatura e cultura pela
e editora-chefe na Época. Fotografia de além de psicanalista. Publicou, literatura pela USP. É autora de Copo UFBA, professor da Uesb e do Instituto
Diego Bresani. entre outros livros, Maneiras de vazio e As pequenas chances (ambos da Federal Baiano. É editor da revista de
transformar mundos: Lacan, política Todavia), entre outros livros. literatura brasileira contemporânea Organismo
Alessandro Candeas [Angústia na fronteira, e emancipação (Autêntica). e publicou O mapa de casa, plaquete do
p. 30] é embaixador do Brasil junto Roberto Muggiati [Vinte noites sem dormir, Círculo de Poemas (Luna Parque e Fósforo).
à Autoridade Palestina e doutor em Renato Terra [Meu nome é Geraldo, p. 70], jornalista, foi editor das revistas
socioeconomia do desenvolvimento pela École p. 43] é colunista da Folha de S.Paulo Manchete, Fatos & Fotos e Veja. Publicou Bruna Beber [Infinito particular, p. 86] é
des Hautes Études en Sciences Sociales, e diretor de Narciso em férias e Uma noite A contorcionista mongol (Record). autora de alguns livros de poesia, entre
em Paris. Diário escrito em colaboração em 67. Ilustração de Caco Galhardo. eles Veludo rouco (Companhia das Letras),
com Luigi Mazza, repórter da piauí. Jean-Claude Bernardet [“Sou uma e um de ensaio Uma encarnação encarnada
Raquel Cozer [O trainee, p. 44] é jornalista construção social”, p. 74] é escritor, ator, em mim: cosmogonias encruzilhadas em
Michel Gherman [O judeu imaginário, especializada em literatura, mercado cineasta e crítico de cinema. Publicou, entre Stella do Patrocínio (José Olympio).
p. 36], professor de sociologia da UFRJ editorial e políticas de livro e leitura. outros livros, Cinema brasileiro: propostas
e pesquisador do Centro de Estudos do Ilustração de Reinaldo Figueiredo. para uma história (Companhia de Bolso). Ilustrações de Esquina por Andrés Sandoval.

6
CLUBE DE REVISTAS
DESCUBRA COMO É POSSÍVEL VIVER
— E N ÃO A P E N AS S O B R E V I V E R —
A L É M D A S E X P E C TAT I VA S
Neste manifesto inovador, Peter Attia, um dos maiores especialistas
mundiais em longevidade, investiga o envelhecimento e o impacto
das doenças crônicas, fornecendo estratégias práticas para
melhorar a saúde e prolongar a vida com qualidade.

“É verdade que a medicina moderna tem sido um


verdadeiro milagre para o envelhecimento saudável.
Mas e se nossa ideia do que é viver melhor por mais
tempo estiver errada? É justamente essa a premissa
do livro do dr. Peter Attia.”
— The New York Times

“Se você quer saber como viver mais e melhor, preste


atenção ao que o dr. Attia tem a dizer. Sua ampla
experiência, sua obsessão implacável pelo detalhe e
sua capacidade de traduzir a vanguarda da ciência
para o cotidiano das pessoas são inestimáveis.”
— Tim Ferriss, autor dos best-sellers
Ferramentas dos Titãs e 4 horas para o corpo
1 de 1 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
questões vultosas

CAIO BORGES_2023
CORINGA NAS RUAS
A Argentina e a construção de um novo “antiprogressismo”

FERNANDO DE BARROS E SILVA

T
ão logo vieram a público os re- taram depois que Bullrich e Macri decla- ni, doutor em história pela Universidade Uma pesquisa coordenada pelo Monitor
sultados do primeiro turno da raram seu apoio ao candidato ultraliberal. de Buenos Aires. Stefanoni publicou no do Debate Político no Meio Digital da
eleição presidencial na Argenti- Ocorre com o nosso vizinho mais im- ano passado um excelente livro que tem usp revelou alguns traços desse eleito-
na, analistas correram para des- portante o que vimos em anos recentes como título a seguinte pergunta: A rebel- rado: 97% acreditam que “a internet per-
tacar a grande surpresa: Sergio em vários países da América Latina (e pa- dia tornou-se de direita? O subtítulo indi- mite descobrir verdades que os jornais e a
Massa, representante do peronismo e ra além dela) – o definhamento da direi- ca o que encontraremos nas 170 páginas tevê querem esconder”; 87% dizem que
candidato da situação, havia alcançado ta tradicional, adaptada ao rame-rame seguintes da edição brasileira, pela Uni- “os programas sociais desestimulam as
36,68% dos votos. Javier Milei, o candi- democrático, e a ascensão das direitas camp: Como o antiprogressismo e a anti- pessoas a trabalhar”; 72% acreditam que
dato da extrema direita, havia ficado puros-sangues, ou alternativas, empe- correção política estão construindo um “o sistema eleitoral não é confiável”; 70%
supreendentemente atrás do ministro da nhadas em tripudiar em todas as frentes novo sentido comum (e por que a esquer- acham que “os direitos humanos atrapa-
Economia argentino, com quase 30%. sobre a sensibilidade progressista e con- da deveria levá-los a sério). lham o combate ao crime”; 50% dizem
Até o dia da votação, havia alguma victas de seu radicalismo, o que pode O terceiro capítulo – O que querem os que “os artistas não respeitam os valores
expectativa de que Milei pudesse liqui- incluir a defesa de ditadores, o elogio da libertários e por que eles se aproximaram morais da nação”.
dar a fatura no primeiro turno – pela le- tortura ou a apologia do fascismo. da extrema direita? – começa justamente O anarcocapitalismo de Milei é primo-
gislação argentina, para que isso ocorra, No Chile de 2021, por exemplo, o com Javier Milei, descrito como um eco- irmão do “anarcomilicianismo” que ex-
o candidato deve ter 45% dos votos ou, advogado ultraconservador José Antonio nomista excêntrico que no verão de 2019 perimentamos há pouco. Enquanto a
então, 40% dos votos, desde que o segun- Kast foi ao segundo turno da eleição levava ao teatro em Buenos Aires um esquerda, cada vez mais indistinta de um
do colocado não alcance a marca dos presidencial contra Gabriel Boric defen- bom público – jovens, na maioria – para “progressismo descafeinado”, se incorpora
30%. Massa e Milei voltarão a se enfren- dendo sem meias palavras o legado san- ver seu espetáculo El consultorio de Mi- ao status quo e joga na defensiva para sal-
tar no dia 19 deste mês de novembro. guinário de Augusto Pinochet (“fez o lei. No palco, ele fazia gestos obscenos na var o que dá (o sus, a floresta, o estado
Apesar da sensação de revés, à luz da que tinha de fazer”). Na Colômbia, no direção do retrato de John Maynard Key- laico, o casamento homoafetivo), a direita
consagração que as pesquisas sugeriam ano passado, o empresário Rodolfo Her- nes, cuja obra seria “pura merda”, e se radical avança empilhando vitórias sobre
ser possível, o outsider da direita radical nández, apelidado de Trump Tropical, vendia à plateia como o “único que pode os escombros da civilização. Quando o
superou com boa margem a terceira desbancou a direita convencional e foi nos salvar do socialismo apocalítico”. horizonte histórico se fecha e o futuro só
colocada, Patricia Bullrich, represen- ao segundo turno contra o esquerdista O cenário, meticulosamente mam- pode ser pensado em termos distópicos, a
tante da direita convencional. Bullrich, Gustavo Petro. Hernández tinha já en- bembe, era composto ainda por retratos destruição passa a ter um apelo irresistível.
ex-ministra da Segurança de Mauricio tão no currículo uma frase definitiva: de heróis do liberalismo raiz – Friedman, Não é à toa que o livro de Stefanoni
Macri, o liberal que antecedeu Alberto “Sou seguidor de um grande pensador Mises, Hayek –, entre os quais um menos comece falando de Coringa, o filme de
Fernández na Casa Rosada, teve um alemão. Seu nome é Adolf Hitler.” célebre, Murray Rothbard, que mais do Todd Phillips. Refém de uma doença
desempenho frustrante. No país de Mario Vargas Llosa, o mi- que ninguém fez a cabeça de Milei. Dis- que o faz rir de forma maníaca, vítima
Com a economia do país em franga- lionário Rafael López Aliaga, conheci- cípulo tardio da escola austríaca, onde de bullying e desprezado, o palhaço en-
lhos – inflação anual batendo em 140%, do como “Bolsonaro peruano”, ficou em o ultraliberalismo foi forjado, Rothbard vereda pelo labirinto da loucura e acaba
dólar na estratosfera, retração do pib, de- terceiro lugar na eleição presidencial de dizia que “o Estado é uma organização no crime, até se transformar, no final,
salento generalizado –, os argentinos 2021. Quem disputou o segundo turno criminosa coercitiva”. Em 2020, numa em “líder inesperado [e involuntário] de
decidiram que a disputa final será entre pelo campo conservador foi Keiko Fuji- entrevista, Milei disse: “Entre a máfia e o uma rebelião dos marginalizados de Go-
os responsáveis pela crise e o candidato mori, apoiada pelo autor de A guerra do Estado, fico com a máfia. A máfia tem có- tham City contra os ricos e poderosos”.
que promete apagar o incêndio com um fim do mundo. Perdeu por uma diferença digos, a máfia cumpre, a máfia não mente Stefanoni lembra que na época em
lança-chamas na mão. O famoso bordão mínima para Pedro Castillo e demorou e, acima de tudo, a máfia concorre.” Em que foi lançado, 2019, o filme suscitou
“É a economia, estúpido”, sempre usado mais de quarenta dias para reconhecer outra ocasião, num programa de tevê, leituras polares: crítica progressista às ini-
para explicar o comportamento do eleito- a derrota, como manda o script da nova Milei propôs privatizar as ruas, ecoando quidades do capitalismo? Ou levante do
rado, desta vez não ilumina o caminho. direita. Aliaga, o Bolsonaro peruano, foi uma ideia que Rothbard havia defendi- white trash ressentido a engrossar o caldo
Se a nota surpreendente do primeiro eleito no ano passado prefeito de Lima. do nos anos 1980. “Os libertários não su- da extrema direita? Ele se abstém de tomar
turno ficou com a demonstração de resis- portam a propriedade pública de nada, partido por uma ou outra interpretação,

T
tência do peronismo, a novidade histórica odos esses exemplos, entre tantos nem mesmo das ruas”, escreve Stefanoni. identificando nas análises divergentes um
da eleição se encontra na força social da outros, mesmo onde a extrema di- Dias antes do primeiro turno, Milei sinal da riqueza do filme. No mundo real,
extrema direita, que já se viabilizou como reita não ganhou, mostram como reuniu cerca de 12 mil pessoas no comí- porém, parece que o Coringa já escolheu
opção de poder, seja qual for o resultado “se construiu um antiprogressismo de cio de encerramento de sua campanha. seu lado. Os ventos que sopram do Sul nos
do segundo turno entre los hermanos. novo tipo” mundo afora. A formulação é A maioria do público era de homens e dizem que o palhaço está bem próximo
As chances de Milei sair vitorioso aumen- do historiador argentino Pablo Stefano- 70% dos participantes tinham até 35 anos. da Casa Rosada. J

8
1 de 5 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
esquina

ANDRÉS SANDOVAL_2023
ALDEIA DE CONCRETO
Em Florianópolis, indígenas vivem em terminal de ônibus

S
entada no sofá, Jussimara de Olivei- Florianópolis, para vender artesanato, nheiros e cozinha. Quando retornaram rani e Xokleng. Estes últimos, da Terra
ra, de 42 anos, trança tiras de bam- até se estabelecerem de vez na ilha, em na temporada seguinte, o terminal havia Indígena Ibirama-La Klãnõ, no Vale do
bu, com mãos hábeis, para produzir maio, quando Lima foi contratado como sido depredado. Lopes conta que os ocu- Itajaí, estiveram na origem do processo
um cesto. É um domingo chuvoso de professor temporário na escola onde os pantes resolveram então permanecer o que levou o stf a declarar a inconstitu-
outubro e seu companheiro, Elizandro seus filhos estudam. “Aqui não é confor- ano todo, marcando território. Aos pou- cionalidade do marco temporal.
de Lima, de 40 anos, assiste à tevê, en- tável, mas estamos acostumados”, diz ele. cos, o espaço recebeu algumas melho- Um dos temas que o professor Elizan-
quanto os dois filhos do casal brincam A família de Sebastiana Adriano, de rias. A prefeitura, acionada por decisões dro de Lima mais aborda na escola em
em um dos dois quartos da casa erguida 38 anos, vive em um espaço ainda mais judiciais, disponibilizou tapumes, ba- que atua é, justamente, o marco tempo-
com paredes de tapume e coberta por desconfortável, sem divisórias, com col- nheiros químicos e um contêiner com ral. A luta pela casa de passagem é outro
teto de lona. “Me sinto bem aqui. Mas chões no chão e roupas penduradas em chuveiros – embora o banho ali ainda tema de debate. “Alguns dizem que é
poderia ser bem melhor, é tudo improvi- uma cordinha. Ela veio da Reserva Indí- seja frio por falta de instalação elétrica. invasão”, lamenta. Então ele conta aos
sado”, diz Oliveira. Ela e seu parceiro são gena Rio das Cobras, no centro-sul do Em 2020, a pandemia obrigou os indí- alunos a história do lugar e as conquistas
indígenas do povo Kaingang. Paraná, e costumava vender sua arte em genas a retornar para suas terras. No ano dos indígenas na Justiça. E avisa: “Esta-
A família é uma das treze que ocupam uma cidade próxima, Umuarama. En- seguinte, quando o comércio e as praias mos tão acostumados a lutar que não
o Terminal de Integração do Saco dos Li- quanto faz seu artesanato no chão de con- reabriram, eles voltaram ao Tisac, mas a vamos nos cansar.” J
mões (Tisac), em Florianópolis. Desativa- creto do antigo terminal de ônibus, ela Guarda Municipal tentou expulsá-los de Maurício Frighetto
do em 2005, a antiga parada de ônibus avalia que as condições de trabalho no lá. O direito de permanecer no terminal
municipais fica perto do Centro da cida- estado vizinho eram piores: “Em Umua- foi reconhecido por uma decisão do juiz
de. Tem cerca de 100 metros de compri- rama eu ficava embaixo de uma árvore.” Marcelo Krás Borges, que qualificou a CLUBE ANTIESQUERDA
mento, 12 metros de largura, pé-direito tentativa de desocupação forçada como O MBL expõe no Rio de Janeiro

S
alto e abriga em torno de 100 indígenas, adraque Lopes, de 35 anos, vive no “inequívoco ato de racismo”. sua crise de identidade
incluindo cerca de 20 crianças. terminal desde o início da ocupa-

N N
Eles costumam afluir a Santa Catari- ção. Ainda criança, ele costumava a decisão mais recente do processo, o dia 7 de outubro, sábado, o Club
na, sobretudo no verão, para vender ces- ir à Florianópolis acompanhado da avó. em setembro, o mesmo juiz lamen- Municipal, no bairro da Tijuca, no
tarias, colares, pulseiras e outros produtos Natural da Terra Indígena Votouro, no ta que um arranjo provisório e pre- Rio de Janeiro, vivia uma tarde agi-
artesanais nas praias e ruas. Na virada de norte do Rio Grande do Sul, lembra que cário esteja “se tornando definitivo ante tadíssima. Por volta de 13h30, no segundo
2016 e 2017, surgiram várias denúncias era difícil vender as mercadorias nas ci- a total falta de interesse do município em andar do prédio, que é propriedade da
de abusos contra essa população itine- dades gaúchas: “A gente procurava luga- resolver a questão da construção da casa Associação dos Servidores Públicos, mu-
rante: racismo, famílias morando embai- res mais distantes e com turistas.” de passagem”. Ele estabeleceu um pra- lheres enchiam balões brancos e cor-de-
xo de um viaduto, uma ameaça de morte Quando o verão se aproximava, os zo de noventa dias para que o município rosa para um concurso de dança de salão.
contra uma criança kaingang. O Minis- adultos de sua terra já anunciavam: comece a fazer adaptações no Tisac, sob No terceiro, acontecia uma sessão de fo-
tério Público Federal (mpf) propôs uma “Logo, logo vamos para Goj Ty Sá.” pena de multa de 350 mil reais. O proje- tos de formandos de direito. No quarto
ação civil pública contra o município, a O termo, em kaingang, pode ser tradu- to, criado no curso de arquitetura e urba- andar, cerca de duzentas pessoas espera-
União e a Funai, para que os indígenas zido como a cidade da “água salgada” nismo da Universidade Federal de Santa vam o início do primeiro congresso do
fossem amparados. – no caso, Florianópolis. A aldeia do ter- Catarina, prevê a construção de mora- Movimento Brasil Livre (mbl) no Rio.
Após uma decisão judicial, os kain- minal foi então batizada de Casa de Pas- dias de alvenaria sob a cobertura do ter- O congresso é parte de uma mobiliza-
gangs foram primeiro encaminhados ao sagem e Ponto de Cultura Indígena Goj minal. Também contempla um lugar de ção do mbl, que nasceu em São Paulo,
Terminal Rodoviário Rita Maria e, em Ty Sá. E Lopes tornou-se seu cacique. convívio social e até um espaço do fogo. para conquistar adeptos em outras regiões
seguida, ao Tisac, que estava desocu- A antiga reivindicação por uma casa de A prefeitura disse à piauí estar em tra- do país. A estratégia é preparar o solo para
pado. O município comprometeu-se passagem em Florianópolis intensificou- tativas com a Funai para implementar a as eleições municipais do ano que vem.
a construir uma casa de passagem – a se, segundo o cacique, depois de uma tra- casa de passagem com alguma contrapar- O grupo também sonha com a criação
principal reivindicação dos indígenas – gédia em Imbituba, também no litoral tida do governo federal. A administração de seu próprio partido político. Mas, por
até julho de 2019. A promessa não foi catarinense. Em dezembro de 2015, um municipal espera ter uma solução con- ora, seus poucos candidatos contentam-se
cumprida e a acomodação provisória bebê kaingang de 2 anos foi assassinado junta até o fim do ano, mas não informou em se lançar por legendas como União
tornou-se permanente. ao lado da mãe, que vendia artesanato em se vai cumprir a última decisão judicial. Brasil, Podemos e o Novo. Folhetos que
Os indígenas que moram lá não são frente à rodoviária da cidade. “Ele foi de- O terminal é habitado atualmente apresentavam os feitos e os planos de Pe-
nativos da capital catarinense. Oliveira, golado”, diz Lopes. “Aí a gente foi pra luta.” pelos kaingangs do Rio Grande do Sul e dro Duarte (Novo-rj), o único vereador
Lima e seus dois filhos, por exemplo, Quando os indígenas chegaram ao Paraná. Na temporada de veraneio, o ligado ao mbl no Rio, estavam deposita-
vieram da cidade gaúcha de Erechim. Tisac, em janeiro de 2017, o local conta- número de indígenas deve aumentar dos nas poltronas para a plateia muito va-
Costumavam passar temporadas em va com água encanada, luz elétrica, ba- muito, incluindo pessoas dos povos Gua- riada, em termos de gênero, raça e idade.

10
2 de 5 25/10/23 PROVA FINAL

Nas manifestações de rua pelo im- mundo que quer viver uma vida de bur-
CLUBE DE REVISTAS
pondeu que o grupo vem evitando tratar A partir daquele episódio, Magal,
peachment de Dilma Rousseff, em 2015, guês vai pra lá: jogador de futebol, trafi- desses temas para não “atrair maluco”. como o advogado é conhecido, passou a
Kim Kataguiri e Fernando Holiday (que cante, miliciano”, disse. Uma pessoa na A essa altura, por volta das 16 horas, o organizar uma série de “ações diretas”
deixou o grupo em 2021) eram os astros plateia gritou: “E Bolsonaro.” Costenaro chão começou a vibrar. O concurso de em protesto contra a Lava Jato. Ele de-
dos caminhões de som. Seis anos depois, concordou. Pedro Duarte amenizou o dança de salão havia começado. fende que sua cidade tem “muita gente
o mbl convocou uma manifestação pelo tom da mesa, com um apanhado históri- bacana, batalhadora” que não pode ser

A
impeachment de Jair Bolsonaro em São co da política fluminense. mesa seguinte abordou um tema associada ao que já se chamou de Repú-
Paulo – e a adesão foi pífia. Os resultados adulto: “Os desafios da gestão pú- blica de Curitiba, em decorrência das

A
eleitorais do grupo em 2022 também fo- segunda mesa intitulava-se “Cul- blica”. Kataguiri discorreu sobre o operações da Lava Jato. “Eles não têm o
ram fracos, com apenas dois represen- tura woke versus cultura brasileira”. déficit público, em termos técnicos. Za- direito de se apropriar das instituições,
tantes eleitos em todo o país: Kataguiri Woke é o termo em inglês para de- carias preferiu atacar o “bando de vaga- da democracia, por sua relação com a
conseguiu se reeleger deputado federal signar quem está alerta para injustiças bundos que é o mst”. Duarte, já de olho elite econômica ou por seus títulos”, diz.
pelo União Brasil de São Paulo, e Guto sociais e raciais. Um dos palestrantes foi na campanha do ano que vem, falou

S
Zacarias entrou na Assembleia Legisla- Arthur do Val, ex-deputado estadual do sobre as políticas de incentivo à ocupa- ergio Moro, operador-mor da Lava
tiva paulista pelo mesmo partido. União Brasil por São Paulo, cassado por ção residencial do Centro do Rio. Jato, também foi assediado pelo
No Rio, enquanto o congresso não unanimidade em 2022 por quebra de Prestes a se encerrar, o congresso tevegrupo de Magal. Em dezembro de
começava, organizadores resolveram decoro parlamentar, ao dizer que as re- então seu momento de gincana. Katagui-
2021, depois de desembarcar do gover-
instalar ventiladores de pé pelo auditó- fugiadas da guerra da Ucrânia eram ri e um jovem – que em outra ocasiãono Bolsonaro e se filiar ao Podemos
rio, porque fazia muito calor. Nas caixas pobres e, portanto, “fáceis”. havia vencido um concurso de debatescom a ambição de concorrer à Presi-
de som, soou a canção Que dure para Do Val lamentou que o brasileiro promovido pelo mbl no Rio de Janeiro –
dência, o ex-juiz resolveu lançar um li-
sempre, de Peninha e Aroldo Alves So- não valorize a própria cultura, ficando travaram uma batalha retórica, discutin-
vro em Curitiba. O ativista reuniu duas
brinho, nas vozes de João Paulo e Da- vulnerável a uma “cultura da lacração”. do assuntos correntes da política. A plateia
dezenas de manifestantes, todos com
niel: Nós dois não temos rabo preso/Você E lançou uma provocação: “Para com- torceu pelo iniciante, mas o júri compos-
máscaras do rosto de Lula, que se perfi-
não me cobra nada/E eu não cobro você. bater a cultura woke tem que bater em to pelos demais conferencistas concedeu
laram ao longo da avenida que dá aces-
trans? Como a gente pode combater isso a vitória a Kataguiri. Para o derrotado,
so ao teatro onde a obra foi lançada.

O
paulista Higor Borges dos Santos, sem ter o efeito colateral de ficar como Zacarias deixou um conselho: “Tente Em outro episódio, durante uma das
assessor do vereador Pedro Duarte, um bando de reaça babaca?” O youtu- ser mais combativo, você foi respeitoso
motociatas de Jair Bolsonaro, Magal e
foi o primeiro a subir ao púlpito, ber Matheus Faustino (conhecido nas demais.” E acrescentou, brincando: “Eu
seus colegas abriram no canteiro de uma
que ele chamou de “barril do Chaves”, redes sociais como Faustinorn), que não sou um grande defensor do respeito.”
avenida uma enorme faixa com a frase
em alusão ao programa infantil mexica- vestiu roupas femininas em um vídeo No encerramento, todos os convidados
“Curitiba cospe em fascista”. Magal diz
no. “Queria que levantasse a mão quem para criticar a militância trans, acres- subiram ao palco para falar sobre o projeto
que amigos seus de fato cuspiram no
já sabia da existência de um núcleo do centou: “A gente bate, mas no fundo é O Livro Amarelo, que pretende formular
então presidente: “Ele foi levando a nos-
mbl no Rio”, disse, tentando aquecer o uma guerra perdida.” O influenciador “o norte ideológico” e “o horizonte intelec-
sa saliva indignada.”
público. Quando a maioria das pessoas Sérgio da Silva Júnior, mais conhecido tual” do mbl. Os princípios e orientações
Magal chegou a se disfarçar de entre-
levantou a mão, ele se declarou surpreso, como Jota Júnior, atacou a “cultura dos do Livro Amarelo não foram expostos.gador para tentar entrar no prédio do
embora fosse uma pergunta meio óbvia brancos culpados” e o “endeusamento À piauí, o youtuber Costenaro admi-
Ministério Público Federal (mpf). Que-
para a plateia que havia pagado entre 50 de pessoas negras” (ele mesmo é negro). tiu que o mbl carece de unidade ideo-
ria presentear os procuradores com um
e 80 reais para participar do evento. Bor- Quando o público teve a oportunida- lógica: “Acho que o movimento nem banner em que a ex-primeira-dama Ma-
ges dos Santos aproveitou para pedir que de de fazer perguntas, ficou claro que Do é liberal. Já foi, mas hoje é uma comu-
risa Letícia (1950-2017) aparecia ao lado
todos contribuíssem com o grupo, res- Val havia tocado em uma questão sensí- nidade para quem não é de esquerda.”de Arthur, neto de Lula que morreu
salvando que pedia apenas valores pe- vel: como ser crítico da esquerda sem cair O aspirante a vereador diz que falta dis-
enquanto o líder petista estava preso.
quenos: “O mbl não é deslumbrado, é no reacionarismo? Pessoas que se identi- cussão interna no grupo. Mas ele não seDepois da Vaza Jato – que revelou as
feito de gente como a gente.” ficaram como integrantes da comunidade preocupa muito com isso. “A gente de-
tramoias entre os integrantes da força-
“Os planos do mbl para o Rio de lgbtqia+ questionaram sobre o risco de bate pouco, não é um movimento mui- tarefa –, Magal passou a discursar uma
Janeiro” foi o tema da primeira mesa a retórica agressiva do mbl flertar com o to organizado, mas eu gosto.” J vez por semana em frente ao mpf, com
do encontro. Mas pouco se falou disso. racismo e a transfobia. Renan Santos res- Lara Machado caixa de som, acusando a operação de
O paulista Renan Santos, um dos funda- cometer abusos e intimando procurado-
dores do movimento, rejeitou o púlpito res para o debate. Não conquistou pú-
para discursar andando pelo palco. Não AGITADOR ANTI-LAVA JATO blico, mas transmitiu seu recado: “Deu,
chegou a apresentar planos para o Rio, Um advogado paranaense contra no máximo, vinte pessoas. Muitas vezes
mas falou da violência, da estagnação do a República de Curitiba fui sozinho, debaixo de chuva.”
turismo e da falta de empregos que leva

D N
os cariocas a pegarem “praia na Faria iogo Castor de Mattos, então procu- ascido em Ponta Grossa, Magal
Lima”. “Tudo isso é sintoma de que a rador da República e integrante da passou a morar em Curitiba ainda
gente ficou preso nos sonhos e nos para- força-tarefa da Lava Jato, autografa- na primeira infância. Foi criado
digmas de uma geração boomer, dos va em Curitiba seu livro O amigo do direi- pela mãe, a dentista Lucymara Christo-
anos 60 e 70. Agora precisamos instigar to penal em uma noite de junho de 2018 foro, que nas eleições presidenciais de
novos sonhos e criar novos líderes”, disse. quando uma dezena de pessoas invadiu a 1989 levou o filho, então com 6 anos, a
Coordenadora nacional do mbl, livraria, entoando Olê, olê, olê, olá, Lula, um comício de Lula. “Minha mãe dis-
Amanda Vettorazzo foi a única mulher Lula. Os manifestantes, acompanhados se: ‘Hoje, você vai conhecer a pessoa
a falar no congresso. Defendeu a necessi- de um saxofonista e um trombonista, des- que mais vai amar’”, relembra Magal.
dade de levar o mbl para mais municípios fraldaram uma faixa na qual se lia: “Ini- Pós-graduado em ética pela puc do
do interior, mas o tema não interessou migos da Constituição.” Sob uma chuva Paraná, Magal sempre se considerou
muito seus colegas de mesa, que cochi- de papel picado – páginas rasgadas do um agitador. Na juventude, criou um
chavam entre si e checavam o celular próprio livro –, Castor de Mattos tentou jornal mensal, O prepúcio, em que assina-
enquanto ela falava. ignorar o protesto. Mas admiradores do va com o pseudônimo Marcelino Galea-
O carioca Gabriel Costenaro, youtu- procurador avançaram contra os agitado- no, homenagem ao brasileiro Walmor
ber que ambiciona concorrer a vereador, res e os expulsaram aos pescoções. Marcellino e ao uruguaio Eduardo Ga-
adotou a retórica incendiária que fez a O advogado Felipe Christoforo Mon- leano, dois escritores de esquerda (o
fama do mbl. “Vocês têm que ter nojo do gruel, de 40 anos, estava entre os manifes- apelido Magal aglutina a primeira sí-
Rio de Janeiro”, disparou. Então voltou tantes, segurando a faixa. “A gente até que laba de cada um desses sobrenomes).
o lança-chamas para a Barra da Tijuca, apanhou pouco pelo que fez. Mas a gente Sem nunca deixar de advogar, princi-
bairro que qualificou como “o antro do estragou a festa dos caras”, relembra Mon- palmente na área cível, foi sócio de dois
que há de mais podre” na cidade. “Todo gruel, um dos idealizadores do protesto. bares, que, cada um a seu tempo, se

piauí_novembro 11
3 de 5 25/10/23 PROVA FINAL

Em janeiro de 2022, Magal e seus


CLUBE DE REVISTAS
cantora no palco. Começava ali uma em- ces Bárbaros”, lembra Ney Matogrosso,
amigos tiveram a ideia de criar o Museu preitada que marcaria o seu nome na que também foi retratado pela baiana.
da Lava Jato. Enquanto a turma discutia história da música popular brasileira. “Nunca vi a Thereza gritar, sempre foi
o projeto, o colega e advogado Wilson suave. Isso fez eu me aproximar e ficar

P
Ramos Filho recebeu um telefonema ouco tempo depois, Thereza estava à vontade com ela.” (Até a entrevista
de Lula, que se animou com a ideia. na casa de Bethânia, no Leblon, para a piauí, Ney não sabia que Thereza
“Ele queria que a gente fizesse o museu fotografando-a em momentos de era enfermeira quando eles se conhece-
em frente à sede da pf”, conta Magal. descontração. “Não lembro como fomos ram. Na enfermaria, ninguém sabia na
Lançado em 1º de agosto de 2022 – dia apresentadas. Thereza era namorada de época que ela era fotógrafa.)
do aniversário de Moro –, o Museu da um músico meu, que de vez em quando Na década de 1970, a fotógrafa regis-
Lava Jato por ora não tem sede física: é frequentava minha casa”, conta Bethâ- trou o antológico show Fa-tal – Gal a todo
um site no qual encontram-se docu- nia. As fotos despertaram o interesse de vapor e fez a foto de capa do disco Cantar,
mentos sobre a operação (com ênfase Maysa. De volta ao país depois de um ambos de Gal. Tirou algumas das fotos
nas falhas processuais), além de uma período na Europa e nos Estados Unidos, mais memoráveis de Caetano, Gilberto
seção dedicada à Vigília Lula Livre e a compositora queria mostrar aos brasi- Gil, Rita Lee, Alcione, Chico Buarque,
textos sobre lawfare. A Lava Jato acabou, leiros a nova silhueta, obtida com uma Zezé Motta, Angela Ro Ro, Raul Seixas e
mas Magal segue discursando: “A Repú- dieta rigorosa e anfetaminas, e os den- tantos outros, com ar despretensioso, sem
blica de Curitiba foi uma coisa horroro- tes brancos recém-implantados em Los pose de artista. Preferia usar a luz do dia e
sa, detestável, uma passagem histórica Angeles. A enfermeira arranjou uma a iluminação do palco, nunca o flash.
patética. É contra isso que eu luto.” J folga no trabalho e foi ao apartamento “Sempre tive senso de intimidade”, diz.
Felippe Aníbal de Maysa. Retratou-a na sacada, obser- A partir dos anos 1980, ela passou a foto-
vando o horizonte e o mar. grafar menos. “Eu não queria obedecer
tornaram pontos de encontro da esquer- Thereza queria ganhar uma grana ex- nada nem ninguém. Não quis trabalhar
da em Curitiba. OLHOS NOS OLHOS tra com a fotografia, mas os empresários para nenhum jornal ou gravadora. A en-
Filiado ao pt, Magal é visto nas ruas e Os 84 anos de uma fotógrafa dos artistas achavam o seu trabalho pou- fermagem me dava um salário para viver.”
bares da capital paranaense sempre com da música popular brasileira co comercial. Foi com grande surpresa Thereza tem 84 anos, completados em
um poncho vermelho ou com um boné que ela recebeu um convite de Ivone Kas- outubro passado, e vive da aposentado-

A
surrado do mst. Só usa terno em audiên- cidade de Serrinha, na Bahia, tinha su, assessora de imprensa de Roberto Car- ria de enfermeira. Seus olhos azuis estão
cias. “Na Lava Jato, abandonei o terno. Vi 46 mil habitantes no início da déca- los, para registrar a primeira temporada enevoados. Ela usa o Instagram para
que o Judiciário é uma estopa para manter da de 1940. Quase todas as mulheres do cantor no Canecão. Thereza teve que compartilhar as fotos do acervo pessoal.
a população longe da Justiça”, prega. Elo- e homens eram brasileiros, católicos, sol- pagar uma colega de trabalho para assu- Os empresários dos artistas que fotografou
quente, faz o tipo boa-praça, fugindo do teiros, pardos, trabalhadores do campo e mir o seu plantão na enfermaria. Valeu a no passado estão sempre ligando para pe-
estereótipo do militante carrancudo. Ape- com os olhos em perfeito funcionamento. pena: Roberto colocou a foto na capa do dir acesso ao arquivo, mas quase nunca a
sar do bom humor, fala sério e costuma se Fugiam da normalidade 72 cegos, 3 es- disco que lançou em 1970, com o sucesso remuneram pelo uso de suas obras. Difi-
entusiasmar com o próprio discurso, sem- trangeiros e 8 cidadãos sem religião. Havia Jesus Cristo. “Eu ganhei, em uma noite, cilmente enviam convites para shows (ela
pre pontuado por expressões como “con- ainda uma senhora, conhecida por todos o valor que ganhava em um mês de tra- vai a muitos, mas compra os ingressos).
vescote de burgueses” e “elite analfabeta”. como Zizu, que se distinguia das outras balho no hospital”, lembra. Suas fotografias estão guardadas em
pessoas em razão de um laboratório foto- A essa altura, Thereza começou a se pen drives no armário de casa. Os ami-

E
m 7 de abril de 2018, Magal e sua gráfico que mantinha em casa. Zizu aca- tornar uma fotógrafa conhecida, mas gos a aconselharam a vender ou doar o
mãe se dirigiram, por volta de uma bara de se tornar avó de uma menina, a não era por isso que circulava em meio material para uma instituição cultural,
da tarde, à sede da Polícia Federal pequena Thereza Eugênia Paes da Silva. aos famosos. Antes de ter o talento res- mas Thereza tem uma preguiça terrível
em Curitiba. Dois dias antes, o juiz Ser- A infância de Thereza transcorreu peitado, ela fez amizades com músicos de lidar com burocracias. Prefere passar
gio Moro tinha expedido um mandado naquele ambiente analógico, iluminado na Praia de Ipanema. Gal Costa, por os dias assistindo aos mesmos filmes de
de prisão contra Lula, condenado em por lâmpadas vermelhas e nenhuma luz exemplo, frequentou a casa de Thereza sempre (ela tem um pen drive com vá-
segunda instância no caso do tríplex do natural, onde eram reveladas as fotos dos porque a namorada da cantora na épo- rios longas de Wim Wenders e Woody
Guarujá. Havia a expectativa de que o seus familiares e vizinhos. Na adolescên- ca, a atriz Wilma Dias, tinha interesse Allen). Caminha até o Forte de Copa-
petista fosse encarcerado naquele pré- cia, ela ganhou do pai uma máquina por fotografia. E Thereza frequentou a cabana todo fim de tarde. Se a paisagem
dio – o que, de fato, acabou ocorrendo. Kapsa – um modelo quadrado, mais ba- casa de Marina Lima porque conheceu está excepcionalmente bonita, ela foto-
Àquela altura, centenas de pessoas se rato que as outras câmeras da época – e a cantora e os irmãos, Roberto Lima e grafa. Se não, pega uma brisa e retorna
aglomeravam em frente à pf. Magal pas- começou a registrar a irmã nas paisagens Antonio Cícero, na areia. “Foi Thereza para o conforto de sua casa. J
sou a ajudar na montagem de barracas de Serrinha. As paixões de sua juventude quem me ensinou a dirigir”, diz Mari- Thallys Braga
e na organização do espaço. Quando eram a fotografia e as canções de Emili- na. “Ela tinha um Fusca e saímos pela
voltou para casa, três dias depois, sua nha Borba e Angela Maria, que ouvia na cidade para as aulas de direção.”
mulher tinha empacotado suas coisas, Rádio Nacional. Seu desejo mais pro- As duas foram juntas ao primeiro show

ANDRÉS SANDOVAL_2023
encerrando de vez o casamento. De ime- fundo era conhecer Copacabana. de Caetano Veloso no Brasil depois do
diato, ele se mudou para o acampamen- Ela estava com 24 anos quando viajou exílio, em 1972. Thereza fez uma dupla
to, que daria origem à Vigília Lula Livre. ao Rio de Janeiro pela primeira vez, exposição do cantor durante a apresenta-
Magal passou a ser uma das lideranças acompanhada por amigos baianos (um ção de O que é que a baiana tem, no mo-
da vigília. Arranjou um emprego como deles dizia ser primo distante de João Gil- mento em que ele imitava os trejeitos de
advogado em um escritório particular e berto). Gostou tanto das orlas da Zona Carmen Miranda. Foi com essa imagem
despachava do próprio acampamento. Sul, cheias de garotas e garotos bonitos, que a fotógrafa conquistou a confiança de
Aproximando-se do entourage de Lula, fez que não quis voltar para casa. Fez chegar Guilherme Araújo, que geria as carreiras
amizade com a cúpula: Gleisi Hoffmann, à família o recado de que arranjaria mo- dos jovens artistas baianos – era o homem
presidente do pt, o fotógrafo Ricardo Stu- radia na cidade grande. Tinha acabado que, como diz Caetano em Verdade tro-
ckert e Rosângela da Silva, a Janja, hoje de se formar em enfermagem na Bahia e pical, “deve ser visto não apenas como
mulher de Lula. “O Stuckert me falava: logo conseguiu emprego no Hospital Fe- um empresário, mas [...] um coidealiza-
‘Quando o presidente sair, vai ser você deral de Ipanema, perto o suficiente da dor do movimento tropicalista”.
quem vai carregar ele’”, conta o advoga- praia e da vida musical da cidade.

C
do. Em 8 de novembro de 2019, assim Thereza logo comprou uma máquina om a licença do influente Araújo,
que Lula foi solto, Magal chegou a segu- fotográfica moderna para registrar os Thereza ganhou livre acesso aos
rar o líder petista pelas pernas para er- amigos. Numa noite de 1969, foi com eles artistas que o rodeavam. “Quando
guê-lo, mas foi detido pelo próprio Lula. assistir Maria Bethânia no musical Sob o cheguei ao Rio, ela já era
“Ele disse: ‘Por favor, meu filho, não faça signo de Bethânia, em Copacabana. Pu- conhecida como a fotó-
isso, que estou todo doído da cela.’” xou a câmera da bolsa e click, registrou a grafa da turma dos Do-

12
4 de 5 25/10/23 PROVA FINAL

UM ATEU NO CÍRIO
CLUBE DE REVISTAS
MONTANDO UM ARTISTA
Crônica de uma celebração A carreira ímpar de Luiz 83,
católica em Belém das pichações ao museu

O E
grupo de quatro romeiros deixou m uma manhã de agosto, Luiz dos
Bujaru, município no interior do Santos retirava seus quadros da pa-
Pará, por volta das quatro da tarde rede de uma galeria de São Paulo.
do dia 5 de outubro. Percorreu a pé es- Negro, 1,83 metro de altura, ele vestia
tradas ermas, parando à noite para des- uma calça de moletom e uma camiseta
cansar e rezar. Foram mais de 77 km até de algodão – roupas confortáveis, apro-
a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, priadas para esta que é a atividade menos
em Belém, onde chegou ao fim da tarde glamourosa da vida artística: a desmon-
de 6 de outubro. Vinha para o Círio de tagem de uma exposição. “Para mim,
Nazaré, uma das maiores celebrações isso é coisa rápida”, diz ele. Críticos, cura-
católicas do Brasil. dores e galeristas de São Paulo talvez
Maria José Oliveira, de 44 anos, trouxe não o conheçam como Luiz dos Santos,
de Bujaru uma fitinha para amarrar na mas certamente acompanham atenta-
grade da basílica. Queria agradecer uma mente as obras assinadas por Luiz 83.
graça alcançada. “Minha filha Rosinária O nome artístico refere-se a 1983, ano
tinha o sonho de entrar para a universi- de seu nascimento.
dade”, diz Oliveira, que trabalha no cultivo Divididos em três séries, os 24 tra-
de mandioca e açaí. “Queria um empre- Pará, pedalou 245 km para agradecer estava cheia. Era de lá que sairia a ima- balhos, que Luiz 83 embrulhou cuida-
go melhor, uma vida melhor. Mas minha pela filha bebê que se curou de uma en- gem da santa, carregada na berlinda por dosamente em plástico bolha há três
família não tem dinheiro para pagar.” fermidade nos olhos. E a freira Suzana meio de grossas cordas até a Basílica de meses, são bem representativos de sua
A mãe devota mandou a filha fazer o Maria da Silva, de Fortaleza, viajou um Nazaré. Um profissional da Cruz Verme- obra singular. São desenhos a guache
vestibular e pediu a intercessão de Nossa dia inteiro de ônibus. Professora na peri- lha advertiu: “Sair na corda é um sacri- ou nanquim sobre papel, de pequenas
Senhora de Nazaré. Rosinária passou em feria, pediu paz: “É um momento de fício enorme. É só para quem aguenta.” dimensões (a maior delas tinha 23,5 cm
ciências contábeis na Universidade Fede- muita violência. Vejo muitos jovens mor- O silêncio na praça foi rompido por um de comprimento por 32 cm de altura),
ral Rural da Amazônia. Oliveira tem dez rerem. Vim pedir também por mais vo- murmúrio coletivo quando a imagem de nos quais o artista retorce, estica ou
filhos, e Rosinária é a primeira da família cações sacerdotais.” Nossa Senhora de Nazaré despontou em fragmenta letras do alfabeto. Sete es-
a entrar em uma universidade. A mãe O Círio mobiliza toda a cidade. Nas meio à multidão. culturas – três em fibra de vidro, pinta-
também pediu forças para que a filha casas mais simples, há cartazes com a Uma mulher indígena pegou seu fi- das com tinta automotiva azul, e quatro
permaneça no curso. “Ela trabalha como imagem de Nossa Senhora de Nazaré. lho vestido de anjinho e o ergueu diante em bronze, com banho de pátina cinza
secretária de dia e estuda à noite”, diz. Nos prédios ricos, réplicas da santa dentro da berlinda, a uns 10 metros de dis- – completavam a exposição intitulada
“É puxado. O pai a leva num trecho de da berlinda e varandas enfeitadas com tância. Quando a santa passou, ela ani- Síntese da forma.
moto, depois ela ainda pega uma van.” balões brancos e amarelos. Nos elevado- nhou o filho no colo e seguiu a procissão. Quem observasse o conjunto poderia
res, os porteiros solicitam contribuições O marido se ofereceu para carregar o pensar que as explorações geométricas

N
os dias do Círio, Belém se prepara para a caixinha do almoço do Círio. Na menino. A mãe recusou, como se aque- de Luiz 83 prestam tributo a Amílcar de
para acolher os romeiros. Há postos sorveteria Cairu, nas Docas, a mais chi- le momento fosse um pacto de sacrifí- Castro (1920-2002), Franz Weissmann
de atendimento no entorno da basí- que e cara da cidade, um rapazote tenta cio que só dissesse respeito a mãe e (1911-2005) e Emanoel Araújo (1940-
lica. Na Casa de Plácido, católicos rece- impressionar as moças: “Se vocês quise- filho. O Círio emana uma força muito 2022). O autor, no entanto, esclarece
bem os romeiros para um lava-pés. São rem, eu boto vocês na varanda da Fafá, feminina e maternal. Mães carregam que suas primeiras influências são ou-
filas de voluntários diante de bacias com vai estar cheio de globais. Até a Rafa Ka- cabecinhas, perninhas, bracinhos, pul- tras. “Não é que eu não conhecia esses
água corrente, sabonete líquido, esponja limann vem este ano.” Num trecho estrei- mõezinhos feitos de parafina – a parte nomes, eu só não ficava pensando nis-
e hidratante. Os romeiros retiram seus to da Rua Gaspar Viana, onde se reuniam do corpo dos filhos que foi curada. Uma so”, diz Luiz 83. A sua conversa é com a
calçados. Quando não têm feridas, os pés alguns usuários de crack, uma mulher delas estendia pedaços de papelão para arte de rua: “A minha primeira referên-
doloridos são lavados, secos, massageados pedia a quem passava algum trocado para que a filha atravessasse a procissão de cia era o pixo, e minha preocupação era
e hidratados. Os pés com bolhas e feridas garantir seu prato de maniçoba. joelhos sobre o asfalto. como reinventar as formas do alfabeto.”
graves são encaminhados para um ambu- As ruas ficam cheias, o trânsito dá um No meio do caminho, na Igreja de

A
latório. A liturgia do lava-pés remete ao nó. Os ônibus chegam lotados da perife- Nossa Senhora das Mercês, um recado ntes de ser o artista Luiz 83, Mene-
episódio do Evangelho segundo São João ria. A cidade vive entre festas e sacrifícios. conservador do clero católico: “Nossa Se- zes foi o pichador conhecido como
em que Jesus lava os pés de seus discípu- Na noite do dia 7, um grupo de idosas ca- nhora de Nazaré, livrai-nos do mal do Mort City ou Negão. “Eu era cha-
los na última ceia. minhava com terços grossos de madeira e aborto.” A cada trecho da procissão, havia
mado assim pelos meus amigos, era tão
No salão paroquial, voluntários tam- velas nas mãos. Cantarolava uma música um palco com cantores animando os ro- estrutural que achava normal, só rindo
bém servem aos romeiros. Aferem a do Padre Zezinho: O povo de Deus era meiros. A música preferida dos paraenses mesmo”, comenta, sobre o segundo ape-
pressão, fazem massagens nas costas e rico de nada/Só tinha a esperança e o pó é uma canção animada que diz: Naza, lido. Mais tarde, ele adotou como nome
oferecem uma refeição de macarrão da estrada/Também sou Teu povo, Senhor. Nazarezinha, Nazaré Rainha/Mãe da ins, que pode ser tanto a sigla de “indu-
com frango e suco. Uma banda anima terra, Mãezinha/Me ajuda a cuidar. zindo a neurose em Sampa” como a abre-

N
os viajantes cansados com uma canção aquela noite, recebi uma ligação de Foram 3,7 km de procissão, com mais viação de “impacientes”.
que anuncia a chegada de Nossa Senho- minha mãe: “Consegui um empre- de 2 milhões de fiéis. A festividade só Luiz 83 começou a fazer pichações em
ra de Nazaré, a Rainha da Amazônia. go. Agradeça no Círio por mim.” terminou ao meio-dia com uma missa 1998, quando morava na Cidade Ademar,
Com o calor do Pará e as longas ca- Fazia um ano que ela estava desempre- dentro da basílica. O padre jogava água bairro da Zona Sul de São Paulo próximo
minhadas, os pés ficam feridos e com gada no Rio de Janeiro. Comprei cinco benta sobre os peregrinos. Muitos deles ao Aeroporto de Congonhas. Pela mesma
bolhas. Foi o que aconteceu com os de fitinhas de cetim por 6 reais, para amar- seguravam carteiras de trabalho. Segun- época, também experimentou o grafite.
Tabata Samanta do Rosário, do grupo rar na grade da basílica, como fez Maria do o Censo de 2010 (o ibge ainda não O jovem foi impactado por um estilo de
de Bujaru. Ela recebeu curativos e um José Oliveira. Mas estaria um ateu auto- divulgou dados sobre religião do Censo pixo nascido nas calçadas de São Paulo, o
pouco de hidratante no corpo queima- rizado a agradecer por terceiros? “Claro de 2022), há 123 milhões de católicos “tag reto”, que bebe da estética do punk
do de sol. Veio pedir pela saúde da mãe que sim”, disse Roberta, a motorista de no Brasil. E 8,6 milhões de desempre- rock e do gótico e se caracteriza por letras
idosa e da filha. Uber umbandista e devota de Nossa Se- gados. Alguns romeiros descansavam à longilíneas. Com o tempo, porém, ele
Também na fila do lava-pés, a dona nhora de Nazaré. “Nazinha reconhece sombra da catedral. sentiu que as convenções da arte de rua
de casa Elba Ferreira, de Santa Izabel do qualquer sacrifício.” Amarrar uma fiti- Na grade da basílica, amarrei uma estavam ficando estreitas. “No pixo e no
Pará, agradecia pela recuperação do fi- nha, no entanto, não é um sacrifício. fitinha amarela que dizia: “Fui ao Círio grafite, é tudo muito engessado. Você cria
lho que caiu da moto e quebrou o fêmur. Às sete da manhã de 8 de outubro, e lembrei de você.” J sua marca e fica ali repetindo, como se
A ciclista Renata Brito, de Bragança, no domingo, a praça da Catedral da Sé já Tiago Coelho fosse um carimbinho”, explica.

piauí_novembro 13
5 de 5 25/10/23 PROVA FINAL

A estratégia deu certo. Ele ainda não


CLUBE DE REVISTAS
lugar vago no grande balcão em formato pa de papelão, que um dia um funcioná-
está no centro do mundo artístico, mas de U – pois o Café Palhares não tem me- rio comparou ao formato de um chapéu.
vem conquistando espaço. Síntese da for- sas. Os clientes se acomodam em ban- Quem quer levar o prato para casa ainda
ma foi apresentada na galeria Arte 132, quetas redondas fixas do lado do balcão. hoje pede “um Kaol no chapéu”. A brin-
que fica em uma casa ampla em Moema, Já passa das 13h de uma quarta-feira cadeira evoluiu para a porção menor do
na Zona Sul de São Paulo. É um bairro de inverno, mas faz calor em Belo Hori- prato: os que estão com pouca fome pe-
de classe média e alta, mas deslocado do zonte. Em meio à aglomeração na porta dem “um Kaol no boné”. Ainda nos anos
circuito tradicional de arte, que se con- do Café Palhares, um grupo de seis turis- 80, houve a última mudança no Kaol:
centra nas regiões do Jardim Paulista, tas tenta uma missão impossível: sentar o torresmo entrou no prato.
Cerqueira César, Vila Madalena, Repú- lado a lado no balcão. Em pé na calçada,

D
blica e Barra Funda. Sua principal parti- João Lúcio Ferreira, de 67 anos, recepcio- epois da morte de João Ferreira, em
cipação em exposições coletivas se deu na os clientes com sua fala bem mineira. 2003, seus herdeiros concluíram
em 2022, na 37ª edição do Panorama da Desde a morte de seu pai, João Ferreira, que o restaurante precisava se reno-
Arte Brasileira, no Museu de Arte Moder- é João Lúcio quem administra o restau- var. Começaram inscrevendo o Kaol na
na de São Paulo. rante, ao lado do irmão, Luiz Fernando competição Comida di Buteco, criada
Ele agora está de volta à instituição, Ferreira. Na sua camiseta preta, o pro- em Belo Horizonte em 2000, e que de lá
com dezoito desenhos em papel e uma prietário traz estampadas as quatro letras se espalhou para outras cidades brasilei-
escultura em fibra de vidro na coletiva que tornaram o lugar famoso: Kaol. ras. O prato não ganhou, mas o Café
Mãos: 35 anos da mão afro-brasileira, Palhares saiu motivado pela boa avalia-

O
inaugurada em outubro e que se esten- Café Palhares foi fundado em 1938 ção no quesito “melhor atendimento”.
de até 3 de março. A exposição homena- e é um dos estabelecimentos mais Desde então, o estabelecimento entra
geia uma mostra pioneira no exame da antigos de Belo Horizonte, cidade na disputa todo ano, sempre com um
contribuição dos negros para a história inaugurada em 1897. Seus primeiros pro- petisco diferente. Em 2004, foi a “Feijoa-
da arte do país, Mão afro-brasileira, or- prietários foram os irmãos Antônio e dinha de camarão”, servida em uma tige-
ganizada por Emanoel Araujo em 1988. Newton Palhares, e o local no início fun- linha. A primeira vitória veio em 2009,
Em casa, a mãe, Marinalva Miranda A curadoria é assinada por Claudinei cionava mais como cafeteria do que co- com o “Karacol de pernil”, um tira-gosto
dos Santos, que havia ambicionado ser Roberto da Silva, que acompanha a pro- mo bar, servindo lanches leves. A família de pernil desfiado, ao molho de abaca-
atriz e trabalhava como empregada do- dução de Luiz 83 há onze anos. Ferreira adquiriu o negócio em 1944. xi. O Palhares venceu mais duas vezes:
méstica, não tinha muito tempo para a O artista já planeja seus passos para “A invenção do Kaol foi um acaso”, em 2021, com a “Bochecha de porco”,
formação cultural dos filhos. Viu a rotina 2024. “Tenho que focar em exposições explica João Lúcio. Não se sabe bem e em 2022, com o “Cambito”, uma pan-
apertar quando o marido partiu e ela fi- fora do país e conseguir uma galeria”, quando foi que os funcionários da noite turrilha de porco acompanhada de farofa
cou sozinha, responsável por quatro diz. A seriedade com que ele projeta começaram a aproveitar momentos de crocante e mandioca cozida. Neste ano,
crianças – Luiz era o mais velho. “Era sua carreira vem temperada por um folga para comer no balcão a refeição conquistou o quarto lugar, com o charu-
outro corre, outro ritmo da vida e da men- olhar irônico sobre o mundo da arte e composta de arroz, ovo frito (com gema to de galinhada ao molho agridoce, enro-
te”, lembra. O registro de nascimento do os clichês da crítica. Perguntado sobre mole, claro) e linguiça. “A linguiça era lado numa folha de couve.
artista inclui o sobrenome paterno Mene- a amplitude de sua produção, que in- a mesma do cachorro-quente”, diz João Entre as opções de lanches e petis-
zes, que ele prefere não usar por não ter clui também fotografia e performance, Lúcio, que começou a ajudar o pai no cos oferecidos no Café Palhares, estão
relações com o pai. Luiz 83 fala de si mesmo em tom debo- restaurante nos anos 1970. (No passado, o pastel de carne, a coxinha, a empa-
Em 2010, um amigo de longa data, chado: “Mêo, como dizem, me tornei o cachorro-quente do Palhares era fei- da, o pão de queijo recheado com pernil
Michel Onguer, chamou Luiz para in- um artista multimídia.” J to com linguiça. O lanche ainda existe, ou linguiça, a bochecha e panturrilha
tegrar a equipe de montadores de expo- Tatiane de Assis mas aparece agora no cardápio como de porco, além dos tira-gostos com as
sições de uma empresa. “Parecia um “pão com linguiça”.) opções de carne do Kaol. “O desperdí-
trampo massa, o Michel vivia viajando”, De olho na refeição reforçada dos cio é mínimo. Essa é uma das formas que
recorda. A profissão anterior de Luiz, A BASE É UMA SÓ funcionários, os clientes noturnos come- a gente ganha dinheiro”, explica Lúcio.
segurança de supermercado, era desgas- A história do Kaol, o prato que fez çaram a pedir aquele “prato feito”. João Mas é o Kaol que reina no gosto popu-
tante: “Os bandidos chegavam, assalta- a fama de um café mineiro Ferreira decidiu incorporá-lo ao cardá- lar: são servidos 250 por dia, em média.
vam a loja, te jogavam no chão, era pio. “Quando o balcão ficava cheio, o O aposentado Reginaldo Lobato fre-

C
muito risco. Eu já estava injuriado.” omo vai anunciado no título, Sam- pessoal comia o Kaol sentado no meio- quenta o restaurante há mais de trinta
Seu primeiro serviço como monta- ba de uma nota só, de Tom Jobim, fio”, conta João Lúcio. anos. Ele explica seu roteiro: “Começo
dor, ofício que desempenha até hoje, é estruturado a partir de uma úni- Nos anos 1960, o lugar era ponto de com um chopinho, depois peço uma
foi em um leilão da galeria Fortes Vi- ca nota – um mi, na primeira gravação, encontro de profissionais do rádio, que pinguinha e aí o Kaol, o tradicional com
laça (hoje, Fortes D’Aloia & Gabriel). de João Gilberto, em 1960. Outras notas criaram o nome Kaol, grafado com K, linguiça.” Aos 66 anos, Lobato espera
Ali encontrou a oportunidade para ver entram na canção, mas “a base é uma para dar algum charme (o crédito da in- que as próximas gerações da família
de perto obras que só poderia conhe- só”, esclarece a letra de Newton Men- venção é atribuído sobretudo ao radialis- mantenham viva a tradição: “Meus netos
cer em livros. “Tem colecionador de donça. Há sete décadas, o Café Palhares, ta e compositor Rômulo Paes). O nome são novos, mas daqui a pouco trago eles
arte no Brasil, os grandes, que tem no Centro de Belo Horizonte, oferece pegou entre os belo-horizontinos. “Na aqui. E começa a iniciação. Se é mineiro,
acervo muito melhor que o de muitos uma versão culinária desse clássico da década de 80, eu troquei uma placa e tem que comer o Kaol do Palhares.” J
museus”, diz Luiz 83. bossa nova: o cardápio traz uma única botei com C, mas a reclamação foi ge- Pedro Tavares
opção de prato no almoço, o Kaol, base ral”, diz Lúcio, rindo.

D
esde 2006, ele frequentava expo- para pequenas modificações que foram Em 1969, o Café Palhares passou por
sições em galerias como a Cho- surgindo ao longo dos anos. Uma peque- uma reforma, e o Kaol também se trans-
que Cultural. “Já via amigos da na placa no balcão divulga a combina- formou, com o acréscimo de couve e fa-
rua produzindo obras de arte. Então, eu ção muito simples e bem brasileira do rofa. Nas sucessivas crises econômicas
entrei também e já fazia umas escultu- Kaol: arroz, ovo frito e linguiça. A suges- dos anos 1980, o estabelecimento diversi-
rinhas.” Mas foi o trabalho de montador tão de acompanhamento é a cachaça ficou as opções, com carnes mais baratas
que o motivou a se profissionalizar. mineira. Daí vem o nome do prato: o K do que a linguiça: dobradinha, pernil,
Autodidata, Luiz 83 se impôs, a partir representa a cachaça, e as letras seguin- língua ou carne cozida. Mas os fregueses
de 2010, um prazo para desenvolver sua tes são as iniciais dos três ingredientes. seguiram preferindo a linguiça. Hoje,
produção artística: quatro anos, duração “Mesa para uma pessoa, por favor”, essas opções, além de fazer parte do
ANDRÉS SANDOVAL_2023

típica de um curso universitário de artes solicita um cliente na hora do almoço, Kaol, são servidas como tira-gostos.
visuais. “Arregacei as mangas, pesquisei quando o restaurante está lotado. “Pode Na mesma época, foi consagrada ou-
muito, experimentei. Focava na produção sentar ali, entre aqueles dois rapazes”, tra expressão empregada por clientes as-
e não na venda. Também buscava lugares responde um dos atendentes de camisa síduos. O Kaol era servido para viagem
para expor, para construir um portfólio.” e boina vermelhas, apontando para o numa embalagem de alumínio com tam-

14
CLUBE DE REVISTAS
MINISTÉRIO DA CULTURA, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, POR MEIO DA SECRETARIA DA CULTURA, ECONOMIA E INDÚSTRIA CRIATIVAS E FUNDAÇÃO OSESP APRESENTAM
1 de 2 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
informe publicitário apresentado por

“Eu não me sinto uma pessoa boa mais”


Jaloo relembra sua carreira musical, conta sobre o novo álbum e explora sua feminilidade

Autodidata e multiartista, Jaloo volta à cena musical após um hiato de quatro anos, em novo disco 100% autoral. Após os
discos #1, de 2015, trabalho que aborda o nascimento e a infância da artista e a retrata como pessoa andrógina; e ft.(pt.1),
que representa o amadurecimento e exalta a masculinidade de Jaloo; o novo álbum Mau é uma grande celebração ao femi-
nino e coloca no centro temas como o prazer, a liberdade e o risco.
Plataforma de acesso global, o YouTube revolucionou a criação e distribuição musical, impactando positivamente o processo criati-
vo dos artistas e a experiência de fãs, aproximando-os e transformando cada play em uma jornada única de expressão criativa, e que
também abre portas para artistas independentes alcançarem um público mundial: Jaloo é um exemplo disso. Ela foi uma das criado-
ras destacadas no Relatório de Impacto da plataforma, lançado em agosto deste ano, com dados de sua contribuição para a economia
criativa do Brasil em 2022, quando o YouTube ajudou a gerar mais de 140 mil empregos e colaborou com 4,55 bilhões de reais para o
pib brasileiro. No mês seguinte, em setembro, o primeiro clipe (que dá nome ao álbum) foi publicado em seu canal @JalooMusic.
Em depoimento ao YouTube, Jaloo fala sobre sua jornada de autoconhecimento, seu processo criativo, relacionamento
com fãs e novo trabalho.

Não que eu tenha ido em- qual software utilizar para edição de áu- faz tudo sozinha”. Decidi partir para tra- BOA, MÁ, BOA, MÁ
bora, mas estou de volta. dio, instalei no computador de casa e co- balhos colaborativos. E daí vieram Céu Nas dez faixas de Mau, você tem a mistu-
Depois de quatro anos de mecei a trabalhar, como até hoje, do meu azul, com mc Tha, que acabou sendo o ra de referências como hyperpop, ska,
parcerias felizes, meu terceiro álbum quarto. A plataforma continua sendo vídeo mais visto do meu canal, o traba- calypso e phonk, um ritmo vindo da Rús-
solo, Mau, está na rede. Como pensado minha enciclopédia, aliás: não só aprendi lho com Gabi Amarantos, no álbum dela sia. Você me verá sendo desbocada em
desde o início, este é um projeto imagi- a fazer música no YouTube, mas também Purakê, e Os amantes, com Leo Cher- Mau, safada e triste no forró Pra que
nado e desenvolvido como uma trilogia formas de cozinhar abobrinha e, esses mont e Arthur Kunz. amor, lembrando como foram os últimos
– começa com o disco #1, em 2015, se- dias atrás, a colocar a pia do banheiro. Foi uma conexão muito verdadeira anos, fora da carreira solo, em Ocitocina.
guido por ft.(pt.1), em 2019, e agora Comecei em 2012, com mashups e com todo mundo – não tinha uma grava- E talvez alguém esteja se perguntando
Mau, em 2023. É eletrônico, brasileiro remixes, que saíram no ep Female & bre- dora querendo me colocar como grande por que decidi chamar o disco de Mau.
e urgente. É meu terceiro nascer, musi- ga. Em 2013, foi a vez do ep Couve, com artista para fazer alguma coisa, dominan- Tem a ver com um medo que precisei en-
calmente e como pessoa. E é íntimo. covers. Foi aí que produzi meu primeiro do os outros. E continuei aprendendo – frentar: já me senti má.
Quando digo que Mau é íntimo, digo clipe, o cover de Baby, de Caetano, mais como produzir outras pessoas, trabalhar Parte do público criou uma adoração
bem literalmente: ele nasce em minha in- famoso na voz de Gal. O financiamento junto com elas, e isso me levou a mais em torno de mim, e eu nem sempre pude
timidade. É um disco feito no meu quar- foi do meu bolso e custou o preço de uma alguns tutoriais no YouTube. corresponder. Às vezes, não estava num
to, no meu computador. É uma volta ao pizza: alugar as bicicletas que a gente pe- Às vezes ainda penso se o disco atual dia bom, ou não dava a resposta que es-
jeito solitário, faça-você-mesmo, com que dala e filmar numa tarde. não deveria ter saído mais tarde, acho peravam de mim. Então via aquelas caras
comecei: as palavras, o som e a concep- Quando fui ver, tinha virado artis- que é algo à frente do tempo da socieda- de desapontamento. Isso me machucava
ção e direção dos clipes, tudo é autoral. ta. A própria Gal notou o clipe e, daí, o de, mas é o meu – em mim, era e é algo muito, ficava pensando “Meu Deus, aca-
E, para dar uma ideia do que um disco saudoso Miranda, que produziria meu urgente. O conceito pensado para esse bei de derrubar o castelo de cartas que
íntimo desse jeito é, vou ter que abrir um primeiro disco autoral, e o começo da terceiro álbum sempre foi ser um disco essa pessoa construiu em volta de mim”.
pouquinho da intimidade aqui. trilogia, o #1, de 2015. Foi quando tam- feminino, e eu não via a hora de viver E disso veio um medo de mim mesma,
Nasci em 1987 em Castanhal, cidade bém abri meu canal do YouTube, no qual o feminino que estava preso em mim há de não me sentir mais uma pessoa boa.
com 150 mil habitantes a uma hora de Be- me comunico com os fãs até hoje e onde muito tempo. Isso é Mau, e não é uma Tinha uma sombra grotesca que me
lém do Pará. Meu pai trabalhou por um meus clipes saem primeiro. escolha apenas estética – é real, é muito acompanhava, e chegou um momento em
tempo como vigia noturno até que come- quem eu sou. que decidi que não conseguia mais viver
çou a adoecer. Minha mãe sempre foi pro- AS FASES DA TRILOGIA Uma das formas que as pessoas se re- assim. Viver sem amar a mim mesma.
fessora primária e sobrevivemos por anos Cada um dos meus álbuns representa um ferem a mim é “pessoa não binária”, mas E então eu tive que dar um salto, de
com o salário dela, contando moedinhas. aspecto e uma fase da vida e #1 é sobre a esqueceram de me perguntar antes. Acho não ter mais medo de desapontar as pes-
Por quase vinte anos, vivemos sem água infância. Mostra a questão de quem ain- que não é por aí: eu me identifico por soas, porque o que acabam dizendo é, no
encanada. Quando eu tinha 18 anos, mi- da não entrou na puberdade. Teve gente gênero fluido. Não binariedade, entendo, fim das contas, muito mais sobre elas do
nha família enfim conseguiu seu primeiro que me viu quase como um anjo, como é não afirmar os gêneros, um lugar de que sobre a gente. E ainda celebrando
computador. Em 2008, passei para uma se não tivesse sexo e fosse um tipo de bo- não masculino nem feminino. essa sombra, da Jaloo para o público.
universidade privada, em publicidade. neca – você olha ali e não tem nada. Eu gosto de ser macho e fêmea – e falo Não acho mais ela grotesca, eu acho ela
Foi então que minha vida começou a Eu achava divertido isso, mas, no se- logo assim. Hoje, meus amigos usam o tão importante quanto a luz que encon-
tomar o rumo atual. Nessa época, a gen- gundo disco, ft. de 2019, quis partir para pronome feminino, mas realmente é uma trei em ser eu mesma. Estou nesse lugar
te nem tinha internet em casa ainda. Co- temas mais adultos. E foi um choque. As questão que não me atravessa. Não tenho de curtir 100% de quem eu sou, com
mecei a usar a rede da faculdade, e daí pessoas ficaram assustadas de ver aquele disforia de gênero: gosto muito do meni- responsabilidade.
passei a ter uma relação mais íntima com menino, aquele anjo, de repente como no que eu já fui, acho ele um gato. Hoje E não me sinto mais uma pessoa boa
a música. Bem… comecei a ouvir músi- um homem de cabeça raspada. O ft. foi me acho uma gata e estou celebrando isso. nem má. E então um dia fiquei repetindo
ca. E decidi que queria fazer aquilo. Só meu momento de exaltar o masculino. Estou me relacionando com pessoas dife- a mim mesma: “boa... má… boa… má”
não tinha a menor ideia de como. Daí veio o que chamam de hiato. Eu rentes daquelas com que me relacionava como se fosse um sorteio e nisso escolhi
E fui aprender por conta própria, olhei muito para dentro e falei “Não, não antes. Acho divertido a gente nascer de Mau como nome do disco. Falando sobre
com o YouTube. Assisti a tutoriais sobre aguento mais ser essa pessoa egoísta que novo, e foi o que fiz e acabou no disco. isso de fazer as pazes com as nossas sombras.
2 de 2 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS

CAIA RAMALHO_2023
Enfim, teve o dia de ser o anjinho, e
agora estou na fase “Por que não ser um
pouco Diaba?”. Abro com Mau dizendo
“você nem sabe o que é ser gente”. Quem
sabe, né? E daí falo “pau” e não tenho
vergonha de falar abertamente. Não te-
nho vergonha do meu cérebro ou do meu
corpo inteiro. É uma música sobre saúde
mental – ela usa essa linguagem chula,
mas tem um subtexto adulto, sobre o que
é ser gente e sobre estar vivo.
A segunda faixa é Quero te ver go-
zar. O título é escrachado também e, por
incrível que pareça, não fala em sexo. Ela
fala do gozo que alguém que eu não via
há muito tempo sentiu – e da minha tris-
teza em vê-la feliz. Isso é ser má?
Nessas duas primeiras músicas, que saí-
ram antes do resto do disco, no canal, notei
que as pessoas se apegaram às palavras chu-
las. Mas é usar a linguagem do sexo para
falar de outras coisas, e trazer um pouco
de coragem. Vencer aquele medo, como eu
disse. Não corresponder a expectativas.
E falando em interpretações, tem tam-
bém A verdade é que a cidade vai me ma-
tar, que é outra música que às vezes está
sendo entendida de um jeito que não é o
meu, como se fosse um manifesto contra
São Paulo, onde vivo desde 2013.
Eu tenho uma relação intensa com a ci-
dade de São Paulo. Eu amo São Paulo, amo
correr na usp no pôr do sol, adoro ir para
um samba no domingo. Eu prefiro usar
transporte coletivo, não ficar presa num
carro de aplicativo no meio do trânsito. Mas
observo as agruras não só de mim, mas de
outros artistas que vieram de outros lugares
– essa coisa de ser engolida pela cidade.
Sempre tem essa coisa do sudestino me
ver como uma paraense “com uma pega-
da do tecnobrega e que coloca carimbó na
música”, como algo de indígena high tech,
me colocar na figura de pessoa exótica,
enquanto eu sempre me senti cidadã de
lugar nenhum. Eu faço a minha música,
e é isso. Foi no YouTube que minha au-
diência pôde se conectar comigo sem essa
imagem preconcebida, pelos sentimentos
de alguém que é nortista e faz parte de
uma diversidade de gênero.
Enfim, em Mau, tenho que fazer o que
eu quero e nesse lugar de fazer o que eu
quero, decidi soltar um pouquinho mais a
minha boca, ser um pouquinho malcria-
da, menos educada, menos anjo. E acho
que é a essa figura que eu estou mais ape-
gada atualmente. E, no final das contas,
acho que estão amando o resultado.
Agradecida por esse espaço, vou apro-
veitar para finalizar com uma ideia que
ando tendo: depois de aprender tanta coi-
sa, está chegando minha hora de ensinar.
Em breve, no meu canal do YouTube, pla-
nejo contar sobre como as músicas foram
feitas e postar eu mesma tutoriais com o
que aprendi nesses anos. Me aguardem. Foto de divulgação do novo disco Mau
1 de 1 27/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
DIEGO BRESANI_2023
anais da guerra e da diplomacia I

Celso Amorim: “Seja a rodada do Uruguai, a de Doha, o Irã… me perguntam: ‘Você vai mesmo fazer isso? Não tem chance!’ Mas eu não olho para o lado da escuridão. Eu olho para a brecha”

18
1 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS

“EU SOU UM PRÍNCIPE”


O reino e o poder de Celso Amorim

ANA CLARA COSTA

O
Natal de 2008 mal havia munidade internacional estava apática Tzipi Livni, considerasse fazer o encon- costume. Levou poucos minutos para
passado quando o então diante do que Lula classificou como tro, mas ela desconversou no início e foi dar-se conta da gravidade do atentado
chanceler Celso Amorim, “carnificina” dos palestinos. O presi- assertiva no fim: não negociaria com o terrorista do Hamas contra Israel.
que passava o recesso de fim dente cogitou que se convocasse uma Hamas, a organização que acabara de A situação, agora, era mais delicada,
de ano com a família no Rio “reunião especial” dos países do grupo assumir o controle da Faixa de Gaza. tanto pelo risco de uma escalada bélica,
de Janeiro, foi chamado às pressas para de Annapolis para tratar do tema. Amorim ainda pediu a Rice que ela quanto pela presença de brasileiros na
Brasília. Sua missão era gerir uma crise Em Brasília, Amorim telefonou pa- tentasse convencer Israel a um cessar- região. No dia dos ataques, 7 de outu-
que estourara a mais de 10 mil km dali. ra todo mundo entre 30 de dezembro e fogo. Não resolveu. Os ataques duraram bro, Lula convalescia de uma cirurgia
No dia 27 de dezembro, Israel bombar- 2 de janeiro. Acionou Bernard Kouch- 22 dias e resultaram na morte de treze nos quadris em Brasília. O chanceler
deara a Faixa de Gaza, o enclave pales- ner, então chanceler da França, e Con- israelenses e mais de mil palestinos. Mauro Vieira dava as primeiras orien-
tino controlado pelo Hamas, em meio doleezza Rice, a secretária de Estado No início do mês passado, quinze tações enquanto aguardava uma cone-
às tratativas para um acordo de paz, americana. Falou com Ban Ki-moon, anos depois daquele conflito, Amorim xão no aeroporto de Doha, capital do
iniciadas um ano antes na Cúpula de então secretário-geral da onu, e com estava novamente no Rio de Janeiro, des- Catar, a caminho de uma visita oficial
Annapolis, nos Estados Unidos. Mahmoud Abbas, que ainda hoje presi- ta vez como assessor especial de Lula. à Indonésia e ao Camboja. Sozinho no
O Brasil não tinha papel relevante de a Autoridade Palestina. Lula passava No Rio, assistiu à estreia de Utopia tropi- Rio, Amorim começou a tomar as pri-
nas negociações de paz no Oriente o Réveillon em Fernando de Noronha. cal, documentário que retrata suas con- meiras providências.
Médio, mas o presidente Lula, então Em suas conversas, Amorim perce- versas com o linguista Noam Chomsky, De início, ajudou Lula a fazer uma
no exercício de seu segundo mandato, beu que havia simpatia pela iniciativa filmado por seu filho, o cineasta João nota, divulgada nas redes sociais. Como
estava indignado. Primeiro, porque Is- do Brasil, mas o país carecia de força Amorim. Na manhã do dia seguinte, o Itamaraty fora criticado pela brandura
rael ignorara os compromissos selados para convocar uma reunião. Fez um hospedado em um hotel em Copacaba- do seu comunicado, no qual não fazia
em Annapolis. Segundo, porque a co- apelo para que a chanceler de Israel, na, acordou às seis da manhã, como de menção a “terrorismo”, Lula resolveu

piauí_novembro 19
2 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
e acrescentou que o grupo “podia oca- teu como, ao final de dois meses de
sionar uma morte aqui e outra ali, mas trabalho, quando os relatórios ficaram
ANDRÉ DAHMER_2023

não representava uma ameaça ao Esta- prontos, ainda orientou Padovan a en-
do de Israel”. Amorim diz que, na épo- viar o material à imprensa antes que os
ca, aconselhou as autoridades israelenses membros do Conselho o vissem. Ele
a enfraquecer o Hamas e deu o cami- temia que os Estados Unidos mudas-
nho: “A melhor maneira é fortalecer a sem o texto. “Ele disse: ‘Se chegar na
Autoridade Palestina. Mostrar aos pa- imprensa, não dá para mudar mais’. Aí
lestinos e ao mundo que o processo de passamos para o New York Times”, re-
paz será importante.” lembra a diplomata. Deu certo.
Além de dar conselhos para Israel, Amorim conta que a pauta econômi-
Amorim tentou encontrar-se com mem- ca era sempre a que provocara mais des-
bros do Hamas em 2009, na tentativa de conforto nos tucanos. “Quando voltei
atuar como uma espécie de mediador para Genebra, na omc, eu sentia isso de
do conflito. Ele narrou esse episódio maneira mais evidente. Diziam: ‘Olha,
em detalhes no seu livro Teerã, Ramalá não faz, não irrita, não briga...’” Uma das
e Doha: memórias da política externa razões para a suposta timidez da diplo-
ativa e altiva, de 2015. Segundo o seu macia da época era a tese do “excedente
relato, para que haja uma mediação, as de poder”. Acreditava-se que, para voos
duas partes em disputa precisam avali- mais ambiciosos, o Brasil precisava do
zar o mediador. Mas o encontro não poder advindo da pujança econômica
ocorreu porque, embora a Autoridade ou do poderio militar. Como o país não
Palestina tivesse demonstrado interesse tinha nem uma coisa, nem outra, o Ita-
na iniciativa brasileira, o primeiro-mi- maraty avaliava que, quanto menos
nistro de Israel, Benjamin Netanyahu, confusão houvesse nas relações econô-
com quem ele também acabara de se micas com outros países, melhor – uma
encontrar, “não mordeu a isca”. situação que exasperava Amorim, di-
plomata de perfil altamente combativo.

M
esmo antes de tudo isso – acon- Apesar das discordâncias, ele diz guar-
selhar Israel, articular encontro dar boas recordações de fhc. Não o
com o Hamas, fazer negocia- considerava pessoalmente “acanhado”
ser mais duro. Na sua nota, mencionou Nos dias seguintes ao conflito, ele ções nucleares com o Irã, ser enviado no âmbito da política externa, mas
os “ataques terroristas” e reafirmou seu conversou com autoridades da Arábia de paz a Moscou e Kiev, e tantas outras achava que esse era o caso de seus chan-
repúdio “ao terrorismo em qualquer de Saudita, do Egito, da China e da Tur- missões para lá de ambiciosas –, Celso celeres, Celso Lafer e Luiz Felipe Lam-
suas formas”. Dado seu histórico de ami- quia, além do secretário-geral da Liga Luiz Nunes Amorim, hoje com 81 anos, preia, já falecido.
zade com a Autoridade Palestina, pediu dos Estados Árabes, Ahmed Aboul fluente em cinco idiomas, pai de qua- Foi nos governos do pt, no entanto,
negociações que garantam “a existên- Gheit, que foi chanceler do Egito no tro filhos, avô de dez netos, teve uma que Amorim chegou ao apogeu. Ao ser-
cia de um Estado palestino economica- mesmo período em que Amorim foi trajetória única como diplomata, ante- vir durante oito anos como ministro de
mente viável, convivendo pacificamente chanceler do Brasil. “Algumas dessas rior à ascensão do pt ao poder. Foi mi- Lula, tornou-se o chanceler que mais
com Israel dentro de fronteiras seguras pessoas são meus velhos amigos”, diz. nistro das Relações Exteriores no tempo permaneceu no cargo na histó-
para ambos os lados”. Uma delas é Faiza Abou el-Naga, asses- governo de Itamar Franco durante um ria, superando o Barão do Rio Branco.
Como ocorrera no passado, Amorim sora de segurança do presidente egípcio ano e meio. No governo de Fernando Na primeira gestão de Dilma Rousseff,
deixou o Rio e voou para Brasília. Pas- Abdel Fattah Khalil al-Sissi. Ela foi em- Henrique Cardoso, foi embaixador em chefiou a Defesa, durante o período em
sou dias de exaustão. “Há vários fins de baixadora em Genebra ao mesmo tem- Londres e representante do Brasil na que se instalou a Comissão Nacional da
semana que eu não descanso”, disse ele, po que ele, trinta anos atrás. “É alguém Organização Mundial do Comércio Verdade, destinada a investigar as viola-
numa conversa telefônica na manhã de com quem sempre tive contato.” Nessa (omc), em Genebra, e na onu, em ções de direitos humanos ocorridas du-
15 de outubro, domingo. Foi nossa ter- conversa, transcorrida em 12 de outu- Nova York – todos postos cobiçados na rante a ditadura militar. Em tom de
ceira conversa no decorrer da apuração bro, Naga revelou imbricações do con- carreira diplomática. ironia, chegou a comentar com Lula
desta reportagem e a primeira por tele- flito que chamaram sua atenção. Sob fhc, embora fosse um diploma- que, no governo dele, pôde ser o “guer-
fone. Antes, em agosto, conversamos “Eles têm uma preocupação real de, ta progressista no Itamaraty, uma insti- reiro”, mas no governo de Dilma teve
em Joanesburgo, na África do Sul, du- abruptamente, ter 1 milhão de pessoas tuição então gerida por profissionais que ser o “diplomata”.
rante a Cúpula dos Brics, o bloco for- a mais no país. Não é uma tarefa para a alinhados com os tucanos, Amorim Sob Lula, enquanto comandava a
mado por Brasil, Rússia, Índia, China e qual eles estejam organizados e pos- nunca foi prejudicado. Mas achava o burocracia do Itamaraty, Amorim deu
África do Sul, que ganhou a adesão de sam cumprir com tranquilidade”, relata. Itamaraty “acanhado”. “Eles me davam o tom da diplomacia brasileira, que
outros seis países. Depois, voltamos a “E há uma coisa difícil, polêmica, que razoável liberdade. Mas eu fiz coisas na atingiu uma relevância mundial inédi-
nos falar no Rio de Janeiro, em seu ho- às vezes não dá para compreender direi- onu que eles aceitavam porque ficava ta até então, ainda que à frente de mis-
tel, na véspera dos ataques do Hamas. to, mas há uma preocupação de não le- difícil não aceitar”, diz. Uma delas, ele sões nem sempre bem-sucedidas. Em
No domingo, sua voz transmitia preo- gitimar o desejo de Israel de expulsar recorda, foi sua sugestão de criar os 2009, um artigo publicado na revista
cupação. Naquela altura, as múltiplas uma parte enorme da população pales- “painéis do Iraque”, em 1999, que con- Foreign Policy classificou-o como “o
conversas com autoridades do Oriente tina de Gaza. Eles estão tratando isso cluíram que Bagdá não tinha armas de melhor chanceler do mundo”. Na omc,
Médio – conversas de Lula, de Amorim como uma segunda Nakba”, disse Amo- destruição em massa. A embaixadora em Genebra, sua habilidade de nego-
e do chanceler Mauro Vieira – ainda rim. A palavra árabe significa “catástro- Gisela Padovan, que trabalhava na ciação é até hoje evocada como parâ-
não haviam resultado na abertura da fe” ou “desastre” e é usada para designar equipe de Amorim na onu, relembra a metro de excelência. Na onu, em Nova
fronteira entre a Faixa de Gaza e o Egi- o grande êxodo de 1948, quando 700 mil ousadia daqueles dias. “O Brasil, um York, suas intervenções sobre temas
to para a passagem dos estrangeiros, palestinos deixaram suas casas durante a membro não permanente no Conselho relacionados à defesa e segurança são
brasileiros incluídos. O conflito, em vez Guerra Árabe-Israelense. de Segurança, um país em desenvolvi- ainda lembradas, como no caso dos
de refluir, parecia recrudescer. “Nunca Antes de encerrarmos o telefonema, mento, ia se meter num tema destina- “painéis do Iraque”. Entre seus amigos
vivi nada tão perigoso em termos de Amorim recordou uma conversa que do às grandes potências, aos membros estão Sergey Lavrov, atual chanceler
alastramento como agora”, disse Amo- teve com o então chanceler israelense permanentes? Então era uma coisa ar- russo, e Jake Sullivan, assessor de segu-
rim, com base nas seis décadas de car- Silvan Shalom, numa viagem que fez ao riscada.” Em Brasília, a chancelaria rança nacional de Joe Biden.
reira diplomática, incluindo os treze Oriente Médio como ministro, em 2005. não gostou da ideia de Amorim. “No Na diplomacia, nenhum outro egres-
anos em que foi ministro de Estado – a Shalom disse ao brasileiro acreditar que governo brasileiro de então, pensava- so do Instituto Rio Branco alcançou tal
gestão ministerial mais longeva do pe- o Hamas era um problema maior para a se: ‘Por que você vai se meter no jogo nível de poder, embora sua influência
ríodo democrático. Autoridade Palestina do que para Israel dos grandes?’” Amorim não só se me- sobre Lula nunca se dera sem concor-

20
3 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

rentes. Marco Aurélio Garcia, professor Depois de algumas colisões, estabelece-


CLUBE DE REVISTAS
A política externa “ativa e altiva” de aglutinar outros países com interesses
do Departamento de História da Uni- ram-se os termos da convivência: Garcia Amorim nunca teve como premissa a comuns, fosse na omc, na onu ou nas
camp, foi assessor especial nos dois pri- tentaria costurar um bloco político sul- antipatia pelo Ocidente, mas, atuando relações multilaterais, liderando ini-
meiros mandatos de Lula, e também americano liderado pelo Brasil e Amo- nas brechas, ele desenvolveu um mode- ciativas como o Ibas (grupo composto
assessorou Dilma até o impeachment. rim tentaria conquistar o mundo. Cada lo peculiar: conquistar um nível de con- por Índia, Brasil e África do Sul, cria-
Com a experiência de quem se exilou um a seu modo, e dentro de certos limi- fiança que lhe permita servir de ponte do por Amorim), a Cúpula América do
no Chile durante a ditadura, Garcia era tes, atingiu seus objetivos. Garcia mor- entre as potências ocidentais, com as Sul - Países Árabes (Aspa), pensada por
o articulador das relações políticas do reu de um infarto em 2017. quais por tradição o Brasil se identifica, Lula, ou a ampliação do Mercosul.
Brasil com os países da América Latina, e as nações mais distantes desse eixo. Tudo, de preferência, conduzido com

N
sobretudo os governados pela esquerda. os últimos anos de Celso Amorim Nesse jogo de movimentos sutis, o país o pragmatismo de Amorim.
Como também passara parte de seu exí- como chanceler – e até os dias de precisa colocar-se como “um dos gran- O acordo com a Venezuela, anun-
lio na França, tinha conexões com os hoje –, o norte do seu trabalho foi des”, e não como “aliado dos grandes”, ciado há pouco, é um exemplo de como
socialistas franceses, espanhóis e portu- e continua sendo tornar o Brasil um ator para não gerar desconfianças – e nem passou a funcionar a plataforma de po-
gueses. Era tão influente que se mudou de destaque nos grandes temas geopolí- pode adotar uma postura excessivamen- lítica externa da dupla Lula-Amorim
para o Peru em 2011 para ajudar na ticos, mesmo naqueles em que o país te belicosa com parceiros do Ocidente, na região. Embora as tratativas entre
campanha contra a candidata da direita, não tem interesses diretos. Como chan- pondo em risco suas próprias relações. Caracas e Washington para a libertação
Keiko Fujimori, então a favorita. O na- celer de Lula, envolveu-se no conflito Por isso, Lula, sobretudo em seu pri- de presos políticos e a suspensão de em-
cionalista Ollanta Humala acabou ven- em Gaza, na crise no Iraque, nas rela- meiro mandato, fazia críticas públicas bargos tenha sido negociada entre os
cendo o pleito, e o pt considerou que a ções entre Síria e Israel e até na media- a Washington, mas só até certo ponto. dois países, coube ao Brasil sinalizar
ajuda do enviado petista fora decisiva. ção de um acordo de paz entre o Irã e o Jogava com o fato de que os Estados que Nicolás Maduro estava disposto a
A relação entre Amorim e Garcia Ocidente, em parceria com a Turquia. Unidos, depois de décadas apoiando ceder. Primeiro, Amorim foi a Caracas
nunca foi ruim, mas passou por percal- Como assessor de Lula, colocou sua di- ditaduras latino-americanas, haviam em março, para sentir o clima. Depois,
ços. Na mesma época em que Amorim gital como negociador na guerra da deixado esse passado para trás e valori- convidou Maduro para a reunião dos
era chanceler, Garcia era conselheiro Ucrânia, valendo-se das boas relações zavam sua gestão estável e democrática presidentes de países sul-americanos em
internacional de Lula, de cuja amizade com a Rússia e sua amizade com Lavrov. numa América do Sul permeada por Brasília, em maio. A intenção do gover-
privava havia décadas. Garcia chamava Na sua visão, um país com as dimensões governos imprevisíveis ou com tendên- no, em especial do ex-chanceler, era
o petista por um apelido carinhoso territoriais do Brasil, mesmo sem arsenal cias autoritárias. fazer um gesto de normalização das re-
(“Lulinha”), Amorim sempre preferiu militar ou economia pujante, tem de es- Tradicionalmente, o Brasil condu- lações da Venezuela com o restante do
ater-se à hierarquia (“presidente” e “se- tar presente nas discussões globais, de zia uma diplomacia independente e continente, e assim enviar uma mensa-
nhor”). No início, ainda que nenhum preferência sem alinhamento com ne- “não alinhada”, cujo interesse não ia gem de cooperação aos Estados Unidos
dos dois tivesse disposição para o fogo nhum lado – estratégia que resulta em além de cacifar-se como uma liderança e à União Europeia.
amigo, uma disputa velada se impôs. certa indulgência com governos e regi- regional. A política externa concebida Um episódio recente ilustra o prag-
Quem, afinal, exerceria maior influên- mes identificados como antiocidentais por Amorim era mais ambiciosa. Além matismo de Amorim. Um advogado
cia sobre o chefe em política externa? ou antiamericanos. da liderança regional, o país passou a bem relacionado de Brasília, com inte-



ESCRITA CRIATIVA
    
 


  
 
  ­€  
piauí_novembro 21
4 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

resses comerciais na Coreia do Sul, per- ça em comércio levou o país a outras


CLUBE DE REVISTAS
cia. O chefe do grupo é o diplomata um interlocutor do governo, Amorim
guntou ao diplomata se Lula anunciaria plataformas, mais políticas, como a Audo Faleiro, que trabalhou com Gar- sempre soube interpretar as vontades de
uma posição em favor de determinado questão do Irã. “O que eu retenho dessa cia nos governos Lula e Dilma e é um Lula e enquadrá-las numa chave diplo-
candidato na disputa presidencial do época é um desejo do Brasil, do Celso, dos incumbidos de escrever os discur- mática, além de ser um dos únicos
país asiático – considerando que tomou de ser construtor de uma ordem interna- sos de Lula. Sobre sua mesa, Amorim membros do gabinete a – diplomatica-
partido, em público, do candidato Ga- cional que levasse muito em conta os guarda um pedaço de mármore que mente – ousar dizer “não” ao presidente
briel Boric, que acabou ganhando a elei- países emergentes.” ganhou de presente de um grupo de quando avalia necessário.
ção no Chile. Claro que não, respondeu deputados democratas americanos li- Em julho, durante a cúpula da Co-

D
Amorim. Disse que no Chile havia um ez passos separam a sala de Celso derados por Alexandria Ocasio-Cortez, munidade de Estados Latino-Ameri-
interesse regional que justificava a ma- Amorim da porta blindada que quando visitaram o Brasil em agosto canos e Caribenhos (Celac) e da União
nifestação do petista. Na Coreia do Sul, dá acesso ao gabinete de Lula. É a deste ano. Dali, ele atua, segundo a de- Europeia, em Bruxelas, havia uma
o governo brasileiro trabalharia com mesma sala que foi ocupada por Garcia finição do próprio Lula, como “assessor declaração já negociada, mas o ditador
quem ganhasse. e pelos assessores especiais de Jair Bol- para assuntos conflituosos”. E, apesar nicaraguense Daniel Ortega se negava
A diretora-geral do Instituto de Estu- sonaro, como o olavista Filipe Martins. de apagar incêndios criados pela retóri- a avalizá-la, em razão de um parágra-
dos Políticos de Paris (Sciences Po) e ex- Logo na entrada, à esquerda, há um ca por vezes atabalhoada do presidente, fo condenando a guerra na Ucrânia.
chanceler da Espanha, Arancha Gonzá- desenho do arquiteto Le Corbusier que Amorim, na grande maioria das vezes, Amorim insistiu que Lula entrasse na
lez, conviveu com Amorim na omc. faz parte do patrimônio da União. Na concorda com a visão do chefe. plenária da cúpula e dissesse que, ape-
Numa conversa que tivemos em Gene- parede à direita, uma mensagem emol- Quando começou a dar entrevistas sar de Ortega, todos os outros 59 países
bra, durante o Fórum Público da organi- durada na qual o papa Francisco cum- sobre temas geopolíticos – antes mes- do grupo concordavam com o texto.
zação, em setembro, ela sintetizou o primenta Amorim, que não é religioso, mo de vencer –, Lula já deu sinais de Lula se negava. Dizia que o problema
legado de Amorim na busca por relevân- por seus 80 anos. Na parede oposta, está que sua política externa seria, em certa era dos europeus, os anfitriões. Amo-
cia global para o Brasil. “Quando ele vira a foto oficial de Lula. A vista de sua sala medida, arestosa, sobretudo quando o rim ponderou que esse era um papel
chanceler, sua ambição é uma liderança assemelha-se à do gabinete presiden- tema era a guerra na Ucrânia. Numa de liderança que o petista devia assu-
brasileira no âmbito internacional, e cial: a Praça dos Três Poderes e o prédio entrevista à revista Time, em maio de mir. Entre xingamentos (“Porra, Cel-
uma liderança que começa muito clara- do stf. Ele chega diariamente às 8h30 2022, disse que o presidente ucraniano so, tá bom, eu vou”), Lula foi e resolveu
mente utilizando o comércio internacio- e sai por volta das 19 horas. Não vê o Volodymyr Zelensky era tão responsá- a questão. Quando, antes da ida a
nal como porta de entrada.” Ela pondera presidente todos os dias (“Tomo menos vel pela guerra quanto o russo Vladi- Nova York para a Assembleia Geral da
que a excelência do Brasil nos foros de café com ele do que eu gostaria”, diz), mir Putin. Causou um salseiro. Depois, onu, Amorim propôs que Lula fosse
debate sobre comércio não começou mas cumpre uma agenda extensa de adotou um discurso pela paz, com o a Cuba para o encontro dos países do
com Amorim, já vinha de antes, mas o reuniões com autoridades. cuidado de não vilanizar Putin, en- G-77, o petista também não quis (“Es-
comércio se tornou uma “boa maneira Sua equipe é composta por dezoito quanto a Rússia permanecia como alvo tou cansado, é muita viagem”), mas
de ser líder porque era um tema no qual pessoas, mais da metade das quais são do Ocidente. Na Cúpula dos Brics, em acabou topando.
o Brasil tinha credibilidade” e “grandes mulheres, a seu pedido. É o dobro do Joanesburgo, criticou países que decla- Mas nem sempre o diplomata é ou-
negociadores”. Para González, a lideran- efetivo empregado nos tempos de Gar- ram guerra sem o aval do Conselho de vido. Quando Dilma ganhou a eleição,
Segurança da onu, mas não citou Mos- Amorim insinuou a Lula que não se
cou. Depois, durante o encontro do importaria em continuar chanceler no
G-20, em Nova Delhi, na Índia, disse novo governo. O presidente matou a
que Putin poderia ir à cúpula do grupo ideia com uma piada: “Celso, a gente
no Brasil em 2024, sem correr o risco está velho. Agora é a vez dos jovens.”
de ser preso, ainda que haja um man- (Quem assumiu o cargo foi o embaixa-
dado de prisão emitido pelo Tribunal dor Antonio Patriota, que trabalhara no
Penal Internacional (tpi). Causou outro gabinete de Amorim no Itamaraty.)
salseiro – e depois inventou que nem Em 2006, quando tentava interme-
sabia da existência do tpi. diar as relações tensas entre Hugo Chá-
Lula e Amorim se complementaram vez e a Casa Branca, Lula disse a Amorim
desde o início. Lula tinha experiência que queria falar com o presidente Geor-
internacional, sobretudo como sindica- ge W. Bush ao telefone. Sua intenção
lista. Conhecia os círculos de esquerda era pedir que Bush orientasse sua secre-
na América Latina e na Europa, estivera tária de Estado, Condoleezza Rice, a
nos sindicatos de Michigan na década parar de publicar artigos na imprensa
de 1980, quando o estado reunia a nata criticando o venezuelano. Amorim não
da indústria automobilística, e visitara a gostou da ideia e tentou dissuadir Lula.
Polônia de Lech Wałęsa. Quando assu- Achava que a iniciativa criaria ruído
miu em 2003, sabia o que fazer: queria com sua amiga Rice, a quem ele chama-
que o Brasil ganhasse relevância com va de “Condi”. Lula insistiu e a ligação
caminho próprio. Em respeito ao Itama- aconteceu. (No telefonema, Lula disse a
raty, escolheu um diplomata de carreira Bush que os artigos só tumultuavam
como chanceler, em vez de um nome do mais as relações com Caracas. Não se
pt, mas logo mostrou que sua diploma- sabe o que Bush respondeu, mas Rice
cia não seria tucana: melou a formação nunca mais escreveu sobre Chávez en-
da Área de Livre Comércio das Améri- quanto esteve no governo.)
cas (Alca), na qual os Estados Unidos Um episódio mais recente aconteceu
insistiam, e condenou a guerra no Ira- durante o acordo entre o Mercosul e a
que, recorrendo à frase que repete até União Europeia, que há muito vem sen-
hoje: “Minha guerra é contra a fome.” do negociado por diplomatas dos dois
Um diplomata que conhece Lula e blocos. Lula queria impor um percen-
Amorim diz que a combinação deu cer- tual maior de modo a favorecer a venda
to porque juntou o melhor político com de produtos brasileiros para os países da
o melhor negociador. “O Lula vê a po- União Europeia. Depois de tanta nego-
lítica sem limites e o Celso vê a nego- ciação, Amorim e o Itamaraty achavam
ciação sem limites, nada é inegociável”, que a versão atual do acordo já contem-
diz, ponderando que os bons negocia- plava a indústria de maneira satisfatória.
dores, de tão bons, “perdem um pouco Lula não cedeu. Um novo negociador
a noção da realidade”. Na avaliação de do Itamaraty – Maurício Lírio, um dos

22
5 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

mais destacados diplomatas da nova ge- lou uma só vez. Ele recordou diálogos,
CLUBE DE REVISTAS
do de Genebra e assumido a embaixada em razão de sua atitude de indiferença.
ração – entrou no jogo para repactuar os nomes, datas e locais de episódios que em Londres. Quando Lula ganhou e Amorim relembrou essa passagem na
termos do texto, o que postergou ainda atravessam pelo menos seis décadas de anunciou o diplomata como seu chan- nossa conversa em Joanesburgo. “Eu era
mais uma definição que já leva décadas. vida diplomática. Como chanceler, e celer, Serra ligou para Amorim. “Ele muito convencido”, diz. E acrescentou
Curiosamente, a relação de Lula e mesmo antes disso, costumava fazer me ligou para cumprimentar com a resposta que deu a ela: “Mas eu sou
Amorim alcançou um patamar mais anotações diárias, movido pelo seu forte aquele jeito dele, e disse: ‘Você é o úni- um príncipe... da diplomacia!”
elevado quando ambos estavam fora sentimento de produzir registros históri- co ministro que eu estou cumprimen-

A
do governo – e Lula estava na cadeia. cos para as futuras gerações. Desse apa- tando. E você sabe que seria ministro disputa pela chancelaria de Lula
Amorim foi quem mais o visitou na nhado de notas, resultaram três livros de qualquer maneira.’” Ou seja: Amo- estava acirrada no final de 2002,
prisão, depois de Gleisi Hoffmann e publicados pela editora Benvirá: Breves rim também seria escalado para a chan- quando o petista despachava dia-
Fernando Haddad. Levou lideranças narrativas diplomáticas, Laços de confian- celaria se Serra tivesse ganhado. riamente num hotel nos Jardins, em
internacionais para visitá-lo e coorde- ça: o Brasil na América do Sul e Teerã, Na vitória de Lula, Amorim ligou São Paulo, entrevistando candidatos ao
nou a estratégia de divulgação externa Ramalá e Doha – todos eles com um primeiro para fhc para cumprimentá- cargo. No caso do Itamaraty, o cenário
da campanha “Lula Livre”. Chegou a nível de franqueza incomum. lo “pelo que achava até então ser a con- era ainda mais pantanoso porque o pre-
dizer, numa entrevista à tv 247, que Hoje ele deixou de tomar notas, tam- solidação da democracia no Brasil”. sidente eleito não sabia se designava
desconfiava que a Operação Lava Jato pouco grava. “Eu fico com pena, por- Para Lula, ele apenas mandou um tele- um diplomata de carreira ou seu fiel
tivera “interferência” dos Estados Uni- que cito muita coisa interessante que grama formal de cumprimentos. Votara assessor, Marco Aurélio Garcia. Por sua
dos. Ao longo dos vinte anos de convi- depois desaparece. E nunca criei o há- no petista pela primeira vez no segundo boa entrada com líderes da política la-
vência, houve momentos, contudo, em bito de gravar. Imagine, nessa idade, é turno de 1989, contra Fernando Collor. tino-americana e seus conhecimentos
que o diplomata duvidou que seu tra- difícil criar hábitos novos. Eu gostava Nos anos seguintes, escolheu fhc. Em em geopolítica, Garcia mantinha ami-
balho estivesse agradando. Em 2004, mesmo era de escrever.” 2002, apesar de sua amizade com Ser- zade com diplomatas mais simpáticos
achou que fosse cair em razão de desa- Ao rememorar sua trajetória na ra, votou em Lula nos dois turnos. à esquerda e interagia com eles em en-
venças comerciais entre Brasil e Ar- omc, onde foi embaixador duas vezes, Em seu livro Breves narrativas diplo- contros organizados por intelectuais
gentina. Dois anos depois, quando fez explicou como o desempenho da di- máticas, Amorim relembra que, entre o da época, como a economista Maria da
um discurso que desagradou Hugo plomacia brasileira colocou o país no primeiro e o segundo turnos de 2002, Conceição Tavares.
Chávez na Cúpula da Comunidade diminuto grupo que liderava as deci- havia rumores de que seu nome estava Para o grupo dos diplomatas progres-
Sul-Americana de Nações (Casa), che- sões da entidade. O ponto alto de sua no páreo, embora nunca tivesse sido sistas, Garcia era a escolha natural para
gou a cogitar, ainda que momenta- passagem, segundo ele próprio, deu-se próximo dos quadros do pt. Como vivia chanceler. E logo o grupo se ocupou em
neamente, que o presidente pudesse em 2001, quando conseguiu derrubar em Londres, sua então esposa Ana Ma- repassar uma lista dos melhores nomes
despachá-lo, em solidariedade a Chá- as patentes das grandes farmacêuticas, ria disse que ele precisava ter uma atitu- para as principais embaixadas. Amorim
vez. Saiu ileso nos dois casos. durante a gestão de José Serra como de mais proativa, como viajar ao Brasil surgiu como primeiro da lista para a em-
ministro da Saúde de fhc. Era o início e ir à luta pelo cargo. Em certo momen- baixada em Washington. Não tinha rela-

E
m Joanesburgo, durante a Cúpula da rodada de Doha, um conjunto de to, Ana Maria chegou a perguntar se ele ções com o pt, mas era visto pelo grupo
dos Brics em agosto, Celso Amo- negociações articuladas pela omc que por acaso se considerava um “príncipe”, não só como progressista, mas também
rim estava trabalhando debaixo de visava a reduzir barreiras comerciais
fogo cruzado. O Brasil não queria am- entre os países. Ainda sob os efeitos
pliar o número de membros do bloco, trágicos da Aids, o pleito brasileiro era
mas era uma missão impossível, pois permitir que os países em desenvolvi-
enfrentava a oposição da China, da Áfri- mento pudessem adotar medidas de
ca do Sul e da Rússia, e a hesitação da saúde pública sem pagar pelas patentes
Índia. Mas ele aparentava tranquilidade dos medicamentos usados. Com o re-
e bom humor. “Vou te contar uma ane- sultado, os medicamentos genéricos
dota pretensiosa”, me disse, logo no iní- chegaram ao Brasil. exPosição temporÁria
cio da conversa, ao recordar que os Brics “Eu estava 100% dedicado ao tema
nasceram graças, em boa medida, ao seu das patentes, até porque as outras áreas
esforço. O diplomata lembrou que, ao já estavam aglomeradas. E o Serra sem-
participar de um evento com o econo- pre ligava para um assessor dele que era
mista Jim O’Neill, que criou o acrônimo diplomata para saber quem estava sen-
quando trabalhava no banco Goldman tado à mesa [de negociação]. Se era eu,
Sachs, resolveu abordá-lo com uma pro- ele ficava sossegado”, conta. “O Brasil
vocação: “Foi você que inventou os liderou [a discussão] indiscutivelmente.
Brics, né?”, perguntou. O’Neill assentiu: Tanto que o coordenador disse: ‘Só que-
“Sim, fui eu.” Amorim replicou: “Mas ro Estados Unidos e Brasil na sala.’ Por-
fui eu que fiz os Brics.” que eram os dois países principais na
Brics era apenas um acrônimo para disputa. Os europeus ficaram olhando,
análise econômica, mas não era um os japoneses também. Mas aí eu disse:
bloco econômico. Em 2006, Sergey La-
vrov, o chanceler russo, durante uma
‘Não entro na sala sem um africano.’
E aí aconteceu uma das coisas mais
EM CARTAZ
reunião na onu em Nova York, sugeriu agradáveis que já ouvi. O representante
a Amorim a formação de um bloco reu- de Camarões disse: ‘Se o Brasil entrar, MUSEU DO FUTEBOL
nindo Brasil, Rússia, Índia e China (a estamos representados’”, conta o diplo- PRAÇA CHARLES MILLER, S/N
África do Sul viria a se juntar depois, mata, com ar orgulhoso. PACAEMBU - SP
em 2011). Amorim gostou e dedicou-se As patentes foram derrubadas em INGRESSOS DISPONÍVEIS
a articular com os chanceleres dos res- 2001. Amorim faz questão de lembrar EXPOSIÇÃO TEMPORÁRIA | FUTEBOL DE BRINQUEDO
pectivos países para vender a ideia. Na seus méritos e os de Serra no resultado
crise financeira de 2008, na qual os positivo. “Só foi porque foi com o Serra.
Patrocínio Máster Patrocínio Apoio

países emergentes sofreram menos que Porque eu não tinha força política para
os desenvolvidos, formou-se um con- isso e ele não teria ninguém com o co-
senso de que a hora dos Brics estava nhecimento das malandragens e espe- Museu do Futebol

chegando. Em 2009, deu-se a primeira cificidades da omc a não ser eu.” No


reunião presidencial, ocorrida em Eca- ano seguinte, Serra disputou a eleição
Gestão Parceria de Mídia Concepção Realização

terimburgo, na Rússia. presidencial com Lula, catapultado, em


Durante a conversa de 1 hora e 10 mi- boa medida, pela chegada dos genéri-
nutos, a memória de Amorim não vaci- cos. Naquela altura, Amorim havia saí-

piauí_novembro 23
6 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
um posto considerado menos relevante. atender a um pedido incomum de
Carlos Alberto Simas Magalhães saiu Amorim, os ‘Amorim boys’ apenas di-
da Presidência da República para a ziam ‘sim, ministro’”, conta esse diplo-
embaixada de Rabat, no Marrocos. mata, que continua na ativa.
Marcos Caramuru, assessor interna- Algumas das principais mudanças fo-
cional de Pedro Malan no Ministério ram levadas a cabo por seu secretário-
ANDRÉ DAHMER_2023

da Fazenda, foi enviado à Malásia e, geral, Samuel Pinheiro Guimarães Neto,


depois, ao Brunei. um defensor de ideias desenvolvimentis-
O embaixador Paulo Roberto de Al- tas e nacionalistas, que ampliou o acesso
meida, que se aposentou em 2021, diz de estudantes à instituição. As 20 vagas
que sua proximidade com os tucanos e anuais no Instituto Rio Branco passaram
suas críticas à política externa lhe con- para 100, aumentando o contingente de
gelaram a carreira durante os governos diplomatas de 500 para cerca de 1400 no
petistas. Foi um longevo inquilino do final da década de 2000. O exame de
“Departamento de Escadas e Corredo- francês, idioma que há pelo menos cin-
res”, o jocoso órgão do Itamaraty inven- quenta anos não era mais obrigatório
tado pelos diplomatas para designar o nas escolas, deixou de ser compulsório e
local de trabalho dos colegas que não passou a ser uma opção ao espanhol.
tinham qualquer função. Almeida con- Além disso, desde o governo fhc, políti-
ta que, em dezembro de 2006, ao esbar- cas de cotas vinham sendo aplicadas
rar com Amorim num evento em para arejar o corpo diplomático, que, até
Brasília, travou o seguinte diálogo: então, parecia um aglomerado de sobre-
– Paulo Roberto, você por aqui? – nomes de ruas da Zona Sul carioca.
disse Amorim. Embora tudo parecesse correr bem
– Sim, ministro. Estou aqui espe- – o ministério ganhara aval e orçamen-
rando ser designado para trabalhar no to para crescer, novas embaixadas eram
seu governo. abertas, e Lula e Amorim estavam cada
– É, mas aquela sua entrevista ao vez mais alinhados na política externa
como um nacionalista e, acima de tu- da manhã no hotel de Lula, Garcia ex- Estadão não ajudou em nada – respon- –, a instituição era alvo de críticas fero-
do, como um crítico à política externa pôs sua ideia de sugerir Amorim para o deu o chanceler, referindo-se à crítica zes da opinião pública. Os elogios cons-
dos Estados Unidos. Naquele período, o Itamaraty, em vez da embaixada em Wa- que Almeida fizera à ideia de criação tantes de Amorim a Lula provocavam
governo de George W. Bush ameaçava shington. Dulci gostou. Conhecia Amo- dos Brics em entrevista ao jornal O Es- desconforto, sobretudo nos diplomatas
invadir o Iraque em busca de um hipo- rim de nome, lera artigos seus sobre San tado de S. Paulo. mais experientes, que prezavam a auto-
tético arsenal militar, a despeito das re- Tiago Dantas, o chanceler da Política Almeida só foi promovido a embai- nomia da instituição. Com a arraigada
soluções da onu contrárias à invasão. Externa Independente antes da ditadu- xador em 2016, já no governo de Mi- crença no Itamaraty como um órgão de
Amorim era considerado uma referência ra, e apreciava seus passos dentro da chel Temer. Estado, e não de governo, alguns em-
no assunto, em razão dos seus “painéis burocracia estatal – em especial o fato baixadores – o próprio Amorim incluí-

A
do Iraque”. Além disso, como já passara de ter sido chanceler de Itamar, um po- o assumir a chancelaria, Amorim do – consideravam a si próprios figuras
duas vezes por Londres e Genebra, uma lítico que acabara de apoiar Lula no se- montou um gabinete com o intuito superiores à maior parte dos presidentes
vez por Nova York e nenhuma, como gundo turno. Levaram a sugestão a de subverter a ordem no Itamaraty, que os governavam. Por isso, o compor-
embaixador, por Washington, o grupo Lula, que disse não conhecer o candida- na qual, salvo raras exceções – como ele tamento de Amorim diante de Lula so-
avaliou que era o melhor nome para o to, mas que queria entrevistá-lo. próprio, Rubens Ricupero e Rubens Bar- ava como uma subserviência inaceitável
posto. Garcia tomou nota. Neste período, o próprio Viegas Fi- bosa –, os cargos mais altos eram ocupa- da instituição a um partido. A impres-
Lula, no entanto, não demorou a lho, nomeado para o Ministério da dos por castas de diplomatas da elite são chegou ao nível mais crítico na
deixar claro que desejava um diplomata Defesa, já havia ligado para Amorim carioca, que se perpetuavam na institui- formatura da turma do Instituto Rio
como chanceler, tanto mais que Garcia sugerindo que ele viesse ao Brasil para ção por gerações. Era o caso de um de Branco em 2005, quando Amorim fez
jamais demonstrara apetite para o car- se apresentar. Foi o que fez. No primei- seus antecessores, Luiz Felipe Lampreia, um discurso em que se referiu a Lula
go. Nas pastas estratégicas, como a Fa- ro encontro, Lula gostou da ideia de com quem travara embates públicos. como “nosso guia e mentor”.
zenda e o próprio Itamaraty, o petista uma política externa mais incisiva, Para sacudir a instituição, levou um time Vinte anos depois, a reforma não se
queria sinalizar uma transição branda como também dos modos despojados jovem e de sua confiança, entre os quais completou – em parte, porque foi boi-
em relação ao governo anterior. A partir do diplomata, que tinha até um pouco estavam Antonio Patriota, Maria Naza- cotada. Nos anos Temer e Bolsonaro,
daí, correu solta a disputa das correntes de caspa no paletó, em oposição ao ar reth Farani, Maria Laura da Rocha, Ri- houve fechamento de embaixadas, cor-
majoritárias dentro do pt pelo cargo. empolado tão comum nos egressos do cardo Neiva Tavares, Antonio Simões e tes orçamentários e múltiplas crises.
Uma ala queria Ronaldo Sardenberg, Instituto Rio Branco. No segundo en- Mauro Vieira, o atual chanceler. Roberto Embora o acesso ao Itamaraty tenha
diplomata e ministro da Ciência e Tec- contro, no meio da conversa, Lula fez o Azevêdo também integrava seu núcleo sido ampliado, o número de postos de
nologia de fhc. Outra tentava em- convite. Amorim aceitou na hora. duro, embora não ficasse no gabinete, e embaixadores ficou igual, apertando o
placar o então embaixador na Rússia, Assim que assumiu, não pôde fazer sim na chefia do Departamento Econô- funil para chegar ao topo da carreira –
José Viegas Filho, cujo nome fora cota- as mudanças que queria. fhc conversa- mico. Azevêdo foi nomeado para o cargo para insatisfação geral dos diplomatas.
do nas campanhas de 1994 e 1998, ra com Lula antes da posse e lhe pedira antes de virar embaixador – o que mos- Os “Amorim boys”, que dominaram a
quando Lula perdeu para fhc. Poucos que os embaixadores que ainda tinham trava o apreço de Amorim por ele. política externa nos anos 2000, percor-
sabem, mas uma terceira ala, da qual tempo a cumprir em seus postos – e O novo chanceler queria um Itama- reram caminhos mais ou menos homo-
fazia parte Marta Suplicy, apostou até cuja transferência poderia resultar em raty mais oxigenado, fora do pedestal e gêneos – com duas grandes exceções.
em Rubens Barbosa, embaixador em perdas na carreira – fossem mantidos integrado ao projeto político de inclu- Antonio Patriota e Mauro Vieira se tor-
Washington na gestão tucana. onde estavam. Lula aceitou. Nesse pa- são social do governo do pt. “E um naram chanceleres nos governos Dil-
Sardenberg chegou a ser cogitado por cote de afagos ao tucano, Barbosa per- pouco menos vassalo da aristocracia ma, Maria Laura da Rocha serviu na
Lula, mas petistas resgataram uma en- maneceu em Washington até o final de empresarial global”, diz um diplomata onu e tornou-se secretária-geral de
trevista que dera à revista Veja em 2001, 2004, Sardenberg foi enviado a Nova que acompanhou de perto esse perío- Vieira no atual governo e Ricardo Nei-
sobre um acordo para Base de Alcântara, York e Sergio Amaral, ex-porta-voz de do, mas preferiu manter-se no anoni- va é embaixador em Paris. Antonio Si-
para dinamitar sua indicação. Assim, fhc, ficou quase dois anos em Paris. mato. “O Itamaraty é muito engessado, mões fez uma genuflexão discreta aos
às vésperas do segundo turno, restava o Com os que ficaram de fora da lista, tudo acontece lentamente. Ao trazer governos Temer e Bolsonaro, mas as
nome de Barbosa. Para evitar esse desfe- Amorim foi implacável. José Alfredo pessoas mais jovens para cargos mais maiores decepções são Maria Nazareth
cho, Garcia e Luiz Dulci, que coordena- Graça Lima, que era embaixador do altos, seria possível acelerar as mudan- Farani e seu marido Roberto Azevêdo.
vam a campanha de Lula, apressaram-se Brasil para a Comunidade Europeia, ças. Enquanto um diplomata mais ex- Nos anos 2000, Farani, conhecida
em buscar alternativas. Durante um café assumiu o consulado de Nova York, periente encontraria mil entraves para como Lelé, era pule de dez para ser a

24
7 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

primeira mulher a chefiar a chancela- desligar, ela comentou com assessores:


CLUBE DE REVISTAS
sileira, como, por exemplo, minhas au- ler. “Eu o considero um diplomata de
ria brasileira. Conduzia o gabinete de “Teve exatamente o efeito que eu es- diências no Congresso. primeira grandeza por sua capacidade
Amorim com competência técnica e perava.” Calculou que o movimento a Segundo quem convive com Amo- de argumentar”, diz. Um diplomata
tino político, era filha de um empresá- colocava na linha sucessória da chan- rim, sua ousadia e sua coragem são evi- hoje aposentado, que era próximo dos
rio influente no mundo político e em- celaria bolsonarista. dentes. Às vezes, até em excesso. Em tucanos e acabou despachado para um
presarial de Brasília (José Farani foi Quando Ernesto Araújo caiu, Farani 2010, uniu-se à Turquia para negociar pequeno consulado, faz questão de des-
preso por sonegação em 2007, mas a pensou que sua vez pudesse ter chega- um acordo de paz entre Irã e Estados tacar as qualidades de Amorim – antes
filha não perdeu as boas conexões), e do, mas Bolsonaro escolheu Carlos Al- Unidos, talvez o movimento mais ambi- de criticá-lo. “A primeira coisa que a
era casada com um diplomata promis- berto França. “No momento decisivo da cioso da diplomacia brasileira neste sécu- gente tem que dizer é que ele é um cara
sor, Roberto Azevêdo. Era referência vida dela, ela apostou errado. Não existe lo. A operação internamente chamava-se muito inteligente”, diz. Em seguida, o
para praticamente todas as diplomatas o calculista absoluto. Mesmo o calculista Yasemin, em homenagem à neta de diplomata avalia que Amorim manteve
em formação, numa instituição domi- absoluto tem convicções. E é muito mais Amorim, cujo pai é o embaixador turco sua cabeça e suas convicções no século
nada por homens. Em 2008, o casal foi fácil você ser traído pelas suas convic- Murat Esenli. Mas as coisas não saíram xx e ainda acredita num mundo regido
enviado a Genebra. Azevêdo seria pre- ções”, disse um ex-subordinado de Fara- conforme ele esperava. Na última hora, pelos preceitos da Guerra Fria.
parado para concorrer ao comando da ni. Tal como no governo Dilma, Farani os americanos recuaram. Alguns acusa- Keith Rockwell, que por 25 anos foi
omc, cargo que nunca fora ocupado por voltou a ser cônsul, então sob Bolsonaro. ram Amorim de “ingênuo” por não ter porta-voz da omc e hoje é pesquisador
um brasileiro, enquanto Farani chefia- Dessa vez em Nova York, para onde se percebido o jogo duplo da Casa Branca, do Wilson Center, em Washington,
ria a missão brasileira junto à onu. mudara acompanhando o marido, que mas a crítica está longe de ser unânime. diz que Amorim, ao lado do america-
As coisas começaram a desandar para assumira a presidência do Conselho de “Ingênuo ele não é”, diz um ex-subordi- no Robert Zoellick e do francês Pascal
Farani no governo Dilma, quando Pa- Administração da Fundação PepsiCo nado. “O que acontece é que ele perde o Lamy, foi o negociador mais brilhante
triota assumiu a chancelaria no lugar nos Estados Unidos. senso de realidade. Ele vai indo, indo, até que já passou pela organização. “De
de Amorim. Antes de encerrar o prazo de Hoje, Azevêdo está prestes a assumir que alguém coloque a mão no peito dele vez em quando, Lamy e Zoellick até
sua missão junto à onu, Farani pleiteou a administração da nova gestora de re- e diga ‘não’.” Amorim até hoje garante pediam ajuda para o Celso, porque ele
um cargo na Comissão sobre o Desar- cursos criada pelo ex-ministro Paulo que os Estados Unidos deram um aval conhecia o secretariado e sabia como
mamento da organização, mas acabou Guedes. Farani, ao saber que seria re- claro e sincero à iniciativa brasileira. o lugar funcionava. Sabia o que preci-
nomeada para um posto menor, o de movida do consulado depois da posse Todas as fontes que ouvi para esta sava ser feito”, diz Rockwell. “Ele en-
cônsul em Genebra. Ficou irada. Sentia- de Lula, decidiu pedir licença do Itama- reportagem – mesmo os críticos – falam tendia os detalhes e também o todo.
se perseguida pela instituição desde raty. O casal comprou uma casa e fixou sobre a inteligência e a excelência do Era mais que um negociador. Fazia
que, em 2011, usara da elasticidade de residência em Greenwich, no estado de trabalho de Amorim, embora alguns referências fantásticas a filmes, músi-
uma instrução do Itamaraty para defen- Connecticut, onde vivem muitos dos não concordem com suas diretrizes na cas, literatura e poesia.”
der a liberdade de imprensa e do Judi- gestores das fortunas de Nova York. política externa. O próprio Paulo Ro- Rubens Ricupero, contemporâneo
ciário na Venezuela de Hugo Chávez. Indagado sobre a trajetória do casal, berto de Almeida, que ficou anos no de Amorim no Itamaraty e seu colega de
A diplomacia de Caracas reclamou da Amorim aparentou incômodo com a Departamento de Escadas e Corredo- ministério no governo Itamar, embora
ousadia e o assunto chegou a Dilma. pergunta e disse que não tinha nenhum res, reconhece o mérito do ex-chance- crítico de muitas de suas iniciativas na
“Quem essa mulher pensa que é?”, esbra- comentário a fazer.
vejou a presidente. Alguns interpretaram

C
que, ao criticar Caracas, a diplomata es- elso Amorim tem um ar simpáti-
tava querendo turbinar a candidatura co, estatura baixa, cabelos abun-
do marido à omc, buscando aliados crí- dantes e grisalhos. Não tem mais
ticos ao regime de Chávez. caspa no paletó e prefere roupas claras
Farani se resignou. Naquele momen- ao terno cinza dos tempos de ministro.
to, todos os esforços se dirigiram à car- Seu sotaque é peculiar – uma mistura
reira de Azevêdo na omc. Em 2012, a do mineiro, com o do interior paulista
presidente Dilma destacara o diplomata e o carioca. Quando expõe um ponto
Ruy Pereira, considerado um dos mais de vista, evita afirmações assertivas e
competentes do Itamaraty, para dedicar- sempre deixa aberto um ponto de retor-
se somente a angariar votos. A petista no, que lhe permita recuar ou contem-
emprestara um avião da fab para que porizar. Quem já trabalhou com ele
Azevêdo viajasse a duas dúzias de países diz que é exigente e impaciente, mas
da África, um agrado presidencial inédi- não tolera grosserias. Preza a objetivi-
to na diplomacia nacional. Em maio de dade e detesta conversas longas. É um
2013, Azevêdo ganhou a parada e ele- inimigo contumaz da modéstia e sua
geu-se diretor-geral da omc. Farani, por autoconfiança pode ser detectada a
sua vez, partiu para o consulado. quilômetros de distância – traço que
No início do governo Temer, Farani ele mesmo reconhece, tanto que está
saiu da geladeira e voltou a ser embai- em várias passagens dos seus livros.
xadora na onu, um movimento natural Em Laços de confiança, que trata de
já que a diplomata nunca dera indícios sua atuação com os países da América La-
de alinhamento com o pt. No governo tina quando era chanceler, Amorim conta
Bolsonaro, contudo, veio a surpresa: um episódio de 2010 em que foi reconhe-
ela deu uma guinada inesperada para cido nas ruas em Caracas quando cami-
a extrema direita. Farani nunca foi da nhava ao lado de Nicolás Maduro.
ultradireita, mas viu chances de voltar Tive que fazer um pequeno percurso
a ascender na carreira quando Ernesto a pé, em uma espécie de calçadão. Vá-
Araújo virou chanceler, sendo menos rios populares saudaram o chanceler
experiente, menos capacitado e me- venezuelano, obviamente uma figura
nos sagaz que ela – e ainda vivia cau- de destaque na política interna. Mas
sando atritos. Farani então compareceu muitos também me reconheceram:
a um evento na onu com a presença Compañero Amorim, gritaram, erguen-
de Jean Wyllys, ex-deputado do Psol, do o punho cerrado. Isso é reflexo da
confrontou-o abertamente e fez uma politização (neste caso, no bom sentido)
defesa de Bolsonaro. A cena foi filma- dos meios de comunicação venezuela-
da, ganhou as redes sociais, e Bolsona- nos, que transmitem ao vivo eventos patrocínio parceria

ro telefonou a Farani para elogiá-la. Ao praticamente ignorados pela mídia bra-


realização

piauí_novembro 25
8 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
sendo anos mais tarde seu contemporâ- às nove da noite. Não tinha tempo de
neo e subordinado no Itamaraty. “Era ler, fazer minhas coisas.” Foi quando o
um colégio muito bom”, relembra. amigo Ruy Nogueira disse que passara
ANDRÉ DAHMER_2023

“Numa foto de classe que o Ruy Noguei- no exame do Instituto Rio Branco. “Eu
ra me deu, em apenas um quadradinho então falei para a minha mãe que iria
estavam ele, eu, o Maurício Botelho, fazer o concurso para o Itamaraty. Aí
que foi presidente da Embraer, e o Júlio ela achou que eu estava louco mesmo.
Moura Neto, que foi comandante da Ela vendia seguros, passava em frente
fab”, conta, com orgulho. ao prédio do Itamaraty, no Rio, e achava
Amorim não era o primeiro da clas- que aquilo era coisa de príncipes, de
se – “Era sempre uma menina”, diz ele nobres. E eu era superplebeu, filho
–, mas não raro ficava entre os três pri- de uma mulher desquitada que morava
meiros. Era um leitor voraz e ambicio- num apartamento pequeno.”
so. Em uma edição de A república, de Amorim tinha interesse em política
Platão, anotou na margem de uma pá- externa, mas não fazia ideia de como
gina: “Aqui Platão errou.” “Para você era o trabalho de um diplomata. “Por
ver como eu era metido. E sou até hoje, que eu fiz o curso? Eram só dois anos,
acho, um pouco”, diz ele. Enquanto tinha bolsa e não precisava ter uma
fazia o curso pré-vestibular para cursar faculdade.” A bolsa era um atrativo im-
ciências sociais, decidiu – influenciado portante. “Eu já ia entrar ganhando
por suas leituras de Jean-Paul Sartre – alguma coisinha, uma bolsa de salá-
que não podia ir para a universidade rio mínimo para ajudar.” Ele diz que
naquele momento já que não estava vários amigos do Mello e Souza tenta-
certo do que queria estudar. Tinha ram, mas só Nogueira e ele consegui-
18 anos. A mãe, exasperada, concor- ram. Em 1962, entrou no Instituto Rio
dou que o filho esperasse, mas disse Branco em primeiro lugar. Estava em
que só lhe daria casa, comida e roupa vigência a Política Externa Indepen-
lavada. “Condução e cigarro, não”, re- dente de San Tiago Dantas, o chance-
lembra ele. (Amorim logo abandonou ler do então presidente João Goulart,
o cigarro, mas foi fumante de cachim- por quem nutria grande admiração.
bo até o início dos anos 2000.) Em 1964, formou-se como o primeiro
Para ganhar algum dinheiro, deu da turma, mas o país já vivia sob a di-
aulas de inglês, que aprendeu na esco- tadura militar. O chanceler da época
política externa, também está no coro Ele diz que a dupla Lula-Amorim está la, e fez traduções. Diz que a primeira era Vasco Leitão da Cunha, que con-
dos elogios. “Da geração à qual ele per- desatualizada, implantando uma polí- tradução de O mágico de Oz, publicada duzia uma política de alinhamento
tence, que inclui a minha geração e um tica externa que não reproduz o con- pela editora Record, é de sua autoria. automático com os Estados Unidos.
pouco depois, ele foi o diplomata que senso da nação, em especial a questão Cinéfilo, frequentava todos os festivais Amorim pensou em desistir da carrei-
teve mais êxito dentro da instituição. Rússia-Ucrânia. (Quando conversa- de cinema do Rio. Acabou conhecendo ra. Só não o fez para não frustrar sua
Ninguém foi ministro das Relações Ex- mos, não havia ocorrido ainda o ataque o cineasta Leon Hirszman, que o indi- mãe mais uma vez.
teriores três vezes. Isso reflete os méritos do Hamas a Israel.) “Eles estão trans- cou para ser assistente de Ruy Guerra Na cerimônia pública de premiação
dele. É uma pessoa culta. Na política formando a visão de mundo de uma na filmagem de Os cafajestes, em 1961, como estudante do ano, Leitão da
externa, sempre tem ideias novas. É au- minoria, por mais respeitável que seja, no auge do Cinema Novo. “Eu disse: Cunha estava escalado para entregar o
dacioso em suas propostas, como aquela na posição do Brasil. É uma política ‘Mas, Leon, eu nunca fiz nada de cine- prêmio. Amorim pensou em não ir ao
do acordo com o Irã. É uma pessoa de externa que reflete a visão de mundo ma.’ E ele falou: ‘Mas você fala bem. evento. “Mas uma das coisas que me fez
múltiplas facetas, muita riqueza cultu- de um partido que está longe de ser E quem fala bem, faz cinema bem.’ Ele ir foi para não pensarem que eu estava
ral e intelectual”, diz o ex-ministro. majoritário. O partido nunca teria ga- era muito dialético.” Amorim brinca imitando o Sartre, que ganhou o Nobel
Ricupero, que nunca foi amigo ínti- nhado a eleição sozinho e procurou que, nesse período, viveu o ponto alto e não foi receber”, disse, num misto
mo de Amorim, relembra que voltou a apoio dos outros. Mas, na hora de go- de sua vida. “Eu era encarregado de de ironia e honestidade. Logo depois de
ter contato com ele durante os anos vernar, segue suas próprias tendências.” dar a toalhinha para a Norma Bengell ingressar no Itamaraty, casou-se com
Bolsonaro. “O que nos uniu foi a repul- no primeiro nu frontal do cinema bra- Ana Maria, sua namorada de juventu-

N
sa pela política externa daquele perío- ascido em Santos, Celso Amorim sileiro”, diz, com sorriso tímido, sobre de, com quem teve seus quatro filhos.
do.” O grupo também contava, entre mudou-se com a família para o Rio a cena histórica de Os cafajestes. De- (O casal se separou em 2022 e hoje ele
outros, com os ex-chanceleres Celso de Janeiro quando tinha 4 anos pois, foi assistente de Hirszman no cur- namora uma professora cerca de qua-
Lafer, Aloysio Nunes e José Serra. (La- de idade. Seu pai, Vicente, que tinha ta Pedreira de São Diogo, do projeto renta anos mais jovem.)
fer deixou de ser próximo de Amorim uma vida profissional instável, consegui- Cinco vezes favela, e encerrou sua car- Ele conta que, ao entrar na diploma-
quando, como chanceler, colocou Gui- ra um trabalho na então capital do Brasil. reira atrás das câmeras. Chegou a rece- cia, passou um longo período pensando
marães Neto na geladeira. Amorim “Meu pai era uma mistura de Carli- ber um convite para dirigir sozinho um em como sair da carreira. Uma alterna-
nunca o perdoou.) Ricupero diz ter tos com Dom Quixote”, diz ele. “Um longa, mas declinou. “Eu era muito tiva seria migrar para a academia. Por
integrado o núcleo que estimulava o idealista, mas muito longe da realidade.” jovem, meu pai não era o [diretor e pro- isso, pediu para ser alocado num posto
voto em Lula logo no primeiro turno Eram cinco pessoas morando num dutor] Luiz Carlos Barreto. Se eu caís- mais tranquilo em Londres, onde pu-
em 2022, em razão da inoperância de quarto sem banheiro, numa pensão na se, ia cair mesmo, levar um tombo para desse estudar. “Era o consulado, que
uma terceira via. Não se arrepende, Praça General Osório, em Ipanema. valer”, diz. “E eu também não sabia o tem menos prestígio. Não estou dizendo
mas se diz desapontado com os rumos Seus pais logo se separaram. E Amorim, que queria porque me interessava por que é menos importante, mas que tem
gerais, que não demonstram reprodu- filho temporão – sua única irmã, Maria literatura, filosofia, outras coisas.” menos prestígio que a embaixada.” Fez
zir a “frente ampla” prometida, e mais Lúcia, era quase doze anos mais velha –, Por um breve período, trabalhou um mestrado na London School of
ainda com a política externa, que ele passou a ser criado por mulheres: Bea- como redator do jornal Tribuna da Im- Economics, sob orientação do teórico
avalia estar parada em 2007. triz, a mãe, a irmã e a avó. prensa, sob a chefia de Zuenir Ventura, marxista Ralph Miliband. Segundo
“Concordo que eles têm razão em Ele conta que a mãe fazia de tudo mas faz questão de frisar que, nessa Amorim, enquanto elaborava sua tese,
procurar uma postura mais ativa. Mas para que o filho tivesse uma boa educa- época, a publicação não era ligada a Miliband disse que seu trabalho tinha
eles interpretam a situação mundial, a ção. Por isso, Amorim foi matriculado Carlos Lacerda, mas aos donos do Jor- nível de doutorado, mas, para fazê-lo,
meu ver, de maneira equivocada, que num colégio particular, o Mello e Souza. nal do Brasil. Amorim desistiu rápido precisava ficar mais um ano em Lon-
é muito enviesada contra o Ocidente e Em sua classe, estava Ruy Nogueira, do jornalismo. “Eu deveria chegar às dres. Por questões burocráticas do Ita-
muito benevolente em relação à Chi- amigo que o inspirou a ingressar no Ins- cinco da tarde no jornal, mas, na reali- maraty, Amorim não conseguiu a
na, à Rússia, ao Irã”, avalia Ricupero. tituto Rio Branco na juventude, e acabou dade, chegava às nove da manhã e saía permanência. Ele acredita que, se ti-

26
9 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

vesse ficado e concluído o doutorado, Cinema Novo, onde Amorim tinha ve-
CLUBE DE REVISTAS
gabinete do então chanceler Ramiro Mauro Vieira, hoje chanceler. Quan-
teria abandonado a diplomacia e migra- lhos conhecidos – Ruy Guerra, Glauber Saraiva Guerreiro e lhe ofereceu uma do Archer deixou o ministério, Amo-
do para a academia. Seu apartamento Rocha, Leon Hirszman, Cacá Diegues “salinha” no Itamaraty, apenas para que rim continuou como assessor, mas
londrino, em vez do mobiliário moder- e Barreto. Diegues diz que Amorim ele fosse à repartição e depositasse seu afastou-se quando seu grupo político
no preferido por outros diplomatas bra- sempre foi “atencioso” e “correto”, e paletó na cadeira, de modo que não – liderado por Ulysses Guimarães, o
sileiros na cidade, era decorado com que nunca houve problemas entre o di- “passaria vergonha” perante a própria pai da atual Constituição – rompeu
grandes fotos do Nordeste árido, se- plomata e seu grupo mais próximo de família. Amorim deu-lhe uma resposta com o governo. Nessa época, chegou a
gundo um diplomata que o visitou na- amigos do cinema, como Glauber, Joa- colérica: disse que não precisava de ne- se filiar ao pmdb.
quela época. Amorim não se recorda das quim Pedro de Andrade e Paulo César nhuma “salinha” e que sua família ti- De volta ao Itamaraty, a história se
fotos, mas lembra de passar o tempo es- Saraceni. Ainda assim, as críticas se nha muito orgulho dele. repetiu. Ficou um tempo no Departa-
tudando, em vez de ir aos coquetéis roti- sobressaíam aos elogios, e o clima beli- Embora sua carreira no cinema não mento de Escadas e Corredores até que
neiros da diplomacia, que muitas vezes coso piorou depois que Amorim viajou tenha vingado nem como operário voltou a ser nomeado para o Departa-
abriam caminhos para promoções. de Concorde para o Festival de Can- nem como patrão, três de seus filhos – mento Cultural. Tinha décadas de car-
Na década de 1970, integrou o gabi- nes, num período de orçamento aperta- Vicente, João e Pedro – se tornaram reira e já podia ter sido promovido a
nete de Antônio Azeredo da Silveira, do na Embrafilme, suscitando críticas cineastas. Anita, a única filha mulher, embaixador havia quase dez anos, mas
chanceler do governo de Ernesto Gei- ainda mais ácidas. Apesar de tudo, saíam vive em Genebra e dedicou-se ao mul- continuava patinando. Foi quando re-
sel. Ele considera esse posto relevante do forno produções que seriam mais tilateralismo. Na dedicatória que faz cebeu a incumbência de organizar a
em sua carreira, pois a política externa tarde premiadas, como Bye bye Brasil, aos quatro em um de seus livros, Amo- primeira reunião de países de língua
do chanceler ia além do Ocidente. de Diegues, Eles não usam black-tie, de rim escreve: “Aos meus filhos, que rea- portuguesa, em São Luís, no Mara-
Propunha relações mais sólidas com Hirszman, e Cabra marcado para mor- lizaram os sonhos que eu sonhei.” nhão, reduto político de Sarney. Fez
países da América Latina, aproxima- rer, de Eduardo Coutinho. Foram três um bom trabalho e acredita que, por

C
ção com países árabes e fim ao alinha- anos intensos até que, em março de elso Amorim ficou na geladeira isso, Sarney lembrou de promovê-lo no
mento do Itamaraty com a política 1982, Farias exibiu Pra frente, Brasil, no durante parte do governo do ge- apagar das luzes do seu governo. Dali a
colonial de Portugal na África. Ele era Festival de Gramado. neral João Baptista Figueiredo, o um ano, se não viesse a promoção, te-
um “Silveirinha boy”, cujo traço esté- O filme denunciava os anos de último dos ditadores militares, e saiu ria de se aposentar como ministro de
tico mais visível eram as barbichas que chumbo da ditadura. Mostrava que, en- logo depois que José Sarney assumiu. segunda classe, um grau abaixo na hie-
todo subordinado usava. Por disputas quanto o país vibrava com a Seleção Foi convidado por Renato Archer, um rarquia. “Foi uma decisão solitária”,
internas, deixou a função em 1978, Brasileira de Futebol, a tortura corria ex-diplomata, para assessorá-lo no Mi- disse Sarney, ao comunicar a promo-
mas foi promovido de primeiro-secre- solta nos porões do regime. Quando o nistério da Ciência e Tecnologia, onde ção. Amorim entendeu que nem o
tário a conselheiro e assumiu a chefia longa apareceu nas telas de Gramado, a participou da elaboração da Lei de In- chanceler da época, Abreu Sodré, um
do Departamento Cultural do Itama- ditadura estava moribunda, mas ainda formática e criou as bases de coopera- aliado da ditadura, nem seu número
raty, onde voltou a lidar com a turma levaria três anos para morrer. A crítica ção internacional da pasta, vigentes dois, Paulo Tarso Flecha de Lima, tão
do cinema. “Eu fui kicked up”, disse, enfureceu os generais, que reagiram. até hoje. Ali, teve um encontro produ- poderoso quanto o ministro, faziam
usando a expressão em inglês equiva- Amorim sabia da produção e até cogita- tivo: pela primeira vez, trabalhou com questão de vê-lo como embaixador.
lente a “cair para cima”. ra propor a Farias uma mudança no
No comando do Departamento provocativo título Pra frente, Brasil, que
Cultural, encontrou uma guerra de era o slogan ufanista da ditadura. Aca-
bastidores generalizada entre produto- bou desistindo da ideia. Tinha convicção
ras, distribuidoras e cineastas. A Em- de que, quando o filme viesse a público,
MINISTÉRIO DA CULTURA
brafilme, estatal que financiava as conseguiria contornar a situação, so-
E MUSEU DO AMANHÃ
produções nacionais, era a face mais bretudo porque tinha boa relação com APRESENTAM
visível da briga. O principal embate o general Golbery do Couto e Silva, o
opunha os grupos dos cineastas Rober- criador do Serviço Nacional de Infor-
to Farias, da turma do cinema comer- mações (sni), que espionava a vida de
cial (como as pornochanchadas), e meio mundo. Mas a repercussão na im-
Gustavo Dahl, ligado ao Cinema Novo. prensa foi grande, constrangeu o regi- Encontros
Para neutralizar os dois lados, Amorim
assumiu a Embrafilme como força im-
me – e Amorim caiu.
Ele avalia que a beligerância dos ci-
para o Amanhã
parcial e agiu com diplomacia. Sua estra- neastas não era para atingi-lo. Era a ficções à brasileira
tégia era deixar Farias e Dahl ocupados forma que haviam encontrado para
com seus projetos, bem financiados pela mostrar independência do governo en-
estatal, imaginando que isso os desen- quanto seus filmes eram financiados
por uma estatal. Barreto, por sua vez,
corajaria a brigar.
Luiz Carlos Barreto, hoje com 95 anos,
lembra que, naquele período, Azeredo
diz que, mesmo depois da saída defini-
tiva de Amorim do mundo do cinema,
Sil Bahia
da Silveira lhe recomendou que se va- mantiveram-se muito amigos. “Nossa
lesse de sua liderança no setor e cuidasse
bem de seus “meninos de ouro” – ele se
amizade se aprofundou e eu pude veri-
ficar que o Celso é uma das pessoas
Elisa Lucinda
referia a Amorim e a Samuel Pinheiro mais bem preparadas no Brasil para
mediação
Guimarães Neto, que fora escalado exercer o papel de homem público.”
como número dois na estatal e tam-
bém servira em seu gabinete. “Silveiri-
nha me disse: ‘Vocês do cinema são
Ele destaca que uma das características
do diplomata é sua capacidade de equi-
librar a emoção e a razão. “Eu sou uma
Stephanie Borges
muito complicados. Eu tenho muito pessoa muito levada pela paixão. Eu
cuidado com a carreira deles. Não vão tenho muita dificuldade e faço muita
complicar a vida deles’”, conta Barreto, força para ser racional. E aprendi muito
numa conversa em seu apartamento com o Celso nessa minha busca pela 9 DE NOVEMBRO, às 19h
no Rio de Janeiro. racionalidade. O pouco de dose de ra-
Apesar do pedido de Silveirinha, a cionalidade que tenho, eu devo a ele.” Transmissão ao vivo no Youtube. Participe!
guerra entre os dois lados não só con- Demitido da Embrafilme, Amorim Mais informações museudoamanha.org.br
tinuou como se voltou contra Amo- voltou ao Itamaraty. Pela primeira vez,
rim. Farias detonava o diplomata junto acabou no Departamento de Escadas e ENCONTROS PARA O AMANHÃ PARCEIROS DO MUSEU DO AMANHÃ
à indústria. Dahl e Nelson Pereira dos Corredores. O diplomata Gelson Fon- APOIO PATROCÍNIO MASTER MANTENEDORES PATROCÍNIO

Santos o criticavam entre a turma do seca Júnior trabalhava como assessor no


PARCERIA ESTRATÉGICA CONCEPÇÃO GESTÃO REALIZAÇÃO

piauí_novembro 27
10 de 10 27/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
mar e Lula. Ele acha que a política ex- uma de nossas conversas, perguntei a
terna “ativa e altiva” impactou gerações razão de sua determinação em envol-
de jovens diplomatas, que retomaram o ver o Brasil nos grandes temas globais,
ANDRÉ DAHMER_2023

ânimo com a diplomacia, como nos como a espinhosa questão do Oriente


tempos dos chanceleres San Tiago Médio. Ele respondeu: “Sinto que as
Dantas (1961-62) e Azeredo da Silveira pessoas esperam isso do Brasil.” Em
(1974-79). Lamentou que todo o traba- seguida, ponderou: “A gente não pode
lho tenha sido desfeito no governo ante- representar o Brasil como ele é. A gente
rior, mas se declarou “seguidor” do tem que representar o Brasil como ele
modelo implantado por Amorim. pode ser, como ele deve ser.” Então
contou uma história, ocorrida durante

C
elso Amorim é um dos poucos discussões na omc. Congressistas japo-
decanos da diplomacia mundial neses comentaram – em tom bem-hu-
ainda em atividade. São raros morado – que o Japão era um gigante
seus contemporâneos que ainda estão do comércio mundial e o Brasil era
no jogo, como o chanceler Lavrov, da muito pequeno, mas, nas rodadas de
Rússia. Com tantas décadas de exposi- negociação da omc, o Japão parecia
ção, o escrutínio público, dentro e fora muito pequeno e o Brasil era um gigante.
do país, já está feito. Dentro do país, há “Era o poder diplomático que a gente
quem diga que Amorim está sendo ví- aglutinava”, diz Amorim.
tima de seu próprio êxito porque nin- Sobre sua política “ativa e altiva”, ele
guém, pelo menos entre os diplomatas diz, com modéstia incomum, que não
menos experientes, sente-se à vontade foi ideia sua. “Eu fiz com mais deter-
para confrontá-lo. “Ninguém vai dizer: minação coisas que já estavam presen-
‘Celso, não estou convencido disso.’ tes na política externa. A volta um
Não há debate. Os diplomatas da gera- pouco do espírito do San Tiago Dan-
ção dele, que o chamam de Celso, não tas, que me inspirou na minha juven-
estão mais na ativa. E quem o chama tude.” Ele também recorda que o
de ‘ministro’ ou ‘embaixador’ tem pelo período em que serviu no Itamaraty na
menos 25 anos a menos. Não vai diver- ditadura rendeu-lhe uma lição valiosa,
gir”, pondera um diplomata ainda na que norteou toda a sua atuação como
ativa que já foi subordinado de Amo- diplomata: atuar em brechas. “Eu via
rim. Outro interlocutor que presen- que dava para trabalhar, mesmo nos
A amizade com Mauro Vieira, nasci- na chancelaria”, diz um interlocutor ciou muitas interações entre Lula e interstícios. Isso sempre ficou na mi-
da nessa época, aprofundou-se no de- de Lula com acesso ao seu gabinete. Amorim vaticina que, apesar das críti- nha cabeça. Numa realidade qualquer,
correr dos anos. Os dois trabalharam Vieira não demonstra publicamente cas, o ex-chanceler é hoje uma peça seja a rodada do Uruguai, a rodada de
juntos no governo Itamar e no início do nenhum desconforto e faz elogios fre- fundamental do governo. “É o diplo- Doha, o Irã… me perguntam: ‘Você
governo Lula, quando Amorim, já quentes ao ex-chefe. mata vivo com mais experiência. E tem vai mesmo fazer isso? Não tem chan-
chanceler, enviou Vieira para ser em- Conversei com Vieira rapidamente, a ousadia que os outros não têm. Ele ce!’. Mas eu não olho para o lado da
baixador em Buenos Aires. A indicação por telefone, no dia 9 de outubro, quan- reúne um conjunto de qualidades que escuridão. Eu olho para a brecha.”
de Vieira para suceder Antonio Patriota do ele estava em Jacarta, na Indonésia, estão muito acima da vaidade dele, de O método também se traduz em re-
como chanceler de Dilma também teve a caminho do aeroporto. Pegaria um seu protagonismo excessivo.” conhecimento pessoal para Amorim.
suas digitais. Quando assumiu no lugar avião para o Camboja e depois para Seu poder e sua influência ainda Quando telefonou a Lula para parabeni-
da petista, Temer cogitou manter Vieira Cingapura. De lá, enfrentaria mais de produzem temor entre os profissionais zá-lo pela vitória em outubro do ano pas-
na chancelaria, mas o psdb pediu o car- dezoito horas de voo até Nova York, do Itamaraty. Dos 23 diplomatas ouvi- sado, Bill Clinton pediu que o petista
go para José Serra. Temer, então, pres- onde presidiria a reunião do Conselho dos para esta reportagem, 18 só aceita- mandasse um abraço para “meu amigo
tigiou Vieira com o posto de embaixador de Segurança da onu sobre o conflito ram conversar com a condição de que Celso”. O mesmo fez o primeiro-minis-
na onu, em Nova York, onde ficou até no Oriente Médio. Disse que, nos dois seus nomes não fossem publicados. Em tro norueguês, Jonas Gahr Støre. Na
os primeiros meses do governo Bolsona- dias anteriores, falara duas vezes com alguns casos, eles têm receio de que cúpula entre a Celac e a União Euro-
ro. Dali, foi despachado para uma em- Amorim, afinando os pontos sobre a suas declarações, ainda que anônimas, peia, em Bruxelas, o presidente francês
baixada de pouco prestígio – Zagreb, atuação humanitária do Brasil diante permitam que, por um detalhe ou ou- Emmanuel Macron convocou alguns
capital da Croácia. (Como chanceler de do conflito. Na noite anterior, também tro, Amorim os identifique – o que chefes de Estado da América Latina,
Lula, Vieira não partiu para a vingança. falara com o presidente Lula sobre os pode resultar em alguma indisposição Lula incluído, para uma reunião parti-
Os diplomatas prestigiados no governo planos para a reunião e para as próxi- no Itamaraty ou obstáculos na carreira. cular sobre a Venezuela, e fez questão de
Bolsonaro deixaram os postos centrais mas que presidiria no Conselho. Disse Amorim é cioso de seu espaço – e astu- mandar seu assessor convocar Amorim
da diplomacia, mas não foram transfe- que a sintonia entre o Itamaraty e o to na crítica. Desde que Lafer, então para também participar. Quando o di-
ridos para regiões isoladas, e muitos Palácio do Planalto é afinada. “É a mais chanceler de fhc, tirou os sapatos para plomata esteve em Madri recentemente,
seguiram em cargos de prestígio. O ex- perfeita e a mais absoluta. Nos vemos, a inspeção ao entrar nos Estados Uni- foi convidado pelo ex-primeiro-ministro
chanceler Carlos Alberto França co- nos reunimos. Ele está lá para assesso- dos em 2002, na esteira das restrições da Espanha José Luis Zapatero para um
manda a embaixada brasileira no rar o presidente e é um mecanismo do pós-Onze de Setembro, Lula gosta- almoço. Amorim estava num café em
Canadá, Orlando Leite Ribeiro conti- muito bem estruturado, um diálogo va de fazer chacota ao dizer: “Ministro Bruxelas num fim de tarde de julho,
nua embaixador em Madri e Raimun- perfeito”, disse Vieira. Comentou que, meu não tira os sapatos para revista”. quando o presidente argentino Alberto
do Carreiro, em Lisboa.) enquanto Amorim está mais presente Amorim, muito reservadamente, repe- Fernández passou, pediu licença e sen-
Discreto e cometido, Vieira tem na rotina de Lula, ele viaja mais (só este tia a blague presidencial. Com sutileza, tou-se para conversar com o diplomata.
um perfil complementar ao de Amo- ano, foram 33 viagens oficiais). “Além a um só tempo sublinhava a suposta Em Havana, como na anedota de Cara-
rim, mais inquieto e mercurial. Quem disso, Celso é um grande amigo. Co- subserviência tucana aos americanos e cas, ele é reconhecido nas ruas de vez
convive com ambos já viu o ex-chan- nheço todos os filhos dele, frequenta- enfatizava sua própria posição de supe- em quando. Numa entrevista em mea-
celer ultrapassando os limites de suas mos a casa um do outro, ele conheceu rioridade e independência. dos de agosto à npr, a jornalista ameri-
atribuições e dando orientações ao meus pais, que já faleceram. Enfim, Para um diplomata, o mundo das cana Carrie Kahn disse, ao final da
chanceler. “Quando o Celso começa, somos muito próximos.” sutilezas é como o ar que se respira, conversa, que havia lido todos os seus
acaba falando por ele, pelo Itamaraty, Vieira comentou sobre o período em mas Amorim não se perde nesse uni- livros já traduzidos para o inglês e per-
pelo governo... É difícil, porque ele é que trabalharam juntos com Renato verso menor. Sua ambição e visão glo- guntou se ele não escreveria outros.
ansioso. Ainda está se habituando ao Archer e das vezes em que serviu no bal nunca deixaram de pautar seu Amorim respondeu: “Agora estou
fato de haver um ex-subordinado seu gabinete de Amorim, nos governos Ita- trabalho – e isso acontece até hoje. Em escrevendo as memórias do futuro.” J

28
1 de 6 27/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
anais da guerra e da diplomacia II

ANGÚSTIA NA FRONTEIRA
O esforço para salvar os brasileiros na Faixa de Gaza

ALESSANDRO CANDEAS

Diplomata de carreira, Alessandro Candeas, 57 anos, é embaixador do Brasil junto à Autoridade Palestina desde dezembro
de 2020. Vive na residência oficial, em Jerusalém Oriental, cidade controlada por Israel e reivindicada como futura
capital do Estado da Palestina. O escritório consular fica em Ramallah, capital administrativa da Autoridade Palestina,
na Cisjordânia, a 21 km de Jerusalém. Ali trabalham Candeas, quatro diplomatas e três oficiais de chancelaria do
Itamaraty, além de nove funcionários locais, alguns deles brasileiro-palestinos. Em depoimento ao repórter LUIGI MAZZA,
o embaixador relata a operação para tentar resgatar, em meio à guerra, os brasileiros que vivem na Faixa de Gaza.

7 DE OUTUBRO, SÁBADO_São meus últi- um embaixador palestino me contou além disso, marcou os 50 anos da Guerra aplausos da população. Me lembrei da
mos dias de férias em Brasília. Retorno a uma anedota: um judeu e um palestino do Yom Kippur, de 1973. Guerra do Yom Kippur. Como Israel
Jerusalém na segunda-feira. Na madruga- perguntaram a Deus se algum dia have- De madrugada, quando já passava da pôde ser pego de surpresa de novo?
da de ontem para hoje, eu estava em casa, ria paz na região. Deus respondeu, com meia-noite em Brasília e em Israel eram Logo que amanheceu, enviei orien-
assistindo a um filme com minha família, sotaque britânico: “Yes, certainly, but seis da manhã, comecei a receber pelas tações à minha equipe sobre os termos
quando o aplicativo Red Alert começou a not in my lifetime” (sim, com certeza, redes sociais fotos e vídeos nos quais do relatório urgente que precisaríamos
disparar freneticamente alertas de mísseis. mas não estarei vivo para ver). custei a acreditar. Fiquei chocado, por- enviar ao Itamaraty. Como meus fun-
Como quase todo mundo que mora em Os conflitos na Faixa de Gaza seguem que não eram “apenas” mísseis. O Ha- cionários não podiam acessar o escritó-
Israel, estou habituado a receber pelo ce- um padrão e costumam eclodir durante mas invadiu por terra. Derrubou cercas, rio em Ramallah – a fronteira havia
lular esses avisos, que nos dizem quanto os feriados religiosos, quando judeus e dinamitou muros, invadiu postos de sido fechada –, transmitimos nossas
tempo temos para arrumar um abrigo – a palestinos disputam espaço na Esplanada controle, roubou carros blindados e co- comunicações pela embaixada brasilei-
depender da cidade, você tem entre 15 e das Mesquitas, em Jerusalém. Os ânimos locou suas bandeiras em tanques de ra em Tel Aviv, contando com a gentil
90 segundos para se proteger. Percebi que se acirram. Achávamos, minha equipe e guerra israelenses. Grande afronta sim- colaboração do embaixador em Israel,
algo de muito grave estava acontecendo. eu, que aconteceria algo durante o Rama- bólica ao poderoso Exército israelense. Frederico Meyer, e sua equipe.
Avisei minha esposa e minha filha que dã deste ano, que coincidiu com a Páscoa Mas a incursão foi muito além do sim- Além do aspecto político, havia uma
dormiria no sofá da sala, para que o baru- judaica, mas não foi o caso. Nos últimos bólico. Os vídeos eram terríveis. Famílias preocupação imediata: como estariam
lho dos alertas não as incomodasse. Não meses, víamos a tensão crescer: manifes- israelenses no entorno da Faixa de Gaza, os brasileiros que moram na Faixa de
preguei o olho. Passei a noite em claro. tações do Hamas, confrontos com forças atônitas, filmaram dos prédios e das casas Gaza? Pedi que as duas funcionárias
Eu já tinha vivido uma situação parecida de segurança e colonos israelenses em membros do Hamas em picapes dando locais do setor consular, ambas gaúchas
como embaixador em maio de 2021. Na territórios palestinos ocupados, tudo tor- tiros de fuzil nas ruas e raptando pessoas. com nacionalidade palestina, ligassem
época, houve confrontos durante o Ra- nava o ambiente político cada vez mais Soldados encapuzados pousavam em para eles. Já tínhamos uma lista com os
madã, período sagrado de cerca de um volátil. Basta uma chispa para explodir. solo israelense com parapentes. Os mora- telefones de todos, porque duas vezes
mês em que os muçulmanos se dedicam Foi o que aconteceu. Desta vez, o Hamas dores estavam apavorados. Recebi tam- ao ano organizamos o que chamamos
a rezar e jejuar da alvorada ao pôr do sol. atacou durante a comemoração judaica bém vídeos que mostravam integrantes de “consulados itinerantes” na cidade de
As guerras são uma constante na da Festa dos Tabernáculos (também co- do Hamas retornando a Gaza dirigindo Gaza. Como as pessoas não podem ir até
Terra Santa há 3 mil anos. Certa vez, nhecida como Festa das Cabanas). A data, veículos militares israelenses, sob os nós, em Ramallah, vamos até elas e ofe-

30
2 de 6 27/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS

REPRODUÇÃO_ESCRITÓRIO CONSULAR DO BRASIL EM RAMALLAH_2022


Alessandro Candeas com brasileiros em Gaza, diante da igreja Sagrada Família, em 2022: ameaças de bomba impediram que o templo servisse de refúgio aos que agora tentam ser repatriados

recemos serviços consulares in loco, confronto bélico. O capítulo final do pla- tanto, que há brasileiros dos dois lados trei em contato. A resposta foi imediata,
como a renovação de passaportes e atua- no trata justamente de evacuação pela do conflito. Há um número maior vi- e a melhor possível: “Tudo o que seus ci-
lização de documentos. Força Aérea Brasileira. Começamos hoje vendo em Israel, e estima-se que 2 mil dadãos precisarem, contem conosco.”
A população brasileira na Faixa de a planejar a operação para retirar os brasi- devem ser repatriados. Mas, embora em O Brasil é um país muito querido e res-
Gaza é formada por cerca de 40 pessoas, leiros da Faixa de Gaza, como previsto, Gaza haja bem menos pessoas, a opera- peitado por todos os lados. Basta dizer
das quais 36 estão registradas no nosso pela fronteira Sul, com o Egito. ção será muito mais complexa. que você é do Brasil que as portas – e os
consulado. Ligamos para todas as famí- Em Israel, cria-se um formulário ele- sorrisos – se abrem, seja em Israel, na
lias. “Como vocês estão?”, perguntamos. 8 DE OUTUBRO, DOMINGO_O Itamaraty trônico para recolher as informações de Cisjordânia ou em Gaza. É emocionante.
“Vai vir bomba na cabeça da gente”, res- convocou uma reunião de emergência quem deseja ser repatriado, organiza-se Dá orgulho de ser diplomata brasileiro.
ponderam, com muito medo. Sabíamos para hoje de manhã. Como estou em listas de voos e, feito isso, aviões da fab rea- Nas ligações de ontem, perguntamos
que a reação de Israel seria imediata. Pou- Brasília, pude participar presencialmen- lizam o transporte. Em Gaza será preciso aos brasileiros quem queria ser evacua-
cas horas depois, começaram os bombar- te. A reunião foi presidida pela secretá- se comunicar com vários interlocutores: do. Dos 36 que vivem na Faixa de Gaza,
deios sobre Gaza. ria-geral do Itamaraty, embaixadora as “autoridades de fato” da Faixa de Gaza 30 queriam sair. Montamos uma lista.
Era necessário implementar ações de Maria Laura da Rocha, que está atuando (isto é, o Hamas) e os representantes tanto Eles estão em quatro cidades: Gaza,
proteção aos cidadãos brasileiros, inclusive como ministra interina, já que o chance- de Israel quanto do Egito, que controlam Khan Younis, Beit Hanoun e Beit Lahia.
de evacuação. Uma ação humanitária não ler Mauro Vieira está em viagem pela a fronteira Sul, uma das mais sensíveis e Reabilitamos um grupo de WhatsApp
se improvisa. Essa é a versão concreta de Ásia. Participaram o ministro da Defesa, perigosas do planeta, por onde transitam chamado Brazilians in Gaza, criado em
uma das máximas da diplomacia brasilei- José Múcio Monteiro; o comandante da o Hamas e a Irmandade Muçulmana. maio de 2021, durante os conflitos da
ra: “O Itamaraty não improvisa.” Como Aeronáutica, Marcelo Damasceno; o asses- Encerramos a reunião pouco antes época do Ramadã. Passamos agora a nos
muitas embaixadas, temos um plano de sor especial do presidente Lula, embai- do horário do almoço. Ainda no Itama- comunicar por ali.
contingência para situações como essa. xador Celso Amorim; e diversos colegas raty, comecei a contatar diferentes atores. Com a lista em mãos, pedi à minha
O plano está detalhado em uma apostila do Itamaraty responsáveis pelo processo O Brasil não tem nenhuma relação com o secretária em Ramallah que contratasse
que elaboramos com os colegas de Tel de repatriação dos brasileiros. Hamas. Mas, para proteger os brasileiros uma empresa de ônibus para tirarmos os
Aviv, inclusive com a participação dos adi- O brigadeiro Damasceno explicou e conseguir autorização para que saiam brasileiros de lá, levando-os ao Sul da
dos militares, porque precisamos ter uma como será a operação de resgate dos de Gaza, é necessário ter algum canal de Faixa de Gaza para atravessar a fronteira
articulação estreita com eles em caso de brasileiros em Israel. Recordei, entre- comunicação com a autoridade local. En- com o Egito. Serão necessários dois veí-

piauí_novembro 31
3 de 6 27/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
culos: um para pegar os moradores de a verdade é que estamos acostumados.
Gaza, Beit Hanoun e Beit Lahia – cida- Não sinto nenhum medo. Isso também se
des localizadas na porção Norte da Fai- deve ao fato de eu e os demais diplomatas
Nos xa – e outro para os moradores de Khan morarmos em Jerusalém. As bombas não
Younis – que fica na porção Sul. chegam aqui, embora explodam a Oeste,
encontramos Mesmo com o começo dos bombar- do lado israelense, e ao Sul, sobre assen-
na música deios, os brasileiros optaram por perma- tamentos israelenses em territórios pales-
tinos ocupados. Não imagino mísseis
necer em suas casas até serem resgatados.
dirigidos contra a Cidade Velha de Jeru-
9 DE OUTUBRO, SEGUNDA-FEIRA_Meu voo salém, onde está a Mesquita de Al-Aqsa,
para Israel foi cancelado, assim como o terceiro lugar mais sagrado do islã, e o
de minha mulher e minha filha. Disse Domo da Rocha, ambos a 20 minutos a
a elas que permanecessem em Brasília, pé de minha residência. Às vezes aconte-
já que a situação é instável. Consegui ce um atentado contra um ônibus, um
embarcar à tarde, junto com meu cole- trem, ou confrontos de rua entre grupos
ga de Tel Aviv, o embaixador Frederico de muçulmanos e judeus. Mas os mora-
Meyer, em um dos voos da fab que es- dores de Jerusalém, como nós, já sabem o
tava partindo para lá, com escala em que evitar, e em que momentos e locais.
Roma. Difícil dormir durante a viagem. Dessa forma, estamos protegidos. É como
Mais uma noite com déficit de sono. estar no centro de um furacão: vemos
A operação de repatriação está pronta. tudo o que acontece ao redor, mas, no
Os ônibus estão à nossa disposição. A via- centro mesmo, nada de grave acontece.
gem de Gaza a Rafah, cidade palestina Continuamos trocando mensagens
na fronteira com o Egito, é curta. Mesmo com as famílias em Gaza. Aguardamos
com engarrafamento, a previsão é de autorização do Egito para passar na
apenas uma hora para percorrer os me- fronteira, mas até agora nada. Silêncio.
nos de 40 km. Todos os lados dessa histó- À tarde, a situação se agravou. No
ria – Egito, Israel e a autoridade de Gaza grupo de WhatsApp, os brasileiros come-
– já foram informados da evacuação dos çaram a enviar vídeos desesperados. “Es-
brasileiros. Passamos até mesmo fotos e tamos apavorados, vamos morrer. Nos
09.11 16.12 as placas dos ônibus, que também serão ajudem a sair daqui.” O contra-ataque is-
identificados com bandeiras do Brasil. raelense está se ampliando. Uma família
Rico Dalasam Letrux Para atravessar a fronteira, é preciso brasileira – um casal e uma criança de
ter autorização dos dois lados – Egito e colo – nos pediu socorro: teve a casa des-
Israel. Estamos seguindo o protocolo, truída por uma bomba e agora busca um
tudo by the book. Conversei com nosso abrigo. O vídeo em que o pai aparece jun-
embaixador no Cairo, Paulino de Car- to com a criança, dentro de um carro per-
valho Neto, e passei a lista de brasileiros. correndo a cidade de Gaza, me abalou.
Ele e sua equipe rapidamente prepara- Os brasileiros preferiram continuar
ram uma nota diplomática, enviada em suas casas, no primeiro momento.
para o Ministério das Relações Exterio- Mas agora a situação mudou. Os bairros
res do Egito. Em paralelo, enviei a mes- onde moram passaram a ser bombar-
ma lista para a embaixada em Tel Aviv. deados. Passamos então para outra etapa
do protocolo: proteger os brasileiros de
15.11 18.11 10 DE OUTUBRO, TERÇA-FEIRA_Pousei em hostilidades e levá-los a um local seguro.
Tel Aviv às duas da tarde, e de lá me Pedi às funcionárias da embaixada que
Maglore Assucena dirigi à minha residência oficial em Je- ligassem para uma igreja católica que se-
rusalém. No caminho, meu motorista dia nossos encontros do “consulado itine-
árabe-cristão me informou sobre a inten- rante”, na cidade de Gaza. Perguntamos
sificação dos bombardeios e as primeiras se aceitariam abrigar os brasileiros tempo-
perdas humanas de ambos os lados. rariamente. A igreja se chama Sagrada
Nessa mesma tarde, partiu o primei- Família. Me dei conta de que, 2 mil anos
ro voo da fab de repatriação dos brasilei- atrás, um jovem casal passou por Gaza
ros em Tel Aviv, com mais de duzentas enquanto se dirigia ao Egito, fugindo de
pessoas. O embaixador Fred Meyer me um rei insano que estava cometendo um
ligou para perguntar como eu estava, e genocídio de crianças em Belém. A jovem
02.12 celebrou o êxito da operação. “Não me mãe levava um bebê recém-nascido. Era
25.11 João Bosco faça inveja”, respondi, sorrindo, depois Jesus – um refugiado, como tantos outros
de parabenizá-lo. que percorreram essa mesma rota.
Marcos Valle convida Guto Wirtti Ontem, a fronteira com o Egito foi A igreja comporta uma escola, a me-
bombardeada e funcionários da imigra- lhor de Gaza. Ali, filhos dos integrantes
ção foram feridos. Todo nosso plano de do Hamas estudam e jogam bola com
evacuação caiu por terra. Não há como crianças de famílias cristãs. Como os
e muito + atravessar a fronteira, mesmo que o go-
verno egípcio autorize a nossa entrada.
padres já conhecem os brasileiros da
cidade, pensei que seria nossa melhor
Aguardamos notícias, inquietos. Os bra- opção de abrigo. Minha secretária con-
sileiros continuam em suas casas, cerca- versou por telefone com o padre, que
dos pelo bombardeio crescente. Começo concordou em dar refúgio aos brasilei-
a ficar mais preocupado, conforme eles ros. Pouco depois, no entanto, ela rece-
relatam a situação em vídeos, áudios e beu uma mensagem dele: o Exército
Ingressos:
mensagens de texto enviados em nosso israelense acabara de avisar que iria
casanaturamusical.com.br grupo de WhatsApp. bombardear o prédio ao lado. A igreja
Parentes e amigos me mandaram estava sendo evacuada. Corremos rapi-
mensagens, preocupados. É natural. Mas damente atrás de um plano B.
Cia Aérea Oficial: Apoio:

32
4 de 6 27/10/23 PROVA FINAL V2

Sou da área de humanas, não sei nada 12 DE OUTUBRO, QUINTA-FEIRA_Como


CLUBE DE REVISTAS
Ministério da Cultura e Nubank apresentam

de medicina, mas me lembrei de um cur- todos os brasileiros estavam em seguran-


so de primeiros socorros da Cruz Verme- ça, ainda que provisória, consegui dor-
lha que fiz, durante seis meses, na mir na noite passada, pela primeira vez
Universidade de Brasília. A primeira coi- em dias. Hoje foi um dia um pouco mais
sa que aprendi é que, em situações de tranquilo. À noite, contudo, começaram
catástrofe, devemos manter a calma, o bombardeios intensos em Gaza. Uma
controle, a visão de conjunto e não tomar jovem brasileira de 18 anos, Shahed al-
decisões por impulso. Tudo precisa ser Banna, permanecia em casa com sua
feito com total segurança. Eu me lembro irmã e sua avó. Elas optaram por não ir
de o instrutor dizer em uma das aulas para o abrigo. Mas a situação piorou, e
sobre acidentes de carro: “Se você ouvir Shahed gravou vídeos chorando, desespe-
uma criança chorando, está tudo bem: rada. À noite, todas elas se mudaram
isso significa que ela está viva, os pul- para a escola onde estão os brasileiros.
mões estão funcionando e o sangue está A autorização do Egito ainda não che-
circulando. Não se desespere.” É o contrá- gou. Conversei com chefes das áreas do
rio do que alguém sem treinamento pen- Itamaraty e recomendei que aumentassem
saria. O silêncio é o que mais preocupa o o nível de interlocução com os egípcios,
socorrista, porque pode indicar colapso. para que nossos brasileiros sejam autoriza-
Tento agir dessa maneira na atual situa- dos a sair antes que a situação piore.
ção: manter a calma, o equilíbrio, abrir a A imprensa tem nos procurado cada
mente para opções e não deixar que o vez mais. Dou entrevistas e mantenho um
desespero dos brasileiros me leve a tomar constante fluxo de informações com vá-
decisões precipitadas que coloquem em rios veículos. É importante que os meios
risco a segurança deles. de comunicação conheçam os dois lados
Correndo contra o tempo, uma de do conflito e mostrem o sofrimento dos
minhas funcionárias conseguiu garantir brasileiro-palestinos de Gaza. Todos es-
abrigo para o dia seguinte em outra es- tão ansiosos pela notícia da saída dos
cola católica de Gaza, a Escola das Ir- brasileiros rumo ao Egito, mas a realida-
mãs do Rosário, que muito gentilmente de teima em negar a manchete.
aceitou acolher os brasileiros. Já era noi- Minha equipe (que chamo de dream
te, os bombardeios continuavam, mas team) está dividida em dois grupos, devi-
agora o nosso grupo poderia esperar em do às dificuldades de acesso a Ramallah.
segurança a abertura da fronteira. Diplomatas e oficiais de chancelaria tra-
balham em Jerusalém, cuidando dos as-
11 DE OUTUBRO, QUARTA-FEIRA_ As famí- pectos estratégicos e de segurança. Os
lias chegaram à escola logo de manhã. contratados locais, responsáveis pela
Depois da aflição de ontem, foi um mo- parte operacional, atuam em nosso es-
mento bonito. Uma das crianças, um critório em Ramallah.
menino de 11 anos chamado Bader,
gravou vídeos agradecendo ao Brasil 13 DE OUTUBRO, SEXTA-FEIRA_Ao acordar, 20.10.2023 –
por tê-lo protegido. “Senti muita segu-
rança, porque aqui a gente não pode
fui surpreendido pelo ultimato de Israel:
todos os habitantes do Norte da Faixa de 25.2.2024
morrer. Aqui é limpo, que beleza. Obri- Gaza deveriam migrar para o Sul.
gado, Brasil”, ele disse. O local é uma Liguei imediatamente para a direto-
escola, não uma casa. Mas, dada a situ- ra da escola onde estavam os brasileiros,
ação que estão vivendo, já foi um alívio. para saber o que fariam. Ela disse: “Re-
Por meio da embaixada em Tel Aviv, cebemos a instrução de permanecer
informamos a Israel que havia brasilei- aqui.” Consultei, em seguida, o núncio
ros na escola e pedimos que ela fosse apostólico, representante diplomático
poupada das bombas. da Santa Sé. “Israel mandou irmos para
Uma jovem psicóloga que já conhe- o Sul, mas, se formos nessas condições,
cíamos se colocou à disposição dos bra- será a marcha da morte”, ele me disse.
sileiros para orientá-los nessa situação “Não há onde ficar.” A ordem era man-
traumática. Como ela mora em Ra- ter tudo como estava. Depois liguei
mallah, não pôde se encontrar com eles para o assessor internacional do patriar-
presencialmente, mas passou a mandar ca latino de Jerusalém, dignitário da
mensagens no nosso grupo de WhatsApp. Igreja Católica na Terra Santa e respon-
Deu dicas de respiração que acalmam, sável pelos imóveis da igreja naquela
recomendou que os pais contem histó- região. Mesma resposta.
rias para as crianças, recordem dos bons O ultimato tinha duração de 24 ho-
momentos no passado, cantem músicas, ras. Telefonei para representantes das
estejam unidos em grupo, abracem seus Nações Unidas em busca de um abrigo
corpos e travesseiros e tentem se imagi- para as famílias, mas todos os bunkers
nar num lugar calmo e seguro. estavam lotados. Os hotéis também. Fi-
Depois que informamos Israel sobre camos aflitos. Mesmo que a escola seja
a escola, escrevi uma mensagem para segura, o bairro já não é mais. Nosso Patrocínio Apoio
os brasileiros: “Vocês estão num oásis oásis estava em perigo. Os brasileiros nos master cultural

de segurança.” Tudo ao redor estava escrevem e mandam vídeos dos bombar-


sendo bombardeado, mas a escola era deios próximos. Estão desesperados para
segura. Mencionei o Salmo 91: Mil cai- sair de lá. As crianças choram de medo.
rão ao teu lado, e dez mil à tua direita, Tomamos uma decisão: como não
mas tu não serás atingido. Queria que temos abrigo no Sul, pedimos aos brasi-
se sentissem protegidos. leiros de Khan Younis para abrigar em
Apoio Coorganização Realização

piauí_novembro 33
5 de 6 27/10/23 PROVA FINAL V2

suas casas, provisoriamente, os brasilei- lias brasileiras: “Jantem e durmam bem


CLUBE DE REVISTAS
Tínhamos poucos minutos para to- chão, desfrutando de pratos comparti-
ros do Norte. Quando a fronteira com o que amanhã a gente tira vocês daí.” mar uma decisão arriscada. Manter lhados, à moda árabe, com homus e
Egito for aberta, todos sairão juntos. todo mundo em Gaza, conforme nos pita. Quando vi a foto, fiquei muito fe-
Eles aceitaram. A hospitalidade é um 14 DE OUTUBRO, SÁBADO_Um dos dias recomendavam, ou atender ao clamor liz. O motorista do ônibus, que os levou
traço forte da cultura árabe. mais difíceis da minha vida começou do grupo, que estava desesperado para até Rafah, dormiu na casa com eles.
Pedi à minha secretária que comuni- com uma boa notícia: ficamos sabendo sair? Após consultar algumas pessoas,
casse a decisão à empresa de ônibus que que, do meio-dia às cinco da tarde, se- apresentei a Brasília as duas opções. Su- 15 A 19 DE OUTUBRO_Temos agora dezes-
tínhamos contratado. Eles deveriam ir ria aberto um corredor humanitário geri que tirássemos os brasileiros da es- seis brasileiros em Khan Younis e dez
até a escola, embarcar os brasileiros e para que as pessoas pudessem deixar a cola e pedi instruções. em Rafah aguardando, impacientes, a
levá-los a Khan Younis. São pouco mais Faixa de Gaza rumo ao Egito. Um com- A decisão cabia a mim, e eu sabia que, abertura da fronteira. Felizmente, todos
de 20 km de distância. A empresa disse boio internacional teria caminho livre se errasse, nunca conseguiria me perdoar. estão abrigados e bem alimentados. Nos-
que tudo bem, mas o ônibus não chega- para escapar da guerra. Foi uma festa. Em 36 anos de diplomacia, nunca vivi sa lista, que inicialmente tinha trinta
va. Perdemos contato por telefone e in- Os brasileiros estavam ansiosos para algo assim. Entre 2011 e 2012, quando pessoas, varia de dia para dia, já que al-
ternet com o motorista. Para piorar, sair. Confirmamos a informação com trabalhava na embaixada brasileira em gumas famílias desistem da repatriação,
recebemos a notícia de que a estrada autoridades de Israel. “O corredor vai Bogotá, participei das operações sigilosas e depois voltam atrás. No dia 16, come-
tinha sido bombardeada e que setenta ser aberto ao meio-dia. Não saiam antes de resgate dos reféns das mãos das Forças çaram a ocorrer bombardeios nas duas
pessoas tinham morrido. Pensávamos, disso”, eles disseram. Armadas Revolucionárias da Colômbia, cidades. Como de praxe, informamos a
angustiados: “Será que bombardearam A alegria durou pouco. Às 11h38, as Farc. Era o começo do processo de paz Israel sobre a localização dos brasileiros,
nosso ônibus?” recebemos uma mensagem das autorida- entre o governo e a guerrilha, e os dois para que suas casas sejam poupadas.
No fim da tarde, graças a Deus, soube des israelenses: “A fronteira será fechada lados só confiavam no Brasil para fazer o Mas não é um grande consolo: mesmo
que o ônibus tinha chegado à escola novamente. Recomendamos a todos que resgate. Nosso governo enviou helicópte- sabendo que a casa está protegida, ve-
para apanhar os brasileiros, que estavam permaneçam onde estão.” Ficamos no ros e executou uma complexa operação mos vídeos, enviados pelos brasileiros,
todos bem. Mas, como já era quase noite limbo, entre duas informações contra- na selva colombiana. Foi uma costura mostrando bombardeios perto dali. Bair-
quando o veículo chegou, achamos me- ditórias: primeiro disseram para todo política e institucional muito tensa. Mas ros próximos estão sendo destruídos.
lhor não seguir viagem. Não era seguro mundo deixar o Norte de Gaza, depois nada disso chega perto do que estou vi- Os brasileiros nos pediram ajuda: esta-
naquele horário, poderia haver ataques. disseram para ninguém sair. Vão conti- vendo nessa guerra. A responsabilidade va começando a faltar água, comida, gás
Israel estava empurrando as pessoas para nuar bombardeando e não permitem agora era toda minha. Tive que resolver, e remédio. Mandamos mais dinheiro, e
o Sul, mas jogava bombas no caminho. que as pessoas se desloquem? em poucos minutos, o que fazer com a eles puderam fazer feira. Novamente nos
Nossos colegas da embaixada em Tel Dei a notícia para as famílias na es- vida de mais de dez brasileiros, metade enviaram fotos e vídeos, contentes. Uma
Aviv comunicaram ao governo israelen- cola em Gaza. Consternação geral. Bus- deles crianças. criança estava doente, e a mãe pôde com-
se que haveria um ônibus brasileiro em quei informações com meus contatos Recebida a orientação do Itamaraty, prar remédios e fralda. Essas pequenas
deslocamento. Enviamos fotos do ôni- em Gaza, que reforçaram: “Não se mo- tomei a decisão: “Vamos tirá-los de lá.” coisas nos deixam tremendamente felizes.
bus, informamos a placa e a lista de vam.” Mas os brasileiros não estavam Novamente, avisamos às autoridades israe- Iniciamos assim a segunda etapa de
passageiros – o procedimento-padrão. aguentando mais a espera. Sabiam que lenses que haveria um ônibus brasileiro proteção aos brasileiros: após a retirada
Mandei uma mensagem para as famí- os bombardeios iam piorar. na estrada, para que não fosse bombar- da zona de conflagração principal, agora
deado. Só faltava combinar com o moto- atendíamos às demandas humanitárias,
rista do ônibus, que é palestino e estava para resguardá-los da crise que assola
muito receoso. Conversamos com ele e quase 2 milhões de pessoas em Gaza.
explicamos que o Exército israelense havia Rafah conviveu, durante dez anos,
sido avisado sobre o ônibus. Ele cedeu, com tropas brasileiras. A primeira mis-
mas disse: “Se é pra sair, vamos agora, por- são de paz que o Brasil assumiu junto à
que é um bom horário.” Eram 13 horas. onu teve início em 1957, após a Guerra
Avisei a todos da escola: “Entrem de Suez, em que Israel, França e Reino
agora no ônibus. Vocês vão para Khan Unido lutaram contra o Egito. Os solda-
Younis.” Eles juntaram os pertences ra- dos brasileiros ficaram instalados em
pidamente e embarcaram. Prevendo Rafah e ajudavam a proteger os habitan-
fiscalização e engarrafamento nas estra- tes da Faixa de Gaza. Isso marcou as
das, o motorista estimou o tempo de pessoas da região. O local onde ficava o
viagem em duas horas. No fim, durou batalhão brasileiro hoje é um bairro
45 minutos. Foi um milagre. Eu estava chamado Al Brasil, que conta inclusive
respondendo mensagens do trabalho com um campinho de futebol. Os pales-
quando recebi uma ligação de minha tinos mais velhos, que eram crianças
secretária. “Eles já chegaram a Khan naquela época, se lembram dos brasilei-
Younis”, ela disse. Agradeci a Deus. ros com muito carinho.
Que notícia maravilhosa! Tínhamos Tive a chance de visitar Rafah duran-
cumprido a primeira e mais importante te a Copa do Mundo, em novembro
parte do trabalho: tirar os cidadãos bra- do ano passado. Assisti ao jogo do Brasil
sileiros da zona de conflito. contra a Suíça com os moradores de lá.
Em Khan Younis, o plano era que eles Foi uma festa de confraternização, noti-
se dividissem entre as casas dos brasilei- ciada na tevê local. A convite das lideran-
ros que vivem lá. Mas, como chegaram ças comunitárias, plantei uma oliveira,
cedo, tiveram tempo de procurar outros que, espero, ainda esteja de pé. Quero
imóveis. Acabaram encontrando uma visitá-la e rever as pessoas que conheci,
casa em Rafah, localizada a 1 km do pos- que, também espero, estejam vivas.
to de imigração. Dava para ir andando Agora nos resta aguardar. No dia 14,
até a fronteira com o Egito. Eles nos pas- o presidente Lula conversou com o pre-
saram os detalhes da casa, minha secre- sidente do Egito, Abdel Fattah al-Sissi, a
tária ligou para o proprietário e alugou. respeito da urgência de abrirem as fron-
É uma casa simples, mas espaçosa, teiras. Nossa operação está toda pronta.
com vários cômodos, um lugar acolhe- No dia 18, o avião presidencial da fab
dor. Mandamos dinheiro para que eles reservado para os brasileiros na Palestina
comprassem comida e água. À noite, voou de Roma para o Cairo. Assim que
nos enviaram uma foto do jantar que a fronteira for aberta, vamos embarcá-los
prepararam. Todos estavam sentados no num ônibus até a capital do Egito. Serão

34
6 de 6 27/10/23 PROVA FINAL V2

400 km de uma viagem exaustiva pelo alimentos e água que puderem, façam
CLUBE DE REVISTAS
Não são apenas os brasileiros que convosco)!” Logo depois pude perceber,
Deserto do Sinai. Chegando lá, eles po- estoque.” Não é mais possível conseguir aguardam resgate: há milhares de ame- em nosso grupo de WhatsApp, que a con-
derão finalmente voar para o Brasil. pão na região, então eles têm comprado ricanos, turcos, marroquinos, europeus versa deu ânimo aos brasileiros.
farinha de trigo para fazer o pão em casa. de diferentes nacionalidades. Mas a
20 A 26 DE OUTUBRO_Nada mudou. Inér- Há um lado bom nisso: assim, eles põem fronteira entre o Egito e a Faixa de Gaza 27 DE OUTUBRO_Os bombardeios se in-
cia angustiante diante de uma situação a mão na massa, literalmente, e esque- é sensível. Qualquer ação ali depende tensificaram tanto em Khan Younis
humanitária que se agrava e pode afetar cem um pouco do que está acontecendo da coordenação do Egito com Israel e quanto em Rafah. Ontem à noite, tropas
os brasileiros, até agora protegidos. Espe- ao seu redor. Os grandes galões d’água, com as autoridades do Hamas. Os israe- israelenses fizeram uma pequena incur-
rávamos que, depois da visita do presiden- cada vez mais raros, são transportados lenses temem que, com a abertura da são por terra ao Norte de Gaza. Isso vi-
te Joe Biden a Israel, no dia 18, a fronteira em carroças puxadas por jumentos. Lem- fronteira, terroristas fujam para o Egito. nha sendo anunciado havia dias. Hoje, a
fosse aberta, mas isso não aconteceu. No bro-me do interior do meu Nordeste. E os egípcios, por sua vez, querem evitar invasão começou a ser feita em maior
dia 21, sábado, foi autorizada a entrada na Os bombardeios continuam aconte- um fluxo descontrolado de milhares de escala, com tanques e artilharia. Por
Faixa de Gaza de vinte caminhões levan- cendo, sempre à noite. Para as crianças, refugiados na Península do Sinai. causa das bombas, a empresa Jawal aca-
do água, comida, remédios. O mesmo se é traumático. Não é só o barulho das No domingo, dia 22, fui a Ramallah ba de interromper os serviços de internet
repetiu no domingo e na segunda-feira. bombas que assusta, mas também do voo pela primeira vez desde o início do con- e telefonia na Faixa de Gaza. Perdemos
Diante das necessidades da população, rasante dos aviões F-16. A psicóloga ainda flito. Compareci a um encontro com o a comunicação com praticamente todos
isso não é nada. Estima-se que, antes da envia orientações no nosso grupo de primeiro-ministro da Palestina, Mo- os brasileiros, exceto uma família que
guerra, entre 200 e 400 caminhões passa- WhatsApp. Uma das mães brasileiras res- hammad Shtayyeh. Desde então, passei está em Rafah. Esperamos que, por
vam todos os dias pela fronteira de Rafah. pondeu a ela: “Só vou poder seguir suas a me deslocar diariamente até nosso meio dela, nós possamos fazer contato
Os poucos mantimentos foram en- dicas quando estiver de volta ao Brasil. escritório. Troco informações constan- com os demais brasileiros.
viados para os abrigos da onu e do Cres- Aqui não dá. É impossível dormir com temente com colegas do Itamaraty e Todos os dias, vou ao Santo Sepulcro,
cente Vermelho. Não beneficiaram os esses bombardeios.” Mesmo o apoio psi- com a imprensa. Considero fundamen- na Cidade Velha de Jerusalém, e rezo.
brasileiros, que não estão nesses locais. cológico tem limite em situações assim. tal o contato com jornalistas: vendo as Peço a Deus que tenha misericórdia das
É melhor que não estejam: instalações Recebi de uma das brasileiras a se- notícias, os brasileiros da Faixa de Gaza famílias que estão sofrendo. Recebo ví-
da onu têm sido bombardeadas por Is- guinte mensagem: “A gente vai morrer sabem que não estão sós, que o Brasil deos dos bombardeios, de crianças cho-
rael. Por enquanto, temos enviado di- e o mundo inteiro vai assistir.” Leio re- todo está torcendo por eles. rando, de corpos dilacerados. Antes de
nheiro para que os brasileiros façam latos como esse enquanto assisto à reu- Participei, no dia 26, de uma videocon- perdermos contato por Whats App, eu
compras por conta própria em Rafah e nião do Conselho de Segurança da ferência do presidente Lula com as famí- dizia aos brasileiros: “Não abandona-
Khan Younis. Estão seguros em suas onu. Fico pensando: seria melhor se lias que estão em Khan Younis. Não foi remos vocês.” Evito fazer qualquer pre-
casas, por enquanto. essa reunião acontecesse não no elegan- possível falar com os brasileiros de Rafah, visão de quando serão resgatados.
No dia 23, eles me disseram que seu te salão da Primeira Avenida, em Nova que estavam com a internet instável. “Co- Nossa missão está 90% cumprida. Ago-
estoque de comida e água era suficiente York, mas em um clube comunitário de ragem, mantenham a esperança, tudo vai ra falta só 1 km.* J
para durar cinco dias. Não sei se vamos Rafah. Os representantes diplomáticos dar certo”, disse o presidente. “Vocês vão
* Até o fechamento desta edição, em 27 de outubro,
conseguir resgatá-los em cinco dias, en- teriam mais sensibilidade e pressa para sair daí e voltar ao Brasil. Como vocês di- os brasileiros continuavam retidos na Faixa de Gaza
tão disse a eles: “Comprem o máximo de resolver a situação. zem, Salaam Aleikum (que a paz esteja sem poder se deslocar para o Egito.

LANÇAMENTO
SELO SESC

PASTORAS DO ROSÁRIO
da nebulosa ao brilho

O álbum Da Nebulosa ao Brilho é uma celebração à musicalidade das


Pastoras do Rosário através de suas vozes corais, batuques ancestrais e a
herança viva de suas tradições. Com participações de Luedji Luna, Lia de Itamaracá,
Izzy Gordon, Fabiana Cozza, Tita Reis, Jongo de Guaianás, Carlos Casemiro e
Sérgio Pererê.

DISPONÍVEL EM CD E NAS
PLATAFORMAS DE STREAMING

sescsp.org.br/selosesc
piauí_novembro 35
1 de 3 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
anais da guerra e da diplomacia III

O JUDEU IMAGINÁRIO
A extrema direita estimula a comunidade judaica a criar inimigos internos

MICHEL GHERMAN

C
omo quase todas as pessoas que grupo grande de WhatsApp que se mos- um dia depois do início da Guerra do bárie, ouvi a notícia de que um conhecido
conheço, fui pego de surpresa trou para mim revelador do que ocorre- Yom Kippur. Era impressionante, simbo- meu havia sobrevivido, mas perdera toda a
no dia 7 de outubro, sábado. ria em Israel, na Faixa de Gaza e – o que licamente, que meio século depois esti- família. Saber disso pela rádio me deixou
Eu estava envolvido nesse dia seria minha surpresa – também no Bra- véssemos presenciando uma falha tão atordoado. Pensei em cancelar a participa-
com preparações de aulas e ati- sil. A mensagem vinha de Israel. A voz grave da segurança e da inteligência de ção no debate, mas reavaliei, e continuei
vidades de fim de semana, quando meu feminina, com sotaque carioca e ritmo Israel. Estava claro que o massacre produ- meu caminho até a universidade. De tão
telefone começou a tocar. Era manhã no israelense, dizia que estava bem, que ziria mudanças estratégicas inimagináveis desorientado, perdi o caminho para entrar
Brasil e tarde no Oriente Médio. Entendi tinha se salvado, mas falava também de na região e levaria a uma reação muito na puc algumas vezes e acabei me atra-
depois que, justamente naquela hora, os tiroteios e bombas em uma festa, segun- forte de Israel contra o Hamas em Gaza. sando para o debate. Ao chegar, me disse-
acontecimentos em Israel estavam no do ela, “com muitos brasileiros”. Além de tentar obter informações so- ram que a mesa já se iniciara, porque o
auge. Familiares e conhecidos faziam Algumas horas depois entendi que a bre amigos e familiares, a preocupação clima no local “estava estranho”.
contato para saber notícias do que tinha voz era de uma sobrevivente da rave Uni- central das próximas horas era discutir a

P
ocorrido e perguntar sobre parentes e verso Paralello, criada por um dj brasilei- consequência desses ataques com colegas ara minha surpresa, o auditório esta-
amigos. Todos pediam ajuda para enten- ro e organizada por uma produtora pesquisadores e jornalistas. Era evidente va cheio e parecia dividido. Alunos
der o que estava acontecendo em um país israelense. A festa – que ocorreu na região que se tratava de um evento terrível que da puc e certa militância judaica (ao
que eu conheço tão bem. de Re’im, próxima da Faixa de Gaza – e alterava tudo que conhecíamos das rela- que parecia, também de estudantes da
Depois de responder às pessoas mais um kibutz das redondezas foram atacados ções entre palestinos e israelenses. universidade) se encontravam lado a lado,
próximas, muito angustiadas, dizendo por terroristas do Hamas, que deixaram Foi justamente por esse motivo que como que disputando espaços no auditó-
que eu me informaria sobre como estavam centenas de mortos. A maioria era jovem uma colega e amiga me chamou para um rio. Entre as cerca de cem pessoas na pla-
todos na Haaretz (forma carinhosa de e, dentre eles, havia alguns brasileiros. debate na puc-Rio, no dia 10 de outubro, teia, notei jovens com camisas de Israel e
falar de Israel), comecei a receber outras Ainda não descobri de quem era a voz. terça-feira. O objetivo era tentar entender símbolos judaicos. Confesso que, ao vê-
ligações. Agora, de jornalistas. Jornais e e avaliar os efeitos políticos dos ataques, no los, fiquei aliviado, pois estava angustiado

A
emissoras de tevê pediam minha avalia- s próximas horas foram terríveis. curto e no médio prazo. Por ser feriado na com a necessidade de ter que afirmar para
ção sobre o que estava ocorrendo, mas Além das notícias de muitos mortos, quinta-feira, imaginamos que não haveria militantes de esquerda radicalizados a im-
também sobre o que eu pensava que po- inclusive crianças, ficamos sabendo muito público no encontro. Mesmo assim, portância de considerar os atos do Hamas
deria acontecer. Não falavam mais com sobre mulheres atacadas e o sequestro de era importante iniciar a discussão e criar como terror e barbárie.
o Michel de Israel, mas com o professor. muita gente. O Hamas produzira um ce- um “observatório do conflito” para anali- Falei depois de Nizar Messari, da
Enquanto procurava informações na mí- nário de destruição e barbárie na região sar seus desdobramentos e consequências. Universidade Al Akhawayn, do Marro-
dia israelense, entendi que eu passara a ao Sul de Israel. Tudo inesperado e incom- Na terça-feira, a caminho da puc, resol- cos, que participou por teleconferência
ser, naquele momento, fonte para a aná- preensível naquele momento. O quadro vi ouvir uma rádio israelense para saber e tinha posições bem distintas das mi-
lise de um evento que eu mesmo ainda era tão extremo, que o próprio conceito das novas notícias, enquanto atravessava nhas sobre o Hamas e a questão palesti-
custava a entender. de “ataque terrorista” não parecia sufi- os engarrafamentos da Lagoa Rodrigo de na. Não demorei a entender que aqueles
Dentre todas as mensagens e telefo- ciente para explicar os acontecimentos Freitas. Em meio a relatos sobre os corpos estudantes apinhados em um setor do
nemas, foi justamente um áudio em um daquele 7 de outubro – cinquenta anos e encontrados e as reais proporções da bar- auditório eram pessoas conservadoras,

36
2 de 3 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS

JACK GUEZ_AFP_2023
Estudante segura as bandeiras palestina e israelense, em protesto contra Netanyahu, ainda antes do conflito: para Olavo de Carvalho, A paixão de Cristo, de Mel Gibson, não era antissemita

produto da dinâmica de colonização do ali um divórcio entre escuta e compreen- sa e efeito, entre a participação daqueles terroristas. Assim se constitui o sistema
judaísmo pela extrema direita nos últi- são, entre as falas e a percepção do que era jovens e o ímpeto deles de nos interrom- de ameaça e pânico.
mos anos. Um misto de indignação, dito, entre nós e eles. Depois de receber o per. Alguns de nós passávamos a ser vistos Nesse sentido, o encontro na puc se
raiva e desespero marcava seus rostos, microfone, a jovem afirmou que alguns como “professores que apoiam o Hamas”. tornou mais um palco para a campanha
enquanto eu falava do Hamas como de nós não podíamos estar sentados à Dentre os que supostamente apoiavam o da extrema direita pós-Bolsonaro. Imbuí-
grupo terrorista e avaliava os atos come- mesa. Eu, inclusive, deveria ser interdita- grupo terrorista, estava justamente eu, dos do propósito de denunciar inimigos, os
tidos em Israel como uma barbárie de do. “Você não nos representa”, ela disse. que havia me identificado como um ju- jovens que estavam no debate com bandei-
consequências imensuráveis. A ideia autoritária de “representação” deu de esquerda e sionista. ras e camisetas de Israel precisavam calar
Minha percepção sobre a irritação da- absoluta produzia a percepção clara de Acusar um judeu sionista de apoiar os de dentro – os próprios judeus –, antes
queles jovens aumentou quando falei da que aqueles jovens não estavam ali pa- o Hamas fortalece a perspectiva de de atacar os de fora. Colonizados por uma
importância de avançar na solução de dois ra escutar um debate acadêmico, mas para que existe um complô de professores que sanha de delação, esses jovens colocaram
Estados, um israelense e um palestino, e afirmar suas agendas e para silenciar apoiam o terror. Porque, se eu suposta- o Hamas definitivamente na campanha
afirmei que o fracasso histórico da seguran- opositores, inclusive, um judeu sionista mente sou um apoiador do Hamas, todos política da extrema direita brasileira.
ça em Israel deveria ser imputado princi- de esquerda. No auge dos berros e ofen- os professores na universidade também Eu era parecido com esses jovens: falo
palmente à inépcia do governo de extrema sas, um dos jovens me acusou de ser são. O grupo Hamas surge assim como hebraico, sou sionista e também chorei as
direita de Benjamin “Bibi” Netanyahu e “apoiador do Hamas”. Justamente naque- mais um elemento de uma dinâmica mortes que tivemos. Por isso mesmo, mi-
seus aliados, bem como ao esgarçamento le dia, naquele momento, eu não podia que a antropóloga social Isabel Kalil nha interdição era urgente para evitar que,
social causado pela polarização no país. escutar aquilo – e me retirei do debate. chamou de “pânico moral”. afetado por emoções parecidas, eu não
Depois de minha fala, outro colega, Ali, no debate na puc, era essa a cam- pudesse “representar” os judeus brasileiros

D
Márcio Scalercio, da própria puc, apre- emorou pouco tempo para eu en- panha. A partir do debate deveria surgir em geral. A esquerda sionista era, naquele
sentou sua análise. Não fomos interrom- tender que tudo o que ocorrera não uma nova etapa de perseguição a “pro- momento, a inimiga: precisava ser calada.
pidos em nossas explanações, mas a fora uma reação espontânea dos fessores esquerdistas e doutrinadores”. Os jovens faziam esse trabalho, mas o en-
quantidade de dedos levantados durante jovens ao que eu havia dito na mesa. Os pais deveriam se preocupar com a dereço final de suas provocações tem a ver
as falas expressava bem o desejo do públi- Posts produzidos logo que deixei o evento doutrinação esquerdista de seus filhos com objetivos mais ousados.
co – o desejo de que parássemos de falar mostraram que “o endereço estava na universitários e, mais do que isso, deve- O debate na puc me trouxe à memória
e deixássemos que eles tomassem as ré- parede”, como diz uma expressão israe- riam aderir à campanha “Denunciem outra palestra, a de Jair Bolsonaro na So-
deas do evento. Era como se o que está- lense para designar que estava tudo mui- seus professores apoiadores do Hamas”. ciedade Cultural, Esportiva e Recreativa
vamos dizendo fosse, para alguns dos to claro. Nas redes sociais, espalharam-se O debate era apenas mais uma etapa Hebraica do Rio de Janeiro, em 2017. Para
presentes ali, insuportável. Mais que isso: comentários de um médico bolsonarista desse processo todo. Lula, o pt e a es- o então deputado federal, era preciso in-
era como se fosse algo a ser interditado, tratando alguns de nós (principalmente querda já tinham sido acusados nas re- dicar aos aliados judeus e não judeus de
censurado, expulso daquele ambiente. os judeus) como antissemitas e também os des sociais de “apoiar o Hamas” por extrema direita que os que se encontra-
No momento das perguntas, efetiva- de um deputado do pl que nos acusava de deputados e grupos da extrema direita. vam fora do clube não representavam o
mente, uma jovem confirmou essas im- apoiadores do Hamas – o que permitiu Para essas pessoas, defender a causa pa- “judaísmo verdadeiro”. Foi o que também
pressões, deixando perceber que ocorria estabelecer uma nítida conexão entre cau- lestina é equivalente a apoiar grupos ocorreu naquele debate. Para os jovens

piauí_novembro 37
3 de 3 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
Nós falamos sobre os “judeus antijudeus”. Exigia que os judeus de esquerda fossem
Esse livro é absolutamente indispensável. tratados como inimigos, pedia que o ju-
Se chama To eliminate the opiate, escrito daísmo secular fosse desconsiderado.
pelo rabino Marvin Antelman, e é a histó- Apontava sinais e classificava inimigos.
ria da progressiva ruptura que vai aconte- Mostrava quem eram os judeus “falsos”,
cendo dentro da comunidade judaica a pretendendo proteger os judeus “verda-
partir do surgimento de seitas gnósticas deiros”. Criava as fronteiras que separa-
no século XVII, que vão ser antepassados vam um judaísmo do bem. Um judaísmo
dos movimentos revolucionários de mas- imaginário, que deveria se estabelecer
sa dos séculos XIX e XX. [...] Você vê um su- como uma comunidade religiosa, políti-
jeito como o Noam Chomsky. Eu garanto ca e ideologicamente definida.
ANDRÉ DAHMER_2023

que grande parte da comunidade judaica O judeu imaginário era aliado do


de Nova York ainda recebe ele, “ah, ele é Ocidente, anticomunista, ultracapitalis-
um dos nossos, trata ele bem, carrega ele ta, estava armado contra os inimigos,
no colo. Senta aqui, ele só quer que Israel constituía um muro que impedia a ex-
acabe, mate todo mundo lá, que ponha pansão do Oriente. E era também (um
todo mundo pra fora. Mas, tirando isso, é pequeno detalhe que podia incomodar)
boa gente”. Essa história de carregar o pró- cristão. Ou melhor dizendo, fazia parte
prio traidor no colo é coisa de... são dois da comunidade judaico-cristã.
povos que fazem isso muito bem, os ameri- Os judeus reais que não se encaixa-
canos e os judeus, mas isso é alimentar seu vam nessa definição eram aliados dos
próprio assassino, seu próprio inimigo. inimigos, deveriam ser higienizados e
afastados da comunidade e das estrutu-

A
fala de Olavo de Carvalho sobre ras comunitárias. Para assegurar isso,
quem deve estar fora ou quem Carvalho recorreu ao livro de Antel-
judeus na puc, eu não era um represen- sua coluna do jornal O Globo, em mar- deve estar dentro da “comunidade man, um judeu de extrema direita e,
tante legítimo. Era apenas um “esquerdis- ço de 2004, com uma defesa do filme judaica” é chocante. Porém, mais cho- portanto, confiável, na sua concepção.
ta”, um “apoiador do Hamas”. Era um A paixão de Cristo, dirigido por Mel cante ainda foi a reação da plateia. No Carvalho não desapareceu – e o
judeu não judeu, um “antissemita”, ape- Gibson e acusado de ser um libelo an- vídeo completo da palestra na Hebraica, processo de colonização do judaísmo
sar de tudo o que eu havia dito no debate. tissemita. Carvalho escreveu: não se nota nenhum tipo de desconforto brasileiro não parou, com o crescente
Meu recado aos judeus é simples: ne- da parte do público ao escutar um não antissemitismo na esquerda e o surgi-

E
m uma descrição do extremismo nhum mal lhes virá pelo lado cristão. Os judeu tratando, de maneira conspiracio- mento da extrema direita no país. Sinal
político, o filósofo israelense Yesha- inimigos de Israel são hoje os inimigos da nista – por que não dizer, antissemita? disso foi a palestra de Bolsonaro na He-
yahu Leibowitz utilizou a parábola cristandade. Se vocês querem mesmo saber – da necessidade de higienização do braica do Rio de Janeiro, em 2017. Sem
de um avião com dois grupos de pessoas. de onde vem o perigo, leiam o livro do rabi- judaísmo brasileiro, e colocando limites a pretensa erudição de Carvalho, o en-
Os extremistas seriam aqueles que tra- no Marvin S. Antelman, To eliminate the ideológicos e políticos para uma comu- tão deputado federal também fez exigên-
zem o maior número de pessoas para seu opiate (Jerusalém, The Zionist Book Club, nidade historicamente constituída por cias de limpeza comunitária diante de
lado, inclinando o avião para a direita. 2 vols.). Não precisam endossar o diagnós- referências étnicas e culturais. Ao final, uma plateia de judeus. As manifestações
Eles são incapazes de avaliar o risco que tico em detalhes. Mas verão que em linhas Carvalho foi bastante aplaudido. contra a presença dele na Hebraica, pro-
correm e de ver os que se seguram nas gerais, ele está na pista certa – e essa pista É importante notar que em 2004 está- movidas por outros judeus à porta do
paredes, no outro canto da aeronave. Só passa a muitas léguas de Mel Gibson. vamos no auge da Segunda Intifada. Ex- clube, fortaleceram sua hipótese.
percebem os que se aproximam para ten- Apesar da polêmica sobre A paixão de plosões de ônibus feitos por terroristas

H
tar convencê-los de que entortar o avião Cristo, Carvalho decidiu, a partir do filme, palestinos eram assunto constante na mí- á, porém, mais um detalhe nessa
não é uma boa ideia. Em vez de escutá- abrir um diálogo com os judeus, afirman- dia, como também as reações do Exército história, em um interessante pro-
los, os extremistas decidem acusar de do que não se tratava de uma produção de Israel. Debates sobre a construção do cesso de “rediasporização” e de me-
traidoras as pessoas que tentam conver- antissemita. Ele disse mais: que os ju- muro de segurança e o isolamento impos- tainfluências: o atual governo de Israel
sar com eles, enquanto ignoram os que deus e os cristão têm os mesmos inimigos. to a Yasser Arafat pelas forças de segurança promove conflitos semelhantes no inte-
permanecem tentando salvar sua pele E indicou ainda uma leitura específica de Israel eram temas que colocavam seto- rior do Estado judeu. Dentro e fora, ini-
do outro lado do avião. para que se entendesse do que estava fa- res da comunidade judaica em uma posi- migos e aliados, religiosos e seculares,
O trágico, lembra o filósofo, é que o lando: um livro de Marvin Antelman, um ção defensiva, enquanto o debate sobre “a asquenazitas e sefarditas, pró-palestinos e
avião que voa torto não vai muito longe. autor conspiracionista de extrema direita questão palestina” era visto com mais e pró-Israel: essa é a gramática de Bibi Ne-
O destino de todos é morrer, tanto os que acusa setores da população judaica de mais simpatia por setores da esquerda e da tanyahu, que também coloca o judaísmo
extremistas que decidiram inclinar o serem as maiores ameaças ao povo judeu. sociedade brasileira como um todo. imaginário como referência. A extrema
avião para a direita, como os que tenta- Apesar de ter defendido um filme Nesse contexto, alguém que dizia que direita israelense utiliza os mesmos méto-
ram convencê-los a manter o avião num considerado por judeus do mundo inteiro os inimigos dos judeus são os mesmos da dos para desenhar as novas fronteiras do
plano reto, e ainda os que permanece- como antissemita, cerca de dois meses cristandade passava a ser visto com sim- “verdadeiro” e do “falso” judeu. Manifes-
ram se segurando no outro canto. Trági- depois Carvalho foi convidado para dar patia, apesar de suas posições sobre o tações ocorridas antes da guerra e a pola-
co é que, antes do acidente fatal, mesmo uma palestra no clube A Hebraica de São antissemitismo. Carvalho considerava a rização dos discursos são prova disso.
os que tentam dialogar são tratados Paulo. (Convenhamos, poucas honras “cristandade” como formada por cristãos Nesse contexto, depois da fala de
como inimigos. desse tipo foram cedidas a defensores de fundamentalistas e reacionários, para os Carvalho e de Bolsonaro em clubes ju-
Essa perspectiva pode nos ajudar a en- diretores acusados de antissemitismo.) quais o judaísmo é apenas uma etapa da deus, o acontecimento na puc seria
tender os processos de construção da extre- Na palestra na Hebraica, em maio civilização judaico-cristã como um todo. mais um chamado à limpeza comuni-
ma direita no Brasil. Principalmente com de 2004, ele decidiu aprofundar o que Ele apoiava Israel e convidava a comu- tária que vem ocorrendo nos últimos
suas dinâmicas de “sequestro” de grupos dissera em sua coluna em O Globo: nidade judaica a aderir a um setor da vinte anos – e uma adequação local aos
sociais, étnicos e religiosos específicos. Na hora que você aceita que existem política que poderia se fortalecer nos pró- ditames de Netanyahu em Israel.
Nesse contexto, vale lembrar as relações judeus ortodoxos e não ortodoxos, significa ximos anos, em oposição aos governos do A extrema direita brasileira usa o Ha-
estabelecidas por Olavo de Carvalho com que você meteu na sua cabeça que existe pt e à esquerda em geral, com suas fre- mas para promover o pânico moral entre
setores da comunidade judaica brasileira. uma identidade judaica alheia à tradição quentes críticas a Israel. O polemista ofe- pais de alunos, levando-os a considerar
Em meu último livro, O não judeu judaica. E essa identidade simplesmente recia a chave de entrada para posições ao os professores como apoiadores do terror
judeu, a tentativa de colonização do ju- não existe. [...] Ou existe o vínculo com al- mesmo tempo filossemitas e não judai- e uma nova ameaça. Enquanto isso, mem-
daísmo pelo bolsonarismo (Fósforo, guma tradição e existe alguma lealdade cas. Parecia um sonho: “Alguém de fora bros da comunidade dos judeus imagi-
2022), trabalho com as sinalizações ini- que é necessário ter, para com as origens da que nos apoia aqui dentro.” nários se preparam para apresentar seus
ciais de Carvalho a setores da comuni- comunidade, ou então ela não existe mais. Carvalho, é claro, trazia algumas de- Chomskys locais. Ou seriam os Spino-
dade judaica. Uma das primeiras foi em [...] Eu queria indicar outro livro pra vocês. mandas. Ele exigia uma limpeza interna. zas contemporâneos? J

38
CLUBE DE REVISTAS
Seu leão pode colorir a ATÉ

vida de muitas crianças 27/12


Doe seu Imposto de
Renda para o Hospital
Pequeno Príncipe

No Brasil, apenas 2,86% do potencial de doação de IR da população foi destinado


para instituições filantrópicas em 2022. Isso representa mais de R$ 9 bilhões que
poderiam impactar o cenário da saúde no país.
E você, ao destinar até 6% do seu Imposto de Renda para os projetos do maior
hospital pediátrico do Brasil, pode contribuir para mudar essa realidade,
de forma fácil e sem custos.
Ajude a transformar a vida de milhares de crianças e adolescentes.
Acesse doepequenoprincipe.org.br, simule seu potencial de doação, preencha
o formulário e solicite seu boleto.
Para mais informações, escaneie o QR code ao lado
e fale com a nossa equipe.
Contamos com você!

(41) 2108-3886 (41) 99962-4461


doepequenoprincipe.org.br
1 de 3 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
questões políticas

OS LIMITES DO
RESSENTIMENTO
Recorrer à psicologia para explicar por que a extrema direita atrai
seguidores só mascara a impotência da esquerda

VLADIMIR SAFATLE

O anjo caído (detalhe), de Alexandre Cabanel: a ideia

U
m dos fatos mais marcantes das descrever pretensas regressões próprias a cologia social nasceu em meados do sécu- Algo dessa concepção alcançou o sé-
análises sociais dos últimos anos grupos e populações que teriam abando- lo xix dessa forma, analisando processos culo xx, que será prodigioso em recorrer
é a profusão de conceitos psico- nado a argumentação racional para su- revolucionários, como a Comuna de Pa- a conceitos psicológicos para explicar o
lógicos usados para descrever cumbir a sistemas de crenças arcaicas, ris (1871) e outras insurreições populares fascismo, o nazismo e o autoritarismo em
dinâmicas políticas. Tanto nas representações infantis de amparo e rela- na Europa, como decorrentes de regres- geral, assim como os processos de segrega-
universidades quanto na imprensa não é ções baseadas em emoções. Ou seja, tudo sões cognitivas e comportamentais. A re- ção social. É o que vemos, por exemplo,
difícil deparar com textos sobre política se passa como se descrevêssemos uma flexão sobre fenômenos político-sociais se em Psicologia de massas do fascismo (1933)
perpassados por termos como “ressenti- pretensa regressão psicológica de massa, apoiava na noção, hegemônica à época, de Wilhelm Reich, nos Estudos sobre a
mento”, “narcisismo”, “pulsão de morte”, e não um conjunto de ações articuladas e de doença mental como degenerescência, personalidade autoritária (1950), feitos
“emoções”, “ódio”, “ansiedade”, “para- coerentes de questionamento político. como regressão a estágios anteriores ao de- por Theodor Adorno e o grupo de pes-
noia”, “regressão”, “sadismo”, “sentimento É preciso se perguntar, porém, se tal senvolvimento psicológico e à maturação. quisadores e pesquisadoras da Universi-
de superioridade ameaçado”. Esse extenso psicologização do campo político tem Em sociedades nas quais a noção de dade da Califórnia em Berkeley, assim
vocabulário, usado como se desvelasse um uma real força explanatória. O que real- “progresso” era o horizonte normativo fun- como nas obras de Erich Fromm, Geor-
segredo, procura indicar causas ou moti- mente explicamos quando dizemos que damental, a doença e a loucura eram vistas ges Bataille e Bruno Bettelheim sobre o
vações para os desafios atuais da política, pessoas envolvidas em ataques terroristas como uma espécie de marcha a ré do de- fascismo, nos trabalhos de Otto Fenichel
em particular a ascensão da extrema direi- são impulsionadas pela pulsão de morte? senvolvimento. Daí as associações, tão sobre o antissemitismo, entre tantos ou-
ta em várias partes do mundo. Ou que políticos indiferentes às mortes aceitas no passado, entre o “selvagem” e a tros. Essas ideias alcançaram até mesmo
Se nos fiarmos em tal vocabulário, pa- da pandemia são sádicos? Ou que eleito- criança, entre as massas políticas e o doen- os franceses Gilles Deleuze e Félix Guat-
rece que, para entender esse fenômeno res de Donald Trump, Jair Bolsonaro e te mental. Todos eles teriam, supunha-se, tari, que analisaram o corpo social fascis-
que também assombra o Brasil, só mesmo companhia são ressentidos? Será que o mesmo tipo de raciocínio pré-lógico – ta a partir de categorias clínicas, como a
apelando para a psicologia. Como se a esses conceitos nos permitem enxergar movido mais por imagens que conceitos, paranoia, em livros como O Anti-Édipo:
adesão à extrema direita fosse resultado de algo que não conseguimos ver de outra por associações indevidas entre os fatos e capitalismo e esquizofrenia (1972).
reações patológicas das sociedades contra forma? Ou será que acabam por ocultar as ideias e por projeções de suas próprias Nesses casos, numa inversão de sinais
a democracia ou derivasse de processos o que não conseguimos (ou não quere- emoções no mundo. Assim, para o século em relação ao que se fez no século xix, as
irracionais que só podem ser compreendi- mos) entender? Estamos diante de um xix, a ascensão das massas à cena política associações entre violência social e regres-
dos como “regressões”, sendo que a prin- ganho analítico ou apenas da explicita- (na maioria das vezes por meio de movi- são psicológica foram aplicadas não a pro-
cipal delas seria aquilo que normalmente ção de certa debilidade da análise? mentos revolucionários) não era mais que cessos de emancipação popular, mas a
se entende por “populismo”. Pois mesmo a expressão violenta de formas de regressão contrarrevoluções conservadoras. No en-

R
não sendo um termo propriamente psico- ecorrer a conceitos psicológicos para social, similares às regressões psíquicas e tanto, essas análises não se limitam a
lógico, não é difícil perceber como “po- descrever dinâmicas políticas não é cognitivas, levando as populações a agir compreender o fascismo e suas múltiplas
pulismo” é atualmente utilizado para exclusividade de nossa época. A psi- como crianças, “selvagens” ou “loucos”. formas de segregação como reações pato-

40
2 de 3 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS

O ANJO CAÍDO (DETALHE)_1847_ALEXANDRE CABANEL (1823-89)_SIGNAL PHOTOS_ALAMY_FOTOARENA


de que eleitores de extrema direita defendem privilégios é politicamente ruim, pois coloca no mesmo nível quem se beneficia da ordem econômica e quem vive em situação de precariedade social

Q
lógicas ao pretenso progresso social e mo- uando tentamos entender as esco- A vingança anima o impulso de revogar posição segura – posição que, porém, se
ral promovido pela democracia liberal. lhas e os comportamentos de seto- todas as conquistas da era Obama, dos pac- sustentava na insegurança de muitos.
Há uma proposição ainda mais inquie- res da população identificados hoje tos climáticos ao acordo com o Irã, mas tam- Dessa forma, a explicação com base no
tante em muitos dos trabalhos: eles mos- com a extrema direita, um termo vem bém o de destruir aquilo que essas políticas ressentimento acaba por definir uma iden-
tram que as formas de autoritarismo, logo à mente: ressentimento. A partir des- visavam proteger ou preservar: a Terra e tidade de grupo, separando os que “não
violência e segregação do fascismo fa- sa ideia cada vez mais corrente, estaría- suas muitas espécies, os direitos e as prote- são como nós” (os ressentidos) dos eleitores
ziam parte dos processos de socialização mos atualmente vendo se manifestar o ções dos vulneráveis (LGBT, mulheres, mino- progressistas e abertos às mudanças políti-
e individuação das próprias sociedades ressentimento da classe média contra rias), assim como a saúde dos americanos cas, comportamentais e culturais. Essa
democráticas. Em outras palavras, o sujei- novas formas de ascensão social, o ressen- assegurada pelo Obamacare [...]. Sofrimen- explicação acaba por funcionar como fun-
to “normal” dessas sociedades tendia a timento de patrões que perderam suas to, humilhação e ressentimento não subli- damento para uma distinção moral. Pois,
normalizar comportamentos autoritários. empregadas domésticas, o ressentimen- mado tornam-se uma política permanente ao servir para traçar uma linha divisória
Reich, por exemplo, insistiu nos víncu- to de brancos contra pretos, o ressenti- da vingança, do ataque àqueles culpados clara entre “vingança” e “justiça” a partir
los orgânicos entre personalidade e os mento sexista contra mulheres e pessoas por destronar a masculinidade branca – fe- de sistemas de motivações individuais, en-
modos de socialização próprios à família lgbtqia+. A maneira que o ressentimen- ministas, multiculturalistas, globalistas, tre violência injustificada e reação justa, o
patriarcal autoritária. Tais vínculos eram to se tornou uma espécie de explicação que tanto a destituem quanto a desdenham. ressentimento permite uma moralização
ainda mais preocupantes quando lembrá- padrão mostra o quanto esse termo se tor- A colocação de Wendy Brown é inte- extensiva do campo político.
vamos que a referida família patriarcal nou útil. Mas a questão que interessa é ressante pelo que tem atualmente de mui-

P
autoritária era simplesmente a família nor- esta: útil exatamente para quê? to típico: o voto dado à extrema direita é ara entender como chegamos até
mal das sociedades burguesas. Ou seja, Surgiu nos últimos anos uma vasta analisado como a expressão de um sen- aqui, vale a pena uma lembrança de
longe de ser resultado de uma regressão, a literatura que explica o ressentimento timento de vingança social. Da mesma ordem genealógica. O bispo angli-
personalidade autoritária era fruto do fun- como reação ao progresso social e às forma, a masculinidade branca, com suas cano Joseph Butler (1692-1752) é o autor
cionamento normal de nossas famílias. lutas por direitos no interior da demo- fobias, é entendida como causa funda- de um dos primeiros textos sobre o ressen-
O que já apontava o tamanho e a comple- cracia liberal. Um exemplo é fornecido mental do trumpismo e da insensibilida- timento (Sermão 8: sobre o ressentimento e
xidade da questão. Analisar a psicologia pela cientista política americana Wen- de com relação às ditas “conquistas da era o perdão das injúrias). O fato de um pastor
das massas do fascismo não significava dy Brown, professora da Universidade Obama”. Conquistas que, parece, devem ser o primeiro a pensar sobre isso já é sinal
descrever um corpo estranho ao funcio- da Califórnia em Berkeley, que anali- ter sido tão importantes e evidentes que só de algo. Na visão de Butler, o ressentimen-
namento padrão da sociedade, mas, sim, sou as motivações que levaram amplos mesmo grupos com reações patológicas to seria o oposto da raiva impulsiva, pois
algo que fazia parte das relações correntes, setores da população dos Estados Uni- conseguem ignorá-las. Assim, o ressenti- exprimiria o desejo de revidar uma violên-
nos obrigando a repensar, de maneira es- dos a aderirem a Trump. Em seu livro mento aparece, na reflexão de Brown, cia recebida e injustificada. Ou seja, para
trutural, os processos de formação da per- Nas ruínas do neoliberalismo, podemos vinculado ao sentimento de um grupo ele, haveria no ressentimento uma avalia-
sonalidade nas sociedades burguesas. encontrar afirmações como: social que perdeu seus privilégios e sua ção que só seres racionais e capazes de

piauí_novembro 41
3 de 3 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
a desconsideração pelas “conquistas da suas escolhas, ele disse: “Sabe por que
era Obama”, em vez de ser psicologiza- não voto na esquerda? Porque sou ho-
da, não deveria ser compreendida como mem, branco, hétero, trabalho doze horas
resultado da ineficácia de tais conquistas por dia, não tenho seguro de nada, se
ANDRÉ DAHMER_2023

e da sedução exercida por discursos de adoecer ou se meu carro quebrar vou ter
ruptura estrutural nesse contexto de frus- que me virar sozinho, e vocês falam co-
tração? E não será o caso de colocarmos migo só como se eu fosse um opressor?”
esta questão fundamental, a saber: a frus- Poderíamos entender essa fala como
tração das classes baixas deve ser objeto uma forma de racionalização de senti-
de julgamento moral? mentos profundos de ressentimento. Ou
A ideia de que eleitores de extrema di- poderíamos entendê-la como a expressão
reita estão sempre defendendo alguma da incapacidade real da esquerda atual
forma de privilégio é politicamente ruim, em apresentar ações robustas e críveis
pois coloca no mesmo nível pessoas bene- para problemas de precarização e vulne-
ficiadas pela ordem econômica e pessoas rabilidade social. A extrema direita tem
em situação de extrema precariedade so- uma resposta coerente para esse proble-
cial. Com isso, só se amplia a nossa inca- ma: “Deixem cada um por si e tirem go-
pacidade para entender a natureza do vernos que atrapalham com regulações e
sofrimento social, que alimenta a expan- privilégios.” Não é certo que as correntes
são da extrema direita em setores econo- progressistas tenham respostas para efeti-
micamente vulneráveis da população. vamente realizar o que prometem.
Em seu mais recente livro, A angústia

O
utros estudos, como os do filósofo do precariado: trabalho e solidariedade no
alemão Max Scheler (1874-1928), capitalismo racial, o sociólogo Ruy Braga
propuseram que o ressentimento apresenta o resultado de uma pesquisa
decorre de expectativas de igualdade feita com trabalhadores brancos de co-
social não realizadas. Esse é um ponto munidades rurais na Pensilvânia que se
também sublinhado pela psicanalista converteram ao trumpismo. O que se de-
Maria Rita Kehl no livro Ressentimento, preende desse cuidadoso trabalho é uma
julgamentos morais poderiam fazer, pois Friedrich Nietzsche. É a partir da análise uma das análises mais ricas e significa- imagem dos trabalhadores muito distinta
se trata de definir parâmetros de justiça e crítica de nossos sentimentos morais que tivas feitas no Brasil sobre essa questão. das que circulam atualmente: precariza-
injustiça. Ressentimento não seria simples Nietzsche reflete sobre o ressentimento, Kehl foi quem mais avançou na com- dos e empobrecidos, eles percebem que
reação, mas um sentimento fundado no que, para ele, é o componente fundamen- preensão da proximidade entre o ressenti- as promessas progressistas não resultam
desejo que sujeitos têm de que a sociedade tal da subjetividade moldada pelo cristia- mento e as formas patológicas de fixação em transformações efetivas que lhes ga-
reconheça as violências das quais foram nismo. A moralidade cristã e a repressão na perda ou no dolo, que prendem o rantam qualidade mínima de vida.
vítimas, injustamente. Em larga medida, libidinal que ela promove só poderiam se outro em exigências de reparação infini- Exemplar é a história que Braga relata
é assim que o ressentimento será entendi- manter vivas graças ao sentimento de vin- ta e de vinganças imaginárias. dos trabalhadores de uma indústria pape-
do também por Adam Smith (1723-90), gança contra todos os outros que não se Ela trata nas páginas finais de seu livro leira fechada por ser muito poluente e
em Teoria dos sentimentos morais (1759). submetem ao seu sistema de regras, nor- de situações nas quais as pessoas, ao perce- que, ao ser reaberta sob o comando de
O que faz Wendy Brown é inverter mas e restrições. Essa vingança se expri- berem que são irreais as promessas de uma administração alinhada com as exi-
essa lógica e sustentar que o ressentimen- me na imposição do sentimento de culpa igualdade social, em vez de lutarem para gências ecológicas, viu a qualidade e a
to se manifesta em uma pessoa depois de a esses outros e a tudo que em nós ainda a transformação das estruturas da socieda- quantidade de seus empregos decair.
ela ser alvo de certa forma de violência, guarda as marcas da insubmissão. de, ressentem-se de sua situação e buscam Quando o Partido Democrata aparece na
que é justa, pois resulta da luta contra pri- Ou seja, na cultura formada pelo cris- alguma forma de compensação e reconhe- região acenando com “empregos verdes”,
vilégios sociais baseados em opressões tianismo, o ressentimento é o modo de cimento por meio de figuras autoritárias. os trabalhadores preferem as promessas
reiteradas. O ressentido, porém, não en- funcionamento normal dos sentimentos Elas não se voltam contra representan- de defesa de empregos e da America first de
cara assim a violência que o atingiu – ele morais. Em nossas sociedades, sem ressen- tes de força, como militares, banqueiros e Trump. Porque entendem que os “empre-
é um opressor incapaz de se ver como tal. timento não há moralidade. Nós somos os grandes industriais. Antes, procuram gos verdes” foram apenas uma maneira
Isso explica por que a tese do ressenti- ressentidos. Esse é, para Nietzsche, um compensação na raiva contra aqueles que de jogar os custos da transição ecológica e
mento é importante. Ela assegura que são julgamento que devemos aplicar a nós foram pretensamente dotados de “privilé- suas precarizações nas costas deles. A ex-
injustificadas as reações contra lutas de mesmos, como um profundo exercício de gios” e amparos, que, em sua concepção, periência que tiveram nesse sentido lhes
certos grupos sociais e ações dos governos, suspeita de si, de suspeita de nossa própria lhes teriam sido negados. E então espe- fez avaliar que a opção trumpista lhes da-
garantindo a superioridade moral dos que moralidade e da violência que internaliza- ram de figuras autoritárias a licença para va mais segurança. E aqui, mais uma vez,
não estão alinhados com a extrema direi- mos e exprimimos. Por isso, se seguirmos descarregar essa presunção de injustiça poderíamos perguntar: onde está o ressen-
ta. E, como se trata de uma tese moral a o caminho de Nietzsche, será impossível nos que teriam sido escolhidos no lugar timento? Ele é realmente necessário para
respeito de “extremistas”, ela nos autoriza fazer um uso político do ressentimento, delas – que, porém, estão marcados por entender o sistema de motivações que le-
a realizar uma série de ações com relação a já que ele não serve para distinguir “nós” experiências iguais de precariedade. vam a adesões políticas?
essas pessoas, que vão da punição legal e os “outros”. Ele serve apenas para apro- Esse é um bom exemplo de como o Certas explicações psicológicas ser-
à reeducação. Ou seja, a tese do ressenti- fundar nossa crítica sobre nós mesmos, ressentimento consegue explicar certos vem mais para esconder a impotência
mento não afeta as estruturas sociais, nem sobre o que nos tornamos. É uma estra- circuitos de violência e de falta de solida- das políticas progressistas do que para
conduz a ações nessas estruturas: é uma tégia de autoinspeção, e só. riedade social, mas é importante notar analisar as reais motivações que levam
tese sobre o comportamento de indiví- Nesse ponto, podemos nos perguntar que não estamos falando de causas, mas parte dos trabalhadores e grupos precari-
duos, o que nos leva, como todo julgamen- para que serve essa leitura moral e psico- de efeitos de decisões e escolhas políticas. zados a se converterem à extrema direita.
to moral, a focar as ações nos indivíduos. lógica das demandas sociais, pressuposta Por isso, não faz sentido agir politicamen- Além disso, tais explicações acabam por
O foco moral faz com que o ressentido no uso contemporâneo da noção de res- te sobre o ressentimento, embora seja produzir uma moralização dos conflitos
não seja visto como um sujeito com de- sentimento. Não se trata de negar fenô- possível agir sobre suas causas. sociais que personaliza focos de ação, em
mandas sociais que merecem ser ouvidas menos como a masculinidade branca, vez de ir às suas causas estruturais objeti-

N
no campo político, uma vez que ele ape- sua violência e questões afins, mas de o ano passado, quando me candida- vas. Elas servem, no máximo, para serem
nas manifesta reações patológicas, que, na perguntar se essa leitura é realmente ca- tei a deputado federal por São Paulo aplicadas a nós mesmos, em um exercí-
melhor das hipóteses, devem ser tratadas. paz de explicar o comportamento políti- pelo Psol, me chamou a atenção a cio contínuo de suspeita de si e de au-
Ou, na pior, precisam ser exorcizadas. co das massas. Será que o ressentimento colocação de um motorista de aplicativo toinspeção. Ou então para fortalecer um
É interessante observar a diferença explica o extremismo de eleitores tanto em um de nossos trabalhos de focus group sentimento de superioridade moral e in-
entre essa concepção de ressentimento da classe baixa quanto da alta? Retoman- sobre comportamento de eleitores de ex- telectual que só contribui para mascarar
e a do pensador mais célebre da questão, do o exemplo de Wendy Brown, será que trema direita. Indagado sobre a razão de nossa impotência política real. J

42
1 de 1 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
diário do geraldo

MEU NOME É GERALDO 6 DE OUTUBRO_Postei nas redes sociais


uma foto do meu tempo como prefeito da
12 DE OUTUBRO_Tô achando que tem
algum patriota infiltrado na minha equi-
querida Pindamonhangaba. Aqueles tons pe de redes sociais. Gastei duas horas do
CACO GALHARDO_2023

em preto e branco revelaram os traços meu dia escrevendo um texto sobre o


apolíneos do jovem mancebo que ostenta- Dia da Criança e algum infeliz postou
va uma cabeleira digna de Sansão. O Ge- uma foto em que apareço com uma
raldo fez uma pausa para reflexão: o fato criança chorando desesperada no meu
é que nunca elaborei corretamente o lugar colo. Fosse no colo do Temer, até gerava
que a vaidade ocupou na minha econo- um viral. Mas, graças a Nossa Senhora,
mia mental. Olhando para trás, sou obri- pouca gente percebeu.
gado a admitir: deveria, sim, ter tomado
finasterida e passado minoxidil para conter 14 DE OUTUBRO_Precisava fazer algo
a calvície. Nova pausa densa: teria sido eu que desanuviasse o clima no gabinete. Tá
tragado pela superficialidade da sociedade todo mundo deprê com tanta guerra,
patriarcal que nos cobra virilidade? Não. com a seca na Amazônia, com tanta tra-
Desrecalcar é amar o corpo e assumir os gédia. Meti uma peruca longa, um bus-
desejos. Quero ser cabeludo. Informei Li- tiê reluzente, catei um violão, deixei uma
belu do meu desejo de fazer um implante. boa nesga de perna pra fora e comecei:
Pretendo ligar para o Eike e perguntar Meu nome é Geraldo/E desejo me cor-
como se faz. O dele ficou ótimo. responder/Com um não binário que seja o
tal./Meu nome é Geraldo/E não faz mal/
7 DE OUTUBRO_Reagi com profunda Que ele não seja branco, não tenha cultura/
tristeza ao terrível ataque do Hamas. As De qualquer altura eu amo igual./Meu
quadraturas indicavam conflitos, mas nome é Geraldo/E tanto faz/Que ele tenha
não imaginei que chegariam a esse defeito ou traga no peito/Crença ou tradi-
1º DE OUTUBRO_A disciplina e a cons- apoio ao povo amazonense.” Não quero grau de vileza. Que tragédia. ção./Meu nome é Geraldo/Eu amo igual.
ciência política da esquerda raiz são de me gabar, mas ele me chamou de dou- Duas pessoas choraram. Pelas reações,
deixar caído o queixo de qualquer pinda- tor! Libelu me recebeu em casa cantan- 9 DE OUTUBRO_Me sinto um meninote acho que descobri quem é o infiltrado.
monhangabense. A pancadaria comeu do Mercedes Sosa ao som de um bumbo. loquaz toda vez que emprego a palavra
solta no congresso do Psol, teve até troca Segundo ela, ninguém mais pode duvi- “neoindustrialização”. Não obstante, tive 16 DE OUTUBRO_Hoje repostei uma
de socos no palco. Alguém teve que pe- dar que President’Lula me vê como um que passar um pito na minha assessoria. mensagem importante de Libelu: “No
gar o microfone para dar uma bronca. médico revolucionário. Iluminados, co- Visitei o polo de Camaçari, na Bahia, dia 16 de outubro comemoramos o Dia
“Desçam todos, todas e todes do palco!” meçamos a cantar juntos: para celebrar um novo marco da nossa Mundial do Pão, alimento saboroso que
Êta lelê. Nem nessas horas a companhei- Sou o cheiro dos livros desesperados,/ neoindústria neoautomobilística: a che- todos amam!”
rada esquece de incluir o todes. Sou Geraldinho Guevara,/Seu olho me gada de três fábricas da byd e de um cen- Tenho tido dificuldades para me des-
Não sei não, mas sinto uma energia olha, mas não me pode alcançar,/Não tro de pesquisas, que vão nos ajudar a pedir nos e-mails. Ainda é adequado
ruim no ar. Diante disso, fiz o que qual- tenho escolha, careta, vou desrecalcar/ produzir carros elétricos. Até aí, tudo escrever “Beijos” nas mensagens endere-
quer esquerdista aberto a metafísicas não Quem não rezou a novena de Madu- bem. Aí minha equipe vai e posta “Bahia çadas às mulheres? Na dúvida, mando
hegemônicas faria: encomendei um mapa ro,/Quem não seguiu o pensador Felipe System”. Cuma? Querem que NeoGeral- “Saudações gerais”.
astral. A quadratura entre Vênus e Urano Neto,/Quem não amou a elegância sutil do fique com fama de tiozão? Nunca se
já não estava essa coisa toda. Somada en- de Bo-Boulos,/Quem não é hidro e nem esbaldaram num show do BaianaSystem? 17 DE OUTUBRO_Fui ver o trânsito dos
tão a um alinhamento regressivo de Mar- pode ser carboneto. O nome correto é baianaSystem! Santa planetas e percebi algo muito impor-
te e Plutão... macacos me mordam! Nada Menininha do Gantois! Liguei pessoal- tante: se o Botafogo for campeão brasi-
de bom se anuncia para o mês. 5 DE OUTUBRO_Nos tempos de criança mente pro Russo Passapusso pra pedir leiro, o Santos não cair e o Fluminense
Por outro lado, hoje celebramos o em Pindamonhangaba eu já era um azou- desculpas. Botei o lp de OxeAxeExu para abocanhar a Libertadores, em seis me-
Dia Internacional do Café. gue. Mimi, minha irmã, quis me chamar tocar no meu gabinete e fiz dreads naque- ses isso aqui vira uma Coreia do Sul.
de “palhacinho”, mas pronunciou “paial”. le tufo fornido perto da orelha direita. Será o início de um processo civilizató-
2 DE OUTUBRO_Senti uma conexão mís- O apelido pegou. Os olhinhos de Paial rio sem data para terminar.
tica com o ministro de Hidrocarbonetos e viam os amiguinhos externarem seus de- 10 DE OUTUBRO_É fato: aprendi muito
Energias da Bolívia, o bonachão Franklin sejos. Adalgisa, filha de Lurdinha, sonha- com minha conversão à esquerda. Es- 19 DE OUTUBRO_Estava despachando
Molina. É como se compartilhássemos o va com um autógrafo dos Beatles. Neto tou de chacras abertos para uma jorna- com o Rui Costa quando um funcioná-
mesmo avatar no multiverso. Recebi-o de intelectuais, Hermógenes queria uma da de autoconhecimento. Luto contra rio nos interrompeu. Esbaforido, com os
com um poncho aimará e juntos masca- dedicatória de Drummond. Feliz aquele meus fantasmas e a cada dia me torno olhos arregalados, soltou a notícia: Ra-
mos coca. No final, levei-o até a porta do que realiza seus sonhos de infância. Hoje mais sensível. Confesso, contudo, que chel Sheherazade foi expulsa da Fazen-
gabinete tocando uma flauta andina. foi dia de tirar do cofre o meu exemplar essa predisposição seletiva para esco- da. Paramos tudo para ouvir a transmissão
de 1988 da Constituição Brasileira assi- lher quem merece ou não a nossa soli- ao vivo do Chico Barney. Fiquei tão co-
4 DE OUTUBRO_Acordei com vontade de nado por boa parte dos meus colegas cons- dariedade não me desce a goela. Nessa movido que nem sei. Como um líder não
dar um catiripapo no cangote de quem tituintes. É dia de festa. Aniversário de guerra cruel, há vítimas dos dois lados. deve mostrar fraqueza, deslizei até o ba-
não acredita em mudança climática. Se 35 anos da nossa Carta Magna. Paial está Civis, crianças, idosos. Inocentes que nheiro para me recompor. Ao lavar o
alguém vier de gracinha hoje, vai levar. esfuziante. Para comemorar, fiz uma ex- lutam pela justa construção de dois Es- rosto diante do espelho, olhei fundo nos
Por orientação do President’Lula, fui travagância: tomei meio copo de cerve- tados. Não me conformo. Meu mote é: meus olhos marejados e pensei: além do
ao Amazonas para ver de perto os impac- ja sem álcool. se você não tem nenhuma palavra de implante, será que cabe uma micropig-
tos da seca. Um dia triste que foi leve- Fiz ressoar aos quatro ventos meu consolo a dar, cale-se e não acrescente mentação de sobrancelha?
mente desanuviado quando o Sr. Miyagi contentamento com a eleição de Ailton ódio. Veja bem, todo dia celebro a gra-
do Planalto escreveu em suas redes so- Krenak para a abl. Ao promover vozes tidão, mas sinto que chegará o dia em 20 DE OUTUBRO_Depois de ler a coluna da
ciais: “Ninguém governa sozinho. Im- periféricas, a luta decolonial nos permite que Geraldo Che Guevara revoluciona- Maria Ribeiro intitulada Existem homens
portante ter uma boa equipe e grandes subverter as narrativas dominantes. Não rá essa esquerda por dentro. legais, lutando do nosso lado. Será efeito do
parceiros. Dr. @geraldoalckmin e o go- me contive. Tomei a outra metade da Chocado que a Susana Vieira tem eclipse? Só me veio um pensamento: será
verno federal cuidarão disso. Não faltará cerveja sem álcool. Hoje é #vidaloka. 81 anos. que foi uma indireta para mim? J

piauí_novembro 43
1 de 9 27/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
questões didáticas

O TRAINEE
As maquinações de Renato Feder no comando da Educação paulista

RAQUEL COZER

U
m grupo de doze pessoas re- vros, tinham remanejado suas agendas binete, Myrian Prado, acompanhados dos do material digital que tinham sido
presentando indústrias com depois de uma mudança de última de dois policiais militares, que ficaram divulgados pela Folha de S.Paulo, a par-
um faturamento total de cer- hora. A princípio, souberam que a reu- num canto da sala até o fim da conversa. tir de levantamento da Associação Bra-
ca de 300 bilhões de reais por nião pela qual insistiam desde o come- Vinicius Neiva é um homem falan- sileira dos Autores de Livros Educativos
ano aguardava na entrada do ço da crise seria com o coordenador te, habilidoso no trato, que tem ficado (Abrale), estava uma atividade de lín-
prédio em estilo neoclássico da Secre- pedagógico da Secretaria de Educação, à frente de conversas mais complexas gua portuguesa que propunha um “pla-
taria da Educação do Estado de São o que alguns entenderam como sinal de desde que Feder assumiu, no começo nejamento de reportagem” sobre um
Paulo (Seduc-sp), no Centro da capital. descaso do secretário. Eles imaginavam do ano. Ao grupo de executivos, ele tema fantasioso, quando o jornalismo
Às cinco da tarde, a comitiva foi convi- que Feder, sócio da companhia de pro- disse que o secretário precisara atender lida com fatos concretos: “Suponha que
dada a subir ao majestoso Salão Nobre, dutos digitais Multi (o novo nome da um chamado do Ministério Público. foi encontrada uma nova carta de Pero
com suas paredes com lambris de ma- Multilaser), não tinha em alta conta o Não especificou o assunto, mas o se- Vaz de Caminha, desconhecida dos
deira e coroadas por painéis a óleo em ramo dos livros impressos. Não só por- cretário era alvo de investigações nas historiadores.” Basicamente, um exercí-
tons de verde e dourado. Os executivos que a Multi teve sozinha uma receita duas instâncias do órgão em São Pau- cio de invenção de notícia. Mas o prin-
estavam ali para discutir com o secretá- bruta de 6 bilhões de reais em 2022 – lo, e os presentes deduziram que se cipal argumento levado para a reunião
rio da Educação, Renato Feder, o tema cerca de 500 milhões a mais que todas tratava do inquérito sobre os livros di- era o desequilíbrio que a retirada dos
que ocupava desde 31 de julho, dez dias as editoras de livros do país juntas –, dáticos. O mp confirmou o encontro livros acarretaria para a cadeia produti-
antes, as manchetes dos maiores jornais mas também porque o secretário defen- daquela tarde, mas na Procuradoria- va, tema que os empresários pensavam
do país e as conversas de todos os círcu- dia a ideia de que um material digital Geral de Justiça, o que significa que o ser sensível ao governo estadual. Os
los do meio educacional de São Paulo: produzido internamente era um “avan- tema era outro: a investigação por con- produtores de papel falaram de seu pla-
a decisão da gestão paulista de abdicar ço” em relação aos livros impressos. flito de interesses devido a contratos da nejamento de até sete anos para plantio
de 10 milhões de livros didáticos finan- Na véspera, porém, uma assessora da Multi com a Seduc-sp, firmados na de árvores, e de um ano para a conver-
ciados pelo governo federal para 2024. secretaria pediu para passar a reunião gestão anterior. são da celulose em papel. A Indústria
Nas escolas estaduais, os livros já esta- da manhã para a tarde, justamente para Ao longo de uma hora, Neiva ouviu Brasileira de Árvores estimou em 30 mil
vam sendo substituídos aos poucos por Feder poder participar. Por isso, os gesto- os executivos. Eles não estavam ali para toneladas a quantidade de papel que
um material digital cuja procedência res ficaram confusos quando a 13ª pes- falar de assuntos educacionais, mas so- São Paulo abriria mão ao cancelar a
ninguém conhecia e que não parecia soa do grupo entrou no Salão Nobre, bre temas derivados que afetavam seus produção dos livros.
primar pela qualidade, a julgar pelos atrasada, e comentou: “Acabei de esbar- negócios. Questionaram a qualidade do “A medida era um tiro no pé. Tanto
primeiros conteúdos vindos à tona. rar com o Feder, correndo para sair do material digital que a pasta criou em as produtoras do papel usado em livros
Dada a gravidade da situação, todos prédio.” No fim das contas, apareceram prazo tão curto, uma vez que um livro quanto as gráficas e editoras estão em
ali na secretaria, em nome das indús- para a conversa apenas o secretário exe- didático demora aproximadamente dois peso em São Paulo”, disse um dos exe-
trias de papel e celulose, gráficas e li- cutivo, Vinicius Neiva, e a chefe de ga- anos para ficar pronto. Entre os conteú- cutivos à piauí, sob a condição de ano-

44
2 de 9 27/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS

REINALDO FIGUEIREDO_2023
Lições do passado, erros do
presente: pouca gente soube
que, quando Renato Feder foi
secretário de Educação do
Paraná, seu plano também
envolveu abrir mão das obras do
Plano Nacional do Livro Didático,
mas a proposta não avançou

nimato, para não afetar sua empresa. site da Folha estampou a manchete: SP que a União previa atender naquela edi- definição da extinta Lei dos Livros Di-
João Scortecci, presidente da Associa- abre mão de verba para material didá- ção do programa. São Paulo permane- dáticos, de 1938, chegou ao século xxi
ção Brasileira da Indústria Gráfica tico e usará só livro digital a partir do ceu no pnld apenas para receber obras sem grandes variações: a de que a es-
(Abigraf) em São Paulo, contou ter re- 6º ano. A repórter Laura Mattos noti- literárias. Nenhum estado ou município colha do material usado em sala de
cebido de companhias do setor, que ciou que a partir de 2024 a pasta utili- é obrigado a usar os livros ofertados pelo aula é prerrogativa das equipes escola-
emprega 154 mil pessoas no país, uma zaria apenas conteúdo produzido pelo mec, mas 95% das redes de ensino do res. Foi nesse ponto que Feder deu um
estimativa de 3 mil demissões, caso o governo paulista, com o objetivo de país recorrem a eles. O consenso é que passo maior que a perna. O secretário
estado seguisse com o plano. “O receio manter a “coerência pedagógica”. não faz sentido recusá-los, sobretudo na não só deixou de consultar a rede esco-
nem era só o impacto imediato pelo “Para os anos iniciais, [será usado] ma- ausência de um plano sólido, discutido lar como pareceu ter tirado da manga,
tamanho de São Paulo. Era que virasse terial digital com suporte físico; nos com a rede local de ensino. sem estudos sérios, um material próprio
exemplo para outros estados.” anos finais e ensino médio, 100% ma- O pnld surgiu com o nome atual em da secretaria e que ele dizia ser “mais
Sentado de costas para um painel a terial digital”, informava a secretaria. 1985, mas suas origens remontam ao assertivo”. “A aula é uma grande tevê”,
óleo que simboliza a educação – com Àquela altura, fazia onze dias que o final dos anos 1930, quando o recém- disse a O Estado de S. Paulo. “O livro
um livro entre uma pena e um globo –, governo federal recebera a informação criado Ministério da Educação e Saúde tradicional, ele sai [de cena].”
Neiva por fim tomou a palavra. Repisou de que São Paulo recusaria o apoio do Pública era comandado por Gustavo Uma prova de que a rede não havia
os argumentos da secretaria, como a Programa Nacional do Livro e do Mate- Capanema e tinha como chefe de gabi- sido consultada sobre a decisão é que,
dificuldade de fazer um acompanha- rial Didático (pnld), pela primeira vez nete um jovem farmacêutico e poeta enquanto São Paulo se desligava do
mento eficaz de múltiplos conteúdos em quatro décadas. Em 20 de julho, o chamado Carlos Drummond de Andra- pnld, a Seduc-sp continuava a mobili-
didáticos, e informou que o assunto não sistema do Fundo Nacional de Desen- de. Já naquele tempo, quando nem exis- zar as escolas para a votação do modelo
estava em debate. Era uma decisão to- volvimento da Educação (fnde), autar- tia mercado que permitisse ao governo de escolha dos livros do programa fede-
mada. Antes de sair, porém, disse que quia responsável pelo programa no comprar e distribuir livros, havia uma ral em 2024. Havia três possibilidades:
levaria os pontos apresentados a Feder. Ministério da Educação (mec), foi aces- preocupação com a qualidade do mate- ou a seleção de livros continuaria a ser
Ninguém ali teve a impressão de que sado em nome de Renato Feder, e São rial que chegaria aos alunos do país. feita por cada escola, com professores
isso ia de fato acontecer. Paulo foi retirado dos estados interessa- Capanema definiu que a partir de 1940 definindo os títulos que usariam; ou São
dos em receber obras didáticas. Com a as escolas só poderiam adotar livros Paulo faria uma seleção para cada uma

P
ara qualquer pessoa ligada à edu- exclusão, o governo estadual abriu mão aprovados por uma comissão do mec, de suas 91 diretorias de ensino; ou, no
cação em São Paulo, agosto fez de livros para quase 1,4 milhão de alunos mas o processo demorou a se azeitar. caso mais radical, haveria uma escolha
jus à fama de mês do cachorro do 6º ao 9º ano do ensino fundamental No modelo atual, o mec habilita para única de livros para os 645 municípios
louco. Os maus agouros chegaram ao em 2024, renunciando a uma verba de o programa títulos inscritos por dezenas paulistas. A última opção, rejeitada por
conhecimento da rede estadual de en- 120 milhões de reais. Esses estudantes de editoras, mas não interfere na seleção educadores por não contemplar a diver-
sino no último dia de julho, quando o correspondiam a quase 15% dos alunos feita pelos estados. Isso porque uma sidade da maior rede de ensino do país,

piauí_novembro 45
3 de 9 27/10/23 PROVA FINAL V2

era a preferida de Feder, garantindo revendo seu modelo, depois de pesquisas


CLUBE DE REVISTAS
Os editais do pnld são elaborados Aos 45 anos, Feder tem um estilo de
uma padronização que, na visão dele, mostrarem uma queda nos índices de com base em lei de 1996 que define a jovem talento da Faria Lima, sempre
permitiria tornar mais efetivas suas pro- leitura entre as crianças. “Não há nada organização da educação brasileira. de camisa e calça jeans. Alto, magro,
postas para o estado. que sustente a medida do ponto de vista Para dificultar iniciativas pouco republi- tem um sorriso amplo que ressalta no
Correu então a notícia de que a uni- de boas experiências. Há redes inteiras canas como as que foram tentadas sob rosto alongado e costuma ser a primeira
ficação total perderia de lavada: a rede recuando”, diz Priscila Cruz, presidente Bolsonaro, os editais estão a cargo de característica mencionada quando al-
não queria adotar um material único executiva da ong Todos Pela Educação. técnicos de carreira do fnde, a autar- guém o descreve. Seus interlocutores,
para suas cerca de 3.800 escolas de ensi- O ponto mais crítico, porém, era a reti- quia do mec. A avaliação dos livros fica gostem dele ou não, citam tanto sua
no fundamental. Nos bastidores, as edi- rada da autonomia dos professores. “Ao com outra equipe, esta interna do mec gentileza no trato quanto sua dificulda-
toras acompanhavam a votação, já que o produzir um material único, o estado e que sofreu mais ingerência de evangé- de em saber ouvir ou aceitar que suas
resultado afetaria seus negócios. E foram interfere na multiplicidade de óticas que licos e de seguidores do ex-astrólogo ideias sejam questionadas. Neste caso,
elas que descobriram que Feder, anteci- a educação precisa ter. Só um estado au- Olavo de Carvalho, já falecido. O pro- ele emite um ligeiro sinal de contrarie-
pando-se a uma derrota na consulta à toritário tenta impor um pensamento cesso, no entanto, passa por tantas eta- dade ou tem um rompante de indigna-
rede, havia tomado outra decisão, às es- único”, argumenta o professor José Cas- pas e leituras de avaliadores externos ção. Pensa muito em termos de pilares,
condidas: abandonara o programa fede- tilho Marques Neto, consultor para polí- que mesmo um governo mais ideológi- metas e resultados, sempre com urgên-
ral. No fim do expediente de sexta-feira, ticas de livro e leitura. co tem dificuldade em interferir. Isso cia para resolver tudo. É um perfil pro-
dia 28 de julho, alguém entrou no siste- Em entrevistas, Feder disse querer evi- ajudou a tornar os livros didáticos mais fissional propício ao cenário no qual se
ma do fnde e viu que São Paulo já havia tar um “duplo comando” para docentes, criteriosos, tanto que títulos do pnld destacou, mas estrangeiro ao universo
simplesmente se retirado do pnld. A no- que poderiam ficar na dúvida entre usar o também são adotados por escolas de pri- da educação, um setor que se baseia no
tícia não demorou a chegar à imprensa. material digital ou o livro físico. E alegou meira linha da rede privada. estudo de indicadores de longo prazo,
que os livros do pnld eram “rasos”, “super- na experiência a partir de especificida-

D R
e sindicatos a fundações empre- ficiais”. Para as editoras, aquilo foi uma enato Feder nasceu herdeiro da des locais e em muito, muito diálogo.
sariais, não houve voz relevante afronta. “Raso em relação a quê? As edito- Elgin, tradicional fabricante de “Acho que a visão dele é de ilha, e não
que tenha deixado de se manifes- ras foram as primeiras a se adaptar ao cur- máquinas de costura, mas se des- de arquipélago. Não adianta ter visão
tar contra a decisão de São Paulo sair rículo nacional, antes até das escolas”, diz tacou em outro negócio, como sócio unilateral, porque não existe bala de pra-
do pnld. Até Claudia Costin, direto- Ângelo Xavier, diretor-geral da Moderna, da Multi, empresa herdada por seu ta”, diz Mozart Ramos, titular da Cáte-
ra do Centro de Excelência e Inovação uma das maiores editoras do país. Ele se amigo de infância Alexandre Ostro- dra Sérgio Henrique Ferreira, da usp de
em Políticas Educacionais da Funda- refere à Base Nacional Comum Curricu- wiecki. A parceria começou em 2003, Ribeirão Preto. Ex-secretário de Educa-
ção Getulio Vargas (fgv), mentora de lar (bncc), que serve de norma para as re- quando a Multi reciclava cartuchos ção em Pernambuco, e tendo atuado
Feder até 2019 e autora do prefácio de um des de ensino e passou décadas em de impressoras e faturava 30 milhões de em fundações educacionais, ele resume
livro que ele lançou recentemente, dis- discussão até ser aprovada no governo reais. Em duas décadas sob comando assim uma ideia reafirmada por deze-
se estar “preocupada”. Michel Temer. “Entra governo e sai gover- da dupla, expandiu negócios e atingiu nas de especialistas à piauí: “Sem uma
Fazia pouco tempo que a Suécia, pre- no, as avaliações do mec são rigorosas. uma receita bruta quase duzentas ve- visão mais abrangente, sistêmica, arti-
cursora na substituição de livros físicos Chegam a ter centenas de páginas, um zes maior, firmando-se como uma das culada, é muito difícil fazer mudanças
por telas em sala de aula, informara estar detalhamento página a página.” maiores companhias de produtos digi- estruturais. Pode fazer mudanças pon-
tais do país. tuais, chegar aos 100 metros, mas não
A amizade rendeu outros frutos, faz a corrida como um todo.”
como o Ranking dos Políticos, um site É uma definição que encontra pou-
de viés liberal que avalia os congressis- cos pontos de contato com os “catorze
tas, e o livro Carregando o elefante: pilares” do método que Feder apresenta
Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura,
Economia e Indústrias Criativas, e Pinacoteca de São Paulo apresentam como transformar o Brasil no país mais em Educação para o futuro: o passo a
rico do mundo, de 2007, no qual os dois passo para construir uma gestão educa-
sócios defendem ideias como a redução cional focada em resultados, lançado em
ATÉ do número dos municípios do país para junho deste ano. No livro, ele diz que
28 JAN 24 cem, a abolição do Senado e a cons- recebeu um “chamado” para a área nos
cientização de juízes para “decidir com anos 1990, antes de cursar administra-
base na lei, e não em questões sociais”. ção pela fgv e fazer mestrado em econo-
No campo da educação, o livro propõe mia na usp. Lista leituras daqueles anos,
a substituição das redes públicas por de autores americanos e com orientação
um sistema de vouchers que permiti- empresarial, como Aula nota 10, de
riam aos alunos carentes se matricula- Doug Lemov, que traz “técnicas efetivas
rem em escolas particulares. Em 2020, e envolventes para aprimorar a gestão da
quando seu nome chegou a ser cotado sala de aula”, e cuja edição brasileira foi
para o mec de Bolsonaro, Feder rene- financiada pela Fundação Lemann; e
gou as ideias de treze anos antes: “To- Confessions of a bad teacher (Confissões
dos podem e devem evoluir em relação de um mau professor, sem edição no
ao que pensavam na juventude”, escre- Brasil), memórias em que John Owens
veu no Twitter, na época. conta como deixou um “emprego lucra-
No final de 2022, assim que o go- tivo” para lecionar numa escola pública
vernador eleito Tarcísio de Freitas o do Bronx, em Nova York. Feder diz que
anunciou para seu secretariado, o site rodou o mundo e ficou admirado ao des-
Metrópoles noticiou que a Multi era a cobrir que nas escolas de referência não
principal fornecedora de equipamentos existe um “padrão Nasa”. Ele escreve:
de informática da Educação paulista. “Não havia grandes segredos, era o ‘arroz
Feder então se afastou do conselho da com feijão’, só que bem-feitos em todas
empresa. Dias depois, o site revelou que as etapas do processo.”
ele ainda detém 28,16% das ações da Ele entendeu que poderia temperar
Multi por meio de uma offshore. Foi por seu arroz com feijão importando, como
isso que o secretário passou meses sen- diz no livro, “instrumentos corporativos”.
do investigado pelo Ministério Público. Para o cientista político Fernando Abru-
Em setembro, o caso foi arquivado sob cio, professor e pesquisador da fgv, o que
ro

patrocinador patrocinador patrocinador patrocinador


o argumento de que as licitações que move Feder é “uma crença total na tecno-
originaram os contratos com a Multi logia”. “É como se acreditasse que a tec-
platinum ouro prata bronze

haviam sido anteriores ao anúncio. nologia sozinha pode revolucionar a


Im

realização

46
4 de 9 27/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
O
educação, quiçá substituir os professores. O salário era de cerca de 8 mil reais (no s professores do Paraná vinham de Paraná o secretário que convidara para a
É uma crença que talvez exista em boa relato do livro, 3 mil reais). anos de confronto com a gestão do Educação mineira – o empresário Renato
parte do pessoal do Vale do Silício. Um O empresário estava interessado em tucano Beto Richa quando, em Feder, que havia se voluntariado para sua
Elon Musk da vida”, ele diz. Abrucio não ser “uma espécie de trainee” na secreta- outubro de 2018, Ratinho Júnior foi elei- equipe. Alguém fez uma busca no nome
questiona o uso da tecnologia em si, mas ria. Até levou a sério o conceito de ado- to governador pelo psd. Embora tivesse e reconheceu o homem sorridente da
identifica nas iniciativas de Feder um des- ção afetiva, mas não para escolas. Afirma ocupado cargos nos dois mandatos do reunião. O novo governador de Minas
conhecimento de como adotar esse uso que, nos primeiros dias, abordou a co- ex-governador, o filho do apresentador Gerais tinha acabado de anunciar o novo
em uma política pública de educação. ordenadora pedagógica e pediu: “Você de tevê Ratinho se afastara do ex-chefe secretário da Educação do Paraná.
O jurista José Renato Nalini, secretá- me ‘adota’? Eu quero aprender contigo.” na reta final das eleições, quando Richa, A Ratinho Júnior restou confirmar
rio da Educação no último mandato de E continua: “Passei a circular por todos que concorria ao Senado, foi preso por que a pasta ficaria com o “ceo da empre-
Geraldo Alckmin, conta uma história os departamentos da secretaria, sempre suspeita de fraude em licitação. Ainda sa Multilaser, [que] tem experiência em
pitoresca sobre o primeiro contato de chegando ao coordenador com a mesma assim, os professores entendiam que o gestão e no intercâmbio de estudantes
Feder com a rede paulista. Numa noite humildade: ‘Me adota?’” novo governo seria de continuidade. Foi com o exterior”, uma descrição curiosa,
de 2017, Nalini foi abordado no Theatro Feder afirma ter executado na época então com cautela que o sindicato dos dadas as prioridades de uma rede públi-
Municipal de São Paulo pelo empresá- um projeto de business intelligence, mode- educadores aceitou o convite para ini- ca. Na campanha, o governador incluíra
rio. “Ele falou que era rico e queria ser lo corporativo para embasar a tomada de ciar um diálogo na transição. entre suas propostas um programa de
voluntário. Eu, louco para chamar gen- decisões. Colocou em prática uma com- O encontro aconteceu na tarde de 6 de intercâmbio para os melhores alunos do
te, e me vem um jovem bem-sucedido pilação de dados de provas e frequência novembro. O governador eleito recebeu estado e a aposta em “tecnologias inova-
querendo ajudar. Recebi de braços aber- escolar, elencando indicadores para cami- os docentes na companhia de um homem doras de ensino”, resultados de conversas
tos”, recorda. Na época, Nalini implan- nhos pedagógicos e gerenciais. Nalini diz alto, sorridente, que se identificou como que mantinha havia meses com Feder.
tava um programa chamado Adoção não se lembrar da iniciativa. Passados seis um professor de São Paulo que tinha tra- Ratinho Júnior e Feder tinham uma
Afetiva, por meio do qual empresas ofe- meses, por pressão da equipe, perguntou balhado na Secretaria da Educação pau- meta em comum: colocar o Paraná no
receriam reformas, palestras ou o que a Feder o que andava fazendo. “Tem sido lista. Estava ali, disse, para ajudar na topo do ranking do Índice de Desenvol-
mais quisessem para escolas. Feder acei- uma boa experiência”, teria respondido o transição. Depois de apresentarem a Rati- vimento da Educação Básica (Ideb),
tou atuar para atrair gente para o proje- empresário. “Estou treinando para ser se- nho Júnior as pautas da categoria, os pro- que avalia a qualidade da educação no
to, mas tempos depois pediu um cargo cretário.” Segundo Nalini, foi a senha fessores indagaram se ele já escolhera um Brasil. Para isso, conversaram com no-
– não pelo salário, que lhe seria irrisório, para ele pedir o cargo de volta: “Não exis- nome para a pasta. O político perguntou mes como o empresário Jorge Paulo
e sim por lhe faltar credencial para falar te eu ser coach do meu sucessor.” se eles tinham sugestões. Os professores Lemann, que lhes apresentou as “me-
em nome da secretaria. A versão de Fe- A exoneração saiu em 22 de dezem- fizeram um pedido: que fosse alguém da lhores práticas e materiais pedagógicos
der no livro é diferente. Diz ter precisa- bro daquele ano, mas a pedido de Fe- rede, que conhecesse os problemas locais. utilizados no mundo”, conforme post
do de três reuniões até convencer Nalini der, conforme o Diário Oficial. Feder Na noite seguinte, um link do jornal divulgado por Ratinho Júnior no Face-
de que podia “contribuir com a pasta”. confirma no livro que saiu com o sonho Estado de Minas circulou no WhatsApp book antes de sua posse.
Sua nomeação como assessor técnico de ser “secretário de Educação em al- dos professores paranaenses. O governa- Feder fez reuniões com os docentes
saiu no Diário Oficial do estado em 9 de gum estado”. Passar pela Seduc-sp era a dor eleito Romeu Zema, do partido Novo, na transição. “Ele parecia empolgado”,
junho (Feder escreve que foi em abril). credencial que lhe faltava. lamentava ter perdido para o estado do diz a professora Walkiria Mazeto, do

piauí_novembro 47
5 de 9 27/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
já tinha hospedado dois ministros, Ricardo lista reflete fantasia sobre educação digi-
Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub. tal”. Na GloboNews, o jornalista César
Massacrado por evangélicos e olavistas, Tralli observou que iniciativas do secre-
ANDRÉ DAHMER_2023

dois feudos com poder e influência no tário tinham causado dano à imagem
ministério nos tempos de Bolsonaro, o do governador. Declarações de Feder e
nome de Feder durou três dias. Em 5 de de Tarcísio – que chegou a destacar a
julho, ele informou no Twitter que tinha importância da “tarefa de casa eletrô-
recusado o convite. Aliados de Bolso- nica”, mostrando desconhecer a falta
naro fizeram circular a versão de que o de acesso a equipamentos e à internet de
então presidente descartara Feder quan- boa parte dos alunos – indicavam que a
do soube que o empresário fora o maior decisão de abandonar os livros impres-
doador da campanha de João Doria para sos não fora amadurecida.
prefeito de São Paulo, em 2016. O recuo em relação ao pnld, com o
anúncio de que São Paulo permaneceria

O
prédio da Seduc-sp, na Praça da no programa, tinha ocorrido em 16 de
República, é um monumento à agosto, após muita resistência da secre-
história educacional de São Paulo. taria. No começo daquele mês, o depu-
Foi construído com essa intenção – tanto tado Carlos Giannazi, seu irmão, o
que, visto de cima, tem o formato da letra vereador Celso Giannazi, e a deputada
E, de educação. Projetado por Antônio federal Luciene Cavalcante, todos do
Francisco de Paula Souza, que hoje no- Psol, tinham enviado à Justiça uma
meia o centro de ensino técnico paulista, ação popular contra a decisão da secre-
e Ramos de Azevedo, que deixou sua taria. O conteúdo foi remetido ao Mi-
marca em obras como o Theatro Muni- nistério Público, que já havia instaurado
cipal e a Pinacoteca do Estado, o casarão inquérito para apurar “possível violação
recebeu em 1894 a primeira Escola Nor- ao princípio constitucional da gestão
mal da capital. Em suas salas estudaram democrática do ensino público e da ga-
o historiador Sérgio Buarque de Holan- rantia do padrão de qualidade”.
da, o governador André Franco Montoro Por aqueles dias, a historicamente
e a escritora Lygia Fagundes Telles. magra oposição ao governo paulista na
Dar o devido peso a esse histórico Assembleia Legislativa, que hoje não
sindicato de educadores das redes públi- cultos. Desrespeita nossa história como teria ajudado a evitar um dos primeiros chega a um terço dos 94 deputados, re-
cas do Paraná. Ela teve a sensação de fizeram os jesuítas ao chegar ao Brasil.” embaraços da gestão Feder. Em maio, cebeu apoio nos bastidores. A deputada
que Feder queria “revolucionar o mun- Leão teve a impressão de que o argu- quando o secretário ainda não frequen- Professora Bebel (pt), presidente do sin-
do”. “Ele se comportava assim: quero o mento impactou o secretário, mas não tava tanto o noticiário, a Folha revelou dicato de professores do estado (Apeo-
melhor para a educação, mas o melhor a ponto de fazê-lo mudar o seu método. que ele queria levar a Seduc-sp para a esp), chegou a circular uma proposta de
é o que eu penso que é o melhor.” Os tempos eram outros. Ratinho Jú- vizinhança do Shopping Eldorado, pró- cpi sobre um tema relacionado. No
Nos primeiros seis meses da gestão nior estava alinhado a Bolsonaro no ximo à Faria Lima, o centro financeiro meio da crise, tinha vindo à tona a no-
Feder no Paraná, o diálogo se mostrou governo federal, e Feder parecia afina- da capital. Para alguém com ambição tícia de que a Seduc-sp contratara por
difícil, com muitas mudanças repenti- do com eles. Em março de 2019, o se- de se firmar como revolucionário na 4,51 milhões de reais, e com dispensa
nas. Entre elas, a implantação do cretário anunciou o projeto de pôr educação, a história só reforçou a ima- de licitação, dezenas de títulos literários
Presente na Escola, aplicativo para policiais militares nas escolas contra gem de “faria limer”. A secretaria, na digitais para uma plataforma de leitura
controlar a frequência dos alunos, e da “alunos malandros e malfeitores”, em ocasião, admitiu possível mudança tem- dos alunos – sendo que o estado já rece-
Prova Paraná, feita de modo digital a suas palavras. Em 2021, durante uma porária para reformas estruturais, dizen- bia títulos literários digitais via pnld.
cada três meses para obter um “raio X live para a rede de ensino paranaense, do que havia um laudo que apontava “Feder correu as bancadas para explicar
de aprendizagem na rede”. Pouca gente demonstrou irritação com professores “riscos aos servidores”. Mas o laudo não o pnld e os livros digitais sem licitação.
soube na época, mas o plano de Feder ao saber de dificuldades nas aulas re- citava risco algum nem necessidade de Eu precisava de 33 assinaturas, tive 32”,
também envolvia abrir mão dos livros motas. “É obrigatório! Obrigatório a desocupar o imóvel. diz Professora Bebel. Na prática, ela
do pnld. Em maio de 2019, alguns edi- orientação do professor para abrir a ja- Na tarde de 18 de setembro, quando teve adesão de pelo menos três deputa-
tores souberam de sua intenção e con- nela. Ai, mas o aluno não tem web- a reportagem da piauí chegou ao prédio dos da base de Tarcísio.
seguiram uma reunião com a equipe cam... Ai, mas o aluno não... Se vira!”, para conversar com o secretário, o tema Em 16 de agosto, mais de duas sema-
de Feder, para tentar demover a secre- disse, no trecho que circulou na inter- estava em segundo plano. A secretaria nas depois do início da crise, a Apeoesp
taria da ideia. Por esse motivo ou outro, net, e que a secretaria afirmou, na épo- ainda prevê a reforma, mas sem tirar os reuniu professores e alunos em um pro-
a proposta de renunciar aos livros do ca, ter sido tirado de contexto. servidores dali. Naquele dia, o secretá- testo na porta da Seduc-sp. O recuo da
pnld não avançou. O começo da pandemia, em março rio vinha do Palácio dos Bandeirantes, secretaria veio na noite desse mesmo
Sem diálogo nem aceno sobre recom- de 2020, foi um momento em que Fe- onde pela manhã anunciara, ao lado dia. Atendendo à ação popular do Psol,
posição salarial, os educadores resolve- der nadou de braçada fazendo o que do governador, a sanção do Provão Pau- a 4ª Vara de Fazenda Pública emitiu
ram fazer uma paralisação em junho. gostava: encontrar caminhos via tecno- lista, que reserva para as redes públicas liminar anulando o ato administrativo
A greve corria quando o secretário foi logia. Ele imaginou um modelo com 13 mil vagas das “três grandes damas” do que retirava São Paulo do pnld. A Se-
a um evento em São Paulo, onde citou a transmissões de aulas na tevê aberta ensino superior paulista – a usp, a Uni- duc-sp soltou nota informando que par-
rede em termos que o então presidente para contornar a falta de acesso à inter- camp e a Unesp – e também da Univesp, tira da pasta a decisão de permanecer
do sindicato paranaense, Hermes Leão, net. Não havia regulamentação para de ensino a distância, e das Fatecs, as no programa, “a partir da escuta e do
achou desrespeitosos. O professor en- isso, e o secretário articulou com Bra- faculdades de tecnologia. Uma agenda diálogo com a sociedade”. Houve algu-
viou a colegas um áudio criticando o sília para viabilizar o alcance das tele- positiva, enfim. ma disputa de narrativa sobre o que
secretário por “falar mal do Paraná” em aulas gravadas por professores. Em Fazia alguns dias que o governo dava veio antes, se os argumentos do Minis-
outro estado. “Como se não tivéssemos menos de um mês, Bolsonaro publi- sinais de que a crise na Educação pare- tério Público que embasaram a liminar
compromisso com a qualidade”, diz à cou um decreto permitindo parcerias cia controlada. Durante um mês e meio, ou a decisão da secretaria, mas dois fa-
piauí. Ele conta que, depois da viagem, de entes federativos com emissoras de a secretaria estivera sob fogo cerrado. tos eram inegáveis: a Seduc-sp sabia
Feder o questionou sobre o áudio. A res- rádio e tevê para transmitir conteúdo Os dois principais jornais paulistas fize- que chegava o momento da decisão ju-
posta de Leão, ele lembra, foi a seguin- de atividades educativas. ram editoriais nada lisonjeiros. “Amado- dicial e até a véspera, ao menos confor-
te: “Você age como um missionário que Meses depois, em julho, a imprensa rismo”, disse a Folha; “A incrível educação me consta dos autos, se manteve firme
chega numa terra nova e encontra a ig- noticiou que Feder estava confirmado que dispensa livros”, criticou o Estadão. na posição de ficar de fora do pnld.
norância total, chega com uma luz na por Bolsonaro para o Ministério da Edu- Até O Globo, do Rio, fez editorial sobre “Tivemos mais de uma reunião com
mão para iluminar o caminho dos in- cação, que, em apenas um ano e meio, o assunto: “Trapalhada do governo pau- a secretaria. A gente sempre atua para

48
6 de 9 27/10/23 PROVA FINAL V2

esgotar as vias extrajudiciais”, diz o pro- Neubauer foi a secretária de Educa-


CLUBE DE REVISTAS
ficar refém de trocas frequentes no co- que possa ser visto como prejudicial, ele
motor de Justiça João Paulo Faustinoni, ção paulista de 1995 a 2002, passando mando da pasta. será ofertado ao público.”
que coordena o Grupo de Atuação Es- pelo governo Mário Covas e primeiros No início do ano, Feder tinha manda-

N
pecial da Educação (Geduc). “O direito anos de Geraldo Alckmin. Realizou mu- do aplicar na parede atrás de sua mesa os primeiros dias de agosto, era
à educação tem pilares como a gestão danças como a reorganização das escolas no gabinete uma pergunta: “É bom difícil encontrar um ângulo que
democrática e o planejamento de longo por faixa escolar, a municipalização dos para a educação em São Paulo?” Abai- não valesse investigar. Decisões
prazo. A Constituição Federal define anos iniciais do ensino fundamental e a xo, um adendo, em letras menores: anteriores que não haviam chamado
que temas cruciais devem ser tratados implantação da progressão continuada. “Essa é a pergunta que deve nortear atenção, como a de que diretores deve-
em planos decenais; a legislação espe- “Só na reorganização a gente levou um todas as nossas decisões.” Olhando em riam obrigatoriamente observar profes-
cífica diz que é obrigação dos sistemas ano. O dirigente precisava fazer um estu- retrospecto, talvez tenha lhe faltado sores e alunos em duas aulas por semana
garantirem a autonomia pedagógica e do, discutir com a comunidade, com refletir sobre a questão. Agora, ele ti- e enviar relatórios às diretorias de ensi-
administrativa das escolas. Eventuais coordenadores, com professores”, ela re- nha na ponta da língua um posiciona- no, ganharam os jornais. Ex-diretor, o
rupturas a princípio violam isso.” corda. Houve resistências de todos os la- mento: “A gente falhou. Entendemos deputado estadual Carlos Giannazi
Um dia após recuar na questão do dos. “Os sindicatos são fortes. O secretário que o Currículo em Ação [cadernos de (Psol-sp) apelidou a portaria de “vigiar
pnld, a secretaria também voltou atrás tem que saber que, para criar e fazer atividades produzidos desde 2009 pela e punir” e disse que mostrava descone-
na proposta de lançar a plataforma de mudanças, vai produzir atritos. Nin- secretaria] e o material digital, juntos, xão com as atribuladas rotinas escolares.
livros digitais. O plano ainda existe, mas guém faz omelete sem quebrar ovos”, diz seriam a solução, e vimos depois que Um dia, professores e alunos acordaram
Feder diz que, “para garantir maior Neubauer. “Mas tem que tomar cuidado não. Que o pnld tem um papel a ser com o aplicativo Minha Escola sp ins-
transparência”, deve seguir com uma para não estragar tudo e não fazer nem cumprido. E, se no próximo ano for- talado – sem autorização – em seus ce-
licitação. Poderia ter feito tudo com mesmo a omelete.” mos conversar sobre pnld, vamos mos- lulares particulares.
mais suavidade, se houvesse maior dis- A crise deixou uma pergunta no ar: trar para a rede as vantagens da Com poucas diferenças, tudo isso já
posição para o diálogo, inclusive com por que, afinal, Tarcísio não demitira unificação”, disse à piauí, defendendo havia ocorrido no Paraná, inclusive o
um órgão que existe exatamente para Feder? Em vez disso, o governador viera que a seleção única de livros é um mo- “equívoco” de invadir celulares, mas a
isso: o Conselho Estadual de Educação, a público defendê-lo, descrevendo-o delo “mais lógico, robusto”. Para 2024, situação agora era outra. “As denúncias
composto por 24 membros experientes como “preparadíssimo, estudioso, entu- ficou valendo o que os professores de- têm alcance, a mídia está em cima”, diz
no assunto. Feder não é obrigado a con- siasmado e idealista”. A portas fechadas, cidiram por voto em julho passado, Hermes Leão, do sindicato do Paraná.
sultá-los para tomar decisões, nem para porém, o clima era menos complacen- enquanto Feder tirava São Paulo do Parlamentares e Ministério Público
iniciativas radicais como a de abando- te. O governo reuniu uma espécie de pnld: cada escola escolherá seus livros. também estão atentos.
nar o pnld, mas pavimentaria melhor o conselho alternativo, com nomes rele- Feder acredita que o erro com rela- O mês de agosto avançou com outras
seu caminho se o fizesse. Em conversa vantes do meio educacional, para aju- ção ao pnld foi o responsável por tudo notícias difíceis para a pasta. Uma delas
com a piauí, a conselheira Rose Neu- dar a resolver problemas causados por o que veio depois. “A partir do momen- dizia respeito ao material digital, tema
bauer defende que, em processos assim, Feder, que ouviu palavras duras sobre to que tomamos a decisão apressada e que Maria Cecília Condeixa, presiden-
“você pode fazer uma mudança até ra- sua gestão. Tarcísio não pretendia repe- ineficaz de não aderir ao pnld, tudo o te da Abrale, a entidade que reúne au-
dical, mas tem de ser feito de forma con- tir o que, diziam, ele considerava um que a gente faz a imprensa vai olhar tores de livros didáticos, não considerou
sensual”, com diferentes interlocutores. erro de Bolsonaro: ceder a pressões e pelo pior ângulo. Se tiver um ângulo esgotado com o recuo na questão do

DE 7 A 9 DE NOVEMBRO DE 2023
APOIO REALIZAÇÃO

piauí_novembro 49
7 de 9 27/10/23 PROVA FINAL V2

pnld. Ela coordenou uma força-tarefa teria proibido o uso de biquínis “nas
CLUBE DE REVISTAS
Fundação Vanzolini, que recebeu vo de videoaulas contratado por dis-
para investigar o conteúdo digital de um praias da cidade”, que não é banhada 6,8 milhões de reais entre abril e agos- pensa de licitação em São Paulo, foi o
bimestre de todas as disciplinas do sexto pelo mar (fora isso, naquele ano Jânio to. O material, portanto, fora produzido que apareceu sem autorização em ce-
ano do ensino fundamental. “A gente era presidente da República). A Justiça por especialistas, mas num ritmo inade- lulares de docentes e alunos do Paraná.
quis mostrar o predomínio do erro”, diz suspendeu a distribuição do material, quado. Uma professora, que preferiu A plataforma Odilo, da empresa Prima-
Condeixa. Um relatório de 117 páginas atendendo à ação popular da deputada não se identificar por receio de represá- soft, que seria contratada para o progra-
apontou, além de erros e problemas cur- Professora Bebel, até que passasse por lias, diz ter encontrado, por exemplo, ma de livros digitais Leia sp, está no
riculares, uma didática “enfadonha”, revisão. Dias depois, em resposta ao trechos copiados do conteúdo didático Leia Paraná. Os aplicativos de matemá-
para “simplificar ao máximo”. Um dos Ministério Público, a Seduc informou do site de uma prefeitura. “A gente quer tica Khan Academy e Matific também
pontos era que cada aula tinha em mé- que tinha revisado os 28 mil slides ana- apoiar o professor”, afirma Feder. “Infe- são usados nas redes de ensino dos dois
dia vinte slides, com sugestão de pou- lisados pela Abrale e identificado 0,1% lizmente teve erros. Deveria? Óbvio estados. A Matific, por sinal, venceu
cos minutos por slide, sem dar tempo de ajustes a serem feitos. Ficou claro que não. É grave? É grave. A gente quis em São Paulo uma licitação que che-
de aprofundar os temas. que a revisão limitou-se a verificar erros lançar, teve pressa. A educação precisa gou a ficar um mês suspensa por ação
“O que o Feder prega é a simplifica- factuais, e não os problemas metodoló- melhorar rápido. A educação não pode de outra empresa que fez uma oferta
ção radical da escola, porque é a escola gicos e estruturais. esperar.” No fim de setembro, o mp ins- mais baixa, mas acabou inabilitada.
dos pobres”, critica Fernando Cássio, Para essa crise em específico, caiu taurou novo inquérito civil, para apurar Outra licitação recente foi questio-
professor e pesquisador da Rede Escola como uma luva o pedido de demissão os “graves erros” desse conteúdo. nada por cinco concorrentes, que
Pública e Universidade (Repu), que tam- do coordenador pedagógico Renato Feder diz ter pesquisas internas que apontaram requisitos que poderiam
bém soltou nota técnica apontando pro- Dias, publicado no Diário Oficial em mostram que os slides têm aprovação de direcionar a contratação. Era um edital
blemas. Longe de ser inovador como 6 de setembro. Fazia quase um mês que 80% dos docentes e defende que, além para a compra de 15 mil switches, espé-
defendia a pasta, o material digitar era Dias falava a interlocutores sobre sua de editável, não é de uso obrigatório. cies de modems, no âmbito do projeto
composto em grande parte, como identi- vontade de deixar a função. A secretaria Professores consultados pela piauí, to- de ampliação da cobertura de internet
ficou a Repu, por grandes blocos de tex- informou que a demissão foi “a pedi- dos sob condição de anonimato, confir- na rede – dos menos de 20% que Feder
tos com atividades. “O professor recebe a do”, mas a saída foi providencial. Deu a mam que não há orientação formal diz ter encontrado ao assumir para
aula prontinha, só pegar e fazer. Mas os impressão de que o órgão agira com para que os slides sejam usados, mas 100% até o final deste ano. As impug-
slides são lamentáveis. Isso não está no rapidez para resolver um problema. todos se sentem pressionados a fazê-lo, nações questionaram, entre outras coi-
âmbito do erro factual. Isso está no âmbi- Faltava ainda explicar a origem do seja por diretores, seja pela Prova Pau- sas, uma especificação relativa às listas
to da imprestabilidade pedagógica.” conteúdo: como foram feitos 100 mil lista – avaliação feita a cada dois meses, de controle de acesso (acls), aplicadas
Quando os conteúdos dos slides vie- slides para 5 mil aulas em menos de seis por meio digital –, cujo conteúdo é cla- aos roteadores. O edital pedia 2 mil
ram a público, em reportagem do uol, meses? À piauí, a Seduc-sp informou ramente baseado no material digital, acls, quantidade “totalmente despro-
chamaram a atenção erros grosseiros que o pacote foi elaborado por cerca de em vez de formulado para trabalhar porcional”, “absurdamente excessiva”,
como a informação de que dom Pedro ii, setenta profissionais internos – profes- habilidades e competências, conforme quando o esperado seriam poucas de-
e não a princesa Isabel, teria assinado sores que já eram responsáveis pelo as diretrizes da educação. “Se a escola zenas. “É como se a secretaria precisas-
a Lei Áurea, e a de que, como prefeito material do Currículo em Ação –, com gera índice de tudo e baseia a prova nos se adquirir carros para seu pessoal
de São Paulo em 1961, Jânio Quadros etapas de revisão e diagramação pela slides, não posso não usá-los, porque dentro da cidade de São Paulo e exigis-
isso impacta na nota dos meus alunos. se que o veículo atingisse a velocidade
É uma cadeia de cobrança que vem de de 300 km/h”, comparou uma empresa.
cima, pelo índice. É decoreba, não “Quanto maior a capacidade do equipa-
aprendizado”, diz uma professora. A Se- mento, maior também será o seu cus-
duc diz que a Prova Paulista “não repro- to.” As impugnações foram indeferidas,
duz atividades já vistas no material”, sob o argumento de que era necessário
apenas “se baseia nele”. para “suportar a expansão da rede”.

F A
oi durante a pandemia, no Paraná, maior bandeira de Feder no Para-
que Feder investigou a fundo apli- ná foi o fato de que em 2021, no
cativos de educação, como conta terceiro ano de sua gestão, o ensi-
no livro Educação para o futuro. Aca- no médio do estado alcançou a primei-
bou recorrendo a vários – de leitura, ra posição na avaliação nacional Ideb.
inglês, matemática, redação e progra- O resultado, anunciado em setembro
mação –, para complementar as aulas. de 2022, ajudou a cacifá-lo aos olhos de
“Os professores vibram, os alunos pe- Tarcísio, com quem já vinha conversan-
dem para usar”, diz, soando genuina- do. Feder chegou com a mesma meta a
mente surpreso ao ouvir que docentes São Paulo, que já está empatado com
criticaram o tempo de uso desse mate- Ceará e Goiás na liderança nos anos
rial. “São apenas sugestões, para uso finais do ensino fundamental, mas no
dentro do limite razoável de 20% do terceiro lugar no ensino médio. Porém,
tempo do aluno.” Em paralelo ao in- a escalada do Paraná no ranking não
quérito civil sobre os slides, o mp abriu está livre de suspeitas. Uma delas é a
em setembro um procedimento admi- desconfiança de que tenha eliminado
nistrativo para acompanhar o “manejo da base os alunos menos preparados, de
de tecnologias e inovações nas aulas”. modo a melhorar o resultado.
Feder conta no livro como ele e Jean Situação semelhante apareceu em
Pierre Neto, ex-diretor jurídico da Edu- São Paulo. No fim de agosto, o portal
cação no Paraná e hoje presidente da uol revelou uma resolução da Seduc-
Fundação para o Desenvolvimento sp: Regra da gestão Tarcísio permite ex-
da Educação (fde) em São Paulo, traba- cluir alunos com 15 faltas consecutivas.
lharam nos termos das licitações: “O se- O texto de Adriana Ferraz informava que
gredo é ser republicano, mas estabelecer as escolas agora deveriam classificar essas
bons pré-requisitos, para evitar que em- faltas como “Não comparecimento”
presas não tão sérias, que ofereçam pro- (ncom), o que excluía o aluno do sistema
dutos não tão bons, possam ganhar.” de cadastros do ensino. Caso desejasse
Na prática, com ou sem licitação, retornar, o aluno teria de voltar à fila de
São Paulo tem contratado as mesmas inscrição no sistema. Antes, um aluno
empresas do Paraná. O Alura, aplicati- com mais de cinquenta faltas seria re-

50
8 de 9 27/10/23 PROVA FINAL V2

provado, mas não retirado do sistema. de haver um controle maior desde 2007,
CLUBE DE REVISTAS
Ao divulgar os dados, o próprio Inep tiva nas matrículas, chegando a uma
A nova medida dava margem para uma via Censo Escolar. Uma década antes, destacou o “contexto educacional atípi- queda de 20% nas turmas do ano ini-
limpeza da base de alunos, com poten- São Paulo descobriu ter 300 mil vagas co ocasionado pela pandemia”. Apesar cial. No total, o ensino médio local caiu
cial de melhorar a nota nas provas que duplicadas, algo que na época creditou- disso, assim que o resultado saiu, Feder de 352 mil alunos em 2018 para 306 mil
avaliam a qualidade do ensino. Afinal, se ao fato de que o número de alunos postou no Instagram um gráfico com a em 2021, quase 46 mil a menos.
alunos com muitas faltas tendem a ir pior interfere na verba da escola. Secretária subida do Paraná: sétimo lugar em 2017, Para o educador José Francisco Soa-
nos exames – mas um aluno que não de Educação entre 1995 e 2022 e hoje quarto em 2019 e primeiro em 2021. No res, que presidiu o Inep de 2014 a 2016,
existe no sistema não tem como baixar o conselheira do estado e do município, alto, um texto em verde vibrante infor- a discrepância entre os números do Pa-
índice. Com a entrada do mp no caso, Rose Neubauer conta que, quando leu mava: “O Paraná tem a melhor educa- raná e os dos outros estados “leva a uma
dias depois a Seduc anunciou novas me- a notícia das quinze faltas definidas ção pública no Brasil.” O dado seria questão: de modo geral, se um estado
didas, como comunicar os responsáveis e pela secretaria de Feder, interrogou a repetido à exaustão nas redes do secre- tem um decréscimo de matrículas mui-
pedir autorização do Conselho Tutelar pasta. “Perguntei se estavam pegando tário, do governador Ratinho, então to maior do que os outros, isso é compa-
antes da retirada do aluno do sistema. duplicação de novo. Ouvi que não. em campanha à reeleição, e dos canais tível com a ocorrência de uma seleção
Feder defende a medida. “Cerca de Então por que tirar o aluno do sistema? oficiais do Paraná. “Por qualquer ân- de estudantes, o que pode vir a melho-
20% faltam à escola todos os dias. São O trabalho todo é para atrair o aluno gulo que se analise a educação pública rar tanto as notas dos exames quanto
600 mil alunos”, diz ele, ressaltando para a escola. Se você tira do cadastro, do Paraná nesse período, os resultados as taxas de aprovação”. Indagada pela
como sua gestão trabalha para reduzir a como traz de volta?” foram espetaculares”, disse Feder à piauí, a secretaria do Paraná creditou a
evasão com a ajuda do aplicativo Aluno piauí. De fato, os pontos do Todos Pela queda a variações “naturais”, influen-

A
Presente, que permite um acompanha- avaliação do Ideb de 2021 que colo- Educação não interfeririam nesses re- ciadas por “diminuição da taxa de nata-
mento imediato. “Um pequeno percen- cou o Paraná na liderança nacional sultados se for considerar que o Paraná lidade” e “mobilidade da população”.
tual desses alunos, por mais esforço que ainda nem tinha sido divulgada, teve participação mais alta que a mé- O professor Hermes Leão, do sindi-
faça, a escola não consegue trazer de quando, em 15 de setembro de 2022, o dia do país nas provas. cato do Paraná, lembra que algumas das
volta. Dos cem dias letivos que já pas- Todos Pela Educação soltou uma nota No entanto, há uma interrogação primeiras medidas da gestão Feder im-
saram, ele veio cinco, dez. A medida técnica sugerindo cautela com os núme- sobre o volume de matrícula no Paraná. pactaram no número de matrículas.
visa esses casos extremos. O fato de esse ros. O texto destacava dois pontos. Pri- A piauí levantou dados de ensino médio “Escolas que todo ano abriam uma tur-
aluno estar matriculado é uma hipo- meiro, que o impacto da pandemia não dos seis estados mais bem colocados no ma regular à noite não puderam fazer
crisia. Ele já evadiu.” era homogêneo em todas as localidades ranking do Ideb de 2021 – Paraná em isso, e os alunos que fossem para a eja”,
A diretora da consultoria Metas So- do país. Estados com menos participa- primeiro, Goiás em segundo, e em ter- diz, referindo-se às escolas de Educação
ciais, Fabiana de Felício – que foi dire- ção de alunos nos exames poderiam se ceiro lugar, empatados, Espírito Santo, de Jovens e Adultos, que não entram no
tora do Instituto Nacional de Estudos e beneficiar da “seleção dos estudantes”, Pernambuco, Ceará e São Paulo. To- cálculo do Ideb. O motivo, ele argu-
Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira ainda que “não intencional”. Segundo, dos, à exceção do Paraná, tiveram varia- menta, é que o desempenho e as taxas
(Inep) na época em que o órgão criou o alguns estados tinham decidido aprovar ções pequenas nas taxas de matrículas de aprovação desses alunos costumam
índice do Ideb –, confirma que muitas todos os alunos na pandemia, e outros de 2018 a 2021, tendendo a um leve ser piores que os das turmas diurnas.
redes falham em organizar dados de não. Era mudança demais para os nú- aumento para os três anos do ensino Para educadores, esse tipo de mudança
alunos que nunca vão à escola, apesar meros entrarem na série histórica. médio. O Paraná tem redução significa- pode afetar resultados do Ideb.

piauí_novembro 51
9 de 9 27/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
ministração, agronegócios e vendas. Em aprendizado adequado de língua portu-
geral, educadores apoiam a ampliação de guesa, e 6% em matemática – realidade
vagas para o ensino técnico – o Brasil tem similar à do restante do país. Grande
apenas 11% de alunos nesses cursos, en- parte do problema está na ineficiência
ANDRÉ DAHMER_2023

quanto em países europeus eles passam na formação de professores. Em outubro,


dos 40%. Mas o conselho destacou em o Inep revelou que 93,2% dos alunos
parecer recente que o estado já tem um de licenciatura – o curso de formação de
centro que “desempenha essa função professores – aprovados nas faculdades
com qualidade, sem a necessidade de privadas em 2022 optaram pelo ensino
criar estrutura adicional”. É o Centro a distância. É um ensino mais precário
Paula Souza (cps), autarquia vinculada à porque, em geral, tem muitas aulas gra-
Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ino- vadas, e com pouca interação entre alu-
vação, que tem mais de 316 mil alunos. nos e professores. “E aí o secretário
A Seduc defendeu que o cps não con- substitui o professor por plataformas”,
seguiria atender, ainda em 2024, as 100 diz Francisco Poli, do sindicato de dire-
mil matrículas planejadas para o ensino tores (Udemo), lembrando que Feder
profissional nas escolas regulares, o que tende a culpar a “aula chata” pela evasão
é verdade. O conselho, porém, acredita de alunos, sem considerar que muitos
que a Seduc também não poderia fazer deixam a escola para trabalhar.
essa ampliação sem comprometer a qua- No meio disso tudo, no dia 17 de
lidade do ensino, visto que há uma escas- outubro, Tarcísio enviou à Alesp uma
sez de profissionais aptos a atuar como Proposta de Emenda à Constituição
docentes dessas áreas. Uma expansão (pec) paulista para remanejar até 5%
adequada precisaria de mais tempo de dos recursos da Educação para a Saúde,
trabalho com a formação de professores. o que pode tirar 10 bilhões de reais por
O sociólogo Cesar Callegari, que co- ano da rede de ensino. Ele argumenta
mandou a comissão que elaborou a que o estado reserva 30% do orçamento
Base Nacional Comum Curricular para a educação, mais do que os 25%
Feder também atribui o resultado escolas entre “raiz”, as que ficam em co- (bncc), diz que as escolas regulares de previstos pela Constituição Federal.
obtido pelo Paraná no Ideb de 2019, munidades, e “nutella”, as localizadas em São Paulo “não têm condição” de ofere- “Os casais têm cada vez menos filhos, e
quando o estado apareceu em quarto bairros de classe média como a Vila Ma- cer ensino técnico com a qualidade do tenho cada vez menos matrículas. Por
lugar, às iniciativas que adotou. Mas dalena. Ao final da exposição, a conse- cps. Callegari chama de “miragem” a outro lado, as pessoas estão envelhecen-
todos os especialistas consultados pela lheira Katia Stocco Smole perguntou o ideia de que “qualquer coisinha em es- do e demandando mais saúde”, disse o
piauí dizem que não é crível melhorar que ele quis dizer com raiz e nutella. colas comuns” vá proporcionar emprego governador ao Tribunal de Contas do
os resultados em nove meses. Feder as- “Usei o linguajar coloquial, que às vezes a um número grande de jovens. “O mer- Estado, em agosto. Educadores relacio-
sumiu a pasta de educação no Paraná facilita a comunicação”, explicou ele, um cado é capacitado a perceber e avaliar as nam essa manobra ao fato de que, de-
em janeiro de 2019 e o exame do Ibeb pouco menos confortável em sua cadeira. competências que a pessoa tem.” pois de anos de negociações, termina
aconteceu em setembro daquele ano. (A história circulou como exemplo em 2024 o prazo que São Paulo conse-

“T
“É impossível. O desempenho do da falta de traquejo do secretário, que oda a literatura aponta a cor- guiu na Justiça para continuar pagando
aluno é decorrente do histórico fami- repetiu a dose duas semanas depois, du- relação entre desenvolvimen- inativos e pensionistas da educação
liar, social e escolar. O efeito da escola rante o evento de 60 anos do conselho. to econômico e qualidade da com dinheiro da própria educação – o
em um ano é muito pequeno”, diz a Ele subiu ao palco e fez um contraponto educação, mas São Paulo está atrás de que gastava recursos que poderiam ser
consultora Fabiana de Felício. “Para entre sua gestão e a maneira como via estados mais pobres”, afirma Anna He- destinados à manutenção de escolas,
entender um aumento na nota do ensi- os conselheiros: “O conselho resguarda lena Altenfelder, presidente do conse- por exemplo. Em 2024, o pagamento já
no médio em 2019, é preciso olhar para a educação, protege a educação, vê o lho de administração do Centro de terá que ser feito pela Seguridade So-
oito anos antes, quando a criança estava direcionamento. E a gente está deixan- Estudos e Pesquisas em Educação, Cul- cial, e o valor é próximo do montante a
no ensino fundamental.” do a vida de vocês difícil. Porque a gen- tura e Ação Comunitária (Cenpec). Ela ser subtraído da Educação.
te é a inovação [...]. Se a gente quisesse cita problemas como a descontinuidade

N O
a manhã do dia 2 de agosto, Feder deixar a vida do conselho confortável, de políticas de educação nos governos estilo de gestão de Feder acabou
tinha apenas uma hora para a era só não inovar, não fazer nada.”) tucanos. Tereza Perez, diretora da Co- deixando-o isolado. Nas dezenas
reunião com o Conselho Estadual Na reunião do dia 2, Feder também munidade Educativa Cedac, diz que de conversas da piauí com educa-
de Educação, na sede da secretaria. descreveu aos conselheiros o seu mode- São Paulo também nunca foi forte na dores e pessoas próximas ao meio em
A notícia do pnld estourara menos de lo para o Novo Ensino Médio paulista. colaboração com seus municípios – jus- São Paulo foi difícil encontrar quem o
48 horas antes, e dali ele iria prestar Em um momento em que a União está tamente o modelo de estados que se defendesse. Entre eles, está Jair Ribeiro,
contas ao governador no Palácio dos revendo definições de carga horária e tornaram referência, como o Ceará. presidente da Casa do Saber, instituição
Bandeirantes. O presidente Roque Theo- disciplinas para os alunos a partir de “Você precisa de ações coordenadas, de que promove cursos livres, e membro do
philo Júnior abriu a sessão esclarecen- 15 anos, ele resolveu se antecipar. A sua formação de professores, de transporte, Conselho Estadual de Educação desde
do que a conversa fora combinada proposta enxuga de onze para três os de distribuição de recursos.” setembro deste ano. “Feder é inteligen-
semanas antes, pela percepção mútua chamados “itinerários formativos”, con- Dos 216 mil docentes da rede paulis- te, com ótimas intenções e movido por
de que seria bom o secretário estar mais juntos de disciplinas que os estudantes ta, quase a metade tem contratos tempo- uma missão pessoal de transformar a
próximo. No primeiro semestre, a pos- podem escolher para além das matérias rários, precarizados. Com 3,3 milhões educação pública”, disse Ribeiro
tura distante de Feder causara incômo- obrigatórias. Embora não exista con- de alunos em 5,3 mil escolas, São Paulo A maioria, no entanto, o critica. Diz
do entre os conselheiros. Afinal, além senso, o enxugamento foi em geral visto ficou quase dez anos sem concurso para que falta a Feder a percepção de que
de normativo e deliberativo, o conselho como menos problemático que o pro- professores efetivos, o que só aconteceu não tem conhecimento sobre a área
é também consultivo. posto na gestão anterior, que se desdo- neste ano, para preencher 15 mil vagas. que ocupa. O ex-secretário José Renato
Feder levou slides para falar de sua brou numa miríade de disciplinas para Embora o estado tenha o mais alto cus- Nalini diz que acredita nas boas in-
gestão: o controle de frequência de alu- as quais não havia professores. to de vida do país, paga aos professores tenções de Feder, apesar da “visão bem
nos, a Prova Paulista, o material digital, Os conselheiros, entretanto, não viram o piso nacional de 4 420,55 reais, em empresarial”, e avalia que o secretário
um programa de formação de professo- com bons olhos as definições para um alguns casos complementado com abo- precisa melhorar o diálogo. “Acho que
res. Falou também sobre seu modelo de dos itinerários propostos – o da educação no. É menos do que estados como Cea- está apanhando”, diz Nalini. De re-
bônus e, ao explicar o sistema de metas profissional. De novo, Feder pareceu co- rá e Maranhão. pente, ele se lembra do período em que
– nomeadas de “ouro” e “diamante”, ao locar a carroça na frente dos bois. No O portal de dados educacionais qedu Feder foi seu trainee na secretaria, sem
estilo de programas de incentivo para re- modelo proposto pela Seduc, os alunos mostra que apenas 38% dos alunos pau- avisá-lo disso. Dá uma risada e diz: “Se
vendedoras de cosméticos –, dividiu as poderão escolher entre cursos como ad- listas terminam o ensino médio com ele treinou, deveria estar preparado.” J

52
1 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
questões turísticas

O EMPREENDIMENTO
A
praia da Ponta dos Castelhanos embarcações de pequeno e médio por-
é aquilo que se costuma cha- te poderão atracar. É um empreendi-
mar de paraíso na terra. É uma mento cujo valor total pode passar de
faixa de areia clara e fina, dian- 1 bilhão de reais, o que faz dele um dos
te de um mar azul de águas projetos mais caros do litoral brasileiro.
tépidas e claras, margeada por coqueiros Entre os investidores mais conhecidos,
e árvores da exuberante Mata Atlântica estão José Roberto Marinho, vice-pre-
do Sul da Bahia. Na maré baixa, for- sidente do Grupo Globo, e o economis-
mam-se piscinas naturais com recifes de ta Armínio Fraga, que já foi presidente
coral e, por mais um luxo da natureza, a do Banco Central.
água doce do Rio Catu deságua no co- O projeto está sob comando da Man-
meço da praia e invade o mar – tudo sob gaba Cultivo de Coco Ltda., uma em-
uma temperatura que oscila entre 21 e presa gerida pelo empresário carioca
29 graus durante o ano. São 2,5 km de Marcelo Pradez de Faria Stallone, que
praia, que alguns dizem ter sido batizada também é sócio da Gávea Investi-
em nome dos sobreviventes – os caste- mentos, gestora de fundos criada por
lhanos – do naufrágio do Madre de Armínio Fraga. Por um longo tempo,
Dios, um galeão espanhol que se cho- os interessados pesquisaram várias
cou com os corais no local no século xvi. praias do litoral brasileiro, de Paraty,
Para chegar até ali, o trajeto pode no Rio de Janeiro, até Jericoacoara, no
envolver trechos por terra, mar e ar, Ceará, em busca de um local preserva-
a depender de onde vier o visitante. do e com atrativo turístico. Acabaram
A praia fica na Ilha de Boipeba, que faz escolhendo a Ponta dos Castelhanos,
parte de Cairu, um município-arqui- na Ilha de Boipeba.
pélago com quase 18 mil habitantes Como ocorre em boa parte do lito-
espalhados por 26 ilhotas. Situada na ral brasileiro, a Ilha de Boipeba, além
parte Sul de Boipeba, a Ponta dos Cas- de ter uma história fundiária comple-
telhanos não tem água encanada, nem xa, faz parte de uma área de proteção
esgoto tratado. Não há casas ou pousa- ambiental e ainda abriga comunidades
das à beira da praia, apenas barracas tradicionais de quilombolas. Desde
que vendem bebidas e comidas aos tu- que compraram o direito de ocupação
ristas – e, apesar da infraestrutura pre- da fazenda por 25 milhões de reais em
cária e da dificuldade de acesso, são 2008, os proprietários enfrentam o de-
muitos os turistas no verão. Com sua safio de equilibrar as três questões – a
beleza natural bem preservada, a Ponta fundiária, a ecológica e a social. E o que
dos Castelhanos é um exemplo de um parecia um negócio no paraíso trans-
movimento que não para de crescer: a formou-se numa controvérsia cujo
exploração imobiliária e turística das conteúdo tem um valor pedagógico
áreas mais cobiçadas do litoral brasilei- sobre a exploração sustentável das áre-
ro, sobretudo na Bahia, o estado com a as costeiras do país.
costa mais extensa do país.

O
Em março passado, o governo baia- Instituto do Meio Ambiente e Re-
no, há quase dezessete anos sob co- cursos Hídricos da Bahia (Inema)
mando do pt, concedeu uma licença concedeu a licença ambiental
ambiental para a instalação de um con- para que a Mangaba instalasse o condo-
domínio de alto padrão na Fazenda mínio em março passado, depois de seis
Ponta dos Castelhanos, uma proprieda- anos de tramitação do pedido. Autori-
de rural com 16,5 km2 – quase 20% da zou os 69 lotes, as pousadas, o aeródro-
ilha – cujas terras abrangem toda a ex- mo e o píer, e permitiu o desmatamento
tensão da orla da praia. O condomínio de uma pequena área, de 29 mil m2,
prevê a criação de 69 lotes, cada um para explorar jazidas de areia e argila
com tamanho médio de 29 mil m2, para construção, com a condição de que
além de duas pousadas, cada uma com a área derrubada fosse compensada com
25 casas e 25 quartos. O projeto inclui o plantio de árvores da Mata Atlântica
ainda um aeródromo com pista de pou- em outro local com as mesmas caracte-
so, terminal para passageiros e hanga- rísticas. Vetou a construção de um cam-
res, além de um píer flutuante onde po de golfe com dezoito buracos, como A praia da Ponta dos Castelhanos: a marisqueira Ana Paula Damasceno, 39 anos, teme que a circulação

54
2 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS

O caso de um condomínio de luxo numa ilha da Bahia e o desafio


de explorar – e conservar – os pedaços de paraíso do litoral brasileiro

BERNARDO ESTEVES

ANDRÉ GONÇALVES_2023

de lanchas do condomínio afugente peixes e mariscos. “Quem vai sofrer as consequências somos nós. E o maior empreendimento a gente tem aqui na frente – é esse mar grande que nos dá de tudo”

piauí_novembro 55
3 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
Atlântica conservada nos seus diferentes e que “os documentos sempre estiveram
ambientes, com manguezais, apecuns, em situação regular”.
florestas, restingas arbóreas e geológicas”, Com tanto barulho em torno do assun-
diz o engenheiro ambiental Eduardo Bar- to, porém, a Secretaria de Patrimônio da
ANDRÉ DAHMER_2023

celos, integrante do Obsul e professor do União (spu) resolveu parar o jogo. Suspen-
Instituto Federal de Educação, Ciência deu por noventa dias o ato que transferiu
e Tecnologia Baiano (if Baiano). “São à Mangaba a titularidade sobre aquelas
ecossistemas de profunda vulnerabili- terras “até que sejam esclarecidos os possí-
dade”, completa ele. O Obsul afirma veis vícios do processo”. Terminados os
ainda que as comunidades tradicionais noventa dias, decidiu renovar a suspensão
que seriam impactadas pelo projeto não por mais noventa dias. E, terminados es-
foram previamente consultadas pela au- ses noventa dias, prorrogou por mais ses-
toridade ambiental, como determina a senta. O novo prazo vence em dezembro.
lei, e aponta uma série de outros proble-

O
mas no processo de licenciamento. Pro- povoado de São Sebastião, mais co-
curado pela piauí, o Inema não respondeu nhecido como Cova da Onça, fica
as perguntas sobre essas alegações. espremido entre o mar e as terras da
Em paralelo aos protestos de ambien- Fazenda Ponta dos Castelhanos. É forma-
talistas, o Ministério Público, que desde do por uma via principal, que acompa-
o início é contra a instalação do condo- nha uma praia com cerca de 1 km, e
mínio, reagiu à licença do Inema e pe- algumas ruas secundárias pelo interior da
diu sua revogação. Alegou que as terras ilha. Os poucos restaurantes, estabeleci-
da fazenda fazem parte de uma área mentos comerciais e igrejas estão concen-
pública federal, cujo território é reivin- trados principalmente na orla.
dicado por comunidades tradicionais. Os moradores que vivem da pesca e
A maioria da população local – eram do extrativismo usam parte das terras da
720 habitantes, segundo o censo de 2010 fazenda para coletar mangabas e acessar
– tira seu sustento de atividades como a a Ponta dos Castelhanos ou o mangue
pesca artesanal, a mariscagem, a agricul- onde pegam caranguejos. Com a insta-
tura familiar e a coleta de mangabas. lação do empreendimento Ponta dos
Além de contestar a validade do título de Castelhanos, terão como manter o modo
propriedade do imóvel, o Ministério Pú- de vida tradicional do qual tiram seu sus-
previa o projeto original, bem como a mento das tartarugas que desovam na blico afirma que o empreendimento tento? Ao analisar o caso na sua tese de
ocupação de um morro coberto de man- Ponta dos Castelhanos – o que já é fei- comprometerá o modo de vida e o sus- doutorado em geografia pela Universida-
gabas, fruta típica da região, onde o pla- to pela fazenda. tento tradicionais dessas comunidades. de Federal da Bahia, o advogado Leo-
no previa a construção de 32 casas. A Mangaba alega que o condomínio A história fundiária da região remon- nardo Fiusa Wanderley afirma que a
Na mesma licença, o Inema estabele- será construído numa área que foi des- ta aos tempos do Brasil Colônia. O ar- área da fazenda “faz parte do território
ceu 59 condicionantes. Determinou que matada no passado e hoje está coberta quiteto Manoel Altivo da Luz Neto, histórico, ancestral e tradicional da co-
dois lotes do condomínio sejam destina- por coqueirais. Também diz que novas morador de Valença, município vizinho munidade pesqueira de Cova da Onça”.
dos para uso comunitário, onde serão derrubadas de mata nativa só serão fei- a Cairu, mas situado no continente, Um defensor desse argumento é Rai-
construídos um centro de cultura e ca- tas se autorizadas pelos órgãos ambien- conta que uma sesmaria contendo aque- mundo Esmeraldino Silva, um pescador
pacitação, um equipamento esportivo e tais. A empresa estima que, quando las terras foi doada aos jesuítas pela Co- de 60 anos, conhecido pelo apelido de
uma estação de tratamento de resíduos. todas as casas e equipamentos estiverem roa portuguesa, mas acabou sendo Siri. Nascido e criado em Cova da On-
Proibiu a empresa de cercar as terras e prontos, a área total construída será de confiscada em 1759, quando Portugal ça, Siri é coordenador da Associação de
mandou que mantivesse o livre acesso 327 mil m2, o que corresponde a 2% da expulsou a ordem religiosa da colônia. Pescadores e Pescadoras de Cova da On-
para as atividades extrativistas dos mo- extensão total da fazenda, configuran- Três anos depois, a Coroa leiloou as ça (Apesco), uma entidade que ele diz
radores do entorno. A Mangaba terá do, segundo argumenta no relatório de terras, que foram arrematadas por três representar também marisqueiros e mo-
ainda que providenciar a sinalização de impacto ambiental, “uma taxa de ocu- particulares. Altivo, que defende a cons- radores que vivem do extrativismo e da
todos os caminhos tradicionais e refor- pação extremamente baixa”. trução do condomínio como um polo agricultura. Em entrevista à piauí, ele
mar o atracadouro da vila mais próxima, “Nossa intenção é implementar, para atrair recursos para o município- disse que a comunidade só soube do pro-
conhecida como Cova da Onça. Além conforme o projeto autorizado pelo ór- arquipélago de Cairu, diz que o imóvel jeto do condomínio quando os empreen-
disso, terá de executar um plano de ca- gão ambiental, empreendimento que já foi aceito várias vezes pelo Banco do dedores entregaram um relatório com o
pacitação de mão de obra das comuni- seja apto a conciliar atividade de turis- Brasil como garantia em diferentes con- estudo dos impactos sociais e ambientais
dades locais, que incluem as localidades mo sustentável, conservação ambiental, tratos, sinal de que estava em situação que a construção teria para a região. Pou-
de Monte Alegre e Moreré. A Mangaba desenvolvimento da região e respeito regular e não era mais da União. co depois disso, ele viu um mapa com os
também terá que ceder aeronaves em aos modos e tradições da comunidade”, O Ministério Público contesta. Em au- lotes do empreendimento nas mãos de
casos de emergências ambientais e de diz a nota. Mas, talvez com a memória diência realizada em Salvador, em abril, o um funcionário a serviço do empreendi-
saúde para a população local. de casos como a hidrelétrica de Belo procurador Ramiro Rockenbach listou dez mento. Notou que as terras abrangiam o
Em termos ambientais, a lista de Monte, cuja construção seguiu em motivos que, segundo ele, desautorizam morro que eles frequentavam para pegar
condicionantes inclui ainda uma série frente mesmo com o descumprimento o licenciamento ambiental. “O primeiro mangabas. “Rapaz, isso vai acabar com a
de medidas de conservação, como a de várias condicionantes impostas pelo deles é porque a área não é propriedade comunidade”, disse ele ao funcionário.
obrigação de recuperar áreas degrada- Ibama, os ambientalistas chiaram. particular”, disse Rockenbach. O pro- Para Siri, se o condomínio for cons-
das, proteger espécies ameaçadas e mo- Em nota divulgada na época, o Ob- curador afirmou que a Advocacia-Geral truído, Cova da Onça não terá mais para
nitorar a erosão da linha da costa e o servatório Socioterritorial do Baixo Sul da União também reconstituiu a cadeia onde crescer. “Esse empreendimento es-
nível do aquífero. A Mangaba ainda da Bahia (Obsul) disse que o projeto era dominial do imóvel, e concluiu que era preme a comunidade contra o mar e não
não avaliou se o projeto continua eco- uma ameaça aos ecossistemas costeiros um bem da União. (A agu confirma a deixa área nenhuma para ela se desenvol-
nomicamente viável diante dessas con- de grande riqueza e vulnerabilidade eco- existência do documento.) Foi mais lon- ver e produzir.” Além disso, o projeto in-
dições, mas não se opôs a nenhuma lógica, além de levar o consumo de água ge e insinuou que os empreendedores viabilizaria as áreas usadas para a pesca, o
delas. Em nota enviada à piauí, a em- na ilha a níveis desproporcionais. Boipe- eram grileiros: “Não podemos permitir extrativismo e as roças, bem como áreas
presa enumerou uma série de preocu- ba fica no trecho do litoral baiano conhe- nenhum tipo de grilagem de terra públi- onde pegam água e madeira. “Esse terri-
pações ambientais que levou em conta cido como Costa do Dendê e abriga a ca”, disse. A Mangaba, que também pes- tório é ancestral, passou por várias pessoas
no projeto, incluindo a destinação de última faixa contínua de Mata Atlânti- quisou o histórico do imóvel desde que que estiveram aqui antes de mim”, disse.
resíduos sólidos, o sistema de esgoto, o ca do Baixo Sul da Bahia. “São 150 km deixou as mãos do Estado no século “É nosso e é sagrado, precisa existir para
abastecimento de água e o monitora- de trecho litorâneo com uma Mata xviii, afirma que a transação foi correta a gente continuar existindo.”

56
4 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

A Mangaba Cultivo de Coco já havia autorreconhecimento. Descobriu que o


CLUBE DE REVISTAS
preendimento como um fortalecimento com ativistas de outras organizações que
solicitado a licença prévia para o empreen- Brasil tem 1,3 milhões de quilombolas, do direito dos povos tradicionais aos o ajudaram a orquestrar a resistência. Foi
dimento, mas, neste primeiro momento, ou 0,65% da população brasileira. Mais seus territórios. numa audiência pública promovida pelo
não foi atrás da comunidade no entorno de dois terços desse contingente está no O responsável por formular os pedi- Inema que ele soube da existência de um
das terras para anunciar seus planos e Nordeste – dos quais quase 400 mil es- dos de reconhecimento foi Benedito da mecanismo que poderia garantir de algu-
ouvir a reação dos moradores. Os em- tão na Bahia, o estado recordista. Prati- Paixão Santos, de 47 anos, em nome ma forma aos moradores a ocupação dos
preendedores só procuraram a comuni- camente 9 em cada 10 quilombolas no da Associação de Barracas Sustentáveis da seus territórios tradicionais: um instru-
dade quando souberam da repercussão país vivem em comunidades que não Ilha de Boipeba, da qual ele integra o mento chamado Taus, ou Termo de Au-
negativa que a notícia do projeto estava foram tituladas, conforme mostrou uma conselho fiscal. Conhecido pelo apeli- torização de Uso Sustentável. “Foi uma
provocando em Cova da Onça. matéria da Repórter Brasil. do Bio, ele tem uma barraca na Praia de pessoa da própria spu que participou da
Em Boipeba, a vila de Monte Alegre, Tassimirim, no nordeste da ilha, onde audiência pública que chamou nossa

A
s ilhas de Boipeba e de Tinharé, que tem cerca de 120 pessoas e fica na conversou com a piauí. Bio contou que atenção para esse direito”, disse Siri.
onde fica o Morro de São Paulo, porção Sul da ilha, é autorreconhecida custou a se reconhecer como quilom- O Taus é um instrumento pelo qual
atração turística mais conhecida, desde 2006 como comunidade quilom- bola. “Tudo o que o sistema sempre uma comunidade tradicional é autoriza-
eram ambas habitadas por povos indíge- bola. Depois que o Inema concedeu a quis é apagar a nossa memória”, afir- da a fazer uso de terras de propriedade da
nas do grupo dos tupinambás que foram licença para o empreendimento Ponta mou. “Com o decorrer do tempo e das União. É considerado um instrumento
paulatinamente mortos ou expulsos com dos Castelhanos e que o processo de lutas, comecei a descobrir minhas ori- precário, que é adotado às vezes para pa-
a chegada dos portugueses, a partir do construção foi paralisado pela spu, ou- gens.” Querendo ou não, continuou, cificar conflitos fundiários enquanto as
começo do século xvi. O povoado de tras duas comunidades solicitaram e todos ali eram quilombolas, embora terras em questão não são regulariza-
Boipeba foi fundado em 1616, de acordo obtiveram o mesmo status, que é confe- muitos não queiram se reconhecer as- das. A concessão do Taus – cujo perí-
com a tese de doutorado de Leonardo rido pela Fundação Cultural Palma- sim, por achar que a palavra está muito metro é definido com base num laudo
Fiusa Wanderley. O pesquisador conta res. O povoado de Moreré, a 9 km de ligada à escravização. “Se não sou qui- antropológico – pressupõe que a comu-
que, no fim do século xvii, criou-se um Cova da Onça, foi reconhecido em lombola, o que é que sou? Essa palavra nidade tradicional vai continuar a man-
quilombo nas proximidades de Cairu, agosto, e o da vila de Boipeba, na outra está no meu sangue, na minha raça, na ter seu modo de vida tradicional com
que chegou a reunir cerca de quatro- extremidade da ilha, em setembro. Com minha cor, nos meus antepassados.” práticas sustentáveis.
centos quilombolas, conforme uma car- o status reconhecido pelo governo, as Em Cova da Onça, porém, o povoado Em nome da associação de pescado-
ta enviada na época ao rei dom João V. comunidades passam a ter acesso a po- que faz limite com a fazenda, a maioria res, Siri apresentou um pedido formal
O quilombo existiu por algumas déca- líticas públicas voltadas para os quilom- dos moradores não se identifica assim. de Taus para o território tradicional
das, escreve Fiusa, mas a tradição qui- bolas e podem solicitar futuramente a ocupado pelos pescadores, marisquei-

E
lombola se manteve viva mesmo após a titulação das terras onde moram. Com m 2014, depois que a Mangaba ros e coletores do povoado de Cova da
abolição, com as comunidades defen- o impasse em torno do uso tradicional Cultivo de Coco entregou o relató- Onça. “Temos a prioridade para nos
dendo seus territórios e modos de vida. de parte das terras da Fazenda Ponta rio dos impactos ambientais do manter em nosso território com nossa
O Censo Demográfico 2022, feito dos Castelhanos, o reconhecimento das condomínio, Raimundo Siri, o coorde- forma de vida, nossa tradicionalidade e
pelo ibge, pela primeira vez contabili- duas comunidades foi festejado por mo- nador da associação de pescadores da nossa cultura”, disse. “Entendemos que
zou os quilombolas, identificados por radores contrários à instalação do em- vila, começou a se articular. Conversou o Taus é o único instrumento que nos

Ministério da Cultura, Prefeitura de São Paulo, através ORQUESTRA


da Secretaria Municipal de Cultura, Fundação Theatro SINFÔNICA
Municipal, Sustenidos, Bradesco e Cescon Barrieu MUNICIPAL
apresentam
CORO LÍRICO
MUNICIPAL

ROBERTO MINCZUK ALINE SANTINI


direção musical design de luz
PABLO MARITANO MATÍAS OTÁLORA
direção cênica design de vídeo
MÁRIO ZACCARO MALONNA
regente do Coro Lírico visagismo
DESIRÉE BASTOS PIERO SCHLOCHAUER
cenografia e figurino assistente de direção

dias 17, 19, 22 e 25 dias 18, 21 e 24

o navio
der fliegende
de
richard
HERNÁN ITURRALDE
O Holandês
CARLA FILIPCIC
Senta
RODRIGO ESTEVES
O Holandês
EIKO SENDA
Senta
KRISTIAN BENEDIKT EWANDRO STENZOWSKI
holländer wagner Erik Erik

fantasma todas as datas


LUIZ-OTTAVIO FARIA
Daland

NOV 2023 GIOVANNI TRISTACCI


Timoneiro
17, 21, 22 e 24 às 20h
REGINA ELENA MESQUITA
18, 19 e 25 às 17h Mary

Ingressos R$12-158 ACOMPANHE NOSSAS REDES SOCIAIS: SINTA-SE À VONTADE. O THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO FAZ
NA NOSSA CASA OU NA SUA, PARTE DA SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA.
Classificação indicativa 12 anos Theatro Municipal Praça das Artes
O THEATRO MUNICIPAL É SEU. PROGRAMAÇÃO SUJEITA A ALTERAÇÃO.
Duração aproximada 140 minutos, @theatromunicipalsp @pracadasartes
sem intervalo @theatromunicipal @pracadasartes
@municipalsp apoio: patrocínio: realização:

Informações e ingressos /theatromunicipalsp


piauí_novembro
THEATROMUNICIPAL.ORG.BR @theatromunicipal 57
5 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

garante permanecer no território traba-


CLUBE DE REVISTAS
moradores de São Sebastião da Cova da difícil, vai ficar pior, principalmente pa-
lhando e vivendo com dignidade.” Onça”, afirmava o texto da petição. ra a gente que depende da pesca”, diz.
O pedido foi protocolado em 2014, Na avaliação de Siri, a campanha de “Quem vai sofrer as consequências somos
mas continua até agora sem resolução. informações distorcidas sobre o Taus aju- nós que vamos ficar aqui. E o maior em-
Quando a polêmica em torno do em- dou a insuflar a oposição dos moradores. preendimento a gente tem aqui na frente
preendimento voltou a esquentar com a “A desinformação criou um nó na cabe- – é esse mar grande que nos dá de tudo.”
licença concedida pelo Inema em mar- ça das pessoas”, disse. Para ele, todo o Na visão de Vanessa dos Santos Ma-
ço passado, o desfecho da novela passou debate em torno da proibição da venda tos, dona de uma barraca na praia da
a depender dessa definição, e o Taus foi de imóveis no povoado parte de uma Ponta dos Castelhanos, a chegada do
catapultado para o primeiro plano da premissa equivocada. “A terra é pública empreendimento pode ser um estímulo
controvérsia. Enquanto a decisão não da União, e enquanto comunidade tra- para os jovens de Cova da Onça. “A eva-
sair – com a definição dos limites do dicional, temos a posse e o direito de são escolar é grande por causa da falta
Taus –, nenhuma construção poderá continuar vivendo nela. Como podemos de esperança”, disse ela à piauí. “Para
ser erguida na Ponta dos Castelhanos. vender uma coisa que não é nossa?” que você vai ficar estudando para ir a
O laudo antropológico incluído no lugar nenhum? O destino é ficar arman-

Q
processo foi elaborado por pesquisado- uando percebeu que os moradores do ratoeira para pegar guaiamum. Estu-
res da Universidade Federal do Recôn- de Cova da Onça estavam inco- dando, você cresce e pode passar de
cavo da Bahia (ufrb), da Universidade modados com a instalação de um camareira a vice-gerente.”
do Estado da Bahia (Uneb) e do if condomínio de luxo na sua vizinhança, O condomínio e as pousadas devem
Baiano. O estudo concluiu que a co- a Mangaba Cultivo de Coco resolveu gerar empregos diferentes durante sua
munidade de Cova da Onça faz uso dar mais atenção ao diálogo, que havia construção e na fase de operação regu-
comum de diversas áreas da Fazenda negligenciado num primeiro momento. lar. Num primeiro momento, haverá
Ponta dos Castelhanos para garantir a Nas conversas, os empreendedores ten- postos na construção civil e, depois, no
reprodução de seu modo de vida e suas taram convencer os locais de que o pro- setor de turismo e serviços. A Mangaba
atividades extrativas. jeto não ameaçaria seu modo de vida ou projeta que, quando todos os equipa-
Mas a adesão ao Taus proposto pela o acesso aos caminhos tradicionais. mentos previstos estiverem concluídos
associação de Siri está longe de ser uma Argumentaram que o empreendi- – o que pode levar muitos anos –, o con-
unanimidade local. Se o povoado de mento traria mais benefícios que prejuí- domínio vai gerar 255 empregos diretos
Cova da Onça for incluído no perímetro zos, com a geração de empregos e com a na baixa temporada e 391 na alta. Resta
do Taus, os moradores não poderão mais maior circulação de recursos trazidos ver quantos desses empregos ficarão com
vender seus imóveis – o que contrariou pelos visitantes abastados. A possibilidade os moradores de Cova da Onça. “Nosso
muitos deles. “Não faz parte em nada da de aumentar a renda, num povoado em medo é que eles só usem a nossa mão de
nossa cultura o uso coletivo do espaço de que a maioria tira o sustento dos recursos obra agora, na parte grossa da constru-
terra”, alegou o pescador Aurelino José do mar e da terra e não tem grande pers- ção, e depois tragam funcionários de
dos Santos, presidente da Colônia de pectiva de mudar de vida, convenceu fora”, disse a pedagoga Taiane Maga-
Pescadores e Aquicultores Z -55 de Cai- parte dos moradores de que a chegada do lhães Pereira, de 32 anos, que, apesar das
ru. “A comunidade quer mesmo perder empreendimento era um bom negócio. reticências, apoia o projeto.
o domínio sobre seus imóveis, por meno- Houve quem visse no condomínio Na nota enviada à piauí, a Mangaba
res que sejam, e passar a depender das uma fonte de renda alternativa para subs- afirmou que o Centro Cultural “poderá
decisões da assembleia da associação?” tituir os royalties que Cairu recebe pela vir a implementar ações que visam va-
O coro de oposição foi engrossado exploração de gás natural no Campo de lorizar as vocações locais, alavancar os
por Ronaldo da Luz Oliveira Filho, di- Manati, que fica a poucos quilômetros aspectos sociais e culturais da comuni-
retor da Associação dos Filhos e Ami- da Ilha de Boipeba. O campo está em dade, além de diversas atividades de
gos de São Sebastião (Afass), que se produção desde 2007 e, desde então, capacitação de jovens e desenvolvimen-
contrapõe à entidade dirigida por Siri. rendeu quase 86 milhões de reais em to de programas pedagógicos”.
Para Oliveira Filho, o instrumento não royalties ao município, mas o volume Apesar das ações inclusivas previstas no
é viável para Cova da Onça. “O Taus produzido vem declinando. “Os impos- projeto, o receio de Taiane Pereira é com-
não gera emprego ou renda e vai fave- tos que vão ser pagos pelo empreendi- partilhado por outros moradores da ilha.
lizar a comunidade”, afirmou. mento vão suprir as necessidades cobertas Benedito Santos, o líder da associação qui-
Outro argumento usado pelos oposito- pelos royalties depois que o gás termi- lombola de Boipeba, desconfia das pro-
res do Taus é o fato de que parte da co- nar”, aposta Oliveira Filho, da Afass. messas de prosperidade. “Eles não vão tirar
munidade não faz um uso propriamente Dentre os apoiadores do projeto, es- ninguém da miséria”, afirmou. “A Globo
sustentável do território, o que seria in- tão também pescadores que já não con- vai continuar sendo a Globo, e a faxinei-
ESPAÇO SÃO JOSÉ LIBERTO compatível com esse regime de ocupa- seguem viver da sua atividade. “A pesca ra vai continuar sendo a faxineira.”
Jóias e artesanato do Pará
Museu de Gemas e Casa do Artesão ção. Muitos moradores pescam nas áreas aqui já foi muito farta, mas hoje está

O
Pça. Amazonas, s/n – Bairro Jurunas de corais com métodos predatórios e pe- praticamente se acabando”, disse Ores- governo Bolsonaro tinha planos
(prédio do antigo presídio São José). Belém – PA
gam espécies de captura proibida, disse tes Amorim de Araújo Junior, um pesca- de privatizar ou conceder áreas
espacosaojoseliberto.blogspot.com.br
Fone: (91) 3344.3507 Tácio Magalhães Pereira, funcionário dor de 56 anos que os colegas chamam públicas no litoral para estimular
da Prefeitura de Cairu lotado em Cova da de Vermelho. Ele apontou para os bar- o investimento de grupos hoteleiros e
Onça, onde atua como supervisor admi- cos atracados no píer de Cova da Onça empresas de cruzeiros. A ideia era criar
nistrativo. “Isso não é sustentável”, disse. e disse que costumavam ser bem mais as Cancúns brasileiras, conforme previa
A disputa em torno do tema infla- numerosos no passado. Lembrou-se dos um projeto elaborado pela Secretaria
mou Cova da Onça. Um folheto espa- tempos em que podia voltar do mar com Especial de Desestatização, Desinves-
lhado pelo povoado chegou a alardear 3 ou 4 kg de lagosta, um crustáceo que timentos e Mercados, do Ministério da
que, se o Taus fosse concedido, a comu- anda cada vez mais raro na região. E acres- Economia. O projeto mirava em qua-
nidade passaria a ter “uma espécie de centou que o ofício já não atrai as novas tro localidades: Florianópolis (sc), Ma-
vida como aquela das tribos de índios”, gerações. “O jovem hoje não tem mais ragogi (al), Angra dos Reis (rj) e Cairu,
um argumento que, além de equivoca- interesse pela pesca.” no litoral da Bahia. Para o município-
do, é preconceituoso. Em 2019, um O temor de alguns moradores é que a arquipélago, o plano envolvia a conces-
abaixo-assinado contra o Taus teve a construção do condomínio deteriore ain- são de terras na beira do mar para a
adesão de trezentos moradores, uma da mais esse quadro. A marisqueira Ana construção de grandes hotéis e resorts,
fração considerável para os 720 habitan- Paula Gonçalves Damasceno, de 39 anos, além da concessão à iniciativa privada da
tes do vilarejo. “O uso coletivo das ter- aposta que a grande circulação de lanchas Fortaleza do Morro de São Paulo, uma
ras nunca foi pleiteado pelos verdadeiros vai afugentar peixes e mariscos. “Se já está construção histórica do século xvii.

58
6 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
A
Para alívio dos ambientalistas, o plano Cova da Onça ou Garapuá, área qui- saga da Ponta dos Castelhanos não
não foi em frente. lombola em Tinharé. Altivo é um em- diz respeito apenas às comunida-
Em Cairu, a Ilha de Tinharé, onde baixador informal do Plano Cairu 2030, des tradicionais, aos moradores da
fica o Morro de São Paulo, foi objeto de que busca atrair investimentos para ini- Ilha de Boipeba e aos empreendedores
interesse de grandes empreendimentos ciativas de turismo sustentável na re- da Mangaba Cultivo de Coco. O caso é
turísticos antes de Boipeba. Desde os gião. “Esse lugar foi reconhecido como ilustrativo sobre uma questão central: o
anos 1980, dezenas de hotéis e pousa- notável por várias instituições e, de fato, que queremos e devemos fazer dos mais
das foram construídos ali e fizeram da- pode ser um modelo de desenvolvimen- de 7 mil km do litoral brasileiro, e como
quele o terceiro destino turístico mais to para o planeta. Mas tem ameaças for- aproveitar seu potencial turístico sem
procurado da Bahia, de acordo com tes”, disse o arquiteto. Não estava se comprometer os ecossistemas ou preju-
dados de 2020 da Secretaria de Turismo referindo aos riscos em ecossistemas ou dicar as comunidades que ali vivem.
do estado. Mas a ocupação foi feita de em povos tradicionais das ilhas, mas à O assunto mobiliza ambientalistas e
forma desordenada. A ilha não estava insegurança jurídica envolvendo as ter- cientistas. Na visão da bióloga Leandra
preparada para aquele volume de visi- ras daquelas ilhas. “Se não tiver segu- Gonçalves, especializada em gestão e
tantes. Forasteiros se instalaram nos rança jurídica, os empreendimentos vão governança costeira e marinha, o turis-
melhores terrenos da Ilha de Tinharé, e embora, e o município vai virar uma mo merece espaço significativo no pla-
as comunidades tradicionais foram em- Itaparica mal-acabada”, disse, referindo- nejamento espacial marinho, já que
purradas para o interior. A história se se à ilha na Baía de Todos-os-Santos não é uma indústria extrativa. Mas ela
repetiu muitas vezes: moradores vende- cujas praias sofrem com a ocupação in- acredita que o governo deveria estimu-
ram suas casas na praia e no povoado tensa e desordenada. lar mais iniciativas de turismo de base
para viver em condições precárias em O agrônomo e ambientalista Rui comunitária, que são objeto de poucos
loteamentos irregulares, como o bairro Barbosa da Rocha, professor da Univer- investimentos e políticas públicas.
Nossa Senhora da Luz, conhecido sidade Estadual de Santa Cruz e diretor “Além disso, a indústria do turismo em
como Buraco do Cachorro. do Instituto Floresta Viva, acha que o grande escala precisa começar a adotar
A Ilha de Boipeba, em contrapartida, empreendimento da Ponta dos Caste- práticas mais sustentáveis”, afirma ela,
está mais protegida do turismo. Há ho- lhanos representa uma oportunidade de que é pesquisadora da Universidade Fe-
téis, pousadas e restaurantes, mas a esca- qualificar o turismo na região com be- deral de São Paulo (Unifesp).
la do número de visitantes é bem menor nefícios para a comunidade e o meio Resta ver a escala em que se pode
que a de Morro de São Paulo. Por isso, o ambiente. “O melhor destino para um operar com o turismo de base comuni-
anúncio do condomínio de luxo na Pon- lugar como aquele é um projeto turísti- tária. O oceanólogo e ambientalista
ta dos Castelhanos despertou em am- co que seja licenciado de forma rigoro- Ademilson Zamboni, diretor-geral da
bientalistas o receio de que Boipeba sa, como acredito que o Inema tentou ong Oceana, se diz cético com relação
estava trilhando o mesmo rumo de Ti- fazer, e com investimento massivo em ao alcance dessas iniciativas. Ele lem-
nharé. “Morro de São Paulo é um para- conservação de toda a área, com envol- bra do caso da Costa do Sauípe, no lito-
digma a não ser seguido, porque adensou vimento profundo das comunidades ral Norte da Bahia. Ali, se prometia a
a população estrangeira, expulsou as fa- que estão ali”, disse Rocha à piauí. inclusão das comunidades tradicionais,
mílias, acabou com a pesca e desconfi- Natural de Valença, Rocha disse que mas o local acabou ocupado com um
gurou o status comunitário que havia vive naquela região há décadas e viu modelo de turismo massificado. Ele vê
para dar lugar a um turismo de luxo com fazendas de coco sendo ocupadas de espaço para iniciativas que envolvam as
preços abusivos”, disse à piauí o engenhei- maneira irregular e se transformando comunidades, mas acha que seu alcan-
ro ambiental Eduardo Barcelos, do if em bairros desorganizados. “Se cance- ce é limitado. “O sujeito que faz pesca
Baiano. Para ele, o condomínio é resulta- larmos esse e outros empreendimentos, de pequena escala nunca vai ter condi-
do do aumento da investida de empresá- o turismo vai acontecer da mesma for- ção de prover pescado para as grandes
rios pelas terras do Baixo Sul da Bahia ma. É melhor que as pessoas venham redes, que compram no atacado”, diz.
nas últimas décadas. “É a consolidação com muito planejamento, transparên- Não é que grandes empreendimentos
da fronteira turística sobre as terras de cia e inclusão do que deixar que a área no litoral não possam ser construídos,
uso tradicional e sobre as comunidades, seja ocupada de forma caótica.” avalia a bióloga Marinez Scherer, espe-
gerando um aprofundamento dos confli- Rocha admite que é inevitável que o cializada em gestão costeira. O impor-
tos e da violação de direitos humanos, condomínio provoque algum impacto, tante é que eles sejam concebidos com
territoriais e culturais”, afirmou. mas defende que está longe de ser a tragé- respeito aos ecossistemas em que estão
Há quem olhe para a questão por ou- dia ecológica e social apontada por ou- localizados. Scherer é pesquisadora da
tro prisma. Quando falou à piauí, Tácio tros ambientalistas. O que lhe tira o sono, Universidade Federal de Santa Catarina
Magalhães Pereira, o funcionário da hoje, são questões como a construção do e está em Brasília como coordenadora-
Prefeitura de Cairu, disse que gostaria Porto Sul na região de Ilhéus, o desmata- geral do Departamento de Oceano e
que Cova da Onça virasse uma nova mento descontrolado no Cerrado baiano Gestão Costeira do Ministério do Meio
Morro de São Paulo no futuro. “Lá você e os projetos de mineração na Chapada Ambiente e Mudança do Clima (mma).
entra na praça e não parece que está na Diamantina com licenciamento simplifi- Na prática, contudo, o que se vê é o
Bahia ou no Brasil”, afirmou. Indagado cado. “Entendo que há problemas am- contrário do que ela prega. “Todo mun-
sobre o risco de que isso expulse a popu- bientais gravíssimos na Bahia agora, do quer um portãozinho na areia”,
lação da orla e leve à favelização do po- muito mais preocupantes que esse.” diz Scherer. “E acabamos ocupando
voado, Pereira disse acreditar que poucos O ambientalista lamenta que, com a dunas e áreas de manguezais, retiran-
vão se dispor a vender suas casas. “Nin- polêmica causada pela licença ambien- do vegetação de restingas e impactando
guém quer sair daqui, esse medo é zero”, tal ao condomínio, o debate esteja mais áreas de corais, que são ecossistemas que
afirmou. “O que aconteceu em Morro centrado nas questões do que ele chama nos ajudam a prevenir e nos adaptar a
de São Paulo foi há muitos anos e aqui a de hardware – o uso do espaço físico, o erosões e inundações.” A bióloga acres-
gente está com uma cabeça diferente.” número de edificações, os equipamen- centa que costumamos pensar os em-
“Boipeba não deseja repetir os erros tos de infraestrutura. Ele está mais inte- preendimentos para o litoral sem levar
de Morro de São Paulo, mas, se não fi- ressado em discutir o software. “Quero em conta que a interface entre o mar e a
zermos urgentemente um Plano Diretor saber se as construções vão usar mate- costa é dinâmica, e não estática. “Ocupa-
de Desenvolvimento Urbano, a tendên- riais locais, qual o conceito arquitetôni- mos essas áreas como se estivessem no
cia é que repita”, avalia o arquiteto Ma- co do projeto, como será a relação com interior do país, numa cidade como
noel Altivo. Segundo ele, o plano diretor a atividade pesqueira ou se vai haver Campinas”, compara. Com isso, abri-
atual, elaborado em 2005, nem enxerga- uma proteção mais efetiva das áreas cos- mos mão – muitas vezes sem atentar
va a existência de comunidades como teiras, e isso não está posto”, disse Rocha. para isso – dos serviços gratuitos que

piauí_novembro 59
7 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
larmente as áreas de encosta na Serra do spu está elaborando uma proposta de
Mar, para onde tinham sido empurra- portaria de declaração de interesse do ser-
ANDRÉ DAHMER_2023

das pela especulação imobiliária. viço público, para fins de regularização


“Deveríamos estar nos esforçando para do território tradicional. Para isso foi rea-
restaurar manguezais, recuperar maris- lizada uma visita técnica a Boipeba entre
mas, cuidar das dunas, reduzir edificações os dias 4 e 7 de setembro”, diz a nota da
e pensar em soluções baseadas na natureza secretaria enviada à piauí.
para conter os impactos dos eventos extre- Enquanto isso, a escassez de oportu-
mos”, diz Gonçalves. Mas a verdade é que nidades em Cova da Onça continua le-
a ficha da emergência climática ainda vando moradores a montarem barracas
não caiu para todos os gestores. “Infeliz- na praia da Ponta dos Castelhanos, onde
mente, o Brasil nunca olhou para a zona estão os lotes mais caros do condomínio.
costeira e marinha com uma perspectiva As barracas não têm alvará da Prefeitura
de solução ou melhoria das condições de Cairu nem licença do Inema para
climáticas”, diz Ademilson Zamboni, da operar ali, mas tampouco têm sido inco-
Oceana. “Só olhamos para essas zonas modadas pela fiscalização.
como um espaço de exploração.” Uma delas é a Barraca da Nega, ape-
Para Gonçalves, a Lei do Mar, um lido de Angela Oliveira dos Santos,
projeto de lei apresentado em 2013, po- 49 anos, nativa de Cova da Onça. Ela
deria ajudar a atualizar o marco legal tem quatro filhos e três netos, que tra-
brasileiro para a gestão costeira e mari- balham na barraca e na mariscagem.
nha. O pl institui uma política nacional “No pico do verão eles vêm todos. Ago-
para a conservação do bioma marinho ra, na baixa estação, não precisa”, disse
e estabelece um novo marco regulató- ela em julho, enquanto servia ao repór-
rio de gestão. A bióloga acredita que, se ter da piauí seu suco mais vendido, de
o processo for bem feito e de forma par- cacau com biri-biri. Sua barraca fun-
ticipativa, pode nos levar a um novo ciona há cinco anos. Prepara pastéis de
modelo de desenvolvimento. O pl está polvo, lagosta e camarão e serve para
pronto para ser posto em pauta, mas almoço vários pratos à base de frutos do
não há data prevista para tanto. mar. Nas horas de menos movimento,
esses ecossistemas nos prestam ao pro- orla marítima. O governo tem ainda o Tem sobrado pouco tempo para fazer ela ajuda a consertar uma gaiola para
teger a linha da costa. “O bônus vai pa- Projeto Orla, uma iniciativa que reúne pressão pelo avanço na tramitação do pegar siris no mar. “Essa barraca é o
ra poucas pessoas e classes sociais, e o órgãos de vários ministérios a fim de projeto. Nesse momento, a energia dos sustento da minha família”, afirmou.
ônus vai para todo o país, já que quem otimizar o ordenamento e as ativida- ambientalistas preocupados com a con- “Em Cova da Onça não tem emprego.
acaba tendo que pagar para reagir às des nos espaços costeiros, em parceria servação da zona costeira está mais vol- Ou você tem uma barraca na Ponta dos
emergências é a sociedade brasileira.” com os estados e municípios. “Temos um tada para o combate a uma Proposta de Castelhanos ou tem que viver de maris-
O resultado dessa ocupação irrespon- arcabouço realmente bom e a gover- Emenda à Constituição que transfere co, mergulhar para pegar uma lagosta,
sável é o que Scherer chamou de “cam- nança estabelecida”, diz Scherer. “Não gratuitamente a estados e municípios os tirar um caranguejo no braço.”
borização do litoral”, em referência ao faltam instrumentos, o que falta é co- terrenos de marinha ocupados pelo ser- Mesmo estando em situação irregu-
Balneário Camboriú, em Santa Catari- locá-los em prática.” viço público desses governos e, mediante lar e sujeita a ser expulsa dali a qualquer
na, conhecido pelos arranha-céus na Leandra Gonçalves, a especialista pagamento, a ocupantes particulares. momento pela fiscalização, Santos teme
orla. “É uma loucura de prédios e pre- em gestão costeira da Unifesp, vê espa- “Quem atua na área ambiental está sem- ter que desocupar a área quando o con-
ços altíssimos que descaracteriza a área ço para melhoria do arcabouço legal. pre reagindo à agenda, sobra pouco es- domínio for construído. Ela disse que
e afugenta as pessoas com menor poder Gonçalves conta que a zona costeira foi paço para a proposição de novos modelos conversa bastante com Marcelo Stallo-
aquisitivo”, afirmou a bióloga. “É um reconhecida como patrimônio natural de desenvolvimento”, diz Gonçalves. ne, o sócio da Mangaba que está à fren-
movimento que não é saudável.” na Constituição de 1988, o que foi uma Proposta pelo ex-deputado Arnaldo te da gestão do projeto. “Ele já me falou
Em Camboriú, estão 7 dos 10 prédios conquista importante. Muita coisa mu- Jordy (Cidadania/pa), a pec 03/22 foi que, esse empreendimento saindo, não
mais altos do Brasil, o maior deles com dou desde então. “Em 1988, o Brasil aprovada em dois turnos pela Câmara no vai prejudicar a gente em nada.” Já lhe
84 andares. A cidade, que tem apenas não tinha a maior parte do seu petróleo ano passado e está em análise na Comis- recomendaram um pé atrás com gente
139 mil habitantes, terá ainda uma torre produzido em plataformas offshore, não são de Constituição, Justiça e Cidadania que tem dinheiro, mas ela fez pouco
de 105 andares, que será o edifício resi- tinha uma indústria pesqueira com a do Senado, sob relatoria do senador Flá- caso. “Confio na palavra dele.”
dencial mais alto do mundo. Em setem- tecnologia de hoje, não havia o tráfego vio Bolsonaro (pl-rj). As pesquisadoras Indagada sobre o destino das barra-
bro, a bbc News Brasil noticiou que a marítimo atual”, disse a bióloga. “Mas Fernanda Accioly Moreira e Raquel Rol- cas, a Mangaba escreveu uma nota: “En-
última casa de madeira da orla de Cam- os modelos de desenvolvimento, arran- nik, da Faculdade de Arquitetura e Urba- tendemos que em situações como essa,
boriú, avaliada em pelo menos 15 mi- jos institucionais e políticas públicas nismo da usp, defenderam num artigo em que diversos interesses estão envolvi-
lhões de reais, será demolida para ceder não acompanharam necessariamente que a pec representa “uma grave ameaça dos, a melhor solução está em dialogar
espaço a um prédio de doze andares. essas mudanças.” ambiental às praias, ilhas, margens de com todos os interessados, de modo a
Em 2021, foi feita uma grande obra de Não foi só a dinâmica da costa brasi- rios, lagoas e mangues brasileiros e um atender, em última análise, o interesse
alargamento da Praia Central, para que leira que mudou nas últimas décadas. aval para a indústria imobiliária degra- público da região, que perpassa o desen-
a faixa de areia chegasse a 180 metros. Todo o clima do planeta está no meio de dar, além de expulsar comunidades tra- volvimento sustentável da comunidade.”
Nos últimos dois anos, porém, esse tre- uma transformação profunda cada vez dicionais de seus territórios”. O fato é que o medo de ter que deixar
cho já perdeu 70 metros de faixa de mais palpável nas zonas costeiras. Nas o local é compartilhado por outros ope-

E
areia devido à erosão marítima. cidades litorâneas, os eventos extremos m Boipeba, o próximo capítulo da radores das barracas. Todos eles conhe-
se manifestam na forma de erosões, res- novela que envolve o empreendi- cem Stallone e já ouviram dele coisas

N
as áreas privadas na orla do país, sacas e inundações, mas não só. Os des- mento da Mangaba Cultivo de parecidas às que disse a Angela Santos.
a regulamentação da ocupação lizamentos de terra motivados por um Coco depende da Secretaria de Patrimô- Vanessa dos Santos Matos, da barraca
dos terrenos é definida pelos mu- temporal avassalador no litoral Norte de nio da União, que deve tomar uma deci- vizinha, lembra que os empreendedores
nicípios costeiros, por meio de seus pla- São Paulo em fevereiro deste ano deixa- são sobre o Taus. A spu não trabalha não garantiram que eles permaneceriam
nos diretores, que são mais ou menos ram um exemplo cristalino de como a com um prazo. O órgão diz que só neste ali. “Só disseram que não vamos ficar
permissivos aos ventos políticos do mo- ocupação desordenada da costa pode ano recebeu o relatório antropológico sem renda.” Fábio Santos Oliveira, dono
mento. Na esfera federal, o país tem há custar vidas, sobretudo entre a parcela sobre os territórios usados pela comuni- de uma terceira barraca, não tem muita
35 anos um Plano Nacional de Geren- mais pobre da população. Na cidade de dade de Cova da Onça. “Com base nesse esperança. “Se lotearam as terras, não
ciamento Costeiro, que regulamenta a São Sebastião, os maiores afetados fo- documento e nas demais peças técnicas vão querer a gente aqui na frente, na sua
ocupação dessas áreas e a gestão da ram as famílias que ocupavam irregu- anexadas ao processo administrativo, a área de lazer.” J

60
CLUBE DE REVISTAS
1 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
diário

EM BUSCA DE KARL OVE


Uma viagem à Noruega e ao passado do autor da série Minha luta

NATALIA TIMERMAN

15 DE MAIO, SEGUNDA-FEIRA_ As pessoas se A cena me incomoda. O que eu espera- Tomo remédio para dormir há três realidade, pois Knausgård escreve sobre o
dividem entre as que dormem e as que va? Que na Noruega, aonde vim em bus- anos, mas hoje vou dispensá-lo. que viveu – pareciam parte não da vida
não dormem, escreveu Linda Boström ca dos passos de Karl Ove, as pessoas dele, mas da minha. Eu sentia que os
Knausgård, com quem Karl Ove Knaus- não fossem viciadas em celular? 16 DE MAIO, TERÇA-FEIRA_O fiorde é o reconheceria se os encontrasse na rua, e
gård foi casado por anos. Ele pertence ao Caminho até uma pequena platafor- mar com montanhas ao fundo. O mar sentia que as próprias ruas do livro eram
grupo das que dormem; assim como Lin- ma de madeira que boia e me sento nos sem horizonte. Os fiordes fazem parte minhas velhas conhecidas – o cenário não
da, eu pertenço ao outro. É nisso que degraus, atordoada pelo cansaço. Faz das descrições knausgardianas, são apenas da existência nórdica de Karl Ove,
penso quando acordo do inusitado cochi- cerca de 10º C, mas uma mulher e um muitas vezes seu pano de fundo. mas de qualquer pessoa de qualquer lugar
lo da tarde, proporcionado pelo fuso de homem mergulham na água que ima- Tomei contato com essas descrições do mundo, ou pelo menos do mundo de
cinco horas e pela insônia de avião que gino gélida. Ao meu lado, três rapazes pela primeira vez em 2015, quando li alguém de classe média, com os dilemas
ousei enfrentar sem remédio. conversam, um deles segurando um A morte do pai, o primeiro volume da sé- de sua pequena vida burguesa. Lembro de
Recapitulo, zonza, as horas até aqui. bebê, que responde com risadinhas à rie Minha luta, para o curso de formação ter terminado o primeiro volume numa
“Eu jamais moraria neste lugar” foi o minha interação. de escritores que eu fazia na época. Pode viagem à Croácia. No catamarã lotado de
pensamento que me assaltou quando saí Camilo vem me encontrar e me leva soar enfadonho que um narrador se debru- Hvar a Dubrovnik, com umas trezentas
da estação Nationaltheatret para uma para comer um lámen, pelo menos pa- ce quase microscopicamente tanto sobre pessoas a bordo, sentou-se ao meu lado
praça, estranhando a aridez sutil da bai- gável. Claro que eu já tinha ouvido fa- o formato de seu cereal matinal quanto o uma mulher que lia o mesmo livro que eu
xa densidade de pessoas. Tentando loca- lar que a Noruega é um dos países mais céu, tanto sobre suas brincadeiras de crian- em sua versão em inglês. Ela vinha da No-
lizar a direção do hotel, escutei pássaros, caros do mundo, o que não diminui a ça quanto seus gestos ao fumar um cigar- ruega e seu critério de escolha de leitura
pássaros de mar. Gaivotas? Olhei para dor de pagar 40 reais por um café. ro, mas o que acontecia é que eu devorava fora o país; se me dissessem, eu jamais
cima, para o céu branco onde voavam. Volto a pé, na claridade do que já de- aquele calhamaço, assim como fiz com os acreditaria que comigo aconteceria quase
Elas não cantam, elas gritam. veria ser noite. Cruzo com poucos carros, próximos, com a avidez que teria diante o oposto. Que me sentiria tão em casa
Combino de encontrar Camilo, meu mas me impressiona a religiosidade com de um excitante mistério policial. O mis- dentro daquelas páginas. E que sairia,
colega de doutorado, mais tarde. Ele que me dão passagem na faixa de pedes- tério, afinal de contas, era o meu próprio anos depois, em busca dessa suposta casa
também estuda Knausgård e veio passar tres. Sem pressa. É isso, não há trânsito fascínio, o meu e o de milhões de outras e seus cenários, o livro me levando ao país.
seis meses aqui. Decido caminhar em e não há pressa. Deveria ser bom, mas é pessoas ao redor do planeta que se viram No café da manhã do hotel, experi-
direção aos fiordes, entender o que é, estranho. Não há quase ninguém na rua. fisgadas, viciadas, atônitas diante de um mento o queijo marrom, que já li inú-
afinal, um fiorde, ir até o limite da cida- Talvez eu só esteja cansada. romance quase sem enredo, praticamente meras vezes Karl Ove comer. Imagino
de, me apossar de qualquer coisa dela. É abismalmente diferente ler e estar a escrita de uma vida comum que passa. que seja ruim, pretendo comê-lo como
Entender o que me trouxe aqui. aqui, mas a diferença aparece em deta- Eu esperava a edição do próximo volume experimento antropológico, mas é tão
Sinto um forte cheiro de óleo de lhes muito específicos. Além dos cheiros da série como uma adolescente espera bom que repito, colocando mais uma
massagem. Não é o cheiro que imagina- e sons, há principalmente o silêncio, uma carta de amor, recebia com taquicar- fatia quadrada em cima do pão. Tem
ria para Oslo. A alguns metros do hotel, talvez por causa dele cada som chame dia a notícia de sua chegada e detinha-me um gosto conhecido, de infância, havia
adolescentes jogam basquete em uma tanto a atenção. Um silêncio quase som- demoradamente diante da capa, degus- dito uma amiga. Sinto o mesmo: o gosto
quadra; no ponto de ônibus, três pessoas brio, estrondoso. Carros não passam, tando-a, quando a tinha enfim nas mãos. de uma infância que não é minha. Sa-
olham cada uma para o seu celular. pessoas não gritam. Aqueles personagens – que existiam na bor de doce de leite, mas salgado.

62
2 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS

CAMILO GOMIDE_2023

Natalia Timerman com Martha e Ola-Jan Prestbakmo, pais de Geir, o melhor amigo de infância de Knausgård: a senhora de 80 anos contou, sorrindo, que o pai do escritor era muito bravo

piauí_novembro 63
3 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
A região está abarrotada, há desfiles, de Camilo, consulto o mapa, é uma bela
famílias inteiras brotam de todas as caminhada, mas quero ir a pé, curtindo
partes, é preciso cortar caminho pela a rua, a bebedeira, a festa que ainda está.
estação de metrô. O metrô lotado de- Só vejo meninas de uns 17 anos e ho-
ANDRÉ DAHMER_2023

les: nada perto do horário do rush de mens, todos bêbados, de idade entre 20
São Paulo, aqui parece sempre haver e 60. Quatro deles estão prestes a apostar
ar suficiente entre as pessoas. corrida na calçada. Os prédios são bai-
Camilo trouxe duas garrafas de vinho xos, todos bonitos, como se Oslo inteira,
e algumas cervejas na mochila. Hoje ou pelo menos a que conheci, fosse um
pode tudo: em dias comuns, desde há bairro charmoso e rico da minha cidade.
alguns anos não é mais permitido beber Rapazes seguram sacos plásticos com
na rua, nem sequer comprar bebidas garrafas esperando aceite para entrar nos
após as 20 horas no mercado, apenas em prédios, há música abafada vinda de al-
bares. Teria Minha luta existido sob essas guns deles, risadas e conversas. Há mui-
regras? Teria Karl Ove feito tanta merda, tas festas privadas espalhadas agora,
roubado bicicletas, acordado numa casa quando a festa pública já definha e as
de repouso sem saber onde estava? Seu ruas começam a se esvaziar. Sinto vonta-
pai teria sido alcoólatra e acabado em es- de de entrar em uma delas, de me apre-
tado deplorável na casa da própria mãe? sentar a alguém e entrar junto em uma
É provável que sim, Camilo e eu pon- casa, em outra vida, mas são tantas que
deramos. Boa parte daquilo já tinha sido não consigo escolher, muitas é igual a
feito como contravenção, por exemplo nenhuma. Sigo andando, é um mundo
quando Karl Ove e os amigos bebem no no qual não posso entrar, mas que de al-
Ano-Novo, ainda menores de idade. guma forma sinto que conheço: sei de
Andamos por aí, paramos para co- boa parte dos enredos que podem se pas-
mer um churrasco de rua, estamos to- sar ali, entre aqueles grupos de amigos
talmente embriagados. Pergunto para o de colégio, faculdade, trabalho. Como
dono de um bar, tropeçando nas pala- se o espectro de experiência humana,
vras, se ele conhece Knausgård. Ele não pelo menos quando garantidas suas con-
leu Minha luta, mas leu The morning dições básicas de existência, variasse
Pego um ônibus para um museu dis- imagino, onde morava quando os filhos star (A estrela da manhã), um de seus muito pouco, matizes ínfimos demais
tante do Centro. Em um trecho de Mi- eram pequenos, ele não é herói ne- livros mais recentes. Disse que gosta, para serem chamados de diferenças.
nha luta, Karl Ove passa de ônibus nhum por assumir a rotina das crianças. destacando-se de tantos que o criticam. Chego a um parque, que não sinto
pelos mesmos lugares onde viviam seus Por aqui as pessoas acham que sua escri- medo de atravessar. Eu nunca havia me
familiares, reivindicando a quem já 17 DE MAIO, QUARTA-FEIRA_Hoje é o dia ta é escandinava demais, enquanto nós sentido tão segura em um lugar, e sei
existiu o estatuto de personagem, pois mais importante da Noruega, por isso achamos que é universal. que não é só a coragem etílica. Há um
tanto o passado quanto a ficção têm decidi vir nesta época. Aproveitei, é claro, O desfile já terminou, jovens se sen- rio, o barulho da queda d’água logo aci-
algo de inacessível, é isso o que os liga. a presença do Camilo, de quem me apro- tam em rodas nas praças, nós andamos ma contrasta com os cadeados pendu-
Estar aqui é fazer algo parecido: atestar, ximei primeiro pelo nosso interesse até outro bairro, as pessoas nas ruas, o rados nas grades de uma ponte. O som
de Karl Ove Knausgård, a presença da knausgardiano em comum e depois pelos movimento, a alegria. É como um Car- forte da água, o monte de cadeados dos
ausência. Ir ao encalço mais da ausên- papos e bebedeiras em que sempre re- naval sem música e dança. Um carna- apaixonados, duas possibilidades inter-
cia que da presença. Descobrir o que dundavam as reuniões do nosso grupo de val sem Carnaval. pretativas – a realidade e o enredo.
faz de um texto autobiográfico uma fic- estudos. Ele acabou virando meu parça, É alegria ou embriaguez?, eu per- Sou a única a andar sozinha. Atraves-
ção. Mas Karl Ove nunca viveu em uma das únicas pessoas com quem consi- gunto em voz alta. Camilo diz que qual- so o pátio do palácio agora sujo, mas
Oslo, esteve aqui apenas de passagem, go escrever um texto a quatro mãos, e um quer bar na Barra Funda é melhor que nada comparado ao chão de um bloco
já como escritor famoso, em eventos grande amigo. Ele é quem disse que seria a Noruega inteira. More than this there de Carnaval. É a primeira vez que vejo
de divulgação de seus livros. Quem uma boa ideia estar aqui na celebração is fucking nothing (mais do que isso não a quadra ao lado do hotel vazia.
morou aqui foram seus pais, nos pri- da data em que os noruegueses assina- tem porra nenhuma), eu devolvo a ele
meiros anos de casados. Este ônibus, ram sua Constituição, em 1814. Tínha- sorrindo, e ele sabe do que estou falan- 18 DE MAIO, QUINTA-FEIRA_Dormi mal.
este caminho, não pertencem a ele, mos lido sobre a efeméride em Minha do, da música que Karl Ove escuta no Sem remédio: depois do sucesso da pri-
apenas à minha viagem. luta, foi uma das primeiras experiências de final do volume 3 num dos momentos meira noite, decidi não tomar durante a
Na volta do museu, dois meninos de euforia alcóolica do jovem Karl Ove e de maior emoção de sua vida. viagem, mas o álcool e a ressaca moral,
cabelo quase branco pulam a grade da um de seus primeiros apagões. Vamos tropeçando até um restauran- mais que física, hoje atrapalharam.
calçada. Eles poderiam ter simplesmente Já na recepção do hotel, o sorriso da te mexicano onde pedimos mais cerveja Boa parte do que anotei ontem foi
dado a volta, o limite da grade não estava recepcionista me surpreende. Hoje es- e o taco mais apimentado da minha em garranchos quase incompreensíveis
nada longe, mas vejo prazer na contra- tamos todos felizes, ela diz, ninguém se vida. O lugar está cheio, esperamos para no meu caderno, no caminho de volta
venção. Um daqueles meninos poderia aborrece com nada, quem dera todos os conseguir sentar. Na mesa próxima ao para o hotel. Releio as anotações. Na
ser Karl Ove. Num país que promete de- dias fossem assim. Ela avisa que há do- banheiro, o xaveco rola à solta. Há dois hora, as ideias pareciam geniais. Lem-
zoito dias de prisão para quem passa de ces comemorativos no café da manhã e homens de cabelo preto, que escuto fa- bro de Ioga, romance que trouxe para a
150 km/h, ou que detém quem está diri- me oferece uma taça de espumante, larem inglês. Eles me abordam quando viagem, e do que diz Emmanuel Carrère
gindo bêbado na manhã seguinte a uma que me sinto obrigada a aceitar apesar estou na fila do banheiro, e quando digo sobre sua produção intelectual enquanto
noitada, qual o significado de confessar de não ser nem nove da manhã. que sou brasileira, o mais atarracado me bêbado: “Eu estava sempre embriagado
que jogou uma pedra num carro ou que Em cada mesa, uma bandeira da abraça e me levanta do chão, estalando ou chapado, você acredita que encon-
atirou um quadro da janela de um hotel, Noruega; os outros hóspedes também minhas costas. Conta, num português trou uma pedra preciosa e descobre que
como ele faz em Minha luta? bebem, há um clima de festa no ar, nativo, mas enferrujado, que mora aqui só tem merda na mão.”
Na rua, mais homens que mulheres confirmado pelas pessoas em trajes tí- há oito anos, é professor de lutas e casa- Me impressiono que em pleno sécu-
empurram carrinhos de bebê ou segu- picos passando na rua, as mulheres do com uma norueguesa, mas se sente lo xxi ainda não exista um remédio
ram na mão de crianças. Ou melhor, com vestidos pretos bordados de flores sufocado, ela controla seus passos o tem- eficaz para o dia seguinte a uma bebe-
não vejo uma única mulher cuidando avermelhadas e penduricalhos doura- po todo (sim, estou vendo). Depois, deira. Tento ir ao Museu Munch, che-
de seu filho, apenas homens. Ah, ali. dos, os homens com calças bufantes emenda que engravidou outra mulher e go tarde; tento uma livraria, está
Uma avó cuidando da neta, mas só. As que terminam abaixo do joelho, os pa- deu porrada em uns caras, foi processa- fechada. As portas do dia estão fecha-
mães estão fazendo outra coisa que não letós cheios de botões. do, mas absolvido por legítima defesa. das para mim, e a ressaca é outra porta
cuidar dos filhos. Karl Ove não é novi- É difícil encontrar Camilo perto da Já são quase dez da noite e ainda está entre mim e o mundo, uma camada
dade alguma na Noruega, ou na Suécia, Slottsplassen, a praça do palácio real. claro quando decido voltar. Me despeço que nos separa. Talvez a experiência

64
4 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

mais essencialmente knausgardiana quem sigo há alguns anos no Instagram,


CLUBE DE REVISTAS
MINISTÉRIO DA CULTURA, GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, POR MEIO DA
SECRETARIA DA CULTURA, ECONOMIA E INDÚSTRIA CRIATIVAS, BRADESCO E
INSTITUTO TOMIE OHTAKE APRESENTAM

seja de fato a ressaca, mas eu não pre- dizendo que estávamos indo para Ber-
cisaria ter vindo até aqui para vivê-la. gen, que o Camilo estuda a obra do ir-
mão dele na Universidade de Oslo, e a
19 DE MAIO, SEXTA-FEIRA_No check-out sensação era a de que eu estava escreven-
do hotel, noto que cobraram o espu- do para Swann de Em busca do tempo
mante de 17 de maio. Poucas felicida- perdido. Ele não respondeu. Ainda bem.
des são gratuitas. Há algo sagrado em um personagem, há
Camilo chega no último minuto an- algo sagrado em Swann, algo que precisa
tes da saída do trem para Bergen. Pela ficar preso nas páginas de um livro.
janela, corre a paisagem, casas ainda qua- Seguimos as descrições a partir de
se que atoladas na neve alternando-se uma praça para chegar à primeira casa
com florestas de coníferas e lagos dege- de Karl Ove em Bergen. Uma casa bran-
lados. Camilo escuta um podcast, eu leio. ca, de dois andares e um subsolo, com
Depois procuramos no Kindle, onde porta e telhado azulado. Por uma total
baixei todos os volumes de Minha luta, coincidência, nossa hospedagem fica a
referências aos locais citados por Knaus- menos de uma quadra. Olho emocio-
gård, principalmente no volume 5, que nada para a janela do porão de onde ele
se passa em Bergen. via a rua, com a persiana fechada. Foto-
Para o almoço, pedimos no restau- grafo, posto, imagino aquele pobre so-
rante do trem salsicha no lompe, uma fredor, suas ressacas, suas masturbações,
panqueca de batata daqui. Camilo me seus bloqueios criativos, me envergonho
conta que o bibliotecário da Universi- do tamanho da minha emoção, tento di-
dade de Oslo fez um levantamento so- minuir o sorriso. Descemos um pouco a
bre Knausgård e, pesquisando os artigos rua, e então o Camilo suspende o passo,
que ele escreveu aos 17 anos em um diz pera aí, olha para uma outra casa,
jornal, concluiu que, para escrever Mi- também diante da placa com o nome da
nha luta, certamente os consultou, pois rua (mas outra placa, na esquina de bai-
há descrições minuciosas de fotos, por xo), e atesta: pode ser essa aqui também.
exemplo, das quais seria impossível se Talvez eu tenha me emocionado diante
lembrar de cabeça. A imagem que ele ten- da casa errada.
ta construir de uma escrita espontânea, Descemos a colina pelas ruas sinuo-
que simplesmente fluía, não é verdadei- sas de paralelepípedo, paro de tanto em
ra. Ele também deturpou características tanto para fotografar, deve ter sido ma-
para se fazer mais interessante como ravilhoso morar aqui. Chegamos ao
personagem, mais inseguro: os artigos Thon Hotel Orion, onde Yngve traba-
eram bem-aceitos, ele era uma pessoa lhou quando Karl Ove se mudou para
admirada. Mas isso pode ser mais que cá, ele ia esperar o irmão várias vezes,
um artifício literário: pode ser um efeito foi seu primeiro destino ao chegar a
de sinceridade, os limites do persona- Bergen. O atendente está atribulado,
gem do autor sendo borrados e chegando a recepção hoje está cheia, como estava
ao próprio autor, à sua pessoa, às suas naquele dia três décadas atrás.
inseguranças. Jamais saberei. Atravessamos para o outro lado do bra-
Camilo lembra que, em uma entrevista ço de mar, seguimos o mapa em direção
para a tevê norueguesa, Karl Ove con- à Skrivekunstakademiet, onde Karl Ove
firma ter inventado a segunda ida à cape- estudou escrita criativa. Estamos percor-
la para ver o corpo do pai, no volume 1. rendo o mesmo caminho que ele por
O tio diz que ele inventou não só isso, mas essas pequenas ruas ladeadas de casas
tudo. Ou melhor: ele o acusa de ter men- bem cuidadas, o fiorde ou as montanhas CURADORIA
tido. A ex-mulher de Emmanuel Carrère aparecendo ao fundo de quando em AILTON KRENAK
também o acusa de ter mentido em Ioga. quando. Tudo é colorido. Apesar do frio
Mas como uma ficção pode mentir? e da garoa, é mais que agradável cami-
Karl Ove descreve a sensação de arre- nhar por aqui. Uma portinha nos leva a
batamento ao andar por Bryggen, ao che- um átrio, seguimos por um dos corredo-
gar a uma cidade grande, mas Bergen é res, desértico e frio, e de repente estamos 25 OUTUBRO 2023 A 4 FEVEREIRO 2024
minúscula, as colinas verdes mostram diante da porta da Skrivekunstakademiet, TERÇA A DOMINGO | 11H - 19H
seus limites, parece uma cidade de foto- azul, com fechadura eletrônica (certamen- ENTRADA GRATUITA
grafia de quebra-cabeças, com casinhas te outra que a dos tempos de Karl Ove).
coloridas de teto triangular e o braço de É só uma porta. A imaginação é quase INSTITUTO TOMIE OHTAKE
mar do fiorde. Indiscutivelmente é uma sempre melhor que a realidade. Ao fun-
cidade linda. É difícil imaginar Karl Ove do do corredor, uma janela que dá para
fazendo bosta por aqui, é como se o rela- o fiorde, a vista para fora bem melhor que
to e o lugar não se conectassem. a de dentro. Na saída, olhamos um a um
Deixamos nossas coisas no Airbnb e os nomes das caixas de correio, tentan-
vamos ao mercado. Será que ele esteve do achar o da escola de Karl Ove, tentando
aqui?, eu pergunto a Camilo, será que imaginar que foi ali que chegou o ori-
fez compras entre essas mesmas prate- ginal que ele mandou para ser aceito.
leiras? Definitivamente não, ele me Não encontramos.
responde. Tudo aquilo foi há trinta Saímos em silêncio. Camilo nos guia Cota Apresenta Cota Prata Cota Bronze Apoio de mídia

anos, na década de 1990. Com certeza pelo mapa até o Café Opera e de repente
está tudo diferente agora. se detém em uma esquina com janelões e
Depois de guardar as compras, checo mesas na calçada. É aqui, ele diz. Olho para
meu celular. Antes de sair de Oslo, es- o lugar e digo, peremptória: Não, não é.
crevi para Yngve, irmão de Karl Ove, a É aqui, ele repete. Não é, eu contesto. Idealização Realização

piauí_novembro 65
5 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
que eu buscaria amanhã atrás de qual- Nenhum outro homem escrevia sobre
quer tipo de familiaridade e me alegraria isso antes, porque quem cuidava dos filhos
se encontrasse. Os melhores personagens dos escritores eram suas mulheres.
são os da nossa viagem, não os do livro. Stavanger é nosso lugar de passagem,
ANDRÉ DAHMER_2023

não temos planos knausgardianos por


20 DE MAIO, SÁBADO_Passeio de barco aqui. Alugamos uma casinha típica, no
pelos fiordes. A vista é uma aberração de Centro. Sentimos um cheiro peculiar ao
beleza na parte de cima, onde o vento entrar, cheiro de Noruega, diz Camilo,
congela o nariz. Somos deixados numa um odor de madeira com um resto de
estação como de trem, minúscula, só calor que ficou de outro frio. Só se sente
que de barco, uma paisagem cinemato- o cheiro ao entrar, depois é preciso um
gráfica ao fundo, árvores e montanhas esforço para perceber só uma nuance, e,
nevadas. É tudo longe e bonito e vazio. no entanto, a cada vez que você sai e en-
Tenho a sensação de que o barco vai nos tra de novo, vem uma lufada intensa, qua-
deixar lá, de que seremos abandonados se exigente, nauseante, não por ser ruim,
e jogados para uma outra história, mas mas simplesmente por ser um cheiro.
pontualmente outro barco aporta. Faz muito frio, chove, decido ficar
A multiplicidade dos tons de verde das lendo enquanto Camilo sai para co-
árvores me impressiona. Knausgård os mer. Escuto os passos dele no andar de
descreveu minuciosamente, mas não sin- cima ecoando na madeira. Karl Ove já
to que tenha chegado perto de imaginar o descreveu esse som.
que vejo, não importa quão exaustivamen- Pesquisando o que fazer em Stavan-
te ele tentou se aproximar com as palavras ger, encontro uma trilha relativamente
das paisagens e das coisas. Sempre tive próxima, acessível de ônibus, que se-
dificuldade de visualizar descrições, não gundo os comentários da internet é
tenho como saber se é uma dificuldade muito bonita. Mando o link para o Ca-
minha ou de outras pessoas também, me milo, que logo me responde: Vamos, é o
pergunto se uma descrição me leva ao ob- lugar da capa brasileira do sexto volume.
jeto que o autor queria que eu visse ou na
verdade só prova a diferença entre o olhar 22 DE MAIO, SEGUNDA-FEIRA_ A fotografia
O Café Opera é o maior baque até ago- lugar importante, ele provavelmente de uma pessoa e de outra e a deficiência da falésia Preikestolen ou Pulpit Rock
ra. Eu imaginava um lugar escuro, um achou que eu me referia às primeiras da literatura para proporcionar uma expe- que ilustra a capa é linda, mas não tem
inferninho, com música alta, fumaça e apresentações do dueto norueguês Kings riência em comum. Talvez, pelo contrá- nada a ver com o livro. Knausgård nun-
jovens descolados, e o que encontro é um of Convenience, que foram ali. Karl Ove rio, ela só reforce a experiência individual. ca menciona o local. O ônibus atrasa
lugar claro, mais para chique, silencioso, poderia ter escrito em qualquer lugar, so- um pouco e chove. Cochilo no cami-
que provavelmente minha avó frequenta- bre qualquer lugar. O fato de ter chegado 21 DE MAIO, DOMINGO_O ônibus para nho, tenho cochilado em cada trecho
ria. Eu jamais imaginaria que era assim o tão perto é a questão, não importa de Stavanger atravessa um fiorde de balsa, de trem, ônibus ou barco, como se de
ponto de encontro de Karl Ove com o ir- onde, o que importa é a proximidade. nunca imaginei que a paisagem fosse repente tivesse aprendido a dormir ou
mão e os amigos, se eu passasse aqui na Depois, já bêbados há algum tempo, assim estonteante. estivesse reparando um sono de anos,
frente por acaso não pararia jamais. caminhamos um pouco, mas faz muito Deixo os olhos vagarem pela janela, como se me visse liberada do peso da
Não temos outra opção que entrar. Pe- frio na rua (para mim, menos de 10º C adormeço, acordo. Folheio Ioga. A capa minha própria vida.
dimos uma cerveja, toca Sorriso dela, de é frio demais), então logo entramos em da edição brasileira tem um comentário A trilha é longa, são duas horas de
Erasmo Carlos. Erasmo e Karl Ove com- outro bar, bem mais aconchegante, onde elogioso de Karl Ove Knausgård, o que caminhada e muita subida, e há gente
binam muito, Camilo e eu concluímos, as pessoas estão à vontade, conversando, faz sentido: ele e Carrère são dos maio- de vários lugares do mundo. O esforço
tentando nos salvar da decepção. Lem- jogando jogos de tabuleiro, à temperatura res sócios do clube dos escritores ego- compensa. A vista das águas verdes do
bramos que havia um andar de cima. Lá, perfeita, à iluminação perfeita. Seguir os cêntricos. Por que os leio? Quero fazer fiorde, das montanhas e das pedras es-
grupos se espalham nas mesas para uma passos de Karl Ove quase nunca é a me- parte do clube? Se quisesse, conseguiria carpadas é deslumbrante e vertiginosa.
gincana de adivinhação. Realmente, um lhor opção. Em uma mesa à esquerda, há ou seria necessário que eu fosse um ho- Não consigo decidir se é mais bonito
lugar aonde minha avó iria. Na minha uma mulher de verde que estava jogando mem branco cis? Carrère escreve que o olhar da maior pedra (a Pulpit Rock) ou
vez de pegar cerveja, pergunto ao barman quiz no Café Opera, reparamos nela por- mais interessante na vida é de um pouco mais longe, observando o
se ali chegou a ter um piano, tentando, que puxava os fios do próprio cabelo, e de tentar saber isto: o que é ser outra pessoa panorama das pessoas minúsculas perto
ainda, desfazer o engano de que aquele repente começou a tocar More than this que não você. Esse é um dos motivos pelos do abismo, que é justamente a capa de
lugar seria o mesmo dos livros. Sim, mui- na versão do final do volume 3, a voz do quais se escrevem livros; o outro é descobrir O fim, o último volume da série.
tos anos antes da época dele havia um Bryan Ferry, a mesma que Karl Ove tinha o que é ser você mesmo. Eu me ocupo prin- A capa do sexto volume talvez tenha
piano, e deve voltar a ter, querem fazer de escutado, bem quando estávamos lá. cipalmente do que é ser eu mesmo. Até de- sim alguma coisa a ver com a obra. A dú-
novo música ao vivo. Percebendo meu Passamos por um Café Opera trans- mais, sem dúvida. Há pouco tempo, me dei vida quanto a fotografar a pedra e quem
interesse, ele conta que vão reformar o formado na volta. Cortinas foram baixa- conta de que minha amiga Hélène F. come- está nela ou a paisagem vista estando na
bar, ao que eu respondo “Ó, cuidado que das, agora há um dj e pessoas dançando ça a maioria das frases com “você” e eu, pedra talvez seja uma metáfora para a lite-
esse é um lugar histórico”, e ele: “Ah, sim, loucamente, não muitas, mas o suficien- com “eu”. [...] Simone Weil, de novo ela, ratura, pelo menos a literatura que preten-
com certeza.” Tento falar oito vezes o te para nos sentirmos convidados a entrar dizia: há muito pouca gente, no fim das de falar sobre a vida e que acaba se
nome de Knausgård e na oitava ele enten- e nos juntar, e agora sim me sinto dentro contas, que sabe que os outros existem. perguntando se ela própria é uma forma
de: “Ah sim, já ouvi falar, mas não li”, e do lugar dos livros de Knausgård, agora Penso na autoficção escrita por ho- de vida, se ler é viver, ou se escrever é viver.
eu: “Mas você sabe que nos livros ele es- me sinto dentro dos livros provavelmente mens versus aquela escrita pelas mulheres.
creveu muito sobre este lugar, né?”, e ele ajudada pela alegria do álcool, essa cola Rachel Cusk escreveu uma trilogia em 23 DE MAIO, TERÇA-FEIRA_No trem, pesqui-
simplesmente não sabia. Inacreditável. existencial de sentido que faz tudo se in- que fala de si por meio dos outros, es- sando as ocorrências de “Kristiansand” em
Como é que eles não sabem? Como o terligar. Um homem muito magro, de cutando-os, depois que seus livros mais Minha luta, deparo com a descrição de
barman de onde Karl Ove enchia a cara cabelos longos e cavanhaque faz movi- autobiográficos foram criticados. Uma uma gaivota revirando lixo. Eu havia pas-
não sabe da relação dele com o Café mentos exagerados e me convida para a escritora que versa sobre maternidade cor- sado batido nas menções às gaivotas até
Opera, como não sabe que foi nesse ba- roda. Quando ele sai, puxo para dançar re grandes chances de ter sua literatura tê-las visto com meus próprios olhos.
nheiro que ele cortou o rosto, quando uma garota de saia xadrez que parece a reduzida a uma pseudocategoria. Um es- Vou atrás de um café e converso com
sentiu ciúme de sua namorada e Yngve Lenu de A amiga genial depois de um critor que escreve sobre paternidade é he- a atendente, simpaticíssima, que fala
conversando? Meu Deus. Eu achei que ácido, dançando roboticamente. Não co- rói. Knausgård é tido como expressão da um inglês perfeito que diz ter aprimora-
seriam pontos turísticos, mas ninguém nhecemos ninguém, mas todos se tor- mudança de paradigma de gênero porque do lendo. Me pergunta se estou de férias.
está nem aí. Quando eu disse que era um nam personagens, reconhecíveis, pessoas é um homem cuidando de seus filhos. Conto que estou em busca de Karl Ove.

66
6 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

Quem? Capricho na pronúncia, que a coração nos instantes que levo para com-
CLUBE DE REVISTAS
a casa dos avós e se sentando perto da sobre a realidade, pelo menos em algum
essa altura já consegui aprimorar: nada. preender que ninguém vai atender. Estou janela da cozinha. Ao mesmo tempo, grau –, possibilitamos esse tipo de leitu-
O autor que escreveu sobre a própria tensa, como se o som da campainha pu- chamaram sua atenção coisas que não ra. E talvez parte do meu incômodo seja
vida em detalhes: nada. Abro uma pági- desse atravessar não só a barreira do es- batiam com a realidade, por exemplo a porque essa não era a leitura que a obra
na da internet com seu nome e sua foto, paço – a porta –, mas também o tempo, profissão do avô, que se lembra de ele pedia, uma leitura a partir da concretude
certa de que o equívoco vai se desfazer: como se pudesse subverter a relação entre ter mudado no livro. Mas o principal, do lugar, que obviamente não tem nada
nada. Ela simplesmente não o conhe- realidade e ficção. ela completa, é que ele faz grande lite- a ver com o que eu imaginava.
ce. “Ah, então você leu esse autor no- Um carro para em uma das casas pró- ratura e escreve de forma fantástica.
rueguês, gostou e veio até aqui?” ximas e decidimos falar com o morador. Saio de lá extasiada. Ali mesmo faço 24 DE MAIO, QUARTA-FEIRA_O motorista
Camilo encontra o endereço da casa É uma mulher chamada Ana, que confir- uma postagem da casa no Instagram, sor- de ônibus de linha dirige em um dia co-
dos avós de Karl Ove numa matéria em ma que aquela é a casa dos livros: ela leu e rio enquanto caminhamos, mas de repen- mum; ele não pode sequer imaginar que
norueguês sobre uma mobilização contra se emocionou. O avô de Karl Ove passava te sobe ao meu peito uma golfada de leva dois passageiros para um cenário de
a construção de outro andar em uma das de bicicleta todos os dias, e ela se lembra angústia. Imagino Yngve vendo minha ficção. Estamos indo de Arendal para
residências vizinhas. O tipo de problema bem da época dos acontecimentos de Mi- mensagem, entrando na minha página da Tromøya, onde Karl Ove viveu toda a
norueguês digno de notícia de jornal, eu nha luta, Karl Ove e Yngve vinham muito rede social para descobrir algo sobre mim infância, cenário de boa parte de suas
digo, e o Camilo completa, sim, os escan- para cá. Solícita, conta que os livros che- e se deparando com a foto da casa dos seus memórias, de seus livros. O ônibus cruza
dinavos, não tendo problemas sociais, garam muitos anos depois da mudança da avós. Ele certamente se incomodaria, eu a ponte, tudo é sublime, me sinto incri-
podem se deter em questões filosóficas e família Knausgård, e houve mudanças nas agora estou assolada pela sensação de que velmente bem nesse lugar e lamento
existenciais, Minha luta jamais poderia casas da vizinhança também, mas em fizemos algo errado, invadimos uma inti- que passaremos aqui apenas uma tarde.
ter sido escrito por um brasileiro. Kristiansand no geral e no seu círculo de midade, transgredimos um limiar, talvez Descemos no ponto que o mapa de
Não demoramos muito a achar a casa; amigos e de trabalho, os livros eram um o limiar entre realidade e ficção. Camilo indica ser o mais próximo à casa
mais uma vez me parece que estamos no tema recorrente. Havia uma distinção en- Penso em como me sinto quando ten- da infância de Karl Ove. Agora sim, po-
lugar errado. A vizinhança é tranquila, tre os que tinham opinião negativa sobre tam invadir minha vida, eu que, como demos dizer: ele esteve aqui. Ele esteve
arborizada, as casas são bem cuidadas, eu a exposição da família e os que achavam escritora, tenho um alcance infinita- aqui talvez mais que em qualquer outro
não tinha essa impressão a partir da leitu- que era uma literatura boa e importante. mente menor que Knausgård. Só que eu lugar, ele cresceu aqui, viveu tudo aqui-
ra de Karl Ove. A casa onde o pai dele Se ela não está enganada, o tio, que tentou não penso em nada disso ao escrever, e lo que depois escreveu nos livros, e o
viveu os últimos anos, onde se destruiu impedir a publicação da série, morava não tenho certeza de que Karl Ove também lugar, pacato, pequeno, com poucas ca-
diante da própria mãe, que apenas assistia muito longe e várias pessoas o apoiaram. não pensava. Ele jamais poderia imagi- sas, não parece ter mudado muito desde
se embriagando junto, onde morreu, a As suposições sobre o alcoolismo do pai e nar que dois brasileiros seguiriam seus aquela época. Caminhamos menos de
casa cuja limpeza é minuciosamente des- da avó foram confirmadas, e isso foi um passos na Noruega tantos anos depois. dez minutos até a casa, o dia está enso-
crita em páginas e páginas do primeiro vo- pouco triste. Ana ficou muito impressio- A casa foi vendida em 2000, o pai dele larado, não precisamos nem de casaco.
lume de Minha luta, bem, estamos diante nada com os detalhes de que Karl Ove morreu em 1998, e tudo isso me faz pen- É ali, Camilo diz, e eu pergunto, tendo
dela. Eu me aproximo, olho-a de todos os se lembrava, que evocaram lembranças sar na relação entre escrita e vida, entre aprendido a desconfiar, se ele tem certe-
ângulos, reparo na janela e decido tocar concretas para ela também, como os literatura e realidade. Se escrevemos so- za. Ele abre a fotografia de uma reporta-
a campainha. Quase consigo ouvir meu irmãos subindo e descendo a colina até bre a realidade – e sempre se escreve gem da tevê norueguesa e comparamos.

piauí_novembro 67
7 de 7 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
infância de Karl Ove; é a história dela, 25 DE MAIO, QUINTA-FEIRA_Chegamos
não a dele, que me emociona. tarde ontem em Oslo, meu ponto de
ANDRÉ DAHMER_2023

Ao nos despedirmos, Tina diz que chegada e partida na Noruega. Tive uma
muitos leitores vêm à casa, mas quase vaga sensação de voltar para casa, já co-
nenhum entra, e confirma sua sabedoria nheço as ruas, foi fácil encontrar o ho-
quanto aos nossos interesses: os vizinhos tel onde ficarei meus dois últimos dias.
da esquerda ainda são a família Prestbak- O vazio das ruas já não me incomodou,
mo, os pais de Geir, o melhor amigo de pelo contrário. Nos dias de semana,
Karl Ove, com quem ele passava boa par- Oslo, a maior cidade da Noruega, tem a
te do tempo na infância.* Tina conta que movimentação de um domingo em São
os pais de Geir estão agora com 80 anos. Paulo, e aos domingos, parece uma cida-
Já nos bastaria o que temos até agora, de fantasma. Aprendi a gostar disso. Op-
mas não podemos perder a oportuni- tei por caminhar, mesmo que com as
dade de conversar com os Prestbakmo. malas, mesmo que por quilômetros. Per-
Sem muita expectativa, bato na porta. cebi que já gosto muito deste lugar.
Na soleira, uma plaquinha florida com O museu dos vikings está fechado
os nomes Martha e Ola-Jan Prestbakmo. para reforma. Num artigo ao New York
Alguns instantes depois, vislumbro o Times, Karl Ove contou que, quando
rosto de uma senhora na janela entrea- aprendeu sobre os vikings no nono ano
berta do andar de cima. Me apresento, da escola, jamais imaginou que aqui-
ela pede com a mão que eu espere, e lo tinha de fato acontecido, nem mes-
após alguns minutos, um senhor baixo mo quando viu os navios autênticos no
e muito bonito aparece do jardim late- museu. É como se os navios com sua
ral. Digo que somos brasileiros e que es- concretude pertencessem ao mundo
tamos seguindo os rastros de Karl Ove, material, enquanto tudo o que ele lera
ele sorri e nos convida a segui-lo para a sobre aquele povo, ao mundo imaterial
parte de trás da casa. dos livros e da fantasia. Talvez o projeto
Ela nos faz café, serve chocolates, e dele seja a tentativa de junção desses
nos colocamos a conversar por horas em dois mundos, a ficção e a realidade, o
norueguês, porque eles mal falam in- que minha viagem constatou que não
Sim, é ela. Exatamente a mesma. Re- condido para não ser visto pelo pai. Tina glês. Entendo só algumas palavras e o acontece. Pois não importa com quanta
conheceríamos essa casa e a dos avós não leu nenhum dos livros; como não é que Camilo vai me traduzindo. Ola-Jan minúcia ele descreva um parque, uma
sem as imagens, só com as descrições? da ilha, achou que não teria interesse. é o único que nos permite gravar, e ele floresta, um céu, as palavras não conse-
Tenho sérias dúvidas. Estar na Norue- Seu marido gostou de ler, porque é da- diz tanto. Aponta para o jardim onde guem diminuir a distância entre a reali-
ga me mostrou o quanto é diferente a qui e reconhece as pessoas. No entanto, Karl Ove e seu filho jogavam bola (na dade e o que se prova cada vez mais
imagem que eu tinha da realidade, me ela sabe o que pode nos interessar na casa dele não dava porque o pai era mui- ficção, talvez só a atestem. A comunhão
distanciou. A literatura aproxima, a rea- casa, mostra a “caverna” do pai, onde to bravo, conta, sorrindo); mostra na casa que a literatura oferece é a incomunica-
lidade afasta. Knausgård escreve que Karl Ove e Yngve eram proibidos de en- de Tina a janela do quarto de Yngve e bilidade, a solidão.
sua infância foi a “vida improvisada trar, que está reformada e agora é uma a de Karl Ove; fala sobre o que não está Encontro Camilo na porta da sau-
num lugar que mais parecia um corti- saleta. Conta da matéria para a tevê gra- nos livros, que ambos leram, relembra na, que na verdade é um pequeno bar-
ço”, e aquele lugar está definitivamen- ças à qual conseguimos encontrar a de quando ia com o pai de Karl Ove para co-plataforma atracado ao fiorde. Da
te longe de parecer um cortiço. Mas casa. Karl Ove veio e foi a primeira vez a escola onde começaram juntos a lecio- janela do pequeno recinto escaldante,
ele continua dizendo que “a lembrança que ele viu o recinto interdito do pai, já nar. Eram oito meninos nos arredores da vejo a Ópera de Oslo e os pássaros que
não é uma grandeza confiável ao longo como parte da casa de outra pessoa, casa que faziam tudo em bando, é mara- a sobrevoam. Dois noruegueses divi-
da vida. Mas não simplesmente porque mais de trinta anos depois. Ele lhe deu vilhosa a ideia de infância naquele lugar. dem o horário da sauna conosco. Quan-
o valor maior da lembrança não seja a um livro autografado em que a agrade- A nostalgia se desprende de suas pa- do o calor fica insuportável, dou meu
verdade. [...] O que é lembrado de ma- cia por deixá-lo entrar em sua casa. lavras, mas não só isso. Não é só do primeiro mergulho no fiorde. A água é
neira correta, veja bem, jamais nos é Da janela vejo o jardim, o lugar passado que ele fala, nem mesmo de gélida, também insuportável, não
dado escolher”. onde Karl Ove viu o pai trabalhando uma obra literária. É perfeitamente aguento mais que alguns segundos, mal
Não é um cortiço, mas, chegando numa cratera no começo do primeiro possível entender por que Karl Ove consigo respirar. O calor, na volta à sau-
perto, a casa está malcuidada, suja, há volume, logo depois do trecho inicial passava suas tardes naquela casa. A von- na, já não dói, é até agradável depois do
restos de reforma espalhados, diferente sobre a morte e seu apelo tectônico. Foi tade é de ficar. Martha e Ola-Jan são frio. O próximo mergulho é menos ruim.
das outras casas daqui, sempre impecá- em minha segunda leitura que o trecho pessoas maravilhosas, que eu gostaria O seguinte, quase agradável. No últi-
veis. Mesmo assim, o lugar não parece me saltou aos olhos: a primeira aparição que fossem meus avós. Eles são muito mo, pulo do andar de cima, nado, me
abandonado, parece vivo. Toco a cam- do pai de Knausgård é na terra, o lugar maiores do que o livro. deliciando na água gelada. Não, o último
painha, já acostumada a ter o silêncio destinado aos mortos. Tive a oportuni- Eles anotam nosso contato e anotam não. Só mais um. E mais um. Mais um.
como resposta, mas alguns instantes dade de perguntar para Karl Ove em meu nome quando Camilo diz que tam- E pronto. Que maravilha nadar aqui,
depois escuto o som de passos e uma uma entrevista se aquilo foi proposital, bém sou escritora. Saímos extasiados, que maravilha o meu corpo aqui, nestas
mulher de cabelos curtos abre a porta. e fiquei envaidecida quando ele, na tela Camilo tem planos de voltar quando sua águas de tão longe, mas que faço mi-
Me apresento, digo que estou seguindo do Zoom, arregalou os olhos e disse que companheira vier visitá-lo no final de nhas, que se tornam minhas. Em vários
os passos de Karl Ove Knausgård na No- era a primeira vez que ouvia aquilo, sua estada, talvez antes, passar um tem- momentos da viagem me assaltou a im-
ruega, e ela não se surpreende. Seu mas que não havia sido pensado, era po em Tromøya escrevendo. Eu faria o pressão de absurdo, de não saber o que
nome é Tina e ela mora nesta casa há assim que ele lembrava. mesmo se pudesse, se não tivesse meu estava fazendo neste lugar, em busca de
vinte anos. Eu pergunto se podemos en- Tina pede que eu não tire fotos de companheiro e meus filhos me esperan- uma história que não é minha. Mas que
trar, ela hesita por um momento, mas dentro da casa, pois está muito bagunça- do em casa. Sentimos, ambos, o privilé- história não é minha, que história che-
enfim abre mais a porta. Tiramos nossos da. Também prefere que eu não a foto- gio de um encontro verdadeiro, muito ga até mim que não passa também a ser
sapatos na porta, como todo norueguês, grafe, e explica: terminou recentemente mais que com dois personagens de livro, minha? E mesmo que não passasse a
e Tina nos presenteia com um verda- o tratamento de um câncer, e então e fica claro de repente que eu estou bus- ser: seguir um roteiro é só um motivo
deiro tour, mas adverte que quase nada seus cabelos curtos fazem sentido, ralos, cando uma infância que não é minha, para viajar. A escolha de uma direção.
é original da época em que Karl Ove é por causa da quimioterapia que vejo a mas que faz sentido como se fosse. Assim como Sophie Calle escolheu al-
morou aqui, exceto o piso da entrada, a primeira mulher de cabelos curtos na guém aleatório para seguir em Veneza,
escada e o piso da sala de cima. Ela nos Noruega, e entendo por que a casa está assim como Lauren Elkin vai atrás dos
* Há dois outros personagens distintos na série tam-
mostra todos os cômodos e ressalta o vi- largada e suja. Enterneço-me muito bém chamados Geir: o editor de Karl Ove e o seu
passos de Sophie depois. Eu escolhi al-
trozinho por onde Karl Ove entrava es- mais por ela que pela visita da casa da melhor amigo na idade adulta, que é sueco. guém na Noruega para seguir. J

68
CLUBE DE REVISTAS
1 de 4 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
questões ósseas

VINTE NOITES SEM DORMIR


Jornalista de 85 anos transforma sua fratura de fêmur numa experiência de vida enriquecedora

ROBERTO MUGGIATI

A privação do sono é uma das piores torturas. Vemos nos filmes antigos mocinhos e
durões com uma lâmpada esfregada na cara para revelar um segredo ou confessar
uma falta. Resistem por algum tempo, mas acabam sempre cedendo.
Não há lugar mais barulhento e iluminado do que uma enfermaria de hospital.
Deixe logo na entrada suas esperanças de um sono reparador: não dormirá nunca.
Como seu organismo não é de ferro, você terá pequenos lapsos de cochilo – ultrar-
rápidos, embora pareçam durar uma eternidade. O que você faz então? Ao contrário
do ditado, a invenção é que é a mãe da necessidade. E cada um inventa como pode.
Mas vamos logo ao clássico quem-o quê-quando-onde et cetera.

N
o quarto de dormir, no Estremeci ao ver como o meu desti- dos muros do Hipódromo, depois da pri- Rio como capital federal, eu assistia aos
meio da noite, quebrei o no podia ser desgovernado por um so- meira curva oposta da pista de corridas. cavalos fazendo o cânter no paddock.
fêmur. Ou o fêmur que- corro inepto. A ambulância encostou na entrada da Nada desse desvairado giro em que um
brou sozinho. No começo Com muita dificuldade me retiraram emergência e a maca me conduziu até a maqueiro irresponsável me abandonou
eu nem sabia que era o fê- da colmeia de 60 m² que ocupo no pri- Sala de Trauma onde Lena me acompa- no corredor da tomografia, enquanto
mur. Acordei no chão, do lado da meiro andar do bloco de apartamentos nhou para o cadastro de triagem. Come- me chamavam para o raio X em outra
cama, estatelado como um saco de dos fundos. (“Mas é uma casa de bone- çou aí uma pequena odisseia que ala. Fiz forfait. Quando me devolveram
batatas podres. Não conseguia mover ca!”, exclamou meu personal de compu- acabaria exigindo três viagens ao raio X à Sala de Trauma, o médico berrou:
a perna direita, que doía muito. Gritei tador na sua primeira visita.) Tive de ser para atender aos pedidos do médico. “Sacanagem! Não fizeram o raio X, só a
de dor e pânico, acudiu Lena, minha transportado no ar, de mão em mão, por tomografia!” Isso não teria acontecido se

O
mulher. Com imenso esforço conse- porteiros e faxineiros em fila indiana ao s cavalinhos correndo, e nós, ca- avisassem à Lena que, como minha res-
guimos colocar a perna – reta e rígida longo dos corredores estreitados, tetos valões, morrendo. Penso no poe- ponsável, não só poderia, mas deveria
como se estivesse entalada – sobre rebaixados, portas arredondadas e outros ma de Manuel Bandeira, Rondó me acompanhar ao longo dos exames.
meu catre de solteiro. caprichos arquitetônicos da proprietária do Jockey Club, de 1936: “Os cavalinhos Levado de novo ao raio X, teria de vol-
Liguei para o 192, o Samu atendeu original. Ao som da sirene da ambulân- correndo,/E nós, cavalões, comendo…/Tua tar ainda outra vez para uma chapa de
prontamente. Entreouvi a conversa da cia eu ia vendo o céu azul perfeito daque- beleza, Esmeralda,/Acabou me enlouque- perfil que esqueceram de fazer. A essa
enfermeira-maqueira com a central. Ela le começo de manhã de fevereiro desfilar cendo./Os cavalinhos correndo,/ E nós, altura eu era dominado por uma única
ripostou: “Mas o Getúlio Vargas fica no sobre minha cabeça – Rua das Laranjei- cavalões, comendo.../O sol tão claro lá sensação – a dor lancinante do fêmur que-
Irajá! Estamos na Rua das Laranjeiras...” ras, Cosme Velho, Lagoa, Hípica, Hipó- fora/E em minhalma – anoitecendo!” brado e da perna imobilizada. Jogavam
E, pouco depois, para mim: “Vamos le- dromo da Gávea, com suas amendoeiras Sua lembrança me levou de volta ao meu corpo da maca para o metal gelado
var o senhor para o Miguel Couto. Já ainda floridas. Os pavilhões do Hospital mesmo ponto geográfico onde, em tem- da mesa do raio X e vice-versa sem a me-
estamos a caminho da sua casa.” Miguel Couto estão encaixados dentro pos mais amenos, nos últimos anos do nor compaixão. Eu tinha entrado no hos-

70
2 de 4 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS

CLÁUDIA ALVES (FOTO)_ROBERTO MENDONÇA MUGGIATI (ARTE)

Muggiati e sua mulher, Lena, recriam a tela American gothic: “Penduramos nosso quadrinho das Bodas de Rubi num lugar de honra da sala”

pital no começo da manhã, agora já va da Estrada de Santos. E lembrei do Lamentava seus vícios – o cigarro, a eu possuía uma coleção, das melhores
passava das quatro horas. Não sentia fome, “pescoção” – como chamávamos o longo cachaça, as mulheres – e prometia arre- grifes. Um deles, um diácono, profissão
não tinha tomado sequer um copo d’água. mutirão para fechar as edições de fim de pendimento eterno: “Agora sou de Deus, porteiro, não sabia dar nó, quem prepa-
Estava no limbo, na ala conhecida semana do jornal. Essas digressões foram só Ele salva!” Foi um dos muitos que co- rava sua gravata era a mulher.
como “amarelinha”, ainda na maca, varridas pelo vozeirão tonitruante do vi- nheci no hospital capazes de resolver com Um detalhe singular: dos vinte pa-
aguardando um leito na enfermaria de zinho de enfermaria recitando a prosopo- extrema simplicidade o problema da reli- cientes da enfermaria 203, eu era o único
ortopedia. Só então consegui que me peia do seu acidente. Foi o único que me gião. Era o caso dos evangélicos, até então que não tinha sido vítima do automóvel.
aplicassem um remédio para aplacar a deu um cartão de visita, o nome esdrúxu- eu não conhecera nenhum pessoalmente. Três garotos tinham dormido na direção,
dor. A injeção subcutânea de Tramal na lo quase me levou a perguntar: “Oviran, “Só Deus salva”, e estamos conversados, um deles caiu com o carro no Jardim de
barriga me daria um enjoo épico: nas gotas ou comprimidos?” – mas recolhi a era só pagar o dízimo de 30%. Muito dife- Alah, no Leblon, e quase morreu afoga-
24 horas seguintes vomitei tudo o que piada, parecia um sujeito de maus bofes. rente da profunda crise mística pela qual do no canal. Outro foi atropelado pelas
ingeria, engolindo às vezes de volta Seu relato rolava em looping: passei na adolescência quando li A mon- costas na calçada por uma moto des-
aquilo que acabava de vomitar. Já era O maluco jogou o carro na contra- tanha dos sete patamares, a autobiografia governada, empurrada por um ônibus.
noite quando me instalaram no leito 01 mão, não tinha nenhum carro parado na do monge trapista Thomas Merton. Al- Há pouco tempo, num dossiê que pos-
da enfermaria 203, que eu ocuparia du- calçada, só uma caçamba de entulho guns destes “bíblias” eram casados com tei no blog Panis Cum Ovum (Automor-
rante meus vinte dias de hospital. cheia. Não é que ele mandou a caçamba minhas cuidadoras – elas também crentes te: a megapandemia), eu listei as vítimas
Naquele cercadinho de 2m x 3m, me quase um quarteirão adiante? O Miguel e pagantes fiéis do “pedágio da fé”. Desco- famosas desde que o automóvel come-
flagrei algumas vezes cabeceando, quase Couto é um grande hospital, vem gente bri que esses pastores, que usavam terno çou a circular em meados do século xix.
pegando no sono, mas logo despertava. do mundo inteiro aprender com seus mé- no culto, adoravam gravatas. Para agradar Entre elas, as duas princesas do século,
Como na maluca descida de serra nos dicos, mas meu dedão do pé direito gan- suas mulheres, presenteei dois ou três Grace de Mônaco e Diana, o ator James
anos 60, no dkw do meu pai, em que me grenou e tiveram de amputar... O maluco com algumas peças do meu acervo. Ten- Dean, o escritor Albert Camus, o pintor
via cabeceando e acordando a cada cur- jogou o carro na contramão... do morado nos anos elegantes na Europa, Jackson Pollock, os cantores Francisco

piauí_novembro 71
3 de 4 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
parecia um pedaço de graveto. O suco de O fêmur também mata. Enquanto
um limão-taiti inteiro, sem açúcar, doía eu escrevia, a tevê noticiava a morte, aos
de tanta doçura. Aquele inferno gustativo 78 anos, da cantora Cynara, que formava
durou quase três semanas e as pessoas com as irmãs Cyva, Cylene e Cybele o
achavam que eu estava de frescura. Quarteto em Cy, criado em 1964. Interna-
ANDRÉ DAHMER_2023

Minha fratura aconteceu no pior mo- da para uma cirurgia de fratura do fêmur,
mento possível, na quarta-feira anterior ao morreu de insuficiência respiratória. Com
Carnaval. Tudo parou. Minha cirurgia só Cybele, Cynara defendeu, sob vaias no
foi marcada para a sexta-feira após as Cin- Maracanãzinho, a canção Sabiá, de Tom
zas, e acabou cancelada porque não havia Jobim e Chico Buarque, no polêmico Fes-
bolsa disponível com meu sangue – um tival Internacional da Canção de 1968.
dos mais banais, o Rh negativo. Só fui Vi na internet a notícia de um idoso
operado na terça-feira, o último dia de fe- que encontrou fechada uma oficina em
vereiro. A cirurgia durou uma hora e, devo Registro, no interior de São Paulo, e foi
reconhecer, foi um sucesso. O Miguel perguntar para o morador vizinho a que
Couto é uma referência e um milagre da horas o local abriria. Ignorado, o homem,
eficácia em traumas ortopédicos. Com o de 82 anos, questionou: “Você está sur-
humor que ainda me restava o batizei de do?” Seu interlocutor o agrediu a socos e
Couto D’Or. Uma semana depois eu dei- chutes: “Vou te matar, seu velho nojen-
xava o hospital. A última noite foi inesque- to!” Jogado sobre um monte de pneus, o
cível: acionei o controle para erguer a idoso quebrou o fêmur e morreu.
cabeceira do leito, ele escapou da minha Em agosto morreu no Rio de Janei-
mão e eu me vi guindado às alturas, com ro uma mulher de 81 anos, em conse-
a ameaça de ser catapultado para fora da quência da fratura do fêmur e da bacia
cama. Socorreu-me Sônia, acompanhan- ao ser empurrada no chão, no bairro da
te de um paciente vizinho. Minha irmã a Tijuca, por um doente mental.
contratou para ser minha cuidadora na Uma das cenas mais impressionantes
volta à casa. Estou devendo a Sônia um do cinema é a briga dos macacos em
almoço no restaurante Mirante Rocinha, 2001: uma odisseia no espaço, usando
Alves, Maysa, Gonzaguinha. A escritora seis refeições: café da manhã, colação que, garantiu ela, “é show, dá match”. como tacapes fêmures achados em ossa-
Margaret Mitchell, ainda em meio às (palavra do tempo das minhas avós), al- Minha reação inicial ao acidente foi das. Kubrick armou a imagem genial –
vendas colossais de E o vento levou, mor- moço, merenda, jantar e ceia. A farra co- de revolta. O que fizera eu para merecer uma elipse de zilhões de anos-luz – em
reu atropelada por um taxista bêbado meça às sete da manhã e termina às dez aquele castigo? O ano começou com que um fêmur arremessado ao Céu se
quando ia ao cinema. Na Califórnia, o da noite. Cada enfermaria e uti tem a sua uma crise de depressão braba da Lena. transforma numa nave espacial deslizan-
cineasta alemão F. W. Murnau morreu dietista, que leva em conta as menores Na segunda-feira chuvosa de 9 de janeiro, do rumo a uma estação lunar, ao som do
aos 42 anos num Rolls-Royce dirigido por idiossincrasias dos pacientes. Zelosas do eu a internei na upa de Botafogo, um fia- Danúbio azul.
um criado filipino de 14 anos. Na Riviera seu ofício, elas fiscalizam quem não está po de gente com menos de 35 kg. As tevês Cruzado com uma tíbia debaixo da ca-
Francesa, a dançarina Isadora Duncan, se alimentando devidamente. Não me sur- transmitiam ininterruptamente imagens veira, o fêmur é o emblema da bandeira
aos 50 anos, teve o pescoço quebrado preenderia se organizassem competições tétricas da tentativa de golpe no domingo, dos piratas. Os corsários voltaram com for-
quando sua echarpe se enroscou na roda de “comidinha de hospital”, nos moldes em Brasília. Na sexta-feira 13 a transferi- ça total nos últimos anos graças à série de
de um carro esporte. As estatísticas são do Comida di Buteco. ram para o Rocha Maia, um hospital efi- filmes e parques temáticos da Walt Dis-
assustadoras: a cada 24 segundos o auto- Toda aquela fartura começou a me ciente e tranquilo, ela saiu de lá com 8 kg ney Piratas do Caribe. Nos devaneios de-
móvel mata uma pessoa sobre a face da apavorar. Atado ao leito, não tinha como a mais. Ia visitá-la quase todo dia, feliz por sencadeados pelo desconforto da posição
Terra (a faixa etária mais atingida está processar o que comia – se comesse ver que havia saído do buraco. Sempre rígida na cama e pela impossibilidade de
entre 5 e 29 anos). tudo o que me serviam. Passei a evitar tive o hábito de caminhar, pela necessida- dormir, pensei em minha filha Natasha,
alimentos sólidos e preferir os suple- de física e também filosófica, à manei- que mora na Alemanha há sete anos. Brin-

A
hospitalização revolucionou minha mentos, iogurtes, pudins e sucos. Im- ra de Rousseau. Até 2020, morando havia cando o Carnaval carioca com amigos, ela
vida social. Conhecido na Manche- possibilitado de ir ao vaso – e sequer de 37 anos em Botafogo, caminhei pelas costumava me telefonar a altas horas: “Pai,
te como O Eremita, vivi os últimos usar uma “comadre” – não conseguia planuras da Paróquia de São João Batista cante uma daquelas da antiga!” Eu conhe-
anos praticamente trancado, fazendo tra- defecar na horizontal. Era algo que con- da Lagoa. Ao mudar para o Baixo Glicé- cia muitas – da odalisca, do gago, do be-
duções, matérias jornalísticas ou anotan- trariava a lei da gravidade. Só ao voltar rio, tornei-me um flâneur das ladeiras bum, da balzaquiana –, mas geralmente
do minhas memórias no blog Panis Cum para casa, valendo-me de um poderoso escarpadas e escadarias de Laranjeiras. atacava com esta marchinha de 1947:
Ovum. No Miguel Couto tive contato laxante, depois de uma noite inteira de Vangloriei-me das novas façanhas numa Eu sou o pirata da perna de pau/Do
compulsório com centenas de pessoas: esforços insanos, consegui normalizar postagem intitulada Tomando caipivodca olho de vidro, da cara de mau/Eu sou o
médicos, enfermeiras, pacientes e o que aos poucos as funções intestinais. e lendo P. G. Wodehouse na Montanha pirata da perna de pau/Do olho de vi-
mais aparecesse. No meio da madrugada Mágica de Laranjeiras num momento de dro, da cara de mau/Minha galera/Dos
acendiam-se todas as luzes e adentravam ais où sont mes madeleines crise aos 85 anos: só eu... Acho que provo- verdes mares não teme o tufão/Minha
ruidosamente os garis (e as garis) hospita-
lares da Comlurb, lépidos e fagueiros: ao
abrigo das balas perdidas da rua, ganha-
M d’antan? (Mas onde estão as
minhas madeleines de antiga-
mente?) Todo tipo de pragas havia se
quei a sorte e a velha húbris voltou a me
assolar – o dicionário define o conceito,
da Grécia antiga, como confiança exces-
galera/Só tem garotas na guarnição/Por
isso se outro pirata/Tenta a abordagem/
Eu pego o facão/E grito do alto da
vam ainda uma taxa de insalubridade. abatido sobre mim, mas eu não imagina- siva, orgulho exagerado, presunção, arro- popa:/“Opa! Homem não!”
As baterias de led no teto agrediam va aquela que se deflagrou justo na mi- gância ou insolência, que acaba com Era um sucesso de Nuno Roland,
meus olhos, mais vulneráveis à luminosi- nha volta para casa. Ouvira falar da frequência punida pelos deuses. uma das vozes de ouro da Era do Rádio.
dade depois da cirurgia de catarata. Abolição do Paladar como um dos efeitos Só depois que me informei melhor a Várias vezes fui vê-lo nas matinês de
Um exército de enfermeiras trocava colaterais da Covid, mas não sabia que respeito do fêmur, cheguei à conclusão domingo do Cine Avenida, em Curiti-
nossas fraldas e nos dava banho. A maioria era um flagelo tão terrível, no meu caso, de que foi ele o vilão de toda aquela his- ba. Anos depois, Nuno Roland, diabéti-
era de bravas mulheres negras que ganha- decorrente da anestesia e do excesso de tória. É o osso maior e mais volumoso co, feriu o pé, que gangrenou e o levou
vam uma miséria e moravam na periferia, remédios. Já nos últimos dias de hospital do corpo humano, suporta uma pressão à amputação da perna. Morreu sem
a horas de viagem do hospital. Com o ma- eu sentira alguns sinais truncados em de 1 230 kg por cm² e, num homem de tempo sequer de botar a perna de pau...
rido desempregado, encarcerado ou sumi- meu apetite. No primeiro café da manhã 1,80 m (meu caso), chega a medir 50 cm. Para terminar com o fêmur, fiz em
do, garantem a sobrevivência dos filhos. doméstico, pedi que me servissem made- Nas ocorrências de fratura do fêmur, o sua homenagem um daqueles meus hai-
Não posso esquecer o pessoal da ali- leines. Mordi a primeira e refuguei, o laudo apontava como causa “queda da cais safados, parodiando a exaltação dos
mentação. Nos hospitais cariocas ento- café tinha gosto de água suja. Quando mesma altura”. Eram inumeráveis as ruralistas ao agro: O fêmur é fálico/O fê-
pem você de comida, nada menos do que perdi totalmente o sabor, uma batata frita fraturas espontâneas do fêmur. mur é flibusteiro/O fêmur é pop.

72
4 de 4 25/10/23 PROVA FINAL

iver é muito perigoso, já dizia o pre escrevera usando alguma ferramenta:


CLUBE DE REVISTAS
V velho Rosa. Ainda bem que não
me aprofundei sobre minha fra-
tura, a do cólon do fêmur. As estatísticas
um lápis ou caneta, nas primeiras reda-
ções infantis; aos 12 anos já tinha minha
máquina de escrever portátil. Hoje, se
são terríveis. Ao contrário das outras, ela pertencesse à tribo dos whatsappers, po-
oferece um quadro bem mais grave e deria gravar minhas impressões num

ANDRÉ DAHMER_2023
complicado. Não basta imobilizar o osso celular, mas não era o caso. Em casa,
para curá-la. O tratamento é feito através continuei atrelado a uma cama hospita-
de cirurgia, com a colocação de placas, lar. Lembrei da restrição que eu fazia a
parafusos ou próteses metálicas, e a re- Kafka em sua frase de abertura de A me-
cuperação completa é lenta. Muitos pa- tamorfose: “Ao acordar de sonhos inquie-
cientes não conseguem voltar a andar e tos certa manhã, Gregor Samsa se viu
se tornam dependentes de ajuda. Sua transformado na sua cama numa criatu-
imobilização crônica costuma provocar ra horrenda.” Eu implicava com “na sua
complicações como embolia pulmonar, cama”, achava redundante – afinal, onde
trombose venosa profunda, úlceras da é que um cidadão acorda toda manhã?
pele, pneumonia e infecções urinárias. Agora eu abarcava aquele in seinem Bett
O índice de transtornos graves a curto e com toda a concretude do mísero retân-
médio prazo pode elevar a mortalidade gulo que seria minha prisão por mais de
durante o primeiro ano a até 20%. dois meses, até que juntasse forças para
Foi por puro instinto de preservação escapar à letargia pegajosa do leito, uma
que me agarrei às sessões de fisioterapia, atração fatal que eu associava ao Aspiro
por mais dolorosas que fossem. Tive a ao grande labirinto, o livro de Hélio Oiti-
sorte de cair nos braços de uma terapeu- cica. Eu me apegara de tal modo à cama
ta excepcional, Danielle Aguiar. Com que as escaras e feridas do longo contato
23 anos de prática, alia a eficiência pro- com o colchão eram as escamas da “cria-
fissional a um forte espírito de compai- tura horrenda” de Kafka.
xão. Dani sabe exatamente como tratar Um blues de Duke Ellington ilustrava
cada paciente. No meu caso, trabalhou também admiravelmente minha situa-
alternadamente a musculatura, a postura ção, Rocks in my bed: My heart is heavy as programada para descrever este ou para 35 anos de Editora Bloch no Rio de
e o equilíbrio. Ao fim de quatro meses sob lead/because the blues has done spread/ aquele sentimento ou situação. Lembro Janeiro – fui o editor da revista Manchete
seus cuidados, voltei a andar como antes. rocks in my bed./Of all the people I see/why como o mestre do Nouveau roman, que mais tempo ficou no cargo –, além
No dia 27 de abril, na terceira revi- do they pick on poor me/and put rocks in Alain Robbe-Grillet, escritor frio e cere- de uma temporada na equipe inicial
são no Miguel Couto, recebi alta. Era a my bed?/All night long I weep/so how can bral, abriu as comportas da emoção ao da Veja, nos anos cruciais de 1968-69.
véspera dos 45 anos de meu casamento I sleep/with rocks in my bed (Meu coração narrar um acidente aéreo do qual esca- E, ainda, os profícuos anos de freelancer
com Lena, resolvi fazer algum tipo de está pesado como chumbo/porque a de- para com a mulher em 1961. Derramou na pós-falência da Manchete, a partir de
comemoração. No playground do con- prê espalhou/pedras na minha cama./De lágrimas de crocodilo ao lembrar a quei- 2000. Com direito a revelações exclusi-
domínio existe uma casinha de madei- toda essa gente que vejo por aí/e foram ma, na bagagem, de um bracelete que vas sobre os bastidores do jornalismo bra-
ra que lembra vagamente a casa da escolher logo a mim, esse pobre coitado/ dera à mulher para comemorar os dez sileiro na segunda metade do século xx.
famosa tela American gothic (1930), de para despejar pedras na minha cama?/ anos do seu encontro casual num trem Tudo isso sem horários, prazos ou
Grant Wood. Numa viagem pelo Cen- A noite toda eu choro/então como posso do Expresso do Oriente, em Istambul. qualquer angústia de obrigatoriedade.
tro-Oeste americano, ele viu uma casa dormir/sobre as pedras espalhadas na mi- Depois de alguns dias de trabalho, Misturado ao lazer: cinema, particular-
em estilo gótico rural e resolveu pintar nha cama). Passei ao todo 68 noites e dias cheguei a um copião que era uma verda- mente o filme noir; jazz, em especial o
o tipo de pessoa que poderia morar carregando aquela cama como um cara- deira colcha de retalhos. Comecei então bebop; e os escritores que sempre me
nela. Retratou, com a casa ao fundo, col carrega sua concha. Sem alternativa, a eliminar impiedosamente trechos intei- acompanharam – o Bardo e a Bíblia, o
um fazendeiro segurando uma forqui- concentrei-me em escrever “além das ros que considerava inúteis. Depois, ope- Trio do Século (Kafka, Joyce, Proust),
lha ao lado da filha, que veste um aven- nuvens”, evocando um dos últimos filmes rei cortes meticulosos e cirúrgicos na o Bruxo (do Cosme Velho) e o Vampiro
tal. Resolvi parodiar a tela. Com o de Antonioni. Voltei ao teclado ainda escrita. Apelei para a Teoria do Iceberg do (de Curitiba), Rosa, Drummond, Bandei-
entusiasmo dos tempos em que produ- com desconforto e dores na perna. Para velho Hemingway: “Se escrever apenas a ra, Clarice; Fitzgerald, Hemingway, John
zia fotos na revista Manchete, juntei as combater minha resistência à página em verdade, um escritor pode omitir muitas Fante, Cheever & Carver, Conrad, Sime-
indumentárias mais adequadas que tí- branco, imprimi numa folha a4, repetida coisas. O leitor sentirá essas coisas que non, Patricia Highsmith, Dylan Thomas,
nhamos em nosso limitado guarda-rou- em quinze linhas, a frase “O escritor es- foram ocultadas com tanta força como se o Svevo de Zeno. E Salinger, o único –
pa. Lena e eu posamos na casinha do creve”. Percebi então que tinha muita o escritor as houvesse explicitado. A dig- além de Albertine Sarrazin (O astrágalo)
playground e nossa cuidadora, Cláudia coisa na cabeça e uma voracidade desme- nidade de um iceberg existe porque ape- – que faz uma referência ortopédica espe-
Alves, nos fotografou com seu celular. surada para colocar tudo no papel, sem nas um oitavo dele está acima da água.” cífica num título, no conto Uncle Wiggily
Mandei as fotos para meu filho, que esquecer a minha mania de abrir parên- A fratura do fêmur foi um abalo sís- in Connecticut – uncle, tio, soa como
mora em Edimburgo, na Escócia, e é teses e me entregar a divagações (Lena mico, um divisor de águas, uma cesura ankle, tornozelo, que a heroína torce ao
chegado às artes gráficas. Ele já conhe- me apelidou de Doutor Divago...). epistemológica na minha vida. Acredito correr atrás de um ônibus com o namora-
cia o American gothic de uma visita ao As muitas frases que compusera na que consegui reconstituí-la com objeti- do. Todas essas predileções atuam, ainda
Art Institute of Chicago. Nasceu assim minha cabeça equivaliam às alternate vidade nesta narrativa, sem abrir mão do que inconscientemente, como influên-
Brazilian caipira. Um detalhe: no seu takes dos primeiros lps de jazz. Eram as emocional. Recuperei também o prazer cias no meu processo de escrita.
Photoshop, não usou o camafeu da tela tentativas dentre as quais apenas uma, a da escrita e retomei projetos que havia Sinto hoje como se estivesse descobrin-
original no pescoço da moça, respeitou master take, seria lançada no disco origi- deixado de lado: minha autobiografia do pela primeira vez o ato de escrever. Não
a improvisação que eu mesmo fiz, com nal. De certo modo, derrubavam o mito A vida é uma reportagem, o romance como um ofício, um apostolado, ou uma
um pedaço de papelão recortado e fili- da livre improvisação e mostravam que noir Mistério na Glicério, o romance-da- missão, mas como uma atividade lúdica.
granas desenhadas com liquid paper. existia na cabeça do jazzista um desíg- praia Zen & corn flakes e o romance- Agrada-me muito a expressão de Bo-
Penduramos nosso quadrinho come- nio formal prévio que fazia dele uma da-serra Jardins de pedra. ris Vian para a passagem do tempo, o
morativo das Bodas de Rubi num lugar espécie de “compositor instantâneo”. A autobiografia, além da trajetória lento e silencioso rolar da “espuma dos
de honra da sala de estar. Nas nove takes que o pianista Bill Evans pessoal, detalha a profissional: setenta dias”. E escolho como fecho uma frase
As vinte noites que passei sem dormir gravou do tema de Luiz Eça The dol- anos de carreira, do começo na Gazeta da Baronesa, Isak Dinesen (pseudôni-
no Miguel Couto eu usei para “escrever” phin, as diferenças entre os improvisos do povo de Curitiba, passando pelo Cen- mo de Karen Blixen, que batizou o aste-
na minha cabeça. Logo me dei conta de são praticamente imperceptíveis. tro de Formação de Jornalistas de Paris roide 3318 Blixen): “A Vida e a Morte
que estava compondo as palavras no va- Esse mecanismo se repetia em mim: (1960-62), pelo Serviço Brasileiro da bbc são duas urnas fechadas, cada uma delas
zio. Como quase todo mundo, eu sem- havia na minha cabeça uma “matriz” de Londres (1962-65), de volta ao Brasil contendo a chave que abre a outra”. J

piauí_novembro 73
1 de 4 26/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
história pessoal

“SOU UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL”


Memórias de um pensador do cinema brasileiro

JEAN-CLAUDE BERNARDET, com Sabina Anzuategui

O escritor, crítico e pensador do cinema Jean-Claude Bernardet lança neste mês o livro Wet mácula: memória/rapsódia, em que toma
sua própria vida como objeto de escrita e análise. Não é a primeira vez que faz isso. Em Aquele rapaz, que Bernardet classifica como
“ficção autobiográfica”, ele contou a história de um adolescente imigrante em São Paulo e seus conflitos familiares e existenciais.
Em A doença, uma experiência, descreveu seu enfrentamento com a Aids. Em O corpo crítico, relatou a rotina dos seus tratamentos
médicos e questionou o prolongamento compulsório da vida. O título do novo livro se refere a uma degeneração macular relacionada à
idade da qual ele sofre, e que pode se dar na forma seca (dry) ou úmida (wet), causando um borrão branco na visão.
Filho de pais franceses, Jean-Claude Georges René Bernardet nasceu em Charleroi, na Bélgica, em 1936. Passou a infância nos
arredores de Paris, dominada pelo Exército de Hitler. Seu pai lutou na Resistência, mas, ao fim da Segunda Guerra Mundial, foi acusado
pela própria mulher de ser um colaboracionista, quando, de fato, indícios apontavam que fora ela quem se envolvera com os nazistas.
Todo esse passado da família, para Bernardet, é cheio de incertezas. No fim da década de 1940, o pai se mudou para São Paulo. Em
seguida, vieram os dois filhos de seu primeiro casamento, Jean-Claude e Jean-Pierre, acompanhados de sua nova esposa, Olga.
Bernardet iniciou seu envolvimento com o cinema na juventude, frequentando a Cinemateca Brasileira, onde conheceu o crítico e
historiador do cinema Paulo Emílio Sales Gomes. “Ele foi o primeiro adulto que acreditou em mim”, disse à piauí em setembro de 2011
(Autoficções de uma pessoa-laboratório, piauí_60).
Em 1964, Bernardet se casou com a professora de literatura Lucilla Ribeiro e, no ano seguinte, os dois se tornaram assistentes
de Paulo Emílio no curso de cinema da Universidade de Brasília, da qual se desligaram no ano seguinte, com centenas de
professores que se demitiram em protesto contra o regime militar. Voltou a São Paulo e em 1967 começou a dar aulas na USP.
Mas em 1969 foi cassado pelo AI-5 e passou a trabalhar como crítico no semanário Opinião. Com a anistia, voltou à USP, onde
deu aulas até 1998. Publicou dezenas de livros considerados essenciais à compreensão do cinema brasileiro, de suas ideologias e
linguagens. Também é diretor, roteirista e ator.
Wet mácula – do qual a piauí publica trechos nesta edição – foi um projeto da editora e tradutora Heloisa Jahn, amiga de
Bernardet. Os dois se reuniram várias vezes para entrevistas que serviriam de base a uma autobiografia que seria escrita com a ajuda
da editora. A morte de Jahn no ano passado interrompeu o projeto idealizado, mas não a realização do livro, que Bernardet levou a
cabo com a participação de outra amiga e ex-aluna, a escritora Sabina Anzuategui.

C
hegando de Paris, fui ao escri- parada ao lado do enorme portão metá- Na descrição estranho a frase: “Lá- O que implica a figura da mãe. As
tório de meu pai na Rua Ba- lico ainda aberto. grimas lhe escorriam pela face.” Há mães teriam um comportamento pa-
rão de Itapetininga, em São Descrevi a cena em meu livro Aque- alguma ternura nessas lágrimas cita- drão por serem mães.
Paulo. Tinha que lhe entre- le rapaz: das pelo narrador de trinta anos atrás. Só agora penso ser até provável que
gar um presente. Ele me per- Dia de Natal, já quase noite, o carro O texto de hoje é seco. Alteração afe- minha mãe tenha abraçado seus filhos
guntou: “Encontrou sua mãe?” estava no pátio. Meu irmão e eu subi- tiva ou questão de estilo. com carinho. Disso não tenho memória.
“Não.” mos. Algum empregado abriu o imenso Anos depois, novamente no escritório Há décadas Jean-Claude se dedica ao
Eu tinha ido à França diversas vezes, portão de ferro. O carro passou. Minha da Barão de Itapetininga. Cheguei, sentei trabalho de expulsar a sua mãe de si. De
ele nunca perguntou. Eu nunca a encon- mãe estava exatamente na fronteira entre e disse: “Geneviève faleceu. Pensei que si e do mundo. Não há nenhuma raiva
trei, nunca a procurei. Nem pensei em o pátio e a calçada. Lágrimas lhe escor- podia te interessar.” Meu pai respondeu: nisso. Ao contrário, talvez seja um gesto
procurá-la. Minha mãe é uma ausência. riam pela face. Quando percebi que ela “Sim. Foram muitos anos.” Perguntou de proteção contra o que ele intui que se
Quando papai nos separou dela, mo- chorava? Nesse exato momento? Acho como eu soube. Respondi: “Um advogado diria dela: colaboracionista. O gesto de
rávamos numa pequena cidade nos ar- que não, devíamos estar tão felizes de ir- especializado em busca de herdeiros veio expulsá-la de si poderá ter começado du-
redores da capital, onde tínhamos mos a uma festa no carro novo. Mais à América do Sul. O viúvo se lembrava rante a guerra. Passos rápidos atravessam
passado parte da guerra. Ele simples- tarde? Muito mais tarde? Mas o signifi- de uns filhos no Brasil ou na Argentina.” o hall de entrada. Na cozinha, a cozi-
mente disse: “Vamos passar o Natal em cado da situação só bem depois entendi. nheira abre bruscamente a porta, ele vê

V
Paris.” Entrou no carro, Jean-Pierre [ir- Pela janela traseira do carro, minha mãe ocê escolhe a opção da inverossi- sua mãe e um homem. Entram e fecham
mão de Bernardet] e eu atrás. O carro afastava-se, imóvel, ereta, junto ao por- milhança da narrativa. Uma mãe a porta. A cozinheira o empurra em dire-
saiu. Nós olhamos pela janela de trás: tão ainda aberto, na noite. Foi a última não faria o que a narrativa descre- ção ao buraco da fechadura e diz: “Olha
Geneviève [mãe de Bernardet] estava vez que vimos nossa mãe, oficialmente. ve, já que é mãe. sua mãe”. Teriam jogado um lenço na

74
2 de 4 26/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS

KARIME XAVIER_2019

Bernardet: “A sociedade precisa construir referências culturais”, diz o crítico. “E uma das referências que ela construiu fui eu. Como fala meu amigo Calil, ‘estamos sendo tombados’.”

piauí_novembro 75
3 de 4 26/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
Tive uma conversa com ela tempos Essa relação se alterou em Salvador.
depois, em Socorro. “Por que fez isso?” Em 1960? A data deixo aos pesquisadores.
Ela me diz: “Por amor ao teu pai.” Às Numa sala imensa e luxuosa, Paulo
vezes vejo pessoas apaixonadas e me fez uma conferência. Sentei no fundo,
ANDRÉ DAHMER_2023

pergunto: Você está destruindo a quem? estava cheio. Paulo sempre voltava ao
À pessoa amada? Ou a você? lado esquerdo do palco. Depois houve
um coquetel com casquinha de siri. Re-

U
m dia bate à porta o vigia noturno tornamos ao hotel.
de uma obra. Reformam um imó- Estávamos no mesmo quarto. Na hora
vel ao lado da nossa nova casa, no de dormir, uma frase saiu da minha boca:
Ibirapuera. O vigia pede para puxar uma “Sei pra quem você fez a palestra.”
extensão da nossa rede elétrica até o bar- Paulo respondeu quase ofendido: “Não
racão onde passa a noite. Recusado. foi pra você!” “Eu sei. Foi para uma mu-
Foi meu pai quem nos contou a cena, lher de costas nuas.”
num almoço. Olga reagiu escandalizada: Até esse momento, Paulo me conside-
“Como você recusou? Ele não tem luz!” rava um jovem racional sem intuições.
Comento: “Papai faz isso para acele-

C
rar a revolução.” heguei à pousada de noite, uma
Ele dá um sorrisinho: “É mais ou casa de boneca, cortininhas,
menos isso.” rendinhas, bibelôs.
Meu pai nunca esclareceu suas posi- Depois do café, fui andar no bairro. Na
ções políticas, porém deixou claro que volta, um alvoroço na porta da pousada.
a Resistência francesa da qual partici- Uma moça me diz que Coutinho2 não
pou não era gaullista. Tinha alto respei- quer se hospedar ali. Não se pode fumar
to pela clandestinidade. na pousada: Coutinho ameaça retornar
À pergunta que repeti tanto – “Por ao Brasil imediatamente. A organiza-
que viemos morar no Brasil?” –, uma vez dora da Cinemateca em Quebec me diz
ele respondeu: “Os partidos de direita que em todo o Canadá não vai encon-
ganharam as eleições [regionais france- trar um lugar onde se possa fumar.
maçaneta, ele só vê preto. A cozinheira ceira da tia declinava. Os meninos conti- sas] de 1948.” Ele não conseguia enten- Vamos à Cinemateca com Coutinho
pergunta: “Viu?” A criança responde: nuavam chamando Olga de Mamie. der, não era possível, depois de tudo? e sua mala. Um pequeno jardim lhe per-
“Não.” Não ver terá sido um ato de amor? A tia fazia campanha para que a cha- No Brasil, ele tinha afinidades políti- mite fumar. A organizadora da Cine-
Mais tarde, acredito que ela será julga- massem de Maman: a verdadeira mãe é a cas com Paul Monteil, seu amigo [dono mateca chega, ela achou um drogado (sic
da. Entramos no carro, provavelmente o que cria. Bolaram uma estratégia: davam da Livraria Francesa, em São Paulo]. = um fumante) que aluga seu apartamen-
mesmo do Natal. Estou ao lado de meu um dinheirinho às crianças e toda vez que Monteil às vezes nos convidava para al- to. Coutinho está salvo, nós também.
pai, os avós e meu irmão atrás. Estaciona- a chamassem errado pagavam uma multa. moçar em seu sítio. Num encontro, Olga A viagem até Toronto foi tranquila,
mos em frente de um tribunal com gra- A situação financeira da tia continuava usou a palavra pègre, algo como “ralé”. comentamos a aula magna e a afinida-
des douradas. Meu pai desce, volta e abre a se deteriorar. Ela decidiu reorganizar sua Monteil irrompeu com virulência: La de entre a obra de Coutinho e os fósseis
o porta-luvas, de onde tira um revólver. vida. Mudamos para um apartamento mo- pègre n’existe pas, madame. Olga ficou narrativos. Chegamos ao aeroporto e a
A mãe dele grita: “André, lembre-se que desto, ela fez planos de se casar novamen- chocada com sua falta de educação. Air Canada anuncia que nosso voo está
você tem dois filhos.” Meus avós, meu te. Um candidato se apresentou como Meu pai tinha uma pequena fábrica, atrasado. Mais um tempo. Air Canada
irmão e eu ficamos esperando. industrial, o que a encantou, pois nossa antes da guerra. O que produzia? Sabi- anuncia que o voo foi cancelado. Novo
época era a da indústria. Como se não bas- na não lembra onde anotou. Eram reló- voo no dia seguinte às oito. Air Canada

E
m 1948 meu pai saiu de Paris para tasse, o industrial se dizia conde. A condes- gios? Fechaduras? anuncia check-in às cinco. No aeropor-
o Brasil. Sua nova mulher, Olga, e sa resolveu oferecer um jantar e fez questão Jean-Claude: Uma comissão de mili- to não se pode fumar.
seus filhos mudaram para Nice. de abrir a porta ela mesma. Viu-se dian- tares alemães chegou até ele. Meu pai Descemos, deve ser possível encontrar
Lá vivia uma tia ou tia-avó de Olga que te de um homem pequeno e de elegância deveria entregar os objetos de precisão um pátio, um jardim, sei lá. Achamos
nos hospedaria até meu pai conseguir esforçada. A impropriedade no uso dos co- que fabricava. Se recusasse, podia ser fu- uma porta que abre pra fora. Coutinho
dinheiro para as nossas passagens. pos e dos talheres completou o naufrágio. zilado. Pediu cinco dias e sumiu. Depois fuma. Dentro, umas poltronas. Pela vi-
Fomos recebidos num suntuoso apar- Não sei se houve alguma conversa pes- houve um julgamento, ele foi inocenta- draça, observo Coutinho que de vez em
tamento. A tia era condessa, na juventu- soal sobre o estado das fortunas, em todo do, mas seus bens foram embargados. quando entra pra se esquentar, cheirando
de foi professora de piano das filhas do caso a condessa desistiu de seu projeto. Heloisa Jahn:1 A fábrica dele foi de- a fumaça fria; convenço Coutinho de
presidente [alemão] Hindenburg (Olga O dinheiro não chegava, e Olga tenta- sapropriada, é isso? que está na hora de subir e pegar a fila.
dizia: “A corte do Kaiser”). Seus três ma- va convencer a tia a se mudar para o Bra- Jean-Claude: Não sei exatamente. Nem pensar deixar Coutinho embaixo.
ridos tinham falecido. Enquanto visitá- sil. A condessa brincava de pronunciar: Meu pai não dava explicação. Instala sua mala perto de uma parede,
vamos a residência com seu salão Luís xv “Sa-o-pa-o-lô.” Finalmente Olga a con- Heloisa: Por que ele foi julgado? não é suficiente pra escondê-lo, ajeita ma-
e outro salão à moda árabe, aproveitei vence, a condessa paga, mas fica na Fran- Jean-Claude: Depois da guerra, não las de outros passageiros, deita e fuma.
para fugir. Não queria morar sem meu ça. Embarcamos em Marselha num dia sei bem... Meu pai era presidente de um Donde vem essa fumaça? Agitação, dois
pai e com Olga – ela que, desde o pri- quente. Eu estava com o pescoço inchado tribunal que julgava colaboradores. A his- funcionários chegam correndo com uma
meiro encontro em Paris, nos obriga- pela caxumba. Olga (agora Mamãe) re- tória não é muito precisa. cadeira de rodas. Coutinho na cadeira.
ram a chamar de Mamie. ceava que a polícia descobrisse e nos im- Heloisa: Tem um escuro aí na sua Feito o check-in, dançamos com a cadeira
Corri em direção ao mar e andei pedisse de viajar. Ela me cobriu com um cabeça. no gigantesco túnel de Richard Serra, às
pela Promenade des Anglais. Ir aonde? passa-montanhas, mas receava que a polí- gargalhadas. A saga acabou. Quer ir ao

T
Fazer o quê? Já noite encontrei o cami- cia desconfiasse por causa do calor. rabalhei na biblioteca da Cinemateca duty-free, compra um perfume ou um len-
nho de volta. Não fui castigado, imagino Meu pai alugou um sobrado na Vila Brasileira. Do corredor, a sala de Paulo ço pra mulher, pro filho um brinquedo.
que por conta do susto que elas leva- Mariana, que mamãe grafava “Villa” Emílio Sales Gomes ficava à esquer- “Não sabia que tinha filho pequeno.”
ram. Elas exclui meu irmão, vai ver ele para evitar que suas amigas pensassem da. A relação de amizade já existia? Por “Não, ele tem 38 anos. Meu filho
levou um susto ainda maior. que cometia um erro de ortografia. timidez, eu tinha dificuldade de aceitar. tem problemas.”
Uma rotina foi se instalando, vieram as Meu pai não aguentou o status do bair- Embarcamos. Oito horas: nada; 8h15:
festas de fim de ano. Tensões foram se ro e nos mudamos para Socorro, perto 1 Heloisa Jahn (1947-2022), tradutora e editora, tra- nada; 8h25: Coutinho se revolta contra
balhou na Brasiliense, Companhia das Letras e Cosac
acumulando. O dinheiro de meu pai não da Represa Billings. Naify. Traduziu, entre outros, Julio Cortázar, Jorge Luis
chegava nunca. Olga se irritava, a condes- Olga passou de sobrinha de condessa Borges e Charles Dickens. Interrogada duas vezes du- 2 Eduardo Coutinho (1933-2014) é um dos principais
sa a proibia de usar o título: “Se ela tem o a cozinheira e lavadeira na periferia de rante a ditadura militar, autoexilou-se na França e em
outros países, entre 1970 e 1977. Foi dela o projeto de
documentaristas do cinema brasileiro. Dirigiu, entre
outros, Cabra marcado para morrer (1984), Edifício
direito, por que eu não?” A situação finan- uma grande cidade latino-americana. memórias de Jean-Claude Bernardet. (N. R.) Master (2002) e Jogo de cena (2007). (N. R.)

76
4 de 4 26/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS

ANDRÉ DAHMER_2023
a Air Canada. Peço pra ele se acalmar, As meninas já eram alfabetizadas.
não urrar. Escrevíamos histórias: “Eu invento a
Por que tive esse comportamento? primeira frase, você a segunda, sua
Por que me comportei como um cida- irmã a terceira.” O pai, ou o avô, tinha
dão bem-educado? Por que tomei as fugido da Espanha por motivos políti-
dores da companhia e dos passageiros cos. Não sei como meu pai conhecia o
irritados? Sempre fui do lado do Couti- operário espanhol.
nho e do fumante. Uma vez Rudá4 me visitou, acompa-
nhado de Lucilla.5 Depois veio só Lu-

N
o 1º de abril de 1964, em São Paulo, cilla. Meu pai passou para saber como eu
os que queriam agir circulavam em estava, fiz um relatório. Quando mencio-
volta do Teatro de Arena, esperando nei Lucilla, ele me acusou: “Você, claro,
receber informações. Durante muito tem- a acompanhou até a rodoviária.” Outra
po... No fim da tarde, cansado, resolvo ir incompetência para a clandestinidade.
para a casa do meu pai tomar banho. Che- Rudá me buscou no sítio para um teste.
go lá, numa espécie de vestíbulo ele me O carro chega à Rua Sete de Abril,
diz: “Cecília Guarnieri3 acaba de telefo- no Centro de São Paulo, e para na porta
nar, você foi procurado na Cinemateca, dos Diários Associados. Os elevadores
foi procurado na Última Hora, foi procu- ainda funcionam. Desligaram. Saí do
rado no Teatro de Arena e na Maria Antô- carro escoltado e me precipitei no único
nia [onde ficava a Faculdade de Filosofia, elevador ainda ligado. Quando a porta
Letras e Ciências Humanas da usp].” se abriu, fotógrafos dispararam seus fla-
Meu pai, agressivo: shes. Rudá tinha avisado os jornais e
“E agora?”. Eu: “Não sei”. Levo uma solicitado que espalhassem minha cara.
puta bronca: “Vocês não estão prepara- Fui ao palco e iniciei uma palestra sobre
dos pra virar clandestinos. Não têm ne- [o cineasta Sergei] Eisenstein. Estava
nhuma experiência, são amadores.” tremendo. Meu sotaque, já forte, se
Flashback: pequeno regresso ao pe- acentuou e dificultou a compreensão do
ríodo antes do golpe. Na célula que eu que eu dizia. Assim que acabei, me es-

Q
frequentava, o representante do Partido coltaram até outro elevador, em outra mesmo lembrando muito bem quem uando era adolescente, eu me
[Comunista] diz que somos convidados ala do prédio. A projeção de Alexandre era. Tempos depois visitei essa pessoa, perguntava: “O que será da mi-
a um encontro com [Luís Carlos] Pres- Nevski começou; eu já não estava lá. Es- já muito idosa. Falei da entrevista, dei- nha vida?” Tinha certeza de que
tes. Se arma o seguinte: numa determi- coltado, subi no carro. Voltamos ao sítio. xando claro que não revelei seu nome. acabaria maltrapilho numa calçada.
nada hora e lugar, passará um carro Essa provocação foi armada e execu- “Fez muito bem”, ela respondeu. Há poucos dias, um sujeito me para
para me levar. O.k. Vou no horário tada por Rudá. aqui no Copan. Diz que mora no blo-

U
marcado, há outra pessoa no ponto. Deixamos passar uns dias. A polícia m amigo veio nos ver, perguntou co B e me pergunta se sou fulano de tal.
Passa um primeiro carro. O motorista não reagiu. Lentamente voltei à tona. se Iara Iavelberg6 podia passar a Digo que sim:
me diz: “Sobrou uma vaga, quer apro- A volta lenta incluía não pôr os pés na noite em casa. O jantar foi anima- “Como o senhor sabe?” Ele: “Você
veitar?” Entro junto. Na casa, aperta- Cinemateca, recomendação de Rudá. do, Iara riu bastante. Ela saiu de madru- deu uma entrevista pro Goulart de An-
mos a mão de Prestes, um beija-mão, gada, não a ouvimos. Esqueceu uma drade, ele abria a porta do seu apartamen-

F
muitas pessoas etc. Aí chega um cara: rançois Truffaut veio a São Paulo meia-calça preta. Não servia em Lucilla. to dizendo: ‘Agora vocês vão conhecer
“Nunca mais faça o que você fez.” Está nos anos 60. Rudá ofereceu um co- Mais tarde, juntando os pedaços, um intelectual de verdade.’” Me espanto
furioso, mas civilizado. O que eu tinha quetel. Conversamos. Truffaut fi- pensamos que pode ter sido a última com a lembrança do sujeito. A entrevista
feito? Ele é que me pegaria, no horário cou impaciente. Falei da ditadura militar. noite da Iara em São Paulo. já tem uns vinte anos. Ele me explica:
combinado. Mas fui no carro anterior. Ele cheirou algo de esquerda em mim. “Sou químico, tenho boa memória.” Na

D
Improvisei, aproveitei a carona. Isso Ambos levantamos a voz. Meia-volta e se epois que fui cassado pelo ai-5, internet, encontramos o vídeo. A frase
não se faz. Fim do flashback. perdeu no meio dos convidados. Octavio Ianni e Fernando Hen- está lá, num programa da tv Gazeta.
Depois da bronca meu pai se acal- rique Cardoso me deram uma Goulart de Andrade para a câmera: “Vo-

H
ma: “Vou te esconder.” Já quase noite. á alguns anos dei uma longa entre- bolsa. O Centro Brasileiro de Análise e cês vão conhecer um intelectual maciço.”
Meu irmão era recém-casado, então vista a uma revista de ensaios mar- Planejamento, o Cebrap, já estava fun- Sou uma construção social. Valoriza-
meu pai planeja: “A polícia não deve ter xistas. Contei a eles do único dado, mas eu não tinha requisitos para do, homenageado. A sociedade precisa
esse endereço. Te levo ao apartamento encontro que tive com Carlos Mari- entrar. Bolsa de duração determinada, só construir referências culturais. E uma
dele, você passa a noite lá, e amanhã às ghella, quando se organizava a guerri- para sair do buraco. Fiz então uma pes- das referências que a sociedade construiu
cinco da manhã vou te buscar.” “Tá lha. Me levaram até um apartamento quisa sobre chanchada, que [a socióloga] fui eu. Meu amigo Calil7 diz: “Estamos
bom.” Chego à casa do meu irmão, lá nos Jardins. À entrada, alguém me disse: Fátima Jordão me disse não ser uma pes- sendo tombados.” Nós aqui falando, você
está ele com Alexandra, minha cunha- “Ele está na porta do fundo. Siga e abra.” quisa porque eu não tinha hipótese. está gravando, vai mandar isso para a edi-
da, e mais os pais e a avó dela. Todos Marighella me observou: “Com seu so- Fui ao festival de Viña del Mar. Em tora, a editora vai pagar todo esse traba-
russos. Russos brancos (o pai é príncipe, taque, esses olhos, esse cabelo loiro, você Santiago encontro Fernando Perrone, lho, sem saber o que de fato vai sair. Hoje
ela é princesa etc.). É uma festa, estão irá para Curitiba no setor de logística.” deputado exilado no Chile. Converso dei um passo notável: o Canal Brasil te-
celebrando a queda do comunismo no Respondi que precisava pensar. com ele sobre a possibilidade de obter lefonou e disse que gostaria de festejar o
Brasil. Festejando o golpe. Oferecem Não contei a Lucilla, ficaria preo- um emprego universitário ali perto. Ele meu aniversário na televisão. Pessoas e
uma taça ao recém-chegado. Então o cupada. acha possível e pede que eu lhe mande instituições me inventam.
filho (eu), em silêncio, ergue uma taça E eu, estava convencido? E o medo? minha documentação para a Universi- Às vezes sou sincero, realmente me
de champanhe em brinde ao golpe. À revista de ensaios marxistas, ocul- dade de Concepción. pergunto por quê. J
Às cinco, meu pai estava lá. tei o nome da pessoa que me levou, Em São Paulo, conto os planos a Lu-
Fiquei escondido num sítio. cilla. Ela me responde categórica: “Não Trechos extraídos de Wet mácula: memó-
4 Rudá de Andrade (1930-2009) foi diretor de cine-
Lembro da cozinha. Uma escada de ma e um dos criadores do Departamento de Cinema,
irei ao Chile. Vai acontecer o mesmo ria/rapsódia, que será lançado neste mês
dois degraus levava a um quintal arbori- Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes que aconteceu no Brasil.” pela Companhia das Letras.
(ECA), da USP, onde deu aulas. Com Paulo Emílio Sa-
zado. A mãe pôs uma mesa ali, da cozi- les Gomes, participou da criação da Cinemateca Brasi-
Estamos em 1969.
nha podia ver as filhas e eu brincando leira, da qual foi conservador e conselheiro. Era filho de
Oswald de Andrade e Patrícia Galvão, a Pagu. (N. R.) 7 Carlos Augusto Calil (1951-) é ensaísta, pesquisa-
de aritmética. 5 Lucilla Ribeiro (1935-93) foi professora de cinema dor e professor de cinema na USP. Foi presidente da
e literatura, tradutora e ensaísta. Atuou na Cinema- 6 Iara Iavelberg (1944-71) foi psicóloga e militante da Embrafilme, secretário municipal da Cultura de São
3 Cecília Thompson (1936-2019) foi jornalista, tra- teca Brasileira de 1966 a 1975, um período de grave extrema esquerda, companheira de Carlos Lamarca. Paulo e diretor da Cinemateca Brasileira. Atualmente,
dutora, atriz e mulher do dramaturgo Gianfrancesco fragilidade institucional. Foi casada com Jean-Claude Foi assassinada durante um cerco policial em Salva- é presidente do Conselho de Administração da Socie-
Guarnieri. (N. R.) Bernardet. (N. R.) dor, na Bahia. (N. R.) dade Amigos da Cinemateca. (N. R.)

piauí_novembro 77
1 de 5 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
ficção

ALISSA COMPRA A MORTE


Em algum lugar, ao longe, não desaparecia a ideia de que aquela felicidade duraria pouco

LIUDMILA ULÍTSKAIA

Para Tânia Rakhmánova nados de Alissa, e o medo de cair sob o Aos funerais de Marta compareceu eméritos, tiveram que pousar o lápis e
poder de outrem era mais forte do que os certa quantidade de ex-amantes e tam- começar a dominar aflitivamente um

Q
uando a vida foi levada à per- demais medos característicos das mulhe- bém o último, que a largara e assim programa que cumpria ordens de for-
feição, veio a velhice. O último res: o medo da solidão, ou da falta de fi- assentara-lhe o golpe mortal. Eles des- ma precisa: “Erguer caneta, baixar ca-
toque a custar caro foi uma lhos, ou da pobreza. Sua mãe, Marta, que carregaram uma montanha de flores no neta, deslocar para o ponto...” – mas foi
pequena banheira, instalada ainda antes da guerra casara-se com um caixão fechado, e Alissa, aos 20 anos, de exatamente aí que Alissa deslocou-se
depois de longas reflexões e bus- oficial militar e tivera Alissa desse matri- encantos esquálidos e ainda não mani- para a aposentadoria.
cas. Alguns recomendaram um box de mônio, enterrou seu general e por todo o festos, desprezando e envergonhando- A parte mais feliz de sua vida prolon-
banho, mas Alissa rejeitou completamen- restante de sua jovem vida apaixonou-se se com a desmesura de sentimentos da gou-se por mais de dez anos: o valor da
te: o que há de bom em ficar de pé com e sofreu intensamente, até chegar ao hos- mãe, jurou que nunca seria, como ela, aposentadoria não era grande, mas Alis-
uma chuva caindo na cabeça? Outra coisa pital psiquiátrico. Estava sempre pronta a o brinquedo daqueles animais. E não sa encontrou um excelente bico para
é deitar-se na água quente, com uma al- deitar aos pés do amante da vez tudo de foi mesmo. Não foi um claustro pesado, complementá-la – três vezes por semana,
mofada de borracha sob a cabeça, e rolar que dispunha, inclusive o apartamento mas sim romances raros e insignifican- passeava com crianças no jardim públi-
com os pés macios duas bolinhas de plás- de general deixado pelo marido... tes que equipararam sua experiência de co, das dez até o almoço. E depois esta-
tico que picam de forma agradável... Após o rompimento com o último vida à de suas contemporâneas. va maravilhosamente livre. Ia às vezes ao
Alissa pertencia à rara estirpe de pes- amado, Marta deu cabo de si de uma for- Trabalhou como desenhista projetis- teatro, mais a concertos, ao conservató-
soas que sabem com plena clareza o ma indecorosamente literária: tendo ido ta, deleitava-se com a excelência de seu rio, travou lá conhecimentos interessan-
que querem e o que não querem de jei- previamente ao cabeleireiro e à manicu- próprio trabalho, sabia que ninguém tes e vivia a seu bel-prazer até que, certa
to nenhum. re, jogou-se embaixo de um trem. Essa no escritório conseguia traçar uma li- vez, sem mais nem menos, junto à
O sangue misturado, recebido da mãe, conduta insana da mãe paralisou comple- nha melhor do que ela. No fim do sé- otomana de seu apartamento, perdeu
meio báltico, meio polonês, desde a tenra tamente em Alissa a capacidade de qual- culo xx, apareceram os computadores, a consciência. Depois de ficar deitada
idade esfriou quaisquer ímpetos apaixo- quer autossacrifício vazio e infrutífero. e todos os desenhistas, mesmo os mais por tempo indeterminado, voltou a si e

78
2 de 5 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS

ARI HISAE_2023
Felicidade conjugal: o casamento foi firmado de forma quieta. Os cônjuges, que já não se queixavam da saúde, rejuvenesceram a olhos vistos. “Os ciclos hormonais recomeçaram”, ria-se o marido

estranhou o ângulo de visão: avistou era boa. Contudo, surgiu uma questão: a mãe lhe deixara. Pois lá poderia deixar se em vão que falassem todo tipo de coisa
uma xícara quebrada numa pocinha e se ficar doente? seu pó, colocar perto da cama e, quando a respeito deles – sabotadores, envenena-
fina, os pés da cadeira caída, o felpudo De cama? Com quem contar? chegasse a hora, ingerir... dores... Em suma, Alissa pediu à sua co-
tapete rubro-azul bem junto ao rosto. Alissa perdeu o sono. Não dormiu Não, ainda não será amanhã. Mas nhecida que a pusesse em contato com
Levantou-se com facilidade. O cotove- por algumas noites e depois chegou a está na hora de pensar. Para isso, a pri- seu primo para uma consulta médica.
lo contundido doía. Refletiu e chamou uma decisão genial. Muito simples: meira coisa de que precisava era encon- Em uma semana, veio o primo –
um médico. Mediram-lhe a pressão e quando se abatesse uma doença e esta trar um médico fiel, que receitasse esse Аleksandr Iefímovitch. Um homem
prescreveram-lhe comprimidos. E tudo se tornasse insuperável, poderia enve- pó na quantidade necessária. A tarefa triste e magro, com expressão facial in-
parecia como antes, com uma exceção: nenar-se. Preparar de antemão um bom não era simples, mas praticável... terrogativa. Entendeu que tinha sido
a partir desse dia, Alissa passou a pensar veneno, de preferência um soporífero, Alissa, depois do desmaio, vivia como chamado para uma consulta privada,
na morte. para tomar e não acordar. Sem qual- de hábito – passeava com Arsiúcha e Gá- mas Alissa o fez sentar à mesa, serviu-lhe
Não tinha nenhum parente decente quer manifestação estúpida, como as lotchka. Crianças queridas do prédio vi- chá. Ficou levemente perplexo, mas a
– os lituano-poloneses tinham se esvaí- que a mãe organizara em sua época. zinho, com uma mãe educada, não uma paciente era educada, de aparência mui-
do há tempos, devido ao desamor pelo Nada a ver, Anna Kariênina. Simples- boca-suja, mas uma professora de músi- to atraente. Mulheres assim nunca antes
poder soviético que o finado general re- mente tomar – e não acordar. E, desta ca que dava aulas de manhã, ocupando- tinham caído em seu campo de visão.
presentava. A estirpe do general, por forma, como que evitar a própria con- se dos filhos na segunda metade do dia. Em geral, não caía nenhuma já há
seu lado, não queria bem nem Marta, trariedade da morte... À noite, Alissa divertia-se como antes, muito tempo. Ele examinava os pacien-
nem sua filha Alissa, por motivos que Quando essa ideia passou pela cabeça mas não se esquecera do bom médico. tes exclusivamente do ponto de vista
todos tinham esquecido há tempos... de Alissa, ela ergueu-se de um salto da Conversando com uma de suas compa- médico. Há três anos se tornara viúvo,
Alissa tinha 64 anos. A saúde, caso cama e foi até a mesa – em algum lugar nheiras de teatro disso e daquilo, deu-se angustiava-se na solidão e não queria
não levasse em conta o desmaio, recor- havia uma caixinha branca de porcelana que ela tinha um primo médico. Judeu, nem ouvir as alusões dos parentes aos
dação inesperada da finitude da vida, para pó de arroz ou outro cosmético que ainda por cima. Ora, ora. Talvez não fos- danos de seu isolamento.

piauí_novembro 79
3 de 5 26/10/23 PROVA FINAL

A mesa estava nobremente posta,


CLUBE DE REVISTAS
de insônia, pedir soníferos e ele receitaria, a maçaneta da porta de entrada. O local
com xícaras finas de porcelana na toa- e ela juntaria umas dez, doze doses – estava escuro.
lha cinza de linho, os bombons eram quem poderia verificar? – e tomaria para – Permita-me... – ele veio atrás dela
pequenos, importados, e não os pesados dormir o sono eterno. na escuridão úmida da entrada.
Ursos no Bosque de Pinheiros. A pró- Encontraram-se, sem planejar, no Ela tateou o primeiro degrau com o
pria Alissa Fiódorovna era, como as xí- conservatório, em um concerto de Plet- pé no escuro, quase tropeçando. Ele
Eu de Você caras e os bombons, elegante, com uma nev,1 no intervalo, depois da suíte de pegou-a por trás, pelas costas.
boca fina que não sorria, cabelos claros, A bela adormecida, de Tchaikovsky, e Assim começou seu romance – uma
bem alisados. Ela serviu o chá e falou antes da sonata de Chopin. Alissa não o volta à juventude devido a um toque
de seu problema de forma direta: preci- reconheceu de imediato, ele a reconhe- casual, o primeiro beijo no escuro da
so de um sonífero forte, ademais em ceu já no primeiro segundo. entrada, a queimadura do inesperado,
uma quantidade que, depois de tomar, Ela estava no bufê com um copo de acendendo na alma de Alissa um senti-
eu não acorde mais. água, em pé, buscando com os olhos mento de plena confiança no homem...
Vermelho Depois de pensar um pouco e tomar uma cadeira livre. Aleksandr Iefímo- E Alissa confiara-lhe mais do que as
um pouco de chá, Aleksandr Iefímo- vitch cumprimentou-a de longe. Levan- mulheres confiam na juventude – não
vitch perguntou: tou-se, acenou de forma convidativa e a vida, mas a morte.
– A senhora tem alguma doença on- ela se sentou na cadeira que ele liberara.

C
cológica? Depois do concerto, ele foi acompa- omeçou o ano mais feliz da vida
12 – Não. Sou perfeitamente saudável. nhá-la até em casa. Enquanto eles ou- de Alissa. Aleksandr Iefímovitch
A questão é que quero partir saudável no viam música, caíra uma enxurrada. não destruiu aquele suave casulo
Direção Luiz Villaça
Com Denise Fraga momento em que tomar essa decisão. Poças frondosas cobriam toda a rua e o de solidão que ela tecera e no qual sentia-
Não tenho parentes que cuidem de mim Tchaikovsky de bronze sentava-se em se protegida. De forma surpreendente,
Sex às 21h00, Sáb às 20h00 e não tenho o menor desejo de desmoro- sua poltrona de bronze num pequeno com sua presença ele até reforçara essa
e Dom às 17h00 | TUCA nar em hospitais, sofrer e urinar em mim lago de água de chuva. O doutor tomou proteção. Como se a tivesse coberto com
mesma. Preciso de um soporífero que eu Alissa Fiódorovna pelo braço. Seu braço uma redoma. Mas o que espantava parti-
Nosso Irmão possa tomar quando essa decisão estiver era leve e firme, como o de sua esposa cularmente Alissa era a capacidade de
madura. Simplesmente quero comprar Raia, quando ele a acompanhara pela Aleksandr Iefímovitch de adivinhar-lhe
para mim uma morte leve. O senhor vê primeira vez na festa de formatura. E ele os gostos exigentes. Sem fazer qualquer
algo de mau nisso? caminhou, maravilhando-se com aquela pergunta sobre suas preferências, ele lhe
– Quantos anos a senhora tem? – de- sensação tátil há tempos esquecida. trazia maçãs verdes firmes e merengues
pois de uma pausa prolongada, o doutor “Eis um homem que não quer nada cor-de-rosa, bombons de sua marca favo-
fez uma pergunta absolutamente médica. de mim”, pensou Alissa, “sou eu que rita, lilases roxos, e não brancos, e queijo
– Sessenta e quatro. espero um favor dele...” de Kostromá. Tudo de que ela gostava.
– Está com uma aparência maravi- Eles falaram de Pletnev, ele lembrou- Alissa sempre fora sensível aos chei-
lhosa. Ninguém lhe daria mais do que se de Iúdina,2 observando que desde a ros, e todos os homens com que se rela-
50 – ele observou. morte dela era justamente Pletnev quem cionara cheiravam a ferro, a fumo ou a
– Eu sei. Mas não o chamei aqui representava aquele tipo de musicista bicho, mas aquele, o amante de sua ve-
para elogios. Diga-me com certeza, o que assumia o direito de uma leitura lhice, cheirava ao singelo sabonete in-
12 senhor pode me receitar o remédio ne- nova e pessoal dos clássicos da música. fantil com que lavava as mãos de médico
De Alejandro Melero cessário em quantidade suficiente? Alissa Fiódorovna compreendeu que es- antes e depois de todo exame de doente.
Direção Dan Rosseto O doutor tirou os óculos, botou-os tava conversando com alguém que per- O mesmo sabonete que Alissa sem-
Com Regiane Alves, Marina Elias diante de si e esfregou os olhos. cebia a música de forma profunda, como pre preferira a todos de morango e ou-
e Bruno Ferian – Tenho que pensar. Entenda, em prin- profissional, e não como ela mesma, tros aromas artificiais...
cípio, os barbitúricos são prescritos com uma ouvinte superficial. Aleksandr Iefímovitch, que passara
Sex às 20h30, Sáb às 21h00 receitas especiais... é um caso sujeito à lei. Ele a conduziu com segurança até a vida inteira com uma mulher podero-
e Dom às 18h00 | TUCARENA – E, neste caso, bem pago – obser- o prédio, encontrando sem dificulda- sa e exigente, de numerosas demandas,
vou, de forma seca, Alissa Fiódorovna. de, no pátio sem iluminação, o anexo de incansável nos desejos variados e mu-
MILTON • Mônica Salmaso – Sou médico e para mim esta é pri- dois andares, escondido nos fundos, tuamente excludentes, descobria pela
mordialmente uma questão moral. Ad- onde estivera uma semana antes. Ele primeira vez que, ao lado de uma mu-
e André Mehmari mito que é a primeira vez na vida que tinha um senso de orientação espacial lher, era possível ser livre do poder fe-
me defronto com uma proposta dessas. notável, tanto no bosque quanto na minino inesgotável. Da contida Alissa,
Terminaram de tomar o chá. Separa- cidade: era sempre fácil encontrar um tímida até nos momentos de intimida-
ram-se combinando que o doutor pensa- lugar que vira uma vez. Detiveram-se de, emanava uma gratidão silenciosa.
ria e ligaria para comunicar sua decisão. à entrada. No final da sexta década, ele se sentia
Agora era Aleksandr Iefímovitch Já tinham se despedido e ela decidi- não um assistente pessoal vitalício con-
que não dormia. Ela não lhe saía da damente não fazia a pergunta por causa tratado, mas um pródigo fornecedor de
cabeça, aquela mulher magra e esbran- da qual chamara-o à sua casa. alegria. E, nos momentos de ternura,
quiçada tão diferente de todas que ele Veio uma pausa incômoda, que ele chamavam um ao outro pelo mesmo
encontrara na vida. Muito diferente de interrompeu com a mesma expressão nome de adolescência – Alik.
sua esposa, Raia, alegre, de madeixas interrogativa que lhe era peculiar: Aleksandr Iefímovitch, que por mui-
onduladas a escaparem do penteado, – Alissa Fiódorovna, estou pronto tos anos trabalhara como neurologista
com a blusa sempre surrada sobre os para responder ao seu pedido de forma na policlínica da Sociedade Teatral
seios grandes, barulhenta, até escanda- afirmativa, mas queria voltar a isso de- Russa, tinha amplos contatos graças a
Com Mônica Salmaso e losa... e como fora torturante a partida pois, quando... – era evidente que esco- seus pacientes, e levava Alissa, no meio
André Mehmari de Raia, devorada pelo sarcoma, com lhia as palavras certas – quando as da semana, aos melhores espetáculos da
monstruosos acessos de dor não alivia- circunstâncias estiverem maduras. Até temporada, ao conservatório e, aos sába-
15/11 às 20h00 e 16/11 às 21h00 dos por qualquer morfina. então, assumo os cuidados da sua saúde. dos, ia à casa dela para jantares íntimos.
TUCA Durante uma semana inteira ele não Ela assentiu – ninguém jamais assu- Pela primeira vez na vida, Alissa não
conseguiu tomar uma decisão, todo dia mira seus cuidados e ela nem deixaria! fazia comida só para si...
preparava-se para ligar para aquela espan- Mas fora agradável ouvir aquilo. Ela es- A vida mudava, a idade recuava, e só
ingresso online tosa Alissa, porém não conseguia resolver tendeu-lhe a mão leve e firme, e pegou uma coisa inquietava: em algum lugar,
a questão moral que ela lhe propusera. ao longe, assomava e não desaparecia a
1 Mikhail Pletnev, destacado pianista e regente rus-
Uma mulher direta, honrada, digníssima! so da atualidade.
ideia de que aquela felicidade não pla-
Pois não lhe teria custado nada queixar-se 2 Maria Iúdina (1899-1970), legendária pianista russa. nejada duraria pouco tempo.
Mais informações
Rua Monte Alegre, 1024 - Perdizes
(11) 3670-8456 | 3670-8455
80
www.teatrotuca.com.br
4 de 5 26/10/23 PROVA FINAL

Alissa sabia que, depois da morte da mãe, quando suas colegas de classe e
CLUBE DE REVISTAS
antigos pacientes, da ex-Leningrado, satisfizera. Ele conseguira se esquecer
esposa, ele vivia com Marina, filha caçula contemporâneas já tinham arrumado frequentador daquele local. Ele estava do que se tratava. Do soporífero...
e solteira, que não era completamente sau- maridos, filhos e amantes, se separado e sentado com uma vara de pesca, sono- – Alissa, Alinka, por quê? Mas por
dável e nem plenamente bem-sucedida. voltado a se casar, de modo que ela não lento, na esperança infrutífera de fisgar que agora?
Ánia, a mais velha, saudável e bem-suce- tinha noção de como os adolescentes na água, se não um lúcio, pelo me- – Especialmente agora – sorriu Alissa.
dida, há muito tempo vivia à parte, com o escondiam seus romances dos pais. Sua nos uma perquinha; ficou contente ao – Não entendo...
marido e os dois filhos em idade escolar. mãe, Marta, nem pensara em esconder ver o doutor e, ao saber que ele estava – Porque isso vai acabar... e quero
Por todo inverno encontraram-se co- seus romances de Alissa, todos eles esta- pela primeira vez naquele lugar, pôs- estar pronta para isso.
mo adolescentes apaixonados, e no verão vam abertamente à mostra, e Alissa so- se a mostrar-lhes a antiga Kellomäki.4 Ele já sabia que não fazia sentido
foram descansar a dois, perturbando os frera com as ruidosas paixões maternas. Guiou-os por todo o povoado, mostran- discutir com Alissa.
planos da filha caçula, acostumada a pas- Tudo que Alissa deixou de ter na do as velhas dachas finlandesas, as que – É uma loucura. Mas concordo.
sar as férias de verão com os pais. juventude desabou sobre ela na ida- não tinham sido levadas desmontadas Alissa tirou da gaveta da mesa a cai-
Mas Aleksandr Iefímovitch não con- de avançada, e ela constrangia-se de para a Finlândia quando aquele territó- xinha branca de porcelana e estendeu-a
fiou a Alissa esse conflito desagradável leve em sua situação de amante, es- rio passou para a Rússia, conduziu-os à a Aleksandr Iefímovitch:
com a filha. Ele comprou dois vouchers pecialmente pela manhã, quando eles casa de Shostakovitch, à cabana de – Ponha aqui.
para Komarovo e, no meio do verão, desciam ao refeitório, onde estavam Akhmátova, renovada e pintada em cor Isso era uma certa mudança de
quando as noites brancas já começa- sentados quase exclusivamente casais verde viva, à dacha do pouco conhecido consciência, mas não dava para fazer
vam a arrefecer, e o calor gelado de envelhecidos, cansados há tempos da acadêmico Komarov e do acadêmico nada a respeito.
Píter3 era infatigável, eles chegaram à vida conjugal. Pavlov, conhecido de todos... – Está bem, está bem. Mas primeiro
Casa de Criação. Depois do café da manhã eles saíam Caminharam por três dias com esse nos casamos. Depois eu ponho – vai ser
Tinham quartos separados, em ex- em longos passeios, por vezes saltando guia voluntário de excursão, e depois se o presente de núpcias.
tremidades diferentes do corredor, e o almoço, regressando apenas ao anoi- separaram dele e perambularam pelos Ele riu, ela nem sequer sorriu em
ambos se divertiam com as visitas no- tecer. Era a primeira vez em que ambos bosques ralos de pinheiro, colhendo resposta.
turnas mútuas. estavam naquela terra finlandesa, pou- mirtilo e framboesa ácida... – Esse casamento... É para fazer as pes-
– Alik, somos como colegiais se es- co sabiam da história e geografia da- Os 24 dias do voucher prolongaram-se soas rirem? E o que vão dizer suas filhas?
condendo dos olhos dos pais – ria-se queles lugares, e vagavam a esmo, ora infinitamente, e nestes dias longos e noi- – Isso não tem nenhuma importância
Aleksandr Iefímovitch quando Alissa através das dunas, para dar numa praia tes curtas aproximaram-se tanto quanto – ele respondeu, e ficou pensativo. Para
abria-lhe a porta do quarto, depois de arenosa, com raros penedos, esquecidos se tivessem vivido anos em comum. a caçula, desajustada, de psique instável,
uma batida débil e ritmada. na encosta na Era do Gelo, ora embre- Quando eles voltaram a Moscou, aquilo de fato podia ser um golpe...
Alissa respondeu a piada apenas nhando-se no Lago Shhuchye, onde era Aleksandr Iefímovitch fez uma propos- No outono, logo depois do aniver-
como um sorriso enigmático: seu pri- bem mais agradável de se banhar do ta de casamento a Alissa. Ela ficou ca- sário de quando se conheceram, Alek-
meiro e flácido romance da vida suce- que no Golfo da Finlândia, recoberto lada por um bom tempo, depois lhe sandr Iefímovitch completou 70 anos.
dera cinco anos depois da morte da de uma espécie de lodo pardo. relembrou de seu pedido, que ele não No trabalho, organizou um modesto chá,
No lago, Aleksandr Iefímovitch en- recebeu de presente dos colegas uma
3 São Petersburgo. controu um ator famoso, um de seus 4 Nome de Komarovo até 1948. nova pasta de couro, que se distinguia da

ENTREVISTA

MCKENZIE
WARK,
ESCRITORA
AUSTRALIANA:
“O Brasil tem
uma tradição de
travestis própria
ano 26 • novembro 2023 • edição 299 • R$ 30,00 • revistacult.com.br
e poderosa.
A questão
da cultura trans
é estarmos em
todos os lugares,
mas de formas
HISTÓRIA
diferentes”

Releituras da
História do Brasil
e da África e
os 20 anos de
um pacto por
uma educação
antirracista
Nas bancas,
DOSSIÊ livrarias e em
EXISTÊNCIAS TRANS, SIM cultloja.com.br

cultrevista revistacult

COLUNA
revistacult.com.br
MARCIA TIBURI
O homem branco:
Análise de uma forma
social e prognóstico
piauíextinção
de uma _novembro 81
5 de 5 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
Aleksandr Iefímovitch cumpriu a pro- Reuniram alimentos para a partu-
messa: a caixinha de porcelana, cheia riente – kefir, leite, bombons e um peda-
de um pó branco granuloso, estava na ço de queijo. Ele saiu de casa, teve sorte
mesa, atrás de uma pilha de papel de na floricultura mais próxima – tinham
carta, envelopes e passagens velhas. trazido justamente os lindos jacintos de
Aleksandr Iefímovitch inseriu-se com que Alissa gostava, e ele comprou uma
espantosa delicadeza no apartamento de braçada inteira para a filha e as enfer-
Alissa, não perturbando nada por lá, mas, meiras. A vendedora fez-lhe um buquê
pelo contrário, consertando solidamente em papel de presente. Ele saiu para a rua
tudo que estava colado com esparadrapo vazia na hora parada de depois do almo-
ANDRÉ DAHMER_2023

e pendurado em barbante. Ele fixou a ço, com as flores e o pacote de plástico


ponta solta de um lustre, trocou uma boca de comida. No ponto de ônibus havia
de fogão que não funcionava há tempos, uma multidão rala. Postou-se a uma cer-
e fortaleceu-se em Alissa a vaga sensação ta distância, para que as pessoas que se
de que sua profissão médica consistia em empurravam não machucassem os lin-
curar tudo que tocava. Sem qualquer aju- dos jacintos quando o ônibus viesse.
da externa, desabrochou uma flor na jane- Nesse momento, um carro preto que
la, onde isso nunca ocorrera antes. ia pelo meio da rua em alta velocidade
Os cônjuges, que antes já não se bateu em outro, igualmente grande e
queixavam da saúde, rejuvenesceram preto, e jogou-o na calçada. O carro
visivelmente. chocou-se com um poste de luz, atingin-
– Os ciclos hormonais recomeçaram do três pessoas no caminho. Uma, com
– ria-se o marido. um buquê de flores, mortalmente...
À primavera, deu-se mais um evento À noite, Alissa ligou para Pritzker.
imprevisível e improvável: Marina, a fi- Ele disse que tudo estava em ordem com
lha caçula de Aleksandr Iefímovitch, de Marina e o bebê, mas que Aleksandr
40 anos incompletos, engravidara. Seu não havia chegado. Alissa começou a te-
defeito congênito – fenda labial e pala- lefonar. Em quinze minutos, informaram
tina, e as pequenas cicatrizes faciais de a Alissa que seu marido encontrava-se na
uma operação plenamente bem-sucedida morgue. Tinham tentado localizar sua
antiga apenas pela troca do número da Alissa estava impecável, e sabia dis- – deformara-lhe mais o caráter do que a família o dia inteiro, mas ninguém aten-
placa de prata – 70 em vez de 60. so. A blusa de seda cor de tabaco estava aparência. Desde a infância, fugira de deu ao telefone no endereço residencial.
Para família e amigos, reservou um envolta em um leve cinto de couro, e qualquer tipo de companhia, escolhera a Era o fim. “Sim, sim, eu estava espe-
jantar no restaurante Âncora. Alissa não sua cintura fina era a única cintura den- profissão de revisora, na qual lidava exclu- rando algo assim.” A caixinha de porce-
queria ir. Ele insistiu – seria a melhor oca- tre as figuras em forma de barril de sivamente com textos, e não com pessoas. lana da mesa...
sião para conhecer suas filhas. Аleksandr todas as outras damas. Os convidados A circunstância de ter conseguido engra- Na manhã seguinte, Alissa começou
avançava, Alissa recuava. Ele a apresen- ficaram algo aturdidos, mesmo as fi- vidar deixou o pai pasmado. Contudo, ele pela maternidade – levou a Marina lei-
tara antes para seus amigos próximos, os lhas, previamente advertidas de que o logo ficou alegre, entendendo que não te, kefir e queijo. Depois foi à morgue.
colegas de colégio Kóstia e Aliona, e os co- pai convidaria sua amiga. Mússia Tur- deixaria a filha sozinha, mas com uma Os funerais estavam atrasados devido à
legas de universidade, o doutor psiquia- man perdeu o dom da fala – fitava aque- criança, que poderia substituir para ela o perícia médica.
tra Tobólski e o doutor obstetra Pritzker. la pessoa com os olhos da falecida Raia, mundo inteiro, considerado hostil. Comunicaram a Marina a morte do
A família era a última fronteira. e sentia-se ofendida. Alissa meneou a cabeça de forma pai apenas três dias depois. Ela começou
Depois de certa hesitação ele convi- – Aguada e sem sal – sussurrou a indefinida: tinha suas próprias conside- a ter psicose aguda, e o segundo amigo de
dou a prima que os apresentara e Mússia Ánia. Mas Ánia não a apoiou. rações referentes à procriação, mas não Aleksandr Iefímovitch, o professor Toból-
Turman, amiga mais íntima da finada – O que é isso, tia Mússia, é uma considerou necessário compartilhá-las ski, colocou-a no Instituto Káschenko.
esposa. Era um gesto arriscado, porém mulher até muito interessante. E a es- com o marido. Ainda mais que suas Enquanto isso, a menina ficaria na mater-
estrategicamente irrepreensível. Fazia os tampa dela... considerações há tempos tinham perdi- nidade... Ánia, a irmã mais velha de Ma-
preparativos para uma frente ampla. – Que estampa, que estampa? – bu- do qualquer atualidade. rina, não podia levar o bebê – insurgira-se
Alissa hesitava. Fez manha até o úl- fou Mússia, sussurrando. – Ela o levou Na época em que Aleksandr Iefímo- o marido, que não suportava Marina.
timo minuto, ora concordando em ir no bico e ainda vai mostrar a todos, vitch deu a notícia para Alissa, a gravidez, Duas semanas depois, a criança foi
àquela recepção, ora recusando. Já esta- você vai se lembrar de minhas palavras. que há meio ano arrastava-se na barriga levada da maternidade pela avó, Alissa
va há tempos acostumada a uma vida Mas o garçom já servira o champa- gorda, era imperceptível até para um Fiódorovna. Que sua felicidade com
de rainha: não lhe importava em abso- nhe, e o amigo Kóstia ergueu a taça... olho atento. Marina continuava sendo a Aleksandr Iefímovitch não seria longa,
luto se agradaria ou não aos que a rodea- Kóstia, grisalho, bochechudo, de for- tia gorda e obesa que fora na juventude. Alissa pressentira, mas, quanto ao bebê
vam – as rainhas não experimentam mato esférico, pôs-se a falar: que conhe- Quando se aproximou a hora do par- recém-nascido, nenhum pressentimen-
esse sentimento de dependência da opi- cia Sachka5 há 60 de seus 70 anos, que to, o pai colocou a velha parturiente de to se manifestou.
nião alheia... Daí se agitava, e imediata- se conheciam tão bem que às vezes não primeira viagem em uma boa materni- A menina vivia num carrinho, ao
mente sentia-se irritada consigo mesma. conseguiam discernir onde ficava a fron- dade da Rua Chábolovka, onde o chefe lado da cama de Alissa, que não queria
Aleksandr Iefímovitch convenceu-a teira entre seus pensamentos, que ele não era seu colega Pritzker. Levando em mudar-se para o apartamento mais es-
uma hora antes de sair de casa: você sabia há tempos quem dissera primeiro, conta idade e peso, resolveram fazer paçoso do finado marido. Lá havia su-
importa demais para mim, e não posso quem pensara primeiro, que eram mais uma cesárea. A operação foi marcada jeira, e uma banheira horrível, com
mais escondê-la. Além disso, preciso do que amigos e mais do que irmãos e para uma manhã de terça-feira. esmalte rachado, e a daqui era novinha,
preparar todos eles... que por toda a vida ele, Kóstia, iria atrás Aleksandr Iefímovitch ficou esperando de um branco reluzente.
E ela se rendeu. dele, mas jamais o alcançaria... e mais o telefonema do cirurgião, recebeu a in- Só meio ano depois Marina saiu da
Todos chegaram quase ao mesmo outras palavras, que eram todas lauda- formação de que tudo estava em ordem clínica psiquiátrica. Mas como seria
tempo, às sete e dez os convidados esta- tórias e, de certa forma, alegres. E no – a menina não tinha quaisquer defeitos possível confiar a pequena Aleksandra
vam sentados à mesa. final disse que estava feliz por ver Sa- ou, pelo menos, não tinha lábio leporino... àquela mulher mole, desmazelada, psi-
– Conheçam Alissa Fiódorovna – chka ao lado da mágica Alissa que viera Aleksandr Iefímovitch lembrou-se do hor- quicamente doente?
proferiu Aleksandr Iefímovitch, orgulho- até ele do País das Maravilhas. Alissa ror que experimentou quando a esposa A caixinha de barbitúricos estava na
so, e apresentou a amiga sucessivamente deu um sorriso frio... trouxe da maternidade a menina com um gaveta da mesa, mas Alissa já não po-
aos convidados: Ánia, com seu marido e Um mês depois, firmaram o casa- buraco triangular escancarado da boca ao dia utilizar o presente de núpcias do
os dois netos, Marina, Mússia Turman. mento de forma quieta e corriqueira. nariz. Agora suspirava aliviado. marido. Ou melhor, teoricamente po-
A seus amigos ele já conseguira apresen- – Bem, vamos à maternidade – dis- dia. Uma hora... quando as circunstân-
tá-la anteriormente. 5 Diminutivo de Aleksandr. se a Alissa. cias estiverem maduras... J

82
1 de 1 25/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
poesia_JORGE AUGUSTO

BIOGRAFIA OBITUÁRIO PARA PEDRO GONZAGA

meu pai apostava o feijão no futebol um peixe fora d’água morre


tinha drible ligeiro, batia forte na bola de asfixia um homem não
um homem negro se debate
eu apostei a vida no poema morre de asfixia fora d’água
nas promessas que ele inventava homens brancos respiram, não
morrem de asfixia fora d’água
cada um escolhe o deus
que nos salva e condena peixes e homens negros devem
respirar, viver debaixo d’água
nunca acertamos um milhar mas essa água não é rio ou mar
nenhuma pule premiada aberto oceano onde navegam
é água de criadouro ou aquário
não houve livro na lista dos mais onde moram num estreito 3x4
vendidos nada no jogo do bicho
para não morrer de asfixia vivem
no fim sobramos dois vagabundos no aquário: Avenida Peixe, Lagos
esperando explodir o fim do mundo Ilha de Maré, Prainha do Lobato
mas os peixes pretos não podem
ele cansou, partiu primeiro, enquanto sair do aquário senão morrem
eu vou indo, de domingo a domingo asfixiados se debatendo no asfalto

pagando o preço do precipício que


é viver sem ter mais nada a perder.

ALEXANDRE ALVES_2023
BURACO NEGRO

esqueço que estou nesse buraco


imenso porque posso deixar
o corpo fazer seus movimentos

básicos uma estirada de braço


ir e vir em linha reta, ziguezaguear
numa pequena perpendicular
O POEMA NO FIM DO MUNDO
girar em torno do próprio eixo
sem sair do lugar, fazer peque- o poema nasce inimigo de si mesmo
na série de exercício muscular ateu como uma criança, o tempo é seu deus,
não faz promessas, nunca se converteu
nada que extrapole os poucos
passos demarcados, ou que ame- vive em rebelião contra o próprio corpo
ace romper fronteiras do espaço bonito e morto como buquê de floricultura
trair-se em eterno adultério é o único remédio
não consigo ver a saída, o ponto
de fuga e parece que quanto mais para o fim do mundo, curar o
me movo mais afundo o buraco poema das ladainhas de luto e de luta
em luta está sempre em guerra
cavo involuntariamente essa cela SEM NOME
que me soterra como uma planta com todo o resto, contra tudo que existe
como grão que morre na promessa a marca de nascença rebelde sem causa própria, bélico, babéli-
no peito do pé co, lírico e bandido todo poema é o ruído
nesse buraco sou o cabelo a unha
e o osso, o que sobrou do sonho na mão esquerda uma cicatriz que resta após o fim da festa, tagarelando
porta-retrato intacto sob o escombro que ganhou empinando arraia para surdos, como um robin hood tenta des-
esperadamente fazer o fim desse mundo.
rosto desfigurado, resto e rastro
de um corpo sem nome o poema é tudo que resta da nossa tragédia
entende que não pode salvar nada, nenhuma
só os pais o reconheceriam criança ou idoso, não há mais consolo algum
no detalhe dos traços
ele tenta prolongar o fim: último recurso,
no b.o.: homem negro, de estatura sabe que a linguagem é um deus sem milagre, mas
baixa, franzino, aparentando 9 anos recusa o luto no sacrifício eterno por outro mundo J

piauí_novembro 83
1 de 2 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
cartas_novembro

elementos que beiram a teoria da cons- tiça? Só para quem não se deixa levar conhecido como Anschluss, quando
1 de 1 28/9/23 PROVA FINAL V3

piauí outubro 2
023 ★ 17 anos
_ 205
piração. Sem contar a versão cinema-
tográfica para a passagem de Mengele
pela bela literatura de Araújo. Dito isso,
bom saber que Teerã, Ramalá e Doha
então Hitler anexou a Áustria. A aquisi-
ção da referida obra, à venda num sebo
A equilibrista
pela América Latina, interpretado por terá vaga na sua estante! belga, já renderia uma história notável,
Gregory Peck em Os meninos do Brasil, uma proeza que demonstra todo o amor
Consuelo Dieguez investiga como
Simone Tebet saiu de um estado
bolsonarista para o governo do PT

Os bancos mandam notícia


Denyse Godoy mostra como eles estão
dominando o noticiário econômico baseado no livro de Ira Levin. Deixan- CANCELAMENTO de André Rosa pela obra de Carpeaux,
O amigo americano
Brian Winter conta o que a guinada
“petista” de Biden significa para o Brasil do de lado a ascensão do neonazismo A matéria Está tudo dominado (piauí_205, que em 1939 emigrou com sua mulher
em tempos correntes, é direta a cone- outubro) trata de jornalismo tendencio- para o nosso país.
O médico e o assédio
João Batista Jr. relata denúncias contra
um clínico conceituado de São Paulo

xão do trabalho de Betina com a obra de so, tema que orienta o cancelamento da Judeu, seu nome de família, Otto
O dono da música
Como o Spotify está monopolizando
nossos ouvidos, por Daniel Cohen

Otto Maria Carpeaux, resgatada por An- minha assinatura da piauí, depois de mui- Karpfen, adotou o Maria quando se
Um livro raro de Carpeaux
André Rosa encontra obra do crítico,
de 1938, num sebo da Bélgica

E mais:
Oito pinturas abrasivas de No Martins
Allan de Abreu e o destruidor da Serra do Curral
dré Rosa (A ruína de uma nação), por tos anos. converteu ao catolicismo. Ao emigrar,
meio de uma aventura em busca do li- Eu sairia calado, mas a matéria acen- alterou o sobrenome para Carpeaux,
Sobre a última entrevista de John le Carré, por Alejandro Chacoff
Um trecho de Admirável Novo Mundo, de Bernardo Esteves
Diário do Geraldo: “Acordei estupefato e berrei.
‘Macacos me mordam! Lula é o Sr. Miyagi’”

piauí_205_R$ 32,00_ano 18_outubro_2023


00205
vro perdido que é uma obra à parte. deu o desejo de manifestar meu descon- pois a política de Vargas, principalmen-
2
Para mim, Carpeaux integra o conjunto tentamento sobre as posições políticas te a partir de 1935, restringia a entra-
de personagens políticos e literários que da revista. da de judeus no país, pois havia grande
iniciaram na química e revelaram o po- Acredito que as críticas da revista ao aproximação com os alemães. Embora
der transformador dessa ciência ou a governo Bolsonaro foram e continuam tivesse enorme bagagem cultural e fa-
forma de reagir à sociedade por meio da pertinentes. Mas a campanha acabou lasse diversos idiomas, nada conhecia
QUESTÕES MINERAIS química. A ele somam-se Primo Levi, e seguir tratando o governo Lula como do português. Foi enviado para uma fa-
Quero parabenizar o jornalista Allan de obviamente, Anita Leocádia Prestes, bom, ou isento de críticas, é uma posi- zenda no Paraná, depois para São Paulo
Abreu por mais essa reportagem-denún- Angela Merkel, Euclides da Cunha e ção deveras equivocada. Trata-se de um onde enfrentou enormes dificuldades.
cia: O predador (piauí_205, outubro). Franz Kafka (sim, o tcheco iniciou na grupo político com fortes denúncias Assim como outro judeu que fugiu do
Pra mim é muito difícil ler e consta- química e depois mudou para o direito, de corrupção em gestões anteriores e nazismo durante a guerra, o húngaro
tar o que o Brasil continua fazendo com fazer o quê!). Carpeaux é mais um des- que, no governo atual, já é merecedor Paulo Rónai, manteve contato com inte-
seu patrimônio ambiental, isto é, des- ses personagens que iniciaram seus de críticas à altura de sua postura per- lectuais como Álvaro Lins e Alceu Amo-
truindo-o. É muito chocante saber que estudos ou atividades na ciência e con- dulária e desrespeitosa com os esfor- roso Lima, que lhe abriram caminhos
a emergência climática está aí, na nos- seguiram contribuir um pouco mais pa- ços dos contribuintes. na imprensa, pois rapidamente apren-
sa cara, e vemos governos e prefeituras ra a humanidade do que a conservação São irritantes os frequentes excessos deu nossa língua e apossou-se de nos-
deixando correr soltos os crimes ambien- da matéria ou o estabelecimento do equi- no posicionamento político da revista, sa cultura. Nacionalizou-se em 1959 e
tais promovidos pelos canalhas que só líbrio dinâmico. Ainda que nem todas manifestam-se como se houvesse o ban- escreveu diversos livros abrangendo di-
querem o lucro imediato e a qualquer as interconexões das reportagens sejam dido e o mocinho nas atuais lideranças versos campos, mas principalmente a
custo, mesmo se esse custo for a invia- evidenciadas, que “quimiquemos” a políticas, sendo que ambos são absurda- crítica literária. Em 1947 escreveu a mo-
bilidade da vida neste planeta. Vemos vida, pois. mente terríveis, cada um à sua própria numental História da literatura ociden-
os órgãos públicos, que foram feitos p.s.: Em resposta à “Nota melancóli- maneira. Por esse motivo, declino de tal, oito volumes abrangendo milhares
pra proteger nossas matas, rios e monta- ca da Redação”, no que pese vocês ale- seguir assinante e tenho buscado os de escritores, de Homero até a literatu-
nhas coniventes com a criminalidade, garem que aqueles tenham sido os livros conteúdos desejados em mídias mais ra moderna.
deixando passar a boiada. Eles sabem mais citados, não há espaço em minha isentas dessa paixão bandida. Esse grande mestre, que enriqueceu
que não serão punidos quando se aliam biblioteca para escritos de negacionista Agradeço o serviço prestado por to- nossa cultura, morreu em 1978, aos
aos que têm uma única pretensão na criminoso e, até em função dos aconteci- dos esses anos e que sejam felizes. 77 anos, vivendo conosco quase qua-
vida: extorquir a terra e pilhar suas ri- mentos recentes, Teerã, Ramalá e Doha: MARCELO DE CARVALHO TRINDADE_SÃO PAULO/SP renta anos, também foi um crítico e
quezas a qualquer custo. É muito difícil memórias da política externa ativa e al- resistente da ditadura militar, com suas
viver nesse país. tiva, também citado na piauí, é muito nota estupefata da redação: Mas análises precisas de nossa realidade po-
VALÉRIA BORDIN_FLORIANÓPOLIS/SC mais adequado para ocupá-lo. a redação toda votou no Padre Kelson! lítica, devido à sua enorme experiência
ADILSON ROBERTO GONÇALVES_CAMPINAS/SP Quer dizer, Kelvin! Quer dizer… En- com o fascismo europeu. A publica-
OUTUBRO fim, no candidato padre! ção de O fim da canção, capítulo do
Há sempre uma teia costurada entre as nota estatística da redação: Adil- livro desenterrado de um sebo belga
reportagens da piauí, algumas vezes de son, só queremos deixar claro que não CARPEAUX por André Rosa, é uma bela homena-
forma explícita, em outras, clamando estávamos sendo irônicos quando ale- A edição comemorativa dos 17 anos da gem à memória de nosso grande Car-
por um exercício “sherlock-poirotia- gamos que os livros Xarab fica, A porta piauí, além de substancial pelo número peaux, que tanto amou nosso país.
no” de descoberta. Na edição 205, o de Mogar e Quatro 3 estiveram entre os de páginas, destaca-se, também, pela DIRCEU LUIZ NATAL_RIO DE JANEIRO/RJ
nazismo da Segunda Guerra Mundial mais citados da história da piauí. A ses- elevada qualidade das matérias apresen-
e depois dela foi um desses fios condu- são The Bolsozapp Herald foi publicada tadas. Entre elas, destaco o maravilhoso O MANUAL
tores. O retorno da história da passa- ininterruptamente, de janeiro de 2020 trabalho de André Rosa (A ruína de uma É com extremo júbilo que venho ma-
gem de Josef Mengele pelo Brasil (Um a dezembro de 2021. E não houve uma nação, piauí_205, outubro), ao descrever nifestar meu encanto com o Manual
nazista na roça, piauí_205, outubro), única edição em que o ex-chanceler a verdadeira saga para a obtenção de um do muambeiro mirim, publicado na
trazida por Betina Anton – outro volu- Ernesto Araújo não tentasse convencer exemplar precioso do livro Van Habs- piauí_204, setembro, esperando que
me a adentrar minha biblioteca –, faz o ex-presidente Jair Bolsonaro a ler al- burg tot Hitler, que teve uma única edi- seja transformado em uma seção fixa
ressurgir muito da polêmica que ronda guns dos seus livros. Logo, faz sentido, ção em holandês, na Bélgica, no ano de pelo seu eminente caráter pedagógico
o falecimento do “Anjo da Morte”. Re- do ponto de vista puramente matemáti- 1938, de autoria do nosso Otto Maria e patriótico.
latos inverídicos, exumação exigida e co, dizer que Xarab fica já foi mais ci- Carpeaux, então refugiado de sua Áus- É preciso que nossa sociedade civil
contestada, e até hoje a dúvida que pai- tado, na piauí, do que Rei Lear, Dom tria natal para o citado país, para esca- abra mão dos benefícios com que
ra sobre o que realmente aconteceu são Quixote ou Dom Casmurro. Uma injus- par dos nazistas logo após o episódio este órgão de Estado [Exército Brasileiro]

84
2 de 2 26/10/23 PROVA FINAL

CLUBE DE REVISTAS
piauí DEPARTAMENTO COMERCIAL
comercial@revistapiaui.com.br
Enio Santiago [RJ]: eniosantiago@revistapiaui.com.br
FUNDADOR João Fernandes [SP]: joao.fernandes@revistapiaui.com.br
João Moreira Salles
Sérgio Siqueira [SP]: sergio.siqueira@revistapiaui.com.br
CONSELHO EDITORIAL Tida Cunha [SP]: tida.cunha@revistapiaui.com.br
Dorrit Harazim, Flavia Lima, João Moreira Valéria Alves [SP]: valeria@revistapiaui.com.br
Salles, Marcelo P. L. Medeiros, Natuza Nery, Paulo Tamanaha [BSB]:
Simon Romero, Thiago Amparo paulo.cin@centrodeideiasenegocios.com.br
DIRETOR DE REDAÇÃO
André Petry J EDITORA ALVINEGRA
rua Aníbal de Mendonça, 151 / 2º andar
EDITORES EXECUTIVOS 22410-050 Rio de Janeiro / RJ
Alcino Leite Neto, Daniel Bergamasco tel [21] 3511 7400
Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 / 1º andar
PRODUTORA EXECUTIVA
Raquel Freire Zangrandi 05415-030 - São Paulo / SP
tel [11] 3061 2122
EDITORES e-mail: redacaopiaui@revistapiaui.com.br
nos brinda desde a República. É certo meira vez em nosso território muitas Alejandro Chacoff, Armando Antenore
de que doravante nada de meios-fios décadas atrás, em 1979. São, portanto, REPÓRTERES
pintados, nem qualquer informação muitos anos de envolvimento, respeito e Allan de Abreu, Amanda Gorziza, Ana Clara
Costa, Angélica Santa Cruz, Bernardo Esteves, Associação Nacional dos Editores de Revistas
atual sobre transporte de valores, a saga- amizade entre o meu povo e Coimbra, Breno Pires, Consuelo Dieguez, Fernando de
Barros e Silva, João Batista Jr., Luigi Mazza,
cidade de vender e recomprar no momen- um dos mais destacados pesquisadores Tatiane de Assis, Thallys Braga, Tiago Coelho Instituto Verificador de Comunicação
to oportuno, além da proteção contra no campo da saúde dos povos indíge- DIRETORA DE ARTE
vizinhos ávidos para participar deste nas no Brasil. As pesquisas em saúde Maria Cecilia Marra PRÉ-IMPRESSÃO
Antonio Rhoden
aprisco formidável. que Coimbra coordenou no território EDITORA DE ARTE
Por outro lado, estaremos livres da Paiter-Suruí ajudaram a melhor conhe- Paula Cardoso

única coisa que restou como ensina- cer e mesmo contribuir para atenuar EDITOR DE REDES SOCIAIS
Fabio Brisolla
mento da missão francesa que veio or- graves crises sanitárias, além de terem
SUBEDITORA DE REDES SOCIAIS A piauí é impressa pela Plural Indústria Gráfica
ganizar esta laboriosa classe. Sempre influências sobre as políticas públicas Emily Almeida Ltda, em papel pólen bold 90 gramas nas capas
que surpreendido por inimigos internos em saúde indígena no país. Ao longo dos e pólen soft 70 gramas no miolo, produzidos em
COORDENADORA DE CHECAGEM
em seus nobres místeres, bradar com ar anos aconteceram inúmeras visitas de Marcella Ramos bobinas exclusivamente para a piauí por Suzano
Papel e Celulose S/A.
ofendido ça m’enerve!. parentes paiter-suruís ao Rio de Janeiro, CHECAGEM E REVISÃO
SEBASTIÃO MAURÍCIO DUARTE PESSOA_RIO DE JANEIRO/RJ à Fiocruz e a outras instituições, quan- Carlos Santos, Carolina Leal, Fábio Gabriel Martins, TIRAGEM DESTA EDIÇÃO: 37 020 exemplares
João Felipe Carvalho, Luciene Gomes, Luiza Barbara
do foram recebidos por Coimbra, o que PARA ANUNCIAR
nota da redação ao estilo do ma- reflete várias frentes de atuação em COORDENADOR DIGITAL publicidade@revistapiaui.com.br
Pieter Zalis
nual: Prezado muambeiro mirim, apoio a causas indígenas. Nesse cená- PARA ASSINAR
COORDENADORA DE ESTRATÉGIAS
você também se enerva sempre que um rio, a representação das circunstâncias Mariana Faria revistapiaui.com.br/assine
civil – esse ser de classe menor – escre- atribuídas à atuação de Coimbra na COORDENADORA DE NARRATIVAS VISUAIS
WhatsApp e SAC: [11] 3584 9200
Segunda a sexta, 9h às 17h30
ve uma carta, a ser tornada pública por matéria da piauí, que possivelmente de- Fernanda Catunda
uma revista comunista, onde ele desde- corre de compreensões que “misturam” ESTAGIÁRIOS SAC [ATENDIMENTO AO CLIENTE]
site: minhaabril.com.br
nha das Forças Armadas? Tenha cal- fatos históricos – o que é inclusive indi- Lara Machado, Leandra Souza,
Maria Júlia Vieira, Pedro Tavares atendimento.piaui@abril.com.br
ma, e espelhe-se nos grandes generais cado como possibilidade na matéria –, WhatsApp e SAC: [11] 3584 9200
DIRETOR FINANCEIRO
de pijama, como o nosso querido sena- não reflete a realidade das situações e Guilherme Terra
Renovação: 0800 775 2112
Segunda a sexta, 9h às 17h30
dor Hamilton Mourão, que acaba de a visão dos Paiter-Suruí sobre o pesqui- ADMINISTRAÇÃO
apresentar um Projeto de Lei propondo sador. Nosso povo reconhece e valoriza Daniella de Amo, Elena Abramcheva, COMERCIALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
Elisangela Prado, Leandro Arruda, Abril Assinaturas
a anistia para quem participou da in- parcerias com pesquisadores e pesqui- Pedro Eduardo Vinhas, Simone Cardoso assinaturas@revistapiaui.com.br
tentona golpista do 8 de janeiro. Em sadoras que desenvolvam investigações DIRETOR COMERCIAL
DISTRIBUIÇÃO NACIONAL EM BANCAS
vez de reagir com o fígado, use o cére- e iniciativas que respeitem a ética e são Lucio Del Ciello
Total Express
lucio@revistapiaui.com.br
bro! E também o Centrão! comprometidos com os direitos indí- bancas@revistapiaui.com.br
COORDENADOR DE PUBLICIDADE
genas e a justiça ambiental e social. Tarcisio Perroni NÚMEROS ATRASADOS
NOTA DE ESCLARECIMENTO Que nosso apreço e respeito por Carlos tarcisio@revistapiaui.com.br
numerosatrasados@revistapiaui.com.br
Como liderança e cacique do povo Coimbra Jr. e seu grupo de pesquisa GERENTE DE MARKETING
Paiter-Suruí, da Terra Indígena Sete de na Fiocruz sejam amplamente divul- João Vinícius Saraiva
www.revistapiaui.com.br
Setembro, em Rondônia, me manifesto gados e que fiquem como o efetivo
aqui sobre a matéria Sangue ancestral registro dos fatos.
(piauí_205, outubro) de autoria do jor- ALMIR NARAYAMOGA SURUÍ, CACIQUE-GERAL DO POVO PAI-
nalista Bernardo Esteves. De início, TER-SURUÍ_TERRA INDÍGENA SETE DE SETEMBRO, RONDÔNIA
destaco a importância de um conteú-
do específico que diz respeito ao meu ERRATA
povo. Assim, o texto traz novamente O texto Em busca do elo perdido (piauí_205,
para o debate público, tal como pesqui- outubro) afirma que, em 1973, a epi-
sadores (como Carlos Coimbra Jr. e Ri- grafista americana Linda Schele estava
cardo Ventura Santos, da Fundação acompanhada de seu marido quando
Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro) tentou decifrar o mural de 96 Glifos,
e veículos da mídia já fizeram no passa- em um sítio histórico maia. Na verda-
do, a grave questão da comercialização de, o parceiro de Schele na empreitada
de amostras biológicas dos Paiter-Suruí era o estudante de graduação Peter Ma-
e de outros povos indígenas, que foram thews. A correção foi incluída na versão
coletadas por pesquisadores estrangei- digital do texto.
ros nos anos 1980. Essa situação, que
causa muita revolta e dor no meu povo,
já se arrasta por décadas e precisa ser
definitivamente resolvida pelo governo Por questões de clareza e espaço, a piauí
brasileiro. Nesta manifestação quero se reserva o direito de editar as cartas
também deixar muito explícita, de for- selecionadas para publicação. Solicitamos
ma a esclarecer qualquer mal-entendi- que as cartas informem o nome e o endereço
do, quanto à relação entre o pesquisador completo do remetente.
Carlos Coimbra Jr. e equipe e o povo Cartas para a redação:
Paiter-Suruí. Coimbra esteve pela pri- REDACAOPIAUI@REVISTAPIAUI.COM.BR

piauí_novembro 85
1 de 1 26/10/23 PROVA FINAL V2

CLUBE DE REVISTAS
despedida

DANIEL EBERSOLE_FOTO DE DIVULGAÇÃO DO PRÊMIO NOBEL_2020


INFINITO PARTICULAR
A aventura de traduzir a poeta Louise Glück

BRUNA BEBER

Louise Glück, em foto de 2020, quando ganhou o Nobel: uma vida dedicada à escrita do poema

A
poesia de Louise Glück me in- Releio hoje a tradução que fiz daque- também a minha, para que eu voltas- neira como os escrevem, já que os es-
cendiou em meados de 2019. la estrofe e a considero insatisfatória. Na se a habitá-la. crevem no compasso muito particular
Embora a memória seja tam- época, traduzi mind como espírito. Sofis- de seu pensamento. Se puser em sus-

N
bém invenção, parte da imagi- tiquei demais o que deveria ser despoja- os despedimos da autora no mês pensão a timidez ou certa inabilidade
nação de nossa presença sobre do. Por isso, reproduzo aqui a tradução passado. Oitenta anos, uma vida para projetar a voz, o leitor que ouve
a Terra, lembro com nitidez: num sába- da saudosa mestra Heloisa Jahn, que mor- inteira dedicada à escrita do poe- enquanto lê será capaz de captar o ritmo
do à tarde, em São Paulo, visitava um reu no ano passado. ma. Ela nos deixou outros doze livros do pensamento de quem escreve.
amigo e jogávamos conversa fora. As- A convite da poeta Alice Sant’Anna, de poesia, além de uma ficção curta Ler e reler Uma vida no interior não
suntos de sempre, aqueles que não se logo depois de a autora nova-iorquina (Marigold and Rose: a fiction) e dois vo- me pareceu suficiente. Dispus-me a es-
exaurem porque endossam nossa exis- ganhar o Nobel de Literatura de 2020, lumes de ensaios, um legado que come- cutar os registros da voz de Glück – há
tência, uma intimidade fundada em tive a alegria de traduzir parte de Poe- çou a vir a público no final da década várias gravações na internet. Desse
poesia e música. De supetão, meu ami- mas 2006-2014, coletânea lançada pela de 1960. Talvez por ter ensinado litera- modo, pude viver seus poemas pelo ou-
go se levantou para comprar gelo, sua Companhia das Letras em junho de tura em escolas e universidades dos Es- vido. Não bastasse, fiz questão de lê-los
festa começaria dali a pouco. Ele não 2021. A obra reúne três livros de Glück, tados Unidos durante muito tempo, e em voz alta e de me perguntar a todo
quis companhia. Eu fiquei sob a clari- até então inéditos no Brasil: Averno apesar de vencer outros prêmios impor- momento: do que é feita a voz de Glück,
dade da conversa e alcancei, num cesto (2006), Uma vida no interior (2009) e tantes, como o Pulitzer, Glück circulou o que suas inflexões me dizem, que no-
ao lado do sofá, um exemplar antigo da Noite fiel e virtuosa (2014). Helô tradu- com bastante discrição no meio intelec- tas essa voz me dá com mais frequência?
revista New Yorker. Edição de 11 de de- ziu o primeiro e Marília Garcia se en- tual. É difícil, inclusive, definir a linha- Se isso não é um jeito de admirar ainda
zembro de 2017, a capa mostrando um carregou do terceiro. Fiquei com o gem de sua poesia, um amálgama de mais poetas que admiramos, é uma ar-
engarrafamento de árvores de Natal no segundo. Na verdade, torci para que mitologia clássica, psicanálise, filosofia madilha que criei para mim mesma.
metrô (Tom Gauld assinava o desenho). fosse confiado a mim. Eu o frequentava e cotidiano. Entre seus contemporâne- Buscava ouvi-la ou me ouvir? No fundo,
Abri a revista: Life, my sister said,/is like havia meses e me sentia desafiada por os americanos, a autora quiçá dialogas- buscava nós duas. Por isso, se escreve e
a torch passed now/from the body to the sua simplicidade aparente, que eviden- se com Sylvia Plath, pela magnitude do também por isso se traduz: para ir ao
mind./Sadly, she went on, the mind is ciava um conhecimento profundo da sombrio, ou com Anne Sexton, pela re- encontro do ímã que atrai o indefinido
not/there to receive it. (A vida, disse mi- matéria humana. flexão sobre relações familiares e de ami- – fator movente da criação e da trans-
nha irmã,/é como uma tocha que agora Glück situou o livro de 2009 num zade (ainda que Glück fosse bem menos criação, o mistério da poesia e do amor.
passa/do corpo para a mente./Que tris- vilarejo montanhoso. De lá, escreveu so- ferina que Sexton). Traduzir é amar melhor poetas que
te, ela continuou, a mente não/estar ali bre a superfície que a circundava (a vida), A experiência de traduzir uma poeta amamos para fazer com que outras pes-
para recebê-la.) mas sem deixar de escarafunchar as zo- viva e filiada sobretudo a si mesma foi, soas amem seus poemas e sejam amadas
Perdão, João, mas eu arranquei a pá- nas temerosas (a morte). Revelou, assim, digamos, aventurosa (e venturosa). Como de lambuja. Um ato de generosidade e
gina e a guardei na bolsa. Precisava de luminosidades insuspeitas do ser. Gra- toda grande poeta é sobretudo filiada a agradecimento. Traduzir poesia é um ges-
um dia sem ressaca para traduzir o poe- ças a Uma vida no interior, cresci como si mesma, há algo de que nenhuma de- to visto por tanta gente como uma tare-
ma todo – Autumn (Outono), joia lapida- leitora: aprendi árvores e frutas, a natu- las consegue escapar: o som de sua pró- fa que não se coaduna com a realidade
da por uma mulher de quem eu nunca reza semelhante das paixões e das famí- pria voz, os registros em áudio e vídeo – uma missão impossível. Justo por essa
tinha ouvido falar, mas que parecia fa- lias, a saudade e a solidão. Reconheci que perpetuam suas cordas vocais a dis- razão insisto em traduzir poesia, para
lar comigo. É assim, às vezes, na vida que que Glück pintava sua aldeia – íntima seminar versos no espaço. Voz é escan- amar mais e melhor o que sempre me
forjamos a partir dos chamuscos provo- e geográfica – para voltar a habitá-la. Em são. A maneira como poetas leem seus será desconhecido e, por isso, nunca deve
cados por alguns versos. consequência, pintava outras aldeias, poemas geralmente se assemelha à ma- parar de brilhar dentro dos meus olhos. J

86

Você também pode gostar