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Cr$10

Um jornal de aventuras, idéias, reportagens e cultura.

•Um
repórter
de Versus
Editores:

Marcos Faerman
Toninho Mendes
Antônio Tadeu Afonso
Vítor Vieira
Wagner Carelli
Omar de Barros Filhol VOZES
W ilma Grycinski DAS SELVAS BATATA, um
Mou1ar Benedito da Siha NICARÁGUA
Rivaldo Chinem umencontrode herói corintiano,
Moacir Amâncio índios brasileiros por Diana Bellesi por Caco BarceUos.
Licínio Atevedo Páginas3a5. Página 24. Página 37 a 39.
Caco Barcelos
Moacir Oliveira Filho

Arte:
SARTRE &
Toninho Mendes
CORONEL POTY, ARGENTINA SIMONE,
Edson Novais
levi Mendes por Durval em quadrinhos. um debate sobre a
Luis Gê C. Guimarães Enrique Brcscia. opressão da mulher.
Angeli Páginas 6 e 7. Página 25 a 30. Páginas 46 e 47.
Ricardo Papa
Clemen
Carlos Langone
George Duque Estrada
Massa o
Noemi Ribeiro IMAGINAÇÃO E BANDA DE
Bruno Liberati VIOLÊNCIA, PIFAROS, uma
Conceiçlo Cahu
Magnani
~~~~~ revisto por Ariel Dorfman.
reportagem de
Rivaldo Chinem
por Paulo Ramos.
Chico Caruso Páginas 31 a 36. Página 50.
Avani Stein "----' Páginas 8 a 10.
Alcy
Jota
Sandra Abdala · v~ NEWTON
Jaime Leão
Rosa Maria
Lauro Augusto
Amauri
*• CARLOS
o continente, num
MURJLO DE
CARVALHO,
depoimento E MAIS:
Ricardo Alves entrevista e
exclusivo conto.
Colaboradores: ..____ __. Páginas 11 a 14. Página 42 a 45. Haroldo Conti (20),
Percival de Sou:c.a Rubens Queiroz(l6),
Claudio Bojunga Eduardo Mignogna (15).
Bbris Schnaidermanf
Carlos Alberto Dbria Bóris Schnaiderman (48)
Modesto Carone Mouzar Benedito
Mauro Almeida ARTE& da Silva (49)
Jacob Klintowit" CHILE, BOY. .vANGUARDA• Vítor Vieira (48)
Plínio Denttein
Maria Correa por Wagner Carelli. por Mario Pedrosa.
tnio Squeff
Caco Caetano Páginas 17 a 19. - - ~~ Página 40.
Souza Iopes
Lisete Catarin a Capa de Clémen
Marilena Faerman Vieira BOLtvlA
Raquel Moreno
Mariângela Quintela nas fotos CRIA'ÇÃO: um conto
Cecilia Thompson de Rolando de Modesto Carone e
Silvana Rodrigues um poema de Domingos
Gilberto Morimitsu
Carlos Santana Pelle~rini f r .•
RIO DE JA NEIRO Página 41.
Marcia de Almeida
José Montserrat Filho
Galeno de Freitas
João Antônio
Antônio Torres
Walmir de Oliveira (distribuição)
RIO GRANDE DO SUL
Wladimir Ungaretli
Carlos Alberto Koleb ..
Gerson Shirmer
Henrique Faerman
PERNAMBUCO
Ivan Mauricio
Geraldo Sobreira
PARÁ
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BRASILIA
Sérgio Chacon .
MINAS GERAIS
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Assinaturas: René Zererino.
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Rosa
Roberto Gonçalves
PlRACICABA
Luiz Fi~tueira
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Lisboa: Jefferson-Rios.
Paris: Letânia Menezes. e Diana Belessi
Administra.çllo: '
secretaria: Vera Lúcia de Jesus.
public1daoe: Osmar Freitas Jr.
(Fone: 2874302).

DISTRI BUIÇÃO:
São Paulo · França Pinto.

VERSUS:
Diretor Responsável • Marcos Faerman

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~u~ Ltda. Admini~trn\·llo c: r\'da~:i••: ru.1 C'a·
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C'omp<~lo e imprc:~so na Empre~a J••rnulbti·
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prc:". rc• is ta Crisis. de BuenO\ Aire:,. c: Alta;
n.lli•:• . d1• B<>t~utá .
(Breccla, araenttoo)
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Este é o relato de um assembléia de fndios brasilei-


ros, reunidos em Meruri (no Mato Grosso), de 2 a 4 de
setembro do ano passado, para discutirem seus
problemas, entre os quais está a defesa da terra,
constantemente ameaçada com o avanço das frentes
brancas de desbravação. Esta assembléia, ao contrário
das duas anteriores, realizadas em Diamantino e Curu-
ru, resultou da iniciativa exclusiva dos índios. Um mês
antes começaram a ser expedidos os con~ites : para os
chefes indfgenas que haviam participado das
assembléias anteriores; para a s• Delegacia da Funai,
em Cuiabá (o delegado regional não se interessou), e
para o Conselho Missionário Indfgena. No total,
reuniram-se 60 índios, sem contar o contingente geral
da aldeia. As reuniões foram feitas na aldeia do
Boqueirão, distante 12 quilômetros da sede da Missão ,
de Meruri. Os xavantes de São Marcos e Sangradouro
foram os primeiros a chegar no dia 1° de setembro.
Os lrantxe e os Pareeis, ambos com esposas e filhos, ,
-~
mais os Nambikuara, chegaram acompanhados pelo
padre Tomás Lisboa, depois de uma viagem de mais
de mil quilômetros. O fndlo guarani se uniu ainda em
Cuiabá a esta comitiva. Outros convidados: padre João
Bos<.-o Burnier; do CIMI, Dom Tom's Baldufno e
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3
Guarani Nenito Cláudio:
Vou contar mais uma coisa que tem acontecido
com os índios lá dt. Dourados. O próprio chefe do
posto dá castigo pros índios. Então nós pensamos: por
que aquelas grandes autoridades, que são brasileiros,
padre Egydio Schwade; padres salesianos Rodolfo têm braço forte para castigar aqueles índios? Por que?
Gencale e Vario Gesse. Um grupo de velhos bororo, Já tem três anos que eles prendem os índios e levam pra
tomando pelas mãos os visitantes, conduziram um por lavoura do capitão. Se tiver comida em casa, a mulher
um aos seus lugares no grande tapiri construfdo no do preso leva comida pra ele, lá onde ele estiver
centro da aldeia para o encontro. Ao ritmo de mara- trabalhando. Mas o que acontece com os índios mais
cás, um· bororo cantou, dando voltas em tomo do fracos? Enquanto ele está sendo castigado, a mulher e
do grupo. Alguém traduziu: •Assim como este canto Pareci Joaquim Zalenzoê:
até criança de dois anos ficam passando fome. A gente Nós temos uma 'Cabeça c eles têm outra cabeça
está rodeando nossos visitantes, assim a b~nção de sabe da nossa pobreza.
Deus nos rodeie durante estes dias•. A pedido dos porque são civilizados. Tem cabeça branca, tem cabe-
Juruna Mário, Xavante de São Marcos: ça careca. tem tudo. né? Nós somos outra cabeça.
bororo, Dom Pedro celebrou a missa. No infcio da {;: a primeira vez que estou assistindo assembléia.
tarde começaram os depoimentos. No último dia, toda nosso pensamento é outro.
Assembléia dos Bororo, Xavante, Tapirapé, Kaiapó, lgnáclo Kayoli,lrant:~te:
a manhã foi consagrada ao encontro privativo dos outras tribos e mais os padres no meio de nós. Então,
Ú1dios. Ainda DO dia 4, à tarde, houve um passeio à Eu vim visttar os senhores pra conhecer. Nós
agora eu quero pedir a vocês: aonde índio está sofren- estamos lutando com mais força lá na nossa reserva. E
Aldeia Xavante de São Marcos, a convite do chefe do. vivendo a miséria, no lixo, a gente devia fazer
Apoena. Á noite, cerimônia de encerramento da agradecemos porque comemos aqui nesse lugar .. Eu
força. Unir pra apertar mais o governo de Brasília, até vim de lá do hospital. Eu vim pra voltar com mmha
assembléia, com apresentação ~ cantos e danças de ficar madurando a cabeça dele. A gente não precisa
todos os participantes. Como sinal máximo de confra- criançada. minha família, meu companheiro Luís
ficar com medo. Governo é como nós. Carlos.
teQlizaçio, foi notado o fato dos xavantes terem Maurfclo Tupxi, hantxe:
usado, em suas danças, a indamentária dos bororo. Xavante Paulo Tsãenova:
Você está dizendo e eu estou escutando aqui. Você As Irmãs desde 1957 estão trabalhando conosco.
No dia 5, todos retomaram às suas respectivas aldeias. está dizendo que aconteceu muita coisa. Mas nós onde
O relato desta assembléia é publicado pela primeira Nós sozinhos não dá certo. A nossa reserva saiu. Está
estamos ainda não aconteceu nada. Assim mesmo a demarcada, aprontada. Só isto. Duas palavras.
vez no BrasU, por VERSUS. gente está lutando pra defender nossa reserva, porque Roberto Uariaguissavá, dos Nambikuara: .
como você estava dizendo, o branco está entrando em Vamos falar um pouco. Meu povo a mesma cotsa.
tudo quanto é canto mesmo. O índio tem direito de Vamos pedir terra. País inteiro é do índio, é nosso. E
Bororo Txibae Ewororo (Lourenço) abre a defender onde mora. lndio tem força também.
assembléia: não tem nenhum lugart.inho para o índto.
Nós viemos visitar vocês. Pela primeira vez viemos Eu não sou chefe, não posso mandar. Eu sou
O Mário Xavante, os nossos companheiros, os de tão longe. Aqui tudo é nosso, somos todos irmãos.
padres, estamos aqui pra mais uma reunião. Estamos Só isto. criança. Mas eu posso fa1.cr, posso trabalhar.
vendo que as reuniões estão despertando bastante José Miguel, Tapirapé:
Nicolao Tsererowê: Nós estamos lá no posto Tapirapé. Então chegou o
interesse nos índios. De nossa parte, estamos mostran- Nós estudamos a história do Brasil. As autoridades
do bastante interesse nesse trabalho de recuperar convite dos Bororo. Daí nos reunimos aqui. tudo
pensam que são estudiosos mas às vezes não são. Se índio. Nós vamos falar um pouquinho de como nós
nossas terras. Cada um deve apresentar aqui os estudam História do Brasil deveriam reconhecer
problemas que tem em suas áreas. O que ~e está vivemos lá. A fazenda está apertando nós. A Codeara.
pes-soalmente. Os índios eram os primeiros que esta- a Tapiraguaia tiram toda a área de nós
fazendo e o que se deve fazer. Cada um vat ter a vam aqui quando Pedro Alvares Cabral descobriu o
liberdade de falar. Pode se sentir em casa que ninguém Por que branco quis pegar. amansar nós? E depois
Brasil. .Eles vieram e foram se aproximando. Aconte- que vai ser de nós, no meio do branco, trabalhando
vai reparar se fala bem ou mal. ceram as invasões que continuam até hoje. Nós temos
Todos somos, sentimos irmãos aqui juntos. no meio do branco que quer tomar a terra da gente? O
que lutar. Quem sabe. um dia não podemos ajudar os pai nosso, Deus. fez esse lugar pra todo mundo.
Nenito Cláudio, Guarani: outros? Eles não deviam fazer aquilo. Eles deveriam
Eu posso falar? Quer dizer, eu vou falar um pouco Manoel Noziú, Xa,ante:
respeitar nós. Nossos irmãos índios estão sendo perseguidos.
sobre os patrícios, os indios lá de Dourados (MT). As É isso que estou dizendo para os senhores que estão
autoridades vai me desculpar de eu falar, mas o que é pisados. Nós somos desprezados. pisados. Nós ficamos
aqui presentes. A
debaixo do pé do branco. Isso é o que nós pensamos
verdade tem que se falar. Estou reclamando do que Pareci Joaquim Zalenzoe:
tem acontecido com os índios kaiowã que, por qual- em nossa aldeia. Nossa aldeia muito grande, muita
Nós nascemos pra ISSO, pra lutar. Branco não criança, muitos homens, muitas mulheres. É quase 80.
quer coisa, sã~ transf~ridos. Co!fl.O pode o índi? P?S- pensa que somos todos irmãos. Branco não tem idéia.
suir alguma cotsa na vtda desse Jetto? O que os tndtos 100 crianças que nascem por ano. Por isso ficamos
Nós somos índios, temos um fundamento. Civilizado muito satisfeitos.
kaiowá pediram pra eu falar foi isso. tem outro fundamento. Nós temos a terra onde nasce-
Aije Kugurl, chefe Bororo de Meruri: Apoena, chefe Xavante de São Marcos, traduzido
mos. onde nós criamos. O branco não pode introme- por Guido:
Nós estamos aqui para esclarecer cada um os seus ter. Se intrometer, se entrar no meio, come flecha.
problemas. Não é pra se acanhar. Cada um tem que Vim para essa reunião convidado pelos Bororo.
Inácio Kayoli, Irantxe: Índio precisa continuar a ser índio. Conservar cabelos.
dizer o que sente, dizer suas dificuldades, cada um Gente branca criminosa mesmo. Nós caçamos,
tem que dizer qual o motivo de não ter progresso na Não podemoc; imitar o civilizado. Não temos nada.
matamos pra comer. Nós pescamos. Nós fazemos Não temos dinheiro, nem carro. Nossa vida tem que
sua tribo. anzol. Criminoso a gente fal. porrete. ser conservada até a morte. Não podemos cortar os

4
···~
l.'~tbdo .... o., índio'> de1em w amar entre si. ·Não ICn!Onh!i\itil do outrb. Somos todos irmàoc;;-E estamos Wenceslau Kuremodo, Bororo:
podl'lllO'> ameaçar no~'>O'> 1rmàos. aqui para entrosar melhor. Estamos apresentando No tempo dt.! nossos antepassados. a posição de
E">WU 'ati'>leito porque os Xa1;u1tes e'>tão crescen- no,.,a., difit•uldades. as angú'>tias que sentimos. no,,a aldeia começa1a desde o nascente até o poente.
do. Aumentando. Nenito Cláudio, Guarani: Anti~amctc tinha duas carreiras de casas. uma atrás
Kamuntsi (Angêlica), Irantxe: Então cu ainda ,·ou falar um pouco em nome de da outra. Hoje niio é mais asstm. somos poucos. Os
:\ó'> 'Íl'lllO'> de longe. Minha cri~111..;ada e<;tá aqui. todas as tribos. de todos os índios do Brasil. que nós anti~os comcnam a saúde tinham resistência pra
E'>se aqui chama Lourenço. essa aqui chama Alice. '>OillO'> todos irmàos. Quando o Bra<;il foi descoberto tudo. na forQa. na carreira. em tudo. Porque naquele
c.,.,e llHli' pequeno chama Moacir. e-..,e Jo-,é. Eu vou aeharam aqui flores do mato. bichos do mato e tempo era guerreiro e brigava mesmo. Nó~ não fazia
di1cr ;tlguma' palaHinhas. achar;tm tamb~m o~ índios. Então a civilitação che- c\trava~ânda com nossa saúde. Hoje nào brigamos
Nfw 10u di1er muita cotsa não. "(" 1iemo~ de ~ou. o . . homcrh talam que a onça é o rei dos bichos. mab com ninguém. Somos todos amigos, todos
longe: pra conhecer esses outros índios de todas tribos Eu acho que não. A onça não pode ser o rei dos bichos. irmào'>.
que c:\tào aqui. Eu pensa1a qm: não ia conhecer outros O rei do-. bichos foi o índio mesmo. No-. ...o pai criou nós e depois os outros. Mas os que
índio... outra gente. Quando cu 1r embora eu vou dizer O índio vi1ia. se alimenta,·;t pela mata. Então a foram l.'n.tdo' depois. vêm empurrando nós. invadin-
pro' índio... que ficaram Jú. dm, índio-. que estão aqui. ei1ili7:u;ào entrou. ~á onde eu ,.i,o estão acabando do nós. vêm acabando com nós. Portanto. quando nós
Eu n~to 10u di1er nada da reo,en a. Nóo, moramos na l'Om a mata. Estão vendendo a madeira. Quer dizer. o cantamos agora. nós não fazemos mais que aquela
no....a tc:rra mc ... mo. A nossa terra n?to ajuda muito alimento que nó' tira,·a da mata a gente não tem mais. 1oada de maç.1co. Mas mesmo a\sim estamos conser-
nftn. ,\ ).!l!ntc trabalha. trabalha. Nô., pas\amos essas Outra coisa: lá onde eu moro o capitão não fala nem a 'ando no,..,.l dança e o nosso canto até hoje. Toda a
me'>nl:l' coi'>a'> que os outro-. índio'> pa'>'><tm. língua do'> Guaranis. nem a dos Kayo\\ ás. Quer dizer. no ...,a naltura. Do'> antigos. amda temos os chocalhos,
Eu n<~o 1ou cl11er muita coi\a , eu 10u agradecer nào podiam pôr um capitão que nào fala a língua dos tambor. o' irhtrumentos de '>Oprar. todos os enfeites
ha'>l.tllll. 'ló'> e\tamo'> comendo. nô., c-. ta mos~ ajudan- índio\. L.ú índio tem apanhado amarrado. quo: u'amo-. para dançar e os cantos.
do 'occ\ aqut. Quero agradecer ba,tante. · José Maria Mano Kurureu, dos Bororo de Eugênio Rondon , Bororo:
Araa'i (José Inácio), l rantxe: Sa ngradouro: Em vi~ta de que estamos encerrando esse encontro
Nunl.'a pcn\ala que encontra amigo-. tüo bons aqui. Um dia. cu andei pelo Sul. era ecdinho. seis horas tão alegre. queria dizer ainda algumas palavras de
Eu :u.!r:tdl'l,:ll muito 1·ocês qui! fi1eram comida pra da nHtnh~l. cu 'i uma porção de índio-. cm Tet1ente despedida. Primeiramente para nossos chegantes, esti-
gente ~ó., queremo~ ajudar ,·ocês que c'>tào passando Portela (RS). Quando 1·iram nús. chegaram. se encos- mados missionários: Dom Pedro, que tanto se sacrificou
mal d~: terra'> ~Ó'> ajudamos 1·o~ê., aqui como lá. 'Jóc; L.tram. corwcrsaram. Estavam todo' bêbados. Já pra chegar até aqui. Dom Tomás que veio de longe com
n:ill 'ollnlll.., clikrcntes. Somo'> do me ... mo ..aneuc. c~dinho c todos bêbados. Como se nüo ti\e<,sem assis- perigo de perder o rumo. Esse tempo é péssimo de
lnat'io Ka,oli , lrantxe: · tência nenhuma. como gente de.,pre1ada. Aqui. os vinjar. Agradeço muito essas presenças. Nunca
~ó ... bcbctiws garaP.a. clmha. i'\ô' comemos biju. mi ......ionário... nüo deixam que os ín<ho\ bebam. Beber dc ... pre;arc:mo'> a., presenças dos missionários entre
,\..,H/e'> nó.. eomemos arrot. Mas nfto acha falta. Nós fat :tl'Ontc~:c:r l.'OÍ!>as que não prestam. Fat desunião. nós.
h~hc:mo., l'hkha de mandioca. Eu nüo sei nada ·de Temo... que evitar certa<; coi'>as pra ter me-.mo uma Xa,ante Nicolau:
nwrc.tr dalil pro., ...enhores l"isitar nó\. Nüo sei que mês \Crdadcira uruào entre nós. entre todo-. o~ índios. Quero a~radecer a oportunidade de conhecer todos
clú pra ir 'i'>itar lá. É só is-;o minha companheirada. Txinr.ui (Celso), Bororo : os irmão-. que c'>tào aqui presentes. Agradeço. em
XaHm le Mário Juruna: Eu 1ou dar a minha palaHa tamb~m. Nós temos primeiro lugar o Lourenço que emiou convites para as
/\qui nó-. c... tamos fan~ndo 1\<,-.embléia. E agora o que fa1cr força com o coraçüo c o c!>pírito para ajudar chefias virem aqui tratar esses assuntos. Agradeço os
que cu 'ou pcn\ar'? A gente tem que lembrai o que esse\ llO'>SO'> irmãos que estão perecendo por aí. longe missionúrio'i. Agradeço a todo o pessoal que mora aqui
c'>tÚ ewonclldo. A gente tem que gritar muito. Tem de nós. Vamo., lt~1ar nos<:as mente<, para tima para que nesse Boqueirão. Queria agradecer. Só isso.
que dlorar na frente do palácio até o presidente ficar Deus ajude nossos capitães. Os capitães dos Xavantes, Eugênio Rondon , Bororo:
~.·ninado. ,\ gente sofreu muito. Atê chora o meu dos Bororos. c de todas as tribos elo mundo. Agradeço muito a presença de nosl.Os conterrâneos
cor;~ç?'to. João Ba tista, Bororo de Sangra douro: que 1ic:ram de longe. Eu sei quanto custa uma viagem.
Chko Kãwuwyngi, T apirapé, traduzido por O Brasil tinha os habitantes que era O'> índios. Era quanto é ruim uma 'iagem. Então eu agradeço todos
T\awanà t\oni (José Antônio): nó ... ! Era nó-.! O Brasil foi uma glória para os portu- os que compareceram nessa assembléia. alegrando-
Nú., trahalhamos muito. Nós temos muita roça. guc'c". Bra'>il era uma bele1a. Um colo~so de riquezas. no'>. di1cncto O'> motivos que afligem seus corações.
Quando saímo'> de lá pra cá um fucndciro chegou Já ele mina. Brasil uma nação gigante'>ca. As-.im pensa1 a Agora c-.tamos certos que todo o povo indígena tem o
com c\crita. '>Ó com desenho pra diter que é documen- O\ portugue..es. Hoje o Brasil está num progresso que é mesmo scntnucnto. Conforme a combinaçiio pra outra
to do terreno (da área dos Tapirapé). Mas \!ra só uma belc1a. De ano para ano o Brasil C'itá progredin- a"cmbll-w. '>C eu estiver 1i1o, quero as\istir. Com
mentira. Eles trouxeram pensando que Tapirapé são do. Ma-.. entretanto. coitado do-. índio'> brasileiros! muito pra1cr.
t-rianç:t'>. Nó-. não somos criança'>. Criança não sabe Estiio !)Ofrcndo. Estão sofrendo. Montagem: Omar Barros Filho
nada. Fntiio ele 1•ai lá e pega as coi-.as de quem não Nenito Cláudio, Guarani: Ilustrações: Clemcn
sabe de nada c fica com elas. O capitão Mário fa lou que se os índio'> fossem mais
Inácio Kay o li Irantxe: unido'> era muita força. Eu sendo legítimo brasileiro
\ló., 1icmo'> aqui pra visitar. 'I udo amigo. Nós tenho sido perseguido por outros brasileiros. Irmão
numa f,t/ nada pra gente branca. Ma'> gente branca contra irmão. Quando eles me jogara m fora. fiquei
\cmpn' adla alguma coisa pra fa1er mal pra mim e pra calado pra nüo ver sangue um do outro. pra deixar
mtnha companheirada: Part.!ci. Cabixi. Nambikuara. li1 rc como cu \aÍ li-vre. Os índios. meus companheiros.
A gente pede ajuda a Deu\. E\te lu~ar aqui é muito falaram pra mim: 1ocê vai porque quer. Nós garanti-
bonito. Eu vim pra visitar O'> \enhorcs. Eu trouxe mo\ ... ua mo!'ada aqui . Então eu falei: Não. eu vou. Eu
minh<t família. T udo muto bom. Tudo bonito. Tudo quero 10cê" livres. criando filhos. Também eu quero
índio. criar meus filhos. Eu vi1·o na rua. mas tenho coragem
Joaquim Zalenzoê, Pareci: de trabalhar.
Dcu'i deu distribu ição de nós. i'>so prectsavamos Joã o Batista, Bororo de Sangradouro:
t·ompreender. O começo do mundo foi assim: Bororo Eu estou ,·elho. estou na sombra dos antigos. Mas
tla\CCll da rtecha. Cil'ilizado nasceu. !)aiu da pedra. cu tenho mem filhos. tenho meus netos. Onde vão
Quem dt•u geração foi Quitirorê. O mundo não feito 'ii c r eles? Portanto. esta reunião que estamos fa7endo
num '>Ó cita. O índio nasceu ali. Onde o índio nasceu a tem que despertar a idéia. até das crianças, que têm
terra 1. dele. Nós estamos aqui reclamando terra. que aprender a se defender.
\'amO'> f;l/cr união. "amos ver como 1·amos 1iver. Nenito Cláudio, Guarani:
1\ó' nito (;tlamoo; mais como nosSO'> avós. Esquece- Cadê a JU'>tiça? Onde foi? Um brasileiro legítimo
l•lCI' no....,a lín~ua. A finalidade do nos'io povo acabou. tocado ele sua própria terra. da sua própria casa, onde
l tcamo-. a-..,im descontrolados. Uns levam vida de descama toda a noite para dormir! Mas eu estou firme
pa-.'>artnho. Outro., vida de bicho do mato. Assim que ainda. Quero procurar muita gente de capacidade e
nó., ficamos. Perdemos nosso começo velho. rcsohcr o problema.
Morezoerô ( Otrlia), Pareci:
Eu 10u falar o pedaço que eu sei falar. Eu não sei

·········-·-··
falar muita coisa como as outras pessoa!). Nós fizemos
'iagem de muito longe pra conhecer vocês todos e pra
'o<:ê' conhecerem a gente também. Nós vamos agrade-
t•ct. Só t\'>0 que eu 10u falar. - ~···-~ -------
~TERRAS
Rosalina Zokaenzaerô, Pa reci:
\migo,. <~qui estou presente para diter umas
coi'>lllh<l\. Agradeço o Tomás que trouxe nós até aqui.
NO MATO GROSSO
V~nde·s~ a F n~nda Doming os Marqu~s a
Nào -.abia que vocês eram tão bom assim. Agradeço apenas 15 km da sede munici p•l de SAO FE-
tudo a você-.. de coração. Peço a Deus para ajudar . 'f4 LI X, famoso c~ntro il grop~culi r io do nort~ do
I'OCê'i. de todo o coração. Muito obrigado. Até outra ~ Mato Grosso e anli3o di str ito dt Barra do Gar-
oportu niclacle. ,~~ ças, com 50 . 000 he ctar~s ~s pe ci a is pa ra pecua-
Xavante Tsererowê (Nicolau): r ia, arroz, soja e até tri go, às margens do ARA·
GU AI A e cortada por excelente estra da de ro·
E-.tou muito satisfeito de conhecer oo; amigos sale-
1 ~.... dag em; mais outril áru de 27 000 ha local izada
'iano' que e\tilo aqui entre nó'>. Nó'> também não
podemo' estranhar se falamos diferente um do outro.
T em pule na R~serva lndigen• Pimentet Bar.1o·
1 / . sa a 170 km de 8 do Ga rçu Trata r c')m pro-
Nó-. temo'> que o;eguir unidos. ~ cur•dor, d r Eni o, i Rua Vioí r io José lná:io,
SEGUNDO DIA
Lourenço Rondon, Bororo: j.
. -• 800- font 21 01 08 - P .Alegre - RS

. - . • • .• ••••••
•••••••
Hoje queremos dar liberd<&de para todos. inclusive
os Bororos, -;e quiserem falar. podem falar. Queremos
também ouvir as donas Pareeis. l rantxes. Queremos
ouvir a lodo~. Quero lembrar que não de1·emos sentir
•••••••••••••• • ••••••
Personagem principal: «Coronel» Poty da Fonseca. armazém •O Bazar• dependiam da freguesia
dos assustados posseiros de terras vizinhas,
Papel: vice-rei de Jequitinhonha. Ou: o último coronel da sempre temerosos de brigas e tiros do lugare-
j.O.
p~litica mineira. Personagens secundários: o filho que o assassina; • • O fazendeiro Poty Tupy da Fonseca, ex-
chefe politico de Almenara e multo conhecido
dezenas de jagunços; um poder sem medidas, e mais fuzis, etc. em toda a região, foi assassinado barbara-
mente, a tiros de espingarda e revólver, na
penúltima segunda feira, quando campeava
em sua fazenda Bacavá , neste município.
Eram aproximadamente 14 hs, quando

O VICE-REI DE
- Meu filho, espalhe f$68 multidão à bala.
Adversário nio faz comlc:io na minha porta.. acompanhado de um vaqueiro, o fazendeiro
(Poty). Pot)', que se achava em sua fazenda, se dlri·
glu a uma das repartições de sua propriedade
(•Três minutos depois, um tiroteio encerra- para procurar determinadas reses desapareci-

]EQUITINHONHA va aquele carnaval que passava pela sua casa,


carregando nos ombros o adversãno que re-
tornava à cidade. Esse espetáculo de extrema
brutalidade quase medérrotou•. Recordações
das. Quando Já se encaminhava aos pastos, o
vaqueiro que acompanhava o • coronel• disse
que estava com sede e retornou para tomar
água na casa de uma Irmã. Prosseguindo o
giro pelo campo, sozinho, ao. abrir uma can-
Por Durval Camp9s Guimarães de um ex·polltlco municipal apoiado por Po-
ty). cela, um pistoleiro que o tocalava h{l mais de
15 dias, fuzilou-o Impiedosamente com um
Angustiado pelas lembranças de duas tiro de espingarda calibre 36 • mais 5 de
grandes tra$Jéd.. s·a U. GI$Jtá e a Guerra da revólver».
Coréla - o mundo asshstfa agora, Impotente,
uma nova ameaça: as b()mbaf apoçaliptlcas (Reportagem do «Vigia dO Vaie~>, jornal de
que ameaçavam cair sobrt' -· fll.nJianJdade, Almeoara. edição de maio de 75. O autor da
dividida pela guerra fria. No BNtan: lndlfereri· reportagem e diretor do JOrnal disse que po·
te a esse clima de .piolco. wna ond• 4e deria ter dito muito mais coisas, porém sen-
ollmltmo Invadia o Planalto Central, palco de tiu-se pressionado).
um sonho visionário: a c:onstnrção <ia 8ta&i· Nessa terra de ninguém, a disputa pela
lia. Asalm começava o ano ft 1956. liderança era apenas mais uma manifestação
natural da luta pela sobrevivência dos com-
Sentado ali naquela cade•ra. o coronel Poty provadamente ma1s fortes, ou daqueles -aros
Tupy da Fonseca, com aeu habitual terno de exemplos de fraqueza extremamente inteli-
linho S-120 e o inseparãvel Smith na cintura, gente, fria e calculista que sabiam Jazer da
contemplava a máquina fotográfica que Iria sua condição humana uma força trreststlv.el.
testemunhar aquela que seria uma de suas Poty estava entre os primeiros
maiores, e ao mesmo tempo derradeiras ce- E amda J. Duarte quem descreve no seu
nas do seu ~norme poder politico. A sua livro: •A chelta sertaneja não podia ser com·
volta, igualm~te trajando vistosas roupas de preendida $em a opressão correspondente e a
finho ou tropical inglês legitimo. lenços aber- pancada na coroptementat. Opmrlir. espancar
tos na lapela, cotõnias francesas quetmando e explorarg prOxtmo era. e sem grande dife-
a barba, 14 ptefe1tos do Médio JequiUnnonha, rença dos nossos d1as. o progr~ma governa-
coronêts de'"êmbito muo)cipal, senhores de mental dos mandões se~anejos, na consoli-
mais de 60 m·t votos .~ cerca de 500 mil dação dO cargo Que os destavaca dos demais
habitantes, vieraM mats uma ve2 demonstrar- morta1s no limitado espaço em que viviam
lhe sua fideiJdad& politica O •Cap1tão• Cândido. por exempto,.iniciou
Ass1m amanhecia 1956 no Vale oo Jeqoítl· suas attvtdades de autoridade máx1ma, sem
nênhuma disputa, dentro dos métodos clássi-
nhonha. Oaqueta reunião oa 1tl.Zi(lha cidáde de
Teóf1lo Otoní, Poty. então com 51 anós sair~ cos consagrados pelo uso: matar porcos no
fortalecido como chefe da Frente Pest;eoísla terreiro do vizinho, atirar em cachorro na
do Nordeste Mineiro. Ou seja, Óflet~ de um porta dos donos, pisar a ninhada de pintos de
território· <!e dimensões superiores ao$ da um teimoso, prender anima1s de um vizinho e
Bélgica ou Holanda. A ele, como ma&$tro mandar·the o recado atrevido. «Se for ho-
dessa orquestra eleitotal', çat)ja provldet!Ciar mem venha soltar o seu cavalo ou jegue». E
novos arrtlnjos que g&rant!ss-em a sustenta· 1ambêm la,z,_er cerca e vatos Inclinados para o
ção do velho andamemo que estava sendo lado do VIZinho perseguido, sempre «respei-
corroido em muitos lugares per um novo tartdo as ltguas vertentes e a aroeira da escri-
ntmo tra2ido das capitais pélas estradas re· tura, :um o di relo •. . à propriedade alheia•.
eém abertas, pelo ràdio de. pilha, pelos Jor- Da mesma forma que o fim deste •Capitão
nais transportados nos ónibus pion-eiros e Când&do, a expulsão da famllia Brtto deu-se
c~m os primetros sinais de rebefdia que cres· tan1bém de modo simples e direto. Os jagun-
Clam )Unto a CS$8S peq1Jenas cidades. ços de Poty e Alcides sitiaram a casa do ini-
De fato, o progresso estava chegando. Ape- mtgo, na cidade, dispararam alguns tires de
sar do seu _atraso - ainda hoje sua principal adverléncla, e o competente emissáno deu-
caracterlst1ca - o Médio Jequitintionha Jã lhe o regulamentar prazo de 24 horas para
não era o mesmo Aquela extensa faixa <le abandonar Jacmto. O que efettvamente acon-
terra fértil que .acompanha o rio Jequ!Unha. teceu. sem nenhum mtnulo de prorrogação.
nha desde as ncostas da Chapada Otamanti-
na até quase desembOcar no Atlântico, apre- O Interrogado se escondeu no meio da
sentava~s pnmeírossma1sda sua adesão ao moita alta de eapiJ11 e ali ficou a espreita, sem
mundo. Em uma ou outra Cidade já se viam que ninguém o visse, alimentando-se de con-
e~tadas nas suas paredes placas de médi- versas, queijos e doces;
cbsr dentfstas e até agênc~a l)ancárias. A Quando <' interrogado viu o sr. Poty, que
época de extrema violênCia Qtte marcou seu vinha sozinho, montado num cavalo e segu-
desbravamento, na segunda dêcada deste rando um guarda-chuvas aberto sobre a cabe-
século, existia ap\lna$ na m~ória dos seus ça, saiu de dentro da moita e lhe disparou um
habttantes mai~'Yélho$, t verdade matava-se tiro de espingarda com duas balas dentro;
a soldo (como iinda 'ttOi~}. (*\as também di- que o •u. PotY' não caiu com este tiro,
fundira-se o há,_bho dos clvbes sociais, funda- pensando o lnterrQ'gado que houvesse errado
vam-se ginásios. ç!nemas 1 lojas de maçona- o alvo;
rias e outros ~geres de <l&mocrática convi- que o sr. Poty jC>go~ fora o guarda-chuva,
vência soc1al. , ainda consegylu eJea(o revól•er, mas o cava-
O exiguo progr-esso, pcfrém, nunca conse- lo, com o tlri> de espingarda, passou a rodo-
guiu disfarçar a "origem comurn,íde quase pear com o at. Poty em cima, ocasião que o
todas essas cidades que floresaéra!Jl à mar- interrogado sacou do revólver, deu mais dois
gem do rio: o botequim indlsptm$ti.V~t. tendo lifO$, tencto-lhe acertado no pescoço;
a cachaça como principal mercadórla,\llluitos que o Interrogado disparou mais cinco tiros
valentões escorraçados pela pbtlUça dll Bailia, no sr. Poty e este só velo cair do cavalo no
o terreno destinado à capeli~~. as tntrigas úiUmo tiro;
de sempre e o conflito latente~Ja'P(lsse da que embora o sr. Poty houvesse sacado do
terra. Assim era, por exemplo, Jacinto. em revólver, não conseguiu detoná-lo nenhuma
1920, cidade quase na fronteira com a Bah1a vez, porque o interrogado não lhe deu tempo;
na época de sua fundação, segundo palavra~ que depois disso o Interrogado se aproxi-
do fazendetro J. Duarte no seu livro •Vultos mou do corpo do sr. Poty que ainda parecia
sem história». com vida, tendo parecido ao interrogado que
Pois foi ai mesmo em Jacinto, oito an~s ele, antes de morrer, ainda tentava esboçar
depo1s de sua fundação, nesse lugarejo s~­ algumas pala~ra•. mas nada falou , entretan-
pre marcado por tocaías sanguinárias e çri_.;.: to:
mes brutais, qug o jovem Poty Tupy da FQff-l 'lU. o interrogado vendo que o mesmo
seca. com apen;.s 23 anos, fazia sua ~tféia estava morto, trocou as balas do seu revólver,
na politica do Jf.quitinhonha. Empwmando isto é, munlciou novamente, e ainda para
seu Inseparável Smith, chefiando um ba'ldo caracterizar um posslvel latrocínio e assim
de jagunços, ele aliou-se a outro fazendeiro despistar a policia, o Interrogado roubou-lhe
de nome Alctdes Batista, para expulsar da o revólver Smith, um par de óculos e um
cidacfe, a tiros, a turbulenta famllia Brito, relógio de pulso».
herdeira dos métodos violentos do arrogante (trecho do depoimento de Manoel de Souza
f~zendelro que se intitulava «Capitão" Cân- Filho, o «Nezinho», pistoleiro paraibano que
dido, que tombara morto ao meio dia num matou o •coronel • Poty.,.)
duelo de espingardas com um simples sitian-
te. Poty tinha interesses claros a defender Em Jacinto, a divisão de poderes, porém,
além da tranquilidade social: os lucros do se~ entre dois chefes de personalidade tão forte e

6
1e igual ambição, mostrou-lhe uma sttuaçao
a .• .,
gunda esposa. quando falava do futuro dos
, PSD
..~

que Irra indicar o seu candidato ao gover-


nviável. O conflito entre eles - Poty e Alcí- filhos. Por Ironia, os jornais iriam estampar nador do Estado, convenceu o ncoronel .. ldali-
:!es - foi uma questão de meses. Repetindo muito tempo depois, a foto do seu filho no Ribeiro, de Salinas (único convenc1onal
J me!" ma tática, I à estava de novo Poty sitian- Bayard, advogado, denunciando-o como do nordeste de Minas), a votar em JK, voto
:!o a casa do seu ex-amigo, e dando-lhe mandante da sua morte. decisrvo que derrotou o outro pretendente.
dêntico prazo de 24 horas para abandonar a Para se compreender a figura do coronelis- Bias Fortes.
;idade, sob a mira de repetições e parabe- mo no Vale do Jequitinhonha. é preciso com- Em retribuição a esse voto que lhe garan-
uns. Esses acontecimentos provocaram, preender também toda a extensão da sua tiu a disputa, o acesso ao cargo e que lhe
'Tlats tarde, o aparecimento de um estranho miséria. ·Essa região caminha num ritmo de abnu as portas à Presidência oa República,
mito, ampliado pela fantasia popular, no qual marcha-à-ré• escreveu desanimado, recente- JK sempre lhe atendeu os pedidos. •Eu con-
:> próprio Poty acreditou firmemente atê o mente. Fidelctno Viana. ex-diretor da Codeva- srdero Poty meu irmão•, disse certa vez, Jà
'Tiomento em que foi assassinado: que ele era le, órgão criado exatamente para tentar - como Presidente, depois de nomeà-lo diretor
~oberto por um misterioso manto protetor, sem muito sucesso até agora - mudar essa da Companhia de Armazéns e Silos, nomear
que evitava os perigos e os tiros dos Inimi- velocidade da região. Há cidades e municl- todos seus parentes para cargos públicos e
gos. pios inteiros sem médicos, dentista. água escolher seu filho Bayard como oficial de
De fato, se1s meses depois dessa expulsão encanada e esgotos. Em quase todos eles, a gabinete da Presidência.
do seu ex-amigo Alcldes e do ataque que ele luz elétrica é novidade conhecida há pouco Mas Jà naquele ano de 56, a orquestra
também teria comandado pessoalmente a mais de dois anos. A situação de miséria e eleitoral não podia mais ser regrda pelos
uma canoa de militares que descia o Jequití- fome é tamanha que,em Mata Verde, pequeno mesmos acordes de violência que o ajudou a
nhonha para Investigar esses atos, Poty foi distrito de Almenara, quase todas as crianças tornar-se chefe. Os eleitores sentiam-se mais
cercado em plena praça de Jacinto por dois morreram em 1973, vitimas de sarampo, por protegidos por aqueles que, ao invés de
soldados bêbados. falta de alimentação. ameaçà-los, vinham com a receita médica e a
"Nós viemos vingar a morte de nosso No seu livro, •Coronellsmo, enxada e voto» promessa de cura para sua doença. Embora o
colega• disse um deles. Ele se referia a um o historiador Vltor Nunes Leal, ex-ministro do remédio propriamente, com seus preços ele-
outro acontecimento mais recente: a morte STF, fala de uma característica fundamental vados e à margem do receituário politico,
de um guarda pelo seu prisioneiro, Euzebão, desse sistema politico que, disfarçado de continuasse tão inacessível quanto a própria
um dos jagunços que participaram do atenta- nomes engenhosos e justificativas da atuall- saúde.
doá canoa. Imediatamente os policiais saca- dade, ainda sobrevive no interior. Trata-se da Finalmente abandonado pelos correllglonà-
ram seus 38 e, a menos de dois metros de troca de favores entre o poder central ,(gover- rios e, em meados da década de 60 batido
distância da vítima, descarregaram as armas. no) e o poder municipal (o •coronel•). O definitivamente pelo coronelismo de unifor-
Mas Poty não morreu. Ao contrário, mais •coronel• garante ao governador os votos me branco, Poty não encontrou grandes moti-
vivo do que nunca, fugiu para o tumulto do necessários à eleição do seu sucessor, en- vos para continuar na politica. A rigor, apenas
mercado, ganhou a beira do rio e mergulhou quanto recebe apoio e compreensão para to- o cargo de presidente da Companhra de Ar-
no Jequitinhonha, de onde saiu muitas lé- dos os seus atos, legais e até mesmo arbitrá- mazéns e Silos, cargo em que foi mantido
guas abaixo, em busca de socorro. Ao longo rios, que cometer nos limites geográficos da durante o governo de Jãnio Quadros, para
de todos esses anos, a única explicação que sua área de influência. ódio e desespero de todos seus inimigos, que
o povo encontrou para esse milagre, testemu- A essa troca de favores, Poty acrescentava aguardavam o seu nome na relação dos •vas-
nhado por dezenas de pessoas e exaustiva- um novo relacionamento, traço marcante de sourados•. Ao deixar a função desligou-se
mente narrado aos que nasceram ou algum sua personalidade: a absoluta lealdade a seus completamente da politica. E também já não
dia passaram pelo lugarejo, foi a proteção amigos. Eles sempre estavam com a razão. havia motivos para continuar vestindo aquela
mvisivel desse manto. Criado o mito de..prote- com a verdade e tinham seu apoio definiti- incómoda fantasia protocolar que mal supor-
gido do além, circunstância que colou-se
perfeitamente à sua inegàvel coragem, Poty
vo, mesmo quando por eles estava sendo
claramente enganado. Homem da uma única
tara: abandonou sua primeira família, com
quem não mantinha mais laços afetivos, para
Poty se comparava
reaparece já como o incontestável chefe poli-
tico pelo menos durante 30 anos.
palavra, talvez esse detalhe, aliado à sua
violência para intimidar adversários. tenha
dedrcar-se tnteiramente à sua segunda espo-
sa1 mãe de nove dos seus filhos, aos quais
aos heróis de
Era o chefe de 24 anos, alto, moreno,
v1olento nos momentos de crise, mas geral-
contribuído para antecipar o seu ocaso poli-
tico.
amava com uma profunda paixão. A eles
escrevia extensas cartas, quase diariamente,
Shakespeare.
mente com uma conversa encantadora e re-
cheada de bons adjetivos que denunciavam uToda a cidade de Almenara flccu conster-
quando estava na fazenda, em retribuição,
talvez, aos presentes que os seus primeiros
Terminou morto
claramente sua passagem pelo colégio Santo
Antônio da distante São João Dei Rey. A falta
nada com o assassinato brutal dll fazendeiro
Poty Tupy da Fonseca que foi svpultado no
filhos sempre negaram: carinho e títulos de
nlvel superior.
por um pistoleiro,
de curso superior nunca pertubou a sua reco- dia seguinte ao escurecer, com grande acom-
nhecida Inteligência nem sua paixão pelos panhamento, depois do prefeito Exupérlo Al- «BELO HORIZONTE - A policia de Minas a mandode
ves Congussu ter decretado feriado no muni- Gerais liberou ontem fotografias do autor
clássicos da literatura ou pelos aspectos mili-
tares da história. Já era o grande fazendeiro, cípio». Intelectual da morte do fazendeiro Poty Tupy um filho.
dono de extensas terras compradas e herda- da Fonseca - seu filho, o advogado Tudy
das, e preparava-se para tornar-se pai do pri- (Reportagem do "Vigia do Vale• sobre íJ. Bayard Pinto da Fonseca, bem como do man-
meiro dos seus filhos, alguns dos quais ele morte do ucoronel» Poty). dante Intermediário do assassinato, o sargen-
próprio tria acusar de tentar assassiná-lo nos to reformado da Policia Militar, Miguel Perei-
últimos anos de sua vida. Seus companheiros e adversários nunca ra Alves. Ambos estão presos.no DOPS.
lhe negaram essa sua grande capacidade de O môvel do crime foi o desejo do advo-
ccEies sabem que e monst ruoso um pai liderança e interesse pelo progresso da re- gado se apossar da fortuna do pai, calculada
matar seus próprios filhos: embora saibam gião. Embora o realizasse de um modo Insó- em CrS 30 milhões en.trQ..J~mas cultivadas,
lambem - e parece que se esqueceram - lito. A saber: construiu um enorme e impo- gado e dinheiro. ~,.~
que e 1gualmente absurdo os filhos assassi- nente armazém de silos em Almenara, prédio
narem seu pai. Temo apenas que, no momen-
to decisivo. o Instinto de conservação seja
que nunca foi utilizado, porque as terras da P~JNJSTAO
região. deoicadas exclusivamente a pasta-
mais forte, e eu seja obrigado a fazer o que os gens. jamais ofereceram um único saco de Contra \1~ para matar o.,..
deuses, a moral, os homens e eu próprio arroz ou qualquer outro cereal para ser arma- pai e depor ~atal''o ~toteko para enCObrir
sempre condenamos•. zenado. Ainda hoje, muitos anos depois, as prova , foi ll.solução ~ Ba~ ~­
aquele enorme elefante branco de telhado de trou pat'Ít ficar cOmo l~ti!J'lo~ro.
(Trecho de uma carta que ele escreveu à amranto está lá, sem nenhuma utilidade. O ~deu certo ití prt;leira parte: o pis-
sua segunda esposa. O. Ester, incluída no O est1l0 de liderança desse último coronel tolel(o AIYM de S..t>uza foi contratado
processo judicial) da paisagem politica minetra tem origens de maJó deste ano matou o
claramente detectáveis: neto do tenente-coro- da Fonseca, em sua
A Revolução de 30 já o encontrou, como nel Pedro Antônio Fonseca, um dos fundado- com vários tiros de
delegado de policra. em Almenara, crdade res e depois o todo poderoso chefe politico
vrzinha e maior. para onde estendeu a força do arraral de São João do Vigia, lugarejo que o crime, o pistoleiro
dos seus domlnios. Era o politico influente e anos mars tarde seria emancipado com o e apontou o mandan-
corajoso que lutava pela emanciJ,.ação da nome de Almena E seu pai, Tude Tu ento Miguel Pereira
cidade e contra quem a fantasia popular - além da corage outra vírtu histôria.
pois nunca se conseguiu comprovar com cer- d
teza - já falava em dezenas de crimes que
teriam sido cometidos sob as suas ordens.
De certo, porém, sabe-se que Poty era de
mandar, não de fazer pessoalmente. Quando
d1scordou da medição das divisas de suas
terras, feitas por um agrimensor PJáti~~~
origempraça
plena alemã,
deele o agrediu a
Almenara. chic;.9t~~ltq, . ~r~l;~l,~i~~~Ífi~i~~~
-//. \f''V'r
Poty crescra, era o único chefe eíekd~ tra.n•ras·tu.
Almenara, e com a emancipação da ct83de,
veio o primeiro prefeito, por ele Indicado ao
governador Benedito Valadares. Consolidavá-
se o seu poder. As primeiras eleições livres,
porém, marcaram o aparecimento de um
força arnda frágil, mas que anos mais
ina opor-se vttoriosamente à violência e ao
dinheiro do coronelísmo. Tratava-se da figura
do doutor, com sua medicina elertoral, apli-
cando injeções e fazendo panos de olho nas
urnas. Em toda a históna do coronelismo
politico, for a única força capaz de substiturr
o poder do •Coronel.. , quando a ele não se
altava, nas pequenas Cidades do sertão.
t.,4as nessas primeiras ele1ções Poty foi
rorioso, elegendo seu candidato, o advog
Cãndido Mares Neto, que o abandonou
pois de eleito para aliar-se a seus adversárl
npor f)ào concordar mais com seus
nem o que ele representava ... Tal
episódio tenha nascido o seu g
zo pelos advogados - descon
pre presente nas cartas a
Paulo Ramos

ete soldados do Governo de Satl, nhotos tão intensa que chegava a escure- lhares de canoas bem armadas vencendo bola de fogo o sertão a vir~r m~r e o m~r a

S sete demónios da l egllo dos Sujei-


ras, sete serpentes prateadas, mal-
ditas e mal-encaradas, de cujas fos-
cer o Sol: no morro encantado do Taló
meditei durante quarenta dias e quarenta
noites: vi , pela primeira vez, a capital
silenciosamente as correntezas e corredei-
ras subindo os rios para nos surpreender
no 'meio da noite, entorpecidos nós pela
virar sertão: a ilha das 1lusoes: a 1lha
perdida de Be Ra Zll:
Durante o dia ·festejamos e bebíamos
sas nasais cabeludas exalava um cheiro mítica e sagrada dos Guaran1s: Mbaeverá- fumaça branca e pelo balançar suave das cachaça: à noite eu lhes contava as histó-
iétido, esperavam-me, de tocaia, no Passo Guaçu, com seus templos de ouro jà cober- redes de embira: guerra inútil do pobre rias de Carlos Magno e dos Doze Pares
do lrani: tos pela floresta de Be Ra z 11, fortemente contra o rico: do santo guerreiro (meu São de França e suas aventuras entre os indios
Com um faconaço abri a cabeça do guardada pelos seus filhos mbaeveraguás, Sebastião) contra o dragão da maldade (o de Be Ra Zll: depois de algum tempo já nin-
prime1ro Aspudo em dois qomos sanguino- que até hoje protegendo olhar branco as Deus do Dinheiro): dos guerrilheiros de guém pensava em sair dali : mesmo porque
lentos e melosos que escorreram pelos virgens maran ys: do alto daquela montanha tacão de pau contra as tropas blindadas não havia aonde Ir: o dragão de ferro já deita·
meus braços, pegajosos e pútridos: rapi- sagrada atirei contra o céu a lança de do general Curupl: anão bigodudo e antro- va seus trilho em cima dos ranchos e das
damente atingi um outro na altura baixa da Gumercindo Saraiva para at ingir as nuvens pófago que se arrasta pelas mesetas de plantações: dei-lhes uma ocupação: a
barriga, rasgando-o nas molezas da f!ler- e aplacar a ira do grande chefe botocudo Entre-Rios com seu membro inchado pela guerra. .
dalhada, fazendo com que suas tnpas Krinton Jissakiju que trovejava violenta· febre pantaneira: im : proclamei a monarqUia nos ser-
torcidas e retorcidas rolassem a meus
pés: pisêl-as com vontade, sapateei sobre
elas- e ainda pude enfiar o ferro nas costas
mente numa noite de tempestade amea-
çando inundar o mundo: rezei abraçado
aos meninos Caraibebes para que a huma-
os moradores ilustres do sertão de Serra
Acima vêm atê minha presença: Dom R~­
cha alves, futuro imperador dos carrasca1s:
Euzêbll'l dos Santos, o negro Zebinho,
S tões de Taquarussu : toquei com a
espada de imperador os ombros do
patriarca Dom Rocha Alves: rei dos
do terceiro Guampudo, com toda a força nidade se desse as mãos sobre a bandeira car rascais: imperador Iesteiro das trovas
para penetrar bem fundoentreascostelas: o branca com a cruz verde ao centro - e apóstolo fiel e codificador de todas .as e emboladas: colhedor imperial de
sangue jorrando aos borbotões: esporean- doutrinas: Praxedes Damasceno, fanseu erva-mate: monarca das coxilhas: herdeiro
afastasse de nossos campos os mensa-
do o chão de Be Ra Zll: geiros de João Caveira (linha das caveiras): dos textos biblicos, bodegueiro e mártir plenipotenciário de O. Pedro III e da famí-
senti uma vertigem Infernal que me en- da nova religião: Chico Ventura, tropeiro lia imperial: Inimigo dos coronê1s do ser-
nunca afirmei a ninguém (nem qu~ sim
volvia rtum redemunho de lembranças mal nem que não) ser filho neto, lrmao ou que não laçaria mais bois - e sim ho- tão, enriquecidos agora na fortuna _dos
assimiladas: sempre a maldição da me'!'~ mens: Dorzelo dos Santos, porcadel~o novos negócios, na venda de terra fác11 ao
par~nte de São João Maria, deixando que
ria agonizante: cai de costas num preclpl- transformado em escriba: Silvano da Sil- estrangeiro voraz, vingativos contra os
cada um tire a medida exala de minhas va da lida de erva-mate: todos eles, com
cio sem fim, enquanto os outros quatro palavras: sei que muitos jamais me aceita- matutos a exigir minha presença nos tn-
Cais se atiravam sobre meu cadàver, ten- ram como santo e me acusam de perve_rtl-
u~ objetívo oculto por trás do brilh.o dos bunais do sacrossanto poder: mas eu não
tando cerrar os maxilares em torno do pes- olhos negros: vingadores que um d1a vol- vou. sem licença de Zambe njo abro mi-
do, louco e satanista, insinuando relaçoes
coço, procurando a jugular: Tarzan ~ravan­ tarão a esta terra para expulsar o europeu nha ourucaia: respondi-lhes que a distân-
diabólicas de hipnotiSI'T\O. possessão e que aqui aportou com o objetivo de_ras-
do os ...anino$ brancos nas artênas de bruxaria com as meninas v1rgens das San- cia entre os Coronéis e eu era a mesma
Numa, o Leão: a presença avassalado!a da gar nossas veias e pilh~r as nossas nque- que entre eu e os coronéis: empunharam
tas Missões: tudo obra do Dai da Mentira:
Morte invadindo meu corpo: meus museu- todas as mulheres que tive foram trazidas zas deixando atrás de s1 apenas o des'erto as armas da vingança e mandaram um tal
los amortecendo suavemente, como suave pela Princesa do Arocá, também chamada e o toco das árvores: eu os destruirei! : Juca Ruivo me matar: no mesmo dia preto
onda tóxica a deslizar pelo interior das Dandalunda: protetora das maãs e espo- bando de canalhas imundos! ratos antro- velho Pai Antero cortou sua cabeça com o
carnes e das veias: então eu vi, flutuando pófagos do novo Mundo, cáftens da pros- aço afiado de Manitu: a cabeça decepada
sas:
entre as nuvens que mudavam de cor a ti t uição mental: vós sereis jogad_o s na ficou rolando, rolando, seguindo para
empre fui caboclo de boa paz e aten-
cada instante, entre a explosão multicolo-
rida das estreias, o cavalo branco de
Ogum ensilhado com o armamento farra-
po completo: lança, facão e boleadeira:
S di a todos por igual: salvei da morte
certa muito negro que não tinha
onde cair morto e curei muita mulher
cova das serpentes: eu aviso: av1so às
maês dos estrangeiros: vossos filhos,
quando feitos prisioneiros serão jogados
em covas de serpentes venenosas, urutus
sempre os passos dos assassinos: quan-
do os coronéis se fecharam para sempre
em suas casas com medo do povo, a
cabeça de Juca Ruivo, vendo que era

m
de fazendeiro rico: não me Interessam as amarelas, grossas cascavéis de chocalho
eus cabelos ficaram brancos de re- riquezas porque o meu reino não é deste rejeitada, resolveu transformar-se em algo
pente, enquanto uma fenda abismal grande, corais rapidlssi~as, jararacas que não tivesse valia para aqueles
mundo: protejo os sertanejos: eles são a famintas e nervosas, cot1aras com a cruz
rasgava a superficle da Terra, vomi- minha gente: dou-lhes de graça remédios homens ingratos: não quis ser terra,
tando uma brutal maré de magma estampada na cabeça: ali serão mord~dos nem água, nem bicho, nem chuva, nem
ervas de quebra-pedra, vassourlnha e milhares de vezes: seus corpos incharao e
fervente na crista da qual vinham des poeljo: minhas orações são cozidas em sol. conduzirá o povo â guerra; a
lizando o Surfista Prateado e os Quatro apodrecerão envolto em cobras que pene-
patuáseamarrados num escapulárlo fecha- reação 'se pôs a caminho: as linhas tel~
Cavaleiros do Apocalipse: todos engoli- trarão por todos os buracos de seus cor- gráficas chiavam noite e dia entre o sertao
do que vem dependurado sobre o peito, no pos: boca, olhos, ouvidos: quando a fome
dos pelo continente perdido de Atlântlda lugar do coração: assim foi fechado o e o litoral· os republicanos resolveram nos
enquanto eu disparava em galope louco bater à vossa porta sentireis em minha
corpo de muito cabra valente, que mesmo alma a chama sagrada para a luta por vós e tocar para a d 1visa do Paranâ: terras do
pela imensidão do espaço aberto e vaz1o: deixando a ossada brilhar nos campos Contestado: antecipei-me e cruze1 o Rio
o sertão a virar mar e o mar a virar sertão: o por vossos filhQs: quando vos humilharem
do sem fim não estâ mais sujeito ao amor do Peixe em direção aos campos do lrani.
céu, o mar e o sertão sempre se reencon- eu estarei a vosso lado: quando as bom-
da Morte: pois meus homens não morrem : mandado o povo dispersar: as autoridades
trando no inicio e no fim das grandes bas atómicas destruirem as nossas plan-
passam-se para meu lado, transformando- tações e matarem nosso gado comeremos paranaenses embrabaram d izendo que nós
catástrofes: a angústia das amplidões e a se em acauãs e depois em guerrilheiros do éramos testas de ferro da invasão catan-
claridade excessiva: a carne viva dos prisioneiros tomados nos
grande Exército Encantado: nense· recuei ainda mais pelo sertão a
cravei a fundo as espóras de prata nas combates:
quem tem sorte ganha, quem não t_em Foi o povo quem me deu o Destino: dentro e desarmei o Exército Encantado.
paletas do Corisco de São Jorge: na mão perde e apanha: foi _isso q_ue eu sempre ::leixando a meu lado apenas os vinte e
esquerda afirmei as rédeas de cetim : com Dom Rocha Alves entregou-me um cava~o
disse para a pobreza do sertao, sem nunca árabe e disse que eu fõsse passar o verao quatro r.avale1ros que formavam o quadro
o braço direito levantei , em riste, a lança me preocupar em subverter leis, igrejas ou do :1 Doze Pares de França: os coronéiS
imperial de Gumercindo Sara1va: a linha com êles no lugar chamado Arraial de São
governos deste e do outro mundo, confor- Bom Jesus do Taquarussu: ali todos esta- riram de mmha fraqueza e davam gritos de
reta de São João Maria: o raio de Anhan - me fui acusado pelos corvos encapuça- coragem no alto dos chapadões: f ique1
gã: sim bolo vivo da chefia incontratàvei do riam reunidos em armas para protestar
dos: se nunca me comprometi com a Re- contra a entrega do Vale â Brazil Rallway calado: quem não pode avançar, recua:
Exército Encantado: liberdade para o povo ampos do lranl: paisagem que
do sertão:

quando apareci pela primeira vez os


pública foi porque ela expulsou os patrí-
cios da terra de berço, colocando aqui e
no Rio Grande muita gente de cabelo
alemão sob o pretexto de que eram Imi-
and Mlnlng Company: tentâculo esponjo-
so do truste a se arrastar por encostas e
montanhas, a furar morros e derrubar pi-
nheirais virgens: recebendo do governo a
C
· sairá de mmha memória embriagada
sempre pelo cauim dos xoklengs:
vastas coxilhas entre-cortadas de
meus dentes jà estavam podres de tanto.. grantes de qualidade superior, embora as concessão de quinze quilómetros para ca- florestas, vales orofundos e despenhadei-
fumar o amarelo: mas ainda era jovem e linhas da fronteira tenham sido alargadas da lado dos trilhos, ao longo de todo o ros tenebrosos: território sagrado de nos-
forte: moreno, a barba cerrada, os olhos por nós mesmos: deram para os gringos rastro dos ferros: serpente maldita a ex- sos antepassados: santuàrio dos errantes
penetrantes, protegia as Idéias com um das Europas a madeira, a erva-mate e até pulsar da terra milhares de caboclos po- do Novo Século: re1no encantado onde
gorro de pele cie onça que me dera o pai as terras de pastagem: levaram t udo: dei- bres, posseiros trabalhadores, colonos re- correm livremente os filhos de Acá-Pere, o
dos índios; r.aro Sacaibu: corria o ano de xaram muito rastro e pouco pasto e ainda mediados, roceiros, lavradores, agrega- velho indio ~ue tem no alto da cabeça uma
1912 e as Europas jà se preparavam para sairam rindo dos calporas, curupiras de dos e Imigrantes: gentalha miúda dos ferida aberta, profunda e Incurável, de
terçar armas bem mais poderosas do que pé-redondo viciados em cachaça e fumo sertões de Be Ra Zil que um dia ali che- onde saem núvens de pássaros, vermes e
meu facão paraguaio: foi chegar e ver: a de rolo; montando porco cateto e mos- gou para prover seu sustento miserável, insetos que povoam as vast1dões abertas:
gente do interior estava esperando a pala- trando os dentes podres para as raças lâ para dar comida â filharada: agora expulsa terra fertlllssima dos sertanejos de Be Ra
vra de um novo santo que lhes trouxesse o do norte: a República é coisa do Tinhoso, da noite para o dia: perdendo tudo (ou Zll: refúgio dos desertores e derrotados
sonho de um mundo diferente, onde es- conforme me ensinou chefe Gumerclndo nada porque tudo é nada): despejados e das guerras farrapas: tudo sem dono até
corresse leite no vale dos rios e onde as Saraiva em nossas correrias nas coxilhas varridos das querências que haviam cons- aonde a vista alcança no horizonte
pedras fossem cobertas de farinha de bei- do Rio Grande: e E!U sempre quis beber truido com as próprias mãos: desmorali- longlnquo:
jú: não o mundo dos grandes donos de água limpa para que todos dela também 'zados dentro das próprias casas: corridos Sempre os olhos de uns a alcançar
Serra Acima, onde a ordem Implacável da bebessem: embora a maior parte dos se- das próprias terras: mais do que os de outros. os ingleses da
espada era abençoada pela cruz coberta de nhores sempre tenha sujado a àgua para durante duas semanas percorri as estra- Companhia Agrária e Frlgorlflca Sul-Brasi-
sombreiros negros: mas o mundo alegre os outros beberem: das do sertão arregimentando minha gen- leira dizem que vão adquinr tudo aqu1lo e
dos penachos brancos e dos cachimbos m minha cabeceira, sempre aberto te e quando cheguei a Taquarussu mais de implantar métodos modernos de produ-
de barro de Angola: curandeiro, curibóca, estâ o livro de Carlos Magno e .dos trezentas armas vinham no meu rastro: à ção: o homem será afastado: uma teia de
mandraquelro, benzedor: eu estava ali: • Doze Pares de França: foi ali que eu frente de todos, envolta numa bandeira aranha com longas babas de arame farpa-
ministrava ervas e de minha presença to- descobri as guerras da cristandade branca, seguia uma estátua de Cristo d.> do cobnrá os campos virgens: os nativos
dos saiam curados: e quanto mais gente contra os mouros: de Tupac Amaru contra tamanho natural de um homem: a face de ficam embasbacados com as máquinas
eu trazia de volta às alegrias da vida, mais Antônio Arrlaga, traidor de sua própria Deus estava igual àquela terra seca: mol- que tudo fazem e se preparam para ceder
gente me procurava: pois quem cura um, gente: do chefe Sepé Tiaraju , 1evantando dada pelo frio de Serra Acima, machucada lugar· vão todos morar nos arredores de
cura todos - e quem salva todos salva o os índios desarmados, contra as forças de pelo inverno eterno da pobreza, ela um dia São Paulo, onde outras mâqu1nas preci-
mundo: El Rey de Portugal : de Macunalma da haveria de se transfigurar: tal como a sam de alimento: mas nem todos querem
m Corrlentes fiz ressucltar um tal várzeas amazónicas contra o Monstro-Ca- natureza reverdesce depois das chuvas de sair:
Adão Domador que havia quebrado a raíba: dos quibundos contra os escrava- primavera, tal como o capim rebrota de- alguns posse;ros resolvem ficar e mu1tos
• espinha numa lida de amansar burro gistas do deserto aràbico: coragem e sa- pois das queimadas de agosto: também aventure~ros começam a limpar os fuzis:
xucro para a feira de Sorocaba: no crifício sem fim dos heróis de olhos ne- Jesus renasc(lria em todo o seu esplendor: todos virão para o meu lado: desta vez o
Vale do Rio do Peixe fiz crescer a p&r gros: tal como ocorreria séculos mais tar- ao lado do povo e da natureza: a eternida- povo de Minará vai resistir aos desejos de
na de um ferroviário da Brazll Rallway de nestes sertões do Contestado: o povo de de Mai-MIIho arrancará a fartura do Carrampempe: perdeu o medo e agora
que hav1a caldo sob as rodas de um trem : enfrentando em campo aberto, de fren te, o selo da terra: Mãe-do-Ouro se levantarA do ninguém mais pode convencê-lo a se
em Campinas afastei uma praga de gata- poderio fl uvial de Taquatu com suas mi- fundo das grotas e subirâ aos céus numa ajoelhar: vai se conflagrar o sertão:

8
as torças do Paraná Já me rastreavam lo e fot cercado: mandet que o coronel instante, entre a explosão multi-colorida dos homens regredtu às cavernas e lot
desde Palmas até a barra do rio Pelotas. tnvasor fosse picado a tacão e sal em das estrelas. o cavalo branco de Ogum dtmtnutndo em número até não mats
em mUJtas grotas fui obrigad0 a me escon- perseguição às tropas que fugtam. queria ensilhado com o armamento farrapo habitar as supertictes calcmaoas: seus
der muttos passos sem vau tive que atra- tomar-lhes a bandeira republicana e os completo: lança, facão e boleadeira aqueles homens tngratos. não ques ser
vessar: mas agora chega; nunca ttnha ido tambores que agora já não repicavam : meus cabelos ficaram bra"lcos de re- terra. nem água, nem btcho. nem chuva.
atrás de contusão: mas ria bngar e dar A batalha já estava ganha mas eu havia pente. enquanto uma fenda abismal nem sol conduztrá o povo á guerra:a
preJutzo se preciso fosse. a fuga não po- me afastado demats: no Passo do lran•. rasgava a superficte da Terra, vomitando últtmos vestigtos apagados como um
deria se transformar em derrota: os emis- sete soldados do Governo de Satã sete uma brutal maré de magma fervente. na desenho na areta. coberto pelas ondas do
sários de paz que eu h'lvta mandado demónios da legião dos Sujeiras, sete cnsta da qual vinham deslizando o Surfis- mar:
sempre eram presos e passados no lto serpentes prateadas. malditas e mal enca- ta Prateado e os Quatro Cavaleiros do Quando vtvo. eras considerado profeta
da espada: o povo estava cansado de se radas. de cujas fossas nasats cabeludas Apocalipse: todos engolidos pelo Conti- pelos matutos da Serra Actma a Morte te
retirar e fincava pé nas barrancas do Uru- exalava um .cheiro fétido. esperavam-me. nente Perdido de Atlãntida, enquanto eu transformou em santo São Sebasti ão das
guai: armas seriam dtstriouidas para de tocaia. dtsparava em galope louco pela imensidão Alm as, S5o Jorge. Ogum , Olarum . Ogà-
todos: os Doze Pares de França ensina- Com um faconoço abri a cabeça do do espaço aberto e vazto: o sertão a vtrar og6: poderás agora entrar com os vãnda-
vam a estender linha e os entreversos só primetro Aspudo em dois gomos sangui- mar e o mar a virar sertão: o céu. o mar e o los em Cartago para por ftm aos últtmos
seriam aceitos na boca dos matagais; nolentos e melosos que escorreram pelos sertão sempre se reencontrando no tnicio vestigtos da autondade branca em terras
vindo do Rio Grande, o comandante meus braços, pegajosos e pútridos: rapi- e no fim das grandes catástrofes: a angús- de Al11ca. apressando o fim do grande
Demétno Ramos organizava a resistêncta. damente atingt um outro na altura baixa da tia das amplidões e claridade excessiva. império do Ocidente Corrupto, retirado de

a s tropas do Paraná senam coman-


dadas pelo coronel João Gualberto,
que trazta mais de quatrocent"s
pedaços de corda para nos manear e
lazer destilar assim garroteados pelas
barriga, rasgando-o nas molezas da mer-
dalhada. fazendo com que suas tripas
torcidas e retorctdas roléfssem a meus
pés: ptseia-as com von tade, sapateet
sobre elas e ainda pude enfiar o ferro nas
Cravei a fundo as esporas de prata nas
palestas do corisco de São Jorge: na mão
esquerda afirmei as rédeas de cetim: com
o braço direito levantei, em riste, a lança
imperial de Gumercindo Saraiva: a linha
suas mãos descarnadas aquele vasto
cele•ro de nquezas, garanltndo o dominto
do Medtterràneo e ameaçando sangrar a
mãe Europa no própno ventre:
toste acusado de farsante. aproveita-
ruas de Curitiba: tal como Borba Gato fez costas do terceiro Guampudo, com toda a reta de São João Maria: o raio de dor e conqutstador de mentnas. mas as
com os noventa mil índios que preou nas força, para penetrar bem fundo entre as Anhangá: símbolo vivo da chefta incon- donzelas tam ao teu leito para perder os
Missões: todos amarrados para morrer costelas: o sangue jorrando aos borbo- tratável do Exército Encantado: liberdade demõntos da loucura e dali saiam mats
nas cavernas de ouro das Minas Gerais, tões: esporeando o chão de Be Aa Zil : para o povo do sertão: puras do que quando entravam: delimram-
arrancando riquezas que os nossos pais (João Francisco encosta a faca na pon· te nos JOrnats da época como lombrosta-
osé maria, José maria: bem sabes

J
portugueses Iam mandar para os primos ta do nariz do prisioneiro que, num refle- no. crim tnoso nato de nanz achatado,
que a morte. senhora do mundo, làbtos empapuçados, fronte curta e pelu-
da Corte de Inglaterra: até grandes chefes xo. ergue a cabeça : a afiadissima lâmina aumentou ainda mais os teus pode-
como Kuru-Sakairê, Karakará e Battago- corta-lhe o pescoço, de orelha a orelha: o da, tendo a cabeçorra em desproporção
res milagrosos e guerreiros: enxer- com os braços curtos Obatalá te ajudará
gõ toram cuspidos na cara pelo bandetran- homem dá um berro e cai morto): g agora através dos olhos de todos os na puntção aos tnlames ao lado de Xangõ
te sórdtdo: enti uma vertigem internal que me gav•ões de penacho branco que voam
pois que viessem os soldados de João
Gualberto, com suas máqumas-metralha-
doras e suas botas de cano CtJrto: encon-
S envolvia num redemunho de lembran-
ças mal assimiladas: sempre a mal-
dição de memória agonizante:
sobre os mais altos despenhadetros de
Krijíjimbe, a grande serra geral dos
índios que se estende desde o lbiapaba
ridiculanzarás os tiranetes que se perde-
ram na memória do próprio desvamo· tu
bem sabes. Josemana, que eles são os
verdade•ros possessos: os destru•dores
tranam no sertão o seu túmulo: os que cai de costas num precipício sem fim cearense até as coxtlhas gaúchas do da natureza· os condenados da Terra.
não morressem no tio do facão seriam enquanto os outros quatros cães de atira-· Caverá: formtdável c.bstáculo natural que
aprisionados e jogados vivos nos poços vam sobre um cadáver, tentando cerrar teu cadáver agora está enterrado
das cascavéts de chocalho grosso. as tnvasões brancas levaram séculos para quase á llor da terra. umas poucas tãboas
os maxilares em torno do pescoço, transpor: sem limitesdeespaçoede tempo,
o último aviso de Jão Gualberto foi um cobrem teus ossos já roidos pelos
procurando a jugular· Tarzan cravando os teus olhos poderão agora assistir
btlhe:e escrito a lápis: pedia rendtção guaraxains: tua carne se transformou em
caninos brancos nas artérias de Numa, o o desenrolar da história de Be Aa Zil:
tncondtctonal, ao mesmo tempo em que leão: a presença avassaladora da Morte Nyara dos nos profundos tua sepultura
ameaçava combate total· em caso de desde o dta em que o fogo sagrado tot está numa roça nova. de onde brotara
tnvadindo meu corpo: os músculos amor- roubado dos céus pelos Tumerahás do
reststêncta entrariam por todas as estra- alimento para o povo
tecendo suavemente: como suave onda chaco paraguato até o dta em que a raça
oas e destruinam tudo: respondt-lhe que tóxica e deslizar pelo interior das carnes e (trecho de livro inédito .. A Guerra do Contes-
não dava o dtto pelo não dito: ficava e oas vetas: então eu vi, flutuando entre as tado ..)
lutava: João Gualberto então levantou nuvens que mudavam de cor a cada
suas tropas e marchou: na passagem do
Arroto da Roça Velha, Afonjá dos Anagõ s
guerra santa
resolveu tnterfenr a nosso favor e o burro A Guerra do Contestado ocorreu em 1912 e
que carregava a máquina-metralhadora 1916, na região que tomou esse nome por se
catu num lençol de areia movediça e se tratar de uma área dtsputada pelos Estados dé
atolou para sempre: era um aviso. mas Santa Catarina e Paraná A região con f lagrada
mesmo assim o mtl ttar prosseguiu: abrangia o chamado Planalto Catarínense,
O ataque se deu na madrugada chuvo- zona que se manteve relattvamen te tsolada do
sa de 22 de outubro de 1912: mal o dta ltloral, com contatos mais frequentes com o
clareava. a vanguarda de João Alberto
começou a t rocar tiros com os meus
homens: det ordeolS para que o combate
fosse evttado de f rente: os cavalananos
dever~am procurar envolver a coluna inva-
sora pelos lados, fust igando-a até que o
grosso dos sertanejos conseguisse atrai-
los para o combate nobre: à arma branca
ret alhando-os no facão de aço. podtam
lutar que do nosso lado ninguém morrena.
nem mesmo eu: quem caísse no fogo da
guerra ressuscitaria mais forte ainda, para
brigar corn dez. cem soldados: eu mesmo
desceria das nuvens à frente de um colosso
no comando do Exército Encantado de São
Sebastião que ia ocupar estes sertões
durante muitos séculos, implantando aqut
a monarquia das abelhas, das formigas e

n
dos tatus:
o .Banhado Grande do lrani, João
Gualberto estendeu sua primetra
ltnha de attradores: logo se arrepen-
deria de ter escolhido tal terreno: aos
gntos de Vtva a Ltberdade! e Vtva a Coroa
do Céu! meus homens caíram sobre ele
com toda a fúria de quem está defendendo
o próprio chão: os cavalos começaram a
se enterrar no barrai e a arma nobre entrou
em cena: o reflexo na água do aço tazta
relampejar os facões sertanejos: gritet
para que meus homens se chegassem
ainda mats: choques, gntaria. tumacetra -
e logo a debanda geral: os peludos fugtam
para todos os lados, deixando a armas e
descalçando as botas para não se enterrar
no tremedal· João Gualberto catu do cava-
Paraná, São Paulo e Rio Grande do Sul. A
população do Planalto já era de longa data
afeita à experiência da guerra e das lutas civis.
Quando do povoamento, efetuado a partir do
século XVIII, principalme·nte com paranaen-
aes paulistas e gaúchos, à luta contra c
lndigena seguiram-se conflitos entre os clãs
OIELHA
ESTÁ~OO leia e assine,
familiares e respectivas clientelas, visando
garantir assenhoreadas. A sociedade rústica
NASBANCI6
que velo a se constituir fundava-se a neces-
aidade de cooperação entre Iguais e desiguais,
navlgênciadeum autoritarismo quase militare
ESCRITA
na disponibilidade, por parte dos chefes em-
preendedores, de um minimo de recursos
materiais. Essa tradição de luta e de violência
revista de literatura.
nlo se prendia, entretanto, apenas às condi-
ções de ocupação da região. Sua população foi
afetada pela Guerra dos Farrapos e pela Revolu-
~o Federalista de 1893. Com a República
agravaram-se os conflitos entre Paranà e Santa
Catarina por causa da questão de limites. Em Vertente Editora ltdo.
tOdos esses conflitos, a participação da popu- Fone: 62-3699
lação fez-se segundo as linhas definidas pelas· Ruo Monte Alegre, 1434 - Perdizes
pirãmides de poder, tlplcas do mandonlsmo 05014 - São Paulo {SP)
local. O catolicismo rústico de sua população
vinculava-sê à figura dos chamados monges.
Diante da rarefação de padres, assumiam
papéis semelhantes aos destes últimos, mas,
eo contràrlo deles, estavam a serviço da auto-
nomia do mundo religioso rústico. Assim ,
~nevltavelmente viram-se envolvidos pelas lu-
tas da região. Dois deles têm seus nomes
ligados ao movimento rebelde do Contestado.
João Maria, cujos laços com os revolucionários
federal istas de 1893 são conhecidos, foi,
após seu desaparecimento, e em função da
lenda de seu futuro regresso. Inspirador dos
sertanejos em sua revolta. José Maria, que se
- FICÇAO
d izia irmão do anterior e foi o líder do primei-
ro ajuntamento de crentes, tombou jà no
embate inicial entre fiéis e cepressores. Seu
UMA R-EVISTA PARA
regresso, ao lado de João Maria, passou a ser
esperado pelos sobreviventes.
José Marta havia começado sua carreira
O PRAZER
de rezador e curador em 1912. Nesse mesmo
ano seu prestigio em ascensão coloca-o em DA LEITURA
posição de liderança num ajuntamento realiza-
do em Curitlbano (SC), por acasião das festas
do Senhor Bom Jesus. Entre os romeiros para
ali atraldos, havia posseiros expulsos de suas
terras pela ação das companhias colonizado-
ras que penetravam na àrea. Sob pressão e
ameaça de um coronel (prefeito de Curitiba-
nos), desfaz-se esse ajuntamento. José Maria
e um grupo de adeptos desloca-.se então para
um bairro rural próximo do municlpio de
Palmas, área sob controle paranaense mas
em zona de limites contestados. Interpretan-
do o fato como uma Invasão catarinense, as
autoridades de Curitlba enviam uma expedição
para dispersar os crentes. No comba\e trava-
do morrem José Maria e o coronel Gualberto,
comandante do Regimento de Segurança do
Paraná.
Em 1913, os conflitos pollticos em Curiti-
ba se agravam. Ocorrem violências entre os
adeptos do coronel-prefeito e a clientela de
um outro coronel, herdeiro de uma tradição
de mandon•smo familiar, com raizes no Impé-
rio. No sertão que envolvia esse municlplo
começa a surgir a lenda do regresso de José
Maria ressurreto e do inicio próximo da Guer-
Jl
R~
.ra de São Sebastião, embate escatológico
que envolveria, de um lado, um Exército
Encantado e, de outro, as Forças lmpias. COt-1
~e
Aproximadamente por essa época, em Taqua-
ruçu. mesmo lugar em que se formara o
primeiro ajuntamento, José Maria aparece em emtl1Ã
visões a uma menina, ordenando uma nova
mobilização dos fiéis. Algumas centenas de LlVR.OS s.P.
sertanejos começam à afluir a Taquaruçu.
dedicando-se a pr~tlcàs religiosas. Não de-
morou que às ameaças se seguisse um ata-
que por trÇ>pas do Exército e da Policia Mili-
tar, auxiliadas por civis. Esta denúncia resul-
· versus conta a saga la- /
ASSINE .VERSUS
tou de denúncias do c~ronel-prefeito de Curi-
tiban.Js, que assegurara àt> autoridades da tino-americana. Quatro a&-
República estar se tramando em Taquaruçu
um movimento de restauração monàrqulca.
culos de silêncio e solidão. Nome ........................ .
A história de povos desa-
Na verdade, ele estava preocupado com o fato
de que, entre os crentes. havia adeptos do recldos . Os homens que Rua ............ No ........... .
chefe politico da oposição. A es1e prime.ro
embate, os fiéis resistiram com êxito: porém
construlram estradas e ci-
dades. Os heróis que com-
Cidade ...................... .. .
foram arrasados no mês seguinte. A partir de
então, os sobreviventes, acrescidos de novos bater~m até a vltóTta ou a Es(ado .......... Cep ...... . .. .
morte. O futuro posslvel
contingentes, que, em verdadf!iras romarias,
a eles se jUntaram, formaram sucessivas vilas do Continente. Pela recu- Enviar cheque nominal ou vale pos-
santas. Acossados, resistiram empregando a
técmca de guerrilha, até que, forçados pelo
cerco, reuniram-se em uma enorme cidade
peração de uma memória
perdida. A aventura de Nu-
tal de Cri 120,00 para Editora Ver-
santa, o reduto de Santa Maria. Ali, resistiram estra América em reporta- sus Ltda., Rua Capote Valente,
com uma firmeza só comparável à dos defen- gens, contos, poesias, en-
sores de Canudos. Mas a entrada em cena,
em 1914, de seis mil soldados do Exército e
saios e documentos. 376, Capital, SP, CEP 05410. Cada
da Policia, auxiliados por um mil •vaquea-
nos• locais, utilizando armamento moderno
Nossa publicação faz
parte da Imprensa Indepe-
assinatura dá direito a 12 números
e, até mesmo, tentando o emprego da avia-
ção, selou-lhes o destino. Em 1915, ficou
ndente do Pais e necessita de Versus mais edições especiais.
de seu apoio para viver.
definida a derrota dos rebeldes, mas seu
último líder, Adeodato, só foi capturado em Assine Versus por Cr$ Peça nossos números já publica-
1916. (Extraído de um texto de Ouglas Teixei-
ra Monteiro, professor da USP, publicado em
120,00 (12 números mais
~lções especiais).
dos.
•História do Século XX .. ).

10
UMA
VIAGEM
,
POLITICA
Versus - Nesses 13 anos de trabalho como
estudioso da América Latina, quais as grandes
mudanças que você nota no .continente?
PELA . # . ·, .. fator de tumulto. Mas não devia ser tocada a
ordem trujillista. Com sua eliminação, foi favo-
recido um velho liberal, Juan Bosch, que se

NEWTON - As qrandes mudanças que noto


foram as que ocorreram dentro de mim. Eu escre-
vi um livro sobre Kennedy, porque fui um grande
entusista de seu governo. E· hoje descubro,
tardiamente, como muita gente. que o Kenne-
AME RICA elegeu com uma plataforma inspirada no so.cia-
lismo democrático da Europa. Ele, promet1a a
reforma agrária, a criação de armazens do povo,
mas representava também o rompimento. da
velha ordem trujillista. O que os Estados Un1dos
então fizeram? Foram buscar um politico exila-
dismb foi pura e simplesmente um instrumento do, o Joaquim Balaguer, que havia sid.o ur:na
renovado do imperialismo norte-americano, em- criação do próprio Trujillo Balaguer fo1 ele1to
bora muito mais bem ajustado à realidade da presidente, restabeleceu a velha ordem sem o
América Latina. A primeira grande transforma- Trujillo e está até hoje lá.
ção fm a revolução cubana, que determinou o
surgimento do Kennedismo. O principal proble- VERSUS - Você disse que a Aliança para o
ma de Kennedy foi evitar que o exemplo cubano Progresso fracassou e, com ela, os liberais
se propagasse. A essência da Aliança para o reformistas, como Figueres, Betancourt e Bo-
Progresso eram as reformas. Houve um movi- sch. Você acha que a América Latina está
mento de ressurreição de velhos liberais, como destinada a viver entre reg!me.s de direita e de
Juan Bosch, na República Dominicana; Betan- esquerda permanentemente? A democracia é
court. na Venezuela; Haya de la Torre, no Peru, e impossível na América Latina?
Figueres, na Costa Rica. Mas os problemas NEWTON- Você quer saber se as duas ú~ic_as
latino-americanos eram tão sérios que não su- alternativas são essas: uma ditadura de dtretta
portavam soluções liberais. Os próprios liberais ou um reqime de esquerda?
acabaram naufragando, na impossibilidade da
Al1ança para o Progresso encontrar fórmulas lati- VERSUS ~ Sim, porque esses políticos refor-
no-americanas que se ajustassem aos interes- mistas sofreram uma série de golpes. O Fron-
ses do~ EUA. Dai a queda de Juan Bosch e a volta dizi caiu o Bosch foi deposto e assim por
do penodo das intervenções, com o desembar- diante ... A Colômbia e Venezuela são os únicos
que dos fuzileiros na República Dominicana. regimes democráticos hoje na América do Sul.
NEWTON - Um dado muito importante é a
Versus - No meio disso. houve a crise dos situação ~a Colômbia. Vo~ê viu ag.ora nas últi-
mísseis, em que o entendimento das super- mas eleiçoes uma abstençao d.e ~a1s de !O 0Yo do
potências ficou patente. Que consequências eleitorado. Muita gente, com 1de1as anti-demo-
teve isso? cráticas. procura se aproveitar desse dado e de
outros como uma prova de desmteresse popular
NEWTON - Ficaram estabelecidas as áreas de pela democracia. Mas é preciso analisar ess~
influência. A União Soviética não tinha que se dado muito bem. é a própria demo_c~acia q~e va.'
meter aqui. Os Estados Unidos voltaram à poli- dizer se a alternativa para a Amenca Latim~ ~
tica de intervenção. Em 1965, Johnson disse que a esquerda ou a direita. Ela vai mostrar,na prati-
asguerras civis não eram mais, sob o ponto de ca, se pode funcionar na América ~at~na, tra~a­
vista norte-americano, questões internas. Os lhando em favor das grandes ma1onas n?c1o~
Estados Unidos se consideravam no direito de nais. E não em favor de minorias como fo1 ate
intervir em qualquer questão interna que preju- agora. Existe um estudo da Universidade Nacio-
dicasse seus interesses nacionais. Isso violen- nal da Colômbia, chamado <<Voto e transforma-
tou a mais importante conquista jurídica po A primeira reportagem de Newton
Carlos foi de raiva. Levara uma surra aa mãe ção'r que mostra que o voto ali não tem conse-
sistema interamericano - o principio de não- guido transformar nada, que as b~ndei.ras levaf)-
intervenção - conquistado em 1935, quando e fez um jornalzinho contando tudo. O amor
tadas durantes as campanhas ele1tora1s e comi-
Roosevelt tratava' de obter o apoio da América pela profissão veio mais tarde, quando traba- cio~ sao logo arquivadas depois de contados ~s
Latina para a guerra que se avizinhava. E a lhava na uTribuna de Imprensa ", junto com votos e empossado o vencedor. A reforma agra~
solidaridade da América Latina era muito impor- Carlos Lacerda . nos anos de combate ao ria na Colômbia foi decretada em 1960 e, ate
tante por causa das matérias primas, sobretudo getulismo. Depois , arrependeu-se. No hoje, a estrutura agrária perman~ce a !l1eS!l)a.
do Brasil. A volta da política de intervenção uJornal do Brasil n, descobriu a América lati - Creio que esse exemplo colomb1ano e mutto
situava o continente na estratégia norte-ameri- na e o mundo . O caso de· amor continua cada importante. Ele pode mostrar se a democra9ia
cana de conter qualquer tipo de movimento de vez mais forte hã 13 ano s. na América Latina tem condições de sobrevlven-
libertação nacional, que foi a premissa da inter- Desde 1963. Newton Carlos mantém uma cia garantidas por transfo_!'mações que b~nefi­
venção no Vietnã. coluna diaria sobre politica internacioal na ciem as massas. A evoluçao dos aconteclmen-
VERSUS - Depois da queda dos velhos libe- .. Folha de S. Paulo " e escreve agora também tosnaColômbiaéumdado muito importante para
rais, que coisas importantes aconteceram? para o uPasquim .. e «Revista do Homem ... Foi se saber da evolução da democracia na América
correspondente do uCiarin ... de Buenos Latina.
NEWTON- A partir da intervenção na Repúbli- Aires. durante seis anos; da revista uErcilla n,
ca Dominicana, tudo recomeçou. Do ponto de VERSUS - A gente vê que após a morte de
vista de repercussão e imagem, ela foi um do Chile; e uOiga n do Peru . É também colà- Kennedy há um ressurgimento dos regimes
desastre, mas os Estados Unidos conseguiram borador da lnter Press Service. · . militares no continente. A dúvida que se tem é
seu objetivo. Aqui é preciso recuar um pouco. · Aos 48 anos. tem cinco livros publicados da possibilidade de sobrevivência de um regime
Sabe-se hoje que a CIA participou de alguma ·. e vive atualmente refugiado .numa casa em .· democrático que promova reformas pacificas.
maneira do assassínio de Trujillo. O que se diz é ". Santa Teresa, no Rio , de onde; sâi · só ' para ·
:. viajar . .. NewtC:)n·· Càrlos c'onversoÚ . du-rante NEWTON - A Aliança para o Progresso foi
que ela forneceu as armas. Por que era preciso imaginada como um instrumento de reformas
matá-lo? Porque Trujlllo começava a ser um algumas horas . com VERSUS·. Pàrtlciparam
fator de tumulto. Ele patrocinara, inclusive, do encontro: Flavio Moreira da Costá: escri: .
mais ou menos suaves que contivessem trans-
tentativas de assassínio de outros presidentes formações mais profundas. Deveria ser um ins-
tor e jornalista; Washington Novais, da TV- trumento de contenção, através de reformas, da
latino-americanos, como Betancort, da Vene- Globo ; José Montsemit Filho e Antônio Ta- idéia revolucionária espalhada a partir de Cu-
zuela. Portanto, precisava ser eliminado como deu Afonso , de VERSUS. ·· ba. Ela fracassou porque interesses de fora,

11
sempre teve o grande sonho de conseguir evitar
que a Argentina entrasse num processo de luta
de classes. Isso era a idéia mãe do peronismo.
Queria uma divisão pacifica e mais ou menos
l (,( tf. equitativa da propriedade, distribuir de forma
igualitária a renda nacional entre patrões e as-
T~AMÉRJCA. salariados. Vamos deixar de lado toda essa
fJ .. escória que entrou no palácio, com Perón. A
oligarquia e o capitalismo argentino nunca en-
tenderam , porém esse objetivo básico de Perco,
que era, em última análise, ode preservá-los. Aca-
oaram se JOgando contra uma co1sa que estava a
seu favor. Com isso, a longo prazo, vão se dar
muito mal,
VERSUS - Você não acha que a queda do
peronismo representou o fim da política de
conciliação de classes na América Latina?
NEWTON - Não. O peronismo foi um dos
maiores movimentos de massa de todo o mun-
do. O populismo não muda nada mas, pelo
menos, uma coisa faz: promove reivindicações
das maiorias. Enquanto houver debate, enquan-
to houver eleições, o populismo estará sempre
presente em maior ou menor grau.
VERSUS - Que alternativas têm agora as
correntes que restaram do peronismo depois do
golpe?
NEWTON- Um sociólogo argentino, Di Tella,
sempre disse que o peronismo era uma reunião
de massas, de coisas muito diferentes. O que
mantinha essa unidade era o mito de Perón e um
pouco de suas idéias básicas. Com sua morte e
o fracionamento fatal do movimento, seu núcleo
principal poderá se transformar em algo pareci-
do com o Partido Trabalhista inglês. Não essa
escória de Maria Estela e Lopez Rega. mas o
núcleo mais intelectual. Aqueles dois se acaba-
pressões que se ampliam e se fortalecem na ram. Agora. há outros peronismos. O regime
aliados aos interesses das oligarquias. não con- militar está incorrendo num erro bastante grave.
seguem, sequer, absorver reformas suaves. Dai periferia do processo. Por ex em pio, ele só conse- Ele caiu com toda sua força em cima da burocra-
a tragédia. por exemplo, da democracia colom- guiu a duras penas manter a designação do cia sindical, que, dentro da id~ia do peronismo,
biana, que pode ser projetada como uma tragé- general Fernandez Maldonaldo como primeiro-
ministro e homem número dois regime. E Mal- é uma coisa muito importante, pois representa
dia da democracia latino-americana. um elemento de contenção, de amortecimento,
donaldo é um dos intérpr;etes mais autênticos um instrumento de aliança de classes.· O argen-
da verdadeira Revolução Peruana. Agora bá uma tino é muito politizado e nunca se deixará
VERSUS - O que representa a Revolução carga tremendamente violenta contra o sistema
Peruana dentro da América Latina'? de propriedade social, que seria a pedra angular marginalizar ou ficar pro1bido de participar das
decisões nacionais. Se a burocracia sindical for
da Revolução. Ele custou muito a ser decretado liquidada, vai deixar um vazio que os intervento-
NEWTON - Comecei a me interessar pelo e continua ainda hoje no papel. Só há quatro ou
problema peruano a parti r de uma coisa muito cmco empresas enquadrada nesse sistema. O res nomeados para os sindicatos não consegui-
simples. A América Latina sempre esteve sub- desenvolvimento ou não desse sistema é que vai rão preencher. Quem vai ocupar esse lugar?
metida a um tripé: oligarquia, Igreja e as organi- indicar se a Revolução continua ou não Creio que a esquerda peronista ou o novo tipo
zações militares. A Igreja começou a saar desse de peronismo tem esperanças de vir a ocupar o
tripé e há uma data que marca isso. Foi a VERSUS- O Perón foi uma grande decepcção vazio.
Conferência de Medellín, em 1968, quando ela para os argen ttnos que esperavam que ele tnicias- VERSUS- Em que medida o fim do peronismo
se identificou ostensivamente com o processo se uma vigorosa política nacionalista ... ortodoxo permite o surgimento de um peronis-
de transformações da América Latina. O Peru NEWTON - Ele chegou a miciar isso com o mo de esquerda revolucionária?
começou a me interessar quando os militares Cámpora NEWTON- Esse peronismo revolucionário vai
tomaram o mesmo caminho. Esse é o dado mais VERSUS - Mas , depois, deu para trás ...
importante da Revolução Peruana. tentar substituir a burocracia sindical na lide-
NEWTON - Acho que o fenómeno peronista rança de um movimento de massas que é o mais
VERSUS- Tem-se escrito muito que a Re~;o/u­ não deve ser analisado através de pequenos importante da América Latina. A burocracia
ção Peruana se encontra diante de um impasse, segmentos . de pequenos episódios. Deve ser sindical era quem impedia que o peronismo
representado inclusive. pela derrubada do pre- analisado com·o um todo . Ele é tamoém um revolucionário assumisse o controle de parcelas
sidente Velasco A/varado indicador bastante significativo para as pos- importantes do movimento sindical.
sibilidades de opção na América Latina.
VERSUS - E Allende?
NEWTON - Uma das co1sas negativas da O peronismo, desde sua origem, procurava al-
Revolução Peruana foi a submissão do seu ternativas para a preservação do regime capitalis- NEWTON - Isto já foi outra ruptura na velha
processo a um caudilho, expressada pela figura ta. Há um livro muito interessante sobre isso, ordem estabelecida depois do fracasso da Ali-
do general Velasco. Desde que isso ocorreu, o escrito pela socióloga argentina Mônica Peralta ança para o Progresso. O próprio Eduardo Frei
processo começou a sentir as flutuações desse Ramos, onde ela procura caracterizar o momen- representou também uma ruptura. Isso apesar
caudilho. Velasco, num determinado momento, to em que o peronismo adquiriu impulso, o da constatação de que a campanha eleitoral do
foi o grande intérprete da Revolução Peruana. chamado momento favorável a novas alianças PDC, em 1964. recebeu algumas verbas da CIA.
Mas. em momentos posteriores. passou a ser de classe na Argentina. O que o peronismo O Frei diz que isso ocorreu sem seu conheci-
influenciado, e até cercado- quando ficou doen- queria? Propunha absorver grandes massas de mento. Frei valorizava o voto. É o que ele
te, com uma parte do corpo paralisada- por um marginalizados que corriam para as cidades chamava de ••revolução em liberdade~~. Mas os
grupo palaciano caracterizadamente de direita e atraídos pelo processo de industrialização. Bem interesses norte-americanos na América Latina
que, inclusive, tinha grupos de choque. Por ou mal, o sistema capitalista teria que absorver não suportavam mais as opções pelo voto. No
exemplo, o ministro da Pesca, general Tantalean essas massas. Mantê-las marginalizadas seria Chile, as opções pelo voto acabaram levando a
Javier, que mantinha grupos de choque em criar um potencial revolucionário de conse- Allende.
função de uma politica de poder pessoal. A partir quências imprevisíveis. O peronismo procurou VERSUS- Quer dizer que os norte-americanos
do instante em que Velasco foi cercado por essa absorver esse fenômeno. O que mais fez o começaram a errar no Chile em 1964?
gente. a própria Revolução Peruana sentiu esse peronismo? O próprio Perón, num discurso em
cerco. Dai o relevo de Velasco. Sua figura era 1945, disse que, com o fim da guerra, metade do NEWTON- A errar, não sei. Naquele momen-
tão forte que dificilmente será substituída por que a Argentina exportava não seria mais com- to, o importante para os Estados Unidos era
outra tão forte que consiga ficar imune as pras- prado porque as potências econômicas volta- evitar que Allênde fosse eleito. E a melhor carta
soes que se tazem na periferia do processo. As riam a produzir e a entrar nos mercados interna- a jogar, então, era a do Frei. Mas o Frei repre-
dificuldades do presidente Morales Bermudez cionais. Para que as fábricas não parassem, para sentava também uma solução que não se ajusta-
vêm disso. Este, é verdade. tem conceitos pró- que a atividade econômica não se reduzisse, era va aos interesses norte-americanos.
prios do que deva ser a Revolução e um deles é preciso que metade das exportações passasse a VERSUS - Por que os norte-americanos não
o de que a iniciat1va privada é parte insubstituí- ser consumida no próprio pa1s. Como fazer puderam influir, em 70, para evitar a divisão das
vel da vital idade do pais e que, por isso, não deve isso? Era preciso aumentar o poder aquisito do forças que se opunham a Altande?
ser liquidada. A lei de promoção da pequena e assalariado de modo a que ele pudesse consu-
média empresa serve para ela. E um recuo no mir tudo isso. Era tipicamente uma forma de NEWTON Ai entra a chamada «revolução em
momento. O mais importante e mais perigoso é preservação do sistema. O que procurava Peron liberdade'' ou ~<revolução pelo voto~~. O Chile
a impoSSibilidade do general Bermudez , que 18 anos depois? Mais uma vez, preservar o ~lcançou um grau de particioação politica muito
não é um caudilho como Velasco, de conter as sistema, através de aliança de classe. Peron maior do que em muitos pa1ses europeus. E

12
essa participação polttlca quase total, essa no Vletnã, não havia praticamente nenhum estu- convicção de que a guerra n'ão é mais a solução.
opção pelo voto, acabaria levando a isso. Esse é do acadêmico sobre aquela região. Os Estados Kissinger admite a intervenção como um fator
um problema que está me preocupando muito no Unidos começaram a intervir e depois jogaram do balanceamento~ do poder, mas entre duas
momento. · ali um exército de mais de meio milhão de superpotências. Eu acho que o conceito de
homens numa região que desconheciam. Isso poder, hoje, é outro. O conceito de potência
VERSUS - Como você vê o Chile três anos está vinculado basicamente aos problemas da
traduzia, em última análise, uma ausência de
depois do golpe? interesses básicos na região. O modelo de auto-suficiência. Se você consegue ser uma
NEWTON - Não vou ao Chile há bastante Kennedy para a América Latina foi a Aliança autarquia neste mundo confuso, você é uma
tempo mas creio que o próprio Kinssinger a para o Progresso. O modelo de Kennedy para o potência. Os Estados Unidos são uma potência,
considera a pior possível. Os Estados Unidos Vietnã- hoje, sabe-se que foi ele quem começou não os Estados Unidos, mas o complexo Esta-
estão carregando um fardo que já se tornou aquele mixórdia- foi procurar dar uma lição aos dos Unidos-Canadá, que se abastece a si mes-
pesado demais. Houve uma coisa interessante chamados movimentos de libertação nacional. mo. A União Soviética é também uma potência
agora na Argentina. Um diplomata nos contou Ele gueria acabar com isso no Terceiro Mundo e porque quase se abastece a si mesmo. E dai a
que a comunidade de embaixadores em Buenos o V1etnã deveria ser o exemplo para esses tragédia da Europa, que é dependente. Acho
Aires aproveitou o compasso de espera para o movimentos. Masotirosaiu pela culatra. Agora, o que o Brasil só será potência na medida em que
golpe - que já era anunciado há muito - para sul da Africa é diferente. E uma das regiões conseguir se abastecer a si mesmo, viver por
advertir reiteradamente os militares argentinos mais ricas do mundo, onde existe a maior sua própria conta, não se metendo nos outros
de que não promovessem um 11pinochetazo" quantidade de recursos naturais ainda não toca- países.
porque isso implicaria no bloqueio econômico. dos pelo homem. Portanto, creio que a luta de
interesses em torno desses recursos ainda vá VERSUS - Como você vê a política externa
VERSUS - Alguns já chegaram a falar que o brasileira de hoje.
voto é uma ameaça à democracia. O que você provocar situações conflitantes. Além disso, é
acha disso? uma região estratégica da maior importância por
causa da rota dos superpetroleiros. NEWTON -Acho que hoje há, doramente, uma
NEWTON - As empresas multinacionais dos tentativa de retomada da politica externa i ndepen-
Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão, ou VERSUS- Então, você acha que logo surgirá o dente. O chanceler Azeredo da Silveira é, histori-
seja, do mundo capitalísta desenvolvido, cria- 11africanism"? camente, um terceiro-mundista. Ele foi presiden-
ram um negócio chamado <<Comissão Trilate- NEWTON - Sem dúvida. Hoje ja se estuda te do Grupo dos 77, que abrange os países do Ter-
ral". É um corpo de cientistas políticos, encar- bastante o sul da Africa, o que demonstra o ceiro Mundo na ONU, em 1967. Isso não parte dos
regados de estudar problemas e su rgerir fórmulas interesse crescente por ela. t uma região que só caprichos pessoais do ministro. O fato é que a
que suavizem as contradições entre Estados agora chega ao quadro estrantégico mundial. Um bipolaridade foi substituída pela multipolarida-
Unidos, Europa e Japão e as contradições do dos últimos números da revista do Ministério da de. Logo, a politica externa de interdependência
mundo capitalista de maneira a preservar o perdeu o sentido. Não se trata mais de optar por
sistema. Um dos problemas que ela tem estu- Defesa da França é todo dedicado a ela. O sul da
África, embora riquíssimo, ficou sempre muito um ou outro polo de poder, mas de se situar em
dado é o da governabilidade das democracias. algum polo de poder. Creio que o Brasil está ten-
Na Europa, Estados Unidos e Japão, o voto esquecido ou guardado. Hã um famoso memo-
rando de Kissinger, de 1970, propondo ao presi- tando isso. Em alguns lances muito importantes,
começa a contrariar interesses do próprio siste- ele procura se identificar de alguma maneira,
ma. Vocês tem um exemplo disso com a ascen- dente Nixon várias opções para o sul da África.
Tenho impressto de que essa região vai ser o com o Terceiro Mundo, como no caso do petróleo.
são dos comunistas na Europa Ocidental. E,
nos Estados Unidos, o caso dos negros. Na cemitério da diplomacia de Kissinger. A opção VERSUS- Você acha que esta política externa
década de 60 , os negros norte-americanos opta- dizia que os brancos estavam ali para ficar e que é coerente com outros aspectos da política
ram por soluções violentas. Foi a época dos qualquer mudança só poderia ser feita através brasileira? Ela é um todo orgânico com a políti-
Panteras Negras, do Black Powér, que foram deles. Dai toda mudança da politica norte-ameri- ca econôm1ca e com a política interna?
massacrados literalmente. Hoje, os negros es- cana a partit de Nixon, que levantou o embargo da
tão voltando para o que eles chamam de revolu- venda de armas 'a África do Sul. .. NEWTON - Ai é que está o problema: você
ção pelo voto: querem eleger o maior número tentar fazer uma politica externa que não seja a
pos~ível de negros. A Comissão Trilateral che- VERSUS - Mas Angola e Moçambique ... projeção de sua politica interna. O <<Estado'' fala
gou a seguinte conclusão: forças anteriormente NEWTON- Ai é que está. Kissinger dizia na- na <<mexicanização" da politica externa brasilei-
marginalizadas começam a participar maciça- quele memorando que os negros não iam conse- ra, uma política externa terceiro-munista, que
mente e a colocar em cena novos elementos de seguir nada. De repente, veio a queda do salaza- nada tem a ver com a política interna, autoritá-
pressão, como é o caso dos negros. Então, a rismo, que ele achava que seria eterno, e a ria, dura e toda baseada em capitais estrangei-
conclusão dela é de que a democracia está independência de AngolaJ Moçambique. Houve ros. Se você quer fazer uma politica terceiro-
permitindo um novo tipo de pressão social que a munista, tem que se ajustar à reivindicação
um~ alteração total da correlação de forças no sul
vai tornando impossível de se governar. Acho básica do Terceiro Mundo, que é a criação de
que eles vão acabar chegando à conclusão de daAfrica, quepassouaserumadas regiões mais uma nova ordem econômica internacional. Mas
que o voto é contra o sistema, que o voto importantes no mapa da guerra fria. Foi por água você tem uma ordem econômica nacional que se
ameaça o sistema. abaixo toda a politica de persuasão dos regi- opõe a essa reivindicação. A contradição é
mes brancos. A Rodésia é hoje um regime muito forte. Se você está empenhado numa
VERSUS- O que vai acontecer diante dessas condenado. Todo o esforço que se faz é para politica ajustada a essa reivindicação básica, no
conclusões? preservar de alguma maneira o regime branco da plano latino-americano teria que dar adesão
NEWTON - Isto não se aplica ainda no mo- Africa do Sul. muito mais decidida ao SELA - Sistema Econô-
mento aos Estados Unidos, Europa e Japão, ou VERSUS - Oliveiros Ferreira, do ~~Estado", m•co Latino-Americano.
seja, 'a parcela mais desenvolvida do mundo disse em uma entrevista que o que define hoje VERSUS- Como você vê a a política desenvol-
capitalista. Ainda não se aplica de maneira uma potência é sua capacidade de intervenção, vida pela Venezuela?
muito ampla à América Latina. Mas já houve que o Brasil deve fazer investimentos maciço na NEWTON- O presidente Carlos Andrés Perez
alguns exemplos que inquietam, como o exem- indústria bélica para isso. O que você acna? me lembra um pouco a figura do industrial
plo do Chile e o aparecimento de <<frentes popu- NEWTON - Acho que o Oliveiros deveria ler italiano Gianni Agnelli, da Fiat, para quem só
lares" no Uruguai e Venezuela. Eles vão acabar um pouco mais o Kissinger. Toda a estratégia existem duas formas de governo: o governo pela
achando que esse negócio de eleições é muito do secretário nort~-americano está baseada na força ou o governo pelo consenso popular. O
incômodo, que a democracia destrói a própria
democracia, que só se pode preservar a demo-
cracia acabando-se com ela.
VERSUS - Por que se fala na possibilidade da
instalação de um regime de força nos Estados
Unidos, quebrando-se uma tradição de 200
anos?
NEWTON - De uma certa maneira, a Comis-
são Trilateral chega à conclusão de que a demo-
cracia, da maneira que vai, é inviável nos Esta-
dos Unidos e que vai acabar com a democracia
ali.
VERSUS- Durante a década de f30, a Ásia foi o
centro dos choques ma1s violentos entre as duas
grandes potências. Agora, com a descoloni-
zação e as pressões das npções negras, essas
atenções voltam-se para a Africa. Este continen-
te poderá ser o centro de novos choques?
NEWTON - Hã um meio muito eficiente para
se avaliar os interesses norte-americanos nas
várias partes do mundo. t oelo número e con-
centraçao dos estudos acadêmicos a respeito
disso. Vocês podem ver que hoje está muito em
moda o chamado <<brazilianism". Essa moda
parte de um interesse cada vez maior pelo
Brasil. Dai o acúmulo de estudos acadêmicos
norte-americanos a respeito do nosso pais.
Quando começou a intervenção norte-americana

13
americanos já haviam considerado antes Porto
Rico como uma dependência colonial dos EUA.
O Terceiro Mundo. de uma certa forma, tomou
conta da ONU, que era dominada antes paios
Estados Unidos. com os votos latino-ameri-
canos. Na m1nha opinião, o objetivo principal da
visita do K1ssmger à América Latina foi tentar
bloquear a evolução do contmente para posi-
ções terce1ro-rnundistas. E. principalmente,
tentar bloquear uma tendência da diplomacia
brasileira para se 1ntegrar no Terceiro Mundo.
Sei de pessoas que estiveram no México. num
seminário sobre as relações Estados Unidos-
.. América Latina. e que ouviram de diplomatas
~
1 ., .
·~ norte-amencanos a observação de que a diplo·
macia brasileira estava sendo controlada pelos
com unistas e que era preciso acabar com isso.
VERSUS - O que ele ofereceu em troca da
mudança de posição?
NEWTON ·Ao Bras i I. ele o fereceu uma coisa
mu ito clara: um s tatus igual ao da Europa
Ocidental e Japão. E prec1so lembrar o discurso
do embaixador John Crimmins. pronunciado um
pouco antes disso. Ele disse que o Brasi l preci-
sava optar· ou Terceiro Mundo. ou Ocidente
industrial. ou uma posição intermediária, de
ligação entre um e outro Kissmger disse clara-
mente que o Brasil podia participar das deci·
sões mundiais no mesmo nível da Europa Oci-
den tal e Japão, como aliado dos Estados Uni-
dos. E que era preferível o Brasil participar das
decisões mund1ars. como sempre quis. na qua-
Agnelli diz que acredita no segundo. Andrêz Depois de deixar a presrdência, deverá dirigir lidade de aliado dos Estados Unrdos, do que
Perez também a<.ha que a melhor opção da um instituto, que já está organizando. e que como um dos lideres do Tercerro Mundo.
Venezuela é um governo pelo consenso popular. promoverá estudos sobre os problemas do Ter- VERSUS - Você aclla que a decisão dos
Mas a obtenção do consenso popular exige ceiro Mundo. Estados Unidos de não impor sobretaxas aos
certas coisas. Então, ele procura manejar várias calcados brasileiros já tem alguma coisa a ver
coisas ao mesmo tempo. Ele procura demons- VERSUS - E a reproximação da América
Latina com Cuba ;) Cuba deixou de ser um perigo com isso ?
trar que algumas transformações são possíveis
por meio da democracia. Procura reviver o velho ou há interesses econõmicos em jogo? NEWTON- Não acho Ford jogou ai basica-
sonho bolivariano da Grande Pátria Latino A- mente com os problemas de preços internos.
mericana e essa integração fortaleceria sua poli- NEWTON - Há interesses recíprocos nessa pois está em campanha eleitoral. Ele jogou com
tica interna. A Venezuela, com os dólares do reaproximação. Cuba tem todo o interesse em a defesa do consumidor norte-americano. Pro-
petróleo, é o único pais latino-americano que rectuzrr ao máximo possível sua dependência da t'ema muito mais importante está sendo trata-
pooe dar uma forma de financiamento a esse União Sov1ética e só poderia fazer isso com a do agora e é o da soja. Brasil e Estados Unidos
processo de integração. Dai a SELA. Perez multiplicação de suas relações económicas com estão quase em gu~rra por causa disso. Isso
também acha, a partir da experiência do pe- outros países. Por seu lado, a América Latina mostra uma contradição básica. Nos Estados
tróleo, da OPEP, que a opção de transformação tem também nteresses de tipo económico nis- Unidos. a partir do problema da soja. começa ·a
so. O problema cubano começou a ser encara- se questior1ar se as emprêsas multinacionais
por mero da democracia na América Latina só
será possível com uma estratégia de Terceiro do de outra forma. á medida em que os merca- atendem ou nt.o aos interesses norte-america-
Mundo. com uma estratégia de confronto com o dos nac•oné:ltS do continente entraram em crise e nos. Porque? Duas grandes emprêsas de ali-
Ocidente industrial, tendo como arma as maté- que as emprêsas transnacionais necessitaram mentação dos Estados Unidos entraram no mer-
rias primas. Ele é o governante que mais tem de novos mercados. Um fato sintomático é ter cado de soja brasileiro. com usinas de benefi-
sido a Chrysler da Argentina a pri meira a vender :iamento e financiamentos do própno govêrno
tentado ganhar a América Latina para esse tipo
de polit ica. Isso tem preocupado bastante os automóvers a Cuba. Isso revela que a aproxima- dos Estados Unidos. Quando Washmgton de-
ção teve oomo fator determinante o interesse cretou. no ano passado, o embargo da venda de
Estados Unidos. das multrnacionars. SOJa à União Soviética, o que f1zeram essas
VERSUS - Como você vê hoje o México, onde emprêsas? Como tinham filiats no Brasrl. ven-
o presidente Echevema ten ta elaborar uma polí- VERSUS- A viagem do Kissmger à América
Latina não tena como objetivo romper a inclina- deram a soja brasileira à Untão Soviética. Hoje.
tica independente. aproximando-se do Terceiro os produtores norte-americanos estão fazendo
Mundo? ção brasiletrd em direção ao Terceiro Mundo e à
integração latino-amertcana? uma pressão tremenda para que Washington
NEWTON - Echeverria e o Méxrco são o~:~s faça manobras baixistas contra a soja brasileira
coisas diferentes. Nesse momento, o peso me- NEWTON- Claro. O próprio delegado norte- e de•xe de a1udar as multinacionaiS que entra-
xicano. que mantinha sua cotação inalterada há americano na ONU, o Moynihan, de triste me- ram aqui. Es:a auase guerra demonstra que o
20 anos, sofre uma tremenda pressão, à qual mória. admit1u que o fato mais rmportante da status que Kissinger ofereceu ao Brasil. quando
não vai resrstir, e será obrigado a entrar numa última assembléra-geral da ON U foi a perda dos se trata de executá-lo, não funciona. Vê-se
etapa de sucessivas desvalorizações. Isso mos- votos dos países latino-americanos por parte então que o Brasil é outra coisa e não a Europa
t.·a que apesar da politica tentada pelo presiden- dos Estados Unidos. Se vocês estudarem deta- Ocidental, ou o Japão.
te Echeverria, o sistema dominante no México lhadamente as votações. \/Cri ticarão que muitos VERSUS- Em termos concretos, o que une o
continua sendo o sistema capitalista dependen- países latino-americanos votaram contra a pre- Brasi l ao Terceiro Mundo?
te. Ele, pessoalmente, quer ser o próximo secre- sença de bases militares dos Estados Unidos na NEWTON- O Brasil é, como todo o Terceiro
tário-geral da ONU , mas não vai conseguir. ilha de Guam e em Samoa. Os paises latino- Mundo, vitima de uma velha ordem económica.

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Pre(o do oss~no1uro no exterror ANUAl US S 70 I SEMESTRAL USS JS

14
Crime em Buenos li
ç_~O
cof.~,
Há muitos dias procuro notícias de Haroldo Conti.
Nenhum jornal informa. Nenhum jornal tem interesse
cm Haroldo Conti. Quem conhece Haroldo Conti?

Não é um príncipe oriental. Não é escritor de


futilidades americanas. Não escreYe para Hollywood.
11M
Não é noticia na Europa. Ele é apenas um belo, um
mara\ilhoso escritor latino·americano.
Não mereceu nehuma linha na grande imprens!l
quando escre\·eu Masceró, El Cazador Americano •. E
um drlicado liuo. Que começa assim, · Cafuné sopra e
~opra a flautinba de osso. E um jorrinho de ar, um
raspão de metal, uma alma finita de vento que se
enrosca no ar. O dia, aqui, é esta música que anda por
todas as partes• .•.
Com este lino, ganhou o Concurso da Casa de Las
Américas. E no dia 4 de maio, uma miníma nota no
Estado de S.Paulo dizia que um bando •de homens
d~conhecidos• invadiu a casa de Haroldo Conti, em
Buenos Aires, e o espancou, e espancou sua mulher, e
seu tilho. Os homens desapareceram com Haroldo
Conti. Isto foi regi~trado em cinco Unhas. Não mais do
que isto. Os homens eram da AAA. Nada disse o
governo argentino. Nada disse a policia argentina.
Nada disse a imprensa argentina. Estas noticias estão
censuradas. Haroldo Conti, cidadilo da América, de·
sapareceu. (Marcos Faerman)
caso. é um problema dos críticos. Contar a históri'
sem suas carnes seria uma falsificação. E contar a
Um texto de Haroldo Conti história tal como acontecer cria narrar o romance de
novo. Porque aquela plantinha cresceu c cresceu.
Masca ró me apareceu há coisa de três anos. Estava como uma árvore, e assim entraram nesta história
eu vazio e triste, depois de ter publicado · Em Vida• e. dc.,dc os mais simples amigos. como Tony Beck ou o
como sempre acontece. mas. neste caso. muito espe· capitão Alfonso Domingues. aliás, Cojones, até esta
cialmcnte, pensei então que não voltaria a escrever terra de luta c esperança que se chama América.
uma unica linha no resto de minha vida. Não me Mascaró dava para tudo. Cresceu e cresceu como um
surprende, agora, eu ter me equivocado a tal ponto tremendo canto e eu era um cantor entre outros
que. nestes três anos. escrevi dois livros. fora outras Acontece que chega um momento cm que a história porque se juntaram tantas e tantas vozes que Masca ró
coisas. porque isso geralmente me acontece. Salvo os entra tanto dentro de alguém que sai para fora realmente não me pertence.
prêmios. no comum. eu não acerto nada. Bem, eu sózinha. Assim foi. Mascaró me fazia sinais de um Agora é diferente de outras vezes. Não fiquei triste
estava valio e triste quando um bom dia escutei a canto de minha vida chamando·me para o seu louco c vaúo porque Ma~caró continua vivo c me pede novos
incrível história do Príncipe Patagón. Eu gosto de caminho. Pois bem, tanto empurrou que outro bom caminhos. Sinto. isto sim. a breve tristcta de me
ouvir as pessoas. Creio que isto me salvou. Peguei um dia. para cortar amarras, saltei com um puio o despedir dcle~que comece a compartilhar seu caminho
salto no ar. Aí estava a minha próxima novela. Eu a caminho, até fui embora de minha casa. abandonei com outras pessoas. Aqui estamos. pois. num canto
tinha t1\o clara que curvei·me sobre um papel e escre,·i tudo e aí começou minha vida com Masca ró. (!uer deste caminho. dando os adeuses. apertando sua firme
de uma só \'ez no plano. Foi a primeira ve7. que eu tive dizer. começou a novela que. para mim, é sempre um mão. Mas eu sei que voltará. Eu sei que voltarás.
um plano. do princípio ao fim. Servem tanto quanto autêntico •modus vivendi ·. Rcsumi·la em um par de compadre. Por isso, digo até sempre. Não te esqueças
um plano econômico ou a precisão do tempo. Foi só linhas não tem sentido. Poderia tentar uma espécie de de mim. de minha companheira. que tanto te a ma·
um ponto de partida, uma espécie de compromisso. comentário conceituai que, definitivamente, pode mos. Voltem logo, para que possamos continuar viven·
Masca ró tinha que amadurecer dentro de mim. Isso aplicar·se tanto a Mascaró como à Imitação de Cristo do e amando, escuro ginete, doce caçador de homens.
levou seu tempo. Nunca me apressei nestes casos. ou a um livro de Napoleão Primeiro. Esse, em todo o Mascaró, aliás Joselito Bembé, aliás a Vida.

Os melhores
cachorros-quentes
do sul do mundo!

BRASIL MULHER deu 2


passos: o zero e o um e agora
em maio dá o terceiro - Dê
O novo romance de Antônio Torres
força ao seu BRASIL MU· O Já consagrado Autor de
LHER. Leia sem preconceito "Um Cão Urvando para a Lua" e
- Nas bancas, livrarias de Ci· "Os Homens dos Pés Redondos", """""-~~
ências Humanas e Diretórios aborda nesse romance o
Estudantis. drama do retrrante nordestrno.
Independência , 592,
Porto Alegre.

15
Luís Alves Paraguaj conta. Não pude olhar para \er a ri~ura desgrenhada da
- Eu era um dos praças do serviço pessoal do ;·elha senhora. cm sem apelo'> de mãe. Os acontteci-
major Simeão. da Ca,:tlaria. junto com o soldado João mcntos marchavam rúpido'> para um desfecho ine,iitá-
Soares c o cabo Chíco Diabo. Esta"a terminado o ,·et. Quis impedir que João Soare'> ac.:rona\sc no,am~n­
combate do Passo das Taquarao;. E com ele pratica- tc o gatilho. O general Câmara dera a pala\ ra de QUtc a
mente terminara a pavorosa guerra de S anos, o chão da ,·ida do herói \enc.:ido seria respeitada. Ele era U1m
terra paraguaia alastrado de cadá\'eres. um milhão de pric;ionciro intod\'el do nos-;o Imperador. 1.:.. p; ,ra
cadúvcre<>. daquele'> indômitos guaranis que só entre- mim. além disto. ha,ia a '>Olidaricdade do san~o-.ue
gavam a!> armas depois de mortos... ancestral. ,repentinamente despertada. Eu me senuia
- Vitória! Vitória! - \Cio cstertorando. mais do como um índio guarani naquele instante. Afinal mc:us
que gritando. o cabo Chico Diabo. com a cara lambu- a,·ós eram gente-. do Pais Mi-;sioneiro. dizem que u1m
zada de \angue. dele\. meu :1\ ô materno. descendia do cacique Langu i-
-Ao acampamento doEI-Supremo! -comandou o ru. Gritei pura João Soares: - Não atire! Eu \O•u
nosso major. Dou cem libras de ouro a quem pegar ele desarmar ek!
vi,·o! Quero ele vivo!
Galopamo'> para o acampamento já sem defesas. - No lo maten! - choramingava ainda a voz dte
No meio dos seus derradeiros oficiais e soldados. ainda dona Mariana Nanduvai Lopez.
a pé. por entre as carretas e barracas, avistamos o Tentei liberar uma das mãos para desviar ou tomarr
Supremo em pessoa. Ele estava à paisana e desarma- a clm·ina de João Soares. Porém as mãos do Marechalt
do. Não tinha tipo de índio. Era um branco como o me agarravam os punhos como tenazes. Ele próprio.
major Simeão. So que mais corpulento. de peito daquele jeito, se condenava desesperadamente à
Mais. uma versão cabeludo c de grandes olhos dilatados. não sei se do
espanto ou do seu muito ódio.
·morte. João Soares deu de novo no gatilho. Ouviu-se
um descomunal estrondo. Por entre a fumaça que saia
do controvertido Tudo rápido como o relâmpago.
A ca,·alaria entrou de roldão por entre as barracas
da boca escura da arma, julguei ver de novo, num
relance de alucinação, o belo rosto de dona Elisa
e cabana'> coberta'> de folhagem. 0'> hois das carretas. Lynch. contraído pela dor do lançaço com que o
episódio da morte que ainda não tinham ~!dO atr(ltados. debandaram.
num estouro. com os rabos levantados. na direção do
sargento Maurício. presa de uma fúria assassina. lhe
traspassara o pe!)coço ...
de Francisco Corgo Aquidabã.
Num átimo o Supremo se viu cercado por nós.
Ainda atracados. eu e El-Supremo rolamos barran-
co abaixo. até as águas sujas do corpo.
Major Simeão intimou: - Renda se. Marechal! Vossa
Solano Lopez Excelência é prisioneiro do nosso Imperador!
Nes<;e instante. um grupo de .,oldados nossos ataca-
Consegui safar-me das tenazes e me sentei, arfando
assooiado como um potro, na beira da água. O
Marechal. com um esforço medonho, se colocou de pé
,.a ali perto a carreta de Elisa Lynch. a amante numa posição quase ereta, a espada na mão direita. E
estrangeira do chefe guarani. estertorou:
Um grito agoniado de mulher se fe1. ouvir: - Mucro con mi i>atria y mi pueblo. y con la
- Venga en nuestro socorro. Pancho mio! espada en la ...
Pancho era o Pome do Marechal entre os seus A última palavra pcrdeu-'>c numa golfada de
familiares. Ele respondeu: ' S;tngue. O corpo cambaleou, pendeu para trás e
- Fíese. mujer. de su sexo. y pasamos!. .. tombou nas águas barrentas do Aquidabà (tinha cho-
Vimos uma jovem de cabelos vermelhos, mulher de '·ido na véspera).
uma incrível belc/3. saltar ele sob o toldo da carreta, - Retirem da água o cadáver, mandou o coman-
toda 'cstida de seda~ coloridas. procurando desvenci- dante Câmara. Fa~·am uma padiola c carreguem com
lhar-se de dois lancciros negros da tropa do coronel ele para o acampamento. Quero que seja sepultado
Joca Ta,·arc~. que acaoava de' chegar. sob a sua própria tenda de campanha. Icem a meio
Hipnotitados pelos seu\ olho' \'Crdcs. imensos e pau a bandeira da República do P<~ra~uai. E disparem
gateados. e~que<.·cmos por momentos o Supremo e sua uma sah a de 21 tiro~ de e!.pingarela pelo herói \'encido.
gente. Do que ele se valeu para escapar do círculo de Marechal rranCÍ\CO Solano Lópcz ...
caYalariano-;. numa arrancada fulminante. Recolhen- A escuridão tb noite baixara ele repente. Gritaram
do uma csp;tria caída a seu~ pés. montou ligeiro o baio curiangos. ou um outro p;ic;.,aro qualquer. Quatro
malacara c partiu a galope uu rumo da mata que sapadores. a pa'>\O l'urto c cauteloso. carn:ga,am em
margcia o Aquiclabà. doi-; \arapaus o cad[l\er ele Lópe1. pelo caminho
Enquanto um sargento IHan~o C.\dama,·a ·Lá 'ai o lamacento. E o cadá\'cr oscilava. enorme. as mãos
bandido. pas.,em fogo nele! •. um sargento índio enfu- pedentes. o \Cnto a brincar-lhe nos cabelos. os cabelos
recido cra•.ou n sua lança de ponta recurYa na al\'a negros como a noite. a noite no bojo da qual o cortejo
garganta de Elisa Lynch. Os olhos gateadoc; da bela fúnebre acahav:t de dcsaparet·cr.
mulher ficaram maiores do que nunc.:a.c um ululo E cu continua,·a ali sentado. na lama da beira do
espantoso saiu de sua boca junto com borbotões de corgo. aturdido c esmagado. Para mim era como se
sangue. Um grito terrificante que cu jamais- esquece- fos'>C o enterro de toda uma raça. afinal a minha
rei. mesmo que \'i\'a outros 90 anos e mais outros 90. própria raça. que acabava de tragar-se na es~uridào ...
Narrativa de Rubem Queirós, sobre dados recolhi- depois ... NOTA: Pedro Luís LYcariào deixou a seeuinte
dos por Pedro Luis Lycarião, em 1940, a partir do Galopamos atrás do fugitiro. No instante em que anotação acerca dos fatos narrados acima ... Esta é
depoimento de um combatente de 1870, Luiz AJves ek de"cria sumir-se já ultrapa~sado o córrcgo. na orla uma das inúmeras c contraditórias \'ersõcs que se
Paraguai, descendente brasileliro de uma tradicional ela mata do outro lado. o ordenança Chico Diabo lhe conhecem da morte de F.S.López. Foi recolhida por
famíl ia de índios guaranis da marge19esquerda do rio atirou um lançaço que o apanhou de cheio na ilharga. mim cm setembro de 1940. na localidade de Quartel
Uruguai, exterminados por grupos armados da Banda O sangue manchou a g<lrupa do malacara. E o Supre- do lapari. sul do MT. Narrador. o próprio Luís Alves
Oriental, no ano de 1832. mo cun·ou-sc para o pescoço do animal. desabando a Paraguai. então com 90 anos de idade. sargento
seus pés. De um salto o ca,·alo \'enceu a encosta c se reformado. O sobrenome · Paraguai • lhe foi aditado
perdeu entre a'i árvore\. Segundos depois, nós, os pelo povo do lugar alusivamente à sua participação na
caralarianos. cercávamos de novo o homem caído. guerra. Luís Alves. descendente de índios tapes do RS.
foi quando chc~ou o gent:ral Câmara com a sua combateu na Guerra do Paraguai como voluntário
tropa. compulsório ... a partir de 1867. com 17 anos de idade,
Câmara a<,sim falou: então. Outras versões conhecidas do episódio: a do
- Renda-se. Marechal! Renda-se. que eu lhe garan- general Jo-;1! Bernardino Bormann (que participou da
to a "ida! Por minha honra. que ninguém lhe tocará. guerra mas não do próprio episódio). a de Andrés
Vos'>a Exct:lência lutou corno um bra\'O c merece o Macicl (segundo a qual Lópcz se suicidara ao ser
respeito dos \Cnccdorcc,. alcançado pelos brasileiros). a do Visconde de Pelotas
O homem le\antou-'>c do \!hão a custo. Os olhos (que lt::\C participação di reta no episódio). a do general
injetados de sangue c a cara empastada de suor e de Câmara. etc. =-:unca foi possi\'el restaurar a .ex ata
sujo. e como única resposta. a esp~1d<1 em rhtc. tentou \Crdadc do caso. Da narrati\'a do sargento Luís .\hes.
acutilar o nosso general. Câmara ordenou, saltando entretanto. se desprende um inconfundí\'cl sabor de
para um lado: autenticidade. E que um soldado índio chamado Luís
- Dec;armem esta fer.1! Ah·cs realmente se atracou com Solano López no~
A ordem parecia dirigida a mim. que csta\a mais derradeiros momentos elo caudilho acha-se· confirma-
pró\ imo. Saltei doca\ alt' c atraquei-me com o caudi- do numa carta do major José Simeão de Oliveira (carta
lho. que era um homem muito forte. João Soares de 1873) arquhada no Museu Histórico Nacional do
também saltou c se aproximou dele pelas costas. Rio de Janeiro. O sargento Luís Ahes conta que. em
,\poiou a boca de uma clarir1a sobre o lado e<>querdo Paso de las Ta..:uaras. por exemplo. viu morrer em
da e'>pádu~ c disparou. Mas o tiro não saru. a arma combate um mcn1no lanceiro de 7 ou 8 anos de idade.
tinha falhado. . no múximo. E ~rn Sapucaí. ele se ,·iu acometido numa
Uma \O/ de mulher. choramingada c esganiçada. estrada. ao entardecer. por duas mulheres armadas de
nos \'Cio da outra margem, atrás de nós: foice c facão. um;t delas 'clha de mais de 70 anos de
- N'o lo matcn. por amor de Dios. eo; mi hijo! No lo idade... Luís Ah·es tc\c que fugir para não matar.
maten. por amor ele Dio'>! , Fugir com o trabuco na mão... )

16
Santiago dei ochocientos bons empregos e uma vida tranqüila. Em toda Santiago circulam infinidades de automó-
para poderte mirar Como atender ao irresistível apelo das cartas, sem veis brasileiros. Nos pátios de estacionamento de La
tendré que ver los apuntes dinheiro para as passagens? Combinou com a mulher Moneda e do Ministério da Segurança, a maioria dos
dei archivo nacional o asilo. Ele conseguiu chegar aos jardins da casa, mas carros de funcionários é composta por Opalas, modelo
a mulher e o filho nem chegaram a cruzar o portão. 1975. A Brasília é o veículo preferido entre as classes
Das pontes, a paisagem é desprezível. O rio passa Voltou, direto para o fechado carro dos carabineiros e
devagar e quase seco sobre um leito arenoso, entre daí para os obscuros umbrais da policia chilena. médias, e em plena alameda Bernardo O'Higgins
altas paredes que se erguem até o nível das ruas. Me havia uma com placa do Rio de Janeiro. Dirigida por
t difícil imaginar como chegou até o interior da
lembro dos mórbidos relatos sobre o Mapocho, nos casa. Na porta de cada embaixada hã pelo menos três um oficial.
dias de setembro. Agora, ele apenas fede. E não carabineiros atentos, que de noite trocam o quepe por Encontrar um brasileiro é, para algumas pessoas,
compromete a limpeza obsessiva da cidade, exigência capacetes e multiplicam-se pelos quarteirões da cidade uma grata oportunidade. Depois de me saudar eufori·
da nova ordem. Hã cartazes determinantes: Limpeza armados de metralhadoras. Nas ruas em que se con- camente pela minha brilhante nacionalidade, um
escultura. estudante de economia tenta me convencer da necessi-
centram as embaixadas é preciso andar em zig-zag dade do Chile fazer fronteira com o Brasil:
O Mapocho também é testemunha de alguns vestí- para fugir aos olhares desconfiaqos e persistentes dos
gios mal apagados de outros tempos. Sob a cal das carabineiros. Ou a um possível tremor de seus dedos - São países cada vez mais irmanados. Podíamos
paredes que o acompanham se vêem grandes murais nervosos, sempre no gatilho das armas. Um caminho ceder um pedaço da Antãrtida aos argentinos, que
~om os nomes de Allende e vivas à Unidade Popular.
gostam disso, e eles nos dariam uma faixa ao Norte,
aterrador. que nos comunicasse com o Brasil. ~ tudo uma
E, ainda mais nítidos, os últimos apelos: Soldado, Uma moça me conta a história do noivo. Ele chegou
desobedezca ai oficial gorila (MIR). questão de geopolítica.
do interior e, encontrando a porta do apartamento Ele se aborreceu com os sorrisos. e me disse que
Jã nada lembra o passado, são poucos os demais fechada resolveu esperá-la na frente do prédio. Levava
rastros concretos, visíveis. Sobrevive apenas a memó- uma maleta. Cincopacos(antigoecarinhoso apelido dos falava absolutamente à sêrio.
ria de velhos e jovens santiaguinos, guardando os carabineiros, em desuso) saem de frente da embaixada Para a maioria das pessoas, porém, o Brasil não é
tempos em que a cidade tinha penas, e uma agitada da África do Sul, lhe ordenam que levante as mãos e um exemplo. ~uma saída, talvez a melhor para seus
vida noturna. A grande barraca de Violeta Parra é só encoste-se na parede. Revistam tudo, noivo e ~.naleta. problemas imediatos. a confiar no alarde dos elogios.
uma gravura nos livros que existem fora do país. Um Querem levá-lo à prisão. O impasse é resolvido com a Os jornais falam nas indústrias, nos empregos. e aí
ponto perdido nos dias em que a gente simples comia e cuidadosa intervenção da noiva, que chega, e dos reside todo o encanto dos chilenos pelo Brasil. Um pais
bebia ouvindo cuecas e tonadas da boca de seus mais vizinhos. Mas o incidente ficou registrado. E os riscos onde o trabalho, quem sabe, pode render bem. Eles
importantes. artistas. Eles lembram, não se pagava não são poucos. têm fortes motivos para acreditar nisso.
quase nada, mas o vinho era o melhor do mundo, e a - Figueroa. Me disseram que ganha seis mil dóla-
Os carabineiros seriam barreiras intransponíveis, se res por mês. A televisão chilena transmitiu diretamen-
empanada de pino era preparada pela própria Violeta. não sofressem também com as dificuldades econômi-
Tudo era dito e se ouvia nas ruas guardadas pela cas do país. E se não estivessem dispostos a receber te de Porto Alegre a final do Campeonato brasileiro,
segunda Constituição mais an'tiga das Américas e por alguns milhares de pesos para facilitar o acesso dos entre Cruzeiro e Internacional. soubemos assim a vida
carabineiros amãveis. Havia cinema e teatro e simpó- interessados às embaixadas. Na cidade contam histó- que ele leva.
sios e gente e eles já não se lembram bem, o passado rias de soldados que também cruzaram os portões, O cafeteiro continua falando. Ele carrega pelas ruas
não é um tema exatamente interessante. Até logo, e jogaram as armas sobre os muros, e só voltaram a sair uma grande lata de café, com uma torneirinha, como a
não fique muito tempo. dos vendedores de mate nas praias do ~io. Serve um
com o salvo-conduto que os levaria em segurança ao café fraco e pergunta se estâ bom. E importante
Hoje, nenhum chileno aconselha ao visitante estran- encantado mundo exterior.
geiro uma estada superior a uma semana no país. É conhecer a opinião de um brasileiro. Digo que sim, e
arriscado, dizem: você sucumbe aos perigos do estado ya no son los espafloles ele me oferece uma bolacha, gratuita.
de sitio ou à monotonia. Os turistas parecem acreditar los que los hacen l/orar - Hã três anos as coisas estão muito ruins. Desde
porque 'os restaurantes estão vazios, apesar dos apelos que eu tinha 19. Antes também não era bom. Mas a
convencionais (bandeirinhas, conjuntos de segunda O chileno procura não se comover com o apego às gente comia, e bem. Agora sou obrigado a carregar
terras araucanas. isto por 65 pesos semanais.
categoria). E quem se arrisca a não cumprir o temível
É preciso sair. E é dificil. Os herdeiros dos mapu- Fiz os cálculos. Um peso, mil escudos antigos,
toque de recolher, à uma da madrugada?
ches, indios derrotados por incas e espanhóis, que equivale a um cruzeiro. Menos de 10 cruzeiros por dia.
A certeza de que Santiago tem poucos atrativos
resistiram até o quase extermínio. revelam um amor Comparado a outros. ainda não é dos salários mais
chega a causar constrangimento. Ninguém acredita na
peculiar ao país. Não é dilacerante, nem passional. Se baixos. O custo de vida é tão alto quanto no Brasil.
sincerid~de do elogio às alamedas tranqüilas e cober-
nota sutilmente a cada referência sobre tudo que existe - Gosto de futebol. Quem sabe acabo jogando no
tas de castanheiros. As ãrvores não compensam na
na estreita faLxa de terra entre suas inacessíveis monta- Brasil. Se não der, vou para alguma fábrica em São
cidade morta.
nhas e o mar mais cheio de perigos. Hã sempre um certo Paulo. Tenho uma amiga que ganha bem embalando
orgulho e uma consciência marcadamente crítica, cosméticos. Se soubesse falar melhor o português,
Mi pecho se halla de luto ocultos sob uma estratégica aceitação dos fatos. ganharia mais. ~ professora.
por la muerte de/ amor, Nunca, porém, se nota resignação. Portanto, é Ele se despede. Anoitece. Logo se iniciará o jogo do
en los jardines se cultivan preciso partir. De repente, cada viajantec;é um Marco Palestino contra o Unión Espai\ola, não pode perder.
las flores de la traición Polo. Do exterior, as cartas se enchem de calçadas de Antes? Não, antes não. Ninguém gostava muito de
ouro. Tudo fora é grande e bonito, porque nada pode futebol. Agora, vai todo mundo ao campo. Os jorn.tis
A vida é provisória, marcada indelevelmente pelo ser pior que a provisória vida chilena. Eles se aventu- dedicam várias colunas ao lutebol. Ou aos sucessos de
estado de exceção e pela crise cconômica. Em todos há ram. Juntam seus últimos pesos e partem, às veLes em Fillol e seu parceiro na Taças Da\is Eles jogarão
uma atitude de espera. A alta burguesia espera o grandes famílias. Colômbia, Venewela. O p<.der se novamente na Suécia. Será necessário, outra vez. um
aumento da cotação do cobre em Londres. Os proprie- ressente: é quase impossível conseguir um visto turísti· rigoroso aparato de segurança.
tários de terras esperam um mercado para o vinho que co para a Venezuela. por exemplo. Simples prevenção, No ponto passam vário!> ônibus lotados. Monoblocos
se acumula nos depósitos. Os industri~js esperam porque quem vai. não volta. Mercedes-Benz com placa verde-amarela atrás. Indús·
explicações para a queda de 60 por cento nos índice~ Os olhos estão fixos. contudo. num determinado tria Brasileira. A poucos metros está a garagem de um
de produção de sua fábrica. Os trabalhadores espe- ponto além da cordilheira. Nos mapas dos chilenos banco. Na frente dela, um guarda contratado a uma
ram o fim do chan·1do •custo social•. mantido rigi- que querem partir, não há limites mais fortemente empresa de segurança particular. Um fenômeno novo,
damente pelos · Chicago boys •. economistas de prestí- marcados quc,os do Brasil. Todos têm um amigo cm no novo Chile. Ele sobe num ônibus repleto de torce-
gio acima de qualquer suspeita ou fracasso, assegura- São Paulo, a cidade em que faltam empregados, a dores. Os carros vão pintados: · fuerza Palestino·.
do pelo poder - que espera, intransigente, o fim dos grande metrópole exaltada em reportagens e editoriais •Arriba. Unión•.
ataques do mundo. pelo apologética El Mercúrio. Sempre há o parente de Todos se dirigem ao E')tádio Nacional. Lá. agora.
Há os que esperam apenas um passaporte. Poucos alguém vivendo no Rio de Janeiro. O conhecido que se jogam futebol.
querem permanecer no país, e a vontade de sair chega fixou cm Salvador depois de descer o Amazonas e
a nív~is dramáticos. percorrer muitos caminhos. Ou aquele que permanece
Num dia de abril, a embaixada da Venezuela apre- em Porto Alegre de passagem para São Paulo. após E/ que quiera /legar a/ paraíso
senta uma movimentação anormal. Há mais carabi- -tentar inutilmente a vida na Argentina. de/ pequeno burgués, tiene que andar
neiros que de costume. cm frente à mansão da rua O Brasil é o futuro. O exemplo de desenvolvimento, e/ caminho dei arte por e/ arte
Pedro de Vaidívia. Aparecem também alguns soldados paz. bem-estar. Assim deve ser o Chile. Mas não é. e y tragar cantídades de saliva
do exército, pouco comuns em açõcs de vigilância no então eles preferem buscar •el país de los milagros• por
centro da cidade. Sai da embaixada. repentinamente, todos os • ... minhos. ao mvés de esperar.
um homem de uns 25 anos. Os soldados o levam. Nada Os jornais acentuam as diferenças entre os níveis de Na platéia há perfu'llada'i senhoras. Elegantes. ves·
se sabe. Os jornais só se manifestam uma semana progresso de cada pais. analisam os empréstimos tidas ao gosto da tr,tôicionali.,ta e provinciana classe
depois. As manchetes trazem: dupla tentativa de asilo, brasileiros ao Chile como o ato soberano de um irmão média santiaguina, usando peles e jóias. Entre elas,
frustrada pela polícia, uma vitória da vigilância. Du- mais velho. As possibilidades novas nos campos co· sentum·se rapazes e moças cabeludos. cheirando a
rante toda a silenciosa semana, as vidas do homem e mercial e tecnológico brasileiro ganham lã as dimen- patchuli e exibindo o exótico-convencional de roupas
de sua mulher, presa alguns minutos antes. foram sões do sonho. Não há perguntas sobre café. samba e coloridas. Um público heterogêneo
dissecadas pelo bem montado aparelho policial chile- carnaval. Eles querem saber sobre o sistema de Disca- Eles esperam. Hã tempo. e passa monotonamente.
no. gem Direta à Distância Internacional, quantas indús- Não hã nada para ver no Centro Cultural de Provide·
E não havia qualquer indício comprometedor em trias tem São Paulo. Nas agências de turismo. hã ncia. um elegante casarão situado na avenida Provi·
suas pobres existências. Mantiveram-se apoliticos du- novos apelos para •VeJ!der• o Brasil. O Pão de Acúcar dencia, o centro do bairro do mesmo nome e do
rante os sucessivos governos do passado temido. Não foi esquecido: há excursões especiais ao Rio de Janeiro comércio sofisticado de Santiago. Aí começam a flore·
foram capazes. contudo, de suportar as pressões eco- com o fim exclusivo de levar a Paris - pelo Concorde cer os •shopping-centers• e os primeiros grandes su·
nômicas, nem de resistir ao fascinio das cartas do - os poucos chilenos em condições de gastar muitc permercados, frutos de uma nova orientação econômi·
primo, que acenava de Caracas com a possibilidade de dinheiro. ca.

18
Na avenida Providência está também um grande As alternativas são estarrecedoras. A Fiducia, como El Cronista ataca furiosamente o absurdo da pobre-
conjunto residencial onde o ruído das panelas golpea- é chamada a TFP local. à custa de grandes prejuízos e za. Mas é impotente. como os carabineiros, contra os
das pelas mulheres era mais estridente. Elas protes- da excomunhão, coloca seu livro .La lglesia dei silen- primeiros mendigos de Santiago.
tavam contra a falta de produtos. o racionamento e a cio en Chile· em todas as bancas e livrarias. Na capa, o
carestia no governo de Allende. Ali se travaram ver- arcebispo de Santiago conversando com Allende. No Yo paso e/ mes de septiembre
dadeiras batalhas entre as mulheres e os governistas conteúdo. a acusação: igreja infiltrada pelos comunis- con e/ corazón crecido
nas cnoites das panelas•. tas. Los que no se fueron•, outro título bastante de pena y de sentimiento
Agora, tudo está calmo: não há mais filas para difundido. Na abertura do primeiro capítulo, carta de de ver mi pueb/o afligido.
comprar pão e xampu. Mas não hã dinheiro, também. uma aterrorizada senhora à filha, estudante com bolsa
As lojas estão vazias, como os novos supermercados. A em Quito, no Equador. ·Santiago, julho de 1973.
cara mercadoria à venda só serve para atiçar o desejo Querida, vivemos horas terríveis. Ouço lá fora o Manhã de segunda-feira. Compro os jornais. para
das jovens e bonitas estudantes que passeiam à tarde. barulho que fazem as quadrilhas comunistas•. Para os acompanhar pela última vez a monótona repetição do
E as vitrines são apenas um bom suporte para adesivos adeptos da cosmogonia incipiente, nem mesmo um ritual diário de reações indignadas. Grandes e peque-
plásticos, que trazem um tímido apelo: ChUe, ameio o Hermano Hesse. ~ necessário contentar-se com cFué nas matérias seguem na interminável apologia ao
dejelo. Jehová un astronauta?•, de Ricardo Santander Bata- sistema. Nessa noite, em Buenos Aires, um repórter de
No pequeno auditório do Centro Cultural, eles lia, ou •Yo visité Ganimedes•. de Josip Ibrahim. El Mercurio, na excitada espera da queda de lsabelita,
continuam esperando. Alguns lêem impacientes os À noite todos costumam assistir, ainda, aos noticiá- me diria, entediado: nada de novo no Chile.
anúncios das próximas programações. Cursos de rios. Os chilenos não abandonam o gosto pela infor- Nada de novo. Le\•o El Mercurio e La Tercera. Me
Hatha Yoga, aulas de meditação transcedental. A mação. Mas terminam os telejornais e os espectadores sento na Plaza de la Constituición à espera do ônibus
leitura é interrompida. Ele chega. Carlos Salazar, o sentem, invariávelmente, uma frustação opressiva. Os que me levará ao aeroporto de Pudahuel, de onde -
cantor que entrou em conta to com a energia polar que informativos repetem as reações dos jornais diários às dizem- saíram os aviões para bombardear La Mone-
vem desde o Himalaia, inscrição de •amor e arco-íris• calúnias dos inimigos do Chile. Depois, mostram cinco da.
no bolso da camisa, um moço bom que não fuma nem minutos de operações conjuntas das três armas, os O palácio está em frente.
bebe. Comentários em voz baixa, aplausos comedidos. treinos no combate à guerrilha, Pinochet garantindo a As paredes parecem intactas. Estão refeitas. Seus
Começa sua primeira música, e ele declama o Om, permanência de Caua•s no ministério reformulado, dois sóbrios andares conservam a beleza de uma
esticando extraordináriamente o m final. Daí até a Pinochet inaugurando, Pinochet sorrindo, andando, arquitetura colonial estranhamente despretensiosa.
última música - uma homenagem à grande Fraterni- conversando com os outros membros da junta militar. Nenhuma vida. Vejo a parte dos fundos, onde estavam
da(ie Universal, da qual faz parte - segue-se uma Gustavo Leigh ataca. José Toribio Merino acusa. as dependências presidenciais. Não há vidros. Tapu-
sucessão de aborrecimentos. (Dizem pelas ruas que Merino gosta demasiadamente mes fecham as janelas. Na parte da frente, voltada
As senhoras comentam: é um rapaz bonito. Mas os do pisco.). Depoi:, do telejornal, um programa de para a Plaza Bulnes e a Alameda. não houve
jovens o consideram da maior importância. São uni- entrevistas. Julio Gu7.man, antigo defensor da Pátria e estragos. Funciona ali. ainda. o Ministério das Rela-
versitários, e bastante esclarecidos. A moça que, de da liberdade responde. •Você deixou de defender a ções Exteriores. Os rockets foram precisos. Em volta.
manhã. na Universidade do Chile, me havia convidado Constituição que dizia ameaçada? •. •Não. Defender as há poucos sinais. Alguns buracos de balas no edifício
a assistir um espetãculo, pergunta se gostei. O não é Forças Armadas é defender a Constituição•. do Carrera Sheraton são cuidadosamente reparados.
decepcionante. Explico que em meu pais tudo aquilo Julio Guzman. teatro ou cinema? Teatro não Leio. La Tercera acusa. •lnfamante visita•, em
era conhecido. Caminhos que não levaram a nada. Ela há. Cinema é para os aficcionados dos gêneros comer- enormes letras rosadas. O jornal se referia aos três
fica nervosa, e c1iz que nada está bom, mas que antes ciais. que nunca obtêm sucesso demasiado em Santia- deputados norte-americanos que. de volta do Chile.
não era melhor, e que fora militante do MAPU e só viu go. Ou para quem gosta do erotismo. O que há para denunciavam nos Estados Unidos o desrespeito aos
erros e era preciso encontrar a energia do Oriente e o ver: •Los Malvados de .St. Pauli (vício y prostituición)•; direitos humanos. Elogios ao secretário-geral da OEA.
Brasil não tem boas vibrações e continua falando sem •Aeropuerto 75. ; o.EI Cura casado•; ·La prima•; Alejandro Orfilla. que confraternizou com os dirigen-
parar. Chora. Há algum tempo não se sente bem. Os •Monica, la ragaairaa•. E, no cinc Califórnia, um tes militares. A organização se reúne em junho no
amigos a levam, e ela vai arrastando na calçada seu título sugestivo: ·Asesinato en masa •. Edifício Diego Portales. nova sede do governo chileno.
longo vestido com símbolos místicos. O pouco que ainda existe é muito para escolher. Volto a olhar La Moneda. Um amigo que viveu
Como assistir a uma peça, comprar um livro, uma quatro anos em Santiago, na época de Eduardo Prei,
revista? Nada rende além do n«rcessãrio para a sobre- me dizia que, para cortar caminho entre as praças
Lo único que nos está permitido vivência. Quem sobrevive, agradece à vida. Bulnes e Constituición, as pessoas passavam pelo
Es aprender a hab/ar correctamente interior do palácio. Os carabineiros saudavam, à
porta.
Sus gritos 1/egan a/ cielo. Em editorial, El Mercurio aponta erros no New
Faltam opções. Não há festa, nem trabalho. Os Nadie los puede escuchar York Times. O diário norte-americano continua fazen-
jovens pensam em fugir das duras condições de vida, en la fiesta nacional do inocentemente o jogo das esquerdas. Há um ódio
da estagnação da cultura. Ou da monotonia, apenas. mal velado contra Edward Kennedy e a emenda que
Os estudantes não ultrapassam os limites da apatia. bloqueia a ajuda dos Estados Unidos ao regime mili-
Olham, perplexos, a demissão de dois mil professores Desemprego. A ex-secretária é engraxate na rua tar. Alegria: o cobre começa a subir na bolsa de
e funcionários no reinício das aulas do ano. Os univer- Ahumada. Não há lugar nas fábricas para o operário Londres. O Brasil empresta bilhões ao Chile. O país
sitários sabem o que pensar da alegação de falta de especializado de 25 anos. Nem trabalho para a univer- permite e exploração de uma reserva virgem de merlu-
orçamento. sitária de 24 que cursa o último ano de pedagogia na sas, talvez uma das maiores do mundo, aos barcos
Eles lêem as poucas publicações legíveis. A revista Universidade Católica. Eles competem na rua. a pou- estrangeiros. Dentro dos limites das 200 milhas. No
dem~rata-cristã Ercilla fala com o ex-reitor Edgardo cos metros de distância um do outro, para ver quem Chile há apenas 127 prisioneiros políticos bem trata-
Boerunger. Ele lamenta a perda das proverbiais auto- grita -mais. O vencedor conseguirá vender quatro dos.
nomia e liberdade das universidades chilenas. Lamen- cadernos, e garantirá dez preciosos pesos para a Levanto os olhos. Há uma placa afixada em La
ta o ocorrido. •Temos que reconhecer, humildemente, subsistência. Marguerita, a universitária, jura para si Moneda. Volto a ler La Tercera. a placa está distante
que em determinado nível somos responsáveis pelo todos os dias: partirá ao Brasil nem que seja a pé. O demais. Entrevista com a senhora Avclina Pinocht
dramático processo ocorrido em nosso país•. A censu- operário não jura nada, nem faz planos. Grita. Urgate, em passeio pelo sul. Ela fala sobre o filho:
ra recolhe a seguinte edição da revista, em virtude de Há centenas de vendedores ambulantes nas ruas e, - Meu ti to é um homem simples, de coração justo e
tantos lamentos. Em 42 anos ErciUa nunca havia sido de repente, os gritos env~lvem toda a alameda Bernar- bom. Já era devoto da Virgem dei Carmen antes
suspensa. Nem na época de Allende, a quem fazia do O'Higgins num rumor de volume insuportável. Dos mesmo de ser militar.
ferrenha oposição. escritórios alguém reclama. Vêm os carabineiros. O Me aproximo de La Moneda, para ver a placa. São
A revista circulou novamente na semana seguinte à silêncio é repentino e permanece por alguns minutos. as inscrições sobre a reforma, alguns dados. MOP.
suspenSao. Caso único. Ninguém mais espera a volta Então, toda a avenida recomeça a gritar. Os camelôs- Dirección General de Arquitetura. Dirccción General
dos milhares de livros desaparecidos das livrarias de universitários, os ambulates-operários. os pedreiros de Obras Públicas. Reconstrucción Palacio de La
Santiago. Quem anda pela cidade se impressiona: há vendendo doces, todos saem de seus esconderijos, no Moneda.
pelo menos uma livraria em cada quarteirão. Mas são interior dos bancos, das lojas. dos buracos abertos pelo Na mesma placa. o e<;cudo chileno com as palavras
livrarias apenas para quem se fixa unicamente nos metrô. Recolhem as pobres mercadorias ocultas entre definitivas: Por la razón o la fueua.
velhos luminosos semi-apagados. Estão transformadas as moitas dos jardins e retornam à Alameda.
em papelarias. lojas de material escolar. Obrigadas a El Cronista. o jornal oficial, também grita. Reclama
competir com os camelôs que vendem cadernos e lápis numa série de três matérias de meia página, contra a Te derrumbaron e/ cuerpo
nas ruas. mendicância. esgrimindo em defesa da adoção de uma y tu alma sallió a rodar
Às vezes. os hvros aparecem. Em geral, textos filosofia: moleque pidão, adulto ladrão. O jornal Santiago penando estás.
escolares. Na ·Feria. Internacional dei Libro .as tabule- lam~nta a preguiça e a falta de ânimo de jovens fortes,
tas indicam a localização dos livros exigidos no segun- em 1dade de trabalho, pedindo esmolas pelas ruas.
do. terceiro e quarto anos primários. Os pequenos Adverte: por trás de cada criança que pede um peso há Chega o ônibus. Essa noite não vejo a correria dos
chilenos lêem o Pedro Pãramo, de Juan Rulfo, no a~tomóveis c pcsscas à meia-noite e meia, trinta
um adulto facínora aproveitando-se dele.
terceiro ciclo. São as últimas opções para o povo que mmutos antes do toque de recolher. Nem ouço o
Os meninos ainda não roubam, e a maior parte
mais consumia livros na América Latina: os velhos silêncio obsoluto que se seguirá. O avião me leva em
deles conserva a roupa qullse incólume. Poucos se
clássicos da literatura em espanhol. Alguns lugares direção à calma linha da cordilheira. pelo céu escuro.
apresentam em farrapos. Mas é cedo. Eles são inici~>.n­ Abaixo. a cidade sonha.
ainda exibem o Canto General, de Neruda, nas peque- tes na técn~a de lidar com os carros parados nos
nas e antigas edições de bolso da Losada. Abro uma sinais. Só sabem pedir esmolas. E cantar nos ônibus as
apostila escolar com a biografia dos grandes escritores músicas de Júlio lglesias e Roberto Carlos. em troca de
chilenos. • Pablo Neruda, poeta, 1904-1973, prêmio Os intertitulos que acompanham este relato são
algum dinheiro e de expressões de admiração por suas trechos de poemas do Chileno Nicanor Parra e letras de
Nobel. tais livros, amou o Chile•. vozes afinadas. canções de sua irmã. Violeta.

19
«Jaimito Brón o olhou tão só e desgraçado.
Um bicho-pensou. Um bicho que a solidão pode tornar feroz».
EDUARDO MIGNONA

A finada Laura Ventre, Manucho, o escrivão


Vlllaroa: ninguêm abria a boca.
Unicamente o soluço de Georgie Brón, tão
bêbado como seu Irmão, perdido entre as
cortinas trazidas da Europa.
Naquele momento, a voz de Jalmlto:
..vamos ter que fazer uma Investigação,
padre. Estes brutos andam se matando a
golpes».
Silêncio.
Chamava-se Gulllermo Pérez. Machln nada disse. Contudo, contin uou
Era Peão. olhando com receio a bandeja.
Mataram-no na noite de Natal; wFaça um favor, padre. Feche-lhe os olhos.
dia Seguinte. Faltou-me coragem •.
Jaimlto Brón o matou O soluço se ouviu outra vez.
nuca. / Então, o padre esticou a mão e escondeu a
Foi no posto dos Enanos Vlejos. Ultimo cabeça de Gulllermo Pêrez: não era caso
rincão da fazenda Los fí4adúes. Um local nada tambêm de se deixar espiar pelo defuutv.
bom para se trabalhar. Foi então que a cabeça abriu a boca e
Nem as recordações te fazem companhia saudou a todos.
nesse deserto. O vento da cordilheira as leva ·Boa noite a todos - disse. Humildemen-
e tu ficas só, puro osso. te, desejo-lhes felicidades. Agora, se querem
Era de tarde. sirvam-se•.
E o menor dos filhos do patrão tinha saído Os dedos de Machln ficaram parados no ar.
a galopar a bebedeira. Então, Guillermo Pérez pediu licença e,
Guillermo Pérez estava fazendo um fogul- sem esperar por ela, começou a contar quem
nho. era:
•Que fazes, negro?• - perguntou Jaimlto. disse que veio de um lugar desses qualquer ;
•Nada, patrão•. filho de fulano e fulana. Os anos que tinha.
Hoje é dia de festa. Que fazes tão só? Estâs As geladas que passara. E os oflclos nos
perdido no campo... quais era entendido.
•Estou esquentando um guisado. Gosta?. Ao lado da bandeja, Jalmlto Brón, acompa-
Um guisado sem alguma companhia não é nhando tudo pelo rabo do olho; desconfiado.
nada•. Estava pensando quando ele começaria a
«Pois é•. falar sobre o golpe na nuca.
«O que? Andas sozinho?• Mas Guillermo Pérez não estivera no mun-
«Sim, patrão•. do para fazer delações. E, por fim, é raro que
«Não tens nenhuma mulher?• um desgraçado não saiba agradecer um favor.
«Tenho avó e é só. Mas estâ longe.• Em todo caso. se abriu a boca, não foi para
ccTens filhos?• culpar nlnguêm. Era somente sua intenção
•Oxalâ, patrão. Estou ficando velho e sem demonstrar que o pessoal não era tão bruto, a
nada. Só tenho terra nos pés. E um copo de que se lhe coubera viver como um bicho, a
vinho para festejar esta noite o nascimento do vida era assim mesmo. Não era uma questão
Menino Jesus• Uma voz: de disputas. nem de ferocidadé.
Jaimito Brón o olhou : tão só e desgraçado. •Procura algo, patrão?• Assim, Guillermo -Pêrez, o degolado do
•Um bicho• - pensou . • Um bicho que a •Quero saber o nome deste cara• - posto dos Enanos Viejos: assobiou algumas
solidão pode tornar feroz•. Jalmlto. E levantou a cabeça pelos cabelos. canções, Imitou o lamento de coruja, recitou
E concluiu: •Para viver assim, mais lhe vale A voz era de um peão chamado Fellcldad. as contas de multiplicar atê onde tinha apren-
não viver• •Você o conhece?• dido.
Não conseguiu se agoentar. •Eu o conheci- disse Fellcidad, que tirou E. quando chegou a manhã; quando o sol
Pegou o facão e o procurou no ar com a o chapéu. Chamava-se Gulllermo Pêrez. começou a encher de luz os campos e os
ponta do ferro. Jalmito cambaleou e foi embora. Foi atê galos desandaram a cantar, mandou que to-
O golpe levantou o peão meio metro no ar. sala iluminada. dos os presentes se benzessem e disse·
Atingira o cangote, até o fundo, apesar da Suas botas ecoaram pelas escadas, como •Em nome do Espírito Santo. Que alegria.
bebedeira. se estivessem se anunciando. E entrou. Chegou o Natal. O Menino Jesus jã nasceu • .
Depois, voltou para casa e esperou a noite. Não chegou a dar dois passos. Depois, fechou os olhos.
E quando a festa levantou o som da música Diante dele, estava o padre Marchln, com
e todas as pessoas dançavam e comiam per- cara de quem ia pedir explicações. (Tradução de António Tadeu Afonso.)
nil, Jaimito atravessou o pãtlo, bêbado e Não lhes conto o silêncio, o gesto que fez
enfeitado, com a cabeça de Gulllermo Pêrez don Brón, sentando junto de sua mulher e a Eduardo Mlgnona é argentino. Seus contos
numa bandeja. senhorita Solange. A surpres1 de don Miguel (Guillermo é um deles) venceram o concurso
1: um costume dessa noite: o pessoal fica Atos Cendoya, juiz e am:go pessoal dos de •Casa de las Américas ... 1976. 1: um autor
triste. patrões. inêdito no Brasil.

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20

ou a estética ~a tragédia.
Fotos de Rolando de Freitas,
com textos de Cláudio Bojunga.

pátria desse índio não é o Novo Mundo.


Seus antepassados viram o dilúvio partir ao meio esses
picos gelados, inundando vales de lama e envolvendo
homens e bichos numa estranha nuvem amarela. Dizem as lendas
aymaras que só as árvores conseguiram então apontar seus
galhos para o c.éu, como mãos de afogados.
As lendas também dizem que, após o dilúvio, o sol surgiu
sobre a laguna do Titicaca, antes do que em qualquer outro
lugar. A Bolívia não é o Novo Mundo para esse índio que
esmola na manhã fria de La Paz. Embrulhado em sua
mortalha de plástico, ele é a versão mumificada do prlncipe
em terracota que acompanha com ar enér(JiCo a movimentação
dos turistas no museu arqueológico bolivtano.

..

Fotos: copyright Agencia Estado.

21

Rolando Freitas:
fotografia e humanidade.
Rolando Freitas, no 22° ano d~ fotografia, sabe
com segurança o que é seu trabaho. · E a reprodu-
ção da vida. Quando você enquadra o foco, você está
destruindo, construindo, matando, fazendo renas-
cer•. Do outro lado da lente ele vê sempre o mesmo
personagem: gente. · A fotografia caminha igual à
humanidade•. Rolando só tem uma ambição: fotogra-
far o homem do povo. • Mesmo em um jogo de futebol,
se você se concentra no povo, então você encontra
tudo. Não precisa procurar mais do que isso. porque
também não irá encontrar•. Foi assim que ele fez a
foto (sequência) mais premiada da imprensa, pelo
menos segundo seus companheiros de trabalho (que-
riam que ele a mandasse para concursos): a foto do
torcedor símbolo da Copa Mundial de Futebol, em
1970: um negro mostrando a angústia pela bola que
não entrava no gol, começando a sorrir, vibrando e,
finalmente, explodindo de alegria, faltando-Lhe alguns
dentes. «Eu estava com uma teleobjetiva. Não queria
fazer mais uma daquelas fotos comuns, o público
pulando todo junto. Queria algo que, dentro da
multidão, exprimisse o que todas as pessoas estavam
sentindo. Comecei acompanhando um homem. Mas
parei, porque ele não era bastante forte. Então
encontrei aquele. E vi _que estava ali tudo que eu
procurava: alegria, tristeza, incerteza, frustração,
explosão, todas as emoções humanas. Aquele homem
sabia viver com intensidade .
· As melhores fotos são as que eu fiz. E fim de
papo. Não tenho outras. O importante é a gente fazer e
ste ano o presidente Hugo Banzer resolveu proibir o carnaval em La Paz: . . se sentir satisfeito com o ponto que conseguiu alcan-
o equilíbrio da cidade parece ser tão precário que qualquer agrupamento e suspeito. çar. Eu sei: tudo passa. Então preciso registrar as
Isolado de La Paz e, aparentemente, do resto do mundo o índio do altipano continua pessoas, porque assim vou estar documentando uma
festejando com suas flautas tristes e lãs alegres durante onze dias -e esse carnaval deve época•. Homem metódico, com horários, ele gosta é de
ser mais um disfarce para fitos anttgos e nostalgias de sempre. Quando chegamos a Laja, sair do seu trabalho, no •Estado de S.Paulo• às 17
lugar onde Afonso de Mendoza fundou La Paz pela primeira vez, em 1548, quatro comparsas horas, e de seguir para casa. •Aí fico examinando meu
(bandinhas de músicos armados de flautas e tambores) convocavam a população para dançar trabalho. Olhando as expressões das pessoas. Vendo
nessa última tarde de carnaval. Eram quatro procissões que avançavam tristemente como se tudo que se pas~ou naquele dia, ou em outros, na vida,
estivessem rezando por suas próprias almas penadas. Alguns rapazes sorriam contra e aprendendo. Você sabe: gente é tudo, é a notícia, a
um muro pixado por mãos índias, já que os slogans de Banzer sempre são feitos com
tragédia, o drama. Para ele, a fotografia é também uma
marcador (e ninguém ousa encostar-se despreocupadamente neles.
Essa alegria em forma de lamento foi se espalhando pelas aldeias ao longo do lago Titicaca. síntese: •Quando fico em casa, começo a reme-
Poucp a pouco surgiam blocos vestidos de demõnios que dançavam com cholas de oito morar. E isso é uma coisa boa de fotografia. Ela
saias superpostas, muitas usando ainda o chapéu que o conquistador A/magro introduziu funciona como memória. Afinal, ela caminha junto
na Bolfvia. Quando voltavamos, no final do dia,a igreja de Laja estava completamente cercada. com a humanidade. Com ela, posso me conhecer
Seu ''barroco mestiçon havia se transformado em algo maravilhosamente pagão melhor. Examino aquele flagrante do cotidiano, aqui·
C<;JfT!O se as pedras de Tiau_anaco tivessem _de'!idido abandonar a condição de ' lo que me revoltou, e posso pensar a violência, por
laptdes, ao menos nesse ftm de festa. Os tndtos enfeitados dançavam ao redor de Mendoza exemplo. Tudo que se fotografa acaba passando pela
cujo pequeno busto havia assumido o aspecto de um ídolo. O céu estava escuro ' nossa cabeça, como uma espécie de consciência. E,
f! a mú~ica pela p_rimeira vez me pareceu an{mada. Toda a história de um povo num depois de alguns anos, quando vÓCê passa um material
tnstantaneo deve fazer o orgulho de um fotografo. Mas, quando olhei para Rolando para você mesmo, pode ver o quanto amadureceu•.
ele estava com o olhar ainda mais confuso e triste do que o meu. Amém. ' l'ermanente observador dos fatos do dia, faz umà
observação sobre uma foto hipotética, e revela sua
visão especial nela: •Eu vi as filmagens sobre o atenta-
do a Gerald Ford. Fiquei pensando. Na hora em que
aquela mulher apontou o revolver, Ford recebeu o tiro.
Colocou as mãos em cima do coração e se -contorceu
como se a bala estivesse ali, dentro dele. Naquela hora,
a expressão dele era a de um homem que acabou de
abandonar a vida. Naquele momento, ali s6 existiam
duas pessoas. Uma que te detesta, e outra que quer
viver. Eu gostaria de ter registrado aquilo- a hora em
que Ford levou o tiró. Eu queria ter feito a cara dele e a
angústia da morte se expressando».
Essa é urna constante na vida de Rolando
Freitas. Há pouco, trabalhando em uma reportagem
especial para a empresa • O Estado de S.Paulo•, em
uma viagem à Bolívia (material publicado em série no
Jornal da Tarde (As Fronteiras do Brasil), ele procu-
rou o povo mais uma vez. •Eu vi a tragédia e o
sofrimento do boliviano. Mas vi também a alegria quê
bá na vida das pessoas. Por trás das dificuldades, o
boliviano descobre uma maneira de viver. Então
pensei: se alguém se decide a ver apenas a miséria, não
conseguirá ver nada. Não precisará ir até lá constatar-.
As paisagens eram bonitas,pelo menos estranhas, mas
Rolando pensava de modo diferente: •Não adianta se
fazer uma paisagem muito bonita se dentro dela não
tiver um ser humano•.
Rolando Freitas começou a trabalhar em 1954,
com 15 anos, na Ultima Hora. Em 1960 foi para
Brasília (Correio Brasiliense). Voltou a São Paulo em
1961. com alguma experiência em filmagem em 35
mm, e passou a trabalhar em dois lugares: Gazeta e
Canal 9. Em 1965 ingressou no .o Estado•, onde
permanece até hoje. Só tem uma ambição: liberdade
para correr o mundo. sem relógio e compromissos,
fotografando, documentando a vidinha. (Vitor Vieira)

22
q á se reparou que os pobres do mundo
inteiro pa~sa,m o tempo lrflnsportando
coisas mutets. Pelas ladetras de ar
rarefeito de La Paz, esse ritual é mais
heróico do que absurdo. As coisas são tão
mais pesadas que os homens, tão mais
importantes do que eles, que chega a parecer
uma sorte ser coisa e não um homem.
Sísifo seria considerado em La paz cidadão-
modelo.

história desse gigante austera se perdeu nos tempos.


Ninguém sabe ao certo a origem dessas silhuetas que, há
mais de doze séculos, sustentam as nuvens
de Tiauanaco com suas cabeças de pedra. Na ausência de
uma tradição oral, ficamos perplexos diante
desse povo que, numa paisagem tão gelada e ingrata, transportou
essas massas de basalto de mais de cem toneladas. Como foram
elas cortadas, polidas e ornadas de nichos e baixo-relevos? Quem
foram esses homens audazes e pacientes que armaram essas sólidas
escadas como se fosse um simples trabalho de marcenaria? Quem
foram os construtores ele Calassassava cidade santuário, com sua
pedra de sacrifícios e seu palácio de sarcófagos? De onde vieram
os grandes blocos de Pumapunco.a porta do puma. que se
espalhavam misteriosamente como as cartas de um misterioso baralho?
Os arqueólogos discutem sobre as origens dessa cidade silenciosa.
Eles discutem para saber de quantos séculos essa civilização
precedeu a incaica, os etimologistas se perguntam se Tiauanaco
é o nome do culto prestado ao Deus Guanaco (Ti Guanaco) ou
aos mortos sentados (Tiac e Huaunac). Fantasiosas sugerem que, em
vez de cultuar o sol, os habitantes de Tiauanaco não pertenciam
a esse mundo. Uma coisa é certa: os habitantes aluais de
Tiauanaco não parecem pertencer a esse mundo. Eles são a um
tempo onipresentes e invisíveis, diáfanos e longínquos
como essas aves que se equilibram em uma só pata.

braçada com uma boneca loura, a


velha bruxa oferece fetos secos de
lama, poções maléficas, plantas
abortivas - assim a feira de feitiçaria
de La Paz luta contra a doença e a
morte: oferecendo mercadorias que
reproduzem as etapas da magia e da
criação: a iniciação, o canto, o exorcismo.
Dizem alguns poetas delirantes que não existe
arte, apenas medicina. Os remédios da velha
bruxa seriam então os únicos capazes de
curar um povo cuja história foi roubada.

23
sonolentos dias de bluefields
Esquecimento e miséria na Costa Atlântica da Nicarágua , por Diana Bellessi.
Bandos de papagaios atravessam a última luz. da Nessa época, os bucaneiros ingleses começam a as- Roatán, San Juan dei Norte e a Reserva Miskita
rde. Anoitece sobre o rio Escondido e Puerto Rama solar o mar das· Antilhas, tomam terras e saqueiam ficando com Belize. Esses termos ficaram estabeleci:
:ou para trãs, com o rastro de chuva rápida, violent&. os povoados da Costa Atlântica. Por volta de 1640, dos no tratado de Dallas-Ciarendon, assinado em
lS terras tropicais. Bananeiras, coqueiros, palmeiras segundo o relato dos flibusteiros, um barco holandês 1856. Assim, por meio de arranjos e interesses alheios
ricanas e uma floresta gotejante amuralha as mar- carregado de escravos naufraga ao sul do Cabo Gra- a Nicaragua obtém como •presente• dos Estados Uni:
:ns do rio. A pequena lancha_ desliza placidamente. cias a Diós. Os sobreviv.mtes foram acolhidos, então, dos a Costa Atlântica. Para dar ao fato a aparência
pleta de colonos que conversam em voz baixa ou pelos nativos da região, os índios mískitos. Com eles se de uma decisão interna, Bluefields é ocupada pelas
iormecem em meio à fumaça dos cigarros, sobre as mesclaram, e deram origem aos cafusos costeiros. Ao tropas do governo liberal de José Santos Zelaya, em
-ossas tábuas de madeira. Me dirijo à proa.A quilha mesmo tempo, a tripulação do barco fundava o porto 1894.
>rta suavemente a água, que respinga sobte mim. A de Bluefields, que se converteria na central de opera-
>ite se abre numa festa de estrelas. Quando a embar- ções dos piratas britânicos entre a Costa Atlântica da De como tornar-se uma
tção pára, carregando passageiros ou gado em frente América Central e as ilhas an'tilhanas. república de banan as
alguma casinha na margem, as lâmpadas de óleo Começam os litígios entre a Espanha e Grã-Breta- Uma das primeiras companhias bananeiras impor-
scam, ouvem-se vozes. E, no entanto, todos os sons nha. Durante dois séculos, eles lutariam pela posse tantes a se estabelecer em Bluefields foi a Bluefields
!saparecem, porque o silêncio tem aqui o seu ruído dessa zona, chamada Moskitia, de onde partiam gran- Steamship Company, que combinou com Zelaya um
·óprio: o da selva. des quantidades de caoba, anil, prata e ouro para a monopólio especial do negócio nessa área. A United
Nicarágua, país de nomes aquàticos, país selvagem Europa. Os espanhóis procuram deter os barcos pira- Fruit Company quis disputar a concessão, mas fracas-
n que a dinastia dos Somoza e os trusts são donos de tas, construindo uma fortaleza no rio San Juan. As sou e se estabeleceu em Puerto Lim6n, na Costa Rica.
Jase tudo que a vista pode alcançar. escaramuças se sucederam até 1670, quando é assina- Anos mais tarde, contudo, a United apressou a queda
Desde o Grande Lago - esse mar escuro que se bate do o Tratado Americano, pondo fim à guerra entre de Zelaya. ao entrar em acordos com o Departamento
mtra a cidade de Granada - meus pés vagaram por Espanha e Inglaterra. O domínio de Moskitia é conce- de Estado ianque - que, por sua vez, obteve da
1as e praias do Pacífico. León; Manágua, ardendo ao dido à Grã-Bretanha. Cem anos depois, outro tratado Nicarágua um tratado pelo qual se concedia a rota do
eio-dia do frenesi de seus mercados; Matagalpa, reconhece a sobetania espanhola sobre o território dos
miskitos: é firmado em Versalhes, entre França, In- projetado Canal de San Juan.
a.nheirais, minas, terra saqueada. Daí ao Oriente, Durante o governo de Estrada, sucessor de Zelaya e
~lo rio Escondido, até a Costa Atlântica. Aí, uma glaterra e Espanha. Os ingleses são obrigados a se Madriz, aparece a Cuyamel Banana Company, vendi-
gião esquecida conserva sua complexidade étnica e retirar. Jamais tarde, em 1930. à United Fruit, que permane-
J)tural, uma história própria - que não escapou, Havia em Bluefields, então, uns 150 escravos africa- ceu na costa até quinLe anos atrãs.
mtudo, aos véus que disfarçam a mentira, o engodo e nos que falavam seus dialetos junto com o inglês. Agora, as companhias bananeiras emigraram para
exploração de séculos que sofrem os países da T ambém existiam muitos mestiços, cafusos, alguns outras regiões do país, tirando seu produto pelos
mérica. ingleses e índios. Os escravos de Robert Hogdson, portos do Pacifico. As madeireiras fizeram desastres
Ao amanhecer a enseada em que descansa Blue- fazendeiro da Costa, adotaram o sobrenome. de seu na região. A lagosta desaparece. Bluefields é um porto
elds. É um povoado de campos azuis, ponta do amo. A líder da •oposição• atual, Erika, é descedente quase abandonado. A população sobrevive duramente
epartamento onde o rio tem sua foz. Para lá conver- desse grupo. As outras famílias fizeram o mesmo e, e é mão-de-obra barata para as três companhias
~m os pequenos comerciantes, caçadores, campone- j unto aos mulatos da Jamaica, deram origem aos pesqueiras estabelecidas ali. de propriedade de Somo-
:s, dispersos pelas choças que se estendem desde atuais habitantes da Costa, os chamados criollos. A za, de capitais norte-americanos e de um cubano
uerto Cabeza, passando pelo Golfo de las Perlas, até Costa Atlântica foi último lugar da Nicarágua a abolir exilado. A educação é deficiente, e está em mãos de
rio San Juan.· a escravatura, a 27 de agosto de 1841. A data ainda é missionairos ingleses, gringos· e alemães. Ao mesmo
Das escuras lojinhas do cais sai um cheiro de café, celebrada em Corn lsllmd. ilha situada a algumas tempo, pululam as seitas protestantes. A discrimina-
tisturado com trituras e urina dos meninos. Ouve-se a milhas de Bluefields. ção racial é notável. As autoridades só se lembram dos
ritaria confusa dos carregadores', passam mulheres Apesar do Tratado de Paz de Versalhes, os ingleses bairros mais humildes ou dos nativos da ilha de Rama-
Jm grandes caçarolas, escutam-se risadas e conversas não se animam a abandonar o território. Em 1816 eles kí, por exemplo, nos períodos 'pré-eleitorais. Então
1l voz alta, em que predomina um inglês vitoriano regressam a Bluefields, criando uma genealogia de reis atuam com cínica demagogia.A organização sindical,
texido com gtria, palavras em espanhol e em língua mískitos e coroando •rei• a George Frederik, de 20 naturalmente, é quase nula.
tiskita. A configuração étnica "é assombrosa: mestiços anos. para dar a seu domínio na Costa Atlântica a E os dias passam sonolentos. opressivos, em meio à
e índios e negros descendentes de escravos jamaica- aparência de uma soberania nominal. O propósito miséria, o desemprego,' as intrigas políticas. Cruzada a
os. pouc-os brancos ou mestiços espanhóis, nativos fundamental era ocupar posições firmes para o mo- barreira dos preconceitos raciais, as pessoas se abrem
üstikos ou ramas ecafusos de beleza peculiar, altos, de mento -já bem próximo - da construção de um calidamente e contam histórias do passado, do vergo-
~le escura e traços de um rosto indo-americano. canal inter-oceânico pelo rio San Juan, que seria nhoso presente. das lendas que crescem por todas as
As construções nas ruas conservam seu estilo inglês, realizado finalmente no Panamá. partes, das esquecidas choças dos pescadores ao norte
~ madP.ira com tetos de duas águas e frágeis varandas Ao rei George sucederam mais dois monarcas, de Bluefields, dos meios-dias abrasadores nos bairros
~ torno. Ruazinhas calçadas de pedra ou l amacenta~ Robert Charles Frederik e George William Clarence, negros. E riem. decididas a sobreviver.
atrros negro do Old Bank, onde se misturam as que é o coroado em Belize aos 15 anos de idade, no ano ...........
tudações: mom ing, buenos dias, aisabé.•• de 1845. Nessa época, tanto os inglêses como os
n()t te-americanos cobiçavam a área, por sua importân- ( + ) Forma de saudação em llngua Mískita:
Piratas, escravose interesses: cia estratégica e econômica fundamental. Já na oca-
ocanal de Panamá na Nicarágu a? sião uma companhia de transportes gringa, lnter-
Ocean Transit Company. transladava imigrantes que Diana Ballesi é argentina. Poeta e jornalista. Nasceu
No início do século XVII. uma cidade as margens do viajavam da Costa Leste dos Estados Unidos à Califór- em Zaballa e estudou Filosofia na Universidade Nacio-
rande Lago da Nicarágua ganha nova importância. nia. em busca do ouro descob.erto em grandes quanti- nal de Rosário. Tem vários textos editados. Colabora
'le está na rota do rio San Juan, por onde passava, de dades nesses anos. para a •revista • Ci'isls~, de Buenos Aires, e comC"AY"'l
m oceano a outro, todo o tráfico mercantil da Améri· Os interesses se chocam. Mas a Grã-Bretanha está nes t e numero, a escrever reportagens exclusivas para
a Central e do México, em conexão com a Europa. envolvida na Guerra da Criméia e tem que ceder VERSUS.

«li Fes tival Internacional de TeatrO>>

A~RoPo~To
AP RESENTA
CON60NHAç,
cc NACHA DE NOCHE>>
com
Nacha Guevara -
estréia dia 9 de junho
· s615dias
TEATRO RUTH ESCOBAR
Rua d os Ingleses 209- tel: 289-2358

24
A ESPER..~
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P~RE.CEM D~~G.b.R SOB O 50L DO M~IO-Dt~.
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UV1Ã PEROil. L6.~~0U OM GRITO 6~UDO

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Os ~OVIt.~S. t:.. Ct:..VbLO ER~M UM BàNDO ••• O GtbÓCHO _


DE. ÍNDIOS, St~(D05 ~t::.. Ct::..C-~ SOB O C6.LIXTO ORDO~E.'l.
COMt::..NOO 00 Cl:>Pt T~O PICI-H~UII\JCt::.. :
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Pouco QEPOr& ct.Vt.LGt.vc.M JUt.JTo& Pc.Rt. C~LOTt.. ~M v~R"fiGIIIIO&t. OR.ooijE.z.t'>E &E.I.JTio. MAl&
S.UCE.SSliO 0$ OITO ~OS Pt:.S&~ Gt.lOP.t.Vt.M klt. CABE.lU. DO (;t~ÓCIIO, TIUIIJQUILO 00 GUE FELil. ~
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TOIUJOU·SE BE&t..OO E ~Sii#OU IJO t:.LVO, Mbc;, O
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VEl.ES MATOU C.OIJI L[)MPI60 P~;:GOU â.
'IIUI"TA Rt.ZAO, 'b~ Pt.LHA 00 TE.TO .
VE.U.~ SEM QObLQU'-R
MOTIVO .

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~b.OO QUt:.';>E 001& ee. lttà!!l O OFICI6L
AOOS, !;.LE 50\Jt.Ç. QUE TltJHA. SIOO Mt.NObDO
~t. WITE 00 I~HIDIO, COM&t.TER COt-JT~b.
001$ OFICIO.I~ 00 F()l:tTE ~SOf. IRMAOS _
Vl2.1t.lll0 EC::.TàVAl./1 Pb..Rt:.GUt.\0$. E.t-..ITAO,
EM&I?IA<".6005, E TIIJHt..M DESILUDIDO DE TUDO~
FEITO UMA l:.PO&TA . ELE. DE(.tDIU IR VIVER
~®J.NOJC)p,

vm IX

S.IIII,CMDNEL,E.SPEREI
OITO MIO& r.~TE
MOME.IJTO, b MUL"ER
E ~ CRlt.IJC.t. ERAIII
b W~"A MULI-tE.R E
O MEl) FILI-IO ...
\

X XI
Dizer que a violência é o problema fundamental da
América e do mundo é apenas constatar um fato. Que
o romance hispano-americano reflete essa preocu~ação
personagem do romance hispano-americano
qual é a situação dcfiniti'a que enfrenta? atual. Fàv Arei CbrfrteVl
..e percebe em cada oágina escrita em nosso contmen-
te. essas página:. que sãC' co~o a pele de nossos povos.
1- A situação
testemunha~ de uma condtção sempre presente. O violenta
e~sencial. então. não é comprovar o indiscutível peso
da temática da violência em nossa realidade factual e concreta
literária. mas desentranhar as formas específicas. múl- A agre5sào começou há muito tempo: a América é
tiplas. contraditórias e profundamente human.as:.. q~e fruto de uma 'iolência prolongada. de um saque
es'a temática apresenta: mostrar como a vtolenc1a contínuo. da guerra civil e fratricida em toda sua
criou uma cosmo, isão que não se encontra em nenhum geografia. O mundo já existe com certas dimensões
outro lugar; como o homem americano enfrentou o eYidentes. Quando encontramos o personagem pela
problema de sua morte e sua liberdade. e como. primeira ve1. quando o sentimos ir nascendo nos
derrotado ou vencedor. soube buscar na violência seu olhos-\'entre do leitor. já há um mundo concreto
ser mais íntimo, seu vínculo ambíguo ou imediato com rodeando-o. cheio de sombral. c punhos e rifles, que
0~ demais. Em última instância. nossa procura se ele acata e cria de novo com suas decisões. mas que o
constrói sobre a esperança de poder compreender. envolve desde antes. desde um distante, intangível
através dos olhos que nos emprestam os narradores antes. quase como um pecado original, a estrutura que
deste século. exatamen te · embora não haja exatidão nossos pais nos legaram c que eles por sua vez
que valha~o que é a A~~rica. . receberam de seus pais, de geração cm geração mu-
A violência sempre fot Importante em nossa literatu- dando e sendo determinados, esta herança de possível
ra. tal como o foi em nossa história: mas, até o morte prematura. nosso patrimônio. nossa pena, tal-
naturalismo, as manifestações deste problema, embo- vez nossa salvação.
ra sintomáticas e frequentes, não foram o resultado de Imaginar a morte e evitá-la. imaginar a morte para
seu predomínio na sensibilidade de uma determinada evitá-la. isso é o primordial. a única lição que não se
geração. A morte era vivida na América a part.ir de pode esquecer. .
tópico~ literários europeus. ~oA en.tanto, a parttr .do Sobt:eviver. A violência é o modo hab1tual de se
naturali!>mo. o problema da vtolcnc1a passa a ser o eiXo defender, o método que está mais à mão, o mais f~cil.
de nossa narrati\'a. já que. ao descobrir a essência às vezes o único, para que não te matem. Aprende ISto.
social da América, as lutas e sofrimentos de seus filho. me diz meu antepassado. é o que me diz meu
habitantes. a exploração que sofriam nas mãos da antepassado. meu pai. meu avô. sobreviver.
oligarquia e do imperialismo. a forma como a terra os Sofrer a \'Íolência e contribuir para ela. tratando de
de~ora,a. se descobriu. paralelamente. que nossa rea- não descansar na irônica pa1. do túmulo. de continuar
lidade era 'iolenta. essencialmente 'iolenta. Os ro- escutando o peso da própria respiração. Em quase
mances amencanos. até 1940. se dedicaram a docu- todos os romances. o homem é um perseguido. A
menlar a 'iolência feita a nosso continente. a fotogra- \'iolência aparece como mecanismo de autodefesa. Os
far suas dimcnsõe!. socias. a denunciar perante a que acreditam que podem escapar dela. como veremos
,)pmião pública as condições brutais e desumanas em postcnormente. se equivocam, e a ira e a desolação
que se debatiam O!> povo~dores destas terras. ~.ênfase irrompem em suas vidas contemplativas.
está colocada nos padecimentos, no estado soclo-eco- Reina a insegurança; em qualquer lugar, uma faca.
nôntico-legal que permitia esse despojo, numa nature- e a mão atrás dessa faca. A morte está na virada da
za que engolia o homem. o qual aparece como u.m ser esquina rosada. diria Borges: espreita o ~o!l'em .desd~
passho que recebe os golpes das forças soc1~s .e todos os tempos e de todas as partes. e o um~o .ah.ado. ~
naturais que se desencadeavam sobre ele. A essenc1.a a gente mesmo. porém. paradoxalmente, o mtm1go Ja
da América para essa literatura se encontra no sofn- entrou eu sou meu próprio inimigo. A violência surge,
mento. acima de tudo. da necessidade de continuar vivendo; é
Na atualidade. já se havendo estabelecido para um ato quase natural. como respirar ou comer. Mas
todos os americanos a existência desta situação alie- também explode porque o homem é um rebelde,
nante, partindo do conhecimento que o público tem da porque não está satisfeito com a realidade tal como
exploração e dos diversos espaços em que se desenvol- aparece. e então a violência. que começa por ser quase
l'e, o romance pode registrar a a tiva posição individual biológica, termina sendo instinti~a. o mod~ que o
frente a este estado de coisas, as diferentes formas com homem tem de conservar outra cotsa, não a v1da mas
que cada ser humano reage ante a proximidade da sim a dignidade, ao negar-se a ser assassinado por
morte. ante a tentativa de se tirar sua humanidade. outros.
Para levar isto a cabo, para poder se liberar do peso Ao mesmo tempo, é produto da pressão interna,
naturalista. os narradores mergulham nas consciên- psicofísica, que abre caminho catarticamente, porque
cias afastadas pela violência, vendo os dilemas d~ o homem já não pode continuar acumuland~ tanta
dentre encerrando o leitor nessa ficção. Trata-se de energia e cegueira dentro de si. Com esse mov1mento
criar u~ panorama de diferentes atitudes possíveis, as de exteriorização. resolve, momentaneamente. suas
soluções paralelas a nossos problemas imedi~tos, ine- contradições, superando-se na ação, gera~m~nte num
ludí"eis. Isso não quer dizer que se tenha deiXado de movimento surdo, mas que, às vezes, e bberador.
denunciar a miséria e aqueles que a causam; acontece, Reage-se com violência, muitas vezes, não porque se
simplesmente, que se descreve as consequências que saiba.exatamente o que fazer, mas sim porque se está
essa exploração teve e tem no delineamento de um ser confuso e não se sabe onde deve desembocar a selvage-
interior, de uma conduta que podemos reconhecer ria que sobe desse centro quente que é o meu eu, isso
como nossa. Supõe-se que já está documentado o que ao bater se sabe real e contundente. Os persona-
contorno no qual o personagem se move. Agora impor- gens sentem obscuramente a necessidade de que essa
ta desenhar o personagem dentro do qual se move o violência interior volte ao mundo, que se responda ao
contorno. Como sobrevivo neste mundo, como mante- vazio. que se responda à pergunta que significa minha
nho minha dignidade humana, como me liberto, como possível morte em outras mãos. recuperando pela
uso esta violência em vez de que ela utilize a mim, metade minha humanidade, o homem afirmando seu
como me comunico com os demais, que faço com meus direito de não ser um objeto que só recebe pancadas,
dilemas concretos. inevitáveis? E outras pergunta:. que mas que as devolve, diferenciando-se de um vegetal ou
só agora estamos preparados para nos faze~: quem sou de uma pedra ou de um cachorro. A mim fizeram
-eu. quem é este homem que. sofre esta reah.dadç e que sentir medo. me fizeram sonhar minha morte de
reagirá diante dela? Não mteressa repetir o que o maneira a que não aconteça. me transformaram num
romance anterior já explorou, as formas de exploração bárbaro: agora, que eles sintam medo. Claro que eu
da mina da borracha, do camponês. da fruta, da sou parte desse eles.
burocracia da fábrica. etc. ou os espaços básicos, Assim. tenta-se estabelecer um equilíbrio. a justiça
geo-sociais: onde aconteciam estes sofrimentos. Mais que se gera a partir do indi"íduo. O mundo me ameaça
necessário é iniciar o diálogo, dessa realidade inegavel- e eu ameaço o mundo. Mas nesta interação se encontra
mente americana. com a consciência que a olha e uma secreta e momentânea harmonia entre forças
estabelece. e fazer isto sem deixar de narrar a comple- interiores e as que reinam no mundo exterior. Trans-
xidade cada vez maior de nosso mundo social, sem formo-me em afluente do caudaloso rio do real, sinto
esquecer a incorporaç~o de n?vos espaço~ humanos, que estou interpretando o sentido oculto das coisas,
especialmente o da c1dade h1spano~amencana .. Que que com um rito individual estou imitando a estrutura
consequência tem para nossa humamdade esta ahena- de uma realidade exterior que me parece quase divi-na
ção em que v1vemos. esta violênci~ que nos cre~ce .d.e por sua onipresença. Neste ato. portanto. há uma raiz
não sabermos quais raízes subterraneas; o que Slgmfl- mágica. um desejo - aderido à necessidade de sobrevi-
ca que frente a mim esteja um outro que é minha ver - de sentir uma corre~pondência entre macro e
esperança. é meu olhar falando-me de outros rostos. microcosmo. esse anseio de se sentir integrado em uma
mas que me ameaça com a morte; que f~ço eu com a ordem signiJicativa. ainda que sua forma seja ilógica e
minha violência. essa solução que tambem pode me destrutiva. O homem violento C'llá só, é certo, mas não
destruir? se encontra bolado. rcconhc~·L·ndn- sc c recuperando-se
Mas antes de tudo. como se apresenta a violência ao em sua objcthilaçào.

J 31
A violência aparece. pois, co 1 • um deus. infernal e as discussões sobre a \'iolência em nosso romance (há Na América Espanhola, em troca. não é o processo)
divino ao mesmo tempo. Por 11 á... da alienação social uma longa investigação em Maõana los guerreros, de de uma elite que •inventa• uma realidade diabólica ou
respira a alienação religiosa. Toda decisão conduz à Fernando Alegria) e poucas as referências pensadas dolorosa. O que Carpentier percebe com respeito à
\ iolência incst"")avelmente. Está em ti e está na sobre ela. Como estrutura erigida pela luta entre fantasia em El reino de este mundo vale igualmente
realidade. con nd·"~·O a participar. Princípio e fim homem e homem, imposta pela sociedade, está em para a violência: surge da própria realidade. Nossos
que panteisticamcnlL ,no silêncio, porque são poucm todas as partes. é algo que se dá e se recebe ao mesmo romancistas procuram as diferentes caras qu~ o ho-
os personagens que admitiriam isso) invadiu todos m tempo, c isso não se escolhe, como não se decide mem americano foi pondo em sua desesperada luta
cora'ções c todas as instituições. se transforma nc nascer ou olhar ou andar. Para parafrasear Sartre. com a morte, em sua tentativa de sair desta ''iolência
próprio ser das coisas. a secreta cha,·e que ordena e estamos condenados à violência: ela se transformou no que é nosso destino. seja qual for a forma que tome:
explica tudo. Como a maioria dos pcrsonagcns da ato cotidiano. na negra luz que nos ilumina. Enreda- para fora ou para dentro. horizontal ou vertical. sexual
literatura contemporânea. estes se sentcm numa arma· dos no ineludivel. encontramos uma acentuada visão ou social: constante ou descontínua, pessoal ou coleti-
di lha. Enca . ..:era dos na violênda. só essa violência. em trágica em nossa literatura atual, à medida em que nos \'a. libertadora ou alienante. feridora ou mortal.
qualquer das formas que os w"•ancistas captai 1 pode damos conta dos limites e horizontes desta realidade. Podemos. então. investigar agora os caminhos aber-
liberá-los. Em Garcia Márquez. em Benedetti. em Fuentes, em tos ao personagem no romance hispano-americano
Poucos são os personagens ql•l.: podem prescindir da Rulfo. em Sábato. encontramos uma aproximação atual. as formas <..'O ncretas desta \ iolência. Fundamen-
'iolência em nosso romance. Na literatura européia, cada vez maior ao mítico ocidental, especialmente à talmente. são três estes modos: a violência vertical e
cm troca. em muitas narrações norte-americanas dm tragédia grega e à turbulência passional bíblica. O social; a horizontal e individual. a inespacial e interior.
últimos vinte anos (Salinger. Barth, Bellow, Mal:!· destino é um deus: em parte, podemos criar arquétipos A estes acrescentaremos. por último. a \'iolência estéti-
mud. Capote. Styron. Kerouac. Updikc, Cheever. até porque nossa experiência repete túneis pelos quais ca. narrativa. o proprio romance como um ato de
em Ralph Ellison). a maior parte dos protagonista~ passaram outros povos, esses que sabiam. como nós, agressão ao leitor.
termina por se desentender da viólência como solução, que é preciso vestir a fatalidade com nomes para poder
argumentando que a dignidade consiste, justamente,
cm se afastar da luta num mundo sujo, retirando-se
entendê-la.
Este culto também explica porque a literatura norte- 2- A violência
para refúgios interiores e problemas intrapessoais.
Crêem que podem não levar em conta a violência. O
americana de Hemingway, Faulkner e Dos Passos é a
que mais nos influenciou, enquanto Henry James é
vertical
espectador-vítima. que analisa as minúcias das conca- apenas ~onhecido. Os personagens norte-americanos e social
tenações que o levaram à sua situação atual, se rebela dos anos 20 e 30 também escolhiam a direção que Os personagens, ao perceberem que são vítimas, se
retirando-se, recusa corromper-se no jogo burguês que havia de tomar sua violência, mas lhes era impossível rebelam contra a sociedade que criou sua situação;
vai vencê-lo na partida, faça o que fizer. Falam por rejeitar o que era consubstancial com seu ser. No usando a violêlrcia como uma forma de libertação
uma minoria numa sociedade de massas. entanto. esses protagonistas tentavam fugir de sua coletiva. Para construir é preciso primeiro destruir,
Na América Espanhola, a violência não é o segundo situação muito mais do que o que fazem os latino-ame- para a paz se faz a guerra, à exploração direta se
pólo ou termo de uma dualidade, uma a lternativa ricanos atuais. responde com a violência direta. O homem sente que,
frente à qual não se possa col~car com certa racionali- Explica-se esta diferença, a necessidade ineludível ao se fazer histórico. sua violência ganha sentido; por
dade e aparente indiferença. E a própria estrutura em de uma catarse cotidiana, levando-se em conta a ser vertical, dirigida contra «OS de cima•, como respos-
que me encontro: não entregar-se a ela significa especifica situação do homem na América, dilacerado ta à opressão, pensa-se que se poderá controlar esse
morrer ou perder a dignidade ou rejeitar o conta to com por sistemas de valores que dele exigem diferentes tipo de agressividade. Mas é inevitável que estes heróis
meus semelhantes. Sou violento, diz o nosso persona- reações, que o desorientam e enriquecem suas deci- sejam, finalmente, assassinados. Seus esforços isola-
gem, sinto-o dentro de mim, é minha personalidade; e sões. A civilização e a barbárie; o racional e o irracio- dos são geralmente o produto de atos inconscientes
ao mesmo tempo flui de fora, como lábios de ar, nal; o desenvolvimento cultural do Ocidente, de onde mais que o resultado de uma posição organizada e
unindo-me com os outros, separando-me deles. O em parte viemos, e nosso subdesenvolvimento econô- racional. Uma revolução não cresce como as plantas,
problema é claro: que tipo de violência usar, como sair mico e social; o espanhol e a tradição negra indígena; a embora a experiência de luta também tenha demons-
dessa situação e continuar sei\dO humano? E não a cidade e a natureza; o embate com o imperialismo e a trado que muitas vezes a organização política freia o
pergunta norte-americana ou européia: serei ou não falta de meios materiais para esta luta; a divisão entre .desenvolvimento dessa violência.
'violento? Na Europa, o personagem opta frente à intelectuais e povo, tudo isto, acrescentando à comple- Em todo caso, o protagonista morre. O narrador
violência; escolhe-a ou nega-a, e em alguns casos se xidade confusa do mundo moderno e a crise da qual implica e até garante que é a «pequena morte• que
indaga por seu sentido, vivendo longe dela mas vigian- participamos, torna mais angustiante e difícil a clareza estes personagens recebem. É o sentido homérico,
do-a. A violência, nos autores não-hispano-america- em nosso continente. Não é só escolher alternativas heróico, das palavras de Rendón Wileka em Todas las
nos, está fora da gente e aparece como algo diferente dentro de um sistema determinado. Escolhemos entre sangres, de José Maria Arguedas:
de sua personalidade. Na América, a violência nos d iferentes sistemas, e além disso devemos sintetizá-los «Os fuzis não vão apagar o sol, nem secar os rios,
escolhe desde que nascemos, e o que devemos determi- para não falsear nossa origem e não empenhar nosso muito menos tirar a vida de todos os wdios. Continue
nar é como a utilizamos (e poderemos sequer utilizá- futuro. fuzilando. Não temos armas de f~...,rica, que não
la?), em que direção ou contra quem descarrego esta Nossa violência, portanto, criada por um sistema valem. Conhecemos a pátria no final. E não vais matar
energia que sobe em mim e que tem que sair por social que força 90% de seus habitantes a não saber a Pátria, senhor. Aí está: parece morto. Não. O
alguma parte. Na Europa, a violência existe porque eu sequer se viverá depois de amanhã, alimenta-se ainda pisaray chora: derramará suas flores pela eternidade
sou «livre•, supõe-se que há um eu alheio à violência,· da tonificadora insegurança de um continente que da eternid~de, crescendo. Agora de pena, amanhã de
capaz. de decidir frente a ela, diferenciável e à parte. busca seu ser, e que assume pautas contraditórias com alegria. O fuzil da fábrica é surdo, é como pau; não
Na América, a violência é a prova de que eu existo. as quais se vive e se atua. A imediaticidade da entende. Somos homens que viveremos eternamente.
Não discutirei o fato da violência, só a sua forma, violência pessoal orienta: é algo concreto a que se ater, Se queres, se tenta, dá-me a mortezinha, a pequena
dizem nossos per<>"nagens. a repetição dura de meu eu etn ação. Mato, logo morte, capitão.•
Tal como no c.1~0 dos negro norte-americanos (espe- existo; a objetivação de meu ser em ação garante que •O oficial concordou, e o mandou matar. Mas ficou
cialmente Wright e Baldwin), a violência não é um se vai em alguma direção, às vezes em qualquer uma, $Ó. E ele, como os outros guardas, escutou um som de
problema intelectual: não se trata de al_go qw esteja de modo a preencher o vazio, sentindo-se existir na grandes torrentes que sacudiam o subsolo, como se as
ali, por aí, e possa esperar até amanhã. E o inevitável, resolução das dúvidas, no compromisso com uma ação montanhas começassem a caminhar.•
a co: do destino, o rosbt> de minha morte. São poucas que não é necessariamente a melhor, mas é a única A violência do povo americano tem nestes romances,
que o homem pode reconhecer como sua. A criação do alguns aliados: a natureza e a lenda, que são prolonga-
mundo a partir da expansão de um eu solitário é uma mentos de. sua luta em outros campos. O próprio
garantia transitória de um sentido, embora o significa-, universo se unifica em torno desta violência, já que
do se imponha a partir da própria violência suprapes- tem como fim mudar o sentido desse universo.
soal. É Larsen, em E l astillero, de Onetti, quem leva Podemos encontrar esta mesma atitude em Gaspar
isto a seu exagero, ao considerar sua vida como uma 11om e os índios míticos de Hombres de maiz e, com
série de •ates ainda desconhecidos que começariam a menos clareza, em Vicnto fucrtc, E l Papa verde e Los
ser cometidos, um atrás do outro, sem paixão, como se ojos de los enterrados; em Sofia, o personagem de El
só emprestando o corpo•. Por isso, a zombaria, o jogo, siglo de las luces, de Carpentier (•Foi nesse momento
ell'! última instância a imaginação destruidora, é a que que Sofia se soltou da janela: ..vamos lá.•, gritou,
fundamenta toda a realidade em Onetti: o homem arrancando sables e punhais da panóplia. Esteban
pode ironizar sua própria agressividade e tece fantas- tentou detê-la. «Não seja idiota: estão metralhando.
magorias em torno do ato possível, esse que já efetuou. Não vai fazer nada com esses ferros velhos. • ·fie-se
que! Eu vou» «E vai lutar _por quem?, «Pelos que
É frente a esta violência, que define a inter-relação saíram às ruas - gritou Sofía -. É preciso fazer alguma
na América, frente à maneira de sobreviver e resgatar coisa.• «0 quê?• «Alguma coisa!• E Esteban a viu sair
.um sangrento espelho de nossos rostos, é frente a· isto da casa, impetuosa, exacerbada, com um ombro no
que se deve qualificar a redescoberta do Marquês de claro e um punhal no alto, jamais vista em tal força e
Sade no mundo europeu, a criação do teatro da em tal entrega. «Espera-me•, gritou. E armando-se
crueldade, o cOlympia Reader•. o masoquismo sexual. com um fuzil de caça, desceu as escadas a todo·
Lá isto é o resultado de uma má consciência (embora correr... »); nos jovens revolucionários de Los anos
tampouco negue que é uma busca. uma maneira de duros, de Jesús Díaz; nos operários comandados por
reabrir as comportas da comunicação), a lembrança Soto em Los'dueõos de la tierra, de Vinãs. Esta é a tese
da violência que se vive na África e na Ásia e na central de Rijo de hombre, de Roas Bastos, que
América e em seus próprios guetos, é um chamar de entende a violência como uma forma de salvação,
atenção, disfarçado de agradável sadismo, é uma embora não seja totalmente compreendida; é a solida-
tendência estética, uma exacerbação da sensibilidade riedade, o que se realiza na solidão de caminhos
calada pela cômoda e refugiada vida burguesa, uma paralelos, melhor compartilhados. É o encontro com
micagem que estabelece que ainda existem infernos no sua própria vontade que, de algum modo obscuro e
homem. por mais televisão que se veja. Com isso, anônimo, vai fazendo a história, tal como se arrasta
dinamizem dionisiacamente as apolineas formas da um abandonado vagão de trem por quilômetros de impe-
cegueira. netrável selva. Essa é a história. Assim, fala-se d~
~·. •' -~~. -' ~~
... .• ...... • • \, •#<C. ,' t'~ • • ·--:r- • • I --.~ ·~.' ''.

32
Cristóbal Jara: •Ir abrindo caminho no inexorável \lfiguel. como observou Cedomil Goic, termina nos outorgada ou recebida. A busca de metáforas que
emaranhado dos fatos, nele deixando a carne, mas infernos do cárceres americanos por ter se atrevido a representem o dilema interior do homem culriüna num
transformando-o também ... E havia muitos como ele, levantar sua mão contra o Senhor. mundo infernal e monstruoso de um banquete.
incontáveis, anônimos. Não estribava sua força na Por último, já um terceiro tipo de personagem, que imagem e emblema de uma mente corrompida pela
simplicidade de acatar uma lei que os incluía e ultra- também utiliza este tipo de violência social, mas a culpa e o poder, a mente do grande metalúrgico Severo
passava. Não sabiam nada, nem sequer talvez o que ê direção de sua verticalidade não é para cima, não é a Arcángelo, em El banquete de Severo Arcángelo, de
a esperança. Nada mais que isso: querer algo faz reação explosiva dos •de baixo•. Trata-se de narrar a Leopoldo Marechal.
esquecer todo o resto. Seguir adiante, esquecendo-se vida dos que oprimem, dos que causaram essa aliena- Assim, ao deformar o mundo, ao retorcer as pers-
de si mesmo... Um caía, outro seguia adiante, deixan- ção e lutam justamente contra Rendón Willka, Cristó
do um sulco, uma pegada, um rasto de sangue, sobre a pectivas, instalando-nos dentro de um homem roído
bal Jara. Gaspar 11om. pela histeria de sua própria responsabilidade, <'
velha crosta, mas então a feroz e elementar virgindade
Para o romance naturalista anterior, o explorador romancista· alude às secretas ações que criaram esse
ficava fecundada. •
era visto de fora como um estereótipo, ou uma •Jniverso irreconhecível e espantoso. Os efeitos da
Frente aos romancistas naturattstas, que mostravam
a opressão. os contemporâneos enfatizam a rebelião caricatura. O romance atual mostrou vários destes violêneia são percebidos no modo de significar o
!m suas múltiplas formas, buscando especialmente personagens a partir das ambíguas raizes do seu mundo.
um quadro da psique colativa que motiva e possibilita interior. Vemos o mundo da perspectiva dos que,
essa violência.
Dentro da verticalidade, não obstante, nem todos
defrontando a violência, usaram-na para manter
vigente a atual estrutura do poder.
3 - violência
são como estes, nem todos morrem sem fracássar, nem
todos se rebelam para que outros possam algum dia se
Estes personagens acreditam possível uma vida que
exprima aos demais uma salvação pessoal que não leva
horizontal
libertar. como a tarefa inesgotável de Ti Noel em El
reino de este mundo, de Carpentier. Junto a eles se
em conta seus povos. Em alguns casos, como o Senhor e individual
Presidente, simboliza-se nesse ser toda a imoralidade
encontram outros, os que se rebelaram mas por algu- do ditador, cujo reino é o do obscurantismo, e se Estes personagens agridem a outro ser humano, às
ma razão fracassam, perdem a orientação, são devora- implica que o único castigo que têm é o de suportar o vezes um amigo ou um membro de sua própria
dos por sua própria violência e não conseguem contro- inferno de seu próprio olhar no espelho ou, como o família, Ol~tras vezes a qualquer um que cruze set.
lá-la, a verticalidade se trunca, a que não se manteve caminho. A violência não tem, para eles, um claro
Alcaide de La mala hora, de García Márquez, arrastar
pura nem clara. sentido social, ainda que a sociedade alienante vibre
uma dor de dentes como signo, segundo aponta Harss,
f: o que acontece com o coronel Aureliano Buendía -:orno fundo invisível de todos os seus atos aparente-
em Cicn anõs de solcdad, de García Marquez, que de sua decomposição moral. São os que têm êxito, !10
sentido de que ao terminar o romance se~Apo?er social mente gratuitos e triviais. Na :wiclcntalidade de seu
termina esquecendo as raz.ões pelas quais está lutando, transcorrer, a evidência é a lll ... . . coisa necessária
entregando-se à violência cega, irracional, à violência se mantém intato e não tomaram consc1encia de sua
própria podridão. Eles são horizontais porqm: lutam entre si. seres qu~:;
pela violência. O general Moncada, velho amigo de
Geralmente, porém, estes personagens dev~rão ocupam um mesno nível e\Í\tcncial de desamparo e
Buendía, diz-lhe antes que o coronel o mande fuzilar:
Mas o que me preocupa não é que me fuziles, porque '!nfrentar seu fracasso. O destino castiga-os de uma de alienação: máquinas golpeadoras jogando-se contr.-.
no fim das contas, para gente como nós esta é a morte maneira muito sutil, talvez simbólica: através de seu irmãos que são tratados como inimigos. Muitos destes
natural... O que me preocupa é que de tanto odiá-los, filhos. No caso de Arte mio Cruz (em la muerte de personagens sabem que, concretamente, estão conde·
de tanto combatê-los, de tanto pensar neles, terminas- Artemio Cruz, de Carlos Fuentes), o filho em que nados a desaparecer, se não matarem. Na luta pela
tes por ser igual a eles. E não há um ideal na vida que punha todas as esperanças morre na guerra civil vida, os homens não reconhecem leis morais e presen-
mereça tanta abjeção•. Aureliano termina por lutar no espanhola, cumprindo o destino, morrendo a morte ciamos a guerra civil, nas franjas do cotidiano. A
vazio, cseu aturdido coração condenado para sempre à que o próprio Artemio Cruz devia ter realizado na complexidade viciosa da situação, a ameaça constante
incerteza•, abandonado por sua comunhão imaginati- que cerca o homem americano, fica estabelecida com o
Revolução Mexicana, em vez de enriquecer às custas
va com o reino dos mortos. Nesta gigantesca obra de seguinte reciocínio: viver sigQifica, para mim, ter que
de seu povo; no caso de Pedro Pára mo (Pedro Páramo,
García Márquez,a morte é considerada como um ato matar. Matar significa que não há vida para o outro,
imaginativo, quase como um salto fictício a outro de Juan Rulfo), o filho ( Miguel Pára mo) é assassinado
pela inexorável ml!.o da violência cega, a mesma que o para algum outro. Mas eu também sou o outro: para
mundo paralelo em que ludo já está escrito. Quem mim, tampouco, haverá vida, já que ao ameaçar.
degrada a morte até transformá-la cm algo mecânico, pai usou contra a população, uma lição que lhe mostra
que seu caudilhismo é apenas temporal e não eterno; escuto por meus lábios a sentença que o outro profere.
repettvel, perde também a possibilidade de derrotá-la
Profetizo a minha própria extinção. Ao matar, sobre-
mediante a fantasia intuitiva . • só estamos lutando no caso de Maker Thompson (EI Papa verde, de
vivo; mas também morro (agora), quando outro me
pelo poder•, di:r o coronel; Ós ideais desapareceram. Asturias), o castigo chega quando sua filha tem uma
Um fenômeno similar acontece com Victor Hugnes, mate (no futuro). Atrás do •Sempre me matam.
criança com o inimigo que denunciou sua exploração
revolucionário transformando em ditador sangüinário, ~empre me matam•. de Guillén, está também o
nas plantações de banana; no caso de Edmundo
que tanto ama ama a violência que não pode libertar- •Sempre morro. sempre morro•. Se mato e se não
Budino(Gracias por el fuego, de Benedetti), o suicídio
6e dela. em El siglo de las luces. destino prefigurado já de seu filho, encurralado pela hipocrisia e a imoralida- mato.
nos primeiros romances da revolução mexicana. O de do país que seu pai e o jornal de seu pai fizeram; no
caos tritura as melhores intenções, o homem se descon- caso de Federico Robles (La región más transparente.
trola e o ódio se apodera de suas mãos, que se dé Carlos Fuentes). a morte estúpida e fútil de seu
transformam em entes autônomos, algo infinitamente filho natural. Manuel. que representava o futuro
distante que age po r sua própria conta, mas que são de
luminoso d o México.
minha rc!>ponsabilidade, o ser moral que me represen- Neste parricídio ao contrário. onde os filhos pagam
ta no mundo. as culpas de seus pais. onde o destino alimenta os
A ira que motiva Hugues, e que o destroça, exRloradores com os cadáveres de seus próprios
encontra sua co ntrapartida em Luís. no conto descendentes. encontramos um mito americano de
Reunión. de Julio Cortázar: · E assim no final ficarei vastas projeções alegóricas. O senso irônico na Améri-
adormecido, mas antes conseguirei perguntar-me ... se ca permites criar romances baseados no desenvolvi-
seremos capazes de alcançar a reconciliação com tudo mento da consciência dos exploradores, que devem
o que ficou vivo frente a nós. Teríamos que ser como enfrentar a morte que eles mesmos deram a seus
Luís, não mais segui-lo, mas sim ser como ele, deixar filhos. A esterilidade da exploração fica simbolizada
atrás inapelavelmente o ódio e a vingança, olhar o
no desaparecimento dos filhos, a derrubada do impé-
inimigo como Luís o olha, com uma implacável rio pessoal que cada um pensava construir. Só Dom
magnanimidade que tantas vezes suscitou em minha Bruno, em Todas las sangres, rompe com esta visão
memória ... , um juiz que começa por ser o acusado e a trágica ao regenerar-se através de seu filho, sofrendo
testemunha e que não julga, que simplesmente separa por ele a feroz fatalidade que o destruirá.
as terras das águas para que no fim, alguma vez, nasça Nestes personagens podemos observar uma lei da
uma pátria de homens num amanhecer trêmulo, nas violência que vigora não só para eles mas também para
margens de um tempo mais limpo•. quase todos os que aparecem no romance atual: a
O próprio Cortázar. em Los premios, nos dá um violência é um bumerangue, termina por destruir e às
exemplo de verticalidade fracassada: um grupo de vezes por corromper o que a utiliza, embora tenha
passageiros enfrenta uma proibição determinada. resultado inevitável a entrega a essas forças. Seja
Alguns reagem rebelando-se. outros o aceitam porque ao assassinarmos, legalizamos o próprio assas-
tranquilamente . Embora acredite ver no barco uma sinato no futuro. seja porque o personagem termina
metáfora da América. não só está em jogo o uso da apodrecendo no rito mecânico de golpes e perigo, seja
'iolência, mas o problema daqueles que se atrevem a porque o destino, por último, destrói imperceptível
questionar a realidade. suas categorias aparentemente mente a personalidade. Ou porque o homem não
imutáveis. quem se aventurará nos mistérios do uni- consegue libertar-se de sua violência e cai nela como
'erso. O absurdo resultado desta luta: um dos passa- num poço pressentido e quase sonhado, caindo no
geiros é morto a tiros, e sua morte resulta inútil e suicídio, ou subindo para a loucura e o desespero. O
insignificante. embora ela pareça ter conquistado uma romance atual não é só mostra das açõcs dos homens,
passageira dignidade. suas lutas c disputas. rebeliões c derrotas. mas sim a
Algo parecido acontece em El_ senõr: Presidenste, análise inlrospecti,·a da oblíqua, lentamente oblíqua,
onde a rebelião de Cara de Angel não consegue influência que estas ações deixam na alma. como dia a
diminuir as trevas que ensombreceram o resto do livro. dia vão se gravando no espelho maleável da pers.9nali-
A ditadura americana, para Asturias c para outros dadc certos sinais. certas chaves que permitem rastear
autores. frustra todo assomo de bondade, e o Arcanjo a pegada de alguma ferida oculta, de uma morte

33
O mundo é como cárcere ou labirinto ou selva força anônima que o rompe desde a vaguidão de suas meta, o último degrau, o final de uma evolução. Não é
urbana: Vargas Llosa. Borges. Garcia Márquez, próprias entranhas, que o derrota desde a algo que já está aqui, em nós. É coisa que sentimõs.
Onetti, Leõeros, Droguett, Manuel Rojas, alguns per- incompreensível situação total em que se acha. Muitas· basta ter o valor de estender a mão na escuridão•.
sonagens de Carpentier, Uslar Pietri. tramas argumentais nào acontecem na própria cidade, (Cortázar).
Presos, como o ar nos pulmões, que se enche e mas são o resultado e a aplicação desta cosmovisão Mas a violência não é apenas um movimento
esvazia, acreditando-se numa situação eterna, inalte- urbana a outras geografias. ~a visão predominante na colérico, de arrebatada expansão pessoal. Há também
rável, eles não meditam acerca de sua violência, América, neste momento, se devemos acreditar na interessantes motivos humanos, psicológicos ou até
sentindo como o ódio os fortalece, como a ira se unifica estatística dos romances escritos sobre estes temas. mesmo estéticos que conseguem semi-salvar o agente.
como elã vital que os conserva vivos. Além do mais, a Outras histórias se desenvolvem nas proprias cida- Ainda que seja cega, ainda que esteja mal dirigida, por
Iragmentação formal da novela americana é um corre- des, onde a violência, cozida na boca do cimento, mais que nos feche uma porta - como uma pfisào que
lativo narrativo do abrupto, rachado, quase epilético soprando por ela, penetram pelos milhões de rancores se estreita em torno do prisioneiro - a violência é,
domínio que a violência exerce nos corpos dos homens. subterrâneos que procuram aflorar em alguma ferida. também, mais ou menos, e desde o ponto de vista do
A violência que se apodera dos seres, como nas Há novelas em que a vida, aparentemente, não está em personagem (onde, não esqueçamos, estamos instala-
~Lanças Coloradas,. de Uslar Pietri, esta fúria cega e perigo, mas a morte ali, está dentro de cada ser dos), uma saída dessa prisão, uma tentativa de recupe-
desesperada, descarregando-se imprevisivelmente, que humjlllo, pronta para explodir, esbofeteando arbitra- ração de sua humanidade perdida.
transforma os homens em dominados, em agentes ou riamente ao outro, sem que o próprio protagonista Porque ser violento significa, antes de tudo, ser eu
peões de uma bárbara labareda universal, quase como consiga explicar sua origem ou dimensão. E assim se mesmo; sentir por um instante ilusório, que se tem o
um esquizofrênico deus hegeliano encarnando-se nos desenha o irrepetível destino de um ser qualquer: não poder, que essa vibração enérgica está determinando a
sujeitos, nos conceitos, esta violência solapada, escon- st:,julga esses homens, se revela a sua peculiar circuns- gigantesca estrutura carcerária e que esse ato indivi-
dida, disfarçada, sem aparente origem, pressionando tância, o bloqueio dos fatos que rodeiam o persona- dual sustenta o universo. Na nudez das ações se
mascarada de dentro e de fora, sem um rosto exato e gem e o absorvem, convertidos para ele em uma rechaça o híbrido, o confuso, o indeciso, o eu percebe
preciso contra ,. qual cuspir, este estado gelatinoso a si próprio como prolongamento da sua identidade,
dissolvente neblina de tempo desfeito. (La Casa Verde,
onde não existl' diferença entre causa e efeito, este La Vida Breve, los hombres a cabaUo, ,Pedro Páramo, acariciando essas coisas únicas que se conhecem como
mundo que joga O!> homens em uma luta que não El Tonel, El Acaso, Los AJbaiUies, La Hojarasca, Pais imediatas, indubitavelmente suas, isso que confere um
entendem, e que tampouco desejam, esta realidade é o portátil, etc ...) Esmagados por sua situação, os per- momentâneo propósito à existência, uma direção a
produto da cidade americana, 'que começa a crescer sonagens tratam de destruir aos seres que ama, meus movimentos; minha violência é um terrível cisco
maciçamente junto com as a tu ais gerações de escrito- como se com isso estivessem castigando-se pelo fa- dentro dos olhos. uma coceira insuportavelmente
res. e que os defronta com os problemas críticos da to de existir, esbofeteando-se por deixar-se apanhar minha na pele debaixo dela, isso que sabe dizer: eu,
tradição ocidental. Esta visão mostra o homem como no tremor da extstêncta, sem poder achár uma soluÇão algo que comprova que vivo, o que me separa de uma
uma vítima, enredado em sua própria falta de herois- ou uma saída. Isto ajuda a entender queda da morte segura. Sou minha violência, enquanto puder
mo, confuso. incapaz de controlar a sua realidade ou relação interpessoal na novela hispano-americana seguir sendo não morrerei. A solidão que a violência
sequer os seus pensamentos, alienado por alguma atual, que obedece a motivos sempre ocultos, engendra justifica mais violência: se o outro não existe,
inexpressivos, como uma doença que só existisse em aniquilado por uma vontade que não o leva em conta,
seus próprios sintomas. O mundo apresentado, não haverá castigo, tampouco. Aí está, também, a
reconhecível mas estranho, aparece como um enigma importância essencial do azar na novela hispano-ame-
para o leitor, que deve decifrar os motivos desta luta ricana atual: o personagem vive, como Fushia ou
entre os personagens, sem jamais conseguir uma expli- outros personagens de A Casa Verde, em função de
cação verificável. O rosto da violência surge por trás sua boa ou má sorte, a contingência de seu ser.
das palavras, mas sempre há alguma coisa que nos Para o personagem, então, a violência não é só o
escapa. Vemos a Maga com Oliveira, em Rayuela, de que cega e aliena: é também a forma que tem o homtm
Cortázar; os pensionistas de Rosaura a las diez, de controlado para encontrar alguma dignidade, algum
Denevi; os baixos fundos da alma, em Uma luz mui resíduo de humanidade e resolução em sua própria
lejana., do jovem ar~entino Moyano; os burocratas vontade. A agressão é o instrumento de umasemi-sal-
vingativos de Benedetti em cMontevideanos•; as vidas da: não uma que mude toda a estrutura da realidade,
frustradas dos personagens de Onetti, Martinez mas uma que admire no homem toda a sua ferocidade,
Moreno, Dalmiro Sáen7., Carlos Proguetti; o rompi- a desatada barbárie de sua vontade insubmissa. Nessa
mento do lar em La Casa Verde e La ciudad y los barbárie, além disso, a América abraça urna essência
perros; a simbólica morte e disfarce da mulher em única que a civilização desfez, essa selvageria original,
Grande sertio: Veredas, de Guimarães Rosa, o subterrânea, que alimenta o homem em seus momen-
incesto em Sábato: a autodestruição dos personàgens tos de desespero. Em geral, nos últimos anos, se nota
de José Donoso e tantos outros novelistas chilenos; a um retorno ao bárbaro (é outra face do retorno às
corrosão da família, na novela rioplatense. origens) em Carpentier, Arguedas, Astúrias,
Em um mundo onde tudo é imposstvelmente difícil Droguett, Caballero Calderón. Ao aceitar a violência,
e entendiado, tudo é medíocre e se autolimita, cada ainda que seja cega, os personagens rechaçam os
homem se sente culpável sem saber porque, e a métodos que não sejam americanos para resolver seus
violência vai amarrando e desamarrando os homens, problemas.
em uma macabra dança da destruição. Não sabem que Alguns se entregam à violência como um modo de
estão dançando: buscam uma saída sexual; a agressão serem eles mesmos, como um modo de diferenciar-se
pequena, ahc•~rda, e quando o personagem já nãQ dos demais, de serem melhores que a massa medío-
suporta ferir os demais, sua energia se dirigia contra si cre, para não serem absorvidos pelos que não se
mesmo, como logo veremos. rebelam, os que são escravos tranquilos. Esta é a
caract~rística do Jaguar, em Batismo de Fogo. e a
Estes seres que pedem vingança por sua condição execução do traidor: já que o mundo é uma selva, e
humana, sem compreender que contribuem ainda os homens animais. o único que resta é ser jaguar
mais para o caos e a dor, sem sequer se colocar a entre os cachorros. uma besta que scbrevive enquanto
possível origem da vi9lência que sofrem e que devo!- morde, e que não aceita lições de moral dos que
vem, talvez pressintam que enquanto não questionem criaram as condições desum.anas de seu mundo. Ou
a violência, enquanto joguem de acordo com as regras em Eloy. de Carlos Drogue ll quando o bandoleiro
da horizontalidade, enquanto destruam o imediato e pensa:
não indaguem sobre as causas, lhe será permitido · Por fim vão querer me aprisionar. e apanhar-me
sobreviver. Além do mais a violência é uma antiga ~i~~; ~o~~~~um~~~: ~~c:i~, p~g~sss~~i:iv~~p~~~o q~~~
camarada: aconteceu um acomodamento letárgico. O assassinado, baleado. 0 sangue tein uma certa digni-
mund~ cotidiano, por. ~meaçador que seja, é um~ dade, por isso é terrível, qualquer um pode conseguir
garantta de certa estabthdade. Quem s~be o que esta uma boa morte, é preciso trabalhá-la, fazê-la, escul-
reservado ao homem que se aventure alem das conhe- pi-la com balas, pelo menos com uma faca, disse,
cidas fronteiras da luta individual? Sempre fomos uma morte assim vale a pena, é um trabalho limpo e
assim, pensam os personagens; sem esta violência, concreto. é como fazer um par de lindas botas para o
seríamos outros. A tendência ao equilíbrio, que freou o Tono com o couro sangrento de uma ovelha, não é
homem •durante séculos, mas que lhe permite uma qualquer um que é capaz de morrer lutando, a maio-
certa estabilidade é parte de um pacto que todo o ria se mete na cama quando os pés se esfriam, se
homem faz com a realidade que quer destruí-lo. Há deitam de costas e esperam a morte despenteados.
também personagens que não aceitam esta eternidade para que ela venha penteá-los. querendo ser valentes
e buscam 0 original, a fonte pura, geralmente natural, deitados, é bom matar, pensou, é bom morrer assim
que poderá devolver-lhes seu eu, um sistema de valores não me pegarão vivo ... •
, . Para Eloy, a violência é uma forma de fatal
que saberá mostrar-lhes é!'Satda desta ceguetra em que rebeldia, uma busca confusa de ternura e contato
se ach'am. Isto explica, em parte, porque tantos nove- com os demais, é a decisão de ser ele mesmo e aceitar
listas, Mallea, Carpentier, Cortázar, Fuentes, os acidentes necessários do destino, a decisão de nãe
Arturias, Arguedas voltam-se para a origem, buscam ser ultrajado pelos ricos ou pela sociedade. Sente· que
sua autenticidade em alguma raiz perdida, mas que ele representa seu povo, que expressa a violência e a
sempre estava prese11te: •Não é algo por vir, uma morte e o amor de seu povo.

34
.os áesejos, os ávidos desejos, os desejos pâltdos e
Eloy rechaça a forma despersonalizada de matança solução de seus problemas. Está . imitando, numa
o medo, os medos rangem nas dobradiças da~ portas,
rara encontrar seu ser individual nela. ~ igual a forma pré-lógica, emocional. instintiva, essa outra
barbárie de Bobi. Suas patas de cachorro em P atas de violência que talvez possa liberá-lo. O horizontal é, nos gonzos ressecados das janelas; e há um odor seu,
Perro. do mesmo Droguett, constituem seu lado leste modo. um jogo dentro do qual agarraremos o inconfundível, cheio, suarento, sabor de sal, nos can-
melhor, o lado selvagem, animal, explosivo, mas vertical. É uma primeira aproximação à outra violên- tos dos confessipnários, nas capelas quase escuras, na
oi:t batismal. nas pias de água benta, no entardecer,
essencialmente americ~no, desmassificado. Por isso cia. é uma maneira de preparar-se, de treinar, como
muitos desses personagens encontram n a natureza um disse Fanon cm Los condena dos d(' la ti~rra. nas ruas a qualquer hora do dia, na pausa do meio
Em geral, no entanto, apesar da dignificação, da dia, por todo o povo, em tod as as horas, um cheiro de
aliado: sua violência se funde com o galope dos rios e
dos vulcões. possibilidade de comunicar-se com outros por meio sal, um cheiro de umidade, uma invisível p resença
Diferenciar-se. não ser absorvido pela mediocrida- da agressão. ambígua e desenfreada, o narrador medrosa, ·angustiada, que nunca salta, que nunca
de. essa é a justificativa que apresenta Artemio Cruz latino-americano mostra seus personagens presos mata, que oprime a garganta do forasteiro e seja
para exphcar sua violência contra o povo. Fala com num pes~dclo de medo e cansaço. O homem termina talvez prazer da vizinhança como prazer de penitên-
sua mulher e sua filha: por ser o acidental intermediário entre a violência que cia•.
Imaginem vocês sem meu mergulho. fariséias. flutua no ar e o objeto contra o qual essa violência se Neste livro, e em outros de Yanez, mostra-se o
imaginem-se perdidas nessa multidão de pés incha- desencadeia. passa a ser um apêndice desses atos - drama de uma consciência coletiva cuja violência
dos. esperando eternamente um caminhão em todas que quase não pode qualificar de seus - como se estala interiormente, onde a energia se gasta em
as esquinas da cidade. imaginem-se perdidas nessa existissem além de sua vontade, como se ele sozinho reprimir a sexualidade e a liberdade, onde a violência
multidão de pés inchados, imaginem-se como empre- fosse o executor de uma fatalidade jâ pressentida em é uma lenta hemorragia interior . A Revolução Mexi~
gadas de uma loja, de um escritório. batendo à cada osso. A violência, deus desse mundo labiríntico, cana, ao final, é o resultado inesperado e inevitável
máquina, embrulhando pacotes, imaginem-se econ- atravessa todas às ações, unindo-as como um denomi-
nomizando para. comprar um carro a prestação, acen- nador comum. Isso culmina nas obras de Onetti,
dendo velas em homenagem à Virgem para manter a especialmente em El astillero:
ilusão. pagando mensalidades de um teM"eno, suspi- •(L:trsen) esteve segurando como sementes os atos
rando por uma geladeira, imaginem-se ... tendo ·.que que agora podia prever e que estava condenado a
gritar que como México não há outro para sentirem- cumprir. Como se fosse certo que todo ato humano
se \Í\·as. imaginem-se obrigadas a sentirem-se orgu- nasce antes de ser concebido. pré-existe a seu encon-
lhosas de seus sarapes, ( +) de Cantinflas e dos tro com um executor variável. Sabia que era neces-
cantores de mariachi ••• •; e acrescenta depois: .. Imagi- sário a inevitável fazer. Mas não se importava em
nem-se num mundo no qual eu fosse virtuoso, no descobrir por que. E sabia, além disso, que era
qual eu fosse humilde ... Me expondo ao fuzilamento igualmente perigoso fazê-lo ou negar-se. Porque, se
pelos de cima ou pelos de baixo. Isso é ser homem, ele se negava, depois de haver vislumbrado o ato,
como eu fui. Não como vocês queriam, homem pela este. privado do espaço e da rida que exigia, ia
metade, enjoadinho, homem de gritos desafinados, crescer em seu interior, exasperado e monstruoso, até
homem de bordéis e bares, macho de cartão postal... • destruí-lo. E, se aceitava cumpri-lo - e não só estava
Rebeldes existênciais. mais que rebeldes sociais, aceitando como já h avia começa4o a cumpri-lo- o ato
eS5es personagens horizontais sabem que. pelo menos se alimentaria vorazmente de suas últimas forças•.
em seu ódio e sua violência, está a coragem, está a De tal modo a violência chega a ser a única coisa
glória de lutar, e no fundo se rebelam contra o fato real. os atos humanos um simples empréstimo a uma
mesmo de existir. Se recusam a accitar as coisas como realidade já fatalmente executada e praticada, que
estão, se recusam a dormir. Alimentam sua raiva Galvés morre, efetivamente, mas não pela mão de
como forma de aclarar a consciência. Serão destruí- Larsen, e sim pela casual e desconhecida mão do
dos. - destino. E Larsen mesmo, esgotado pela violência
Mas existe algo além da busca do próprio eu : há cometida por outro, como se o assassínio se nutrisse
também um desejo do outro no uso da violência, um de suas próprias fórças, também morre: •ele, alguém,
desejo talvez irônico e paradoxal, mas cfctivo. Irmãos feito um monte no a lto da noite gelada, procurando
na auto-destruição, debatedores agarrados à mesma não ser, converter sua solidão em ausência.
ponte-morte, os violentos estão, ao menos. falando-se A violência que mata os homens termina por
com as mesmas palavras conseguindo tocar essa carne convertê-los cm ausentes em vida, em fantasmas de si
longínqua.mas não alheia. A violência é algo assim mesmo. 'h o sentido dos perso'nagens de La Hl\Jaras-
como a outra face da solidão. Num mundo cm que os ca e de Cem anos de solidã o, de Garcia Márquez; da
seres estão fechados em si próprios, a violência é um almas penadas de Pedro Páramo, Fushia, Lituma e
dos .meios de comunic~ção, uma linguagem que fala Bonüácia de A Casa Verde; da dupla jovem-e-velha de
sem subterfúgios, sem esconder intenções, esclarecen- Aura•, de Carlos Fuentes; dos seres contemplativos e
do as co1sas ao agir sobre o mundo. Resolvendo violentos de Borges, de alguns personagens de Cortá-
dúvidas com dolorosos atos inequívocos, é um víncu- -zar. O problema mesmo da ilusão, do engano que é a
lo, algo concreto, identificável, meu, que faz entre vida, leva, entre outros motivos, ao prodomínio da
dois seres humanos. que orienta momentaneamente fantasia na novela latino-americana atual.
como um sol dentro de uma nuvem. Depois haverá
tempo (talvez não haja) para interpretar-se esse gesto
cego. que auto-gera no vazio seu próprio sentido, mas
4- A violência
que pelo menos leva impressões digitais marcadas em
sua face invish·eJ.
não - espacial
E~~c rito que une os cre{ltes permite o reconheci-
mento. tácito ou explícito.. de que habitamos a mes-
e interior
ma realidade, eu e t-.:teu inimigo. Me permite acredi- A detcrmmação anula desde logo o pcr:.onagem,
tar em sua existência por um segundo. um contato que termina refugiando-se nas dobras de ~ua interio-
que é acatado por ambos, ainda quando não se ridade. tratando de afastar toda a açào mediante uma
dissohe no instante seguinte. Cria um mundo objeti- pretendida indiferença. Não obstante, a violência está
vo, dentro do qual o homem pode tomar decisões. aí, não-c..,padal, interior. mas inegável. Não só por-
O sexo também se converte em campo de batalha. q~o~e. faça-se o que se fizer, se se a leva em conta, tal
um chamado de auxilio que procura extenuar-se no como o silêncio condiciona o ruído (o caso de Luis
corpo da outra pess'ba. Em Sobre héroes y tumbas, de Dascal. em • A situação•; de Lisandro Otero, ou a dos
Sábato. Alcjandra. símbolo da Argentina (•tudo que passageiros covardes de .Os prêmios,), a violência
bana de caótico e de encontrado. de endemoninhado finalmente irromperá em suas vidas, como uma ex-
e desgarrado. de equívoco e de opaCO•·), se debate plosão que desnude sua falta de compromisso.
entre os bráços de Martin, tentantdo se fazer om·ir Vicente Vera, em · Os donos da terra•, acre<lttou
•em meio ao tumulto e a consternação da carne . durante toda a narração que a violência é desneces-
Martin •inn!stia contra o corpo de Alejandra, tratava sária e que o diálogo racional é o único dado essencial
de penetrar nela até o fundo do doloroso enigma: ... para que os homens se entendam. Ao final da ohra,
ca\·ando, mordendo. penetrando freneticamente e tra- presencia o fuzilamento maciço de boiadeiros, conse-
tando de perceber, cada vez mais baixos, os débeis quência direta de sua propria inércia.
rumores da alma secreta e escondida daquele ser tão Outros personagens, ensimesmados, roem-se em
sangrentamente próximo e tão desconsoladoramente suas próprias entranhas. A frustação e o medo encon-
longínquo. E enquanto Martít1 gavava, Alejandra lu- tram em AI filo dei agua, de Yane, um exemplo
ta\a de sua própria ilha. gritando palavras em código notável: mostra-se um po,·o mexiCano antes da tem-
que. para ele. para Martin, eram ininteligíveis e, para pestade que provocará a Revolução. A severidade, a
ela. Alejandra. inúteis. E. para ambos, desespera- falta de comunicação, as secas, agonizantes vidas
dos .. ·E logo. como num combate que deixa o encurraladas pela religião anti-sexual criam um clima
campo cheio de cadáveres, e que não serviu para fantasmagórico. Desejo e medo se contrapõem.
nada, ambos ficaram silenciosos•. · Como os afetos, como os desejos, como os instin-
Atrás dos dentes que mordem está escondido o tos, o medo, os medos assomam, agitam suas mãos
homem. O amor que toma a forma da guerra pode invisíveis, como de cadáveres, em janelas e portas
sintomatizar esse ser. fechadas, nos olhos das mulheres enlutadas e em seus
Há outras razões: talvez o personagem compreen- passos apressados pelas ruas e em suas bocas contraí-
da de maneira oblíqua que, ao desencadear suas das, na gravidade dos homens e no silêncio dos
energias, está apontando em direção à verdadeira meninos.

35
desse estado de consciência, do naufrágio do humano barroquismo, o retorcimento torrencial de formas
nesse lugar mortal. que já nos referimos várias vezes.
O climax é Ramón Budiiio, em Gracias por el Uma série de inovações técnicas e oelicoon.mt:ntll>$
fuego,de Beneditti. Corroído pela sua própria culpa, tingÜísticos foram adotados e desenvolvidos por
indeciso, covarde, sua violência interior está sempre a escritores contemporâneos; chegou-se até à
ponto de explodir contra o pai, Edmundo, a quem bação destas formas, usando-as como um
deseja matar para libertar-se pessoalmente e saJVar berantemente americano de ver a realidade.
seu país, ainda que seja simbólicametlte, da decom- Vargas Llosa, Fernando del Paso (em José
posição moral. Era o único ato <file salvaria sua Fuentes (em Cambio de piei) Cabrera Infante
dignidade ferida, sua honra. Mas termina suicidan- Três tristes tigre•), Marechal (em Adan _
do-se, isto é, destrói a si mesmo em vez de destruir o nosayres) e muitos mais se dedicaram a destruir
mundo exterior, em vez de resolver seu problema. esquemas tradicionais do tempo, espaço, e da
«Seria uma solução não ver nunca mais a cara do gem, fragmentando a personalidade, ex]pet"lmtentart<1o
Velho, sujar a imagem de minha retina mediante o com modos narrativos peculiares e ângulos
processo de converter em nada minha retina, não ver procurando_ uma nova linguagem para
mais a própria cara no espelho, não recordar minha realidade. E a violência contra as formas ""'·"u'"..'"'"'
cadeia de derrotas mediante o processo de converter das, os modos de ver tradicionais, a grande
em nada minha memória, não me censurar por acei- ção das regras do jogo social literârio.
tai o dinheiro do Velho ... não segurar o vômito cada A novela naturalista anterior se fixava no
vez que vejo os mendigos votar pelos milionários, não
me imobilizar na insônia fulminado pela consciência teúdo, mais do que a forma. Ou melhor, encon
repentina de que minhas decisões estão para sempre uma forma que correspondia ao {actualmente
afastadas ... não chorar de noite nem sentir-me um vável na realidade. Deixava que as leis
criassem as formas narrativas. Dedicava-se a ..,,,.,tt.,.r.
imbecil, não, nãq, não, cada vez mais não, talvez será lhe a um mundo burguês a sujeira sobre a qual
uma solução ou pelo menos um modo de negar esta construído seu plácido bem-estar, a crua
pobre sujeira que sou este sufocante fracasso em que
sexual e social que não queriam admitir. Violenta
terminei. .. • se o leitor ao documentar-lhe uma realidade que
A única esperança que telU, enquanto se converte ignorava ou fingia ignorar, levando-o à ação -
uma pura negação, enquanto salta pela janela, é em mente legislativa - para terminar com este es
seu filho Gustavo: «Se ele pudesse rompér com o coisas. Porém, nem mudou essencialmente o
passado, se ele pudesse não ser derrotado, se ele por esta revelação das musas e nem mudou a
pudesse apertar o gatilho, todos os gatilhos... » ra do mundo americano. A literatura podia chamar
O pai é o representante da violência que explorou atenção, além de explorar os espaços até entãQ ocul·
todos os demais, que se dirigiu aos outros e não teve tos da América e contribuir para debelar
que se auto-destruir. Matá-lo significa matar a cor- conciência, mas não era um órgão prático, não podia
rupção e a mentira, a própria debilidade, a brandura por si só mudar radicalmente a sociedade.
contemporânea, significa matar esse Edmundo Budi- Frente a um leitor que não se comoveria por
no que todos carregamos dentro, terminar com esse muitas cenas desumanas que presenciou, diante de
estado de afastamento da cidade americat~a: Nós uma novela cujo raio de ação social estava cada
passatnos a vida sonhando com desejos impossíveis, mais limitado, os autores contemporâneos se
recordando cicatrizes, construindo artificial e menti- ram a espantàr de outra maneira, com outro tipo de
rasamente o que poderíamos ter sido; constantemente violência; atacou-se a própria estrutura do Universo
nos estamos segurando, contendo, enganando... » na qual o leitor descansava seu olhar, tentando rom-
. ~ uma alegoria sobre a condição do homem amé- per sua cosmovisão para desconcertá-lo, confundi-lo e
ricano·atual (como o é também a novela "do paraguaio angustiá-lo. Destroem-se as regras com que o leitor
Carlos Villagra, (MancueUo y la perdiz): a necessida vive.
de de se sacu'dir o passado ê acabar co'ltl a mentira,
A agressividade diante do leitor chega a ser tal
sua procura da violência como único meio de recupe- que, no conto Continuidad de los parques,
rar seu ser original; e sua incapacidade para usar essa faz assassinar um leitor, dizendo que é um
violêbcia, que se transforma progressivamente em por sua falta de compromisso com a realidade, que
arma contra si mesmo, dissolvendo sua personalidade esse homem, comodamente sentado em sua poltrona,
no vício da mediocridade vacilante ou suicidando-se é «um leitor-fêmea... A mesma tese explica a confusa
como último recurso covarde, consciente de sua frus- e torcida configuração de Rayuela ou da enredada
tação, mas incapaz de sair dela. sintaxe de Grande sertão: veredas.
O suicídio está aparecendo cada vez mais na
novela hispano-americana. Miguel Vera, em Hijodel A novela, o ato estético, é um protesto contra
hombre se distrói porque não soube levar adiante sua mundo que trata de negar essa violência, esperando
violencia; Alexandra e seu pai, em Sobre beroes talvez que, no bombardeio de bofetadas lingl!isticas,
tumbas, Oliveira, em uma das versões de Rayuela, alguém despertará para fazer perguntas fundamen-
onde morte e loucura se sobrepõem como solução tais, para questionar a própria realidade e converter-
para as contradições vitais; e o médico na La Boja- se num ser humano completo.
rasca». A própria Colômbia, nesta última obra, em Digamos, por fim, como conclusão que, num
La mala hora e Ninguém escreve ao coronel, mundo engendrado pela violência, em que cada um
encontra-se numa ampla agonia. Macondo, nos Cem ameaça e é ameaçado, parece impossível que os per-
anos de solid,ão, uma metáfora para toda a América, sonagens a evitem. O homem sobrevive, mas à custa
foi fundada como um lugar sem cemitério por José de mais violência, que, finalmente, termina por des-
Arcádia Buendia, que vinha fugindo do único morto, truí-lo. A visão geral que se tem, a partir de uma
o primeiro que não o deixava em p.az. centena de novelas dos últimos 25 anos, é que o
Gárcia Márquez, em vez de lançar seus persona- homem está imerso numa situação que não controla,
gens à procura de uma origem que poderia salvá-los, mas que sua violência, ao encarcerá-lo, também
ironiza esta situação, já que a própria origem é aponta a forma de solucionar seus problemas.
violenta, o paraíso terrestre aparece como consequên-
cia de sua morte e não como algo anterior a ela. É Não é a tarefa principal da Literatura assinalar os
impossível, portanto, escapar à violência, e Macondo caminhos definitivos mediante os quais o homem
se transformará lentamente num vasto cemitério, on- hispano-americano se livrará deste circulo vicioso. Os
de os mortos pesam muito mais que os vivos, até que, movimentos sociais de nossos povos saberão respon-
ao final, um vendaval, feito mais de fantasmas do que der a esta pergunta. Ou não saberão. O que deve
de vento, mais de vozes do que de ar, varrerá o povo fazer toda a ~ande literatura, e o que tem feito a
da face da terra. Entre a fundação mitológica e a nossa, é instalar-se dentro desse ser que sofre a
morte do último Buendia, presenciamos à destruição violência e que a expulsa de si, para poder transmitir
do homem americano, como o homem que, ameaçado às futuras gerações o que significava viver e morrer
pela morte, só percebe no último momento que a mão nesta temporaHdade americana, em nossa península
que o matará é a sua, a própria, e o que ele achava contra a morte, dissolvendo-se para o futuro, que
um assassínio é, na verdade, \.lm suicídio, e que o espera ansioso nossa mensagem e palavras de ordem.
único inimigo verdadeiro era o rosto que havia visto O personagem latino-americano está condenado à
e esquecido - num espelho há muito tempo. violência mas ao mesmo tempo importa essa entrega
pessoal, essa visão vinda de dentro, como se, ao
compreender um pouco essa decisão, esse destino
5- A violência individual. estivesse clarificando o próprio problema,
superando a violência parcialmente ao desentranhar o
narrativa terror vivo de um ser latino-americano, cuja ficção é
de carne e osso.
Por último, os narradores mesmos esculprram no
grande ato catártico da literatura uma forma de Tradução de VUma Grycinsld e
violência americana: Daí, em parte. nosso evidente Antônio Tadeu Afonso

36
Na saída do estádio, Batata de:. via do bot.eco e conu- Parque São Jorge pe1 lU da cama, bate com o cabo da Lubv de oxigênio, uma decalco do time na parede e
nua decidido a morrer. Chega de criticar o técnico, de vassoura no estádio, com as unhas agride os jogadores. ~ncostados na cabeceira a Elisa, o Zé Galinha, o
esperar pelo domingo, de acreditar no batuqueiro Zé, Os papéis rasgados deslizam da parede e caem. Caem Alemão Francês. São tantos amigos visttando Batata,
Galinha. Corfntians, meu amor, pra mim chega. sobré o corpo de Batata enrolado na bandeira. (Ele que a direção do Hospital São Luís pediu pulictamento
Compra um litro di! veneno, soda cáustica mistura- sente dor e frio). É madrugada. O pai de Batata que para ordenar a entrada. (Ali, um torcedor gritava
da com água cândida e entra no ônibus lotado de não dorme quando o time perde, ouve o barulho e o amendoim torradinho!)
torcedores. Vê os amigos com as bandeiras enroladas gemido do filho.
debaixo do braço, oganzá. acuíca, o tamborim deixados Eles traziam amendoim torrado, camiseta do -~· ul-
Corre ao quarto, e no quarto, o estádio rasgado pelo tians, revistinha de sacanagcm. Um deles trouxe o
de lado c toma um gole de veneno. meio, Wadih He!u sem cabeça, Rivelino caído, a ingresso para o jogo de domingo c meteu embaLxo do
Quero que tudo termine hoje, a vida pra mim bandeira sobre a cama, aquele monte de papel espa- travesseiro. Batata reclama ao médico. Assim é demais
terminou por aqui mesmo. Sei que não vou ter salva- lhado no chão c em cima do álbum das vitórias, a doutor, não estou em condições, suspenda as visitas.
ção. Não quero que ninguém tente me salvar. Passei garrafa de veneno vazia. Batata está encolhido no Era sábado.
por todas as privações e minha dor não tem cura. jardim do pátio, sobre o distintivo do Coríntians, a No domingo, as visitas foram proibidas. O quarto de
Cansei de apanhar do mundo, das Jogadas erradas do âncora feita de bambu. Batata está vazio quando ao meio-dia o enfermeiro
ataque e de gritar-pelo gol que não ~em. Minha paixão O táxi vem rápido e no caminho do Pronto Socorro entra assobiando para se1vir o almoço. Mas no quarto
é ver a bola do Cor(ntians sacudir as redes; minha passa nos sinais vermelhos, buzinando. O pai de não há ninguém, nem mesmo o doente. Brincando de
desgraça é quando alguém olha o jogo e me diz: foi Batata manda o motorista correr mais é preciso salvar esconder, é Batata? Onde você está? Já sei, escondido
pelo lado de fora, Batata. este corintiano que carrega no colo. Foram em cinco neste guarda-roupa••• não, mas•.. embaixo da cama,
No quarto, ele caminha .em volta da cama com os minutos da Vila Mariana ao Hospital São Luís. O malandro, te cuida, você não pode fazer esforço. Nada
olhos fixos na parede. Olha a parede com fotos de motorista não aceita os dez cruzeiros da corrida, tira a de Batata. O enfermeiro sai a procura dele pelos
jogadores e reportag ns do Coríntians e sacode a flâmula do octime do povo• presa no botão do rádio e corredores do hospital.
garrafa de veneno. A~onta o poster de Rivelino e diz: mete no pulso de Batata. •Isso é pra dar sorte, -Bntataa!
Fala ai Riva, bem qu · podias dar cobertura ao Ditão corintiano•. Um plano perfeito. Às duas horas da tarde a torcida
naquele crulamento da esquerda, mas você deixou o O Coríntians perdia o campeonato de 71 e Batata grita para o Batata que acaba de entrar no estádio
Paraná sozinho, deixou ele fazer o que queria. Um gol entrava em estado de coma. Dez dias vendo tudo que porque é domingo, dia de jogo no Pacaembu. E chega
de canela, Rha, logo '-ontr~ o São Paulo, time que eu se passa em torno dele, com o corpo mole, quase a tempo de assistir a preliminar como estava previsto:
tanto odeio, Rlva. morto. O sofrimento continua depois que você toma o o ingresso, do travesseiro ao bolso do piiama, a camis:t
A soda cáustica amarga a boca c desce queimando a veneno. A dor não muda, mas muda um monte de do Coríntians embaixo do braço e na portaria uma
garganta, o esõfago, B1tata bebe, se arrasta no quarto coisas. Vem alguém e fala com você e você não ouve. desculpa decorada: •vou ali comprar amendoim da-
e joga veneno pelas paredes. Para na frente da foto do Ele está perto, quase encostado e você estica o braço e quele cara e já volto• Pouco antes do mcio·dia, Batata
presidente Wadih Hdu. fica encarando e cospe na o braço não alcança, nem se move do lugar. Fica uma foge com a ajuda do amigo Julinho, o vendedor de
cara dele. E com a :1juda da bandeira pregada no zonzeira na cabeça: o apito do juiz inimigo, a imagem amendoim que esperava por ele num táxi em frente
guarda-roupa, levanta-se a abraça Gilmar, Cláudio, do médico que vem operar, o som da cuica, os gritos ao hospital.
Baltazar, todos jogadores na foto do time campeão de da massa, fnha, inha, inha, o juiz é mulher do bandei· E no Pacaembu ... um partidão do Corintians, eu
1954. ·rinha. não poderia perder esse jogo da vingança. Ficaria
Ele pega a vassoura c vança no seu mundo, no A flâmula dó Coríntians pendurada na chave do chato, a torcida toda me conhece. O único jogo que eu

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perdi foi quando a minha tia morreu, eu nio tenho a calça está caindo, a torcida vibra; ele eStá cercado na -0 time perde e a torcida me diz: nio Oca nenoso
mae, não dava pra diur que minha mãe morreu e qual área. E Batata é preso. Batata, vamos tomar umas e outras, domingo é no
a desculpa que.eu ia dar? Eu não queria perder aquele - Solta, solta, solta! Pacaembu e o Corintlans ainda vai contratar um bom
Jogo. ~ atádlo.._segurel a barriga operada e chorava Não adiantou a torcida reclamar aos guardas. Eles goleiro. O Ado foi um desses bons, era meu amigo
quando vi a negrada de boca aberta gritando o meu me prenderam bem na hora que eu apontava o juiz pr• intimo. Mas bom goleiro é o cara que sabe agüentar as
nome. Até 4l Didi, o ceguinho da nossa torcida, estava torcida fazer o julgamento. Porque o juiz também gozações. Inventaram que eu queria comer ele. Ai o
de pé e abanava pra mim com os óculos escuros no levaria uma bofetada se fosse condenado com o •é ele• Ado quis bater em quem falou lá na torcida. Nio
rosto. agüentei o lance, se ameaçou um meu irmão de raça,
da massa. Fazia um mês dô suicidio e a sonda na já é rpeu inimigo. E hoje ele é da Portuguesa e a gente
barriga me salvou de uma surra. Quando os guardas grita o nome dele no estádio; Ado, Ado, Ado, o Ado é
'9itorioso- o Coríntians ganhou do Santos de três a vieram me bater eu disse espera ai, e levantei a camisa.
um - Batata entra no hospital e deixa um aviso na Eles olharam aquela sonda no meio dos pontos das veado.
portaria. cO corlntlano voltou•. Ele vestia a camisa operações, arregalaram os olhos e desistiram da cace-
do time - agora era o pijama que estava embaixo do tada. Voltei a São Paulo consagrado pela torcida. Aos 20 anos, Batata é cató1ico de novo e vai todos
braço - e sorria aos enfermeiro que reclamavam. domingos namorar na missa. ~ gerente de três bouti-
Depois de Campinas, o povo vota •em Batata, como ques na rua Augusta, tem um Fusca, freqüénta am-
Voce é um louco e sem vergonha, Batata. a.zar é teu. representante da geral, o escolhido pela torcida na
Mas vê se nilo faz outra sacanagem dessa pra nós. Da festa de despedida de Pelé contra o Corfntians. Mas bientes chiques, aluga um apartamento com duas
outra vez, consegue mala Ingressos que a gente val Batata é um menino: um coroinha de igreja que come manequins na rua Oscar Freire e teve um encontro
inesquecível com Pelé que lhe disse: Negrinho, cabeça
Junto pro campo, rapaz. hóstia e bebe vinho de padre. O coroinha que vira que você tem futuro.
O próximo jogo é em Campinas, contra o Guarani e, protestante porque os pastores fazem piquenique e dão E o Batata ganharia as eleições prã presidência do
com a ajuda dos atenciosos enfermeiros corintianos, comida. Batata é uma criança que adora ser crianÇa. Corínthians?
Batata se r~cupera rãpido das operações, uma no - A torcida gosta de você, Batata? - Sim, mas eu renunciaria.
esdfago e outra no estômago, e ganha alta na véspera - Ela me adora, ela me escolheu pra representar o - Por que Batata?
da partida. No domingo, ele é um torcedor importan- time na despedida do Pelé, mora. E a cerimônia - Ele é tão grande e poderoso que é mais fácil
te do Coríntians. que perde de um a zero. Importante terminou em sacanagem, saca? governar um Estado do que governar o Coríntians.
porque ele pula o alambrado e invade o campo para - Que sacanagem? Mas agora, quando todo povo ficar rico, acaba o
bater num gandula que prende a bola do Coríntians. -Estava programado assim: a torcida explodiria os Coríntians.
E nos ataques do Guarani, o gandula atira arêia nos foguetes quando eu entrasse, logo atrás viria o Pelé. -Por quê?
olhos do golejro Sidnei. Mas eu 'iacanlei. Homenagiei as crianciübas.1:ntrei no - Porque os mais ricos comprariam o Corintians
Vaguinhona área, o Coríntians ataca. mas o zagueiro intervalo da preliminar, na frente dos gurlzinbos den- pra eles. O dinheiro compra tudo e negócio que se
chuta pra escanteio; o gandula não quer entregar a tes de leite. E os foguetes explodiram pra mim e para compra não tem amor. E o Corintians oio seria um
bola de novo e lá \ai Batata que invade o campo; ele as crianças. Quando veio o Pelé não tinha mais amor porque amor não se compra. Eu sou um homem
passa pelo juiz, o juiz apita, Batata é gordinho e corre foguetes na festa. feliz porque perdi de zoeira tudo o que eu tinha.
muito, desvia do zagueiro e dã um soco na cara do Um ano depois daquela profecia de J>elé, Batata
Batata é um adolescente, goleiro frangueiro mas
gandula, dã outro soco e,aponta o gandula pr;{ torcida orgulhoso, porque joga no único time da várzea que bate com o fusca num poste. perde o emprego de
que grita é ele, é ele, os guardas correm atrás de tem um médico, o Esporte Clube Bandeirantes, o time gerente e espalha aos amigos que Deus é uma fajuta-
Batatí\ em redor do goleiro e li vai Batata, passa por do filho do médico. E o Coríntians também teve bons gero. Deus é f~uto porque eu perdi a gerência, o
um guarda e pára, fa z que vai, mas não va1, dribla um, goleiros, Batata? (linheiro, o Fusca, tudo isso bem no ano em que era

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Saiu do hospital. Correu para o estádio. E foi bater no gandula.

mais ca tólico. E aos 23 nos, Batata é o aposentado do minha disposição mas emprestava pros amigos e fazia num apartamento do centro.
INPS. Wanderley Antônio de Castro, por invalidez de uma vaquinha pra mim entrar no C~>tádio. Porque o Foguete é proibido em estádio. Mas. naquele dia,
suicídio. Ganha mil cruzeiros de aposentadoria c com Corintians não pode ser logrado aqui, nem no Rio, no tudo tinha que dar certo. porque a té os gua rdas eram
dinheiro ou sem dinheiro ele viaja com o time. Japão ou na China. con ntianos. O dia amanhecia e aquele vulto... doi!.
Ele, na estrada, pede carona no destino do Corín- - E o Corínthians sendo campeão'! policiais c Batata carregavam caixas de foguetes e
tians. e dorme com os mendigos, enrolado na bandei- - Primeira coisa vai ser uma sema na de feriado. escondiam no banheiro. Mais tarde os PMs policiavam
ra. Vai ao Maracanà. dois ou três dias antes para Depois começaria as festas : a torcida inteira passean- o WC. carrancudos. o radinho no ouvido.
aproveitar a pra1a, e passa a noite no abrigo dos do pelada no centro. São Jorge bebum caindo do A torcida está tão legal. mas que retranca a dei~.
indigentes até as ~eis horas quando ele ganha o café. o ca\ a linho branco, a Cidra \enderia sanduÍches como Vaguinho a'ança lançado pela d ireita c passa pelo
pão. toma a vacina contra \aríola e "ai para o estádio. nunca e faltaria bandeira. lateral, pelo taguciro c entra na área rompedor, dribla
com d inheiro ou sem dinheiro. Quem é a Cidra c porque faltaria bandeira? o goleiro c Batata atira o sapato novo na cabeça do
E o que é uma partida de futebol? - A Cidra é vendedora de sanduiches elos jogos do bandeirinha. que anula o gol. Ladrão sem vergonha.
- Cada jogo é uma aventura e cada vitória tem um Corintians há mais de dez anos. Ultimamente ela gigolô do Armando Marques. O Corínllans \'Olla ao
pouco de emoçã o do campeonato. anda mancando porque um cachorro vira-lata mordeu ataque.
A aventura: Nas cidades do inter ior ele é um homem o calcanhar dela. E faltaria bandeira porque ba11deira A bola bate na trave, rola na risca. a torcida se
séno. Sapato de salto grosso. ajeita a calça na cintura não se compra, se pede ao vizinho a v·clha camisa abraça, se abnu;a c grita. A desgraçada não entra. O
e. carregando uma mala, escolht o melhor hotel branca, o v e~tido preto que não presta mais. centro·a\'antc do Coríntians sai de campo lesionado
próximo do campo. Depois do jogo ele dorme. toma -E daí'! • porque errou cm bola e acertou um canclaço na trave c
café quando acorda. um banho de meia hora e com - E dai, que o pO\Oj á deu toda a roupa q ue tinha. o comentarista fala inal do time no rádio. De cima. o
calma ele sai do hotel antes de pagar o pernoite; Deixa Há 21 anos que o Coríntians e mbala no campeonato e gol escancarado. vai ser mim no inferno. E locutor que
a mala na portaria- e diz que \·ai à farmácia ... nunca o povo põe a roupa na ta quara da bandeira e depois fala feio. csculachando. merece o que quer o Batata.
mai!> volta. rasga porque o time sempre perde o emba lo no fin alzi- liderando a torcida: um massacre.
- E a mala Batata? nho. Nessa a i, nã o há pano que agüenta , saca? E a multidão vai ac massacre q uando Batata joga o
- A mala tica pro hotel cheia de jornal rasgado. - Você entende o Coríntians? radinho de pilha no chão. E todo pisam em cima.
A emoção: - Bah, cu j á desmaiei de emoção. -É dificil entender o Corintians. Se ele ganha de pisotciam. pu:arn cm ci ma daquela vo1. Os pontapés
Cruzara m uma bola da direita e o Sucupira vinha na um a zero, joga mal , e se ganha de cinco é porque o continuam, os torcedores brigam pela capinha do
corrida pelo meio e se atirou de peixinho, bateu de adversário nã o va le nada . rádio c Batata agora está atento neste contra-ataque
cabeça e a bola foi entrando no canto e cu caí duro, - A torcida é triste quando perde? perigoso do Palmeiras. É o gol. O s meninos da torcida
desmaiado nas arquibancadas. Qua ndo a(:ordei estau - Não, Ela fica é invocada e aquela final contra o do Corínlians abandonam o estádio. esticando uma
dentro da ambulância, com a Ziza , uma torcedora Palmeiras, em 74, enlouqueceu muita gente. enorme bandeira preta e branca, e se aproximam da
dona de uma boutique em que eu trabalha\a. Como eu Mais de 100 torcedores deixaram de ir ao trabalho torcida do Palmeiras. que comemora.
ainda estava emocionado nós pegamos a ba ndeira do na semana da final. Foram sete dias de cokta de papel Os meninos soltam a bandeira que escondia os
Corintians e agitamos pelo lado de fora da janela. E a nas gráficas e de volantes nas lojas de loteria esporti- adultos da torcida c começa uma luta. Mas Batata
ambulâ ncia de sirene aberta foi abrindo caminho no va Batata pica'a papel na madrugada c pela manhã nesta noite não quer saber de briga. Pega uma caixa de
meio dos carros de São Paulo com a bandeira agitan- lavava as bandeiras. Eles todos vinham de longe e não foguetes escondida no banheiro c caminha para o
do. dormiam. Na véspera do jogo no Morumbi, Batata centro. E cm cada esquina explode um foguete contra
- Sempre pagou ingresso. Batata? trouxe as bandeira-; da Vila Mariana e os outros o chão.
- Sempre. Eu j á tive ingressos permanentes a trouxeram os oito sacos de papel picado que estavam - E pra desafogar as mágoas, meu irmão.

39
discurso aos
Em palses como os nossos, que não che- tupiniqutns revelação da arte pela arte•, o coroamento
gam esgotados, ainda que oprimidos e sub-
desenvolvidos, ao nlvel da história contem-
porânea, mas que flutuam por sua situação
necessária sobre a linha do meridiano maior
ou francamente mais baixo dela, quando se
diz que sua arte é primitiva ou popular vale
ou nambas... de sua suprema palavra de ordem· •Fiat art,
pereart mundus•. Comentando este alto pen-
samento da estética fascista, Bejamln alcança
tal acuidade que suas palavras de então,
1936. são de uma atualidade espantosa: •Ao
tempo de Homero, a humanidade se oferecia
tanto quanto dizer que é futurista. Nos velhos Mário Pedrosa em espetàculo aos deuses do Olimpo; ela se
palses de franca civilização burguesa não é fez agora seu próprio espetáculo. Tornou-se
assim e o caminho da arte bifurca-se ou ela bastante estranha a si mesma para conse-
trlfurca-se, em veredas que sobem na escala guir viver sua própria destruição como um
social para perder-se nos vértices das diver- gozo estético de primeira ordem•. Uma gera-
sas elites que se lixam no delta extremo das ção depois do filósofo, quando uma segunda
especlaçizações ou que fluem para baixo co- guerra Imperialistas passou, mais devasta-
mo um filete d'ádua que desaparece no subo dora ainda que a primeira, a arte continuou
solo ou estanca em charcos. Nunca tantos sua carreira Inexorável para o acaso, ainda que
•ismos• cobriram áreas tao pequenas,slngu• esta carreira não se fizesse linearmente e sim
lares e extravagantes para consumidores tão trandes metrópoles, sabem melhor que nin- como não mudam a miséria, a fome, a pobre- aos tropeções, com fulgurantes espasmos
refinados ou mais sutls. Nos outros palses guém que o •revlvallsmo• ê uma falsa solução za, choças e rulnas. Mas é por ai que passa o revolucionários, que Dada e o Surrealismo
aq ~ filigranas ou ram ificações chegam e, conscientes desta falsa via, eles se lançam futuro. Aqui estâ a opção do Tercei- anunciaram e Marcel Ouchamp, à sua maneira
cor 'ubprodutos elitistas das orlas das J'l8 dlreção contrária ao vanguardismo. ro Mundo: um futuro aberto ou a misé- ancorruptlvel e laica, acentua nos momentos do
ca1- dos aeroportos cosmopolitas, dos ria eterna. Necessariamente, instintivamente, anti-vataclnioe da contestação permanente.
ftestas metrópoles pós-lndustriais,de aván- esse futuro recusa os produtos ultra-moder~
shopplngs ou supermecados e hotéis trans· ços tecnológicos vertiginosos, as vanguardas Conscaéncia não profética mas no fundo sis·
nacionais. Fora dessas àreas hã as oficinas nos das âreas adiantadas da civlllzaçãq temàtica da negatividade, ele preside a evolu-
artlstlcas sucedem-se dia a dia, levadas por •transnacional• , que de futuro só apresenta a
de artesanato, o trabalho não propriamente IJma necessidade apremlante de mudar o pro- ção estética-não-estética do século. Atrás
assalariado, mas onde se trava o esforço aparência. Efetivamente, o que ela nos pro- dele vêm os artistas de hoje, com suas pro-
duto para contentar uma clientela que não põe como futuro são na realidade variantes do
anónimo da criatividade, da lnventividade gosta em geral de investir no jà visto, como clamas revoluc ionârlas. Um deles começa por
autêntica, quer dizer, o esforço para a coleti- status quo que o imperialismo trata de defen• refazer sua descoberta do •ready made• . mas
os artistas, principalmente jovens, tampouco der por todos os meios, inclusive a guerra. A
vidade. A arte nesses rincões tem suas raizes gostam de repetir o que se estâ fazendo . Não substitui o primeiro exemplo histórico, •o
na natureza ou tudo o que a esta pertence - unica arte susceptlvel de renascimento, quer unnol•, pelo corpo vavo e belo de seu próprio
e mudança ae estilo, como nas grandes epo- dizer, de encontrar. continuidade culturais
terra, pedras,árvores, bichos, Idéias ou quase cas, o que se verifica no domlnlo das artes modelo: é Pierre Manzoni, que morreu aos
Idéias que ·escudam dificilmente das corsas e imprevislveis ou não suspeitadas não pode trintas anos, em 1965, não se sabe de que. De si
plâsticas. é antes a estilização ou o processo resultar de idéias abstraias, deduzidas do
das gentesquecom estas convivem, com estas de modernizações que se comemora todos os mesmo? Depois, da mesma famllia, chegam os
se misturam ou talvez se completam. Aqui, o progresso permanente do cosmopolitismo protagonistas de •arte corporal•.
anos nas fearas e salões de automóveis nas multinacional. No entanto é desta derivação
que é natureza já é cultura e o que é cultura grandes capitais da Europa e América. Como que amparando-se aanda no mestre
ainda é natureza, mas não se confudem e abstraia que se nutre o processo da sucessão incomparável e distante, atacam-se ao pró-
menos ainda se fundem, pois não se trata do Nos palses da penferia, na faixa do suboe- obngatórla das vanguardas já aqui analisadas prio corpo, Invocando a tonsura que Du-
processo triédrico da dlalétlca, que terminaria senvolvimento, as vanguardas também apare- (0 mapa das escolas, lsmos e estilos que se champ se havia feito na cabeça, sob a forma
ainda que provisorlamen\e em uma slntese. O cem, mas aqui seu propróslto seria antes o de sucederam a partir, digamos, da •POP art• de uma estrela. 1: impossivel não evocar as
que aqui acontece é outra coisa. é o nasci- afirmar-se como up to date. Elas têm, entre- anglo-americana. Indica a origem derivada velhas palavras de Benjamim, em face das
mento de um quarto reino mais para lá dos tanto, os olhos postos nas lrreslstlvels mu- dessas sucessões). experiências revulslvas destes ultralógicos
três tradicionais da natureza, o animal, o danças ditadas pela lei da civilização do con - A tarefa criativa da humanidade começa a nlhlllstas da •arte corporal•: •Tornou-se (a
vegetal, o mineral, quer dizer, o reino da arte sumo pelo consumo, quer dizer, a dos gran- mudar de latitude. Avança agora para as áreas humanidade) ... bas!ante estranha a si mesma
Esta não é uma afirmação tão audaciosa des mercados. Por isto nossos artistas •de mais amplas e mais dispersas do Terceiro para... viver sua p.ópria destruição como um
quanto parece. Para demonstrá-lo basta le- vanguarda• estão sempre correndo atrâs para Mundo. A miséria, a fo"'le, a pobreza podem gozo estético de primeira ordem•. E logo a
vantar a seguinte questão: Quem criou a arte? alcançar a ultimlsslma novidade. Esta corrida conduzir ao desespero suas I?Opulações (as- figura de Rudolf Schwarzkogler nos vem à
O homem. Como? Quando? Toda a história • as estatísticas o demonstram cada vez mais sim o crê e disto adverte a sua gente o mente: um ano mais moço que seu êmulo
da arte está hoje em Irremediável decadência • é uma vã e triste ilusão. Os palses pobres e presidente do Banco Mundial, o senhor Italiano quando morreu (1969), este jovem
ao tentar responder à pergunta. O estado da subdesenvolvidos já não podem alcançar o McNamara), mas elas não estão contagiadas artista austrlaco, arrebatado por seus impul-
questão está agora tanto mais inextrincavel- avanço dos ricos. Esta disparidade verifica-se o bastante pelos poderosos complexos sádl· sos auto·destrutivos e narclsicos, inconfor-
mente confuso quanto se levanta hoJe na também no campo da arte. Aqui, igualmente, co-masoqulstas que reinam na sociedade da mado com os determinismos atávicos da von-
grandes metrópoles uma plêiade brilhantls- e quantidade se transforma em qualidade. Na riqueza, da prosperidade. da saturação cultu- tade de ser, Iniciou uma série de atos de
slma, cultlsslma, de esplrltos para proclamar fase histórica em que estamos vivendo, o ral para serem levadas ao suicÍdio coletivo. 1: agressão ao próprio corpo e acaba por cortar
que a arte morreu. Outros, talvez não menos Terceiro Mundo, para não marginalizar-se de mais lógico que se espere delas algo mais o pênis, imolado a abscuras Idéias (ou pur·
brilhantes, dizem que não, e defendem com t odo, para não derrapar da estrada do con- positivo para arremeter-se contra o status gas?) pelas quais se matou. Estes atos de
unhas e dentes as instituições dedicadas ·à lemporâneo, tem que construir seu próprio quo. Existe mesmo em processo, em anda- agressão ao corpo, objeto de adoração, de
promoção da arte. ~claro que a arte nao pode camanhodedesenvolvimento. e forçosamente mento um pouco por toda parte, um pro1eto a repulsa e ódio, abrem a série de ações que
morrer porque ninguém a pode matar, uma diferente do que tomou e toma o mundo dos realizar, condição sine qua non para conceber querem ser edificantes para a família da •arte
vez que está condicionada não só h história ncos do hemisfério norte. A história cultural o futuro, ou seja, manter aberta para todos corpórea•. Seria simples demais, além de
do homem como também à história mesma do Terceiro Mundo jà não será uma repetição uma perspectiva desimpedida de desenvol- injusto, identificar formalmente a • estética•
da natureza. O que acontece é que existem em raccourcl da história recente dos Estados vimento histórico. O que é isto senão uma destes artistas, cujo pensamento explicito é
sociedades propicias ao desenvolvimento do Unidos, Alemanha Ocidental, França, etc. Ele revolução? Sim, uma revolução. A unlca real· negar toda estética, com a atitude tão clara-
fenómeno artlstlco e outras que já não o são. tem que expulsar de seu selo a mentalidade mente susceptlvel de mobilizar os povos da mente sâdica de Marinettl e seus seguidores.
p.s 'grandes sociedades Industriais ou super- •desenvolvimentismo•, que é a barra em que maioria da humanidade. A unica positivamen- Há uma diferença substancial entre os Mari-
Industriais do Ocidente, à medida em que se se apóia o esplrito colonialista. Este implica a te concebivel como a tarefa histórica do vigé- netti de então e os artistas da •arte corporal•
desenvolvem , cada vez mais movidas por um estilização do automóvel e seus complemen- simo primeiro século. de hoje. Naqueles os determinismos sâdlcos
mecanismo Interno Inexorável em sua conti- tos que vão até o vestir, a casa, o viver, a Somente dentro deste contexto universal predorr.inavam e Marlnetti cantava de gozo ao
nua expansão, que subordina todas as clas- decoração, a recreação. Para o seu desenvol... será posslvel pensar no engendramento de espetáculo da destruição dos negros da Abis-
ses a seu frenético ritmo tecnológico e mer-' vimento, Tanzânla preferiu o ensinamento da. uma nova arte. Serâ esta uma das faces maas slnla sob os bombardeios aéreos dos fascis-
pantll, castram as colmélas de toda criativi- China; Saigon, o de Washington. O símbolo. vitais deste prisma revolucionário em gesta- tas Italianos, pálidos precursores dos bombar-
dade e tiram qualquer oportunidade aos ho· do progresso daquela foi a estrada de ferro, o ção nas entranhas convulsas dos povos que deios supermodernos dos americanos contra
mensde.vocação ainda desinteressada e espe- desde foi o bordel. São estas opções funda- Fanon chamou os •danados da terra». Puro os vletnamlstàs de nossos dias. No artistas
culativa para resistir à corrente de força que mentaas. Pela lentidão mesma do seu desen- vlsionarismo? Dá no mesmo. t talvez um de agora, os atavlsmos que pensam sobre
conduz tudo e todos vertiginosamente à vora- volvimento, a arte dos nossos paises jà não ponto de partida metodologicamente neces· eles, sejam alar 1ães austríacos, Italianos.
gem do mercado capitalista. Chama-se arte, poderâ repetir a evolução dos pai ses lndustri· sárlo para abarcar em sua totalidade a vasta amencanos, franceses . são tão complicados
aob este condicionamento, algo como uma alizados. A civilização burguesa Imperialista problemâtica apocallptica da divisão dos po· que escapem à análise. Não se oferecem os
relativamente nova profissão ou oficio que está num beco sem salda. Deste beco não vos do planeta entre o Imperialismo, seus outros como espetâculo, como faziam Mari-
produz objetos SUl GENERIS que agradam à temos que participar - os bugres das baixas satélites e acaudllhados, tacitamente man- netti e seus fascistas; se dão a si mesmos,
•lsta ou ocupam recintos fechados de um latitudes a adjacências. comunados para defender, em ultima instân- pois seu corpo é seu objeto,o objeto de sua
modo caprichoso ou mesmo sedutor. quer As populações destituldas da América La· cia, por todos os meios, o STATUS QUO. e a busca.. A destruição volta-se contra eles mes-
Ulzer. não em função utilitária direta, como tina carregam consigo um passado que nunca imensa maioraa dos outros. de preferência de mos, contra o que não são em seu ser mesmo;
mesa, armário, urinol. Há bastante clientes lhes foa possível sobrepujar ou sequer expri- ·aças não brancas, condenados como por uma pura auto-destruição, e esta que se aa em
para consumo destas coisas. Enquanto haja mir, quer dizer, fazê-lo teoricamente; porque 'l'laldição blblica à fome e ao atraso. Quem espetàculo • e espetáculo que pretende ser
clientes para comprá-la, esta •arte• existe. e: tal expressão nos chega em livros na maior esquece esse dilema preliminar não pode edificante. Querem edificar pela auto-destrui-
claro que se fazem muitas promoções para parte deformados ou dasfarçados nas mas fa lar. Já está mobilizado pelo outro lado, pelo ção. O ato estético, que sempre negaram.
que o distinto comércio prossaga; para isto historiografias de origem metropolitana. As lado de cama. Jâ se colocou, mesmo que não transforma-se em ato moral. Como qualificar
superabundam galerias, museus, bienais, trl· ~ saiba, na outra perspectiva de que nos fala 1a1s ações? Como testemunho de um con-
vivências e experiências destes povos não
enais, etc.e: sintomático que esta atlvidade são as mesmas dos povos do norte. São Samir Amin. dacaonamento cultural fanai , sem abertura,
esteja hoje submetida à vastlsslma Industria muito diferentes. ainda que suas aspirações Daqui se pode entender a profunda diferen- nem existencial nem transcendental. O ciclo
da publicidade, que a protege e assegura seu se1am contemporâneas. Na verdade, a quali- ça entre o que ainda se conhece por arte no da pretensa revolução fecha-se sobre si mes-
progresso e sua persistência. Aqui, e defini- dade da v1da, como se diz hoje no jargão hemisfério dos ncos e imperiais e o que pode mo. E o que resulta é uma regressão patétaca
tivamente, a velha arte perdeu sua autonomia politico da Europa (França), difere da de ou deve sugirem nossos·mundosdeserdados. sem retomo decadência. Aceitam a morte
axlstenclal e naturalmente espiritual. E não nossos povos , como o pisco do vinho. Os A arte, na medida em que exastta entre os como inev1tâvel, em nome da saturação cultu-
taá que chorar por Isto; tentar restaurá-la é pobres da América Latina vivem e convivem burgueses Imperialistas, é cada vez mais um ral e da Irracionalidade Invencível da vida.
~ma tarefa anacrónica, condenada de ante· com os escombros e os cheiro~ inconfortá· claro capricho, de luxo, estetlzante, que se Chegam ao cul de sac perfeito. Entretanto
mão como uma das muatas restaurações das veas do passado. Os ultramodernismo e al- consome a si mesmo. ondiferente a tudo o do abaixo da linha do hemisfério saturado de
quais a história da arte ainda recente con~ece guns de seus progressos, de molde como- mais E:studando o panorama da arte de seu riqueza. de progresso e de cultura, germina a
tantos eplsóôtos fracassados. Os artistas, o mente americano, estão umbllacalmente vin- tempo, em pleno triunfo do fascismo. Wa~ter vida. Uma arte nova ameaça brotar.
~rltlcos, estetas e até sociólogos, condutores culados a nossas favelas e barrladas. O para- Benjaman via no manlsfesto fut.msta de Ma-
do mundo das artes e de outras coisas das doxo é que estas são as que não mudam, rinetti sobre a guerra da Etiópia •a perfeita Paras, Outubro de 1975.

40
AS FACES DO INIMIGO Modesto Carone

É à tarde que veJO os pêlos crescerem no meu Sério mesmo parece o pensamento que me
corpo. Instalo-me no meu quarto, sento-me no veto á mente quando terminava, no cresp_úsculo
meio da cama e, munido de uma lupa que guardo à da manhã, uma das mais árduas sessoes de
chave núma escrivaninha de aço, fico observando vigilância sobre pêlos dos membro~ inferi?res:
essas explosões silenciosas da minha pele. Nem o que será que eles acham de tudo tsto? Ftq~e•
preciso dizer que nesses momentos o tempo deixa de tão mortificado com a mtnha pergunta que tive
progredir à minha volta: ele fica encravado nas dobras de me olhar no espelho , para me ver de fora.
do meu corpo como uma sujeira adormecida. Enqual1- Ocorreu-me . então, diante daquele rosto abis-
to isso eu me entrego, com uma paixão escolada, a mado , que muito pouco se pode fazer contra as
tarefadevigiaressa vida estranha que evolui em mim, manifestações espontâneas.
mas\ minha revelia.
Preciso esclarecer que sempre olhei com mui-
ta desconfiança unhas e cabelos: a simples insi-
nuação de que eles escapam a qualquer controle
me enfurece. Por isso resolvi vistoriá-los todas
as tardes com a ajuda desta lente excepcional.
Compenso, com a vigilância implacável, odes-
conforto de saber que eles crescem por conta
própria.

, I

HORA DA.JANTA,~~:·. ::::i:n~:::cordaram co., os gri;:~.)) \


-(
(

Domingos Pellegrini Junior


MEIA-NOITE .. ~ ~ ~A
davam com as mães bobas despenteadas,
' 4. · _'/1,p:/MEIO-DIA
~;,
os pais com os sapatos engraxados r /o

A notícia acordou a família a socos: \l '"'da de visitas ~ · (, t, j todos compreendem que é dia claro,
o pai desastrou numa estrada de Minas; Q ' e a casa povoa · / J,~. 1 ~1 e que tudo acabou depois de tudo.
ficaram tontos chorando gasolina, ./ · OITO HORAS 1 /c
1 · .
\\) Saem abraçados, vão beirando o muro,
trombando em móveis, viam o morto. ,- · """'"""' \ / J' quando vêem estão de novo em casa .
UMA HORA
A \ ' • / De repente uma mulher desconhecjda ., 1/ Z'
<I (f entra de mantilha com terço na mao, \, UMA DA TARDE
Quando chegou o primeiro vizinho, 1
t
e sem convite, ao lado do caixão,
puxou a reza, gratuita e comprida ~ Ficam esperando uma ordem divina,
ficou sem jeito de pé na soleira, .~p '..,~ que a casa navegue no quintal
depoi s uma vizinha ajeitou cadeuas, 1 ' ou que saiam voando os sofás.
escancararam portas, saiu um cafézinho. {~ O sinal, no entanto, virá da cozmha.
\ ~J"-~
~~{ \:. ,
DUAS HORAS
~ .· -N'-
~~.~\ ') DUAS DA TARDE
Amarrotaram lenços, olhos vermelhos ,
os homens tontos, as mulheres roucas , ~
~ Um neto com lasca de melancia.
vai cuspindo sementes, uma a uma,
a viúva mexendo uma oração na boca, (f;f como um relógio soltando os segundos,
a cara ainda vincada do travesseiro. a fome picando no prato vazio.
f.l' ('r: ' '-" )
TRÊS HORAS ?1 ~~\~\y~·-~~_..~~ 1, TRt:S DA TARDE
Ficaram na espera da o.anhã, do corpo
embalsamado por médico-legista;
\~ Em redor a famflia, pouco a pouco,
vai chegando com pratos e com facas,
«trabalho de primeir~. verdadeiro artista11. ' '\) vai escorrendo caldo na toalha,
Na escuridão cantou um galo rouco. · .....-.-e~
a mãe anuncia: Vou fazer almoço.
QUATAO HORAS QUATRO DA TARDE
No fundo, o velóno é um buraco. O caixão chega às nove, cerrado. Janta, mãe, corrige uma filha.
Mulheres murchas curvam como flores, Fazem fila, olham o homem verde, Um sobrinho ri, outros acompanham.
sai da sala bafo de terra morna, beijam aquela testa; depois fecham . Na frigideira quente cai a banha,
no teto um cogumelo pendurado. A velha beija a madeira envern izada. os relógios da vida se alucinam.
' "1 . ' '-..__·
CINCO HORAS \\~'\~~ ~~~~~ ~· ~i DEZ HORAS ~~ ,, CINCO DA TARDE
Amanhecendo entre xícaras, pesarosos, As varizes estalam, galharia no ar Um abre garrafa, outra cata feijão.
confabulam sem solução os genros: 1 abaiado como dentro de um bote. Fígado, coxas, coração, moelas.
era preciso levantar dinheiro, Então na décima hora da morte. Com o jeito do pai, o filho mais velho
visitar os bancos, empenhar os ossos., o coração murcha como maracujá. desaba na mesa um saco de pão.
""-'-l>) >'), • 1
' ·"-.-....,.~,
SEIS HORAS ONZE HORAS HORA DA JANTA
A visada que o pai adoecera A colher do pedreiro no cimento. Lavam no tanque a bacia de verdura.
chegou uma filha de Sorocaba. Cada tijolo quebra uma costela. ~... _ A cadela começa a latir assanhada.
Da varanda viu a mãe sentada, ·Cabem mais dois ainda na carneira. A casa nunca esteve tão iluminada
· !sª~
na porta recebeu cheiro de cera:: iuma qal vai limpando os pensamentos, nem tão viva, em noite tão escura.
~/
41
l'ttlt tPIII~ l~srl~l~ H~t•\\1~•\\
'l~ltttt~ttllll•\\ SAI.4Aitltt ltl~
'l~ltll'l~ •\\11.4 t~ltiiZI~IIttts
l'ttlt li•'' 111~ ·'l~ltíls •\\11.4 ·1
Contista de primeiro prêmio
no Paraná. Publicitário no
passado. Jornalista, agora.
O repórter da cena brasileira
do «Movimento». Apresentamos
Murilo de Carvalho, o homem
que mora num carrinho, e anda
atrás de histórias do povo.

Uurante três horas, Murilo de Carvalho cste~c nu


rcda~·ão
dt! VERSUS, sendo. ou\-ido por Marcos•Fucr-
man (autor do texto final), Carlos Dória, Dóris Shnai·
dermao , Mouzar Benedito da Silva, Toninho Mendl·s
e Maiflsa Taffarel Faerman.

Pe<>soal do povo escrevia também: Já ganhou muito dinheiro \ertão. A minha paixão pessoal pela
pedreiro. marceneiro. gente que apren- na publicidade. Um dia , aJ!ril.·ultura é uma cui~a! Nas .. t • .1 roça
dia a ler pelo método Paulo Fre)re. Um c sempre vi\ i na rOi; a . Só não n oro na
pouco antes do Mo,iw. to ser lançado. cansou e foi viver na roça porque. infclillncnte. aprendi a
Alguns arriscam a pele começaram a procurar alguém que beira de uma lagoa. É ler cedo demai'> c a entender ,, mundo.
nas guerra·s . Outros soubesse escrever mais ou menos. para apaixonado por um então me pt!rdi. (Além disto. há outra
arriscam a pele no meio fazer a · Cena Brasileira . Era um aventureiro: escritor de questão: no Mo\imcnto a-. cena~ urba-
trabalho difícil, exigia dedicação total.
aventuras, Jack London. . na-. são mai~ ccn~urada., do que a'
das revoluções. John Reed O cara não podia ter compromisso. ccnac, do ~ampo. embora minhas maté-
foi um deles . Hemingway nem ter família, nem ter casa. não Encantou-se com aquele rias qua ...e._o;cmpre \C.Jam cen\uradas.
foi um deles. Murilo morar um lugar algum. Eu queria americano maluco, que cm parte ao!> menu'>.) Acho que é
de Carvalho é um deles. conhecer as coisas. aceitei. Eu podia defendia seu po'Vo, que importante contar a \ id.t do "trabalha·
Um homem que anda atrás aceitar: não tenho casa, não moro cm escreveu a respeito de todos dor rural. São pe~soa<, que jamai'> são
lugar algum. Tenho uma mala de rou· os miseráveis de sua manchete de jornal. Não acontece nada
de histórias para contar. pa. um carrinho, quando estou cm São na vida dele!>. I: uma vicl:1 ..,ossegada. E
Um 'c açador de realidade. Paulo. durmo no jornal. às vc~:cs em época, que ganhou a mulher
essa é. ao meu ver. :1 função da Cena
Um repórter. hotel. às \ezcs na casa alguém. Tudo o de um marinheiro na ponta Brasileira: documentar a\ vidinhas da~
que tenho: alguns livros, alguns d iscos. da faca, que foi andarilho. pc'>'>Oa\ que \·ào c,er manchete de jor·
·Eu quero contar a vida do povo. alguma roupa. fica guardado numa Jack London soube ser nal. Um plantador de arroz que
garagem. na Parada Inglesa. em São
Quero entrar na vida das pessoa'>. Que-
Paulo. A estrada é difícil. Qua\c
Jack London. mQra no Rto Gramk do Sul nunca \ai
ro conviver com elas. Entrar nas casa'>. Murilo de Carvalho sabe ser ser manchete · a n fw '>Cr que m.tte
Trabalhar junto. Tentar viver rc .. lmcn sempre sozinho. sem companhta, .l.m
Murilo de Carvalho. alguém. ou que seJa morto. Conto C'>la'>
te a vida deles. Às ve1.cs eu me sinto um dmheiro. sem nada. Até os bordéi'> da
vidinha'>. c detxo o po\·o falar. Só. \1a'>
intruso. Mas sei que não faço i'>SO para vida. assim. são inatingheis! •
aí tem um outra quc,t;in: ao mesmo
escrever histórias boniunhas. Quero • cu quero conhecer o povo das tempo cm que \OU um inrnali,ta. cu me
mostrar como '>C 'ive hoje no Bra\il. planta~,·õc-.. Estou estudando todo\ os proponho a \Cr c\aitnr. Ccrt<ttncnte a
, Fui repórter policial na Folha de São tipos de ~.:ultura-cultura no sentido de literatura que eu \OU h11er niin 1.· no.:m
Paulo, em 65. Aquele., assassinato'>. planta~,·fto mc.,mo: banana. arro1. tri- um pouco .,emclhante a\) meu jorn.tlt\·
aquelas coisas horrhet'>. L ns ano'> go. Quero dar um retrato do trabalha- mo. Porém todo n meu trabalho de
antes. trabalhei em Mtna'>. num JOrnal· dor rural. E tá quase pronto isto. Um ficção é feito em cima de f;tWsjornaiÍ\·
1inho ch amado · O Lider•. Fui ligado à lc\ a ntamcnto completo: dar um retrato ticos. A hi'>tória que e..,llllt deixando
Juventude btudantil Católica. Ajudá· da agril.·ultura hrasilcira do outro lado. para Versus (leia adiante) 1: uma hi~tÍI·
\amos fa,elado'> a con'>truir casas. e 1: dentro deste ... parametrozinhoo; que ria policial acontecida no interior de
Numa Igreja abandonada. fi~t~mo'> um cu cin:ulo. Á!!ora. por exemplo. estou Minas Gerais. e rce~crita dentro da
centro comunitário. hto foi de 62 a 64. me m<llldando pro Norte e Nordc~tc. perspectiva do criminoso. Bem ... ma'>
Ai re ...olvemo'> acabar C'> te trahalho. No N:m tenho tempo delimitado. Não '>Ci acho. a literatura qul' eu estou fazendo
Líder ... f:uia o qu~· f:u;o hoje 110 MO\Í· quando \Oito. Vou '>air pelo litoral e tr é <> que eu e\tou ,.,l-revendo para o
mcnto: conto!\ a a \ida da'> pC\'>1>:1'>. atl- Mattall'>. Ocpoi' eu volto pelo • Mo' imcntu .

42
nas minas de carvão em Crisciúma
não me deixaram entrar. E eu tive la. São de 20. 25 página!>. Eu sinto que
medo de entrar como trabalhador: ê a coisa que realmente sei escrever é
um trabalho muito violento para mim.
Muitas das histórias que novela. Agora. com relação ao conto
Conversei um cara e ele deixou que eu
ser mais fácil. talvez seja o caso do
Murilo de Carvalho entrasse clandestinamente. Deu um vídeo-tape. Por que o vídeo-tape de
manda para Movimento baita rolo. A segurança da mina nos Murilo de Carvalho nasceu televisão é mais fácil do que fazer cine-
prendeu, queriam tacar a mão na gen· numa pequeníssima cidade
são escritas em te ... No Araguaia, também foi compli-
ma? Porque o vídeo-tape você monta e
postos de gasolina, cado. Queriam me pegar. Aí umas de Mi nas Gerais desmonta ali na hora, ele é curtinho. E
à mão. Seu salário é de pessoas que sabiam que eu estava lá Carvalhópolis, com 2.500 por outro lado. você tem menos chance
habitantes. Lá não tem de errar. Se você faz vídeo-tape de 20
Cr$ 3.000,00, incluída a para escrever uma reportagem me leva·
segundos. sua possibilidade de erro é
ajuda de custo. ram até uns caras que deram todos os asfalto, nem TV. Era bem menor do que num filme de duas
nomes aos bois: quem matava quem, apenas um bocado de horas. Então, ê um resultado imediato
quem levava dinheiro, quem tinha mor· que você tem ali diante das suas mãos.
cUma das matérias que eu mais
rido, quem eram os grileiros. A maté· fazendas. Até que
aosto se passa num acampamento de resolveram fazer uma Isso acho que funciona muito, princi·
ria saiu muito truncada depois. Mas eu palmente nessa nova geração que a
beira de estrada, aqui no estado de São cidade dentro de uma das
estava num hoteleco lá em Araguaia gente tá sentindo. nessa molecada que
Paulo. Eu fui pra lá, arrumei um
emprego para dirigir caminhão de terra quando vieram .me dizer q~e queriam fazendas. Uma família fez tá perdida no mundo. Por que esse tipo
me pegar. 56 tive uma co1sa a fazer: uma rua , outra uma Igreja, de gente está sendo levada a escrever
e trabalhei uma semana. Dormia no fugi!»
acampamento com os caras, dormia lá, outra um cemitério, outra contos curtinhos? Porque são experiên·
comia lá. Durante quatro dias o meu uma praça, e todo mundo cias impactuais que eles têm condições
Murilo de Carvalho ganhou de transmitir imediatamente, é que eles,
pavador virou uma brincadeira, eu
1favava a voz de todo mundo, cantava, o primeiro lugar no se mudou para lá. São todos têm uma necessidade muito grande de
fazi a uma festa. No último dia, eu falei Concurso de Contos do parentes de Murllo. estar vivos. de estar fazendo as coisas.
que tinha ganho uns dinh~iros, Paraná. Quem é que sabe As estradas deixarar.t de estar. como se diz. •transando•. Por
comprei quatorze garrafas de pmga, por que isto não o tornou Carvalhópolis em paz. outro lado, eles não têm informação
sentamos todo mundo na mesa p ra tão conhecido como não ttm leitura, não t~m estrutura pra
beber pinga e eu liguei o gravador e · Minha cidade está muito presente fazer um trabalho mais denso. de análi·
p rovoquei uma conversa, onde cada um outros vencedores, como se. to caso daquele pessoal que no Rio
nos meus contos, nas minhas histórias,
começou a contar sua vida. Eu sinto Dalton Trevisan? Certa no meu trabalho jornalístico. Como eu Grande do Sul fez a revista •A Mar·
que meu trabalho é melhor quando é uma coisa: até hoje, disse, foi com histórias rurais que venci gem•. o Licínio, etc. E depois. com a
você está trabalhando junto. Aí você é nenhuma editora o Concurso de Contos do Paraná. Eu descaracterização do gênero conto. de
amigo do cara e está vendo as coisas. A arriscou-se a publicar nunca tinha publicado nada, e mandei repente você não sabe exatamente o
vida já te diz tudo. Às vezes eu converso para lá porque Luiz Miranda, um poe· que é conto. Se você for tentar expli·
com pessoas que rigorosamente não suas histórias. car hoje. numa aula de literatura prum
ta do Rio Grande do Sul, me encheu
sabem o que é um jornal, como aconte· •o meu trabalho literário tem algu· para datilografar os contos e mandar . moleque. o que é exatamente o gênero
ceu no Rio Grande do Sul, com os ma coisa a ver com as mudanças do Acho que ter ganho o Concurso de conto, voe~ está perdido.
moradores de corredor. Passei doze homem do campo em contato com a Contos do Paraná não resolve nada.
dias na casa de um deles ... era um tipo cidade... a chegada da TV, do rádio. A Até hoje não publiquei nada. Não mu-
que não tinha a menor noção de nada. própria mutação do caboclo que. de re- dou coisa nenhuma. Inclusive, acho Por que um homem
Ele não conhecia nem o Grêmio nem o pente, tem na frente uma coisa que não que os caras do Paraná são uns imbecis abandona um salário
Internacional. .. nada! t;; uma gente que sabe o que é. Quase todo o meu traba· porque não sabem aproveitar as coisas fantástico (30.000 em
vive muito isolada ... e vive a 150 quilô· lho tem ligação com isto. Por exemplo, que têm nas mãos.
metros de Porto Alegre... Ele pensou publicidade) para ganhar um
os contos que me deram aquele prêmio A regra é a seguinte: uma vez que
que eu era do governo. Ele sabia da no Paraná. Um dos meus contos mais você ganha os três primeiros lugares, pequeno salário?
Reforma Agrária e pensou que eu ia lá importantes é exatamente sobre o tipo você cede os direitos autorais por dois
fazer a Reforma Agrária. Cada rpatéria •Não hã nada pior para o povo do
do interior de Minas que mora num anos. Você não pode publicar, mas eles que a publicidade. t a coisa mais terrí·
~ um sofrimento desgraçado. porque sítio, onde tem um ribeirão, com o qual também não publicam o trabalho. I ma·
você não pode fazer nada. Mas eu tive vel, mais trágica, mais assustadora de .
ele tinha uma enorme identificação. O gina o que é a angústia de você ter um tudo o que conheci na minha vida. em
uma experiência interessantíssima com ribeirão tem até o nome do pai dele. E trabalho que levou dois, três anos para
os plantadores de café, que, aliás, saiu qualquer nível. Se tiver um anti-Cristo
de repente, uma fábrica de papel come· ser feito e você ter que esperar mais
quase inteira no ·Movimento•, e pra no mundo. este anti-Cristo é a publi·
çou a jogar umas coisas na água que dois anos pra poder publicar. Você vai cidade. t o sustentáculo de toda a
isso eu fiquei quinze dias de bóia fria acabaram com o ribeirão. Mas isso é publicar hoje um trabalho de quase
pelo interior. Trabalhei em Minas, tra· miséria. {;; a mentira, a enganação. O
um fato que saiu na Veja. A partir daí seis anos atrás. A estrutura disso já é tempo todo mentindo e usando compu·
balhei em São Paulo, trabalhei no eu fiz a ficção, e fui um pouco além: na um absurdo. Quer dizer, eles publica-
Paraná. E nessa semana que eu traba· tadores e outras técnicas sofisticadíssi-
medida em que esse ribeirão se destruiu ram, mas de uma forma tão porca, que
lbei no sul de Minas, fiquei conhecendo mas para mentir. Cheguei até a dar
o cara também se destruiu. Ele teve que nem vale à pena. Publicaram os contos aulas na Álvares Penteado. de Teoria
um sujeito que era empresário, e ele procurar as causas daquilo e foi até o · premiados num cademinho mimeo·
Ubia que eu era jornalista, mas o da Comunicação. Um dia senti que, se
começo do ribeirão, que foi também a grafado e com uma letrinha tão peque· ficasse ali, acabava me perdendo.
pessoal que trabalhava com ele não. morte dele. Então, não é bem o vazio, na, quase corpo 3, que eu tive de botar
Ele me deixou trabalhar junto. Então, Olha, aquilo é gangsterismo puro. Sei
mas a chegada da civilização na cabeça óculos para poder ler, e não tiverJ!.m
eu levantava todo ,dia de madrugada, bem: até dirigi a Criação da MacCan
dos caras. O meu primeiro trabalho nem a dignidade de mandar um exem·
pegava o caminhão, ia apanhar caM, Erikson; tinha acesso a todas as infor-
literário. Acho um pouco ridiculo fa lar piar pra cada autor. Eu vim saber mações. E a chave de tudo é a cha·
aquele negócio todo. Mas nos últimos nisto, mas vamos lá. Escrevi meu pri· disso. quase um ano depois, quando
dias, ele resolveu dizer para a turma ma da Teoria do Posicionamento. Isso é
meiro romance no segundo ano primá· estava em Ijuí, fazendo uma matéria
que eu era jornalista. Eles riram, acha- a coisa mais maluca que eu ja vi na
rio. Chamava-se · Meus Amigos», e era pro ·Movimento• e um professor de minha vida.
ram interessantíssimo, otharam a mi· um relato das aventuras de férias com literatura de lá me disse que estava l ' m grupo de psicólogos e psiquia-
nha mão, toda grudenta de café, e ficou cada um dos meus primos. Alguns anos usando no seu curso um livro meu. Eu tras americanos }>esquisou a capacida·
bem. Entlo ele me pediu um jornal, depois, eu estava já na primeira série virei pra ele e disse: •Engano seu, pois de de retenção média das pessoas, prin·
disse que queria ver meu jornal. Eu ginasial, escrevi um livro chamado ·A eu não tenho nenhum livro publicado, • cipalmente de grupos sociais, e eles
sempre carrego no carro um pacote de Saga do Lirio do Brejo•. Eu tinha lido Aí ele me disse que tinha o livro na casa chegaram a estabelecer um padrão de
jornal, tirei uns números e dei para ele. Selme Lagele e fiquei fascinado pelas · dele e me levou lá pra que eu visse. Só posicionamento na mentalidade do
Ele pegou meu jornal, abriu, e disse - sagas dela, achei, então, que devia assim é que eu fiquei sabendo. Então, consumidor. Cada consumidor posicio-
.t;; isto o que você escreve?• Era uma escrever uma saga. Então escrevi uma quando a gente fala que pode corrom· na os produtores que ele escolhe, numa
matéria sobre as lutas do Araguaia. Ele pequena novela. que é uma história per, eu acredito, embora pra mim não espécie de escala, e se chegou à conclu·
pegou e leu alto pro pessoal, umas muito gozada porque lá no meio do alterou nada. Ou melhor, alterou sim: são de que essa escala tem sete degraus,
quinze pessoas, e se discutiu durante brejo tem um lírio que é conselheiro de os quarenta milhões que eles me deram cada um deles divididos em sete peque·
horas os problemas que a matéria colo- dois moleques - e eles promovem uma deu pra viver bastante tempo tomando nos degraus. A capacidade máxima de
cava. De repente. o jornal passou a revolução na fazenda! Depois, escrevi muita cachaça. Alterou só nisso, já que r~: tcnc;ào de um consumidor normal é
existir na vida daquelas pessoas. Quan- outro trabalho que foi até radiofoniza· eu não tive nenhuma badalação de
do saiu a matéria, eu peguei os jornais e -.etc produtos. até parece um negócio
do. Chamava-se •Sabiá Solitário•. A editor, por exemplo, não me deu facili· cabalístico. A partir daí se montou todo
mandei entregar pra esse cara. Ele história era uma noveleta que transpu· dade nenhuma, não arrumou emprego, um esquema, de informação, de criação
recebeu e me mandou uma carta dizen· nha os problemas sociais para o mundo não adiantou nada. Aparentemente, de texto. de busca do que se dizer num
do que tinha lido, gostado muito. Pas· dos pássaros. até que os gaviões. que esse concurso dá uma importância por· texto. que palavras usar, que desejos
sou a ser um relacionamento interes· eram os bandidos acabam matando a que alguns caras que ganharam o con· suprir. pra dar um chega pra lá ao
sante. Depois disso eu voltei lá, fui à mulher do sabiá. Então. o sabiá solitá· curso ficaram com nome dentro da
literatura brasileira. Por exemplo, o produto que ocupa a primeira escala na
casa dele. bati papo. t claro que às rio organiza um bando pra atacar tudo.
Dalton Trevisan e o Wander Piroli. preferência do consumidor. Nesse es-
vet.es as coisas são mais complicadas. E o sabiá lider acaba morto num tan· quema. a figura do homem fica como
Quando eu fui fazer uma reportagem que de lavar roupa-.. Os meus contos são quase uma nove- um objeto a ser ocupado: vamos ocupar

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a mente do cara. Qual é a maneira que
nós vamos fazer? Não se trata mais
nem de suprir uma necessidade do su-
jeito. O homem ficou colocado como
uma escada de sete degraus, que você
tem que entrar ali dentro. Aí vale tudo:
mentira, enganação, roubo, corrupção.
A coisa chega aos limites do absurdo. E
você se sentindo naquelas reuniões de
Acabei de escovar os dentes e enxa- gens ao interior, quando podia contar esperava a parttda procurei connecer e
planejamentos, com executivos. com güei, bem enxaguada, a boca, Coloquei
pessoas que realmente conhecem a fun- com poeira certa, por isso não vestira me apresentar ao meu companheiro de
a escova e a pasta dental na mala e meu temo completo. Estava com o .banco. Ele foi muito gentil, pegou-me na
do o assunto, você começa a ver as puxei o zíper. Conferi: tudo em ordem. mão, apresentou-se. Deixei para mais
velho paletó cinza e a calça azul-mari-
voltinhas que as pessoas vão dando e Os documentos no bolso interno esquer- nho que usava quando tinha que visitar tarde a conversa que principiávamos a
como uma população como a . nossa do do paletó, o pente no direito e no bolso alguma fazenda, oferecendo meus pro- entabular, porque queria examinar os
pode chegar ao nível de consumo imbe- detrás da calÇa a carteira com dinheiro dutos. A camisa, não houve jeito, era a outros passageiros com meu vagar.
cil que nós chegamos, o que é que levou e os documentos. Um bolso com botão branca mesmo. Não coloquei gravata,
a isso tudo: a fome com a vontade de bem resistente, que abotoa sobre uma era estragá-la na certeza.
comer. O que vai acontecer: está toda a casa pequena, quase pequena demais O ônibus ainda demoraria um pouco No banco da frente, o primeiro, do
população brasileira se destruindo, para eles: difícil de abotoar e mais difícil a encostar. O dia ia pela sua metade, lado do motorista, na mesma fileira em
destruindo suas raízes, destruindo tudo ainda de desabotoar, O chaveiro, bem um pouco além das duas horas. Entrei que eu estava, dois boiadeiros, as botas
que podia ter, pra poder sobreviver preso na presilha da calça, debaixo da no bar cheio de gente. A mala e o cheias de barro, falam em voz baixa, os
numa hora de aperto. No momento em cinta e enfiado no bolsinho dos niqueis. mostruário pesavam bastante. Colo- chapéus descansando no colo. Decerto
que esse poder econômico estourar de Os sapatos bem amarrados. Olhei: fal- quei-os no chão e pedi um guaraná e já andavam olhando gado, comprando.
uma vez, eu não sei o que vai aconte- tava um tanto de graxa neles. Detesto bebia quando me deu vontade de comer Estiquei um pouquinho o pescoço para
andar de sapatos sujos. Puxei um peda- um quindim. o lado a fim de ver bem o rosto deles.
cer. Certamente suicídio em massa, ço da colcha que cobria a cama e lustrei Pedi ao rapaz do bar que olhasse Os dois estavam com a barba crescida.
porque o sujeito não tem gasolina pra o sapato. A poeira vermelha foi fican9o Achei melhor não puxar conversa.
colocar no carro dele. Hoje, a necessi- pela mala e pelo mostruário e fui ao
no tecido azulado. O sapato só mais ou mictório. A urina demorou a vir. Nas No primeiro banco, do outro lado,
dade do automóvel é uma coisa tão vio- menos, para chegar no ponto ainda paredes uma porção de frases e versos aquele que fica sozinho lá na frente,
lenta na cabeça do sujeito que ele não precisava de graxa e um bom lustro de escritos, frases e versos que eu fiquei antes da porta. ao lado do motorista, o
tem escapatória. Eu participei do lan- escova. Na colcha sobrou escura e aver- lendo enquanto esperava a urina e de- cobrador mexia com um bloquinho de
çamento do Cbevrolet Opala, eu conhe- melhada mancha, mais de palmo, mas pois, enquanto mijava. Sai e fiquei passagens e ajeita um pequeno maço
ço a história do automóvel brasileiro do não tinha importância, até melhor: encostado na porta, palitando os den- de notas miúdas para o troco. Estava
começo. Dois anos antes do lançamen- desse jeito a dona da pensão era obriga- tes. Não havia nenhum lugar vago nos muito entretido em sua obrigação para
to, já estava se planejando a coisa, se da a mandar lavá-la, ela estava mesmo dois bancos de madeira, cheios de mu- responder a qualquer cumprimento
estudando jeitos, buscando esquemas. precisando, malcheirosa. lheres e suas crianças. meu.
Todos esses meandros que a propagan- Tudo em ordem. Apanhei a maleta, Já estava ficando cansado, o palito Logo depois da porta, ainda do outro
da faz, só pode levar o sujeito à loucu- o mostruário e saí para o corredor. amolecera e a ponta de abrira num pe- lado do ônibus, sentava-se uma velha
ra, a essa loucura que nós estamos Caminhei até a portaria e não encontrei queno feixe de farpas macias, quando o gorda, junto ·a janela. Um pouco longe
ninguém. O balcão da recepção esta•,a ônibus apontou no começo da rua, no dela, no mesmo banco, um negro.
vivendo hoje. Eu tenho visto coisas vazio. Esperei um pouco, cinco minu-
horríveis: o sujeito está passando fome, fim da praça. Olhei o relógio. Estava Virei-me um pouco e pude notar bem
tos talvez, e não apareceu pessoa algu- na hora, o chofer fôra muito bem pon- o casal de meia idade que estava senta-
mas tem Bom Bril em casa. Eu pergun- ma. Levemente, dei dois tapas sobre a tual. Isso me deixou contente, O Brasil
to: por que tem que ter Bom Bril na do no segundo banco, na minha dire·
tábua do balcão, esperando despertar a progredia mesmo. Cuspi fora o palito, ção. Pareciam distintos, razoavelmente
casa de alguém? Por que um sujeito na atenção da velha ou de alguma empre- cuspi um pouco do gostinho da madeira bem arrumados e olhava também para
roça tem que ter Bom Bril? O Cara não gadinha. Sobre o balcão o livro de que me ficara na boca e me aprumei. fora, dizendo adeus a algumas pessoas.
tem panela, não tem comida, por que registro de hóspedes estava aberto e eu As mulheres viram também o ônibus e Virei o pescoço mais ainda. E vi
precisa de Bom Bril? Mas por que que li meu nome e notei que nos últimos já se levantavam, barulhentas, cha- outro casal, duas mulheres e várias
esse cara compra Bom Bril? Eu sei três dias somente eu fora registrado. mando os filhos, pondo uma urgência crianças que choramingavam lã atrás,
porque, eu fiz a campanha da Bom Bril Fiquei imaginando que todos os outros medonha em tudo. O ônibus encostou. perto da cozinha, aquele banco compri-
vários anos. Então eu sei como é que é o hóspedes que encontrei nos corredores Abriu-se a porta com a sonoro chiado do que é o último do ônibus.
mecanismo que ela se utiliza. E é um e no refeitório eram moradores per- que me fez lembrar um peido. O cobra·
troço de alta lucratividade. Qualquer ma nentes,registrados há muito tempo. dor desceu,moreno, ~ctgro e sorridente. Atrás de mim, nos assentos do meu
picareta de propaganda se enche de Bati novamente no balcão enquanto Entrou no bar. O motorista saltou em lado, foi mais difícil de olhar. Disfar-
ganhar dinheiro. procurava uma campainha, dessas que seguida e foi tomar seu cafezinho no cei, levantei-me e fingi que arranjava
sempre existem em recepção do hotéis balcão. Olhei outra vez minha pas- um pacote no guarda-volumes de cor-
e pensão. Não havia nenhuma. Olhei o sagem. Número seis. Reservada. Com- dinha. Pude ver que apenas três bancos
.Murilo de Carvalho relógio. Faltava menos de meia hol"a estavam oçupados. E me pareceu que
prada com bastante antecedência. Dei-
pe11~a em trabalhar pelo para sair o ônibus, se a empresa fosse xei que as mulheres com as crianças eram ocupados por roceiros, suas mu-
menos mais um ano como pontual .. Bati novamente, com mais entrassem antes. O cobrador voltou e lhe res e filho.
repórter da Cena força e só então a velha apareceu no começou a guardar as malas. Entre- Sentei-me novamente e olhei o reló-
corredor da cozinha, enxugando as guei-lhe minha maleta e o mostruário. gio. Estava passando da hora. Fiquei
Brasileira do Movimento. mãos num pano de prato. Cumprimen- Ele devolveu-me os canhotos do talão desgotoso. Perguntei ao motorista, com
Esta é a fase de olhar tei-a, pedi a conta, paguei. Enquanto de bagagem que colara nelas. Fiquei muito jeito, se ia demorar muito para
para o povo, aprender saía, levando a mala e o mostruário, esperando para ver em qual comparti- sair. Ele disse que não, só estava espe-
notei que ela enfiava o dinheiro no seio. mento ele iria guardá-las. Não queria rando a professora, ela até já vinha
• com o povo - aprender Me desagradou muito aquela pensão confusão com mmbas malas e podia vindo. Disse que tirava a diferença
a aprender. Este escritor sem nem caixa registradora. esperar enquanto os outros passageiros depois. Comentei com o h&)kUf\ do
gosta de escrever com O ponto do ônibus não era longe, só se atropelavam na porta do ônibus, meu lado que isso não era direito. Mas
·as mãos sujas e bem sujas. atravessar a praça, defronte a igreja e porque tinha meu lugar reservado, fiquei esperando sentado,que outra coi-
ficar na porta do bar. Já havia muita banco número seis, desde a véspera. sa não me competia.
•Ninguém escreve pro futuro. Não gente ali, esperando. Coloquei a mala e Fui um dos últimos a entrar e o Não demorou nada e a professora
gosto deste negócio de «criar novos o mostruário no chão, junto a parede. ônibus não estava cheio. chegou. Muito alegre, sorrindo, esba-
mundos.. Isto me parece um exercício Tirei do bolsinho do paletó a minha Parei um pouquinho na porta, tre- forida, chegou correndo e trazia um
passagem, comprada de véspera e con-. pado no segundo degrau e cumprimen- pacote de cadernos nos braços e uma
inútil. Não vou dizer: Murilo Rubião é
feri o lugar. Número seis, segundo ban- .tei o motorista que ajeitava dois pacotef> grande bolsa de couro pendurada no
ruim. Mas, particularmente, prefiro co atrás do motorista, lado do corredor, ao lado do motor, junto ao banco. Para ombto. Era muito alegre mesmo. Subiu
elaborar minha obra em cima da reali- onde eu poderi: esticar as pernas à minha surpresa o chão estava limpo e depressa, o cobrador saiu ligeiro do
dade. Se ele quer escrever aquelas coi- vontade, enquanto controlava a estra- um cheirinho de creolina mostrava que banco onde estava e cedeu o lugar para
sas de coelhinhos que ficam ou não da, longe da poeira dos últimos luga- ele fora lavado há pouco tempo. Uma ela. O motorista, rindo, cumprimen-
ficam azuis, talvez pra ele seja um res. Sempre que a gente se senta um boa empresa de ônibus aquela ali, sem tou-a e deu a partida no ônibus. Deva:
problema existencial. Talvez até exis- oouco mais atrás nos ônibus que rodam dúvidas nem sombras. Procurei o meu garzinho fomos deixando a praça, des-
tam pessoas que sintam aquilo. Eu não por estrada de terra, come um poeirão lugar, número seis. No número cinco cemos uma rua estreita, pa.;samos em
acredito que isto possa ser uma litera- danado. E só o ônibus parar e o pó estava sentado um senhor bem vestido, frente ao circo que estava sendo des-
tura atuante dentro do tempo e da levanta-se, uma nuvem opaca, e vem o terno azul-marinho novo, os cabelos montado. A professorinha falava alt<f.
realidade da gente. ~claro que o traba- por trás, entrando em cada janela aber- brancos e um curativo sobre o olho exuberante, e sua voz sobressaía-se até
lho de José J. Veiga é diferente. É um ta, em cada fresta de vidro e sufoca os esquerdo. Achei que seria um bom mesmo ao ronco tremido do motor. Eu
absurdo integrado dentro da \'ida das pulmões da gente. Por isso sempre companheiro de viagem. Pedi licença e estava distraído, os olhos andando á
pessoas. ~ um irreal plantado,não um mantive o meu limpo hábito de reservar sentei-me na ponta do banco estofado, toa quando percebi que o negro do
coelhinho que fica azul. Enfim: as mi- o bilhete número seis. Nem tão atrás arregaçando um pouco a calça para que primeiro banco inclinava-se para o lado
qu~ empoeire tanto, nem tão 'a frente não me surgissem aquele joelheiras dese- e procurava olhar melhor a professora.
nhas preocupações têm sido bem cons-
que o zoar do motor não deixe a gente legantes que amarrotam o tecido e cau- Achei muito esquisito: Meu compa-
tantes: eu falo da opressão que as pes- dormir. sam péssima impressão, destruindo os nheiro de viagem comentou sobre um
soas sofrem em todos os níveis. Eu falo vincos. Uma coisa que eu nãosuportosão novo posto de gasolina que estava cons-
da falta de possibilidades de ser, de Eu havia esquecido o meu guarda-pó roupas mal passadas, com o vinco torto truindo na entrada da cidade e eu já
existir. » de linho que sempre trazia nessas via- ou sem vincos. Acomodei-me e quando podia avistar. Estava mesmo quase

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pronto e a parede inteiramente azuleja- engraxar os sapatos logo que chegasse mordendo, mordiscando leve e leve as explicar, eu completei o caso. O cobra-
da deveria ter custado uma fortuna. O na rodoviária de São Paulo, pois seria macias coxas da professorinha que cor- dor abaixou-se e pegou uma barra de
ônibus parou bem na frente do posto e muito desagradável aparecer ao Geren- rig\aos cadernos lá no banco da frente. ferro que estava debaixo do banco do
eu pude vê-lo direito. Duas mulheres te de Vendas com os saplttos empQeira- De repente o ônibus reduziu a mar- motorista. Nessa altura todos os ho-
com suas malas e sacolas entraram. O dos. Ele era um sujeito muito fino , cha e começou a parar. Abri os olhos mens do ônibus tinham vindo. para a
cobrador estava lá atrás e veio vindo <'~"'~a mente nunca iria dizer nada, as- meio desperto. procurando saber quem frente. As mulheres esticavam o pesco-
para ajudar, mas o negro levantou rápi- sim direto, assim específico. Ele apenas descia ou entrava. Quando parou de ço e ficavam caladas. ansiosas para
do pegou as sacolas e auxiliou as duas exigia apresentação impecável e eu todo, à margem da estrada, a profes- descobrir as causas do transtorno, os
mulheres, que eram bem velhas e tive· athava isso assim muito certo. Mas eu sora levantou-se, sorrindo, falando um porquês do ônibus parado, da viagem
ram dificuldade em subios altos de- precisava mesmo engraxar os sapatos, até-a-manhã ao motorista e olhando interrompida.
graus. Enquanto ele ajeitava as bolsas, porque, como as unhas, eles são o pela janela, decerto esperando alguns Eujã sabia o que nos competia fazer,
notei que não desgrudava os olhos da melhor espelho do que é um homem. de seus aluninhos. Eu fiquei inteira- a nós homens decentes e civilizados,
professorinha que voltara-se no banco e Eu estava pensando nisso, o ônibus mente acordado. Ela levantou-se, saiu com um pingo que fosse de moral. Ai
falava com uma das velhas, sempre rodava pela estrada vermelha, quan- meio de lado, puxando o vestido. Parou eu sugeri que voltassemos, que fôs-
éom seus bonitos dentes clareando o do o negro levantou-se e foi falar um instante no degrau superior da por- semos depressa, a professorinha em
sorriso. Compreendi logo que era pro- qualquer coisa ao motorista. Como ele ta e eu notei que sua bunda bem feita perigo, o negro nojento. Voltássemos e
fessora de escolinha rural e que andava falou muito baixo,eu não pude escutar estava na altura dos olhos do negro que queira Deus se não fosse tarde demais,
sempre naquele ônibus, por isso to~os a o que dizia, embora tivesse me concen- disfarçava e olhava pela japela, interes- tudo consumado. O motôrista ainda
conheciam tão bem. trado em grandes ouvidos. O que eu sado em qualquer coisa lá fora. Ela estava indeciso. Tinha suas ordens, o
Quando o ônibus entrou na estraoa, pude notar e o meu companheiro de desceu. Deu um novo até logo ao mo- horãrio a cumprir. O cobrador agitava
os passageiros já conversavam anima- banco notou também quando chamei a torista e saiu das minhas vistas. O a barra de ferro. Um dos boiadeiros
dos, mas a professora começara a cor- atenção a ele, foi qúe o negro falava ônibus ia arrancando, a porta ainda insistiu em voltar. Eu achei que já
rigir os cadernos com um grosso lápis. ao motorista mas tinha os olhos postos aberta, o negro levántou-se precipitan- estava até apssando da hora, se demo-
Comentei com meu companheiro de na professora que continuava com seu do, falou ao motorista um balbucio, rássemos m.. is íamos somente voltar
banco o intéresse do negro pela profes- trabalho, apesar dos balanços e sacole- entregou a passagem, pegou um pacote para viganças. Recontei todos os mo-
sora. Ele reparou comigo, essa gente jos do ônibus. O motorista respondeu que colocara no porta-volumes em cima vimentos do negro, os olhares, as bran-
nunca sabe o seu lugar. Não que ele qualquer coisa, porém, e o negro sen- do banco e desceu apressado. cas coxas da professgra, escuras unhas
tivesse preconceitos, como eu também tou-se novamente. A porta fechou chiando seu ar com- e pretas, o pé descalço, o dinheiro
nunca os tive, mas o negro estava até O balanço e trepidar do ônibus na primido e eu tive uma certeza. Como amarrotado na palma da mão, o beiço
descalço. estrada de terra começou a me enjoar. um relâmpago, como um tiro, como roxo, os olhos riscados de vermelho, 6
Uma certa hora a professora ajeitou- O asfalto ainda demoraria compridos um tombo. Esse negro ia fazer das suas calombo na cara. Insisti, tinham que
se no banco, virando as pernas para quilômetro~. . e a professorinha era que era. Pensei acreditar, sim com a cabeça. Anciosos.
fora encontrando melhor posição pa- O diabo do negro não parava qUieto. em falar mas detive-me uns momentos. Eu já não tinha mais argumento ne-
ra a correção dos cadernos. Com ô Da vez em quando levantava-se, as O ônibus principiava a retomar sua velo- nhum e isso me afogava, me deixava.,
movimento o vestido subiu um pouco, mãos apoiadas nqs suportes do guarda- cidade de sempre, as pessoas todas impotente, o negro, a professora, asco-
mostrando até em cima, um pedaço, xas rijas, o rosto gordinho. Aí então me
deslumbrante de coxas claras. Eram encheu o saco e eu resolvi comandar,
pernas lisas .e certas e pareciam rijas Mandei virar o ônibus e voltar. O mo-
como boa madeira de lei: O negro torista, meio assustado me obedeceu,
estava de olho. Eu não podia ver-lhe os enquanto todos os passageiros aprova-
olhos, mas pude adivinhar muito bem a vam e em suas caras ía-se formando o
gula que ia por eles. Meu companheiro ódio.
de banco entortou o corpo e olhou. O ônibus voltava rápido, a paisagem
Concordou comigo que as pernas eram sendo apenas largas manchas coloridas
das melhores, mais gostosas, e que dentro dos barulhos da tarde. Estavá-
o negro era um sem-vergonha. Logo mos quase todos de pé, dentro do ôni-
a professora vai estar mostrando bus que corria, cada um se preparando
até as calcinhas, desse jeito. E ai o do seu modo para as coisas que iam
negro enlouquece. Confesso que a vista acontecer. o cobrador ia batendo ue-
daquelas pernas me perturbou um pou- vagar o pedaço de ferro no cano nique-
co, procurei conversar. Os dois boiadei- lado que era parte do encosto do
ros do banco de frente estavam dormin- banco e fazia um fraco ruído metálico,
do. enquanto pedacinhos do prateado fica-
Puxaram a campanhia e o ,.mibus vam grudados no ferro. O motorista
parou. Um casal levantou-se, a mulher fazia curvas e curvas a poeira levantan-
com grande dificuldade carregava um do, vermelha e morna. De repente,
bebê em·olto em cueiro. O cobrador, depois de um bosque de eucaliptos,
parado na porta, deu o troco ao homem apareceu a escola, branca e pequena,
e ajudou a senhora a descer. Quando o no começo do morro. O ônibus dimi-
ônibus recomeçou a andar ele foi co- nuiu a marcha e todos nós fomos olhan-
bran,do as passagens de banco em ban- do, lado a lado, esquerda, direita, re-
co. Mostrei a minha, reservada com passando touceiras, clareando som-
boa antecedência, ele apanhou-a e fêz volumes, e olhava para os dois lados da estavam quietas, com preguiça de con- bras, os ouvidos prontos para o grito. O
ne!a dois buraquinhos redondos com estrada, como, se estivesse tentanto re- versar. Eu fiz meus pesos e medidas, cobrador abriu a porta e pendurou-se
seu alicate de picotar. O negro tireu o conhecer onde o ônibus ia passando. Ai meu próprios julgamentos e achei que para fora, o ferro na mão, procurando
dinheiro do bolso e pagou, um dinheiro então eu pude vê-lo com calma, anali- não podia me omitir. Eu sempre fui eu, ver melhor.
amassado e ensebado, quase a conta sar bem analisado as feições da cara, obedecedor, dentro das leis, no rigor de
certa. Eu fiquei olhando o pé dele: o Então ele viu o negro que caminhava
dos olhos, da boca. A boca nascia de todos os preceitos. Eu sabia uma certe- apressado pela lado da estrada. Gritou.
dedão tinha unhas pretas e gretadas. um beiço grosso, pendente, roxa, e za e não podia acovardar-me, deixar Eu gritei também, o desgraçado já
Mas deu vontade de ver como é que era acabava num outro beiço menor, tão . que passasse,
a mão dele. Demorei um pouco, porque fizera o mal-feito, ia fugir. Mandei o
curto que quase encostava no nariz. E o Acordei meu vizinho de banco e falei motorista tocar pra cima do negro. Ele
ele sep1pre mantinha as mãos juntas, nariz era mais chato do que o normal com ele o que eu estava pensando. Seu
enfiadas no meio das pernas. As unhas viu o ônibus vindo, vindo, procurou
dos negros, e bem perto da narina olho sozinho me olhou sério e senti que desviar-se assustado,' atravessou cor-
da mãos dele pareciam as unhas do pé. esquerda tinha um calombo averme- ele concordava co.migo. Resolvi agir,.
Tão pretas, tão sujas. Falei com meu rendo a estrada a começou a subir um
lhado que me fez lembrar em bernes. Levantei-me e fui ao motorista. Falei, barranquinho que ia dar nos fundos da
companheiro de viagem sobre isso, co- Os olhos eram de quem bebe muito, expliquei, contei, informei. Ele me o-
mo a gente conhece os outros pelas escola. O ônibus encostava no
amarelados, estriadas de sangue. Um lhou espantado. Não pareceu acreditar quando o cobrador, os dois boiadeiros,
unhas da mão. Seus hábitos, seu cora- negro muito feio mesmo. Depois ele muito mas senti uma leve onda de
ção. Notei nele uma rápida reação, um outros homens e eu, descemos correndo,
sentou-se e ficou quieto. preocupação tomar conta da cara dele. as mulheres gritando e vindo atrás.
movimento ligeiro que tinha a intenção Insisti, altas vozes e os dais boiadeiros
de passar desapercebido, procurando O calorzinho gostoso do meio da Então eu vi quando pegaram o negro,
já estavam lnteressados. Repeti a histó- foi o cobrador que alcançou primeiro e
com a ponta dos olhos a ponta dos tarde, a modorra suave provocada pelo ria, contei do negro, os olhos nas coxas,
dedos. As unhas dele estavam cortadas ronroar do motor e o sono fundo dos bateu nas pernas, o negro caiu e deixou
a pressa de descer. Eles entenderam e rolar o pacotinho de roupas. Gritou e
e limpas, eu já havia notado isso, senão dois boiadeiros no banco de frente acrl(ditaram na hora. O velho, meu
não teria çomentado. Eu também olhei foram me amolecendo. Entrefechei os caiu, apavorado, acuado, meio trepado
parceiro de assunto, estava falando no barranco, enquanto todos começa-
para as minhas unhas, embora soubes- olhos e fiquei pensando, suave, na pro- com o casal do banco de trás e pude ver
se que elas estava limpas, lustrosas, fessorinha. Não havia podido distinguir vam a espancar com os pés, as mãos,
que o homem concordara e a mulher paus, pedras e o negro gritava, gritava,
curtas e sem cutículas, como sempre. direito os traços da cara dela, deveria abriu sua cara de susto, a mão na
O ônibus ia indo. A professorinha ser realmente muito bonita, gordinha, gritava.
frente da boca. A velha gorda que E gritava ainda quando a professora
continuava corrigi11do os cadernos e eu só sabia do riso branco de belos vinha dividindo o banco com o negro
voltara as pernas para dentro do banco, dentes. O cabelo dela era louro e eu surgiu em cima do barranco, fresca em
escutava a conversa e não demorou a seu vestido branco, vindo da escola,de
da forma que já não se podia mais ver escarafunchei minhas lembranças ca- Íntervir. De repente muita gente falava
suas macias coxas. Comentei isso com o tando uma certeira comparação. Mas mãos dadas com uma meninazinhá pe-
e todos acusavam, diria , todos tinham quena. E gritava enquanto eu pude ver
velho senhor e ficamos imaginando o só me vinha as imagens das coxas dela, suas certezas. O motorista parou o
desespero do negro, que perdera seu brancas, rijas, de pegar e morder como nos claros olhos dela uma intensa sur-
ônibus. O cobrador, que dormia lá no presa porel'lcontrarali o ônibus parado
espetáculo. cana madura. E eu fiquei cochilando, fundo, veio depressa saber o que estava
Eu estava pensando qu~ tinha de pescando meus lambaris, enquanto ia e aquele grupo de homens que batiam,
havendo. Um dos boiadeiros começou a batiam, batiam, até matar.

45

~~SABij..§AR I R!~ Sartre - Para mim, são duas lutas de
aspectos e sentido diferentes. Por isso
mesmo, nem sempre coincidem. Nas

OS SE~ LIVIIua lutas sociais, até agora, temos os ho-


mens se enfrentando entre si. Es-
sencialmente se trata de relações entre

POUCO ho~ens, de relações que concernem ao


poder e à economia. A relação entre
mulheres e homens é muito diferente.
Sem dúvida, hã implicações muito
importante do ponto de vista econômi-
co. A mulher não constitui um conjun-
to de interesses, e o homem, em relação
à mulher também não. ~outra coisa, é
a relação entre sexo. Há, no fundo,
duas grandes linhas: as lutas sociais e a
luta dos sexos. :a claro que, frequen-
temente, essas duas linhas se tocam.
Hoje, por exemplo, as duas linhas ten-
dem a ser onir. A mulher de um ci-
dadão de alta posição social não é
exatamente oposta à mulher de um
trabalhador. As divisões sociais s6 atin-
gem as mulheres de forma muito secun-
Slmooe de Beaavolr - Sartre, gosta- dãria. Por exemplo: encontramos fre.
ria de saber sua opinião sobre o proble- quentemente, entre uma burguesa e
ma da mulher, pois, em resumo, voce sua empregada, relações que seriam
nunca falou sobre este tema. Inclusive, inimagináveis entre um patrão ou en-
é a primeira vez que eu lhe pergunto: genheiro de uma fábrica e um operário
porque você sempre se -referiu a todos qualificado dessa mesma fábrica.
os oprimidos e nunca falou das mulhe- Simone - Que tipo de relação você
res? Como se explica? quer dizer?
Jean Paul Sartre - Acho que isto vem 1
Sartre - Aquele tipo de relaciona-
de minha infância, durante a qual eu mento em que a burguesa fala do seu
vivi rodeado de mulheres. Minha av6 e marido, das relações com o marido,
minha mãe se ocupavam muito de com a casa. Ai pode haver uma cumpli-
mim. Em seguida, fui rodeado de me- cidade entre duas mulheres de dois
ninas. De modo que esse era um pouco distintos niveis sociais. Acho que uma
meu meio natural, as meninas e as burguesa, exceto em casos especificos,
mulheres, e eu sempre pensei que havia não pertence à burguesia. Ela •Sim-
em mim uma espécie de mulher. plesmente é burguesa porque seu mari-
Slmooe - O fato de você ter vivido do o é.
rodeado de mulheres não impede que Simone - Você quer dizer uma bur-
tanha podido compreender o fenômeno guesa tradicional?
da opressão que elas sofrem. Sartre - Sim, sim antes de tudo um
Sartre - Eu sentia que minha av6 era moça que vive com os pais, sob a
oprimida por meu avô, mas não me autoridade de seu pai, que se casa ~om
dava conta disso. Minha mãe, como um homem que retomará, de maneira
viúva, também era oprimida por seus um pouco mais suave, os mesmos prin·
pais, mas tanto por um como pelo cípios de seu pai. Ela não tem a opor-
outro. tunidade de se afirmar como perten-
Simone - Não poderíamos dizer que centeàclassemasculina. ~certo que, em
hã nisso uma espécie da falta de visão? falar do tempo que fp. lã fora, das Sartre - Se você quer assim... muitos casos..~. ela assimila os princípios
Costumamos tomar as relações ho- pessoas que passam, do aspecto da rua, burgueses. r; certo que, em muitos
Simone - Voltando ao machismo,
mens-mulheres como algo dado, de coisas que sempre fiz com as mulheres caso~ ela assimila os princípios bugue-
ainda é preciso especificar. Afinal de
modo que aparece como natural, algo e que, com elas, me dava uma impres- contas, foi você quem me animou viva- ses. r; certo também que a mulher de
que não se vê. são de igualdade. Embora, com certe- mente para que escrevesse «0 Segundo um burguês se mostra, normalmente,
Sartre - Acho que você tem razão. za, fosse eu quem conduzisse a conver- como burguesa. Expressa frequen-
Sexo•. E quando o livro estava pronto,
Quando jovem, eq acreditava na su- sa. temente, e até com mais força, as mes-
você aceitou todas as teses, enquanto
perioridade do homem, o que não ex- Simone - Porém, no fato de ser você o mas opiniões do marido. E, de certo
certas pessoas, comoCamus, por exem-
cluia que existisse entre ele e a mulher condutor da conversa, e era normal que plo, quase me jogaram o livro na cara . modo, imita a conduta do marido. Por
uma certa igualdade. Parecia-me que, o fosse, havia um componente de cma- exemplo: é ambígua em relação à sua
Foi nesse momento que descobri o ma-
fora de casa, as mulheres eram tratadas chismo•. Por outro lado, d.evo lhe dizer chismo em um certo número de homens doméstica, apresenta uma atitude du-
como iguais aos homens. Em alguns que. no conjunto de sua obra, quando a que eu acreditava serem verdadeira- pla frente a ela. Hã uma certa cumpli-
casos o homem era altaneiro, orgulho- relemos, encontramos pegadas de «ma- mente democratas, tanto em relação ao cidade de sexo, que é a relação femini-
so, autoritãrio em suas relações com a chismo• e até de falocracia. sexo quanto ao conjunto da sociedade. na propriamente, em nome da qual a
mulher. Meu avô é um exemplo. No Sartre - Você exagera um pouco. burguesa faz confidências à emprega-
entanto, para mim, isto parecia apenas Mas, enfim, -creio que seja verdade. 'Sartre - Sim, mas antes é preciso da, que as compreende e que pode
um traço de carãter. Simone - Mas, você não se sente dizer que, nas nossas relações, eu sem- justificar a confiança da burguesa por
Simone - Mas você mesmo acaba de machista? pre considerei você como uma igual. determinadas reflexões; do outro lado
dizer que, em suas relações com as Sartre - De certo modo sim, uma vez Sbnone - Dito isto, você·aceitou «0 está a autoridade, que é uma autorida-
mulheres, que foram muitas, às vezes que era eu quem iniciava. as. relações, Segundo Sexo•. E esse liyro não mudou de adquirida apenas através das rela-
você as via como iguais e, às vezes, em um plano ou em outro, se a mulher você em nada. Devo dizer que nem a ções com seu marido.
como não iguais. Quer dizer que, como estivesse de acordo. Mas era eu quem mim, porque acho que, naquele mo- Simone - Há muitas mulheres que
você me observou uma vez, devido à fazia as primeiras tentativas. E não mento, n6s tinhamos a mesma atitude. não são, positivamente, conscientes de
sua opressão, elas eram iguais aos ho- tomava o machismo com algo prove- Acreditávamos que a revolução traria sua opressão, que acham natural faze-
mens mesmo não o sendo? Quero dizer niente da minha condição de macho, consigo, necessariamente, a emancipa- rem sozinhas todo o trabalho doméstico e
que, como. é mais difícil para uma mas sim como uma característica parti- ção da mulher. Nos desencantamos cuidar das crianças. O que voc_ê acha
mulher ter tanta cultura, conhecimento cular da minha pessoa. muito, depois, porque nos demos conta do problema que se apresenta às mulhe-
e liberdade como o homem, uma mu- :a
Simone- interessante, porque você de que nem na União Soviética, nem na lheres do Movimento de Libertação Fe-
lher poderá parecer-lhe como igual, foi o primeiro a dizer que a psicologia, Checoslováquia, nem em qualquer um minino, quando estão em presença,
mesmo não tendo cultura, liberdade e a interioridade, s6 é a interiorização de dos chamados paises socialistas que suponhamos, de trabalhadoras, que
outras qualidades? uma situação. conhecemos, a mulher era igual ao têm seu trabalho em uma fábrica e que
Sartre - 'Hà algo ÔlSso. Eu achava Sartre - Sim, eu via a situação do homem. Por outro la<Jo, isso foi o que ainda são exploradas em casa, pelo
que essa mulher possuia um certo tipo homem de nossa época. E via por um me decidiu, a partir de 1970, a adotar marido? Você acha que se deve, ou
de sentimento e uma maneira de ser prisma de superioridade individual. uma atitude francamente feminista. não, abrir-lhe os olhos a respeito dessa
que encontrava em mim. Por isso me Não se pode esquecer, também 'O con- Com isso quero dizer uma atitude que opressão dom6stica?
sentia capaz ·de conversar com mulhe- fesso, que além de minha idade e sexo, reconheça a especificidade da luta fe- s.rt;re - Por certo. Mas 6 evidente
res muito melhor do que com homens. eu me atribui muita superioridade so- minina. Você, por outro lado, me se- qúe, no momento atual, existe.uma
Com estes, a conversá cai sempre em bre muitos homens. guiu nesse caminho, mas eu gostaria de separação entre as mulheres burguesas
problemas de trabalho. Sempre se chega Simone - Quer dizer que a idéia de precisar até que ponto. O que pensa ou pequeno-burguesas e as trabahad()-4
a falar das relações eeonômicas do mo- ~õuperioridade não lhe parecia algo par· agora da luta das· mulheres por sua ras. No fundo elas têm os mesmos
mento, ou de gramática, conforme seja ticular em suas relações com as mulhe- libertação? Por exemplo: como você interesses e, por outra parte, continuam
um comerciante ou um professor. Mas res, porque vucê a sentia com todo pensa que ela se articula com o conjun- sep8.1·adas umas das outras. Tudo isso
é raro que se possa sentar em um ca.fé e mundo? to das lutas sociais? se deve à separação social que atinge

46
Simone · Deve se dizer também, que
seus maridos, porque são obrigadas a sempre se corre o risco de servir de
espelhar as idéias sociais dos maridos. coartada (provocando réplicas e defe-
Simone • Minha pergunta é muito sas) frente aos olhos daqueles que se
precisa: deve se sublevar, de alguma combate. Isso me recorda a idéia de
maneira, a mulher contra o seu mari- .pregar uma peça em ···"Uma pessoa Simone • At você apresenta ouua
do, quando este aparece, ao contrário, não pode empreender nada sem pregar questão, a da •feminilidade". NeJÚluma
como o único refúgio contra a outra Desse modo, considero que certo nú- uma peça, de uma ou outra maneira, de nós admite a idéia de que haja uma
opressão, a que a mulher sofre no mero de mulheres, com a condição de em alguém. Por exemplo: não vão dei- natureza fe.ninina. Mas, acaso cultu-
trabalho? que pertençam ao mesmo movimento xar de escrever, sob pretexto algum, ralmente a situação de opressão da
Sartre- Aí há uma contradição. E há igualitário e feminista, devem - porque que .e mbora se escreva contra a burgue- mulher não lhe desenvolveu certos de-
que se considerar que é o contrário do pode · ir até o final da escala social sia, esta nos recupera como escritor bur- feitos. asstm cómo certas qualidades,
que habitualmente se diz. A contradi- pàra mostrar que não estão desprovidas guês. Quanto a isso, estamos de acor- que diferem do homem?
ção maior é a luta de sexos e a contradi- de inteligência. No momento atual me do. Estamos de acordo em que a mu- Sartre · Certamente. O que não im-
ção menor é a da luta social. Na medi- parece que essas duas categorias de lher tenha as mais altas qualificações. Plica Que, nuir futuro mais ou menos
da em que a mulher se encontra sofren- mulheres são indispensáveis, deixando Apenas eu distinguiria duas coisas: a distante, se o feminismo triunfa, tais
do uma dupla opressão, a luta de sexos claro que a categoria elitista é •delega- qualificação e o cargo. Porque, mesmo principias e essa sensibilidade devam
é prioritária. Acho necessário que a da•, de alguma forma, pela massa fe- que ela seja qualificada, deve aceitar continuar existindo.
mulher trabalhadora invente uma sin- minina, para provar que nessa socieda- cargos que impliquem na manutenção SiGone - Contudo, se nos conside-
tese diversa, segundo os casos, entre de, fundada sobre as elites e a injustiça, de hierarquias que não se desejam? ramos detentoras de certas qualidades
sua luta como trabalhadora e sua luta as mulheres podem pertencer· a uma Sutre - Acho impossível conceber, -positiva~ não seria melhor comunicá-las
feminina, e que não minimize nem uma elite como os homens. O que parece atualmente, uma qualificação que não aos homens, em lugar de suprimi-las
nem outra. Não penso que será fácil, necessário, porque, desse modo, desar- conduza a cargos. Nesses cargos a mu- nas mulheres?
mas é nesse sentido que deve ir o mará uma parte dos homens que estão lher pode conseguir mudanças .. Sartre· h possível, de fato, que um
progresso. contra as mulheres, pretextando uma Simone - O que se pode dizer é que maior conhecimento de si, mais interi-
Simone - Agora, tem outra pergunta inferioridade, intelectual ou outra, das há cargos que os homens recusaram. or, mais preciso, pertença mais a mu-
que eu gostaria de lhe fazer, que me mulheres em relação a eles. Depois de tudo, uma mulher deveria se lher e menos ao homem.
parece importante, e que é discutida Simone • Poderíamos dizer que isso recursar a ser inspetora ou ministra do Simone - Quando você disse, no iní-
dentro do Movimento de Libertação os desarmará, mais não os convençerá. governo, No fundo existem as mesmas cio, que lhe agradava mais o contato
Feminina: a relação que se deve estabe- Querem pensar nas mulheres como in- possibilidades, tanto para uns como com mulheres do que com homens, não
lecer entre o que podemos chamar a feriores porque desejam os primeiros para outras. Mas, as mulheres correm seria devido á opressão, ao fato das
promoção e a igualdade. De um lado lugares. Mas não existe um perigo de muito mais riscos de cair na armadilha, mulheres escaparem de certos defeitos
somos partidárias de uma sociedade que essas mulheres provoquem uma porque irão exercer o poder que esta masculinos? Você dizia, constantemen-
igualitária; de outro lado, queremos réplica perigosa? Sobre isso houve tam- qualificação lhes atribui dentro de um te. que elas são menos •cômic!ls do
alcançar as mesmas qualificações que bém, dentro do Movimento de Liberta- mundo de homens que possuem quase a que os homens.
os homens, obter as mesmas possibili- ção Feminina, diferentes tendências a totalidade do poder. E isso nos leva a Sartre- E verdade. A opressão neste
dades no início de uma carreira, os respeito da senhora Chopinet, a primei- outra pergunta, muito controvertida caso conta muito. Quando digo •menos
mesmos salários, as mesmas possibili- ra graduada na Escola Politécnica. Al- dentro do Movimento de Libertação cômicas•, quero dizer que, na medida
dades de chegar ao alto da hierarquia. gumas diziam, como eu: · Mutto bom Feminina: as mulheres devem recusar na em que o homem se constitui como um
E nisso existe uma certa contradição. que ela tenha podido provar sua rapa- íntegra este universo masculino ou fazer homem médio, apresenta condições
Sartre- A contradição existe de an- cidade•. E outras respondiam: •Os ho- parasi um lugar dentro dele? Devem exteriores que o tornam verdadeira-
temão porque há uma hierarquia. Se mens vão se servir disso como alegação roubar o instrumento ou devem mudá- mente cômico. Por exemplo: quando eu
supomos um movimento, como eu o de defesa, dizendo que nos dão as lo? Quero dizer: tanto a ciência como a atnõuía mr.u machismo a uma quali-
desejo, que suprima a ,hierarquia, a mesmas possibilidades, que afinal nós arte, como a linguagem, todos os valo- dade pessoal, e não a uma ação do
contradição cessará. Quer dizer: as podemos atingir o mesmo ponto que res, tudo está marcado pelo selo da mundo social sobre mim, eu estava
mulheres serão tratadas exatamente co- eles. e que, portanto, não poderemos masculinidade. h nece~ário recusar sendo cômico.
mo os homens. Haverá uma igualdade mais dizer que somos mantidas em tudo isto, partir do zero, reinventar? Simone - Você quer dizer que o
profunda entre o homem e a mulher no condições de inferioridade•. O que você Ou é melhor assimiliar tais valores, homem é mais facilmente passível de
trabalho e essa questão não se suscita- pensa desse perigo? apoderar-se e servir-se deles para os um engano?
rã. Mas deve se considerar as coisas Sartre · Penso que existe, embora a fins feministas? O que você pensa dis- Sartre - Mais facilmente e, por isso
hoje. Os próprios homens são bastante resposta que se tenha que dar aos ho- to? mesmo, mais facilmente cômico. A so-
iguais no que se refere aos empregos mens seja fácil e você fez isso com toda Sartre - Isto coloca o problema de ciedade dos homens é uma sociedade
secundários e aos empregos mal remu- a facilidade no número de Temps Mo- saber que há valores especificamente cômíca.
nerados ou que exigem poucos conheci- dernes consagrado às mulheres. Cer- femininos. Constando, por exemplo, Simone - Em geral, porque cada um
mentos. Ao contrário, existem os em- tamente o perigo existe. E por isso que que as novelas femininas tentam, fre- interpreta papéis e é inteiramente afe-
pregos muito bem pagos, que conferem esse tipo de mulher de que você fala,é quentemente, abordar a vida interior tado por tais papéis?
um poder e exigem um saber. Parece- uma criatura ambígua: pode ju~tificar de uma mulher, e que suas autoras Sartre - h isso. A mulher, como
me legítimo que a maioria das mulhe- a desigualdade e só existe como delega- servem-se de valores masculinos para oprimida, é quase mais livre. em certo
res se una para obter a igualdade abso- da, de alguma maneira, da mulher que apresentar os feitos femininos. Hã al- modo, do que o homem. Tem menos
luta do homtm e da mulher no plano quer a igualdade. Apesar disso, creio guns valores propriamente femininos princípios para lhe ditar a conduta.
das hierarquias, para que estas não que, na sociedade atual, é impossível que estão ligados à natureza, à terra, h mais irreverente.
existam e, de outro lado, na sociedade descuidcü do fato de que há mulheres aQ vestuário, etc... Mas são valores Simone· Quer dizer que você aprova
atual, que dêm provas de serem iguais que fazem trabalhos de homens e que secundários, que não correspondem a a luta feminina?
aos homens até nos cargos de elite. tem tanto êxito guanto eles. uma realidade feminina eterna. Sartre- Totalmente.

DE FATO
O melhor de Minas CAf~ PARIIVENTi ANIMA
uma revista de
Em São Paulo você encontra
na Livraria Chris, no letras, artes, indagação.
Café Paris , na Livraria Look
Na Livraria Ciências Humanas.

DOIS PONTOS
LAMPIÃO um grande jornal
um pequeno jornal de estudantes
com grar:wdes verdades da U.S.P.

..
47
... da com mUtta frequência pelo pitoresco e.
pelo ex6t1co, mas sobretudo por cem anos Repórte r
Porandubas·
'
·I de mofo. apesar das melhores 1ntenções.
A este propósito convém repetir uma for-
'· mulação mu1to conhecida de Adorno, mas
da qual multa gente se esquece (mmha
indesejável 11
noticias - em ling~a tupi-guarani tradução é indíreta) Se o romance quer
permanecer fiel à sua herança realista e
O que chama a atenção no trabalho
jornalístico do alemão Gunter Wallraff não
continuar dizendo como são realmen te as é apenas a repercussão de suas repor·
coisas, tem de renunciar a um realismo tagens, mas o proJeto que as orienta e o
vras •pegadeira• e •piranha• são as ma1s que, ao reproduzir a facha da, não faz método de sua execução. Po1s este repór-
Entre a leves. Tome humor carioca.•
Nos últ•mos dois IIVfos aparece aqui e
senão põr-se a serviço do engodo oper!ldo
por esta. (Boris Schnaidernnan)
ter-escntor alia o sangue fno a uma pa1xão
tensa pela verdade- mesmo quando preci-
ali a palavra •merduncho... O termo é sa (é ele quem o diz) enganar para não ser
explosão e o saboroso, mas. como um limite para a lin- enganado. Para atingir esse ObJelivo, ele

bom tom:
guagem não-convenc1onal, é muito pouco.
Na realidade, este aspecto é apenas
uma das manifestações, e não das mais
importantes. do problema. O escritor po-
Música ,
necessaraa
. •
não pode, obv1amente, ficar preso aos
moldes de uma pesquisa convencional.
Por isso, entrega-se de corpo e alma ao
tema que o apaixona.
João Antonio deria não usar nenhuma palavra •forte• e.
no entanto. desart1cular a linguagem com- Mais triste que uratau,
Não se trata. aqui, de uma metáfora
batida. Prova disso é que, para escrever
portada e comedida de todos nós. É uma Mais chucro que pantanal, sobre as condições de trabalho do operá-
questão de dinâmica interna da obra. O Meu canto t radicional rio alemão, ele passou dois anos traba-
Por mais que Joáo An tOnio dê entrevis- certo é que sem esta desarticulação, o há de cru zar mil fronteiras.
tas agressivas, falando de nosso ccmiserê lhando na linha de montagem de uma
próprio mundo comedido e regrado da fábrica de automóveis, na alavanca de
cultural» e tentando sacudir a modorra do classe média sobrepõe-se aos ambientes Ass•m canta Noel Guarani. Usa o violão
amb1ente, com o lastro pesadissimo de e personagens descritos. apropriadamente chamado de guitarra. E uma máquina de cortar canos e nas de-
acomodação que este carrega, sua litera- este se une a sua voz, um ch•cote, desses pendências de um estaleiro e de uma
tura não acompanha esta atitude de rebel- Falei em sintaxe arrumada. ~ verdade longos, que serve. para tocar o gado, em usina siderúrgica. Os resultados. em ter-
a
dia ou, pelo menos, não chega rebeldia que de quando em quando João AntOnio
se permite um pouco de ousadia nesse
um •Corredor•, na caminhada para o •ba- mos profissionais, dessa experiência, fo-
total. ao rompimento de todas as barreiras nhCJ" Na verdade, violão e voz são outra ram as matérias candentes incluídas no
de expressão terreno também. Mas são osadias tlmidas, livro ~lndustriereportagen• . Não é difícil
limitadas. Nenhuma delas ultrapassa a se- coisa: o homem e seu cavalo.
Devemos reconhecer: ele trouxe para a Noei Guarani é um homem da frontei- perceber que o alcance e a profundidade
guinte passagem do primeiro livro: •Lá na
literatura todo um mundo de vagabundos, ra-sul. ,t~oje, está aqui; amanhã ali, como desses documentos jornalísticos ultrapas-
Liberdade achei ótimo o Toshitaro. Nunca
de rufiões, de prostitutas e mendigos, ontem. Gravou três discos, numa vida sam de longe as dimensões de um traba-
com sua linguagem, seus gestos, seus VI ninguém como•. (•Fujie•) . cheia de aventuras, peão solto no mundo lho que se c.ontentasse com perguntas
costumes. e este feito já é considerável. O mesmo se pode d1zer das imagens, Andou de fazenda em fazenda, andanlho, mais ou menos anódinas á administração,
Mas. nota-se bem: ele trouxe esse mundo, dos cortes, da •marcação• das cenas. Um violão ás costas . Nem em Porto Alegre é ao chefe de pessoal e aos próprios traba-
isto tiil conseguiu incorporá-lo à lingua- pouco de ousadia, tudo limitado pelo bom fác11 achar seus discos. Nem em Porto lhadores dessas mdústrias.
gem policiada. ao padrão literário herda- tom geral. Outro exemplo (os exemplos podem ser
Alegre é muito conhecido este Atahualpa
Este escritor que já conseguiu bastante.
do, ~ s•ntaxe arrumada, enfim ao mundo Yupanqui brasileiro. Porto Alegre fo• inva- multiplicados): querendo examinar de per-
parece bem capaz de 1r mais longe e fazer
bem cc~osto e •civilizado• da classe dida por uma meninada roqueira. Sinto- to o estado real err. que vivem os mterna-
méd1a, da qual essa linguagem é a expres- explodir as boas maneiras literárias que maticamente, o mais importante dos dos de um hosp•tal psiquiátrico, Wallraff
todos nós carregamos. Um grande poeta
são acabada. grupos de rock de Porto Alegre chama-se não optou pelo caminho rotinizado de uma
Desde Malagueta. Perus e Bacanaço até falecido recentemente, que escreveu pou- VISita dirigida , onde poderia, no máx1mo.
co e nos deixou tão cedo, Torquato Neto, •Bobo da Corte •.
os do•s últimos livros, o que predomina é Noel é um trágico. Costuma dizer que anotar aquilo que lhe tosse mostrado.
que deveria ser muito mais lembrado
sempre o bom tom, a frase concisa e vai morrer cedo, provavelmente •talhado" Preferiu apresentar-se ao hospital como
domada, o gosto pelo equilibrado e decen- quando se fala tanto em fundir jornalismo num •boch.ncho•. como esse •bochin- alcoólatra, disp.,sto a submeter-se ao tra-
te Os ambientes são muitas vezes os e literatura, ele que fundiU mara•,ilhosa- chot;. baile em chão de terra batida ,que ele tamento efetivamente dispensado a esse
ma•s sórdidos possíveis, os fatos nar- mente crónica de jornal. poesia, mul.IC8 descreve em seu último disco.Mastambém tipo de pacientes. Dessa forma. foi admiti-
rados também, mas o narrador é quase popular e cinema, escreveu: «Escute, n•eu sabe ser alegre e debochado, como em do. por sua própria conta e risco, na
sempre imperturbável, alguém que sabe o chapa: um poeta não se faz coll" versos. 1: «Cilamarrita sem fronteira ... Ele é um mis- comunidade concreta do mantcõmio, pas-
o risco, é estar sempre a perigo sem
que é bom tom e linguagem d ist .nta. Em s•onelro, um índio descendent~ dos índios sando a viver o cotidiano de um mundo
Malhação do Judas Carioca, há um pós- fá- medo, é inventar o perigo e estar sempre da República Guaranit ica, que o Versus- inacessível aos que se encontra fora dele.
cio (ccCorpo-a-Corpo com a Vida»). no qual recriando dificuldades pelo menos maio- dois most rou. A República Gua.ranitica foi Pôde, com isso, colher a vivência e o
o autor afirma que, voltando os olhos para res, é destruir a linguagem e explodir .:om chacinada por uma Sagrada Aliança Colo· material necessérlos a um relato impres-
seu primeiro livro vê como qualidade es- ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: nialista. Dizem que os missioneiros são sionante--de dentro• - sobre esses espa-
perigoso, divino, maravilhoso».
sencial o fato de que ali tudo é narrado homens tristes. Ele é um descendente de ços sombrios de que o leitor em geral
segundo o ponto de vista dos pobres E é justamente o que está faltando a Sepé Tiaraju, que morreu bem antes de costuma ficar distanciado (e protegtdo).
João Antônio: este oclnventar o perlgon, Foram •máscaras• como esta que pos-
diabos seus personagens, no entanto não outro índio guerreiro, Tupac Amaru (Ver-
tenhamos dúvida· tanto no primeiro livro este •destruir a linguage'm e explodir com sus-trts). sibilitaram ao repórter tomar o pulso de
ela•.
como nos dois últimos, o narrador sempre
Em lugar disto, ele fica repetindo com Ele tem uma voz densa como as coisas muitas condições sociais encobertas pe-
exerce a função de policiar, dar o tom fino,
extrema autocomplacência: Malagueta , que canta. Não seria possível encontrar- los instrumentos de dominação - sem
apurar. Ele se permite um pouco de gíria, mos os discos dele em todo o Brasil? Noel excluir, é claro, a própria imprensa. Assim
agora mais que antes, mas nunca ultrapas- Perus e Bacanaço já é um clássico de é que, movido por um zelo detetivesco
nossa literatura. Está certo. Um conto Guarani e seu dísco ... •Sem fronteiras•,
sa a fronteira do bom gosto. Seus persona-
como • F ujie~. do primeiro livro, pode real- lançado pela Coronado, da Odeon, é um pela verdade, Wallraff já se disfarçou de
gens se expressam, mas sempre falam pela
me;,te figurar nas antologias ao lado dos pedaço desconhecido do Brasil a cavalo. quase tudo, desde estudante até operário
metade. O narrador é tipicamente pudico e
nossos bons exemplares no gênero. Mas No próximo Versus, publicaremos uma em mmas de carvão - sem contar •inter-
não se permite as grossuras tão comuns no
será suficiente? ~ um brilho acabado e longa entrevista-depo•mento deste gaú- mezzos• recambolescos nos papéis de
que se escreve hoje em dia. De um lado,
consumido, a glória academizada das an- cho-índio a nosso companheiro Carlos produtor de Napalm para a guerra no Viet-
tem-se a vantagem de evitar o palavrão pelo Alberto Kolecza. Vítor Vieira nã e cand•dato a espião da polícia
palavrão, tão encontradiço e tão sem graça, tologias. Logo, a consagração pelas anto- politica interessada nas atividades da jo-
sem força expressiva. na ficção e no tea- logias não de1xa de ser um prêmio de bom vem esquerda alemã. Dessas incursões no
co~portamento. Ora, é isto que 1mporta? mundo real que fervilha atrás das aparên·
.tro . Por outro lado, fica marcado um ex-
A carga de linguagem explosiva que
cesso de contenção uma postura ética que
parece manter d•stanciamento do mundo João Antônio está be~rando, que ele co-
nhece como ninguém, é r~almen te espan-
Repórter cias e da desinformação, surgiram os tex-
tos ao mesmo tempo elaborados e crua·
mente objellvos das •13 Reportagens Inde-
descrito
Veja-se um exemplo desta contençãv.
( .) ocescrevi-lhe num bilhete palavrões
tosa. Em lugar dela, apresenta-nos perío-
dos bem torneados como: «Por que diabo
houve de se mc.ter com1go?• (Ainda •Fu-
indesejável I sejáveis•, livro que tem um lugar garanti-
~o na literatura jornalistica relevante da
nossa época.
infamantes, muito piores do que aqueles jie») Mas a carreira de Waliraff não começa
que escrevíamos nos armários do vestuá- Ao mesmo tempo, é preciso reconhe- Apresentando-se como representante nem term1na com este volume. Já em
rio da U.M.P.A. «Sua isso, sua aquilo .. cer: ele parece mais próximo da explosão de uma organização de extrema-direita da 1963, com 21 anos de idade, ao ser convo-
(ccAfinação da arte de chutar tampinhas», a que me referi há pouco. Foi multe. co- Alemanha Ocidental, o jornalista alemão cado para o serviço militar obrigatório, o
em Malagueta , Perus e Bacanaço). mum nas criticas ao:. seus dois últimos Guenther Wallrafl viajou pelo norte de repórter alegou motivos de consciência
E agora uma descrição dos encontros livros um toque saudosista: ah, onde está Portugal, conseguindo manter contatos como recusa ao alistamento. Chocados
do malandro Bacanaço com o menino oJirismo do primeiro livro? Onde estão os com os militantes do fascista Movimento com a obstinação demonstrada pelo recru-
Perus (no con to que deu titulo ao livro ): Democrático de Libertação de Portugal ta rebelde, as autoridades determmaram o
ccMas se cumprimentavam aos palavrões. seus personagens tão expressivos?
Não concordo, de modo algum. O conto De contato em contato, chegou a um seu envio a uma cllnica ps•qu•átrica, onde
Quando se topavam, por malandragem ou m1sterioso •general Walter», que seria o f1C~tJ um bom tempo em observação Foi,
negaça do jogu1nho, se encaravam. Picaf- «Paulinho Perna Torta• de Leio de Cháca-
ra, com o produto acabado, pode figurar ao chefe supremo da organização terronsta. entao taxado como •personalidade anor-
dia. E quem não soubesse d~ria que acaba- Em Madrid, finalmente, ficou sabendo mal" e declarado incapaz, em caráter defi-
lado dos melhores do primeiro livro. Mas
riam se atracando. Um querendo comer o quem era o •capo•: nada mais que ex-ge- nitivo, para tempos de guerra e paz. A
não é o que importa. No me1o da confu-
outro pela perna." neral António de Spinola. Para denunciar a tirada médico-jurídica foi o recurso que a
são total que é Malhação do Judas Cario-
Está claro que esta contenção tem sua ca, no meio de tanta anotação circuns- conspiração que se tramava contra a de- Bundeswehr encontrou para se sair do
graça. Mas também marca l1mites para a tancial, que ás vezes parece caderneta de mocracia portuguesa. conseguiu que o ex- •affaire• embaraçoso. O jornalista escre-
expressão. E Brecht Já nos ensinou como etnólogo em visitaao bas-fond, há trechos presidente tosse a Dusseldorf para uma veu, por seu lado, um diário em que relata
n1nguém que a técnica literária não é que se aproximam muito da explosão que reunião onde sena discutido o financia- todos os lances do episódio. O livro não
inocente usando pura e simplesmente todos esperamos. •Galeria Alaska• não é mento de um golpe a ser desfechado em to• publicado, mas pode-se 1mag.nar o seu
instrumentos desenvolvidOs pela burgue- propriamente um conto, mas poucas pág•- Portugal depois das eleições. No encon- teor.
sia no século XIX, não nos desv.nculamos nas de nossa literatura nos dão este cheiro tro.Spinola pediu armas, munições e d•- Acrescente-se a esses dados uma escri-
de sua ideologia. que impregna a lingua- esta morrinha, esta maresia de ba1rro nhe~ro, garantindo que os comunistas. ta lapidar (onde se concentra o esforço de
gem praiano socialistas e todos os elementos que apó- imparcialidade), o senso de desconfiança
Passados os anos João António cont•· Enfim, é o caso de arremeter pra frente, •a:n o governo português seriam extermi- diante do que é apenas apare'nte, e a
nua muito ma•s pudico que os seus per- largar sem olhar pra trás! E tudo o ma•s é nados fisicamente. A reunião foi devida- conv•cção de que Informar reveste um
sonagens, conforme se pode ver por esta brilhareco de antologia. mente gravada e fotografada e decorreu ria sentido de missão - e nesse momento se
passagem de .. Malhação do Judas Cario- presença de testemunhas insuspeitas, en- terá uma noção de quem é este repórter
ca», no l ivro do mesmo nome: POST-SCRIPTUM tre elas, o presidente da Liga dos Dire•tos Inquieto. A Imagem fica mais plástica- e
•Pendurado a um poste defronte a uma Humanos da Alemanha Ocidental. mais completa - quando vem á lembrança
companhia de armazéns gerais, um judas- Há uma questão importante que deixei Todas as denúncias de Wallraff foram a noticia de Wallraff acorrentado a um
mulher. Fantasia de mulher, bolsinha de de abordar ac1ma. Os CM tos e crónicas de publicadas pela revista alemã •Stern .. e, poste, no centro de Atenas, distribuindo
couro e o resto do componente de colares, João Antônio contnbuem para a onda de em Portugal, pelo •O Jornal•. Isso provo- um manifesto contra a ditadura militar gre-
embelecos, penduricalhos. Expõe pala- neonaturalismo que se espalhou por ai, cou e expulsão de Spinola da Suíça. ( ga, pouco tempo antes de sua derrubada.
vrões infamantes e xingos, onde as pala- resul tando numa literat ura verista, marca- António Tadeu Afonso) (Modesto Carona).

48
do que os homens, nunca aceitou que em
sua profissão, pelo fato de predominarem
as mulheres, os direitos trabalhistas fos-
Mulheres sem esquecidos, como não aceitou ser
responsável exclusica pela cozinha, numa
casa onde todos trabalham. Muitas conti-
em ação nuam ainda vendo a si próprias com os
olhos de seu opressor imediato - que
pode ser um marido, um gigolô, a patroa -
Para Gino t sempre fascinante acompanh~r o nas-
cimento e o crescimento de um grupo em
e algumas dessas enlouquecem antes de
descobrir que hà muitas outras, e outros,

eneghetti torno de uma idéia. A idéia começa não


tendo forma definida se espraia em várias
direções, numespaçoquepareceinfinlto-
no mesmo barco que elas. O que nós
pretendemos então é ajudar estas pessoas
a descobrir isso, a ter consciência das cate-
Ele jà tinha aquela mâscara de eterni- onde tudo pode cabere vai lentamente gorras em que estamos todos metidos,
Oade, quando o conheci. Olhei para ele e sendo desbastada até caber nos limites do cada uma delas desenhada com a exata
pensei: • esse homem tem uma estranha possível. As pessoas começam se encon- finalidade de dar a impressão de ter sido
relação com a morte." I amos (Sérgio Ca- · trando porque têm certas afinidades na fe ita sob medida, quando basta olhar o
bral e eu) ouvir suas memórias marginais maneira de ver as coisas que as interes- mundo que faz divida com o nosso - e
para o aPasquim .ro Gino Meneghettl não sam, as coisas do seu tempo. Nessas não apenas ser olhada e aceitar esse
aceitou cheque como pagamento. Cansou discussões algumas afinidades se acen- olhar- para perceber que, como tudo nesta
de ser enganado por jornalistas, expli- tuam, outras desaparecem: o grupo se faz socredade em que vivemos, elas são pro-
cou. Achava que os jornais faziam parte de e se refaz, se fortalece. E nasce uma duzidas em série (Nós Mulheres).
um sistema de mentiras e opressões que vontade de um entusiasmo por fazer coi-
sufocavam os Zé da Silva. Escrevia cartas sas, por particular da criação do mundo. O
nos anos 20 perguntando aos dlretores jornal Nós Mulheres està sendo criado
dos jornais de São Paulo: ocpor que vocês assim, aos poucos se transformando num
não se preocupam mais com a vida dos espaço limitado - o número um - onde
Retaguarda?
operàrios e menos com vulgares ladrões?• cabem apenas algumas daquelas tantas
Era uma tarde de sol de alguns anos idéias que a gente tir.~a. apenas algumas
atràs. Salmos caminhando. Lentamente. daquelas coisas, tantas que a gente quer Tornou-se moda atacar a vanguarda.
Multas vezes vagamente, sem precisar os
Aos 90, ~le arrastava-se como um lagarto. sobre a situação da mulher no Brasil Por
Caminhava ao sol, com prazer. Era como isso vamos fazer muitos outros números termos, exorcismo indefinidos fantasmas.
~ este propósito, convém lembrar: Brecht
se o sol de Gino Meneghetti fosse diferen- depois desse primeiro. O grupo cresce
te do sol dos outros. Era o· prazer pela luz também: duas pequenas notas - uma t\ vanguarda, Maiakóvski é vanguarda, e
como tais foram atacados pelo que havia
e pelo calor de um homem que passou boa publicada em Versus, outra na revista No-
de mais retrógrado nos respectivos pai-
parte da vida em prisões escuras, em va - jà trouxeram muitas cartas e pes- ses.
solitàrias de dois metros,no cimento e no soas até Nós.
Identifica-se progressismo com um rea-
aço. E là ia o velhote, devagarinho, e -· Nós somos um grupo de mulheres que
lismo de fachada e decadência com van-
quando passava uma mulher bonita, ele de tanto desgostar da maneira como é
guarda. Mas, neste caso, faz-se praça de
dizia; •escultura. • Era bÓníto ouvir o velho mulher é tratada nesta sociedade, resol·
uma espantosa falta de memória histórica.
dizendo •escultura•. vemos parar com as reclamações indivl· Basta pensar no atraso que isto acarretou
As histórias de sua vida se desdobra- duais e tentar descobrir, juntas, o que no~ em anos recentes na Rússia, para se ver
vam Aas vertentes do humor, da tragédia e aproxima e nos separa de outras mulhe-
aonde este primarismo nos pode levar. Por
do raeionallsmo. O humor dos roubos das res. Resolvemos fazer um jornal principal· este caminho, daqui a pouco veremos em
mansões - e das fugas, que evocariam as mente para a mulher que trabalha, porquE nossos jornais libelos contra a •arte dege-
comédias-pastelão do cinema mudo. A quem atua no mundo tem maiores chances nerada" e tudo o que ela produziu a partir de
tragédia das prisões, da tortura e da vida de conhecê-lo e de tentar mudá-lo. E ums 1900. Será preciso voltac ao tempo das
nos presidlos. O racionalismo de suas mudança difícil porque deve nascer dE anqulnhas? (Boris Schnalderman)
rígidas teorias sociais. E filosóficas. Era uma luta interna e de uma luta externa. A
contraditório e não se envergonhava; sa- luta é interna por ser um combate, dentre
bia que a contradição é do homem. Dizia de cada uma, contra uma série de padrõe~
não temer a morte, e temia. Suspeitava determinantes do comportamento da~ Movimento ~basbaon
uma morte por envenenamento. Ou tiro. pessoas do sexo feminino, e que durante
Só comia nos restaurantes depois que os anos foram se instalando dentro de Nós. ~
amigos provavam. Insinuava o conheci- uma luta externa na medida em que en· Durante quarenta dias, j04'nalistas e In-
mento de segredos altos, da copa e da contra resistências à construção deste no· telectuais trabalharam reunindo material 'História
Sincera da ~
alcova de figurões-carvão na fornalha de vo ser ainda incerto, e busca a solidaria· sobre a situação da mulher brasileira. No
seus medos. dade daqueles que, como Nós, não acei· princ(plo de maio, na redação do jornal
A sua teoria sobre as Instituições era tam como naturais imposições que são Movimento, em São Paulo, havia mais de
anarquista. Anarquista clássica. •A pro- sociais. Durante muito tempo as mulheres 400 laudas de informações, análises e

~~~b~J
priedade é um roubo.• Foi mais longe do a~eitaram a idéia de queJ:Ieveriam esquec· depoimentos. Cerca de 300 laudas foram
que alguns anarquistas livrescos. Foi rou- cer suas nec~ssidades especificas e lutar seleclonadas e enviadas para a Censura,
bar. A policia existia para defender a pro- - mesmo ao lado dos que as oprimiam - em Brasil ia, como é rotina com o {Tlaterial
priedade. Ele existia para negà-la. Com pela construção de um mundo melhor do Movimento. O que aconteceu? Às duas
algumas ferramentas e multa agilidade onde esses problemas não mais existiram. horas do dia 5 de maio o MoVImento
criou o mito do Robin Hood paulistano - Mas a experiência histórica nos ensina passou as matérias para a Censura. As
talvez o maior mito urbNlO da cidade, que co~cordar durante um certo tempo seis da tarde do mesmo dia, voltaram. Das 1
neste século. com corsas que nos desagradam profun- 300 laudas entregues, 2n foram vetadas.
~siquiatras discutiram Meneghettl. •Um damente, não é a melhor maneira de fazer )e 68 fotos mandadas,63 foram vetadas no
psrcopata que roubava por compulsão•. com que elas mudem: multas revoluções dia 1Ode maio de 1975, o jornal Movimento
Esta foi a teoria mais acatada. Jornais dos foram feitas em nome desse mundo me- não saiu ás bancas. (Tonlnho Mendes)
anos 20 falavam dele como um desafiante lhor e a particularidade da situação em Atenção, pessoal. VERSUS
da Moral Social. Certo é que para ele que os problemas nos seriam entregues está organizando um grande
roubar era viver. VIver era roubar. E quan- resolvidos.
do as pernas, as mãos, os olhos jà não Comparando a posição da mulher à de serviço, com o nome e endere-
eram bons, o Fantasma Glno Meneghetti outras categorias oprimidas - o negro, o ço de TODAS AS PUBLICA-
insistia em levar seu corpo ao roubo - e li preso, o louco, a criança - p~rcebemos COES DA PEQUENA IMPRE-
prisão, uma, duas, multas vezes. que cabe a Nós mesmas, que temos cons-
No roubo, seu corpo era delicado. Sen- ciência di reta de nossos problemas, traba- SA, além de dados referentes a
tia a rota das mansões. Dos cofres. Domi- lhar para que eles sejam expostos com assinaturas, condições para a
nava o escuro e o silêncio. Sabia ouvir mais frequência às pessoas, acostumadas compra de números Isolados,
numa respiração (do homem que dormia) a ver as coisas como elas se apresentam. etc. Escrevam para nós: Rua
o alerta ou a entrega ao sono. Corpo É por isso que nosso jornal vai dar multa
amestrado na faina do furto. Este domlnlo ênfase a depoimentos de mulheres, nas 1
Capote Valente, 378, Slo Paulo
o levava\ Idéia de que não era um ladrão mais variadas .situações possíveis, par~ - Jomal VERSUS, aecçlo PE-
mas um artista. A cidade era o teatro em deixar que elas próprias expressem os QUENA IMPRENSA.
que encenava a sua obra. Não se limitava à problemas que sentem em seu trabalho,
ação. Exigia a reflexão. Disputava o papel em sua casa, na sua relação com as
de herór com os policiais. Era Arséne pessoas. Acentuar a especificidade da si-
Lupin ensaiando golpes de Imaginação. E tuação da mulher nesta sociedade cha-
uma vez, por puro humor, foi à delegacia mar a atenção para o fato de que a mulher III Salão de Humor
discutir com um delegado a respeito des- recebe sobre suas costas alguns pesos a
tes larápios que •Infestavam a cidade.• mais do que o homem, não nos leva a
de Piracicaba- 1976
Momentos depois, na rua, telefonou para dividir o mundo em feminino e masculino. 1o 70.000,00
o policial dizendo que... ele tinha falado Como diz uma de nossas entrevistadas - ' 2° 20.000,00
com Gino Meneghettl ... lo ... lo ... uma mulher que foi tecelã durante 22 anos
Assustava e era amado. Porque era o e que agora não pode mais trabalhar devi~ 3° 10.000,00
ator que arriscava seu corpo. Como os do a um problema de coluna adquirido nas 4° 5.000,00
ciclistas loucos que cruzam cordões de várias fàbricas pelas quais passou: •Multa
aço no mais gratuito e no mais sério dos gente acha que esse negócio de movimen- 5° 2.000,00
gestos, a dezenas de metros de nossos .to feminista é contra os homens. Eu não
olhos, de todos nós, que perguntamos: vejo assim, não acho qu.e deva subir um
•mas por quelle faz Isto?• Foi o fo lhetim nos ombros do outro, acho que devemos
vivo de uma cidade. O palhaço, o trapezis- lutar todos juntos. As mulheres deviam
--
~
UM LIVRO IMPRESCINDIVEL • A Fes-
Entrega dos trabalhos
até 24/07/76
ta, o vilão e a vitima. participar mais•. Ela e muitas outras ta•. Seu autor é Ivan Angelo. Participou de
apontam a educação para a submissão uma reunli o de contos há 10 anos. E tor-
que as mulheres recebem em nossa socre- nou-se, com ele, figura fundamental da
Enviar trabalhos para
dade, o que as faz parceiras desiguais na lelturatura brasileira contemporânea. Ago- Secretária do Salão
Marcos Faerman luta por um mundo mais lgualitàrio. ra, volta com um romance composto, por
Essa mulher lutou a sua luta interna e contos que se Interligam, Versus-3 publi- R. Santo Antonio 687
continua brigando externamente cou um fragmento. Recomendamo s, com Pi racicaba São Paulo
nunca aceitou receber um salàrlo menor entusiasmo. Lançamento da Vertente.

49
''meu professor ,,
ninguém . Eu , ma1s meu irmão e meu p~imo
lamas correr. Meu pai segurou mmha mao e
d1sse: não corre não! V1 o pes.soal todo ~~"

e a natweza
de medo. O padre parou a m1ssa. Lamp1ao
desceu do cavalo, subru no altar e d1~se: seu
vigáno, pode contrnuar a m1ssa. Aqui a gente
não bole com ninguém . Pode contmuar Que
Façozoada
aquela mmhas
quemúsicas procurando
faz dois ammais im1tar
brigando. a depOIS a gente conversa. _ .
máquina da fábnca func1onando. as ~ves Gente velha que sofre do coraçao desmaia-
noturnas piando na mata, o barulho do m1lho va. O medo era demais. Ai cheg~u os quatro
pipocando na caçarola. cabras . Drsseram: menmos. voces sabem to-
Algumas vezes me inspiro nas festas que car o toque de Lamprão? Nós dissemos: a
hã lã no norte, as vaquejadas, as cavalhadas, gente sabe sim. Eramos em 4 : eu, meu ~rmão
ande soltam o bicho e ele vai embora. Faço Uma confissão de Benedrto, meu pnmo e meu pai. Era o ano de
música assim, por inspiração e não par parti- 1927. Tocamos. Um dos cabras v~rou para os
tura, nem poesia. Vem da evocação que Deus mestre Sebastião outros e disse: tão vendo? Essas cnanças
nos dá. sabem tocar d~sse je110 e vocês. cavalões,
A música é o seguinte: não é todo mundo Biano, da Banda de não sabem tocar nada na vida.
que tem o dom pra ela. Tem uns cabras que Enquanto isso Lampião lava conversando
fica 2. 3 anos numa aula e não aprende. Eu Pifaros, inventor de com o padre debaixo de uma árvore. Os
não aprendi por letra. As vezes tO dormindo e outros andando lá pelos me1os do campo. As
vem aquela música no pensamento como música popular. mulheres ficaram de pé, encostadas na pare-
~lguém me ensinando. Tem vez que eu gravo. de. As que eram preta lavam verde, as amare-
O cachorro fica acuando a onça de longe,
As vezes quando tO tocando, eu nem sei de las, azul. E assim começou a dança. Tinha
não ataca porque não agOenta uma patada
ande ela vem. E digo; O xente, de onde ela daquelas. Se ele se meter a besta, tê logo. AI um cabra de Lampião que carregava violão,
veio? Meu professor é a natureza. harmónica, toda qualidade de instrumentos e
ele fica ganmdo. Eu fiz uma música assim, o
Cavaquinho, por exemplo, eu aprendi a animava o bailado. Ai os cabras pegava as
cachorro apanhando da onça. Quem entende
bater sem ninguém me ensinar. E já toquei mulheres pra dançar. Elas não queriam, por-
como é, entende que o pile faz a mesma
em muitos casamentos. Algumas vezes em que eles fediam, e tinham um punhal que era
coisa, como se disesse assim: Ganhei, ga- mais de 1 metro. um fedor de macaco, mas
balizado. Passava a noite toda tocando cava- nhei! Depois de levar o tapa da onça, o
quinho, o meu irmão Benedito no triângulo. O fazer o que?
cachorro ainda continua gritando desse jeito, Os cangace1ros comeram carne de bode,
pessoal dançava que é o sol nascendo noutro
mas o grito vai morrendo aos poucos. porco, galinha. peru, jenmum e macaxeira.
dia e todo mundo ainda dançando. Toquei
tanto que a cabeça dos dedos fazia calo. Mas Outra música eu fiz inspirada nas cavalha- Depois, Lampião disse: meninos, tá na h\>ra.
das e vaquejadas que se faz lá no sertão. A A gente naquela altura jâ tava com medo e
como eu tava dizendo, as minhas músicas
cavalhada é um grupo de cavaleiros com uma fome. Eles foram embora. Nunca mais vi
vêm sempre através de animal. Mas tem. as
lança, que vem com toda carreira procurando Lampião
zoadas de máquinas também. Eu trabalhei 21 acertar numa argola. E quem acertar ganha
anos numa fábrica, peguei o ritmo das máqui-
um prêmio. AI me inspirei nesta festa bonita.
nas e fiz uma composição. 1': o ·Repicado do O SANTO DE JUAZEIRO
Na vaquejada aparece gado bravo que nunca
Pifano• . que está no nosso segundo Lp. Tem
viu gente. O cavaleiro segura a cauda do boi e Meu pai foi soldado do meu padinha Ciço.
também o •Cabaré•, que va1 entrar no disca arrasta. A poeira cobre tudo enquanto o b cho
novo, que é um pássaro, espécie de coruja Mas eu mesmo nunca fu i a Juazeiro. Tinha
fica de perna pra cima.
miudinha, que tem os olhos grandes. 1': pare- vontade, mas o acaso nunca deixou. Sabe
Uma vez eu . fiz um samba matuto. E 'o que tinha uma briga lâ, entre Juazeiro e
cido com cabeça de gato. Se ele canta é tõ tO •Retrato de Maria•, porque quando a gente
tõ tõ. Daquele canto eu fiz uma música, toco Crato? Pois é. Chegaram a fazer um grande
começa a namorar e completa a data do buraco separando as duas cidades. Crato era
do jeito que ele canta, sem tirar nem pôr.
Tem a briga do carneiro, que não foi grava- namoro, a gente se lembra muito mais. Co- mais rica, e seu povo não gostava dos fiéis do
meça desse jeito: meu padinha Ciço. Então teve tiros de ca-
da, mas que a gente mostra nos ~hows.
Chama •Os carneiros• mesmo, porque gosto nhão. Só que as balas vindo de Crato não
de botar o nome da inspiração. Vi dois carnei- Fez um ano que namorei com Maria chegavam a Juazeiro. parava no meio do
ros brigando, dando cabeçada um no outro e Namorei a noite inteira e repeti no outro dia buraco e cala ai. A guerra de Juazeiro foi
botei na música. Quando a gente se apresen- O retrato de Maria só me fez uma confusão combatida, mas não foi vencida.
ta, nós também damos cabeçada, a gente Ainda ontem vi Maria na palma da minha mão. Meu padinha Ciço sempre falava: hà de vir
chama carneirada lá no sertão. •Pipoquinhan o tempo do Sul virar sertão e o sertão virar
surgiu porque tem aquele milho de pipoca CANTIGA DE LAMPIÃO Sul.
miudinho, que a gente põe numa caçarola e dá t:: o que aconteceu. O sertão hoje tá jóia.
uma pipoca alvinha. Faz um barulho danado Eu vi Lampião. Ele era um amucrevador, Acabou aquela seca. De 33 pra câ não teve
enquanto estoura. E tem a •Pipoca Moderna... aquele que vive tangi nele o animal na estrada. mais seca. Chove todo ano, e é aquela fartu-
que é um milho de fazer xerém, pamonha, Não sei que confusão teve com o pai dele, ra.
manguzado, fubá, cuscus.l': um milho grande, que quando ele chegou de viagem viu o pai
mas tão grande que depois de sair da máquina morto. Vlrgullno Ferreira juntou os amigos: EM FAMILIA
fica do tamanho de uma bolacha. Ai eu chamei Naquele tempo era assim: bastava um fio de
de pipoca moderna. o Gilberto Gil gravou e barba para provar alguma coisa, como um Agora deixa eu apresentar a banda. Eu e
depois o Caetano Veloso colocou a letra. documento. Se o cabra precisasse de dinhei- meu irmão Benedito, que tem 63 anos, toca-
Mas não é só isso não. Tem outras fontes. ro, arrancava um fio e mandava através de mos pila nos. Meu sobrinho Gilberto (34 anos)
Por exemplo: minhamãemedavaumapisacom portador ao compadre, e este guardava dentro toca tarai, que é uma espéc1e de caixa de
c1po bem finmho, quando eu era moleque. A h, do envelope até o outro pagar. Era o tempo de guerra: meus filhos Máno (31) toca surdo,
eu apanhava mesmo. Sobre essa lapada que homem valente, e Lampião sabia quem tinha José (21 ), toca prato e João (32}, bombo.
minha mãe me deu, que ardia que coragem. Moramos em Caruaru. que tem 220 mil habi·
nem pimenta, eu fiz uma música: •Pimenta Ai Lampião ia atrás de fazendeiro que man- tantes. Até o ano de 1973 eu era operário de
Malagueta•. que não foi gravada. O começo dava matar o povo. Ele fazia isso pra defender uma fábrica de saco de estopa. Trabalhava na
dela parece uma toada. Começa assim: a pobreza. Andava armado com a riúna, que máquin3 que operava a caruá, uma fibra que
se carregava pela boca, botava chumbo, caco dá no sertão. AI eu fiquei doente, com um
de vidro, pedra. O grupo de cangaceiro foi incómodo na espinha. Estou de beneficio do
Ai, seu tenente, seu capitão, seu major aumentando porque naquele tempo não tinha INPS. .
Nãomedêcom seu cipó, que é danado pra doer A banda foi criada em 1924 pelo meu par, e
policia. Quer dizer, não era policia, era carta tinha 4 instrumentos: bombo, prato e dois
branca, policia volante. Quando estes sabiam pifanos de taboca. Era a tradicional Zabumba
Dói, queima, só pimenta malagueta de alguém que tinha dado apoio a Lampião,
O nego fica lnheta Cabaçal, e que estava presentes nas novenas
batiam até em crianças. procissões, rifas, forrós e demais festejos.
Não tem pra onde correr. Lampião tinha raiva de fazendeiros. Ele
Sempre que acabava o serviço no roçado a
jogava sueca com os volantes, ficavam juntos gente mudava de lugar. Desde pequenos eu e
A briga do cachorro com a onça é Interes- quase o tempo todo. 1': que lampião dava meu irmão pegava aquele canudo de folha de
sante. Nós morava no sertão, e meu pai dinheiro pra esses homens. Manoel Neto e Zé mamona, quebrava e furava um buraquinho.
gostava de caçar. lá se fazia armadilha pra Lucena não, estes nunca deram corda pras Depois tocava. Nessa brincadeira nós aprende-
pegar onça, porque aquele ano de 1928 as cangaceiros. Acho que se a policia quisesse mos a tocar. A gente tinha inclinação. E como
onças devoravam tudo o que era criação de acabar com o bando de Lampião tinha acaba- o espinho, que quando tem de furar, de
ovelha bode, cabrito. AI o pes<>oal fazia do, não deixavam e!es tomar conta do sertão. novinho já traz a ponta. Meu pai mesmo fazia
armadi,lha. Armadilha se faz assim: tira a lixa Eu vi ele uma vez. Nós tocava .numa festa e a zabumba com a emburana, uma árvore que
de madeira, faz um chiqueiro grande, cobre Lampião soube que depois dessa festa ia ter dá no sertão. Tirava a casca dela e fazia o
ela de madeira por cima, bota muita pedra pra uma missa. Ele era muito católico. Só judiava tambor bem redondlnho. Pegava o enxó e o
onça não sair mais. Isso porque o bicho tem quem fazia mal a ele. Como tava devendo uma
escopo para tirar aquela madeira de dentro.
uma força grande. Depois reparte o chiqueiro, promessa para Nossa Senhora das Dores, Levava uma semana nesse trabalho. Depois
deixando uma vasilha com água na entrada. promessa feita em Tacaratu, uma cidade que esticava couro de bode, e amarrava o tambor
Feito o gradeado, bota o cabrito encostado da fica no final de Pernambuco, ele foi pra lã. por tora, com corda.
água. A onça chega, vê o cabrito berrando, a Procurou o vigário, porque já tava certo que A gente vem mantendo a tradição des~e
água perto. Não tem dúvida, o bicho entra pra no outro dia da festa ia ter a missa. 1924. No começo era eu, meu pai, meu ~rmao
comer o cabrito. No que ela avança, bate a O pessoal tava na calçada da igreja, quando e um primo. Em 1939 a banda se chamou
porta e dai não abre mais. O bicho não vai pra vru aquele eito de cavaleiros. Disseram: lh, lá Zabumba dos contenda, porque nossa família
lá nem vem pra cá. vem o homem. Quando o pessoal deu fé os 50 morava num lugar chamado Contenda. Em 55
Dai noutro dia a gentl" va1 olhar. Nesse cabras cercaram a igreja. Gritavam: não corre meu pai morreu. Ele pediu pra gente não
temp~ era uma festa. O cabra volta e meia ia abandonar a bandinha, que ensinássemos os
avisar o povo. Ajuntava muita gente. Tinha netos dele como ele fez com a gente.
um pessoal que levava até carro de boi. Uma Eu mesmo faço os plfanos, a zabumba e o
vez foi até uma banda de plfanos pra tocar. surdo. Os pites são feitos de taquara. Tem 7
Parecia uma procissão. orifícios, quer dizer, são 7 notas, sendo 6
Algum tempo depois o pessoal amansava a com os dedos e um com o sopro. Dá no tal 21
onça e andava com ela pelo mundo, como se tons.
tivesse puxando um cordeiro. Teve um ano No sertão tem multa banda de plfanos. E
que a gente ia buscar sabe quanto? Vinte e tem muitos repentista de pandeiro, de viola,
oito onças. Sim, porque quando ela ta com de ganzá. E muito sanfonelro. Sabe porque
fome devora a c riação Inteira, come um pouco ( Rivaldo Chi nem ouviu, Dominguinhos, que é um grande artista, cus-
e enterra o resto pra mais tarde vir comer de r:
tou pra ser conhecido? que lã no sertão tem
novo. Mas ai vem o cachorro. anotou e escreveu.) multo sanfoneiro.

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, .·-·
Breve, nas bancas, o VERSUS ESPECIAL
Uma edição só de quadrinhos. E só de artistas
latino-americanos. Luis Gê, Breccia, Edgard Vasques,
Rubens Matuck, Chico Caruso 4t muitos outros. Inclusive ...
Júlio Cortazar. Surpresa? Conheça, então, as proezas
de Cortazar com o super-herói Fantoma~ e••.
Vampiros Multinacionais.

UMA EDIÇÃO HISTÓRICA

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